direito ao crédito e ao bom nome

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 Da ofensa ao crédito e ao bom nome 1 1.1 Propomo-nos hoje falar aqui da responsabilidade civil decorrente da ofensa do crédito ou do bom nome, prevista na hipótese legal do art. 484º do Código Civil.  Antes de mais, importa delimitar o âmbito da nossa exposição. O tema da ofensa do crédito e do bom nome prende-se com todo um leque de outras questões, que - pese embora a inegável importância do seu estudo - não iremos aqui abordar, quer por manifesta falta de tempo, quer por o seu fulcro central escapar, em alguns casos, ao âmbito de uma discipl ina de “Direito Civil” como é a nossa.  Assim, desde logo, não vamos tratar dos aspectos penais por vezes envolvidos na ofensa ao crédito e ao bom nome. Os crimes de difamação ou de abuso de liberdade de imprensa, enquanto tais, enquanto crimes, estão, pois, ainda quando envolvam ofensa ao crédito e ao bom nome, fora do âmbito da nossa reflexão. Do mesmo modo, questões que muitas vezes andam a par com a problemática da ofensa do crédito ou do bom nome, como as questões constitucionais da liberdade de expressão e da liberdade de informação e as questões da liberdade de imprensa em geral apenas incidentalmente nos irão interessar, e apenas na estrita medida em que o exercício de tais liberdades possa contender com o direito ao crédito ou ao bom nome e servir, deste modo, para estabelecer o recorte negativo, a medida da extensão, do conteúdo deste último direito. Finalmente, fora do nosso estudo ficam direitos de personalidade afins do direito ao nome, como, por exemplo, o direito à imagem ou o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada. A violação destes direitos pode, porventura, implicar também, colateralmente, uma ofensa do bom nome. A consideração autónoma dessa violação não merecerá, todavia, a nossa atenção nesta sede.

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Da ofensa ao crédito e ao bom nome

1

1.1

Propomo-nos hoje falar aqui da responsabilidade civil decorrente da ofensa

do crédito ou do bom nome, prevista na hipótese legal do art. 484º do Código

Civil.

Antes de mais, importa delimitar o âmbito da nossa exposição. O tema da

ofensa do crédito e do bom nome prende-se com todo um leque de outras

questões, que - pese embora a inegável importância do seu estudo - não

iremos aqui abordar, quer por manifesta falta de tempo, quer por o seu fulcro

central escapar, em alguns casos, ao âmbito de uma discipl ina de “Direito

Civil” como é a nossa. 

Assim, desde logo, não vamos tratar dos aspectos penais por vezes

envolvidos na ofensa ao crédito e ao bom nome. Os crimes de difamação ou

de abuso de liberdade de imprensa, enquanto tais, enquanto crimes, estão,

pois, ainda quando envolvam ofensa ao crédito e ao bom nome, fora do

âmbito da nossa reflexão.

Do mesmo modo, questões que muitas vezes andam a par com a

problemática da ofensa do crédito ou do bom nome, como as questões

constitucionais da liberdade de expressão e da liberdade de informação e as

questões da liberdade de imprensa em geral apenas incidentalmente nos

irão interessar, e apenas na estrita medida em que o exercício de tais

liberdades possa contender com o direito ao crédito ou ao bom nome e

servir, deste modo, para estabelecer o recorte negativo, a medida da

extensão, do conteúdo deste último direito.

Finalmente, fora do nosso estudo ficam direitos de personalidade afins do

direito ao nome, como, por exemplo, o direito à imagem ou o direito à reserva

sobre a intimidade da vida privada. A violação destes direitos pode,

porventura, implicar também, colateralmente, uma ofensa do bom nome. A

consideração autónoma dessa violação não merecerá, todavia, a nossa

atenção nesta sede.

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Da ofensa ao crédito e ao bom nome

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1.1 - Introdução

Constitui o direito ao nome um dos direitos de personalidade mais

fundamentais

Pé de página

Inserido no nosso Código Civil na secção dos direitos de personalidade, é

hoje indiscutível a natureza jurídica do direito ao nome. Sobre as antigas

concepções, vide, por todos, Antunes Varela, “Alterações legislativas do

direito ao nome, RLJ, ano 115º e ss.

De algum modo ele precede mesmo o direito à vida. Já durante a gravidez,

progenitores, avós, parentes e amigos se afadigam na escolha do futuro

nome do infante nascituro. Também para as pessoas colectivas, o primeiro

passo indispensável à sua constituição é a obtenção de um certificado de

admissibilidade do nome.

A importância do nome é tal que qualquer um de nós interrogado: “quem és

tu?”, redarguirá, antes de lhe ocorrer qualquer outra resposta: “eu sou oJoão”; “eu sou o António”; “eu sou o Francisco”. A identificação com o nome

é tal que tudo se passa como se o nome e o eu fossem equivalentes, como

se a personalidade e o nome constituíssem uma só realidade, as duas faces

de uma mesma moeda. Só Deus (Eu sou Aquele que sou - Êxodo, 3) parece

poder conservar a personalidade, a realidade, independentemente de um

nome. Para os outros, privados de nome, à pergunta “quem és tu?” terão

inevitavelmente que responder como o romeiro da peça, com umshakespeariano “ninguém”. 

Direito de personalidade, pois, direito de personalidade fundamental, a

compreensão integral do direito ao nome há-de pressupor o correcto

enquadramento, a pré-compreensão epistemológica, dos direitos de

personalidade no ordenamento jurídico. A essa tarefa dedicaremos breves

linhas, antes de entrarmos no nosso tema propriamente dito.

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Da ofensa ao crédito e ao bom nome

3

A problemática dos direitos de personalidade enquanto problemática jurídica

em sentido estrito é uma questão moderna.

Ela remonta aos finais da Idade Média, com o triunfo, especialmente a partir

de Guilherme de Occam, das concepções epistemológicas do nominalismo

Contrapondo-se ao realismo clássico, o nominalismo vai negar ao universal

outra realidade que não a realidade verbal. Fora do pensamento, não há

outra realidade que não os indivíduos e as suas propriedades. Só o

particular existe.

Para Occam (a sua doutrina triunfante, cujos princípios fundamentais se

projectam na Idade Moderna, até aos nossos dias), o universal existe na

alma do sujeito cognoscente e só aí . Podemos interrogar-nos que tipo de

existência têm os universais no pensamento, mas fora dele não nos resta

senão admitir a sua ausência total de realidade, a sua inexistência de facto.

Cada coisa real é individual, única e distinta. Deste modo, tudo o que é real

fora do pensamento é um concreto indivíduo, que o é pelo simples facto de

existir.

O universal, p. ex., o universal homem, enquanto conceito distinto de

cada homem concreto, não existe fora da mente do sujeito pensante.

É este um ponto absolutamente fulcral na doutrina nominalista, de Occam e

de todo o pensamento moderno que a aceitou. Nunca é demais sublinhá-lo.

É que com ele se elimina toda a esperança de encontrar nas coisas, nas

coisas em si mesmas, através do pensamento, uma natureza comum (natura 

communis) real, uma natureza comum que permanecesse una sob as suas

múltiplas determinações individuais.

Se para o pensamento clássico e cristão medieval, os direitos do indivíduo

se fundavam numa idêntica natureza comum de toda a humanidade, numa

partilha da mesma natureza humana (o arquétipo de homem no mundo das

ideias de Platão; o homem criado à imagem e semelhança de Deus no

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pensamento judaico-cristão), o pensamento nominalista vai destruir uma tal

concepção e ver-se na necessidade de reconstruir todo o edifício dos direitos

individuais.

Para o nominalismo, repetimos, nada que corresponda a uma natureza

humana universal tem existência real fora do pensamento. A realidade é a

realidade dos homens concretos, dos indivíduos isolados e distintos, não do

ser humano, categoria universal, carecida de existência extra-mental.

As consequências desta concepção na pré-compreensão epistemológica do

fenómeno jurídico são óbvias: negada a realidade da humanidade, negada a

realidade de uma natureza humana, negada fica a existência de um direitonatural inerente a essa humanidade, de um direito comum a todos os

homens, anterior e superior aos homens. Nas palavras do Doutor Leite de

Campos, “a lei deixa de ser vista como uma expressão da ordem descoberta

na natureza, para se transformar na expressão da vontade do legislador. E o

Direito já não (é) uma relação justa entre seres sociais, mas o

reconhecimento do poder autónomo do indivíduo”. 

Nominalismo, logo positivismo e voluntarismo. Ainda nas palavras do Doutor

Leite de Campos, “não havendo mais que o ser (individual), ao qual o Direito

tem de estar necessariamente vinculado, este ser humano transforma-se no

autor do direito”. De um direito que, por ser produto humano, é contingente e

discutível; não a expressão de relações justas, mas a expressão da vontade

e do poder.

Neste quadro, a reconstrução do edifício jurídico imposta pela nova

concepção dominante vai correr sempre à beira do abismo, sempre a exigir a

vigilância atenta do jurista que, cada passo corre o risco de ver

funcionalizado o direito que lhe cumpre defender, não ao serviço da justiça,

mas ao serviço do poder dominante.

No plano político, destruída a humanidade que assegurava a possibilidade e

coesão da vida em sociedade, a reconstrução vai dar-se a partir dasdoutrinas do contrato social, um contrato entre indivíduos, livres, isolados e

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iguais que aceitavam abdicar de parte da sua liberdade, a favor da

possibilidade de vida em sociedade.

No plano do direito comum - o único que aqui nos interessa - a resposta vai

ser dada justamente com os direitos de personalidade, direitos do indivíduo

enquanto concreto indivíduo particular, não direitos inerentes a uma natureza

humana universal, essa irremediável e definitivamente perdida.

Mas, repetimos, perdida essa humanidade natural, destruído o que era

anterior e superior aos indivíduos, o que sobra pode ser a expressão

voluntarista da pura força. O intento nobre da consagração de direitos de

personalidade individuais pode degenerar na doença jurídica dos nossosdias dos direitos de personalidade individualistas.

O meu direito individual à vida, ou o meu direito individual ao nome e,

eventualmente, o teu direito ao nome - para voltarmos, depois desta longa

digressão ao nosso tema - correm o risco sério de se verem interpretados

como o meu direito individualista ao nome ou o teu direito individualista ao

nome, entidades jurídicas que não têm outra realidade que não a de serem

afirmações concretas do meu e do teu direito, expressões puras da minha e

da tua força, sem nada em comum, anterior e superior que as justifique e

legitime.

Voltamos ao início. O universal não existe. O meu direito é intrinsecamente

individual, concreto e único. E assim sendo, a sua realidade poderá passar

apenas pela sua afirmação. E a sua afirmação poderá passar apenas pelo

poder de o impor. Desaparecida a referência ao universal, ao comum, ao

semelhante e, naturalmente, à justiça, o direito pode passar a ser expressão

pura da força e da vontade. O nominalismo continua de braço dado com o

voluntarismo e como salienta outra vez o Doutro Leite de Campos, “os

direitos da personalidade, no discurso do jurista e nas representações

sociais, têm (podem ter, diremos nós, mais optimistas) a sua natureza

adulterada. De instrumentos de defesa do ser humano contra a omnipotência

do soberano e contra a agressão dos outros, estão sendo transformados em

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expressão da omnipotência do indivíduo, da sua soberania absoluta sobre o

eu e os outros”. 

É alertados contra este perigo, contra o risco de ver transformados os

legítimos direitos individuais da personalidade em ilegítimos poderes

individualistas de quem grita mais alto, que iremos agora iniciar a

aproximação ao nosso tema: a responsabilidade civil decorrente da ofensa

do crédito ou do bem nome.

2- Dispõe o art. 484º do Código civil: “quem afirmar ou difundir um facto

capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular

ou colectiva, responde pelos danos causados”. 

Não pretende este preceito esgotar a tutela conferida ao nome. Ele trata tão

só da reparação dos danos causados com a divulgação de factos

susceptíveis de pôr em causa o crédito ou o bom nome de pessoas

singulares ou colectivas.

Outros preceitos, designadamente o art. 72º do Código Civil, se ocuparão,

em primeira linha e de forma mais ampla, da tutela incondicional do direito ao

nome. “Toda a pessoa - diz o n.º 1 do citado art. 72º CC - tem direito (...) a

opor-se a que outrem use ilicitamente o seu nome para sua (do usurpador)

identificação ou outros fins”. Não pressupõe esta norma a verificação de

qualquer dano ou sequer a culpa do usurpador. Constatado o uso ilícito de

um nome, pode o seu legítimo titular requerer, nos termos do art. 70º CC, asprovidências adequadas às circunstâncias do caso. Isto independentemente

da responsabilidade civil a que, porventura, haja lugar.

Ora, é justamente da responsabilidade civil decorrente da afirmação ou

difusão de factos capazes de prejudicar o crédito ou o bom nome de

qualquer pessoa, singular ou colectiva, e só deste problema, que trata o art.

484º.

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Estamos, pois, perante uma norma de responsabilidade civil extracontratual.

E estamos perante uma norma que, em relação ao art. 483º, funciona como

norma especial, pressupondo, por isso a sua aplicação a verificação de

todos os requisitos, previstos este último preceito. Para que alguém se possa

constituir em responsabilidade civil, nos termos do art. 484º, tem que

simultaneamente se verificar o preenchimento de todos os requisitos do art.

483º, a saber:

- a existência de um facto ilícito, culposo (o nexo de imputação do facto ao

lesante), um dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

A falta de um só destes requisitos afasta a aplicabilidade do art. 484º. Se a

afirmação ou divulgação do facto não é ilícita, se é feita sem culpa, se dela

não decorre dano, se entre o facto divulgado e a ofensa do crédito ou do

bom nome registada não há ligação causal, excluída está aplicabilidade do

art. 484º e a responsabilidade nele prevista.

É este o único entendimento possível. E assim o entendeu também o

Acórdão da Relação de Coimbra de 19 de Junho de 1996 (publicado na Col.

Jur., ano de 1996, tomo III, p. 52). Julgava-se o pedido de indemnização

formulado por um conhecido gerente bancário que afirmava ter o seu bom

nome sido publicamente posto em causa em toda a cidade da Figueira da

Foz pelo advogado da sua mulher (na acção de divórcio que entre ambos

corria), quando este se dirigira ao escritório do seu próprio advogado e aí -

“de viva voz, em tom perfeitamente audível”, para todos os que se

encontravam no dito escritório - o interpelara para que este causídico

dissesse ao seu cliente (o tal gerente bancário) que deixasse de lhe andar a

riscar o carro, como havia feito. Entendeu o Tribunal (e bem, do nosso

ponto de vista) que ainda quando o facto imputado ao gerente bancário

fosse falso (ele nunca tivesse riscado o carro de quem quer que fosse),

ainda que a afirmação proferida tivesse posto em causa o seu bom nome e,

nessa medida, lhe tivesse causado um dano sério, ainda que o advogado

autor da imputação tivesse agido com dolo, sempre faltaria o nexo de

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causalidade entre o facto e o dano e estaria excluída, por isso, a

responsabilidade civil. Com efeito, as imputações, porventura ofensivas,

proferidas no âmbito restrito de um escritório de advogados não são causa

adequada para a generalizada degradação do bom nome em toda umacidade.

Repetimos, o art. 484º pressupõe a verificação de todos os pressupostos

integrativos da responsabilidade civil, estatuídos no art. 483º.

3- Estabelecido o contexto sistemático do art. 484º do Código Civil no âmbito

da responsabilidade civil, nem por isso fica mais fácil a sua interpretação.

Formulada de modo aberto, em termos significativamente extensos, a

hipótese legal do art. 484º deixa “ ao intérprete/aplicador  (para usar as

palavras do Doutor Sinde Monteiro) um enorme espaço hermenêutico”,

cabendo, naturalmente, à doutrina e à jurisprudência ir preenchendo um tal

espaço, concretizando no caso concreto o sentido exacto dos termos

abstractos da lei.

“Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom

nome... responde pelos danos causados”. 

A primeira nota a reter na análise exegética do art. 484º é a da exigência,

para existir responsabilidade civil, de que aquilo que se afirma ou difunde

seja um facto, uma realidade concreta, objectiva, susceptível de verificação,

de demonstração ou de prova.

Pé de página 

Saliente-se, em jeito de nota lateral, que a afirmação ou difusão a que se

refere o art. 484º não têm que ser expressas. O preceito contenta-se com

uma afirmação ou divulgação tácitas. Assim, como bem entendeu o acórdão

da Relação do Porto de 14 de Abril de 1994 (CJ, ano XIX, tomo II, p. 212),

“há ofensa do crédito e do bom nome se a lesada, em consequência de

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processo crime por cheques sem cobertura, denunciados por quem deles

indevidamente se apoderou assinados em branco e preencheu, procurando

utilizá-los em seu proveito, sofreu (...) diminuição da confiança na sua

capacidade e vontade de cumprir as suas obrigações, em virtude de talprocesso ter chegado ao conhecimento de parentes, amigos, vizinhos e

fornecedores”. Aqui a afirmação e difusão do facto lesivo do crédito e do bom

nome não se traduziu num comportamento verbalizado, mas numa conduta

abusiva, em que a afirmação do facto lesivo surge apenas de modo tácito,

mas nem por isso menos grave ou menos digno da tutela do art. 484º.

Fechado o parêntesis, voltemos à análise deste preceito. Dizíamos:

A primeira nota a reter na análise exegética do art. 484º é a da exigência,

para existir responsabilidade civil, de que aquilo que se afirma ou difunde

seja um facto, uma realidade concreta, objectiva, susceptível de verificação,

de demonstração ou de prova.

Excluídos estão, desde logo, os juízos de valor, as opiniões subjectivas de

quem as emite.

Assim, p. ex., se na página de gastronomia de determinado periódico, o

colunista atribui nota negativa à qualidade da comida de certo restaurante,

tal opinião, ainda quando, por força do prestígio do colunista, possa implicar

descrédito para o dito restaurante, não é sindicável em sede de

responsabilidade civil fundada no art. 484º. A apreciação da qualidade traduz

uma opinião subjectiva, do foro pessoal, insusceptível de demonstração ou

prova e, nesta medida, discutível, podendo contra ela serem sempre

aduzidos contra-argumentos de maior força persuasiva. A opinião, o juízo de

valor, não tem a carga arrasadora dos factos contra os quais se diz não

haver argumentos (a não ser, quiçá, desmenti-los). Por isto mesmo, e porque

entre o interesse individualista de qualquer pessoa em que a seu respeito se

não emitam senão juízos favoráveis, por um lado, e a necessidade de

garantia do núcleo central da liberdade fundamental que é a liberdade de

expressão por outro, não pode deixar de prevalecer esta última, o âmbito de

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protecção conferido pelo art. 484º não quis abranger, em caso algum, as

meras opiniões ou juízos de valor.

Claro está que a realidade da vida nem sempre é tão linear e simplista como

acabámos de deixar transparecer. Se as opiniões não são sindicáveis, a

verdade é que as opiniões se formam a partir de factos e muitas vezes será

difícil traçar com precisão a linha de fronteira entre as estes e aquelas.

Basta pensarmos, p. ex., em como perante as mesmas imagens de um jogo

de futebol, perante o mesmo facto, pessoas igualmente conhecedoras das

respectivas regras do jogo emitem juízos inteiramente divergentes quanto à

existência ou inexistência de uma falta punível com grande penalidade, paratomarmos consciência de como é difícil, por vezes, distinguir entre o facto e a

opinião.

Se, no meu exemplo, eu digo: “foi penalty”, estou a descrever um facto ou a

emitir uma opinião? Ou estarei tão só a emitir um juízo de valor apoiado num

facto?

Nenhum critério naturalístico poderá jamais fornecer a linha definitiva de

separação entre os factos e os simples juízos de valor.

O critério há-de antes encontrar-se pela via jurídica da ponderação dos

interesses a tutelar.

No seguimento do que defendíamos na introdução, se o desenvolvimento e

realização plena da personalidade individual de cada um (incluindo esse

aspecto particular da personalidade que é o direito ao nome) merece toda a

protecção, esse desenvolvimento e realização passam também pela garantia

da liberdade de expressão, a qual há-de sempre prevalecer não sobre o

direito de personalidade ao nome, mas sobre o direito ( rectius , pseudodireito)

individualista, voluntarista, a esse mesmo nome.

Entre a liberdade de expressão e o interesse individualista, egoísta, ao bom

nome, a um nome intocável, acima de toda a crítica, não há qualquer conflito.

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Este interesse individualista não confere qualquer direito. A liberdade de

expressão é o único valor em jogo e tem que afirmar-se.

Se, no meu exemplo, perante a não marcação da grande penalidade que eu

 julguei evidente, eu qualifico, na eventual crónica que escreva sobre o jogo,

o árbitro de incompetente, nem por isso me constituirei em responsabilidade

civil. O interesse do visado não o pode colocar acima de qualquer crítica, o

seu interesse egoístico não pode afectar o valor essencial da liberdade de

expressão. Não sendo definitivamente possível a prova da verdade da

existência ou não da falta justificativa da sanção impõe-se a liberdade de

crítica e julgamento.

Diferente será o caso se eu afirmar ser o árbitro um ladrão. Aqui ultrapassei

 já os limites da mera crítica e estou a afirmar um facto susceptível de violar o

direito ao bom nome do visado e de integrar, por isso, os pressupostos da

responsabilidade civil estatuídos no art. 484º do CC.

Haverá então um conflito real entre a liberdade de expressão e o direito de

personalidade. É que o conflito entre o direito fundamental à liberdade de

expressão e o legítimo direito de personalidade ao nome configura um caso

de real colisão, a resolver no quadro aberto do art. 335º do Código Civil.

Encontrando os dois direitos (ao nome e á liberdade de expressão)

consagração constitucional idêntica (o primeiro no art. 26º e o segundo no

art. 37º, ambos do capítulo I - direitos, liberdades e garantias pessoais - do

Título II, da parte I da Constituição da República Portuguesa) nenhuma razão

  juridicamente atendível existe, para considerar um superior ao outro. A

superação do conflito não passará, pois, pela prevalência absoluta de um

dos direitos sobre o outro, em termos de se poder afirmar que sempre que se

registar um conflito entre o direito correspondente à liberdade de expressão

e o direito ao nome um deles terá sempre de ceder a favor do outro (nos

termos do n.º 2 do art. 335º do Código Civil).

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Só caso a caso, perante os dados concretos da situação, será possível

determinar qual dos valores deverá ser protegido e qual deverá ceder e em

que medida o sacrifício de um a favor do outro se torna necessário.

Como critério geral de decisão podemos apenas afirmar que o direito geral

ao crédito e ao bom nome deverá sempre ceder quando o juízo de valor é

emitido no cumprimento de um dever legal. O juízo de valor emitido no

cumprimento de uma obrigação legal nunca pode constituir quem o emite em

responsabilidade civil.

Assim o entendeu também o STJ, no acórdão de…. , quando negou

provimento à petição de um funcionário de uma embaixada que se julgavainjustiçado, e o seu crédito e bom nome postos em causa, na avaliação

extremamente negativa que havia sido emitida pelo seu superior hierárquico.

Ressalvadas ficam, com certeza, as hipóteses de desvio de poder. Se quem

emite o juízo discricionário de valor, o emite com fim diferente daquele a que

legalmente estava vinculado, com o fim de prejudicar o visado, então

estaremos já no domínio do abuso de direito, ou seja no domínio do não

direito, deixando, nessas hipóteses, de subsistir qualquer conflito entre a

liberdade de expressão e direito ao nome. O ónus da alegação e prova da

existência deste desvio de poder caberão, logicamente, ao visado pelo juízo

de avaliação.

Fora destas hipóteses, o juízo negativo emitido por alguém em relação a

outrem, só excepcionalmente deve poder gerar a responsabilidade do art.

484º quando envolva grave, séria e desnecessária ofensa à honra do visado.

Seria o caso acima mencionado de alguém chamar, sem provas da

veracidade do que afirmava, chamar ladrão ao árbitro que deixara de

assinalar uma falta. Como se escreve no acórdão do STJ de 27 de maio de

1997 (CJ, ano ..., 1997, tomo II, p. 102), “ o direito-dever de expressar o

pensamento não está, nem pode estar sujeito a qualquer tipo de censura;

mas identicamente tem de ser exercido com claro índice cívico, de respeito

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do Homem pelo Homem (...), devendo respeitar o direito à honra e ao bom

nome, salvo casos excepcionais”. 

Ao lado dos juízos de valor também a defesa de teses abstractas, científicas,

filosóficas, religiosas ou de qualquer outra natureza não são nunca

susceptíveis de dar origem à responsabilidade prevista no art. 484º.

Tal como os simples juízos, as teses não são factos e aquela

responsabilidade pressupõe a afirmação ou difusão de factos.

Além de que assim o impõe, mais do que a liberdade de expressão, a

liberdade de conhecimento e de investigação, valores que, enquanto

condições estruturantes da formação de uma opinião pública esclarecida,

não podem deixar de sobrepor-se a estritos interesses individualistas de

quem, mais do que o seu crédito ou bom nome, pretende ver

salvaguardados, a todo o custo, contra tudo e contra todos, os seus

interesses económicos imediatos.

E isto é assim ainda quando a tese sustentada consista numa afirmação

capaz de causar efectivo e sério dano a uma ou várias pessoas singulares

ou colectivas.

Imagine-se, p. ex., que alguém, com particular autoridade na matéria, afirma

nos principais telejornais das principais cadeias de televisão  – ainda que

sem fundamento  – que certo aditivo alimentar é cancerígeno e gravemente

prejudicial à saúde. Uma empresa de refrigerantes em cujos produtos o dito

aditivo entre pode ser seriamente lesada, assistindo-se a uma diminuiçãodrástica das suas vendas. Nem por isso, todavia, esta poderá socorrer-se do

art. 484º para, contra o autor da afirmação, ver ressarcidos os seus

prejuízos. É que uma afirmação genérica e abstracta não é facto, por si só,

capaz de directa e imediatamente, causar dano ao crédito ou ao bom nome

de quem quer que seja. Pretender responsabilizar alguém pela divulgação de

afirmações genéricas seria intolerável e perigosíssimo cerceamento da

liberdade de investigação e de expressão que nenhum legítimo direito aonome pode consentir, sob pena de, em vez de se colocar ao serviço do livre

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Da ofensa ao crédito e ao bom nome

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e são desenvolvimento da esclarecida personalidade de cada um, estar ao

serviço dos puros interesses afirmados de quem detém o poder.

Para além de tudo o mais, nestes casos, a responsabilidade estaria desde

logo excluída por ausência de culpa. Com efeito, para haver culpa será de

exigir a possibilidade de conhecimento de que a afirmação difundida pode

causar dano ao crédito ou ao bom nome, será igualmente de exigir a

possibilidade de conhecimento, ao menos com algum grau de aproximação

razoável, da medida e da extensão daqueles danos e, finalmente, como

salienta o Dr. Sinde Monteiro, será ainda de exigir a “ligação cognoscível

entre o facto inverídico e apessoa do lesado, a sua empresa, métodos

negociais ou produtos”. A simples ausência de um destes requisitos afastará

a culpa e, consequentemente, a responsabilidade.

E a ausência de todos eles será o que por regra se verificará na difusão de

teses abstractas.

Muito excepcionalmente, quando com dolo ou culpa grave o facto difundido,

sob a capa da generalidade, visa atingir o bom nome de uma entidade

concreta (p. ex., é sabido que só uma empresa produz o refrigerante em que

entra o tal aditivo e o falso anúncio da sua perigosidade é difundido por um

seu antigo funcionário despedido com justa causa), poderemos admitir a

responsabilidade por ofensa ao crédito e ao bom nome.

Mas estes casos deverão ser absolutamente excepcionais. Sobretudo

estando em causa a formação de uma opinião pública esclarecida nos

domínios da saúde e da segurança dos consumidores, a regra deve ser a da

máxima liberdade de investigação e expressão.

Mais complexa é a questão de saber se se pode demandar com base no art.

484º aquele, que, sem se referir expressamente a ninguém, afirmou facto

lesivo do crédito ou do bom nome de indivíduo pertencente a um grupo

concreto e determinável.

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Face, p. ex., às notícias recentemente divulgadas de que um elemento do

Governo Regional da Madeira estaria a ser investigado pela Polícia

Judiciária por suspeita de prática de pedofilia, poderá qualquer membro do

mencionado Governo Regional, sentindo lesado o seu bom nome, accionaros mecanismos de responsabilidade civil previstos no art. 484º.

Ainda aqui cremos que a resposta terá de ser negativa. A tutela concedida

por este preceito legal visa a lesão directa e imediata do crédito ou do bom

nome de uma pessoa concreta e não eventuais danos eventualmente

causados por suspeições genéricas e abstractas. Também nestes casos o

valor liberdade de expressão pesa mais forte.

Admitimos, isso sim, que qualquer membro do grupo visado possa exigir dos

divulgadores da afirmação lesiva se estes se referem ou não à sua pessoa

individual e, a partir daí, requerer as providências adequadas à tutela do seu

bom nome, nos termos gerais do art. 70º.

Seja como for, esta é questão que não vimos tratada pela nossa

 jurisprudência e sobre a qual as nossas conclusões têm carácter provisório,

à espera de mais profunda e atenta reflexão…. 

4- “Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom

nome... responde pelos danos causados”. 

Por não constituírem factos, também não integram os pressupostos do art.

484º as meras interrogações acerca de factos. Assim também o entendeu a

Relação de Lisboa no acórdão Marcelo Rebelo de Sousa.

Obviamente que esta reserva não valerá para as interrogações puramente

retóricas que, embora sob a forma interrogativa, comportam a efectiva

afirmação de um facto e caiem, por isso, no âmbito da hipótese legal do art.

484º.

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4- Finalmente, por não serem factos, não dão origem à responsabilidade do

art. 484º os jogos de palavras ou trocadilhos feitos com o nome de uma

pessoa.

Recordo uma célebre polémica com o colunista Vasco Pulido Valente, no

  jornal “O Independente”, em que, a certa altura o seu contendor lhe

recomendava que fosse um pouco menos valente e um pouco mais polido.

Recordo, um orador no recente congresso do CDS/PP em Braga, que

referindo-se a outro congressista (O Dr. Luís Nobre Guedes) proclamava que

este já só era Guedes, tendo perdido a nobreza.

Claro que quando ofensivos do bom nome de alguém, estes jogos de

palavras poderão ser objecto de qualquer providência adequada à defesa

desse nome, nos termos gerais da tutela dos direitos de personalidade. O

que nunca darão é lugar à responsabilidade civil do art. 484º, porque, repete-

se, tais jogos não traduzem a afirmação ou divulgação de nenhum facto.

5- Não é só o problema da concreta natureza do conceito de facto que

levanta dificuldades na análise exegética do art. 484º

Questão acima de todas polémica é a de saber se, para haver

responsabilidade civil, o facto que se afirma ou divulga tem que ser falso. Se

a verdade do facto afirmado ou difundido é causa de justificação que exclui a

ilicitude.

Profundamente dividida está a doutrina nesta matéria.

A favor da existência de responsabilidade mesmo quando os factos

afirmados sejam verdadeiros (e preenchidos que sejam os outros

pressupostos da responsabilidade civil extracontratual) pronuncia-se

Antunes Varela. “Pouco importa  – escreve este autor (Código Civil anotado,

4ª ed., Coimbra, 1987, p. 486) - que o facto afirmado ou divulgado

corresponda ou não à verdade, contanto que seja susceptível, dadas as

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circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na capacidade e na vontade  

da pessoa para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito ) ou de abalar

o prestígio  de que a pessoa goze ou o bom conceito  em que seja tida

(prejuízo do bom nome ) no meio social em que vive e exerce a suaactividade”. 

Igualmente a jurisprudência mais recente, designadamente o já citado

acórdão do STJ de 27 de maio de 1997, vai no sentido de que “a expressão

de facto verdadeiro, se injustificada, pode ser passível de sanção legal”. 

Contra este entendimento, em princípio, vendo na afirmação de um facto

demonstravelmente verdadeiro uma causa de exclusão da ilicitude e,portanto, da responsabilidade, Pessoa Jorge e o Doutor Sinde Monteiro.

Pessoalmente, e reconhecendo embora que alterámos a nossa posição

inicial, propendemos a concordar com os últimos autores. Como salienta o

último jurista citado, “no silêncio da lei, talvez se possa entender que o

tratamento jurídico das hipóteses em que a afirmação de um facto verdadeiro

é susceptível de gerar responsabilidade (coisa de que, em definitivo,

ninguém duvida) deva ter lugar a propósito do art. 484º CC... O que (...)

parece dever acentuar-se é que uma e outra hipóteses integram dois delitos

completamente diferentes. Os requisitos da responsabilidade pela afirmação

de um facto verídico terão de ser outros; o direito não pode encarar com os

mesmos olhos a verdade e a mentira”. 

No fundo, as duas posições talvez nem sequer estejam tão afastadas uma da

outra como uma primeira aproximação poderia fazer crer.

É que mesmo os defensores da ilicitude da difusão de factos verdadeiros

lesivos do crédito ou do bom nome, admitem a exclusão dessa ilicitude

quando a afirmação do facto corresponder ao exercício de um direito ou

faculdade ou ao cumprimento de um dever (p. ex., o depoimento de uma

testemunha em tribunal) – Cfr., por todos, Antunes varela, op e p. cit.

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Por outro lado, restringindo o âmbito da responsabilidade à afirmação ou

divulgação de factos falsos (não demonstravelmente verdadeiros), importa

determinar com precisão o que se deve considerar por facto falso. E aí

forçosamente terá que se concluir que falso é não só o facto cuja afirmaçãonão tem qualquer correspondência com a realidade, como aquele que,

correspondendo embora à realidade, surge afirmado ou divulgado fora do

seu contexto, com ocultação de circunstâncias relevantes, indispensáveis

para o seu correcto enquadramento, sem a boa fé necessária ao

desenvolvimento daquilo a que o Doutor Baptista Machado chamava uma sã

comunidade comunicativa, orientada e regida pelo princípio da confiança.

Como escreve o Doutor Sinde Monteiro, “para que se deva considerar (umfacto) não verdadeiro (tendo em conta um receptor não especializado, de

boa fé) bastará a apresentação incompleta, deturpada ou exagerada de um

facto verdadeiro”. 

Assim, p. ex., se alguém divulga, sem mais, que determinada marca de água

contém certo microorganismo prejudicial à saúde (causando com isso dano

ao crédito do titular dessa marca); se se apura que apenas uma garrafa num

milhão continha o dito microorganismo; se o aparecimento desse

microorganismo ocorre em todas as águas (seja qual for a sua marca) e não

foi particularmente acentuado na marca em causa, então, pese embora a

verdade da existência do dito microorganismo, o facto divulgado é falso e

indiscutivelmente integrador do ilícito estatuído no art. 484º.

Fora destes casos, que são de autêntica afirmação ou divulgação de factos

não verdadeiros, a regra deve ser a da licitude da afirmação ou divulgaçãode factos verdadeiros.

Contrariamente à opinião do Dr. Antunes Varela, e tomando o exemplo deste

ilustre professor, não pensamos que o facto de alguém divulgar o insucesso

do seu advogado em determinada causa, com o intuito de o prejudicar, seja

susceptível, por si só, de constituir tal indivíduo em responsabilidade civil. O

simples intuito de prejudicar não nos parece dever bastar.

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Ou a afirmação é a de que o advogado é mau, e isso é um juízo de valor, por

regra insindicável, como se disse; ou a afirmação é de que perdeu a causa e

isso, só por si, não pode pôr em causa o bom nome de ninguém. O único

advogado que nunca perdeu causas é aquele que nunca as defendeu. A suacompetência profissional não pode ser afectada por uma tal afirmação.

O próprio Doutor Antunes Varela admite, como vimos, a exclusão da ilicitude

quando a afirmação do facto corresponde ao exercício de um direito. Ora,

não será justamente o exercício do direito de expressão a afirmação neutra

de que certo advogado perdeu a causa de alguém? E isto mesmo que tal

afirmação vise prejudicar o referido advogado?

Diferente será, claro está, a hipótese de a imputação da perda da acção ser

acompanhada da referência a factos praticados pelo advogado, susceptíveis

de abalarem a sua credibilidade profissional. Essa questão, todavia, devolve-

nos de novo para o problema dos juízos de valor fundados em factos a que já

atrás nos referimos. Para o que então dissemos agora outra vez remetemos.

Por regra, insistimos, a afirmação ou divulgação de facto verdadeiro não

estará ferida de antijuridicidade. Só excepcionalmente, quando o facto

difundido, embora verdadeiro, atinge gravemente a honra (“aquele conjunto

de qualidades necessárias a uma pessoa para que seja respeitada no seu

meio social” Beleza dos santos RLJ 92-165 e Figueiredo Dias RLJ 115, p.

105) do visado e cuja difusão outro fim não teve do que esse mesmo (atingir

o visado na sua honra), só nesses casos, dizíamos, poderemos admitir a

responsabilidade do art. 484º, fundada em difusão de facto verdadeiro.

Ainda aí, todavia, poderá questionar-se se não estaremos já perante o

exercício do direito de expressão para além dos ditames da boa fé, para

além dos limites impostos pelo seu fim social, num manifesto abuso

institucional do direito de expressão, nos termos do art. 334º, e, por isso

mesmo, perante um não direito.

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Caso excepcional de ilicitude da difusão de facto verdadeiro é aquele em

que tal difusão ocorre com violação de dever legal de sigilo. Aqui sempre

ocorrerá a obrigação de reparar os danos causados.

Se o funcionário bancário, violando o dever de sigilo a que está vinculado,

divulga que o saldo de determinado comerciante tem sido negativo nos

últimos meses, causando-lhe deste modo dano ao seu crédito, não poderá

deixar de responder pelo prejuízo causado. Porém, antijuridicidade estará

aqui mais na violação do citado dever de sigilo do que na difusão de um

facto verdadeiro. O próprio grau da culpa terá que ajuizar-se em relação à

violação deste dever do que em relação á difusão do facto.

6- Temos vindo a falar até aqui da afirmação e difusão de factos falsos

(sempre geradores de responsabilidade civil, preenchidos os outros

requisitos do art. 483ª) e de factos verdadeiros (só excepcionalmente

geradores daquela responsabilidade). Convém agora fazer algum esforço

de precisão de conceitos.

Um facto pode ser verdadeiro e todavia não ser possível a prova dessa

veracidade

Quid juris nessa hipótese?

Como bem escreve o Doutor Sinde Monteiro, “a afirmação ou divulgação de

um facto susceptível de prejudicar o crédito ou o bom nome de outrem

implica a criação de uma situação de perigo. Se ele não corresponde á

verdade, não deveria a correspondente afirmação ou declaração ter tido

lugar. Parece justo fazer recair sobre o lesante o risco de não ser possível a

prova da verdade; se ele pretende ter por si a verdade dos factos, deve

demonstrá-lo”. 

Ao facto falso será, assim, de fazer equivaler o facto não demonstravelmente

verdadeiro. Afirmar ou difundir um facto lesivo do crédito ou do bom nome

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cuja veracidade se não consegue provar será, em regra, o mesmo que

afirmar ou difundir um facto falso.

Só assim não será quando intervenha a causa de justificação “defesa de

interesses legítimos”. Como se escreve no já citado acórdão da relação de

Coimbra de 19 de junho de 1996, para o funcionamento desta causa de

 justificação é necessária não só a existência de um interesse legítimo, como

também que o autor da afirmação lesiva do bom nome tenha um fundamento

sério para, em boa fé, a reputar de verdadeira.

A causa de justificação “defesa de interesses legítimos” não pode, pois, em

caso algum, funcionar para legitimar a difusão de facto consabidamentefalso, mas apenas de facto não demonstravelmente verdadeiro. O que

divulga facto que sabe falso, não pode, em caso algum ser portador de

interesse legítimo digno de tutela.

Sobre tudo isto será ainda de exigir ter o autor da afirmação não

demonstravelmente verdadeira desenvolvido esforços de averiguação sérios,

tendentes a determinar, em face das circunstâncias concretas do caso, o

grau de probabilidade daquilo que afirmava.

O acórdão que citámos ilustra bem tudo o que acabámos de dizer e parece

oferecer exemplo claro de um caso em que a causa de justificação em

análise deve funcionar.

A terminar uma rápida nota final: apesar de nos não ocuparmos desse

problema, a responsabilidade por ofensa do crédito ou do bom nome implica,como é natural em sede de responsabilidade civil extracontratual, a

reparação de todos os danos causados, patrimoniais ou não patrimoniais.

Valem aqui as regras gerais de ressarcimento dos danos e, em particular, no

que aos não patrimoniais diz respeito as regras do art. 496º do Código Civil.

A este propósito escreve-se no acórdão do STJ de 27 de Junho de 1995:

“são circunstâncias concretas relevantes para a fixação da indemnização por 

dano não patrimonial por ofensa á honra: a gravidade e intensidade do dolo;

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a boa suituação económica que se concluir da actividade profissional

exercida pelo ofensor; a reputação socuial elevada do ofendido; agravidade

dos factos imputados(..); a enorme publicidade, o vexame causado,

acarreytando desgosto.

Conclusões: