direito alternativo e música
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Ensaio sobre a formação humanística do magistrado e as relações entre estética e justiça. Abordagem de uma possível relação entre o Direito e a Música.TRANSCRIPT
DIREITO ALTERNATIVO E MÚSICA A formação humanística do magistrado e as relações entre estética e justiça
Isaac Gonçalves Sousa1
“A música exprime a mais alta filosofia
numa linguagem que a razão não compreende”. (Schopenhauer)
RESUMO
O Direito por muito tempo esteve centrado em mecanismos técnico-jurídicos, sem portas para outros campos do conhecimento. Entretanto, iniciativas interdisciplinares e experiências inovadoras têm surgido. A relação entre Direito e Música é um movimento em busca de ampliação dos horizontes teóricos do Direito. Neste ensaio, a música é abordada como linguagem primordial, capaz de comunicar o que a razão não pode. A partir desta premissa, pretende-se estabelecer uma relação intrínseca entre sensibilidade musical (estética) e sensibilidade moral (justiça). Por fim, procura-se apontar uma utilidade prática para esta proposta, tendo como instrumento a tendência praxiológica do Direito Alternativo.
PALAVRAS-CHAVE: Direito. Direito Alternativo. Música. Linguagem. Justiça.
ABSTRACT
The right (law) been focused on technical and legal mechanisms, without doors to other fields of knowledge. However, interdisciplinary initiatives and innovative experiences have emerged. The relationship between right and music is a movement looking for to extend the theoretical horizons of right. In this essay, the music is discussed as a primordial language, able to communicate what reason can not. From this premise, we intend to establish an intrinsic relationship between musical sensibility (aesthetics) and moral sensibility (justice). Finally, we intend to indicate a practical use for this proposal and as a tool the praxeological trend of Alternative Right.
KEYWORDS: Right. Alternative Right. Music. Language. Justice.
1 Acadêmico do curso de Bacharelado em Direito da Faculdade do Vale do Itapecuru - FAI
INTRODUÇÃO
Este ensaio é, na verdade, uma aventura; escrevê-lo é tornar-se explorador de
terras virgens, rios tortuosos e perigos desconhecidos; é sair de um quarto pequeno,
escuro e seguro – assumir os riscos de uma viagem em busca do novo. Sim, o Direito,
por muito tempo, esteve trancado em um quarto escuro, centrado em mecanismos
técnico-jurídicos, sem portas abertas para outros campos do conhecimento. A
tendência atual de interdisciplinaridade não encontrou nas escolas de Direito o mesmo
entusiasmo que se verifica na Antropologia, na História, na Psicologia e até mesmo nas
Ciências Naturais.
Grande parte deste distanciamento do Direito em relação às outras ciências se
deve à forma como se ensina (e de como se concebe) o Direito no Brasil. Os cursos de
bacharelado focam o treinamento técnico de advogados, desconsiderando sua
formação cultural e humanística. Um fenômeno que tem genealogia – que é fruto de
um processo histórico determinado: a burocratização do sistema judiciário. Exigem-se
profissionais que executem tarefas repetitivas e ritualísticas, não intelectuais
questionadores, criativos e sensíveis. As fórmulas tradicionais retiradas de livros
empoeirados que nunca foram lidos mascaram a ignorância congênita, fruto da
supremacia tecnocrata – a ditadura dos burocratas, como escreveu Max Weber.
Claro, as deficiências educacionais no Brasil não são privilégio dos cursos de
Direito, fazem parte de um problema estrutural que vai da educação infantil aos cursos
de pós-graduação. E o fator educacional/cultural não é o único responsável pelo
reducionismo sofrido por esta disciplina ao longo dos anos. O patrimonialismo, o
clientelismo e outros vícios do Estado brasileiro ao longo da história têm possibilitado
sucesso profissional desvinculado de mérito pessoal, inclusive no Sistema Judiciário. A
percepção de tal realidade distancia o estudante e o bacharel dos aspectos científicos
do Direito – aproximando-o das contingências politiqueiras da profissão.
A pobreza cultural dos indivíduos se reflete na produção científica do Direito.
De acordo com o desembargador Vladimir Passos de Freitas:
O estudo e o ensino do Direito ainda são feitos, via de regra, de maneira tradicional. Muito embora o mundo se transforme em uma velocidade
jamais vista ou imaginada, as práticas jurídicas, em suas diversas áreas e não apenas na judicial, persistem no uso de modelos antigos, muitas vezes ultrapassados. (...) Com efeito, monografias de curso de graduação (TCC), dissertações de mestrado e teses de doutorado fixam-se, quase sempre, em temas amplamente debatidos. Direito do consumidor, função social da propriedade e responsabilidade penal das pessoas jurídicas são alguns deles. Por vezes repetindo e repetindo o que alguns falaram, sem nada acrescentar ou contribuir para a reflexão dos leitores e para o aprimoramento da cultura jurídica (FREITAS, 2011).
Entretanto, apesar de timidamente, iniciativas interdisciplinares e experiências
inovadoras têm surgido nos últimos tempos no campo do Direito no Brasil. Segundo
Mário Moacyr Porto, em artigo em que defende o cultivo de uma “razão sensível”
através da música no campo do Direito:
Há um ditado no meio jurídico, de autoria incerta, que diz: “quem só sabe Direito, não sabe nem Direito”. É neste contexto que, de alguns anos para cá, o Direito tem sido estudado não só sob uma perspectiva jurídica isolada, mas também a partir de possíveis interconexões com outras áreas. Assim, traçam-se paralelos entre Direito e Literatura, Direito e Cinema, Direito e Psicanálise, Direito e Matemática, Direito e Física, Direito e Neurociência e, inclusive, Direito e Música. (PORTO, 2012)
A relação entre Direito e Música é, portanto, um movimento em busca de
ampliação dos horizontes teóricos do Direito, como ciência, tendo em vista uma
melhor formação humanística do profissional do Direito para sua atuação técnica,
dentro de uma visão holística do ser humano. Como reforça Moacyr Porto em seu
ensaio:
Esta postura aberta de estudar o Direito amplia o espectro do investigador, ressaltando elementos humanísticos, superando a mera técnica jurídica, o que contribui para uma visão do Direito mais percuciente e sensível, aproximando-o da Justiça. Isto faz lembrar Miguel Reale que, em referência ao orador Romano, alertou: “nas lições de Cícero, devemos conhecer perfeitamente o homem, a natureza humana para, depois, conhecer o Direto”. É exatamente este o mote desses estudos transdisciplinares. Busca-se conhecer o ser humano em sua amplitude e complexidade; suas paixões, dramas, ilusões e sentimentos. (PORTO, 2012).
No que tange às relações entre Direito e música, há ainda um problema
semântico, fruto também da formação cultural deficiente de nosso povo: a
identificação entre música e letra. Parte dos estudos que se propõem a relacionar
Direito e música debruçam-se, na verdade, sobre letras de canções populares,
tomando-as como pretexto para o estudo de leis dentro do contexto histórico da
composição da obra. O artigo, acima mencionado, do desembargador Vladimir Passos
de Freitas é um exemplo desta confusão. Ao elencar propostas de estudos de Direito
relacionados à música, exemplifica:
O direito de propriedade, como visto nos anos 50, pode ser analisado na célebre música de Adoniram Barbosa, “Saudosa Maloca” (1951). Em meio à demolição da casa, o cantor consola seus companheiros de ocupação dizendo: “os homi ta ca razão nós arranja outro lugar”. Há aí um conformismo e reconhecimento inquestionável da ordem judicial, fruto de uma época em que o Direito de propriedade era absoluto. (...) Chico Buarque, em 1974, com a música “Acorda amor”, faz crítica severa ao sistema de segurança do regime militar, deixando a mensagem que, em caso de uma invasão de sua casa pelas forças da repressão, ao invés de chamar a bPolícia melhor seria chamar o ladrão. Em outras palavras, as garantias constitucionais, como a inviolabilidade de domicílio, estavam sem amparo junto ao Poder Judiciário. (FREITAS, 2011)
Sendo assim, a reflexão aqui pro(ex)posta insere-se em uma tendência recente
– talvez ainda imberbe –, mas notavelmente fértil, que pode introduzir problemáticas
enriquecedoras. A música é abordada como linguagem primordial – linguagem sem
palavras, capaz de comunicar o que a razão não pode. A partir desta premissa,
procede-se uma investigação genealógica sobre as relações entre estética, verdade e
justiça, a fim de estabelecer uma relação intrínseca entre sensibilidade musical
(estética) e sensibilidade moral (justiça).
Por fim, procura-se apontar uma utilidade prática para esta proposta, tendo
como instrumento a tendência praxiológica do Direito Alternativo, defendida por
Amilton Bueno de Carvalho, tanto em sua militância como juiz como em sua produção
teórica, sobretudo na obra Magistratura e Direito Alternativo. Ora pois, se a proposta
de Bueno de Carvalho é um magistrado livre das amarras tecnocráticas da lei
positivada, que possa usar sabedoria e sensibilidade social para promover a Justiça
com ou contra a Lei, é necessário, antes, que o magistrado se torne sábio e sensível,
através do cultivo do espírito. Propõe-se a música como instrumento privilegiado desta
formação cultural, humanística, profunda do profissional do Direito.
I. A MÚSICA COMO FORMA PRIMORDIAL DE LINGUAGEM E CONHECIMENTO
Naquele momento glorioso do passado distante, um homem, talvez ainda
simiesco, sentiu os batimentos do próprio coração e ouviu a mais ou menos
compassada respiração ofegante dos seus companheiros. Tudo pulsava dentro do
ritmo inexorável da natureza: o gotejar da chuva, o balanço das árvores, os dias, as
noites e as estações. Foi um instante de revelação tão apoteótico quanto o da clássica
cena de “2001, Uma Odisseia no Espaço”: ele segurou pedaços de ossos e bateu
freneticamente contra troncos mortos. Mas, em vez de inventar a arma, aprender a
matar, ele descobriu a música – inventou o instrumento musical. Ali teve início a
Humanidade: o primeiro artista reuniu em torno de si, dos seus gritos e do seu
baticum, a primeira sociedade – uma comunidade unida não por algum impulso
instintivo, mas por uma motivação simbólica.
Assim se poderia descrever, miticamente, o surgimento da música como
percepção humana de si mesmo, do outro e do mundo em torno de si. Uma percepção
visceral, corpórea, intuitiva e, conquanto desvinculada de formulações racionais,
verdadeira. Modernos estudos de musicologia etnográfica apontam exatamente para
o fato por muito tempo ignorado de que, mãe de todas as artes, a música é também a
mãe de todas as linguagens – e, portanto, mãe de todo o conhecimento2. Entretanto,
para se sustentar, essa afirmação precisa se opor a uma forte tradição de pensamento
que remonta a Sócrates e Platão. Uma tradição de desprezo pelo conteúdo cognitivo
da música, ou seja, a ideia de que a ela não possui valor epistemológico ou educativo.
Era um signo de desconfiança em relação às artes que pairou soberano e
inquestionável sobre a intelectualidade do ocidente até finais do século XVIII, quando
houve a ascensão do pensamento romântico, que valorizava a sensibilidade acima da
Razão. A matriz filosófica de tal desconfiança estava na formulação platônica do
conceito de Ideia, possibilitadora e único objeto do conhecimento, concebida como
estática, imutável, imóvel. Tal imobilidade e imutabilidade da Ideia eram pré-condição
para o conhecimento, pois se pressupunha que conhecer o que é móvel e mutante
2 Sobre os avanços dos estudos em musicologia etnográfica, cf. ensaio de Eduardo Henrik
Aubert, em http://www.scielo.br/pdf/ra/v50n1/a07v50n1.pdf
seria impossível. Além disso, a Ideia era compreendida como a formal original, da qual
as coisas existentes na natureza (mundo sensível) eram meras cópias. E a arte,
compreendida como mimesis3 (imitação da natureza) não passava de cópia das cópias.
Daí o desprezo de Platão e da civilização ocidental pelo poeta, pelo músico, pelo artista
– o artista não seria mais do que um criador de ilusões4.
Esta formulação foi (e em certa medida ainda é) predominante na cultura do
Ocidente, desde a antiguidade, fortalecendo-se com o advento do capitalismo. O
artista, a partir da Revolução Industrial, passou a ser visto como um marginal: à
margem do processo industrial, à margem do processo comercial, ele é um flâneur5,
um vagabundo, um simples e improdutivo andarilho observador6. Some-se a isso o
caráter sublevador e muitas vezes imoral da arte, que o fez ganhar o desprezo do
cristianismo e de ideologias políticas predominantes. No mais das vezes o artista
alcança algum reconhecimento na qualidade de propagandista, panfletário ou ícone da
indústria. Mas, de uma forma ou de outra, esteja onde estiver, nas esquinas sujas,
como Allan Poe, ou nos salões burguês-aristocráticos, como Richard Wagner, o artista
moderno sempre é um marginal.
Todavia, apesar da predominância deste estereótipo, há outras formas de se
compreender a arte – principalmente a música – que, embora contraditórias, se
mantiveram ativas na cultura ocidental. Em primeiro lugar, a música é tida em quase
todas as tradições religiosas, e muito fortemente no judaico-cristianismo, como forma
privilegiada de comunicação espiritual. Dezenas de referências bíblicas, não apenas
nos Salmos, apontam-na como uma linguagem sobremaneira agradável aos ouvidos de
Deus. O apóstolo Paulo, maior “teórico” do cristianismo, em suas recomendações aos
primeiros cristãos, escreveu:
E não vos embriagueis com vinho, em que há contenda, mas enchei-vos do Espírito; falando entre vós em salmos, e hinos, e cânticos espirituais; cantando e salmodiando ao Senhor no vosso coração; dando sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo (Efésios 5:18-19).
3 Cf. Aristóteles, A Arte Poética
4 Cf. Livro X de A República.
5 Cf. As Razões do Iluminismo, de Sérgio Paulo Rouanet.
E, se no Novo Testamento é assim, no Antigo Testamento as referências são
ainda mais abundantes. Principalmente nos relatos de personagens que, em
momentos especiais de grande comoção coletiva ou de contato muito forte com o
Deus, expressavam a transcendência e o valor do momento e do aprendizado – em
forma de música. Em Deuteronômio 31:22 está escrito que, antes de passar a liderança
do povo a Josué, Moisés escreveu um cântico, que lhe serviria de incentivo e de
ensinamento – só depois escreveria em um livro as palavras da Lei. Também Miriam,
conforme Êxodo 15:21, comemorou a travessia do Mar Vermelho com um cântico, e
neste cântico exortou o povo a cantar e compor novos cânticos. E o exemplo mais
chocante é narrado no Salmo 137. Durante o exílio, os babilônios, vendo harpas
penduradas, perguntavam aos judeus por que não cantam mais, eles respondiam:
“como entoar o canto de Sião, o canto do Senhor, em terra estranha?”. Pelo que se
nota a íntima ligação entre música e verdade na cultura religiosa dos judeus – a qual
eles legaram aos cristãos.
Mas, esta valorização da música como expressão de verdade e sublimidade não
foi exclusiva do povo de Israel. Os gregos foram criadores de uma poderosa cultura
musical de raiz pré-platônica, e nela a música não tinha o pejo de ilusão, ao contrário,
era vista como a expressão visceral da divindade, e como possibilitadora da vida
humana7. Ora, como expressão da natureza divina, a música era, portanto, expressão
inequívoca de Beleza; e Beleza, Verdade e Justiça nunca estiveram separadas no
pensamento grego – o belo é necessariamente bom e verdadeiro, logo, justo. Nós
somos herdeiros desta concepção, como a própria linguagem coloquial demonstra em
fórmulas como: “que atitude feia você está tomando”, se referindo a algo que seja
mau, falso – injusto,
Filosoficamente, é verdade, a compreensão consciente de nossa cultura sobre
a música esteve muito ligada à tradição socrático-platônica. Mas, no final do século
XVIII outros pensamentos se manifestaram. Além da compreensão romântica da
música, que a valorizava pelo que tinha de sensitiva, opondo-a à frieza da razão
burguesa em ascensão, o gênio de Schopenhauer fez emergir outra visão. Para ele, a
música era a linguagem sem palavras, a mais profunda e perfeita de todas as
7 Cf. Nietzsche, A Origem da Tragédia no Espírito da Música.
linguagens – capaz de comunicar verdades que a razão não pode compreender. Essa
concepção influenciaria fortemente o pensamento do jovem Nietzsche que, a despeito
de seu posterior rompimento com a filosofia schopenhaueriana, nunca se
desvencilhará completamente de sua influência.
Arthur Schopenhauer partia de um pressuposto pessimista. Enquanto Hegel
afirmava que a Humanidade estava em uma marcha contínua rumo ao progresso,
guiada pelo Espírito da História, da Razão Universal etc., Schopenhauer via na história
humana um processo de degeneração. Não havia nenhum Espírito da Razão guiando o
curso da História, o que havia era a Vontade, incontrolável e irracional; e não havia
finalidade nenhuma para a vida, apenas a dor – que, para ele, era a síntese do próprio
viver.
Schopenhauer percebia que a cada geração a cultura se deteriorava, a
linguagem perdia sua riqueza e os valores morais eram deturpados. Num estudo
exaustivo de filologia, ele procurou demonstrar que as línguas antigas (grego, latim,
sânscrito e aramaico) eram capazes de nuances de raciocínio que as línguas modernas
não podiam sequer sonhar. Ou seja, o homem estava desaprendendo a falar. Seguindo
essa lógica, o melhor da Humanidade não estava no futuro, mas no passado: quanto
mais antiga fosse a linguagem, mais sofisticada ela era. Isso levou Schopenhauer a
reconhecer que, se existe uma linguagem capaz de apreender a Verdade, a Justiça e a
Beleza, esta só podia ser a música.
Nietzsche assume essa posição, transformando a música em um paradigma de
existência. Ao afirmar que a vida sem música seria impossível, Nietzsche coloca em
cheque a nossa visão dos valores morais: ora, moralmente, a vida é impossível, porque
o mal, a dor e a frustração são indissociáveis da existência. E o filósofo de Zaratustra
não podia compreender que a própria dor fosse o próprio sentido da vida,
simplesmente por que é indissociável dela: a vida humana consiste na criação de
valores, a música é valor estético par excellence. Ou seja, a vida vale a pena se for bela;
a beleza da vida só pode ser atingida ou expressa pela arte; toda arte tem sua gênese
na música. A conclusão pela impossibilidade da vida sem música seria inevitável.
Mas, repare, Nietzsche – assim como Schopenhauer – tinha uma concepção
especial do que é Música. A filósofa brasileira Viviane Mosé, assim descreve esta
concepção:
Nietzsche não estava, necessariamente falando da arte musical em si, mas de uma melodia original dos afetos ou uma melodia primordial. (…) Refere-se a uma língua originária, puramente sonora, impossível de ser simbolizada, fundo de todas as coisas, o querer universal. Esta música impossível de se manifestar, por se caracterizar pela ausência de forma, é o dionisíaco. (...) Desta música originária derivaria a música propriamente dita, a poesia lírica e épica, a linguagem prosaica e a cientifica, em ordem decrescente. Nem mesmo a arte musical seria capaz de manifestar esta linguagem tão primordial, esta música dionisíaca, embora seja a que mais se aproxima dela (MOSÉ, apud DE PAULA, 2006).
O movimento romântico alemão tinha noções semelhantes. Richard Wagner
anunciava que o objetivo de toda a sua arte era atingir essa tal melodia primordial do
Universo. Goete, em uma definição de arte, obviamente extensiva à música, afirma:
A arte é uma mediadora do indizível. (...) Uma obra de arte autêntica (...) permanece sempre infinita para o nosso entendimento; ela é contemplada, sentida, faz efeito, mas não pode ser propriamente conhecida, muito menos podem ser expressos em palavras sua essência, seu mérito (GOETE apud MORAES, 2011, p. 01).
O que significa essa busca por uma sensibilidade tão intensa, capaz de
compreender até os murmúrios do Universo? Significa uma crítica violenta ao que os
teóricos da Escola de Frankfurt8 chamaram de razão instrumental: uma razão
puramente técnica e utilitarista, uma razão surda9. Segundo estes críticos da
Modernidade, a Razão é na verdade uma forma terrível de dominação; em vez de
promover a educação do ser humano, humanizando-o e emancipando-o, ela o
escraviza em seus mecanismos técnicos. E, o que é pior, ela neutraliza o seu senso
estético – sua percepção da Beleza – a única e verdadeira forma de emancipação. Ora,
tanto as antigas tradições religiosas, quanto os pensamentos modernos e
contemporâneos, de Goete, Schopenhauer, Nietzsche, e dos frankfurtianos apontam
para uma e mesma direção: a racionalidade técnica tem desumanizado o ser humano,
8 Movimento filosófico iniciado nos anos 20 que tem como principais representantes Theodor
Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin, George Lukacs e Herbert Marcuse. 9 Cf. Adorno e Horkheimer, A Dialética do Esclarecimento, e Horkheimer, Eclipse da Razão.
e o retorno a essa Humanidade profunda só se pode fazer através da experiência
estética – e a experiência estética mais intensa é a Música, pois a música é linguagem
primordial e sabedoria primordial.
II. RACIONALIDADE TÉCNICA, JULGAMENTO TÉCNICO: O JUIZ SEM ALMA DA
MODERNIDADE
Theodor Adorno e Max Horkheimer, no prefácio à Dialética do Esclarecimento
perguntam por que, diante de um tão espantoso progresso técnico, industrial e
econômico, “a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente
humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie”. Em O Eclipse da
Razão, Horkheimer reafirma que a sociedade moderna não é humana – é uma
sociedade burocratizada e instrumentalizada. O tecnicismo e o utilitarismo que se
desenvolveram desde o século XVII, pelo menos, levaram as sociedades capitalistas
(bem como as comunistas) à condição de máquinas programadas para funções
determinadas e períodos determinados.
Muitos defensores dos princípios do Iluminismo argumentam que esse efeito
colateral da Razão se dá por uma má aplicação da própria Razão. Para eles, a técnica é
apenas umas das faces da Razão, mas infelizmente ela foi (e tem sido) supervalorizada
pelas sociedades modernas. Portanto, reformas sociais e filosóficas, reformas nas
relações humanas e políticas poderiam corrigir os erros do passado, levando a
sociedade a um estado verdadeiramente humano. Mas, para Adorno e Horkheimer,
bem como para os adeptos da Escola de Frankfurt, o processo de desumanização da
Humanidade promovido pela Razão é indissociável do racionalismo.
A crítica empreendida em A Dialética do Esclarecimento a razão é tão radical
(no sentido de Marx, de ir à raiz das coisas) que chega afirmar que esta desumanização
da sociedade já estava presente na própria formulação do mito homérico. Quando, ao
passar pelas sereias, Odisseu tapa os ouvidos dos marinheiros com cera, aquilo já era o
primeiro símbolo do distanciamento humano da estética da natureza, e o
afundamento nas tarefas mecânicas (no caso, o ato de remar). O próprio Odisseu, no
episódio em questão, permite-se ouvir o canto, mas, antes, pede para ser amarrado no
mastro do navio – da mesma forma que seus trabalhadores, o senhor (símbolo do
burguês) também se desumaniza, pois é prisioneiro de sua própria riqueza (o navio).
Segundo Silva, “para Horkheimer e Adorno, este processo de racionalização dos
instintos, ao longo da história, teria conduzido os indivíduos à “feliz apatia”10 sadiana,
impedindo-os do espanto diante do sofrimento e da dor”. Em outras palavras, o ser
humano foi coisificado e mecanizado pelo trabalho industrial maquínico11, pela
racionalidade técnica aplicada à política e ao direito, segundo a qual ele não mais do
que um número nas estatísticas, um elemento no esquema silogístico da lei. Este
homem perdeu a sensibilidade – e, se perdeu a sensibilidade, perdeu também a
capacidade de refletir e de julgar. Logo, a Justiça é impossível em uma sociedade
dominada pela Razão Instrumental, pela Racionalidade Técnica.
O que é, então, um sistema judiciário em uma sociedade insensível? Nada além
de um sistema: um mecanismo burocrático pertencente a um mecanismo social maior,
cujo único objetivo é a manutenção do status quo. Amilton Bueno de Carvalho é
taxativo ao afirmar isso, com base na distinção gramsciana entre intelectual orgânico e
intelectual tradicional:
Intelectuais orgânicos são os que se acham comprometidos com um projeto revolucionário, dedicados a pensar, planejar e/ou organizar o trabalho e a vida na sociedade de modo a ampliar a possibilidade de um transformação na sociedade. Intelectuais tradicionais, ao contrário, dedicados a preservar o velho sistema de dominação. São encarregados de impedir uma revolução social, pensando, planejando e/ou organizando trabalho e a vida na sociedade para garantir as classes dominantes tradicionais (CARVALHO, 1992, p.34).
Assim, ele afirma que o advogado, o juiz, a maioria dos intelectuais do Direito
são tradicionais, pois “os quase duzentos anos de legalidade burguesa forjaram escolas
de direito que apenas têm servido ao funcionamento das coisas como estão12. Uma
escola técnico-positivista, mecanicamente preparada para manter a máquina estatal
10
SILVA, 1999, p. 45. 11
Cf. Félix Guattari, As Cartografias do Desejo.
12 Folha de São Paulo, edição de 17.07.87 apud Grolli
em funcionamento – máquina esta que está a serviço das elites econômicas. O filósofo
Trasímaco13 já afirmava que “a justiça, base do Estado e das ações do cidadão, consiste
simplesmente no interesse dos mais fortes”. E Amilton Bueno de Carvalho, citando
Hobbes, diz: “não é a sabedoria, mas sim a autoridade que faz a lei”14.
Tem-se, portanto, uma sociedade que abdicou da sensibilidade em nome da
técnica, mas não percebeu que, junto com ela, abdicou também das formas mais
refinadas de inteligência, das capacidades mais altas de abstração, imprescindíveis a
um julgamento justo. Se Salomão se valesse de silogismos ou de aplicações mecânicas
de leis, ele teria feito um julgamento tão sábio no caso das duas mulheres que
disputavam uma criança? Provavelmente não. Mas, aquela forma ancestral de
perceber a realidade foi sufocada pela racionalidade técnica pela razão instrumental.
E, nesse contexto, o juiz, não obstante seu muito prestígio social e seu poder quase
ilimitado, pode não ser mais do que uma simples peça na engrenagem do Estado. A
racionalidade técnica leva-o ao julgamento técnico, surdo – voltado para aplicação
impessoal e sem questionamento da lei, um julgamento sem alma, de um juiz sem
alma, um julgamento sem justiça.
III. DIREITO ALTERNATIVO E JUSTIÇA: O PAPEL DA MÚSICA NA FORMAÇÃO
HUMANÍSTICA DO MAGISTRADO
O que se convencionou chamar de Direito Alternativo é, na verdade, um
movimento praxiológico surgido no Brasil, estado do Rio Grande do Sul, no início da
década de 1980. Sua proposta é fortemente influenciada por uma interpretação
marxista da sociedade e reproduz em seu discurso a diretriz da Teologia da Libertação
(também de orientação marxista) de fazer a opção pelos pobres (PESCUMA, 2005).
Os princípios romanos do direito, dura lex, sed Lex (a lei é dura, mas é a Lei)
implica que o rigor da lei deve ser aplicado ainda que ela pareça imoral ou injusta. Este
13
Apud Grolli, p. 03. 14
Carvalho, p.15.
mantra tem norteado a atuação de magistrados ao longo dos séculos, antes mesmo da
instauração do Direito Moderno. Um princípio que, de certa forma, sintetiza a atitude
racionalista, técnica, instrumental e mecânica como o Direito vem sendo tratado em
nossa sociedade. Um princípio fortalecido pela autoridade da tradição, mas que,
contra análise honesta, tem sido a fonte das mais bizarras injustiças cometidas em
nome da lei.
Amilton Bueno de Carvalho, em seu livro Magistratura e Direito Alternativo
questiona essa onipotência da Lei, sugerindo que o magistrado não deve se submeter
tão subservientemente a esse império da letra. Como juiz, ele tem o direito (a
obrigação) de julgar – esse julgamento implica a análise dos casos concretos, em busca
da Justiça. Se, porventura, a justiça estiver em contradição com a Lei, ela deve ser feita
contra ela. Isso implica que o juiz, apesar de funcionário e representante do Estado,
tem a prerrogativa de julgar contra o Estado, em nome da Justiça15.
Mas, uma tal liberdade tem sido tradicionalmente negada ao judiciário, a partir
das orientações iluministas de organização do Estado, sobretudo o esquema tripartite
do poder proposto por Montesquieu. Sobre isso, Paulo Bonavides afirma:
O Estado burguês de direito estava, por conseguinte, plenamente vitorioso. E os resultados de seu formalismo e de seu êxito se traduzem numa técnica fundamental, que resguarda os direitos da liberdade, compreendida esta, consoante já dissemos, como liberdade de contratar, da burguesia (BONAVIDES, 1993, P. 31).
Segundo Pereira Filho, baseado nas ideias de Amilton Bueno de Carvalho, esta
vitória do Estado Burguês se perpetua através do ensino do Direito:
Manter, pois, o judiciário alienado (e isso se consegue basicamente pelo ensino jurídico e, por conseguinte, pela atuação dos juristas/bacharéis) é situação condicionante para conservar o estado de conquistas burguesas. O juiz sem poder, portanto, é ideal e necessário para o sistema “legal” orquestrado no século das luzes (PEREIRA FILHO, 2010, p.06)
E, nas palavras do próprio Amilton Bueno de Carvalho, o sistema judiciário está
estruturado segundo uma dupla expectativa: “afastar o juiz do povo e exigir atuação
dirigida à aplicação do saber consagrado pela vontade da classe dominante (lei), pela
doutrina e pela jurisprudência, sem qualquer pretensão criativa (ou seja, servil aos
15
Cf. Amilton Bueno de Carvalho, Magistratura e Direito Alternativo.
donos da premissa maior)”16. Corroborando esta afirmação, o educador Ruben Alves
afirma:
A educação se presta aos mais variados fins. Pessoas inteligentes, que vivem pensando e tendo ideias diferentes, são perigosas. Ao contrário, a ordem político-social é mais bem servida por pessoas que pensam sempre os mesmos pensamentos, isto é, pessoas emburrecidas. Porque ser burro é precisamente isto, pensar os mesmos pensamentos - ainda que sejam pensamentos grandiosos. Prova disso são as sociedades das abelhas e das formigas, notáveis por sua estabilidade e capacidade de sobrevivência... a burrice é muito útil, do ponto de vista político (ALVES apud PEREIRA FILHO, 2010, p. 06).
Tem-se assim o surgimento de um movimento libertário dentro do Sistema
Judiciário, um movimento disposto a lançar um novo conceito de justiça, não baseado
na lei, nem na tradição, nem na jurisprudência, nem na doutrina. Sendo assim, com
postura combativa, política e ideologicamente engajada, os magistrados que fazem a
aplicação alternativa do direito partem de uma crítica radical a dois dos princípios mais
importantes do pensamento jurídico da sociedade burguesa: a justiça da lei e a
neutralidade do magistrado.Para o direito alternativo, o conceito de justiça é baseado
no contato entre o juiz e o caso concreto, sua analise íntima e sua percepção pessoal –
ou seja, sua sensibilidade.
Aí é que lasca! Como se pode garantir que a sensibilidade do juiz será capaz de
atingir, na prática, a justiça (ou, pelo menos, uma justiça mais justa que a tradicional)?.
A resposta é: não se pode. Nunca se poderá garantir que o magistrado, baseie-se ele
em qualquer princípio, tomará sempre uma decisão justa. Mas, ainda assim, a
proposta da aplicação apresenta uma vantagem: ela reconhece a parcialidade do
magistrado, seu irremediável envolvimento com o caso (do ponto de vista social) e
tenta mobilizá-la em favor do justo.
O problema do justo move-se, portanto, do plano institucional para o plano
pessoal. O magistrado é forçado a assumir toda a responsabilidade moral/social que
sua função implica – ele incorpora o peso do próprio sistema judiciário no momento
em que julga. Mas não mais o peso mecânico e impessoal da instituição abstrata – é
um peso humanístico: sua responsabilidade com a vida, o futuro, o ser do outro. Desta
16
Carvalho, 1992, p.96.
forma, a importância da formação humanística do magistrado se sobrepõe à sua
formação técnica de bacharel: há, de certa forma, um retorno às antigas concepções
de magistratura, relacionadas à sabedoria, não simplesmente à formação ou
experiência judiciária.
E é neste ponto que a música, tal como Goete, Schopenhauer e Nietzsche a
conceberam – segundo os modelos ancestrais – encontra o Direito: na formação
humanística do magistrado. A música, como linguagem primordial, pulsação
intempestiva da natureza do mundo e do espírito humano, a música que cura e que
ensina, que diz o que à razão é indizível e que condensa os sentimentos e intuições
mais profundos. Assim compreendida, a música, ao contrário do que afirmava a
tradição platônica, tem um imenso poder educativo – um poder revolucionário capaz e
inverter o esquema conservador denunciado por Amilton Bueno de Carvalho e Ruben
Alves.
Segundo Sylvia Messer17,
Para Nietzsche a educação moderna, onde predomina o ritmo da memória, da repetição, do culto aos antepassados, não possibilita novas experiências, novas formas de viver, apenas treina habilidades que possam garantir um sujeito dócil, disciplinado, que siga e obedeça os valores em curso. (...) Segundo o filósofo, a educação moderna não possibilita a leveza, a liberdade de pensamento, a alegria, a ascensão da vida, porque não consegue colocar para dançar o corpo social, engessado pelos valores morais, no movimento de desencontros, encontros, descompassos, compassos, que levem à criação, a “chegar a ser o que se é”, porque os conhecimentos escolares estudam o que está morto, o que leva à decadência e não à ascensão (MESSER, 2011, p.06).
Nietzsche valoriza a lentidão, valoriza a ruminação, não a velocidade industrial
a que o magistrado deve se submeter em uma sociedade em que a eficácia do trabalho
vale por si mesma – sem se questionar o valor humano do trabalho realizado. Mas,
sobretudo, Nietzsche valoriza a intuição – por isso a metáfora da dança está tão
presente em sua linguagem: a sensibilidade do bailarino é a sensibilidade de quem tem
todos os músculos guiados pela música – o dançarino escuta com o corpo inteiro, logo,
escuta com a alma. A educação musical nietzscheana está para além do ouvir música,
17
Nietzsche e a Dança da Educação, em http://www.ufsm.br/gpforma/2senafe/PDF/029e4.pdf
conhecer sua história (embora isso deva fazer parte), pois a verdadeira música é a que
está nas coisas, nas pessoas e nos valores.
A música é libertadora, pois está em favor da vida, uma vez que nasceu para
dar sentido à vida – diferente da educação tecnicista, cientificista, mecânica e
utilitarista da Modernidade, da qual o magistrado é também um resultado. Rosa Dias,
discutindo as ideias educacionais de Nietzsche afirma:
A vida precisa de uma cultura sadia, e, para isso, são imprescindíveis instituições de ensino voltadas para a cultura. Elas não existem ainda, mas devem ser criadas. Não devem ter por objetivo criar o pequeno-burguês que aspira a um posto de funcionário ou a um ganha-pão qualquer; ao contrário, precisam voltar-se para a criação de indivíduos realmente cultos, formados a partir da necessidade interna da fusão entre vida e cultura e capazes de exercer toda a potencialidade de seu espírito (DIAS, 2011, p.42).
Fernando R. de Moraes Barros explica essa concepção nietzscheana,
principalmente seus desdobramentos na música, e suas consequências
epistemológicas e éticas, relacionando-as com o pensamento de Schopenhauer:
Essa orientação se caracteriza, em especial, por certa confiança numa intuição estética sui generis, que permite ao homem voar para além de conhecimentos submetidos ao trabalho da razão e empreender a identificação simpática com aquilo que, em rigor, designaria o mundo por detrás de sua descontinuidade. Afastado que está das representações conceituais e do saber meramente acumulado, o entendimento assim obtido seria assaz revelador, porquanto permite pressupor um isomorfismo entre música e mundo. (...) É por aí também que se torna inequívoca a transformação da música numa forma privilegiada de saber por meio da qual seria dada ao homem a chance de acessar uma essência indizível por detrás da realidade aparente - cujo núcleo ontológico ele agora não conhece, mas sente em si mesmo. (BARROS, 2005, p. 14).
Ora, como sabedoria essencial, a música é a única linguagem apta a apreender
o sentido da Justiça – um sentido inefável, que todos os tratados filosóficos e jurídicos
de todos os tempos não deram conta de definir. Uma justiça baseada na experiência
do corpo vivo: o corpo que sente e pressente, que entende sem ser capaz de explicar.
Mas, uma experiência que só é possível ao espírito refinado, culturalmente rico e
musicalmente sensível – um espírito liberto das amarras tecnocratas da Razão
Instrumental, apto a ouvir a melodia primordial dos afetos, apto a sentir a verdade por
trás das palavras, a perceber a justiça além da lei.
CONSIDERAÇÕES INCONCLUSIVAS
Afinal, o direito não se restringe à lei – ela é apenas uma de suas fontes. Sendo
assim, o ele pode estar fora da lei; e a Justiça, necessariamente, acima dela. Se existe
um homem que possa decidir quando e em que medida isso acontece (o magistrado),
esse homem deve possuir não apenas o treinamento do especialista, o manuseio dos
códigos e a memorização das normas: ele deve ter uma alma artisticamente cultivada,
para não agir como um autômato, um algoritmo em uma programação.
Como instrumento da formação humanística do magistrado, a música
possibilita o desenvolvimento de seu senso estético – que, como foi visto, é também
senso moral, portanto, de justiça. Paralelamente, a busca por esta sensibilidade
estética e moral propiciada pela arte proporciona também o enriquecimento cultural
do profissional de Direito – capacita-o para o trabalho científico, desenvolve sua
percepção e aguça sua inteligência.
Ademais, como parte de um projeto inovador de Educação, as consequências
de uma aplicação prática desta proposta teria consequências benéficas para toda a
sociedade. Aquele ciclo vicioso descrito no início deste ensaio seria substituído por um
ciclo novo, virtuoso, de desenvolvimento humano através da ciência e da arte. Um
desenvolvimento que se manifestaria no judiciário pela prática consciente de
profissionais humanizados, sensíveis e questionadores.
A formação cultural profunda do magistrado através da música aliada à
aplicação alternativa do Direito poderia, assim, produzir transformações sociais de
efeitos, quiçá, revolucionários. Mas, um magistrado apto a praticar a aplicação
alternativa do Direito deve ser um homem de espírito leve, de sensibilidade aguçada,
deve se ater mais à sabedoria do que à técnica. Os desdobramentos desta prática são
perigosos, um tamanho poder, em mãos erradas, pode ser desastroso para a
sociedade. E, como se procurou demonstrar aqui, a música é um caminho para esse
cultivo do espírito e para o alcance dessa sabedoria inefável que só a experiência
espiritual sublime proporciona.
Ficam estas breves considerações. As discussões interdisciplinares sobre as
relações entre Direito e Música ainda são imberbes, mas possibilitadoras de
questionamentos e reflexões de relevância para o Direito na atualidade. Como se pôde
perceber durante a exposição, todos os pensadores que se debruçaram, tanto sobre a
questão da arte como sobre o Direito de forma questionadora tinham um objetivo: a
superação de um estado de coisas e o surgimento de uma nova sociedade. Quer a
sociedade da justiça social, quer a sociedade igualitária comunista, quer o tempo do
Übermensch – o olhar dos homens sensíveis sempre esteve voltado para o um projeto
de futuro, um futuro melhor. Quem sabe na articulação de campos de conhecimento
tão díspares, mas ao mesmo tempo tão profundamente arraigadas no âmago da
Humanidade não resida uma destas possibilidades de futuro? O que é a música, senão
revelação – um padrão intelectual que está para além das formulações valorativas ou
racionais? O que é o Direito Alternativo senão uma forma de transvaloração?
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