direito autoral · o ordenamento jurídico não tem descurado do amparo ... dor ultrapassam a...

3
5 R. CEJ, Brasília, n. 21, p. 5-7, abr./jun. 2003 DIREITO AUTORAL RESUMO Examina brevemente a evolução do processo normativo de proteção aos direitos autorais e afirma que o ordenamento jurídico não tem descurado do amparo aos bens imateriais da inteligência humana. Enfatiza as vantagens dos avanços tecnológicos, os quais permitem ampla divulgação das obras científicas e culturais, mas, por outro lado, dificultam o controle dos atores sobre o produto do seu trabalho. Realça o crescimento da indústria da falsificação e aponta o volume dos prejuízos dos autores e produtores, privados de seus ganhos legítimos, bem como da sociedade, em cujo benefício seriam aplicados os impostos incidentes sobre o faturamento da venda das obras. Por fim, apregoa o aprimoramento e o fortalecimento da atuação do Judiciário, tornando-o mais independente, rápido e eficaz, assim como defende o resgate dos valores éticos no meio social e na administração da Justiça. PALAVRAS-CHAVE Direitos autorais; bem imaterial; falsificação; obra cultural. DIREITO AUTORAL * Nilson Naves __________________________________________________________________________________________________________________ * Conferência de abertura proferida no "Seminário sobre Direito Autoral", realizado pelo Centro de Estudos Judiciários, nos dias 17 e 18 de março de 2003, no Centro Cultural Justiça Federal, Rio de Janeiro - RJ.

Upload: vophuc

Post on 11-Jan-2019

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: DIREITO AUTORAL · o ordenamento jurídico não tem descurado do amparo ... dor ultrapassam a astronômica cifra de um ... legítimos ganhos, mas também toda a população, em

5R. CEJ, Brasília, n. 21, p. 5-7, abr./jun. 2003

DIREITO AUTORAL

RESUMO

Examina brevemente a evolução do processo normativo de proteção aos direitos autorais e afirma queo ordenamento jurídico não tem descurado do amparo aos bens imateriais da inteligência humana.Enfatiza as vantagens dos avanços tecnológicos, os quais permitem ampla divulgação das obrascientíficas e culturais, mas, por outro lado, dificultam o controle dos atores sobre o produto do seutrabalho.Realça o crescimento da indústria da falsificação e aponta o volume dos prejuízos dos autores eprodutores, privados de seus ganhos legítimos, bem como da sociedade, em cujo benefício seriamaplicados os impostos incidentes sobre o faturamento da venda das obras.Por fim, apregoa o aprimoramento e o fortalecimento da atuação do Judiciário, tornando-o maisindependente, rápido e eficaz, assim como defende o resgate dos valores éticos no meio social e naadministração da Justiça.

PALAVRAS-CHAVEDireitos autorais; bem imaterial; falsificação; obra cultural.

DIREITO AUTORAL*

Nilson Naves

__________________________________________________________________________________________________________________* Conferência de abertura proferida no "Seminário sobre Direito Autoral", realizado pelo Centro de Estudos Judiciários, nos dias 17 e 18 de março

de 2003, no Centro Cultural Justiça Federal, Rio de Janeiro - RJ.

Page 2: DIREITO AUTORAL · o ordenamento jurídico não tem descurado do amparo ... dor ultrapassam a astronômica cifra de um ... legítimos ganhos, mas também toda a população, em

6 R. CEJ, Brasília, n. 21, p. 5-7, abr./jun. 2003

O tema deste seminário, se, deum lado, traduz as inquie-tudes das lideranças brasilei-

ras ante a indústria da falsificação, jáinstalada no País, de outro, inspira-nos a renovação do debate sobre umasaída ética e democrática para a pro-teção dos direitos do autor e a defe-sa dos interesses do cidadão.

A propósito, nada mais autên-tico do que discutir questões cruciaisacerca do Direito Autoral na fonte dopensamento e da arte. Assim pensoporque, de Martins Pena a Machadode Assis, de J. Carlos a MillôrFernandes, de Noel Rosa a ChicoBuarque, de Casimiro de Abreu aVinícius de Moraes, de Sérgio Porto aCarlos Heitor Cony, de Pereira da Sil-va a Di Cavalcanti, filhos desta terra,teceram-se momentos da história daarte brasileira. Momentos tão vivosquanto permanecem, na memória na-cional, esses nomes e tantos outrosque teria eu de citar para fazer jus àvaliosa contribuição deste Estado ànossa cultura.

Lembro, por importante, que,no Brasil, é preocupação antiga a pro-teção dos direitos do autor. Encon-tram-se registros já em 1827, quandoda implantação dos cursos jurídicosno País, com a garantia aos autoresdo “privilégio da obra por dez anos”.Em 1830, o Código Criminal do Impé-rio tratou do tema, como posteriormen-te o fez o Código Civil de 1916, fixan-do os direitos do autor e seus limites.Em 1922, o Brasil aderiu à Conven-ção de Berna para Proteção de ObrasLiterárias e Artísticas, tendo sido, atéhá pouco, a única nação da AméricaLatina a tê-lo feito. Em 1973, a Lei n.5.988 veio consolidar as várias legis-lações editadas ao longo dos anospara atender às peculiaridades dasdistintas naturezas dos trabalhos deautores e intérpretes.

Prosseguiu a inexorável marchado tempo, e a Constituição de 1988elevou ao nível de lei maior o reconhe-cimento aos autores do direito exclu-sivo de utilização, publicação ou re-produção de suas obras, transmissívelaos herdeiros pelo tempo que a lei fi-xar1. Nesse patamar, ademais, ficaramprotegidas a participação individualem obras coletivas e a reprodução daimagem e voz. Contudo as garantiasnão ficaram por aí: foi dado ao cria-dor, ao intérprete e às respectivas re-presentações sindicais e associativaso direito de fiscalização do aproveita-mento econômico das obras que cria-rem ou de que participarem.

Em 1998, entram em vigor a Lein. 9.610, a nova Lei de Direitos Auto-

rais, justificada diante dos princípiose diretrizes emanados da Carta Mag-na, e a Lei n. 9.609, de Proteção aosProgramas de Computador, necessá-ria em face das exigências das re-centes conquistas da ciência e datécnica.

Do breve histórico depreende-se que o ordenamento jurídico nacio-nal não tem descurado da proteçãodaqueles bens nascidos da inteligên-cia e da alma humanas.

Ante as disposições contidasnas aludidas leis, a instalação destefórum de debates é bastante oportu-na, porquanto os mesmos avançostecnológicos que permitem a ampladivulgação das obras científicas eculturais abrem caminho para a dilui-ção do controle dos autores sobre oproduto de seu trabalho, quando nãopara a total impossibilidade de talcontrole.

Para além de seu significado,a revolução tecnológica que possibi-litou o surgimento das redes de co-municação por meios eletrônicos con-cretizou a profecia da aldeia globalcom suas vantagens – entre outras,o acesso a um número inimaginávelde informações – e desvantagens –como a impossibilidade de fiscalizara integridade das obras de carátercientífico ou artístico protegidas ou aautenticidade da própria autoria.

Com freqüência, os mais impor-tantes periódicos nacionais têm noti-ciado um fato execrável e nunca de-sejável, o de que, no campo da mú-sica, do cinema, das marcas e dosprogramas de computador, as obrasfalsificadas excedem em número eem faturamento as legítimas. Hoje osrecursos postos à disposição de qual-quer pessoa que saiba operar com-putadores, mesmo com conhecimen-to superficial, facilitaram a apropria-ção de obras alheias sem o corres-

pondente respeito ao direito do au-tor, constitucionalmente protegido, ode utilizar-se de sua obra com exclu-sividade.

Indiscutivelmente, a questãoassumiu proporções gigantescas.Calcula-se em 450 bilhões de dóla-res por ano o prejuízo à economiamundial provocado pela indústria dafalsificação. Só no Brasil, as perdasdas indústrias fonográfica, cinemato-gráfica e de programas de computa-dor ultrapassam a astronômica cifrade um bilhão de dólares anuais. Nes-se caso, não perdem apenas os au-tores, que se vêem privados de seuslegítimos ganhos, mas também todaa população, em cujo benefício seri-am aplicados os impostos queincidissem sobre tal faturamento.

Na defesa dos direitos dosautores e dos interesses dos cida-dãos, o Poder Judiciário, como afir-mei em meu discurso de posse naPresidência do Superior Tribunal deJustiça, é chamado a “cumprir a con-tento os seus misteres, essencialmen-te de proteção às pessoas e à socie-dade, assegurando àquelas os bensda vida e afastando desta os males”.

Acredito, e o afirmei naquelamesma ocasião, que “por certo nãohaverá democracia que valha a penasem a existência de um Judiciárioforte e independente, rápido e eficaz,atuante e prestante”. Em face de taisqualidades, depositei minhas espe-ranças e fundamentei a escolha deengrandecer ainda mais a magistra-tura. Esse é o sonho ao qual tenhodedicado os meus dias e pelo qualtenho lutado. Afinal, faço minhas aspalavras de Modigliani, nosso verda-deiro dever é salvar nossos sonhos2.

Contudo têm surgido vozes epessoas estranhas ao Poder dispos-tas a se vestir de juiz, gerando umadistorção da ordem estabelecida pelo

(...) no campo da música, do cinema, das marcas e dosprogramas de computador, as obras falsificadas excedem emnúmero e em faturamento as legítimas. Hoje os recursos postosà disposição de qualquer pessoa que saiba operarcomputadores, mesmo com conhecimento superficial,facilitaram a apropriação de obras alheias sem o correspondenterespeito ao direito do autor, constitucionalmente protegido, o deutilizar-se de sua obra com exclusividade.

Page 3: DIREITO AUTORAL · o ordenamento jurídico não tem descurado do amparo ... dor ultrapassam a astronômica cifra de um ... legítimos ganhos, mas também toda a população, em

7R. CEJ, Brasília, n. 21, p. 5-7, abr./jun. 2003

Nilson Naves é Ministro Presidente doSuperior Tribunal de Justiça e do Con-selho da Justiça Federal.

ABSTRACT

Estado democrático de Direito – emque os Poderes são três, e não maisque três, independentes e harmôni-cos entre si – e levantando a suspei-ta de que esteja em curso uma ver-dadeira tentativa de intimidação doPoder Judiciário. Não comungandodessas vozes que apregoam a falên-cia do Judiciário – preocupação tam-bém já demonstrada em meu discur-so de posse –, o Professor SachaCalmon, em nossas Minas Gerais, emrecente artigo justamente denomina-do “Intimidação do Poder Judiciário”,declara: No final, o que se quer é proi-bir os juízes de conceder liminares oujulgar sempre contra os réus, mesmoque falhas as provas ou insuficientea instrução3.

Sob a ótica do julgador, exis-tem casos em que a notícia dos fatostranscende a apuração e invade o ter-reno do Judiciário. Ao encontrar-mena terra que legou ao País tantos pen-sadores e artistas, especificamenteem momento propício à reflexão acer-ca do verdadeiro e do falso, creio seroportuno lembrar que causam umdesserviço à Justiça os que, abdican-do do direito de pensar, olvidam prin-cípios tão caros a todos nós, semexceção alguma; princípios que, porserem universais, dispensariam atéinscrição em ato normativo. Em tem-pos perdidos no fluxo da história,Sófocles já proclamava a existênciade princípios eternos, não-escritos,inevitáveis: não é de hoje, não é deontem, é desde os tempos mais re-motos que eles vigem, sem que nin-guém possa dizer quando surgiram4.

A par dessa intimidação, háuma outra – sempre houve –, tal a per-gunta a propósito do assassinatoamplamente noticiado que abalou asnossas instituições e todo o País. Amagistratura e todos, sem exceção,reprovamos, com toda veemência, oato vil, traiçoeiro e covarde, mas osjuízes não hão de se intimidar no cum-primento de seus deveres, tenho aperfeita convicção de que não se inti-midarão. Ao contrário, estou conven-cido de que ação tão repulsiva sóconseguirá provocar os magistradosa renovarem o seu propósito de nãodeixar sem punição aqueles que,afrontando a sociedade, cometemcrimes.

Diante disso, inadiável a lutapelo resgate dos valores éticos ador-mecidos; uma luta cuja vitória não sealcançará por meio da omissão. Urgeextirpar o mal, porque na primeiranoite, eles se aproximam, colhemuma flor do nosso jardim. E não dize-mos nada. Na segunda noite, já não

se escondem: pisam as flores, ma-tam nosso cão e não dizemos nada.Até que um dia, o mais frágil delesentra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua e, conhecendo nosso medo,arranca-nos a voz da garganta. E por-que não dissemos nada, já não po-demos dizer nada5.

Encerro certo de que, nestefórum, não se calará a voz da Justi-ça, nem descansará esta da inces-sante busca da verdade.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 Art. 5º, XXVII, da Constituição Federal de1988.

2 Frase atribuída ao célebre pintor e escultoritaliano Amedeo Modigliani (1884-1920).

3 CALMON, Sacha. Intimidação do PoderJudiciário. Estado de Minas, 23 fev. 2003.

4 SÓFOCLES. A Trilogia Tebana: Édipo Rei.Édipo em Colono. Antígona. Trad. Mário daGama Kury. 9. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2001.

5 COSTA, Eduardo Alves da. No caminho comMaiakovski. São Paulo: Círculo do Livro.1988, p. 40.

The author examines, briefly, theevolution of the rule proceeding of protectionto the copyrights and he states that the legalsystem has not neglected the support to theintangible assets which are fruits of the humanintelligence.

He enhances the advantages of thetechnological progresses which allow a widedivulging of the scientific and cultural works,but, on the other hand, they difficult the authors’control over the product of their work.

He stresses the increase of thefalsification industry and he points the volumeof the losses of the authors and producers,who are deprived of their legitimate earnings;of society, which in its benefit would be appliedthe taxes that fall upon the billing of the sale ofworks.

To conclude, he proclaims theimprovement and the strengthening of theJudiciary performance, making it moreindependent, swift and efficacious, as well ashe defends the redemption of the ethical valuesin the social environment and in the Justiceadministration.

KEYWORDS – Copyright; intangibleassets; falsification; cultural work.