direito administrativo- liçoes introduçao

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FERNANDO DOS REIS CONDESSO Catedrático e Coordenador de Ciências Políticas do ISCSP-UTL Professor de Direito Administrativo Doutor em Direito Agregado em Ciências Jurídico-Políticas DIREITO ADMINISTRATIVO GERAL * NOÇÕES FUNDAMENTAIS DE DIREITO ADMINISTRATIVO GERAL Fundamentos políticos e constitucionais de Administração Pública e do Direito Administrativo: Constituição e controlo das funções política, legislativa, executiva e jurisdicional Características, crise e evolução do direito administrativo Direito público e privado, ramos de direito e direito administrativa Teoria geral das fontes de direito e direito administrativo Principiologia fundamental da actividade pública em estado administrativo de direito.Do Enquadramento decaiológico ao regime dos princípios gerais Autonomia do direito administrativo e de jurisdição com sistema de administração judiciária Princípio constitucional da tutela judicial efectiva e da interdição de indefesa Noções fundamentais sobre direito judiciário e processual

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Page 1: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

FERNANDO DOS REIS CONDESSO

Catedrático e Coordenador de Ciências Políticas do ISCSP-UTL

Professor de Direito AdministrativoDoutor em Direito

Agregado em Ciências Jurídico-Políticas

DIREITO ADMINISTRATIVO GERAL

*NOÇÕES FUNDAMENTAIS DE DIREITO ADMINISTRATIVO GERALFundamentos políticos e constitucionais de Administração Pública e do

Direito Administrativo:Constituição e controlo das funções política, legislativa, executiva e

jurisdicionalCaracterísticas, crise e evolução do direito administrativo

Direito público e privado, ramos de direito e direito administrativaTeoria geral das fontes de direito e direito administrativo

Principiologia fundamental da actividade pública em estado administrativo de direito.Do Enquadramento decaiológico ao regime dos princípios gerais

Autonomia do direito administrativo e de jurisdição com sistema de administração judiciária

Princípio constitucional da tutela judicial efectiva e da interdição de indefesaNoções fundamentais sobre direito judiciário e processual administrativoEstatuto dos Magistrados Judiciais e Actividade Administrativa do

Poder Judicial

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PFLISBOA

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APRESENTAÇÃO GERAL DESTA PUBLICAÇÃO SOBRE DIREITO ADMINISTRATIVO

Na introdução do curso, é útil apresentar a factualidade justificativa da existência da Administração Pública, ou seja, efectivar uma apresentação genérica das áreas e situações em que a Administração é chamada a intervir, em ordem à apreensão dos conceitos de necessidades colectivas e de interesse público, a satisfazer por ela, numa visão panorâmica, antecipadora das próprias áreas temáticas que serão desenvolvidas na cadeira de direito administrativo geral e especial, prosseguindo-se, depois, então, com noções fundamentais sobre a Administração Pública, em ordem a nos introduzir, não só na realidade subjacente ao direito administrativo, como na compreensão da sua importância actual.

Por isso, costumamos apontar, logo no 2

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início, elementos de informação factual, que visam não só motivar a importância, na vida prática, do estudo que vamos fazer, como dar, em cada momento, desde a primeira exposição temática, elementos relacionais para a compreensão do que está em causa com a cadeira no seu conjunto, ao longo de todo o curso, de modo a habilitar os alunos a poderem seguir e interrelacionar, logicamente, a ordenação e progressão nas matérias, pois é importante que quem é introduzido neste estudo não se sinta perdido e desorientado dentro das várias divisões desta imensa «casa» que se lhe vai abrindo e mostrando, para que possa perceber onde estão as paredes de contacto, as portas e janelas, os tectos e os alicerces deste ramo do saber que, não sendo embora de cultura multimilenar como o direito privado, representa um complexo edifício científico, que as jurisprudências, as doutrinas e os legisladores, de mãos dadas, foram construindo ao longo deste dois últimos séculos.

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É que, só assim, indo captando e percebendo essa interligação lógica, se irá vislumbrando onde se quer chegar e se ficará devidamente motivado para querer saber as soluções dos problemas que se antevê que virão a seguir e respondem seguramente a muitas das questões que singularmente ou em família se foram colocando.

No fundo, nesta perspectiva motivacional, num plano objectivo e até por vezes subjectivo, para quem já seja portador de uma experiência de vida que o tenha posto em contacto com a Administração Pública, é, pelo menos, de interesse pedagógico revelar, com exemplos retirados das matérias de direito administrativo especial e de casos da vida real que se lhe reportem, a factualidade das necessidades constituídas em interesse público a prosseguir normativamente pelas Administrações, ou seja, a factualidade justificativa da própria existência

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de toda uma organização de meios financeiros, humanos, materiais e jurídicos, que são instrumentais do serviço à Comunidade, da Administração Pública.

E, logo de seguida, partindo dessas premissas das realidades que apelam à Administração Pública e ao direito, importa efectivar a apresentação das matérias que, genericamente, dizem respeito à organização, funcionamento e sua relação com os administrados, e que formam uma parte da ciência do direito administrativo (que precisamente por isso se designa não de legislação administrativa mas de direito administrativo), que é o direito administrativo geral, enquanto estudo de todas a matérias que implicam todas e cada uma das entidades que formam a Administração pública.

De qualquer modo, no início, e seguindo o caminho habitual na docência da matéria, efectiva-se uma aproximação perfunctória aos

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conceitos de Administração Pública e de Direito Administrativo. Aborda-se a origem e significado etimológico da expressão. Expõem-se algumas notas sobre a evolução histórica e a noção de Administração Pública, estabelecendo a sua tradicional divisão conceptual, para efeitos de teorização científica e didáctica, discorrendo sobre a Administração como Função, Organização e Poder, apresentando os seus conceitos material, orgânico e formal.

***

Complementando essa referências com a exposição das diferentes áreas que, por tratarem de conteúdos de matérias de Administrações específicas, são consideradas de direito administrativo especial, assim se propiciando uma clara percepção do que está e não está em causa na ciência do direito administrativo geral e, portanto, na cadeira que vão estudar.

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Dito isto, importa acrescentar que toda a ciência opera com conceitos e dogmáticas que lhe dão a linguagem «parauniversal», entre os seus cultores, que é como que o «dicionário» básico da disciplina, sem cujo conhecimento se continua «leigo» no discurso científico sobre a matéria.

Por isso, designo os conceitos panorâmicos essenciais de fundamentos conceptuais, embora a percepção da evolução histórica da afirmação da Administração pública e do direito administrativo e do seu enquadramento constitucional, ajudando a compreender o porque dos institutos tal como existem, não deva ser afastada também deste momento, pelo que a todos designamos, ao jeito de SANTAMARIA PASTOR, como fundamentos da matéria, os fundamentos conceptuais, constitucionais e históricos, sendo certo que quanto aos primeiros apenas se introduzem os

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mais genéricos, situantes das própria ciência jusadministrativista, quanto aos segundo limitamo-nos a transmitir dados meramente descritivos, deixando para os diferentes capítulos temáticos o seu aprofundamento, embora nos pareça que talvez devesse ensaiar a apresentação dos princípios constitucionais «prospectivos» da organização administrativa e os «gerais» da actividade de modo antecipado em relação aos capítulos referentes a estes grandes temas do direito administrativo, mas, não tendo (ainda) optado por esta sistematização, justifica-se uma referência a eles, mesmo que sumária, no capítulo II, seguida de um desenvolvimento nos Capítulos sobre a organização e a actividade; no futuro, talvez deva ponderar melhor, até pela sua importância no conjunto do direito administrativo geral, ser de concentrar o seu tratamento no capítulo sobre os Fundamentos doutrinários e constitucionais do Direito Administrativo.

Tema a destacar será o referente ao 8

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Estado constitucional, aí expondo desde logo a Constituição principiológica Administrativa e desenvolvendo depois a principiologia fundamental da actividade pública em Estado administrativo de Direito, desde o seu enquadramento decaiológico ao regime actualizado desses princípios gerais.

Quanto ao estatuto dos magistrados judiciais e actividade administrativa do poder judicial, este estudo, originado no cumprimento de exigências de natureza académica, é agora objecto de difusão, na medida em que, tendo que ver com o direito da organização jurisdicional e, assim, reportando-se a questões, quer de índole constitucional e de ciência política, quer relacionadas com o exercício de poderes materialmente administrativos, toca aspectos que servem, quer para o aprofundamento dos temas pelos discentes, quer para a motivação em geral pelo estudo destes importantes temas, que aqui se abordam e sobre os quais a literatura nacional é parca.

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BIBLIOGRAFIA GERAL

A)-LITERATURA PORTUGUESAAMARAL, Diogo Freitas do -Curso de Direito Administrativo, I, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 1994; -Direito Administrativo. Vol. II, Coimbra: Almedina, 2001.CAUPERS, João –Introdução ao Direito Administrativo I. Lisboa, 2000.CORREIA, J. M. Sérvulo -Noções de Direito Administrativo, I, Lisboa, 1982.CORREIA, J. M. Sérvulo; CLARO, João Martins; MARTINS, Ana Gouveia; KIRKBY, Mark Bobela-Mota –Elementos de estudo de Direito Administrativo: Exercícios práticos, testes, exames finais e jurisprudência administrativa. Lisboa: aafdl, 2005.GUEDES, Armando Marques -Direito Administrativo, Policopiado, AAFDL, Lisboa, 1957-58; -O Processo Burocrático.Lisboa, 1969; -Os Contratos Administrativos. Separata da RFDUL, Lisboa, 1991.SOUSA, Marcelo Rebelo de; MATOS, André Salgado de –Direito Administrativo Geral: Introdução e princípios fundamentais. Lisboa: Dom Quixote, 2004.SOUSA, Marcelo Rebelo de -Lições de Direito Administrativo, I, Lisboa, 1994/95.Andrade, José Carlos Vieira de –Justiça administrativa (Lições). 6.ª Ed., Coimbra: Almedina, 2004.AROSO DE ALMEIDA, Mário –O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos. 3.a ed., Coimbra: Almedina, 2004.OTERO, Paulo -«As garantias impugnatórias dos Particulares no Código do Procedimento Administrativo». Scientia Jurídica, Tomos XLI, nº 235-237, 1992, p. 49-76.-O poder de substituição em Direito Administrativo: Enquadramento Dogmático-constitucional, Lisboa, 1995.ALFONSO, Luciano Parejo –Derecho Administrativo: Instituciones generales: Bases, Fuentes, Organización y Sujetos, Actividad y Control. Barcelona: Ariel Derecho, 2003.AMARAL, Diogo Freitas do -Curso de Direito Administrativo. Vol. II, Coimbra: Almedina, 2001; -«Fases do Procedimento decisório de 1.º grau». In Direito e Justiça. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Vol.VI, 1992.ANDRADE, José Carlos Vieira de –Justiça administrativa (Lições). 6.ª Ed., Coimbra: Almedina, 2004; Sumários de Direito Administrativo. Policopiado. Coimbra, 2005-2006; -«o Ordenamento Jurídico-Administrativo Português».In Contenciosos Administrativo. Braga: Livraria Cruz, 1986.

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Andrade, José Carlos Vieira de –Justiça administrativa (Lições). 6.ª Ed., Coimbra: Almedina, 2004.CANOTILHO, J. J.Gomes; MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa: Anotada. Coimbra Editora, 1993.CASSESE, Sabino -Le Basi del Diritto Amministrativo. Turim, 1989; -Trattato di Diritto Amministrativo: Diritto Amministrativo Generale, I e II Vol., Milão, 2000.CAUPERS, João –Introdução ao Direito Administrativo I. Lisboa, 2000.CHAPUS, René -Droit Administratif Générale, 2 vols., 5." ed., Paris, 1990.CORREIA, J. M. Sérvulo -Noções de Direito Administrativo, I, Lisboa, 1982.CORREIA, J. M. Sérvulo; CLARO, João Martins; MARTINS, Ana Gouveia; KIRKBY, Mark Bobela-Mota –Elementos de estudo de Direito Administrativo: Exercícios práticos, testes, exames finais e jurisprudência administrativa. Lisboa: aafdl, 2005.GARCIA, Maria da Glória F.P.D. – A Responsabilidade Civil do Estado e Demais Pessoas Colectivas Públicas. Lisboa, 1999. GIANNINI, Massimo Severo -Diritto Amministrativo, 2 vols., 3.ª ed., Milão, 1993.GUEDES, Armando Marques -Direito Administrativo, Policopiado, AAFDL, Lisboa, 1957-58; -O Processo Burocrático. Lisboa, 1969; -Os Contratos Administrativos. Separata da RFDUL, Lisboa, 1991.HAWKE, N. -An lntroduction to Administrative Law, 6: ed., Oxford, 1989.MAURER, Hartmut -Allgemeines Verwaltungsrecht, 9." ed., München, 1994.MAZZAROLLI, L; PERICU, G.; ROMANO, A.; MONACO, F. A. Roversi; SCOCA, F. G. -Diritto Amministrativo. 2 vol., Bolonha, 1993.MEIRELLES, Helly Lopes de -Direito Administrativo Brasileiro. 26.ª ed. actualizada por Eurico Azevedo, Délcio Aleixo e José Burle Filho. São Paulo, 2001.MELLO, Celso Antônio Bandeira de -Curso de Direito Administrativo. 9ª ed., São Paulo, 2001.MERKL, Adolfo -Teoría General dei Derecho Administrativo, México, 1980.OTERO, Paulo -«As garantias impugnatórias dos Particulares no Código do Procedimento Administrativo». Scientia Jurídica, Tomos XLI, nº 235-237, 1992, p. 49-76.-O poder de substituição em Direito Administrativo: Enquadramento Dogmático-Constitucional, Lisboa, 1995.PASTOR, Juan Alfonso Santamaría, Fundamentos de Derecho Administrativo, I, Reimp., Madrid, 1991.

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QUADROS, F. (Coord.) –Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública. Coimbra, 1995.Ribeiro, Maria Teresa de Melo –O Princípio da Imparcialidade da Administração Pública. Coimbra: Almedina, 1996.RIVERO, Jean; WALlNE, Jean -Droit Administratif, 14." ed., Paris, 1992.SILVA, Vasco Pereira da Silva –Em Busca do Acto Administrativo Perdido. Coimbra, 1996.SOARES, Rogério Erhart –Direito Administrativo. Policopiado. Coimbra, 1978.SOUSA, Marcelo Rebelo de -Lições de Direito Administrativo, I, Lisboa, 1994/95.SOUSA, Marcelo Rebelo de; MATOS, André Salgado de –Direito Administrativo Geral: Introdução e princípios fundamentais. Lisboa: Dom Quixote, 2004.VILLAR PALLASI, José Luís; VILLAR EZCURRA, Jose Luis -PrincIpios de derecho administrativo I. 3.ª Ed., Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 1992. GARCÍA, Siro -Ley Orgánica del Poder Judicial: Documentación Legislativa y jurisprudendial, Comentários.Tercera Edición Madrid:Editorial Colex, 1996. CONDESSO, Fernando dos Reis - Direito à Informação Administrativa, Lisboa: Pedro Ferreira, 1995; -Noções Fundamentais de Direito Administrativo, (Lições policopiadas, 2.ºano de Direito, Universidade Moderna), Lisboa, 1993; . Lições aos Cursos de Ciência Política e de Administração Pública do ISCSP-UTL e de Direito, da UI, Lisboa, Ano lectivo 2007/2008; -Direito administrativo I: Noções fundamentais de direito administrativo geral. Lisboa, Policopiado, 2007; -«O direito à informação administrativa».Legislação: Cadernos de Ciência de Legislação.INA, n.º17 (Out.-Dez.1996), p.63-100; -«Direito da informação e direito à informação».In Direito da Comunicação Social. Coimbra: Almedina, 2007, páginas 27-82; -O Direito de Defesa Processual no ordenamento jurídico português (A Interdição de Indefesa). Estudo monográfico, UNEX, 1998; --Regime Administrativo e Justiça Administrativa. Autonomia do Direito Administrativo e Jurisdição Administrativa. Princípio constitucional da tutela judicial efectiva e de interdição de indefesa. Noções fundamentais sobre direito judiciário e processual administrativo. Lisboa: Autor, 2007; Relatório…GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón –Curso de Derecho administrativo. Vol.I, 5.ª Ed. Madrid: Civitas,

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1990.MAURÍCIO, Artur; LACERDA, Dimas de; REDINHA, Simões –Contencioso Administrativo. Lisboa: Rei dos Livros, 1987.

B)-LITERATURA ESTRANGEIRA

a)-LITERATURA ESPANHAVILLAR PALLASI, José Luís; VILLAR EZCURRA, Jose Luis -Princípios de derecho administrativo I. 3.ª Ed., Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 1992. ALFONSO, Luciano Parejo –Derecho Administrativo: Instituciones generales: Bases, Fuentes, Organización y Sujetos, Actividad y Control. Barcelona: Ariel Derecho, 2003.PASTOR, Juan Alfonso Santamaria, Fundamentos de Derecho Administrativo, I, Reimp., Madrid, 1991.

b)- LITERATURA FRANCESA

RIVERO, Jean; WALlNE, Jean, Droit Administratif, 14." ed., Paris, 1992.CHAPUS, René, Droit Administratij Générale, 2 vols., 5." ed., Paris, 1990.

c)-LITERATURA ITALIANA

CASSESE, Sabino -Le Basi del Diritto Amministrativo. Turim, 1989; -Trattato di Diritto Amministrativo: Diritto Amministrativo Generale, I e II Vol., Milão, 2000.GIANNINI, Massimo Severo -Diritto Amministrativo, 2 vols., 3.ª ed., Milão, 1993.

MAZZAROLLI, L; PERICU, G.; ROMANO, A.; MONACO, F. A.

Roversi; SCOCA, F. G. -Diritto Amministrativo. 2 vol., Bolonha,

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1993.

d)- LITERATURA ALEMÃMAURER, Hartmut, Allgemeines Verwaltungsrecht, 9." ed., München, 1994.

e)- LITERATURA AUSTRÍACAMERKL, Adolfo -Teoría General dei Derecho Administrativo, México, 1980.

f)-LITERATURA BRASILEIRA

MEIRELLES, Helly Lopes de -Direito Administrativo Brasileiro. 26.ª ed. actualizada por Eurico Azevedo, Délcio Aleixo e José Burle Filho. São Paulo, 2001.MELLO, Celso Antônio Bandeira de -Curso de Direito Administrativo. 9ª ed., São Paulo, 2001.

g)- LITERATURA BRITÁNICA HAWKE, N., An lntroduction to Administrative Law, 6: ed., Oxford, 1989.

h)-LITERATURA DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICADEVIN, John -«Droit Administratif». In LEVASSEUR, Alain, A. -Droit des Etats-Unis. 2.ª Edition. Paris : Précis Dallooz, 1994, p.155-165 e índice, p. XXV- XXVI.

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I-INTRODUÇÃO AO DIREITO ADMINISTRATIVO

Sumário de matérias:

§1. Necessidades colectivas a satisfazer e Administração Pública. Origem dos vocábulos Administração Pública e Direito Administrativo. Fundamentos conceptuais

1.Nos tempos que correm, neste início de século XXI, os cidadãos sentem menos o «peso» do poder político, e sentem mais a actuação dos poderes administrativos.

E é, sobretudo, o direito administrativo que veicula a actuação desses poderes e garante o respeito dos direitos e interesses legalmente protegidos daqueles que entram em relação com ela.

A origem etimológica da palavra Administração virá ou de ad e ministrare, servir, ou, talvez mesmo, de ad manus trahere, manejar, utilizar meios, o que

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aponta para a ideia de cargo ao serviço de fins, de serviço, de uma gestão subordinada a certos fins.

A força expressiva desta palabra, usada nos idiomas latinos, para o entendimento do que é a Administração, tem vindo a revelar-se, no Estado de Direito, mais adequada ao enquadramento da função administrativa pública do que a palavra alemã Verwaltung, derivada de walten, imperar ou reinar, ligada directamente à ideia de poder.

Com a passagem da soberania individual, do poder pessoal absoluto, para a soberania popular e o poder representativa, a Administração mantém-se, mas passando a ser concebida totalmente ao serviço dos cidadãos1.

A expressão Direito Administrativo foi utilizada, pela primeira vez, em França, num texto escrito, no início do século XIX, em 1807, no ‘Projecto de instrução’ elaborado pelos inspectores-gerais das faculdades de direito, tendo posteriormente merecido a adesão da literatura jurídica.

1 É aliás interessante atentar em que os étimos ministério e ministro, de minus em oposição a magis (de onde vem magistério e maestro), não têm hoje qualquer correspondência na hierarquia administrativa.

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A razão de ser da Administração pública e do direito administrativo aparece expressamente afirmada na Constituição da República Portuguesa, que diz que a Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (nº 1 do artigo 266.º).

É essa prossecução do interesse público, das necessidades colectivas, que justifica a existência da Administração Pública, enquanto que o respeito pelos direitos e interesses legítimos dos cidadãos é exigível pela natureza do Estado de Direito democrático, funcionando simultaneamente como fundamento e limite da actuação da Administração. É isso que tudo isto que dá conteúdo, expressão concreta às normas de Direito Administrativo. Essa prossecução e estes direitos são referentes em permanente tensão dialéctica proporcionada à medida dos interesses gerais a satisfazer, o que permite dentro de certos limites o sacrifício dos interesses particulares em nome dos interesses colectivos.

Portanto, a necessidade de dar a supremacia ao interesse geral com a

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garantia do respeito adequado dos direitos dos particulares marca a essência, num plano escatológico e ôntico, do Direito Administrativo.

*

2. Em termos factuais, a Administração Pública e o direito administrativo cobrem, hoje, todos os movimentos do homem, desde o berço ao túmulo, passando pela doença, estudo, serviço militar, profissão, casa (construção e seus condicionamentos, distribuição de água, gás e electricidade, remoção de lixos), locomoção nas vias públicas, usufruição de cultura, incentivos económicos, actividades económicas (agricultura, abertura de indústrias, fiscalização de estabelecimentos comerciais, etc.), ordenamento do território, defesa do ambiente e do património cultural, garantia patrimonial contra danos provocados por serviços públicos e sacrifícios desiguais impostos aos cidadãos, segurança e ordem pública, protecção contra incêndios, aplicação de sanções por certas infracções ao ordenamento jurídico (direito de mera ordenação social). etc..

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A importância do direito administrativo, nas sociedades modernas, mede-se pela abrangência e valor, num plano social e individual, das matérias que ele regula, em obediência a necessidades clássicas do Estado mas também em respeito do princípio da legalidade positiva e no desenvolvimento paulatino das cláusulas do Estado de direito demoliberal, Estado Social e da Constituição programática.

*

3. No que se reporta às cláusulas do estado democrático, social e constitucional, e suas implicações naturais no desenvolvimento e enquadramento da administração pública e do direito administrativo, referirei, desde já, sinteticamente o seguinte em termos de carecterização destas cláusulas injuntivas do actuar dos poderes públicos:

O artigo 2.º da CRP diz que «a República Portuguesa é um Estado de direito democrático baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e na organização política democráticas (…)».

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O Estado Democrático é o sistema político em que a soberania pertence ao Povo e os titulares dos poderes supremos são eleitos periodicamente pela totalidade dos cidadãos em regime de livre concorrência de opções políticas e de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais.

O princípio democrático implica que o poder só pertence ao Povo, todos os seus titulares o exercem por delegação sua e respondem periodicamente pelo seu exercício.

Ora, a cláusula do Estado Democrático e o princípio democrático implicam a Administração Pública com a democracia.

Ele tem, também, implicações na Administração Pública, porquanto pressupõe certos parâmetros de organização e da actividade das diferentes Administrações Públicas em que se desdobra o poder executivo do Governo e, em geral, o poder administrativo de todas as plurais entidades, públicas e privadas, que prosseguem tarefas da Função Administrativa do Estado- Comunidade.

O princípio democrático exige uma

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Administração Pública democrática, ou seja, enformada pelas características de subordinação ao poder político-legislativo, aberta ao pluralismo, funcionando com objectividade, tratando todos de maneira pré-determinada e igual (princípios da legalidade, imparcialidade, igualdade), publicidade e transparência.

*

HANS KELSEN, em Essência e Valor da Democracia e Teoria Geral do Direito e do Estado, pretendia reduzir a aplicação do princípio democrático ao poder legislativo e ao Governo, afirmando que a Administração, porque ao serviço das decisões tomadas pelos órgãos representativos, deve organizar-se e actuar segundo critérios automáticos.

Ou seja, não esteira do pensamento de MAX WEBER, a essência do Estado Democrático exigiria uma organização não «democratizada» da Administração Pública, sob pena de ela deixar de ser um instrumento dócil e eficaz do Parlamento e do Governo e, portanto, da soberania popular, onde aqueles bebem a sua legitimidade.

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Acontece que uma Administração automática pode pôr em causa o funcionamento do sistema democrático, resvalando para uma ditadura da burocracia.

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Do princípio democrático resulta, desde logo, uma dupla sujeição da Administração Pública:

a)- por um lado, a subordinação ao direito quer na sua organização e funcionamento quer nas suas relações com os cidadãos (princípio da juridicidade ou da legalidade em sentido amplo); e,

b)- por outro lado, em princípio, a subordinação ao Governo (poderes de direcção, orientação e fiscalização deste sobre as Administrações Públicas em geral).

A Administração Pública de um país está nas mãos do conjunto das pessoas colectivas públicas, com os seus órgãos (singulares ou colegiais, dotados de poderes decisórios, executivos, fiscalizadores, consultivos) e serviços administrativos (que os apoiam, preparando as decisões ou efectivando a sua execução), compostos de

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funcionários nomeados, outros agentes administrativos (contratados segundo regime de direito administrativo, contratos de provimento) ou trabalhadores de direito laboral (contratados segundo regime do Código do Trabalho, com adaptações de direito administrativo exigidas pela natureza da função a desempenhar), bem como de outras entidades de direito privado, criadas por aquelas pessoas ou de particulares, desde que também desenvolvam a Função Administrativa do esatdo-Comunidade, ou seja, prosseguam a realização de necessidades colectivas em termos de cooperação articualda juridicamente com a Administração Pública.

Isto é:A Administração Pública define-se

através de elementos de carácter orgânico, referentes à estrutura e meios que suportam e desenvolvem a sua actividade (Administração em sentido orgânico ou subjectivo) e de carácter material, referentes aos assuntos em que intervém (Administração em sentido material ou objectivo).

A Administração Pública integra todas

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as entidades, independentemente do regime jurídico da sua constituição, formas de designação dos seus meios humanos e do ramo de direito aplicável à sua actuação, organizadas (organização administrativa, com os seus elementos e sistemas de afectação e articulação de atribuições e competências: Administração em sentido orgânico ou subjectivo) com o objectivo de assegurar a satisfação permanente das necessidades colectivas (função administrativa do Estado-Comunidade, normalmente com recurso a poderes de autoridade, constitutivos do seu poder administrativo, criados pelo Direito Administrativo; na qual sobressaem, pela sua importância, as tarefas legalmente consideradas de serviço público).

Em geral, a Administração Pública em sentido orgânico define-se como o conjunto de entidades que desenvolvem actividades em nome da Comunidade, sob a direcção (poder de dar ordens e instruções), superintendência (poder de dar orientação) ou tutela (poder de fiscalização sobre entidades públicas), traduzindo o exercício de tarefas de satisfação permanente das necessidades colectivas, como tal assumidas

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e enquadradas por normas jurídicas, que as legitimam e balizam, e sujeitas ao controlo de órgãos imparciais, independentes delas, que são certas entidades administrativas independentes, como o Provedor de Justiça, e, em última instância, aos tribunais (em princípio, em geral, da jurisdição administrativa e, em matéria de direito financeiro, do Tribunal de Contas, mas também dos Tribunais Judiciais em certas matérias de direito administrativo e em geral quando actua em gestão privada, e do Tribunal Constitucional).

***

Neste aspecto, a Administração Pública é uma organização que visa executar os mandatos normativos provenientes do legislador e que está ao serviço da tarefa da governação.

Ou seja, a Administração Pública executa os mandatos do Poder Legislativo (no fundo, do bloco da legalidade) debaixo da direcção do Governo.

É isto que cria a sua legitimação, que é indirecta.

O carácter subordinado ou vicarial da Administração Pública resulta da própria

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natureza da actividade administrativa, como actividade subordinada de gestão de assuntos do Povo.

Quanto ao poder de direcção do Governo, o artigo 185.º da CRP diz que o Governo é o órgão superior da Administração Pública.

Com efeito, entre as entidades administrativas destaca-se o Governo estadual, sendo a mais importante das Administrações Públicas, e que merece, na Constituição, a consagração de uma claúsula geral competencial administrativa, inserta na alínea g) do artigo 202.º (limitada embora pela forma regulamentar mais solene).

A alínea d) do artigo 202.º, acrescenta que compete ao Governo, no exercício de funções administrativas:

a)- dirigir os serviços e a actividade directa do Estado, civil e militar;

b)- superintender à administração indirecta; e

c)- exercer a tutela da administração autónoma.

À Administração Estadual, dirigida

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pelo Governo cabe:a)- organizar e dirigir a Administração

estadual e funciona como Administração indirecta da União Europeia, aplicando e fazendo aplicar obrigatoriamente o direito por esta criado, na maior parte dos domínios das atribuições desta;

b)- superintender a Administração institucional (integrando a Administração fundacional (asente em massa financeira, património, afectado a certos fins)2 e a Administração empresarial; e

c)- tutelar as Administrações autónomas.

***

Importa distinguir entre Administração Pública e Governo e caracterizar a subordinação daquela a este último.

Esta questão clássica do Direito Administrativo tem importância devido ao crescente aumento da burocracia e da organização administrativa e à realização,

2 Há Administrações autónomas com a natureza de Institutos Públicos, em que cabem não só as Universidades como Entidades Administrativas Independentes se dotadas de personalidade jurídica, mas nem as primeiras são superintendidas pelo Governo nem as últimas superintendidas ou tuteladas por este.

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pelo Governo, de múltiplas tarefas sujeitas a diferentes regimes jurídicos.

No plano orgânico, aparecem órgãos dotados de competências próprias, titulados por funcionários designados por forma diferente da do Governo, embora haja uma continuidade de acção.

O Governo tem uma natureza híbrida: é simultaneamente um órgão administrativo, órgão superior da Administração do Estado, e é um órgão político e legislativo, com funções na esfera constitucional distinta da Função de Administração.

Ou seja, há uma divisão funcional em relação à Administração Pública, distinguindo-se dela na medida em que uma parte da sua actividade não é puramente administrativa.

Segundo M. HAURIOU, esta distinção funcional far-se-ia do seguinte modo: a actividade política era a que se referia aos grandes assuntos de Estado, enquanto a actividade administrativa se referia à gestão dos assuntos correntes do público.

Em boa verdade, esta distinção parte da aplicação de um regime jurídico diferente aos vários actos do Governo e,

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sobretudo, da não sindicabilidade pela jurisdição contenciosa de certos actos, classificados por isso como actos políticos, de governo ou constitucionais.

De facto, Governo e Administração Pública são estruturalmente a mesma coisa, encontrando-se o Governo no topo orgânico da Administração Pública, acontecendo que, funcionalmente, o Governo também pratica actos de natureza estritamente política, tidos como não administrativos e, portanto, em geral, não sindicáveis jurisdicionalmente.

***

No que diz respeito ao Estado Social de Direito e ao princípio social que lhe é ínsito, também ele implica a actividade administrativa e normativa do Estado e a interpretação e aplicação do direito.

A expressão Sozialer Rechtsstaat deve-se a HERMANN HELLER, que a usa, pela primeira vez, no seu Estado de Direito ou Ditadura, em 1930.

Ele explicita os fundamentos teóricos do princípio, afirmando que o Estado Liberal se preocupa acima de tudo com a liberdade

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e, assim, com o aspecto puramente formal da igualdade jurídica, o que implicará uma revolução social, a menos que o Estado se converta em Estado Social, passando a preocupar-se activamente com a realização material do princípio da igualdade, assumindo a tarefa de reformar as estruturas económicas e corrigir as desigualdades.

A ideia, no entanto, liga-se à tese da actividade «social» do Estado (isto é, da actividade pública destinada a remediar as situações de desprivilégio do operariado e a eliminar as desigualdades sócio-económicas), que faz parte da ideologia das correntes socialistas (não marxistas) europeias do século XIX, desde LOUIS BLANC a FERDINAND LASSALLE, escolas de economistas do socialismo de cátedra como SCHONBERG e SCHMOLLER, e juristas como HERMANN KNESLER.

A definição do significado da cláusula do Estado Social na Formalgesetz alemã deu origem a grandes polémicas.

Numa primeira fase, predominam interpretações descritivas que, no fundo, levavam à caracterização do Estado Social como integrante de actividades de

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intervenção social (instituições laborais e de segurança social).

Mas, em 1950, H. P. IPSEN inicia as interpretações prescritivas ou normativas, implicando a responsabilidade do Estado e a sua competência para conformar a realidade social com essa cláusula, já não entendida como postulado puramente programático.

Esta interpretação significa que todos os poderes públicos têm o dever de actuar positivamente na sociedade para procurarem ir superando os níveis de desigualdade das várias classes sociais.

O Estado Social exige, quer no plano normativo quer no da aplicação das normas, um conjunto de prestações e condicionantes jurídicas, de ordem positiva e negativa, na actuação dos poderes públicos, que enformam claramente o seu ordenamento jurídico-administrativo.

***

O Estado constitucional português tem um programa de acção, verdadeira ideologia de Estado, independentemente da que a alternância partidária propicie e acima dela, com tarefas e direitos económicos, sociais e culturais, a concretizar pelos poderes

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públicos e notas impositivas sobre regimes jurídicos em variadas matérias da vida nacional, que implicam a Administração e o direito administrativo.

E, além disso, o Estado português, sendo um Estado unitário, é-o com duas regiões político-administrativas e uma organização autárquica de base territorial, em que rege o princípio da autonomia local, o que tudo traduz a policentralidade estrutural do Estado, organizado em modelo plural, baseado na distribuição efectiva do poder entre diferentes entidades territoriais e na sua recíproca autonomia, o que tem consequências enormes na organização e destribuição dos poderes Administrativos públicos.

É o artigo 6.º da CRP, no seu n.º 1, que diz que o Estado é unitário e respeita na sua organização os princípios da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da Administração Pública e, no seu artigo 2.º, declara que os arquipélagos dos Açores e da Madeira constituem Regiões Autónomas dotadas de estatutos político-administrativos e de órgãos de governo próprios.

O n.º 2 do artigo 227.º refere que a

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autonomia das regiões (Autónomas dos Açores e da Madeira) visa a defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses, acrescentando o n.º 3 que a autonomia político administrativa regional (insular) não afecta a integridade da soberania do Estado.

No plano externo, as Regiões não têm carácter de estadualidade, portanto não têm personalidade jurídica internacional, na medida em que o princípio da integridade da soberania o impede.

O n.º 1 do artigo 237.º afirma que a organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais.

Ou seja, o princípio constitucional da unidade do Estado aparece em geral conjugado com o princípio da autonomia político-administrativa regional (Regiões insulares) e autonomia meramente administrativa, regional e local (regiões administrativas, ainda não concretizadas, municípios e freguesias).3

3 No entanto, só as formas de Administração autónoma territorial (e a da autonomia universitária) gozam de garantia constitucional. Sobre a natureza da instituição universitária, no debate teórico comparado, vide texto policopiado: CONDESSO, F.

33

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***

4. A Administração estadual, ela foi formando o seu imenso e tentacular poder administrativo, que partilha com outras entidades, umas públicas, de natureza territorial (regiões autónomas e autarquias), institucional (serviços personalizados, fundações, etc.), empresarial e associativa, e outras particulares, empresas de interesse colectivo e «colectividades» de utilidade pública (associações, institutos e fundações privados de natureza não lucrativa), entidades que exercem a função administrativa do Estado-Comunidade, em colaboração com pessoas colectivas públicas, e portanto organicamente ligadas à Administração Pública e ao direito que se aplica à actividade administrativa pública, desde as entidades de mera utilidade pública, às de utilidade pública administrativa, passando pelas instituições particulares de solidariedade social, todas pessoas colectivas de direito privado e regime jurídico misto, de origem privada mas com actividade publicizada pela aplicação do direito público, ao aplicarem

–A Autonomia Universitária no Direito Espanhol e Português.34

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também o direito administrativo em relação às tarefas que traduzam esse exercício de funções administrativas.

Com efeito, vivemos numa sociedade de pluralização de Administrações públicas, a que só o desempenho por todas da Função Administrativa do Estado dá unidade ontológica e científica.

Não existe só o Estado, pessoa colectiva segmentada em ministérios com atribuições específicas, com órgãos e serviços administrativos gerais (gerindo directamente o desenvolvimento de tarefas a nível de todo o território do Estado), não necessariamente centrais (situados em Lisboa, sede da Administração Estadual), mas também periféricos, uns e outros dirigidos, porque apenas desconcentrados, por repartição legal de poderes funcionais ou por delegação - transferência do exercício de poderes - permitida por lei (lei de habilitação, também possível fora da hierarquia e, neste aspecto, criando uma relação interadministrativa orientada).

Para além do Estado, verifica-se também uma autonomização personalizada de organismos e tarefas, em que o Estado tem um poder orientador (administração

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indirecta, superintendida ou orientada) ou, no mínimo, o controlo da actividade realizada (administração autónoma ou tutelada).

Tudo, formas desconcentradas e descentralizadas da prossecução de certas necessidades colectivas, que são, continuam a ser ou, de outro modo, seriam estaduais.

***

§2. A HISTÓRIA E A IMPORTÂNCIA DO ENSINO DO DIREITO ADMINISTRATIVO

1. Foi a partir de 1914, «sob a influência da escola realista francesa, mas com abertura a outros contributos, que surgiram, em Coimbra, como na recém-criada Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (1918), os primeiros estudos monográficos significativos de direito

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administrativo»4-5.

Com efeito, durante o século XIX, a ciência do direito administrativo português «demonstrou uma evolução incipiente, uma escassa emancipação em relação a influências estrangeiras e uma recorrente

4 Ao desenvolver-se um programa de ensino de direito administrativo, importa ter presente uma noção precisa, embora aqui exposta em termos naturalmente sucintos, não só das exigências colocadas em geral ao ensino do direito, como especificamente na área administrativa e nas licenciaturas a que o referido ensino se insere. Não só o que ele é, ou deveria ser, abstractamente, em face da sua importância na sociedade actual, em geral, embora tendo presente o país em que ele vigora, neste concreto momento, nesta década inicial do século XXI, mas também em concreto no plano global de estudos, face ao objectivo da integração da cadeira numa dada licenciatura. Ou seja, em causa, está a importância actual dos estudos de direito administrativo em si e no currículum das referidas licenciaturas. Ora, o que se pode dizer em geral, é que seja qual for a importãncia relativa a atribuir-lhe, esta importância «tem crescido sempre», e torna, hoje, muito difícil fazer opções entra as matérias de direito administrativo que têm de ser conhecidas pelos estudantes nas áreas do saber das licenciaturas em causa. Mas, sobre este tema, cabe discorrer a quando da elaboração e justificação das propostas de programa e em relatórios de agregação, que não aqui. Basta que se refira que ele esteve presente no desenvolvimento dos vários temas das nossas aulas.

5 É habitual nos relatórios académicos sobre uma disciplina, em concursos para disciplinas de direito, apresentar-se uma resenha sobre os estudos da ciência jurídica em causa, pelo menos, numa abordagem diacrónica, o que se cumprie, pelo menos em termos muito sintéticos, pois esta investigação tem sido desenvolvida e apresentada, em Portugal, quer por docentes, quer por candidatos a associados ou à agregação, no âmbito da ciência do direito administrativo. Tal esforço histórico está hoje ao alcance da generalidade dos interessados em estudos mais ou menos aprofundados, pelo que nos dispensamos de aprofundar o tema, limitando-nos a algumas notas sobre momentos e «lentes» mais

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promiscuidade com outras ciências sociais, designadamente à sociologia e à política», o que, aliás, concorreu com «a ausência de qualquer teorização ou sequer sistematização da matéria da actividade administrativa, com os temas estudados a cingirem-se essencialmente à organização administrativa e ao contencioso administrativo»6-7.

No entanto, a disciplina jusadministrativista há muito que vinha sendo leccionada.

Seguindo de perto a síntese histórica de MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS8, constata-se que, em 1853, foi instituída, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, «sob forte influência francesa», a cadeira de «Direito administrativo e princípios da administração», sendo lentes JUSTINO

significativos. Destacaria, pela sua exaustão e sistematização, no plano do ensino em Portugal e, também, pela análise sincrónica, inclusive com enunciação de programas e detalhados comentários, o Capítulo I do Relatório de PAULO OTERO (-«Evolução do Ensino da Cadeira de Direito Administrativo». Direito Administrativo: Relatório. Lisboa: FDUL, 2001, p.35-173.

6 SOUSA, Marcelo Rebelo e MATOS, André Salgado de –Direito Administrativo geral: Introdução e Princípios Fundamentais. Lisboa: Dom Quixote, p.83.

7 Ibidem.8 O.c., p.83-86.

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ANTÓNIO DE FREITAS9 e JOSÉ FREDERICO LARANJO10. No início do século XX, a cadeira viria a designar-se «Ciência da administração e direito administrativo», sendo lente GUIMARÃES PEDROSA11. Em 1914, aparecem, em Coimbra, os primeiros trabalhos monográficos sobre matéria administrativa, dos professores JOÃO TELLO DE MAGALHÃES COLLAÇO12 e MARTINHO NOBRE DE MELO13, seguidos de outros, em 1915, DOMINGOS FÉZAS VITAL14 e MARTINHO NOBRE DE MELO15, em 1917, MAGALHÃES COLAÇO16, em 1936, FEZAS VITAL17, a que se seguem

9 Instituições de direito administrativo português. Coimbra, 1857, 2.ª Ed. 1861.

10 Princípios e instituições de direito administrativo. Coimbra, 1888.

11 Curso de ciência da administração e direito administrativo. Coimbra, 1908.

12 Concessões de serviços públicos: sua natureza jurídica. Coimbra, 1914.

13 Teoria geral da responsabilidade do Estado. Indemnizações pelos danos causados no exercício das funções pública. Lisboa, 1914.

14 A situação dos funcionários, Coimbra, 1915; Garantias jurisdicionais da legalidade na administração pública: França, Inglaterra e Estados Unidos, Bélgica, Alemanha, Itália, Suíça, Espanha e Brasil. Coimbra, 1938.

15 O estatuto dos funcionários: Estatuto legal. Coimbra, 1915.

16 A desobediência dos funcionários administrativos e a sua responsabilidade criminal. Coimbra, 1917.

17 Garantias jurisdicionais da legalidade na administração pública: França, Inglaterra e Estados unidos, Bélgica, Alemanha,

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outros estudos, designadamente sobre a actividade administrativa e a responsabilidade civil extra-contratual da administração, embora não haja «manuais de referência», o que só viria a ser suprido pelo labor de MARCELLO CAETANO, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, com o seu Manual de direito administrativo18, cabendo-lhe, assim, «o mérito de ter sistematizado pela primeira vez toda a parte geral do direito administrativo português».

Ensinando no ISCSP, temos um discípulo de MARCELO CAETANO, ARMANDO M. MARQUES GUEDES19.

Outros nomes de relevo, na FDUL, e depois também na FDUN de Lisboa, com publicações nesta área científica, e referenciando apenas os trabalhos arrolados Itália, Suiça, Espanha e Brasil. Coimbra, 1938.

18 Coimbra, 1937. Já em 1932, publica Do poder disciplinar no direito administrativo português, Coimbra, 1932. No Brasil, viria ainda a publicar sobre direito constitucional e direito administrativo, obras ainda hoje de referência em faculdades deste país.

19 A concessão: Estudo de direito, ciência e política administrativa:. I–Natureza jurídica da concessão. Coimbra, 1954; O processo burocrático: Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º120, Dezembro de 1968 e n.º 121, Janeiro de1969. Lisboa:CEFDGCI, MF, in totum 1969.Na regência da cadeira, seguiu-se aqui JOSÉ MARIA GASPAR e, desde há já mais de 10 anos, o ora concorrente, cujas obras sobre direito administrativo especial constam do elementos curriculares apresentados a concurso.

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por MARCELO REBELO DE SOUSA e SALGADO MATOS, têm sido DIOGO FREITAS DO AMARAL20, ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA21, ALBERTO XAVIER22, RUI MACHETE23, JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA24, AUGUSTO DE ATHAYDE25, JORGE MIRANDA26, FAUSTO DE QUADROS27, JOSÉ ROBIN DE ANDRADE28 e MARCELO REBELO DE SOUSA29, JOÃO CAUPERS30, PAULO

20 Curso de Direito Administrativo, mas também com desenvolvimentos relacionais assinaláveis, o seu Manual de Introdução ao Direito, ambos publicado pela Almedina.

21 Erro e ilegalidade no acto administrativo, Lisboa, 1962.22 O processo administrativo gracioso, Lisboa, 1967; Con-

ceito e natureza do acto tributário, Coimbra, 1972.23 Contribuição para o estudo das relações entre o processo

administrativo gracioso e o contencioso, Lisboa, 1969.24 Teoria da relação jurídica de seguro social, Lisboa, 1968;

Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, Coimbra, 1987.

25 Poderes unilaterais da administração sobre o contrato administrativo, Rio de Janeiro, 1981.

26 «As associações públicas no direito português». RFDUL 27, 1986.

27 Os concelhos de disciplina na administração consultiva portuguesa. Lisboa, 1974; A nova dimensão do direito administrativo: O direito administrativo português na perspectiva comunitária. Coimbra, 1999.

28 A revogação dos actos administrativos. Coimbra, 1969.29 O pedido e a causa de pedir no recurso administrativo

contencioso. Lisboa, 1972 (diss.); A natureza jurídica da universidade no direito português, Lisboa, 1992 (texto elaborado para prova de aula em concurso para agregação).

30 A Administração periférica do Estado. Lisboa, 1994.41

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OTERO31, MARIA DA GLÓRIA DIAS GARCIA32, PEREIRA DA SILVA33, MARIA JOÃO ESTORNINHO34.

Na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ35, ROGÉRIO EHRHARDT SOARES36, LUIZ DA CUNHA VALENTE37, JOÃO DE MELO MACHADO38, VITAL MOREIRA39, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE40, MARQUES OLIVEIRA,

31 Conceito e fundamento da hierarquia administrativa., Coimbra, 1992; O Poder de substitiição em direito administrativo: Enquadramento dogmático-constitucional. Lisboa, 1995; Legalidade e administração Pública: O sentido da vinculação administrativo: administrativa à juridicidade. Coimbra, 2004.

32 Da justiça administrativa em Portugal: Sua origem e evolução. Lisboa, 1994.

33 Para um contencioso administrativo do, particulares. Coimbra, 1989; Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra, 1996.

34 Requiem pelo contrato administrativo. Coimbra, 1990; A fuga para o direito privado: Contributo para o estudo da actividade de direito privado da administração pública. Coimbra, 1996.

35 Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 1957; O poder discricionário da administração. Coimbra, 1944; Teoria dos actos de governo, Coimbra, 1948.

36 Interesse público, legalidade e mérito., Coimbra, 1955; Direito público e sociedade técnica. Coimbra, 1969.

37 A hierarquia administrativa., Coimbra, 1939.38 Teoria jurídica do contrato administrativo, Coimbra, 1936.39 Administração autónoma e associações públicas, Coimbra,

1997; Auto-regulação profissional e administração pública. Coimbra, 1997.

40 Justiça Administrativa. Coimbra: Almedina; O dever da fundamentação expressa de actos administrativos, Coimbra, 1991.

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JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO41, FERNANDO ALVES CORREIA42, etc..).

Na Universidade Católica do Porto, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA43.

Na Universidade do Porto, LUÍS FILIPE COLAÇO ANTUNES44.

Os temas de eleição têm-se situado na área do direito administrativo geral, embora, mais recentemente, com maior desenvolvimento do estudo dos direitos administrativos especiais e, em termos de influência dos direitos administrativos estrangeiros, constata-se não só uma ligação doutrinal priviligiada ao alemão, como uma crescente atenção à doutrina espanhola, embora nem sempre claramente assumida.

*41 O problema da responsabilidade civil do Estado por actos

lícitos. Coimbra, 1974.42 As garantias do particular na expropriação por utilidade

pública, Coimbra, 1982; O plano urbanístico e o princípio da igualdade. Coimbra, 1989.

43 Sobre a autoridade do caso julgado das sentenças de anulação de actos administrativos. Coimbra, 1994; Anulação de actos administrativos e relações jurídicas emergentes. Coimbra, 2002.

44 A tutela dos interesses difusos em direito administrativo. Coimbra, 1989; O procedimento administrativo de avaliação de impacto ambiental: Para uma tutela preventiva do ambiente. Coimbra, 1998.

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2. Em termos de evolução do ensino autónomo da ciência jusadministrativista, como se referiu na resenha histórica efectivada45, só em 1911 aparece uma disciplina designada como tal, o direito

45 Embora aqui não se trate de fazer história nem de direito nem dos grandes docentes e autores de directo, tarefa que outros relatórios de disciplina já efectivaram, com maior ou menor profundidade. Neste plano, vide o Relatório de PAULO OTERO, aliás com profusa informação sobre os programas dos docentes, que consultamos, nos dispensamos de repetir e para que remetemos (Direito Administrativo: Relatório. Lisboa: FDUL, 2001, p.31 A 173). Sobre o tema, no entanto, sempre se referirá que, como se diz em contracapa no livro de BRUNO AGUILERA BARCHET, intitulado Introducción jurídica a la Historia del Derecho, a história do direito «parece en nuestros días una disciplina (…) condenada a vegetar en manos de unos pocos eruditos», num processo paulatino de «marginalización como instrumento formativo», «sirve entre otras cosas para recordarnos que el derecho debiera estar al servicio del Hombre y no al servicio del Estado» além de que «constituye el más seguro para orientar la inevitable adaptación de nuestros sistemas jurídicos a los tiempos», baseada «en la comprensión del sentido de nuestro derecho». Mas sobre a sua importância e utilidade da história, também instrumento da dogmática, bastará recordar que, no início do século XIX, SAVIGNY, com o seu interesse historicista, visando «construir sobre el derecho histórico del pueblo alemán un sistema racional intrínsecamente germánico, que permitiese soslayar la tradicional dependencia del derecho romano», com seus objectivos sistematizadores, como se constata desde logo em Juristische Methodenlehre, de 1802-1803, «al propiciar el estudio científico de la tradición jurídica alemana, propicio que la historia del derecho se convirtiese en la base de la ciencia jurídica»: «La Historia del Derecho como Instrumento de la Dogmática: a) El ‘historicismo’ como vía de la Codificación alemana». In AGUILERA BARCHET, Bruno –oc, p.55. Vide, também, Prólogo de GUSTAVO VILLAdministração PúblicaALOS SALAS. In AGUILERA BARCHET –Introducción jurídica a la Historia del Derecho. Cuadernos Cívitas. 2.ª Ed., Madrid: Civitas, Universidad de Extremadura,

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administrativo, sem prejuízo de matérias, como ensina MARCELLO CAETANO, que se referiam à Administração pública serem abordadas já anteriormente (no século XVIII, sob a designação de «Direito Pátrio Público Interno e Económico», 1972; e já mais em abordagem jusadministrativistas, «Direito Público Português», 1838), após ter aparecido agregado e de modo secundarizado ao direito criminal, em 1843 («Direito Criminal e Direito Administrativo»46).

No entanto já, em 1853, a matéria começara a ser ministrada com autonomia, sob a designação de «Direito Administrativo português e princípios de administração», ao ser então criada, pela primeira vez, a cadeira de Direito Administrativo no curso de direito da Universidade de Coimbra, rebaptizado em 1901 com o nome de «Ciência da Administração e Direito Administrativo».

E, em 1857, é publicado «o primeiro compêndio português elaborado por um professor universitário sobre a nossa

1996, p.13-18. Sobre o tema, OLIVER WENDEL HOLMES, referiu e bem que «The law embodies the story of a nation’s development through many centuries» (apud –o.c., p.19).

46 O.c., nota 2 da p.257 nota 2 da p.257.45

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disciplina – as Instituições de Direito Administrativo português, de Justino António de Freitas47.

3. Ora, até hoje «as transformações jurídicas e económicas» foram imensas, como diz FREITAS DO AMARAL no seu Relatório sobre a disciplina, apresentado na década de oitenta e republicado recentemente, no II volume na obra intitulada Estudos de Direito Público e Matérias Afins, inserindo uma breve análise histórica, sobre «A evolução da Administração pública e do Direito Ad-ministrativo nos séculos XIX e XX»48, que, referindo-se às datas marcantes nesta evolução, que anteriormente citei, dá, sinteticamente, uma panorâmica da realidade em debate, que não resistimos a transcrever na totalidade:

«Ora, é a partir destas três datas, nos cento e trinta anos que decorrem

47 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, I, p. 168-169, e AMARAL, D.F. –o.c., p.257.

48 Sobre elementos de história da Administração portuguesa, além do Manual de Direito Administrativo, ainda desde as Cortes de 1254 e, em geral, as Cortes medievais, até à administração do século XIX revelável na codificação administrativa, vide, v.g., CAETANO, Marcelo – Estudos de História da Administração Pública Portuguesa. Amaral, Diogo Freitas do (org. e prefácio). Coimbra Editora, 1994.

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daí até ao presente, que o Direito Administrativo nasce e se afirma vigorosamente entre nós como ramo fundamental do direito público, ao mesmo tempo que a ciência do Direito Administrativo atinge também a sua maioridade e acaba por ombrear hoje, sem desprimor, com os outros ramos da enciclopédia jurídica. De um direito administrativo incipiente e incaracterístico até ao mais vasto sector da ordem jurídica positiva vigente; de uma Administração pública predominantemente municipal à supremacia completa da administração estadual; de um Governo com apenas seis ministérios até aos Governos com vinte Departamentos ministeriais e com cinquenta ou sessenta Ministros, Secretários de Estado e Subsecretários; de um modelo administrativo quase exclusivamente constituído pela administração estadual directa e pelos municípios até ao modelo complexo e diversificado da administração indirecta, dos institutos personalizados e das regiões autónomas; de um sistema administrativo assente na centralização do poder e na concentração das

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competências até um sistema que se pretende descentralizado, desconcentrado, participado e regionalizado; de uma administração essencialmente «administrativa» a uma administração também económica, social e cultural; de uma administração abstencionista a um aparelho administrativo votado ao intervencionismo ou até ao dirigismo; de um poder político conservador ou liberal ao Estado social ou mesmo socializante dos nossos dias; de um Estado-administrador público ao Estado-empresário; de uma função pública restrita a uns poucos milhares de funcionários até um imponente conjunto de meio milhão de servidores do Estado; e, enfim, da Monarquia constitucional e da República liberal assentes numa sociedade agrária, passando pela ditadura «corporativa» de transição, até à democracia «socialista» projectada para uma sociedade industrial e urbana -as transformações foram, de facto, enormes e muito fundas. O Direito Administrativo, enquanto ramo do direito objectivo, reflecte-as nitidamente, talvez como nenhum

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outro»49.

Para terminar estas apreciações e independentemente de tudo quanto posteriormente se diz e se dirá, não deixa de se referir que o Direito Administrativo é sistema científico, mas que como ciência se caracteriza pela variabilidade de conteúdo e como disciplina académica, pela relatividade e carácter convencional deste.

E em termos da evolução do ensino do Direito Administrativo, no mesmo período, acrescenta DIOGO FREITAS DO AMARAL:

«De igual modo, a Ciência do Direito Administrativo nasce balbuciante mas desenvolve-se vertiginosamente no mesmo período, passando da fase «civilista» dos primeiros tempos, onde quase só assumia carácter descritivo e apenas focava os aspectos orgânicos ou estruturais, à fase autónoma dos dias de hoje, fundamentalmente assente na elaboração dogmática de teorias gerais e voltada para a construção conceptual unitária e coerente do acto administrativo das garantias jurídicas

49 AMARAL, D.F. –o.c., p. 257-258.49

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dos particulares e do processo administrativo»50.

Em face disto, diga-se, desde já, que as referidas transformações, por que tem passado o direito administrativo, como parte do ordenamento jurídico e ramo do sector da ciência jurídica, atingem uma extensão e complexidade de tal ordem que colocam opções crescentes e difíceis ao seu estudo académico.

***Feitas estas considerações, importa

perguntar quais os fundamentos conceptuais, doutrinários e constitucionais da Administração pública e do direito administrativo?

§3. FUNDAMENTOS CONCEPTUAIS E CONSTITUCIONAIS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DO DIREITO ADMINISTRATIVO

1.O direito administrativo foi-se criando, sobretudo ao longo destes últimos

50 Ibidem, p.258-259.50

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dois séculos, tendo como conteúdo não só a organização da Administração Pública e as suas formas e procedimentos de actuação, mas também técnicas jurídicas garantísticas dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos.

A Administração Pública está ao serviço dos cidadãos, existindo os funcionários e outros agentes, nomeados ou contratados, e trabalhadores para serem servidores das necessidades colectivas.

Mas as organizações ganham facilmente dinâmicas de poder próprio, de poder burocrático e os servidores que as integram nem sempre aparecem orientados por uma pura lógica funcional, de instrumentos de um serviço público, respeitadores das normas que enquadram a gestão pública.

Muitas vezes, os agentes da Administração cometem ilegalidades, mesmo prosseguindo os interesses colectivos, fazendo-o com atropelos dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

Por isso, o direito administrativo também vem procurar criar mecanismos para repor a legalidade ignorada pela

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Administração Pública.

*

2.De facto, constata-se que não há uma Administração que governe, executando apenas as leis, qual Poder Executivo, o órgão de soberania Governo, segundo a teoria dos três Poderes separados do Estado.

Há uma Administração Pública que nos «governa», actuando em todos os domínios da vida moderna e com um conjunto amplo de poderes, que ultrapassa o simples poder executivo.

O Governo é mais do que um poder executivo, porque actua e dirige serviços administrativos, com recurso a tipos de intervenção na sociedade, que o faz ser a um tempo o poder executivo, que cumpre as leis, administrador, mas com desempenhos que materialmente seriam característicos de poder legislativo, criador de actos de carácter geral e abstracto (para além dos regulamentos, no caso português, o governo tem, também, vindo do contexto de confusão de Poderes do Ancién Régime, o poder livre

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e concorrencial com o Parlamento, peculiar em Estado democrático, de criar decretos-leis, tidos como leis em sentido material, mas não orgânico, porque são não aprovados pelo Parlamento, mas pela «Administração» legisladora.

Ou seja, o Governo, cabeça da Administração Pública estadual, em veste considerada não administrativa, veste esta que a jurisprudência também tem aceite que ela não não assume quando se pretende fazer fugir os seus actos ao controlo jurisdicional (actos de governo ou políticos, tidos por insindicáveis, a pesar de «alheios» ao Estado de Direito, doutrina que, v..g.., a legislação processual espanhola já rejeitou expressamente em finais do século passado).

3.E temos uma Administração Pública dirigida pelo governo [como órgão complexo, com competências distribuídas a vários níveis, que não só pelo órgão colegial Conselho de Ministros, mas também pelos seus ministros a título singular], dotada de poder regulamentar, praticando não apenas actos concretos e individuais de aplicação da lei, como é conatural à ideia de gestão da coisa pública e administração

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concretizadora ou viabilizadora de direitos e interesses legalmente protegidos, mas praticando, também, actos unilaterais de carácter geral e abstracto.

Estes actos, criados pela Administração Pública, apesar do recurso a diferente designação, não deixam de ser normas da natureza material das leis, muitas vezes sem carácter meramente executivo (ou complementares) de leis parlamentares, mas mesmo autónomas ou independentes destas, diferenciadas essencialmente pela sua génese administrativa (plano orgânico e formal).

E ocorre que podemos mesmo considerar que a Administração tem também alguns desempenhos de «poder jurisdicional», no sentido da aplicação normal da lei a uma situação individual e concreta, que seria já «julgar», na medidad em que exista autotutela declarativa e executiva, como acontece em geral em regime administrativo continental, em que nos integramos, o que exige uma distinção com a Função Jurisdicional em termos de considerar que esta se identifica num agir apenas quando provocado em situações de conflitos e aquela na gestão do quotidiano

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da vida em sociedade.

Acontece mesmo que o particular quando não concorda com as decisões da Administração pública pode reclamar ou «recorrer» para a própria Administração, por vezes obrigatoriamente como condição para o exercício posterior de direitos processuais perante os tribunais. Mas recorrer não significa precisamente pedir a reapreciação de uma decisão anterior? O próprio uso do vocábulo recurso não traduz, em termos de linguagem jurídica, a ideia de um pedido da anulação de uma «sentença» anterir, cujo proferimento a lei pôs nas mãos da Administração e não dos tribunais?.

E que dizer do seu poder sancionatório, em caso de infracções contra-ordenacionais?

4.Nas mãos da Administração Pública portuguesa existem os seguintes poderes:

a)-a autotutela declarativa, que significa que a Administração declara o que é o direito para cada caso que aprecia, sem necessidade de recorrer aos tribunais, mesmo que o destinatário das suas posições

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delas discorde;

b)- a autotutela executória, que existe na medida em que a Administração executa, em geral a sua própria declaração prévia (pela força se necessário, quando os seus destinatários a não cumpram voluntariamente), e portanto também sem necessidade de recorrer aos tribunais. No Reino Unido, nos EUA e nos outros países anglo-saxónicos, se o cidadão não cumpre uma decisão administrativa, a Administração, em princípio, deve recorrer a tribunal para a impor. Em Portugal, como na generalidade dos Estados continentais europeus, com regime administrativo, de inspiração francesa, quando a Administração aplica o direito a um caso em apreço e o particular não quer respeitar a sua posição, ela impõe a sua decisão sem necessidade de recorrer a tribunal (autotutela executiva ou princípio da execução prévia).

c)- o poder de reapreciação dos seus

actos de autoridade, em procedimento administrativo derivado, através de reclamação (para o autor da própria decisão contestada, não apenas com base em demérito ou oportunidade, mas também em

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ilegalidade) ou recurso administrativo (quando tal pedido é dirigido a entidade diferente, dotada de poder decisória superior);

d)-o poder sancionatório, ou seja, de condenação em coimas e outras sanções acessórias, por incumprimentos das leis administrativas. Ora as coimas por infracções administrativas são materialmente punições financeiras, da natureza das multas impostas pelos tribunais, independentemente do recurso do legsilador a um nome medieval e da sua inconvertibilidade posterior em prisão, o que aliás também inexiste, em certas situações, em condenações judiciais em multa, não sendo, por isso, num plano substantivo, decisivo para a caracterização das actividades e da tipologia das sanções.

e)- e, ainda outros poderes: arbitrais, conciliadores, etc..

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5.E, além disso, o tribunal, com competência para apreciar as actuações administrativas e decidir sobre os direitos e

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interesses legalmente protegidos, a pedido dos cidadãos, não é, normalmente, o tribunal comummente dotado de poderes para resolver os conflitos surgidos entre os cidadãos, mas uma jurisdição, a jurisdição administrativa, cuja origem histórica a implicava como entidade administrativa e portanto a afastava da ideia de órgão de soberania como os outros trinuais, embora hoje já seja constituída por juízes independentes, cuja manutenção separada da organização judicial aparece justificada ser especializada na aplicação de uma ramo muito extenso e complexo de direito, o Direito Administrativo.

Com efeito, esta jurisdição tem a sua origem numa organização de reapreciação dos actos da Administração Pública, no início sem carácter de verdadeiro tribunal, por ser uma entidade administrativa, que, sobretudo em França, foi criando o direito que os seus membros iam causiticamente consideando mais adequado à resolução das situações que os cidadãos lhes colocavam e foi a base doutrinal para a conformação dos princípios a reger pela actividade administrativa e agora, já transformada em verdadeiro tribunal, continua a existir

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precisamente porque está especializada na aplicação desse ramo do direito público.

§4. AS FUNÇÕES E PODERES DO ESTADO

1.No que diz respeito à relação entre a Administração e as Funções do Estado, importa expor as diferenças detectáveis nas diferentes Funções, fazendo-se perceber que a actividade administrativa se distingue das outras actividades do Estado.

E, desde logo, da actividade legislativa ou normativa. Com efeito, o legislador faz leis, regras gerais e abstractas que regem toda a comunidade nacional. A Administração, pelo contrário, vem assegurar a gestão dos serviços, a gestão das actividades colectivas: vem, portanto, administrar.

A Administração é, assim, não uma actividade esporádica, nem uma «tarefa geral», mas aparece como uma actividade contínua.

Realiza-se na actividade concreta de resolução dos problemas que implicam a

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Comunidade, v.g., da falta de água, da falta de médicos, da falta de estradas, da falta de hospitais, da falta de saneamento básico, etc., instalando e fazendo funcionar os serviços adequados para o efeito…

2. E a actividade administrativa também se distingue da actividade jurisdicional. Esta actividade passa por aplicar, provocadamente, a lei ao caso concreto. A actividade jurisdicional só é exercida quando há conflito. Pelo contrário, a Administração Pública age por si própria, não precisa que surja qualquer tipo de conflito. A função do juiz é aplicar a lei à situação concreta. A Administração também aplica a lei, e está submetida a esta. Mas se a Administração só agisse quando houvesse conflito, teria em mãos uma situação de conflito constante. A sua tarefa é executar o direito. Ela age no quadro do direito, mas não age para fazer respeitar o direito; age porque é obrigada a respeitar o direito, mas só o respeita, agindo, por hetero ou auto-iniciativa (procedimentos de iniciativa particular ou oficiosa).

É mais difícil distinguir a Administração e Governo. Governar é tomar

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as decisões essenciais que dizem respeito ao futuro da Comunidade que o Governo, órgão superior da Administração, dirige. A Administração é o gerir do dia-a-dia, a satisfação diária das necessidades colectivas.

É difícil saber os limites onde acaba o governar e começa o administrar, e vice-versa, porque, muitas vezes, estas duas actividades estão nas mãos das mesmas pessoas.

A actividade administrativa possui um alcance jurídico global, a actividade governativa desenvolve-se num plano tido como apenas sujeito aos enquadramentos mínimos do direito político, constitucional.

3.O Parlamento tem um papel essencial em relação à Administração. A sua acção legislativa enquadrará a lei, define as balizas, os limites da lei. Diz o que se pode fazer.

Muitas das leis do Parlamento têm um carácter verdadeiramente administrativo, pois estão dirigidas directamente à Administração.

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Não é o Parlamento que organiza e estrutura o Governo, matéria sujeira a reserva de Decreto-Lei governamental, mas os seus fins e os seus meios aparecem expressos nas leis, desde logo, do Parlamento.

3.No entanto, o Governo também cria leis, não chamadas propriamente leis (como as do Parlamento), mas os chamados decretos-lei.

Em Portugal, o Governo nunca pode legislar sobre certas matérias, independentemente de ter sempre o poder de iniciativa legisaltiva ordinária.

São as matérias de reserva absoluta da competência do Parlamento, em que só a Assembleia da República pode aprovar leis sobre elas e as matérias de reserva relativa, em que também só o Parlamento legisla sobre elas, mas em que pode autorizar, com um conteúdo pré-definido por ele, que o Governo o faça, dando-lhe tal poder em termos balizados para o efeito.

Mas, depois, existe todo um campo imenso de competências concorrenciais. Temos pois que em Portugal, uma função

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legislativa que, sem a existência de uma duploa Câmara, é bicéfala, por também estar em geral nas mãos do executor das leis, que assim concentra excessivo poder.

E há, também, como já foi referido, um domínio, que é de poder legislativo exclusivo do Governo, através da denominada Lei Orgânica do Governo (decreto-lei que diz quantos ministérios e secretarias de Estado há, além doutros elementos de macro-emqudramento deste órgão, normalmente com normas sobre habilitação de delegações ministeriais, etc.).

Este Decreto-Lei, que resulta duma competência única do governo, não é passível de alteração por ratificação parlamentar.

***

4.Uma das funções do Parlamento é controlar a actividade do Governo.

A Administração, hoje, toca em todos os aspectos da nossa vida.

Antigamente, a Administração estadual só tratava dos exércitos, diplomacia, polícia e Finanças Públicas.

Eram os órgãos municipais que, em

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termos de entidades públicas, mexiam em tudo o resto: ensino, transportes, estradas, etc..

Só a meio do século XIX é que se foram criando ministérios em áreas de importância nacional recente, desde o ministério de obras públicas, os ministérios da educação, etc.. Estas funções ficaram a ser um problema do executivo central.

Com isto, os municípios foram ficando despidos das suas antigas funções. As Câmaras ficaram apenas com a responsabilidade de decidir sobre as questões ditas de «interesse local».

Os assuntos de maior importância, e que se entendeu que só seriam bem resolvidos a nível nacional, passaram a ser resolvidos ao nível superior do Estado.

É fundamental que a Administração, que está nas mãos do Estado, seja controlada e essa é uma das funções do Parlamento, que o faz, pelo menos, através da fiscalização do Governo.

5.Nem sempre são os parlamentos ou os governos que criam o direito administrativo.

Em França, por exemplo, foram os juízes que o foram criando.

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A «actividade jurisdicional» e, no plano da sua teorização, a doutrina, tiveram aí um papel essencial.

6.O funcionamento da Administração Pública está dependente organicamente dos órgãos da Administração Pública.

Os serviços preparam as decisões, depois executam-nas, cabendo aos chefes dos serviços, os órgãos da Administração, por contraposição com os serviços, a competência para tomar decisões.

Todas as tarefas administrativas são do encargo da própria pessoa colectiva (o Estado, região autónoma, município, etc.). No entanto, cada vez mais, o Estado se tem apoiado na actividade dos particulares, aos quais concede (ou para os quais delega) o poder de exercício de tarefas da Administração.

Os particulares passam, então, a desempenhar tarefas da Função Administrativa, assumindo-se organicamente, nesse âmbito em que o fazem, como entidades de Administração pública.

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§5. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E FUNÇÕES E PODERES DO ESTADO

1.O conceito de Administração Pública só pode compreender-se a partir da sua evolução histórica, a qual implicou a realização imperfeita da doutrina da separação dos Poderes do Estado, que nunca corresponderam à separação de funções, por mais que os poderes se pretendessem como os órgãos do Estado constituídos para exercer as diferentes funções.

Ou seja, a Administração Pública do Estado, estando alojada no Poder Executivo, não exerce apenas a função administrativa.

Ela é não só destinatária e executora, como também criadora e aplicadora de normas jurídicas. Portanto, neste plano, tem poderes materialmente idênticos aos dos Poderes Legislativo e Judicial, o que a faz ser o mais poderoso de todos os poderes do Estado.

*

2.Na origem do constitucionalismo, os

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poderes normativos da Administração Pública eram muito limitados e, pelo contrário, a sua posição em face dos tribunais era mais forte do que agora, apesar de ainda manter importantes poderes quase-jurisdicionais, como o privilégio de decisão unilateral e executório e poderes sancionadores.

No plano normativo, a Administração foi conquistando paulatinamente um papel importante ao abrigo de leis de plenos poderes, de técnicas de delegação de poderes, da deslegalização de matérias, atribuição de poderes legislativos concorrenciais, como o uso de decretos-lei, o poder regulamentar autónomo ou o monopólio da iniciativa legislativa, chegando mesmo a conseguir, nalguns países, a titularidade exclusiva da função legislativa em certas matérias, que exerce através de regulamentos independentes (vg. em França, por força dos artºs. 34º e 37º da Constituição de 1958) ou com as Leis Orgânicas do Governo, em Portugal.

No plano jurisdicional, o estatuto histórico privilegiado da Administração, iniciado com o artº. 13º da Lei francesa da

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Organização Judicial, de 16 e 24 de Agosto de 1790, justificado teoricamente com o argumento de que «julgar a Administração é também Administrar», explica-se realmente pela necessidade de a Revolução impedir a interferência dos juízes conservadores, herdeiros dos «parlamentos judiciais» do Antigo Regime, que já haviam sido os responsáveis pelo bloqueamento das reformas progressivas pretendidas pelas Administrações Reais que precederam a Revolução.

É esta lei protectora da Administração que, pelas circunstâncias históricas apontadas, marca em França e no continente europeu uma evolução distinta da ocorrida no Reino Unido, ao consagrar o princípio da independência da função administrativa, cujos actos se tornam insindicáveis pelos tribunais.

E é esta evolução no sentido da insindicabilidade judicial que levou ao aparecimento, em 1799, por obra de Napoleão, de uma «jurisdição» especial, inserida na própria Administração, constituída pelo Conselho de Estado e pelos Conselhos de Prefeitura.

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A separação da Administração e dos tribunais passou pela proibição dos tribunais civis e penais conhecerem a título prejudicial quaisquer questões administrativas; pela impossibilidade de julgarem, sem autorização administrativa prévia, acções de responsabilidade de funcionários por actos relacionados com o exercício dos cargos públicos; pela atribuição da presunção de legalidade e de carácter executório às decisões da Administração, configurando-as às sentenças judiciais, passíveis de recurso mas sem efeito suspensivo; pela atribuição de poderes sancionatórios crescentes com a omni-abrangência interventora da Administração; tudo protegido por um sistema de conflitos, institucional e procedimentalmente, dominado pela própria Administração.

Hoje, só em França esta jurisdição administrativa especial continua a ser um foro da Administração, através do Conselho de Estado, que, no entanto, tem vindo, em geral, a integrar-se no sistema jurisdicional como uma jurisdição especializada, a cargo de magistrados regidos por um estatuto judicial.

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Os tribunais comuns podem livremente julgar os funcionários públicos em acções de responsabilidade civil ou criminal, podem conhecer a título prévio ou prejudicial de questões administrativas e a Administração Pública tem perdido a posição privilegiada no sistema de resolução de conflitos jurisdicionais, que passa por uma comissão ou tribunal misto e paritário.

Mantém-se um dado poder de natureza «jurisdicional», traduzido na auto-tutela declarativa e executória, que lhe permite alterar situações possessórias através de procedimentos administrativos sem recurso aos tribunais, o poder sancionatório e o privilégio da execução das sentenças judiciais que lhe são dirigidas, com admissão de situações de não cumprimento das mesmas.

3.Hoje, em Portugal como na generalidade dos países de Estado de Direito, podemos considerar que a Administração Pública é um sujeito de direito que actua, com respeito pelo direito, mas com uso de um direito diferente do direito aplicável aos cidadãos em geral, o

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direito administrativo (embora também possa socorrer-se do direito privado quando o considere oportuno e o legislador o não interdite), e que utiliza também poderes normativos e jurisdicionais, o que lhe permite impor sem mais a sua vontade aos particulares, embora sujeita a posterior fiscalização dos tribunais, com o que, no entanto, os cidadãos nem sempre logram o cumprimento atempado e «em espécie» da legalidade, devendo contentar-se com indemnizações, pelo facto.

4.Tudo visto, a tarefa histórica da construção de um Estado de Direito ainda não terminou, embora paradoxalmente ela se encontre, hoje, mais avançada nos Estados de regime administrativo, de matriz francesa, como Espanha ou Portugal, que, ainda, recentemente fez entrar em vigor um Código de Processo nos Tribunais Administrativos, com quase plena aplicação do princípio da tutela judicial efectiva, do que nos Estados de ordenamento jurídico anglo-saxónico, em que a «existência do direito administrativo» e das preocupações garantísticas em face dele e dos novos poderes da administração pública intervencionista começaram mais tarde.

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*

5.Por último, há que destacar que a ieoria sobre a distinção entre as Funções do Estado surgiu com intenções garantísticas, dado que a separação orgânico-pessoal daquelas funções visava assegurar a liberdade e a segurança individuais.

Foi o dogma da redução do Estado ao Direito, assente no postulado de que o Estado e o Direito se identificam, que converteu a tripartição funcional em teoria das funções estaduais de pretensa validade universal.

Assim, a teoria política da separação dos poderes, consagrada, pela primeira vez, na Constituição dos EUA, de 1787 (embora divorciada da base social estamental, em que MONTESQUIEU a pretendia enquadrar, em face do esquema político-social vigente em França, e que servia essencialmente à conservação de um poder próprio do monarca, como se verificou na sua aplicação na Constituição Alemã de 1871, com distribuição não paritária do poder) aparece confundida com a teoria das funções

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jurídicas do Estado, o que perpassa ainda na actual Lei Fundamental de Bona.

Mas, ainda, sobre o princípio da separação dos poderes, que significaria que a cada órgão ou complexo orgânico unificado, ou seja, a cada Poder caberia uma função estadual caracterizável por critérios materiais distintos, importa referir que, na classificação material das funções do Estado, teríamos inicialmente as seguintes distinções: a função legislativa era a actividade caracterizada por constituir ou modificar o ordenamento jurídico por meio da criação de normas gerais, abstractas e innovadoras; a função jurisdicional era a actividade caracterizada por visar a conservação ou tutela do ordenamento jurídico por meio de decisões individuais e concretas dele dedutíveis e enquadradoras dos factos que lhes estão subjacentes, e a função executiva ou administrativa seria a actividade caracterizada por materializar a realização dos objectivos do Estado por meio de decisões e operações materiais enquadráveis dentro das normas jurídicas.

Mais tarde, em 1845, esta classificação substancial das funções do

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Estado evolui, por obra de SCHMITTHENNER, para uma classificação formal-subjectiva dessas funções, superadoras da constatação de que aos diferentes poderes não correspondiam estritamente aquelas funções, ou seja, de que havia órgãos estaduais diferentes a realizar actos materialmente caracterizáveis numa mesma função, o que exigia um critério não material dos diferentes actos.

É, assim, que, formalmente, se vem a considerar como legislativa toda a actividade realizada pelo Parlamento, mesmo que não caracterizável materialmente como produção normativa; jurisdicional, a actividade dos juízes, mesmo que se trate de administração patrimonial, de jurisdição voluntária ou de produção de sentenças normativas; e executiva, a actividade desenvolvida pelos órgãos executivos.

Assim, deparamos com a dogmática da tripartição funcional, em que a teoria das funções do Estado se limita a distinguir actos de valor formal diferente, separáveis segundo um critério de origem dos actos, que implica a procura da fonte, da entidade que os produz.

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No entanto, partindo do mesmo postulado da redução do Estado ao Direito e limitando a análise ao jurídico, HANS KELSEN concluiu diferentemente que as funções do Estado são apenas duas: a legislação e a execução da lei, ou seja, a criação e aplicação do direito, o que eliminava a autonomia funcional da função administrativa do Estado.

E, porque qualquer acto estadual comunga das duas funções, não há distinção substancial ou material, em termos absolutos, das funções do Estado, o que acabava com a teoria da separação dos poderes, enquanto teoria da diferenciação intrínseca das funções jurídicas do Estado.

***

Em termos de Funções e Poderes do Estado, importa entender perfeitamente o significado relativo do princípio constitucional da separação de poderes.

A divisão de poderes tem a sua origem doutrinal em LOCKE51 e MONTESQUIEU52.

51 Two Treatises of Government, 1690.52 L’Ésprit des Lois, 1747.

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O autor inglês pretendeu criar uma teoria política limitadora da monarquia restaurada, procurando distinguir entre um poder que faz direito (leis e sentenças), que apelida de poder legislativo, e os dois poderes que mexem com a coacção organizada, o poder executivo, para impor a ordem interna, fazendo respeitar as decisões do legislativo, e o poder federativo, actuando na sociedade internacional, para assegurar a independência face aos outros Estados (fazer alianças, a guerra, a paz, etc.), seguindo, neste aspecto, na linha da monarquia dual espartana.

Esta estrutura tripartida será contestada inicialmente por MONTESQUIEU, que começa por distinguir entre o poder legislativo e o poder executivo (em que integrava os tribunais) e que acabará por a aceitar, unificando os poderes executivo interno e externo, que LOCKE designava por federativo, e criando finalmente o poder judicial, à custa do seu poder executivo inicial e de parte do poder legislativo de LOCKE.

De qualquer modo, este poder executivo tem unicamente uma função de

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relação e defesa interna ou internacional, com exclusiva detenção da coacção organizada.

***

A acção do Estado desdobrar-se-ia, pois, em:

- criação de normas, que pré-determinam, em termos genéricos, os comportamentos dos membros da comunidade política (normação);

- decisão concreta de conflitos inter-subjectivos de interesses entre os membros da comunidade ou na relação destes com a própria comunidade (jurisdição);

- execução concreta de medidas adequadas à satisfação das necessidades colectivas (administração).

Mas é patente que o poder executivo nunca se conformou com as doutrinas da separação dos poderes e conservou sempre outras funções do Estado que se foram reforçando com o seu crescimento interventivo na sociedade.

De qualquer modo, as funções do Estado têm classicamente aparecido

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atribuídas aos três Poderes: o Poder Legislativo, o Poder Judicial e o Poder Executivo.

A função legislativa e a função jurisdicional são actividades exclusivamente jurídicas, visando directamente a concretização da vontade reguladora do Estado ou a aplicação ou declaração casuística da mesma, ou seja, destinam-se a criar ou a aplicar normas, enquanto a função executiva é acção sujeita ao ordenamento jurídico.

*

A função legislativa consiste em criar, por via geral e obrigatória, normas por que se devem pautar os comportamentos dos membros da comunidade política assim como normas da organização desta, ou seja, normas de comportamento e normas de natureza constitucional.

As características fundamentais das normas são a generalidade e a obrigatoriedade.

O acto normativo enquadra as situações a regular de modo impessoal.

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*

A função jurisdicional consiste num juízo aplicador da norma aos casos concretos que necessitam de uma solução.

O acto do juiz declara o direito aplicável ao caso pessoal em apreciação judicial.

A jurisdição visa imediatamente o respeito pela ordem jurídica, restabelendo-a em caso de violação e resolvendo os conflitos de interesses entre os diferentes sujeitos, de acordo com as normas objectivas de direito e critérios da sua interpretação e prevalência em face da sua sucessão no tempo e eventuais antinomias.

*

A função executiva consiste em actuar, dentro do direito supranacional, da Constituição, das leis e dos regulamentos vigentes, para a subsistência da comunidade política e a satisfação das necessidades colectivas.

De qualquer modo, há que constatar que não há simetria entre as Funções e os Poderes do Estado.

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Por quê? Os actos executivos visam dar

cumprimento ao disposto nas normas e nas sentenças dos juízes (vg., cumprimento de pena em prisão, etc.), mas são materialmente acções que realizam as decisões dos outros poderes que necessitem de actos concretizadores, eles próprios são também sempre sujeitos ao direito.

Acontece que, se o Poder Legislativo exerce funções legislativas e o Poder Judicial exerce funções jurisdicionais, já o Poder Executivo, isto é, o Governo e a sua Administração, não exercem só a função executiva.

E, por isso, é difícil dar uma definição material positiva da actividade da Administração Pública, dado que o conceito de Administração Pública ligado ao Poder não se identifica com uma dada função material do Estado.

Nem sequer corresponde, residualmente, a toda a actividade estadual que não seja enquadrável nas funções legislativa e judicial.

Até porque nela se integram actos normativos e actos materialmente

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jurisdicionais.

***

§6. TEORIA DOS ACTOS POLÍTICOS DO GOVERNO

Vejamos, agora, a temática da insindicabilidade dos actos ditos políticos do governo (actos da Função Política: Gubernaculum).

Nesta matéria sobre a Administração e a teoria dos actos de Governo, costumo referir que há uma actividade estadual, tida como sendo de natureza essencialmente política, e que, por isso, tradicionalmente, era tida como não redutível ao direito ou não apreensível normativamente, concepção essa que permanece mesmo no século XIX, isto é, ao longo da vigência do Estado de Direito, com as leis erigidas em expressão máxima do poder do Estado.

Esta função não caberia nem na função legislativa, nem na função executiva, nem na função jurisdicional, pelo que não

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era apreendida pela clássica fórmula tripartida jurídico-funcional, identificada com a separação de poderes.

Ela era tida, em geral, até há pouco tempo, como uma função juridicamente livre, incondicionada e autónoma, fora da teoria jurídica do Estado.

Nesta abordagem sobre o Direito e a Função Política, pode afirmar-se que a teoria dos actos de governo deriva de construções jurisprudenciais complexas e é explicável pelo tipo de relação existente entre a «jurisdição administrativa» e o Poder Executivo.

A sua construção, com origem historicamente situada no âmbito de uma jurisdição administrativa não independente, choca com os princípios do Estado de Dereito, seja delimitando genericamente um dado âmbito da actuação do Poder executivo regido só pelo Direito constitucional, e isento do controlo da Jurisdição Contencioso-administrativa, seja estabelecendo uma lista de pressupostos excluídos do controlo judicial.

Os actos de governo são aqueles actos

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jurídicos ou materiais que revestem a aparência de actos ou actividades administrativas, mas escapam a qualquer recurso jurisdicional.

Trata-se de uma função lógico-materialmente governamental, traduzida na orientação e direcção superior do Estado, na determinação do interesse público e interpretação dos fins do Estado, na fixação das suas tarefas e na escolha dos meios materiais, técnicos e organizacionais adequados à realização, conservação e desenvolvimento da ordem jurídica estadual53.

A lista de actos de governo e, portanto, de actos não sujeitos a controlo jurisdicional tem diminuído, devido à contínua penetração do princípio da juridicidade na jurisprudência, e sobretudo às pressões do Direito Internacional e do Direito Comunitário Europeu.

A sua eliminação total será de grande alcance histórico, como refere a doutrina do país vizinho a propósito da lei de processo

53 Uma função que está acima do âmbito das três funções jurídico-estaduais e por isso estava atribuída ao órgão superior do Estado, Chefe de Estado ou Parlamento, no caso dos sistemas de governo parlamentarista.

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contencioso-administrativo espanhola54 -55.Mas, em Portugal, não chegámos

ainda ao momento da sua eliminação, mesmo que só em relação a actos agressivos de direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

Tal só ocorrerá com a declaração de 54 V.g., CANO MATA, A. -«Admisión por el Tribunal

Constitucional de los actos políticos o de gobierno». REDA, n.º72, 1991, p. 555; EMBID IRUJO, Antonio -«La justicia de los actos de Gobierno (de los actos políticos a Ia responsabilidad de los poderes públicos». In Estudios sobre la Constituición Española. Homenaje al profesor E. García de Enterría. Vol. III, Madrid, 1991, p. 2958 e ss.; COBREROS MENDAZONA, E -Actos políticos y jurisdicción contencioso-administrativa, Madrid. 1995.

55 Como se referiu na altura da alteração legislativa espanhola, «Ellos no acaban del todo, pero su legitimación de principio sufre un corte irreversible de acantonamiento material y al estrechamiento explicativo estrictamente indispensable de actos del ejecutivo con tal argumentación, en la medida en que la ley «parte del principio de sometimiento pleno de los poderes publico al ordenamiento jurídico, verdadera cláusula regia del Estado de Derecho, lo que es «incompatible con el reconocimiento de cualquier categoría genérica de actos de autoridad - llámense actos políticos, de Gobierno, o de dirección política- excluida «per si» del control jurisdiccional», adecuando el régimen legal de la Jurisdicción Contencioso-administrativa a la letra y al espíritu de la Constitución, lo que impide «la introducción de toda una esfera de actuación gubernamental inmune al Derecho. (…).El sometimiento de los actos de gobernación a la jurisdicción administrativa (hecha tendencialmente jurisdicción de «todos los asuntos» jurídico-públicos no atribuidos a otra jurisdicción) debe ser leída en términos relativos, visto que sufre algunas limitaciones, por ejemplo las connaturales a la defensa de las informaciones del Secreto de Estado. En tres sentencias de 4 de Abril de 1997, tal como en otra reciente de 30 de Enero de 1998(46), el TS considera que el acto de desclasificación no es un mero acto administrativo, sujeto al régimen común de control judicial, pues la «naturaleza sobre su desclasificación es propria da le potestad de dirección política que atribuye al Gobierno el

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susceptibilidade geral de sindicabilidade contenciosa de toda a actuação do Poder Executivo, constante já hoje da legislação contenciosa espanhola56.

O catálogo destes actos irrecorríveis decompõe-se em dois conjuntos heterogéneos, que RENÉ CHAPUS designa como actos de governo na ordem interna e actos de governo na ordem internacional (relações com organizações internacionais e

artículo 97.º de la Constitución (sentencia de recurso n.º 601/96)», hablando también de una excepción propria de las arias sensibles «atinentes a la permanencia del orden constitucional (...)». Según la Jurisprudencia se trata de documentos que tienen carácter secreto, demostrando que existe una clara posición jurisprudencial sobre la admisibilidad de una actividad política del Gobierno». Pero esta exigencia objetiva de actos de la dirección política no impide, cara a los artículos 9 y 24.1, el control jurisdiccional de la legalidad cuando el legislador haya «definido mediante conceptos judicialmente ejecutables los límites y requisitos previos a los que deben estar sujetos los referidos actos. En este caso se dará prevalencia a otros valores, desde luego, el derecho a la tutela judicial efectiva, que puede justificar el pedido de desclasificación, por lo que la zona negativa al control judicial es una excepción que cede ante una excepción de ella propia, firme a la teoría de los «conceptos asequibles» que limitan y afectan a la teoría de los actos del Gobierno, limitando la validad de las zonas exentas al control judicial (CONDESSO, F. -La ley de la jurisdicción contencioso-administrativa y las especialidades del proceso en materia de personal. Policopiado, FD da UNEX, 1999, p.27)..

56 Ley de Jurisdicción Contencioso-Administrativa, la Ley 29/1998, de 13 de Julho (Boletin Oficial del Estado, de 14.7.1998), alterada pela Lei 50/1998, de 30 de Dezembro, de «Medidas Fiscales, Administrativas e de Orden Social», cujo projecto genético de 1997, havia sido publicado no Boletin de las Cortes n.º1788-89.

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Estados estrangeiros)57.

Pertencem ao primeiro grupo, os actos do Poder Executivo e do Presidente da República, ligados às relações com o Parlamento (v.g. decreto de dissolução do Parlamento, medidas no exercício do direito de iniciativa legislativa, decretos de promulgação, assinatura de decretos do Governo, decretos submetendo uma lei a nova deliberação); ou que se prendem com as relações constitucionais entre o Presidente da República e o Governo (constituição do governo e apresentação de demissão, etc.); a ligação entre os órgãos de soberania e o eleitorado, corporizada no recurso ao referendum; as nomeações pelo Presidente da República de membros do Tribunal Constitucional; e outras designações de órgãos do Estado ou da Administração, como a das chefias militares.

Os actos de governo tomados na ordem internacional, supõem-se actos adoptados em ligação com as negociações ou execução de Convenções Internacionais (medidas tomadas e comportamentos no

57 CHAUS, RENÉ –Droit administrtif général, 1993, p. 754-755.

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decurso de negociações de tratados; a assinatura, ratificação, aprovação, adesão, execução ou inexecução de compromissos internacionais, suspensão ou denúncia de convenção internacional); medidas relacionadas com a condução das relações diplomáticas, designadamente o exercício ou não, ou o exercício deficiente, do direito de protecção diplomática; medidas ligadas ao relacionamento com organizações internacionais, como o voto no Conselho de Segurança, etc., e os actos de guerra.

Assente inicialmente na teoria do móbil político58 (e daí também a designação de actos políticos, abrangendo também os actos de escrutínio político e os actos parlamentares), esta imunidade de jurisdição, apesar de referida a actos hoje determinados de maneira objectiva, permitindo falar em «matérias de governo», não é validamente explicável, pelo menos, no seu conjunto (actos ofensivos dos direitos dos cidadãos), sendo certo que o Poder Executivo em Estado de Direito não pode deixar de estar submetido à lei, e, desde logo, à Lei Fundamental, quando se trate de

58 Ac. Duc D’Aumale, Conselho de Estado, 9.5.1867, até Ac. Prince Napoleón, C.E., 19.2.1875.

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actos de inscrição constitucional. Qualquer acto do executivo deve ser

sindicável por natureza em Estado de Direito. E, de facto, não o é não porque não haja legislação que enquadre a sua justiciabilidade, mas em certos países por declaração de incompetência dos próprios tribunais administrativos e judiciais, sendo certo que, quando causem prejuízos aos particulares, poderiam ser passíveis de apreciação pelos Tribunais Administrativos59.

Estamos perante uma zona do Estado enquadrada pelo Direito, mas em que a summa potestas pode passar ao lado do direito, incumprindo-o.

De qualquer modo, a tendência tem sido para limitar a invocação da noção de acto de governo, devido desde logo ao fenómeno de internacionalização crescente da normatividade.

Como dissemos, o enriquecimento do bloco da legalidade por fontes de Direito Internacional Público e de Direito

59 Além de que o Tribunal Constitucional seria o órgão jurisdicional apto a proceder ao controlo desses actos na perspectiva do controlo público da sua constitucionalidade, se se ampliasse a sua competência para estes actos mesmo que não revestindo a forma normativa.

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Comunitário tem ajudado a fazer recuar os actos de governo na ordem internacional ou supranacional, devido quer à internacionalização do processo de decisão governamental, quer à aceitação paulatina do princípio do primado das normas de Direito Internacional Público e de Direito Comunitário sobre o ordenamento jurídico interno, sendo certo que, no que diz respeito ao Direito Comunitário Europeu, este veio permitir uma redefinição oficial do papel do juiz, porquanto ele não deixa espaço para qualquer teoria nacional de acto de governo.

No domínio sensível das operações militares, o Conselho de Estado francês, desde 1950, vem considerando que só há acto de governo quando uma decisão foi tomada em relação com operações que tenham oficialmente o carácter de uma guerra60.

Nesta perspectiva, a jurisprudência pretende acantonar a teoria do acto de governo aos actos jurídicos, considerando actos de governo apenas factos materiais praticados em relação com operações

60 Ac. C.E., de 22.11.1957, Myrtoon Steamship et Cie: decisão pronunciando-se sobre o envio forçado de tropas por um navio estrangeiro durante a 2ª Grande Guerra.

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qualificadas de guerra no sentido de Direito Internacional Público (e não às simples hostilidades).

Assim não se permite, em muitas situações, o afastamento do princípio da irresponsabilidade do Estado por danos devidos a operações militares.

Aliás, quanto aos actos de governo praticados na ordem interna, a partir dos anos 20, em França, a incompetência da jurisdição administrativa ficou acantonada estritamente ao domínio das relações internacionais, considerando a teoria do acto destacável que muitos actos e comportamentos devem ser destacados da execução e das relações internacionais em geral e passíveis de recurso contencioso.

Esta teoria nasceu já em 1905 e tomou expressão no domínio do acto de governo, nos Acórdãos GOLDSCHMITT, de 27.6.1924 e D.ME CAPACO, de 5.2.1926. Segundo ela, o acto diz-se destacável quando é um acto de direito interno que pode ser ponderado em si, independentemente das relações internacionais.

Aplicada aos tratados, permite isolar

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dois tipos de medidas, as destacáveis da execução de um acordo internacional e as que, sem interferirem com tal execução, traduzem a consequência deste acordo, sendo dele separáveis61.

O progresso constante do princípio da legalidade, neste âmbito, passou pela eliminação da imunidade de jurisdição das medidas conexionadas com as relações internacionais.

O reconhecimento do princípio do primado do Direito Comunitário leva a jurisdição administrativa a confrontar o Direito Internacional com o Tratado da Comunidade Europeia.

E, em geral, o Direito Convencional regula cada vez mais matérias cuja conflituosidade deve ser apreciada pelo juiz administrativo62.

Hoje, a Função Política é exercida

61 O Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 2.12.1991, veio reconhecer o carácter de acto destacável a uma decisão ministerial anterior a um acordo de que ela, de qualquer modo, constitui a consequência.

62 A obrigação de fundamentar as decisões administrativas, por exemplo, de recusa de extradição, solicitada ao abrigo de um tratado, retira-lhe a natureza livre de acto de soberania, sujeitando-a ao controlo jurisdicional do Tribunal Administrativo.

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cooperativamente num processo que envolve Presidente da República, Parlamento e Governo, qualquer deles praticando actos políticos.

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§7. CONSTITUIÇÃO E CONTROLO DAS FUNÇÕES POLÍTICA, EXECUTIVA, LEGISLATIVA E JURISDICIONAL

O Estado contemporâneo é um Estado executor da Constituição, que vincula todo o poder estadual que ele funda, porque Estado teleocrático-programador.

A função política, assentando sempre na Constituição, já não pode ser aceite como juridicamente livre, porque qualquer acto do Estado necessita de habilitação constitucional, pois é a Constituição que limita e dirige toda a actividade estadual, o que só admite uma relativa heterodeterminação, quer no plano internacional (basta ver os princípios a aplicar nas relações internacionais expressos no artigo 7º, etc.), quer no plano nacional, com orientações de actuação.

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E, no plano interno de execução da Constituição, a lei já não tem de assumir carácter geral, abstracto, como regra de direito de conduta.

No Estado Social de Direito, ao serviço de objectivos sociais, dentre os meios de prossecução da função política avulta a legislação, que segundo GEORGE BURDEAU seria uma espécie daquela, perdendo a sua autonomia como função do Estado, a favor da função política que, em sua substituição, aparece precisamente como a função central do Estado.

Isto corresponde à superação do enquadramento do pós-Estado de Legislação Parlamentar, em que a lei não teria significado político, pois seria um conceito essencialmente jurídico.

A tentativa de construção de um modelo normativo do Estado de Direito Liberal, reduzindo o político ao jurídico, levou a uma instrumentalização política da lei, erigida em acto típico da função política.

Ora, a lei já não é só a norma geral e abstracta, criando direitos e deveres, mas também um instrumento de reforma do

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Estado. Daí, a distinção entre lei clássica, em

sentido estrito, e lei-medida, aquela orientada por critérios duráveis de justiça, esta por critérios fugazes de conveniência, dando aos órgãos legislativos meios de exercício da função administrativa.

No Estado Social de Direito, a noção de lei depende do processo criativo e da força jurídica, sem condicionantes materiais que não sejam as da constitucionalidade.

É um acto do Estado, livre, dos poderes constituídos, só definível por critérios formais.

E se a noção de lei é sempre um conceito formal, deixa de ter sentido o recurso a critérios de substancialidade para construir a distinção entre lei em sentido material e lei em sentido formal.

De qualquer modo, apesar de o Estado Social ser um Estado teleocrático, com normas constitucionais e legais, dando ordens à Administração, ao serviço da mudança política, o Estado não pode deixar de continuar a ser também Estado nomocrático, governado por leis com carácter geral e abstracto, defensoras dos direitos, liberdades e garantias, únicas que

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podem viabilizar a sua actuação.

*

No que concerne às relações entre a Função Legislativa e a Função Jurisdicional, tal como se referiu no início, no século XX, o princípio da separação de poderes assenta na ideia de fiscalização e coordenação, de tal modo que LOEWENSTEIN fala numa função de controlo como função autónoma do Estado, com os seus controlos políticos e jurisdicionais, quer da legalidade da Administração Pública, quer da constitucionalidade da legislação, explicando o papel crescente do poder judicial, verdadeiro contra-poder e assim instrumento da função política, porque fiscalizador de todos os poderes e portanto também já do próprio poder legislativo cujos actos «anula», qual «legislador negativo».

Isto leva-nos a concluir que a peça central da ideia que subjaz á razão de ser da separação de poderes passa, hoje, pelo sistema de controlos jurídicos e jurisdicionais.

A ideia de uma função jurisdicional vem das origens da monarquia inglesa,

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aparecendo de novo, hoje, no Estado de Direito contemporâneo, a velha contraposição Gubernaculum - Jurisdictio.

O controlo da constitucionalidade das leis levanta problemas de delimitação entre o legislador positivo e o, por KELSEN considerado, «legislador negativo», sendo certo que este tem naturalmente um limite que, anulando o produto daquele, não anula aquele, o que impede que apareça como seu substituto, como contralegislador, usurpando o núcleo essencial da função legislativa, sendo certo que, contrariamente à Jurisdictio, a legitimação democrática do Parlamento impõe um primado político deste e, portanto, uma presunção de constitucionalidade das suas leis, implicando uma judicial self-restraint, viabilizadora do princípio da separação de poderes.

O Estado de Direito passou de Estado de legislação parlamentar a Estado de Jurisdição, executor da Constituição, em que o primado do legislativo não obsta à sua limitação pelo poder judicial.

A tripartição clássica das funções do Estado, esbatidas as suas fronteiras e

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relativizados os critérios de caracterização material e de distinção, fez acabar com a pretensão de uma teoria geral, de valor universal e intemporal, das funções estaduais.

Hoje, o princípio da separação, mesmo numa perspectiva institucional de âmbito horizontal, só pode enquadrar-se em termos constitucionalmente situados, enquanto ganhe importância constitucional a concretização de divisões institucionais, características da Administração Indirecta (e divisão institucional-vertical de poderes), divisões territoriais de poderes em construções muito variáveis de separação institucional de nível vertical, com um aprofundar do princípio organizacional do Estado que é o princípio da descentralização político-administrativa (Regiões Autónomas, Estados federados, Länder) ou descentralização meramente administrativa, autárquica, característica da existência de autarquias locais ou regionais, autónomas do Poder Executivo Central, ambas integrando a Administração Pública e partilhando a função administrativa.

Tudo visto, o Poder Executivo desenvolve não só actividade administrativa,

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mas também normativa e jurisdicional. E, por outro lado, desenvolve igualmente actividade política e governativa.

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§8.ENQUADRAMENTO CONSTITUCIONAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

No que diz respeito ao enquadramento constitucional da Administração Pública, importa essencialmente, nesta fase do estudo, saber situar a Administração Pública na Constituição instrumental.

Quais as normas que dela tratam? Quais os temas que mereceram do

legislador constitucional a consagração na Lei Fundamental? E porquê?

Algumas considerações se impõem, ainda, especificamente, sobre o enquadramento constitucional da Administração Pública, na óptica do interesse público e dos interesses dos cidadãos.

Diz o n.º 1 do artigo 288.º da CRP que «A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos».

A norma constitucional sobre o tema

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implica uma leitura, não estritamente literal, do artigo 4º Código do Procedimento Administrativo, na medida em que o prosseguimento do interesse público no respeito dos direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos não pode colocar-se numa perspectiva puramente competencial, porque este enquadramento teleológico da Administração Pública envolve e legitima toda a sua actuação, mesmo em gestão privada, quer se trate de actos jurídicos, quer de operações materiais, enformando assim a própria densificação do princípio da legalidade.

Os interesse sociais, qualificados pelo legislador como públicos ou que o legislador habilitou a Administração a prosseguir, mesmo que se esteja no âmbito do exercício discricionário do poder administrativo (em que este tem uma maior margem de conformação das situações face às circunstâncias concretas), devem ser executados dentro de balizas que implicam a limitação da actuação da Administração em face da obrigatória ponderação das decisões a tomar, ou seja, da procura da realização mais adequada do interesse público, tendo presente todos os interesses

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envolvidos (princípio da justa ponderação dos interesses decorrente da cláusula do Estado de Direito; imparcialidade, interdição de excesso, etc.), de modo a atingir o interesse público sem sacrifícios desnecessários ou desproporcionados dos interesses dos particulares, titulares de posições materiais legalmente protegidas.

E isto quer estas posições jurídicas se traduzam em direitos subjectivos, em que a pretensão da posição traduz um interesse específico num determinado bem (coisa, conduta ou utilidade), previsto na norma legal criada para o proteger directamente, em termos que lhe atribuam o poder de exigir da Administração Pública condutas em conformidade com ele, pois ele está dentro das condições legais vinculadas à sua satisfação, quer ainda quando estas posições traduzam «só» interesses legalmente protegidos de que um particular é titular, quando a norma o faz beneficiar de uma tutela ou protecção jurídica indirecta, na medida em que se por um lado a norma invocada a favor da existência de tal interesse, tutela directamente interesses e não a sua própria posição jurídica concreta envolvida na decisão a tomar, por isto

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mesmo também lhe são conferidos poderes jurídicos instrumentais que lhe permitem, caso se realize o interesse público pretendido, ver reflexamente satisfeito o seu próprio interesse.

Não podendo exigir directamente da Administração a conduta que realiza o seu interesse, pode exigir que ela respeite a legalidade em ordem à realização prevista do interesse público, quando tal for o meio adequado a poder esperar também do seu interesse próprio.

Abrange todas as posições jurídicas dos particulares merecedoras de protecção, todas as situações de vantagem derivadas do ordenamento jurídico, que não apenas as protegidas individualmente por uma dada norma, como as inseridas em relações jurídicas poligonais ou multipolares (vg. interesses na fixação de planos urbanísticos, interesses ambientais, etc.), que colocam certas pessoas em situações diferentes da generalidade dos administrados, de modo a merecer especial protecção, dado estarem ligadas a interesses públicos latentes, serem titulares de interesses difusos63.

63 Em toda esta matéria, seguimos, hoje, a doutrina expressa nos manuais de VIEIRA DE ANDRADE e FREITAS DO AMARAL, respectivamente, Justiça Administrativa (Lições). 6.ª Edição, Coimbra: Almedina, 2004, e Curso de Direito Administrativo. Vol.

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Impõe-se também a ponderação dos interesses de certos círculos de cidadãos, cujos interesses ou direitos podem não estar especialmente personalizados, mas que merecem acolhimento (e devem mesmo contar com a atribuição ao cidadão uti cives de meios de defesa preventiva ou sucessiva, do tipo procedimental e jurisdicional), na medida em que traduz a incorporação em cada um dos indivíduos desse círculo de interesses comunitários a preservar.

***

§9.CIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO, POLÍTICA ADMINISTRATIVA E DIREITO ADMINISTRATIVO

Em ordem a propiciar uma melhor compreensão da abordagem especificamente jurídica da Administração Pública, há que referir naturalmente algo sobre as ciências e políticas administrativas: a ciência da Administração, a política administrativa e o direito administrativo.

II, Coimbra: Almedina, 2001, p.61-73.103

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O direito administrativo traduz uma técnica impositiva dos comandos do legislador e da Administração Pública, a recorrer sempre que as previsões e enquadramentos de disciplina social nesta matéria deva ocorrer.

A Administração Pública pode ser estudada sob um ângulo não jurídico. Com métodos diferentes.

É sabido que aos serviços públicos em geral pretendem alguns sectores da Ciência da Administração aplicar lógicas do mundo da administração privada, da gestão empresarial, considerando que, em certo sentido, elas são «empresas de prestação de serviços e de processamento de informação», às quais, muitas vezes, se podem aplicar os princípios do sector privado, em ordem a realizar as suas atribuições de forma eficaz e rentável.

No entanto, nem sempre isso é possível, dados os objectivos da Administração pública se pautarem, sobretudo, por valores ligados à satisfação das necessidades colectivas, nos termos de comandos constitucionais.

De qualquer modo, os métodos do

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sector privado podem permitir a identificação de áreas de ineficácia operativa e de despesas evitáveis, racionalizar os circuitos e garantir um controlo eficaz, não apenas financeiro, mas também de resultados.

Na prossecução desta investigação, será essencial considerar a Administração como um fenómeno que foi sofrendo contínuas transformações, pois, sendo um fenómeno histórico da sociedade, instituído para cumprir uma função específica, a Administração está conectada com outras formas sociais, unida por múltiplas inter-relações ao resto da sociedade e não pode ser compreendida sem referência ao sistema global que determina os seus caracteres fundamentais, as suas missões e as suas estruturas.

No contexto da sua indivisibilidade com outras «formas sociais», é relevante a forte tradição jurídico-administrativa que se faz sentir em Portugal, assim como em todos os países da Europa Ocidental.

Esta dualidade teórica foi utilizada, de início, para reforço estatal e, mais tarde, no sentido de responder aos desafios

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ideológicos que impunham ao Estado uma diferenciação entre poderes e funções.

O estudo da Administração Pública, em Portugal, reduziu-se durante muito tempo à análise da actividade jurídica da Administração, manifestada nos actos normativos e decisórios e nos contratos administrativos, por um lado, e, por outro lado, na descrição da organização e estruturas administrativas.

Na história da Administração Pública, em Portugal, iremos sempre encontrar interligados o político, o administrativo e o jurídico.

São realidades que dificilmente poderemos desligar e estudar separadamente neste facto social.

Com o desenrolar dos tempos, afirmou-se como fulcral para a Administração o desenvolvimento do Direito Administrativo e toda a acção da Administração passou a ser realizada à sua luz.

Este ramo da ciência jurídica radica no dever-ser, limitando-se a abarcar os assuntos juridicamente relevantes da realidade administrativa, não se

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preocupando nem com a realidade objectiva corrente, nem com os problemas de ordem técnica ou de natureza prática tão diversos como a eficiência, a eficácia, a racionalidade, a produtividade, etc..

Superando a sua visão mais formalista e aceitando-lhe um sentido sociológico, mesmo assim, verificamos que a função desta ciência no estudo da Administração é limitado, já que «os fins imediatos do estudo jurídico da actividade administrativa são a protecção dos direitos e liberdades individuais, além da garantia oferecida à colectividade, através da disciplina jurídica das estruturas e dos actos administrativos».

Por outro lado, o descuramento quanto ao estudo da actuação prática das Administrações Públicas levou a «rigidez das estruturas e dos métodos, a certa esclerose nas instituições e no sistema burocrático, a um legalismo por vezes paralisante e à formação do ambiente desfavorável que hoje rodeia aquelas Administrações, prejudicando indirectamente a melhor realização da própria ideia de justiça».

Há que reconhecer a inconveniência

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de uma sobrevalorização do Direito Administrativo na acção administrativa, mas referindo de qualquer modo que este ramo da ciência é indispensável para as actividades das Administrações Públicas, uma vez que estas não sobrevivem sem a existência de normas legais que as regulem e lhes estabeleçam limites.

Essa sobrevalorização propiciou o engrandecimento do Direito Administrativo em detrimento da Ciência da Administração (concretamente, da Ciência da Administração Pública).

As duas Ciências não estudam o facto administrativo do mesmo modo, sendo a referida em primeiro lugar, muito mais parcelar e restritiva, impõe-se levar os alunos a constatar que uma não substitui a outra e que ambas ganhariam no seu próprio saber com o seu desenvolvimento mútuo.

*

Dito isto, acrescentaria mais alguns apontamentos sobre a Ciência da Administração.

É uma ciência sociológica, pois é um

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ramo do saber que investiga a organização e o funcionamento da Administração Pública, mas não analisados segundo as regras jurídicas que supostamente lhe deveriam ser aplicadas.

O legislador, quando cria leis, tem de fazer opções. Para tal, são-lhe úteis vários conhecimentos.

E, desde logo, o conhecimento do direito administrativo comparado.

Mas a Ciência da Administração, como estudo dos aspectos não Jurídicos da Administração, o seu estudo sociológico, debruçando-se sobre factos e não sobre normas jurídicas, dá ao legislador instrumentos não jurídicos especialmente importantes para o ajudar a fazer essas opções.

Ela pode apoiá-lo com elementos científicos reveladores do modo mais correcto para que a Administração funcione melhor, ou seja, para reenquadrar essa organização e funcionamento em função de certos objectivos-valores organizacionais pré-definidos.

A Ciência da Administração é, portanto, algo prévio ao direito.

E é a base para uma adequada ou pelo

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menos ponderada política administrativa, que poderá depois inspirar a criação jurídica.

Com efeito, a política administrativa é o conjunto de orientações definidas pelo poder político e administrativo, e em primeira linha o governo, para reformar a Administração Pública e que podem assumir a forma normativa, dando origem a Direito Administrativo.

Ela vai incorporar as inovações que se consideram em cada momento úteis para modernizar a organização da Administração e melhorar os níveis de execução e a qualidade das suas tarefas.

Por isso, se fala em programas, comissões, secretarias de Estados ou ministérios de reforma ou de modernização da Administração Pública.

A Ciência da Administração pode enformar a Política Administrativa e esta o Direito Administrativo, porque as normas jurídicas podem acabar por consagrar soluções que se baseiam em estudos que assentam em análises anómicas da Ciência da Administração.

Ou seja, as normas acabam por consagrar opções que se baseiam em

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critérios científicos, numa análise, que tem muito da perspectiva técnica da Ciência Administrativa.

A Ciência da Administração não é jurídica, porque mesmo que integre no seu estudo elementos jurídicos, fá-lo sem lhe dar nenhuma importância especial, isto é, sem lhes dar outra importância que não seja a de simples factos sociais, que as normas de direito também são, a situar ao nível de outros em apreciação.

Tal como também não é anti-jurídica, mesmo quando relativiza, sub-valoriza o ordenamento jurídico, sendo certo que ela olha o que é, independentemente do que devia ser.

Em termos de progressão lógica, a ciência da administração é uma área do saber ante-jurídico.

E as informações da ciência da administração, que podem desde logo destacar-se pela sua importância tocam com os métodos de gestão ou de estruturação, a racionalização dos meios humanos e financeiros, etc., tudo construções que podem, e muitas vezes devem, ter acolhimento no direito administrativo, funcionando como elementos materiais nomogénicos do direito administrativo.

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Mas nem sempre assim pode ser. O direito administrativo nem sempre pode ser concretizador das soluções da ciência da administração, por muito meritórias que sejam, dado que ele tem de ser em primeira linha concretizador do direito constitucional, neste aspecto não podendo deixar de ser um direito constitucional concretizado.

As Administrações Públicas não são administrações de entidades que visa o lucro, administrações particulares, mas administrações dotadas de uma lógica intrínseca diferente, uma vez que se justificam escatologicamente em função de interesses públicos a prosseguir.

As organizações da Administração Pública existem para aplicar as leis, promover o desenvolvimento económico-social e a satisfação das necessidades colectivas, na garantia dos direitos dos cidadãos, objectivos-valores que se impõem independentemente dos custos, acima de tudo, mesmo das conclusões da ciência da administração, se elas puserem em causa estes valores que dão carácter à Administração Pública e têm de enformar o direito administrativo, sendo a sua razão de ser.

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A Administração, como organização de meios humanos, técnicos e financeiros, ao serviço da sociedade, não pode prosseguir, sem mais, orientações de racionalidade e eficácia, como únicos valores, por que eles ficam relativizados no confronto com outros valores fundamentais a prosseguir, sendo certo aqueles esses são os valores em que assentam os estudos da ciência da administração, embora em princípio tudo se deva fazer para os concretizar onde seja possível, até no interesse, que também é interesse público, de servir mais rápido e com menores custos para os cidadãos contribuintes.

Mas o que é, realmente, a ciência da administração?

A ciência da administração é o estudo científico dos fenómenos administrativos, quer na vertente organizacional, quer funcional, em si e nas envolventes inter-sistémicas (a Administração Pública não é uma realidade fechada, estando em ligação com os outros sistemas sociais, em que age e que agem sobre ela, v.g. o mundo empresarial, o mundo financeiro, em suma as várias organizações sociais exteriores em

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osmose e tensão permanente de serviço à sociedade e influência desta), para obter a sua explicação, independentemente do seu enquadramento normativo (muitas vezes as leis não são aplicadas) e para levar à sua reformulação, numa perspectiva inovadora, visando designadamente o incremento permanente da eficácia da gestão das entidades públicas.

Neste aspecto, não pode deixar de ser encarada como uma ciência auxiliar, instrumental do direito administrativo, embora as suas conclusões tenham de ser ponderadas, como atrás se disse, tendo presente as funções globais do direito em face das exigências constitucionais, teleológicas e programáticas, próprias de um Estado de Direito democrático e social, que não permite a prossecução de objectivos de eficácia à custa do sacrifício dos direitos e das garantias dos cidadãos em face dos poderes públicos.

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§10.A SEGMENTAÇÃO E PLURALIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO

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PÚBLICA

O estudo da Administração Pública, segundo uma abordagem própria das ciências sociais, analisa o poder administrativo e a sua presença na sociedade, as conexões entre o poder e a organizações que o veiculam, quer enquanto o poder público necessita de um conjunto de meios materiais, financeiros e humanos para actuar, quer enquanto a organização vertebra o conjunto de capacidades humanas que passam a ser usadas pelo poder, que tende a dominá-los, para exercer efectivamente um dado domínio social.

A Administração Pública é um elemento do Estado em sentido amplo, político, do Estado-Comunidade.

As Administração Pública, pois são plurais, são uma concretização deste, que de outro modo, sem organização, sem meios humanos, seria uma simples ideia abstracta.

O Estado é uma criação cultural, recente, e tal como o Estado, a Administração Pública é também um produto histórico, sendo certo que, segundo alguns autores, só há verdadeira Administração quando surge o Estado

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moderno. Isto não significa que noutras épocas não tenham existido sociedades politicamente organizadas, e desde logo impérios.

Noutras épocas, existiram organizações, por vezes até muito desenvolvidas, ao serviço do poder político, quer no império faraónico ou chinês, no Baixo-Império romano ou no império bizantino, mobilizando grande número de meios.

Mas não existiam senão realidades «estaduais» realizadoras de um conceito diferente de sociedade política, mais incipiente. Normalmente realizavam um poder político pessoal. Havia impérios, havia reinos, comunidades individualizadas, diferenciadas.

Portanto, nessas épocas existiam organizações ao serviço do poder político, máquinas administrativas, nomeadamente militares e até agentes diplomáticos, etc., mas não eram Administração Pública na acepção actual, porque estas só existem, como considera a ciência administrativa francesa, quando as organizações ao serviço do poder actuam como elemento do Estado, situadas fora de uma ligação estrita à

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pessoa do próprio soberano, quando ela é algo ínsito à própria sociedade, como elemento indispensável ao Estado, identificando-se formalmente com o próprio Estado moderno com o qual está em relação íntima.

O Estado moderno surge com o fim da Idade Média, surge com o Renascimento na Idade Moderna, quando desaparece o feudalismo político e começa o desenvolvimento da burguesia e do capitalismo comercial e financeiro, o que situaria o aparecimento da Administração Pública com o surgimento das monarquias absolutistas.

No entanto, a formação de Estado moderno e a configuração moderna das Administrações públicas é algo que só fica completo com a Revolução Francesa, ao despersonalizar-se o poder, que deixa de estar na pessoa do rei absoluto, soberano, porque a soberania passa para o povo, ficando o antigo soberano apenas rei no Estado, e então em Estado liberal pós-absolutista se juridifica e racionaliza a vida pública com o submetimento do Estado ao Direito.

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Portanto, é depois da Revolução Francesa, com o aparecimento do Estado de Direito que efectivamente a configuração moderna das Administrações (e o próprio direito administrativo) ganham a sua natureza actual.

A Administração Pública é portanto um produto histórico e, por isso, podemos situar a moderna Administração Pública.

Mas não é (nem ela nem o direito administrativo que lhe anda associado) fruto de uma geração espontânea, na medida em que nem sequer há um corte abrupto entre o Antigo Regime e a nova organização administrativa saída da Revolução Francesa, como o demonstra TOCQUEVILLE.

A origem da Administração Pública está nos exércitos dos agentes dos reis a origem das nossas Administração Pública actuais, que depois seriam submetidas, no Estado Constitucional, não já a um rei soberano mas à lei, emanação da representação do povo (ideia de democracia parlamentar), passando elas mesmo a ser o elemento estável, dada a circulação do pessoal político em democracia.

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Em certos momentos e Estados, como em Portugal ou França, em que as revoluções ou eleições permanentes traziam mudanças de governos e até de Constituições, a Administração essa permanece.

E esta Administração merece ser objecto de conhecimento científico, desde logo para analisar o poder extralegal dos administradores, o poder burocrático, porque apesar de ao serviço da sociedade, sendo organizações, ganham poder e passam a defender uma lógica de poder pessoal. Mesmo em democracia essa factualidade existe, logo deve ser estudada, porque esta Administração Pública, tal como ela, é pode ser objecto de conhecimento científico.

Mas a ciência da administração não é uma ciência no sentido convencional, porque objecto e método não se condicionam mutuamente.

A ciência da administração tem usado vários métodos e abordagens diferentes retirados das várias ciências sociais.

Há um predomínio do objecto sobre o método, sendo aquele que dá unidade

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científica à matéria. O objecto da ciência da administração

é a própria organização administração como organização, aparelho ao serviço do poder.

A ciência da administração tem como finalidade o conhecimento das Administração Pública sob qualquer perspectiva tendo em conta a sua situação real e as suas relações com o poder e a sociedade.

Em termos de características das Administração Pública reveladas pela ciência da administração, podemos sintetizá-las dizendo que elas são a especificidade, a extensão e fragmentação, a contingência (intimamente ligada à sua historicidade) e a interdependência entre a Política e a Administração.

No que se refere à especificidade, a respeito das organizações privadas, analisável desde lgo em termos diacrónicos, pela comparação da actual Administração Pública com as organizações públicas de outras épocas, junta-se a análise sincrónica, de comparação com todas as organizações existentes na sociedade actual.

Ela tem carácter específico, quando

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comparada com organizações privadas, empresas privadas ou outras existentes, mesmo no seio do Estado, como partidos políticos, sindicatos, igrejas e associações patronais, etc.

A Administração Pública aparece como uma organização qualificada pela titularidade formal do poder e dotada de um sistema de dominação, embora não se possa negar-lhe aplicação de conhecimentos e princípios válidos para todas as organizações.

Quanto à extensão, a Administração Pública hoje tem uma extensão extraordinária quanto à estrutura e quanto aos fins desenvolvidos por exigências do Estado social. Mas a amplitude dos fins não é um fenómeno unitário porque engloba uma multiplicidade característica de formas de intervenção. Há vários tipos de intervenção administrativa. A Administração Pública abarca as estruturas indispensáveis para o exercício do poder por meio da coacção e repressão, ou visando a efectivação de prestações de serviços aos cidadãos ou o controlo de entidades particulares que os prestam, assim como a obtenção de bens em condições análogas à

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da produção em empresas privadas comerciais ou industriais, e a planificação ou direcção económica distinta da intervenção em sectores económicos concretos, etc.

E a extensão deu origem à sua fragmentação.

As Administração Pública não podem considerar-se de modo unitário, pois que não podem ser organizações do mesmo tipo uma organização que enquadra o poder ligado às funções de soberania. às organizações prestadoras de serviços ou produtoras dde bens. Não há uma só organização pública, mas uma pluralidade de organizações e administrações públicas, o que afasta as concepções weberiana e marxista assentes na existência de uma só organização burocrática.

Hoje, põem-se mesmo problemas de relacionamento entre diferentes organizações administrativas e o seu prolongamento funcional, numa cadeia de entidades dotadas de autonomia, desconcentradas ou mesmo descentralizadas.

Quanto à contingência das

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Administração Pública, importa referir que a característica da contingência e da historicidade vão juntas. A seguir à Igreja Católica, as Administração Pública têm primazia histórica. E elas são função do território, povoação, nível de desenvolvimento do estado e dos valores culturais.

Embora o modelo básico seja importado quer da administração napoleónica quer das instituições inglesas que funcionam como esquemas gerais que são enformados por conteúdos específicos bebidos nas sociedades locais.

Quanto à interdependência entre Política e Administração, há que referir que esta se separa daquela em termos conceptuais.

A doutrina sempre tem procurado traduzir essa diferença difícil de estabelecer em termos concretos.

Desde logo dificuldades quanto às noções gerais, quanto à distinção material das actividades e mesmo quanto às diferenças formais entre actos políticos e administrativos.

Tudo, desde logo, até porque qualquer

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organização pública participa do poder político.

Há mesmo quem considere que se deve prescindir da distinção material entre Politica e Administração.

A ciência da administração surge na Europa em reacção contra o estudo da ciência da administração americana, baseado na eficácia, embora integre elementos deste estudo, ressuscitando a velha tradição científica europeia do século XVIII, antes do aparecimento do Direito Administrativo.

Numa primeira etapa, procurou seguir-se na escolha de um objecto de análise, isto é, os fins da Administração Pública.

A doutrina francesa, com TIMSIT, veio centrar a ciência da administração no estudo dos modelos administrativos, o liberal, o marxista e o weberiano.

O primeiro, partindo de uma consideração política da Administração Pública e portanto aceitando a distinção entre elas, dada a subordinação da Administração Pública à lei como princípio

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básico do Estado de Direito.

Em relação ao Antigo Regime, a distinção faz-se com base em dois factores: o poder dos funcionários que são dominadores da estrutura do Estado e a abstenção do Estado como protagonista da vida económica.

Portanto, parte-se de uma rigorosa distinção entre os âmbitos público e privado, ou seja, entre o Estado e a sociedade.

No segundo modelo, o marxista, a Administração Pública está intimamente ligada ao estado, elemento inseparável, embora os novos teóricos, como GRAMSCI, POULANTZAS, etc., afirmem a diferenciação entre Estado e Administração Pública, com a autonomia da Administração Pública.

O terceiro modelo, o de MAX WEBER, parte da diferença entre poder e sistema de dominação, afirmando que numa sociedade evoluída, o sistema de dominação típico é o de organização burocrática.

Os funcionários públicos não obedecem a um chefe tradicional ou

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carismático, mas à lei, manifestação da racionalidade.

O weberianismo teve influência nos estudos americanos sobre organização.

***

§11. FUNÇÕES, PODERES DO ESTADO E O CONCEITO DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Em termos de Funções e Poderes do Estado (a Administração e as outras Funções do Estado, a Administração como Organização, Função e Poder), considerando a Administração como objecto de análise para o jurista, isto é, a Administração Pública normativamente enquadrada, há que explicitar que ela pode ser vista por ângulos diferentes, assentes em normas jurídicas com uma sistematização própria.

No plano jurídico, a Administração pode ser vista numa perspectiva subjectiva, objectiva ou formal.

Na concepção formal, a identificação

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da Administração Pública parte do tratamento desta e dos seus actos pelo Direito a que está submetida.

Mas é, sobretudo, frequente falar-se de Administração Pública em sentido subjectivo ou orgânico, referida aos meios humanos, técnicos e financeiros, com o seu direito orgânico e a teoria geral da organização administrativa ou da Administração subjectiva, e da Administração em sentido objectivo ou materal, referida às tarefas que têm a ver com as necessidades colectivas prosseguidas pelas estruturas que organizam aqueles meios, com o seu direito administrativo objectivo e a teoria geral da actividade administrativa.

Na concepção subjectiva ou concepção orgânica, a Administração Pública é o conjunto de órgãos, serviços e agentes das pessoas colectivas públicas e outras entidades particulares que desempenham a Função Administrativa.

É a organização ao serviço da Função Administrativa.

Trata-se de entidades públicas integradas no poder executivo e outras que

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não pertencem ao poder legislativo e judicial.

Os serviços legislativos e os serviços judiciais não fazem parte do nosso estudo, embora em geral se lhes aplique também o Direito Administrativo, por remissão legislativa.

Na concepção objectiva ou concepção material, a Administração Pública caracteriza-se por traduzir o desenvolvimento de uma actividade de tipo administrativo, sendo certo que, por um lado, não é apenas o poder executivo que executa a lei e, por outro, o próprio poder executivo exerce actividades que não são executivas.

A Administração Pública em sentido material ou objectivo é o conjunto de actividades consistentes no exercício de tarefas de aplicação da lei, promoção de desenvolvimento económico-social e em geral de satisfação permanente das necessidades colectivas, enquadradas por normas legitimadoras e balizadoras de intervenção pública em razão do interesse colectivo, sob a direcção, orientação ou

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fiscalização do poder político e sujeitos ao controlo de entidades independentes, administrativas e em última instância jurisdicionais.

Ela congrega as actividades da Função Administrativa, normalmente exercida com poder administrativo.

Na gestão das organizações que desempenham a Função Administrativa vigora um enquadramento nomocrático, por que ela é uma actuação assumida por lei e enquadrada por lei.

É a lei que legitima essa actividade e que a baliza.

A actividade de Gestão Pública difere da actividade de gestão particular na medida em que o agente privado é livre podendo agir desde que a lei não o proíba, enquanto a Administração ao serviço dos cidadãos só pode fazer o que a lei diz que deve fazer-se e dentro dos limites, das balizas traçadas pela lei. Antigamente, também vigorava o princípio privado de que a Administração Pública podia fazer tudo o que queria não expressamente interdito pela lei. Era a concepção de uma A não enquadrada mas apenas limitada pela lei.

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A lei hoje não é apenas um limite à acção administrativa.

É a regra que a habilita a actuar e que também a limita no actuar.

Seria difícil saber onde estavam as necessidades colectivas, mas a lei diz quando uma tarefa è assumida como tal e até onde pode ir a Administração Pública na efectivação do interesse colectivo que subjaz a essa definição material do campo de intervenção pública.

Em geral, sem efectivar cortes para o seu estudo parcelar, por partes, podemos definir a Administração Pública como o sistema de órgãos, serviços e agentes, integrados em pessoas colectivas, sejam de de direito público ou privado, que desempenham tarefas da Função Administrativa do Estado, designadamente de promoção de desenvolvimento económico-social e em geral de todas que traduzam a satisfação permanente das necessidades colectivas, enquadradas por normas legitimadoras e balizadoras de intervenção pública em razão do interesse colectivo, sob a direcção, orientação ou fiscalização do poder político e sujeitos ao

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controlo do parlamento e de entidades administrativas independentes e, em última instância, dos tribunais.

*

Como se refere a propósito da querela sobre o critério definidor do Direito Administrativo, a noção de serviço público só é operativa na medida em que esteja ligada à ideia de função administrativa do Estado (em sentido amplo de função dos poderes administrativos existentes dentro de um Estado, e não de administração estadual, que é apenas uma das Administração Pública que realizam essa função).

De qualquer modo, esta noção tem um conteúdo mais restrito do que a de Função Administrativa, que não se vê interesse em ampliar.

É esta noção de Função Administrativa que identifica a organização administrativa ou a Administração em sentido orgânico.

Mas, então, tanto há actividades da

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Função Administrativa, designadamente de serviços públicos, desenvolvidos por entidades de Direito Administrativo, como há serviços públicos a serem desenvolvidos por entidades criadas ao abrigo de normas de direito privado, com capitais e gestão nas mãos da Administração Pública ou nas mãos de particulares, sem que, pelo menos, na concepção dominante a esta actividade materialmente integrada na função administrativa do Estado corresponda um serviço organicamente administrativo, ou seja, um serviço público em termos de organização administrativa, ou seja, sendo serviços públicos, não são serviços públicos administrativos.

Mas como é possível que a teoria da «actividade material e organicamente administrativa» (no caso da Administração Estadual, desenvolvida por entidades subordinadas ao governo, salvo as excepções assumidas como tais, referentes às Entidades Administrativas Independentes) como critério de localização material de uma Função Administrativa do Estado em face de actividades também materialmente administrativas do Parlamento e dos Tribunais, seja depois

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contrariada, por uma tese segundo a qual a actividade de uma entidade que prossegue essa actividade integrável na função administrativa, isto é, materialmente e organicamente administrativa já não é organicamente administrativa, por não se considerar essa entidade da organização administrativa.

E se for de direito privado, com capitais e gestão pública, isto é, pertença e gestão de representante da Administração Pública, também não seria organicamente administrativa, mesmo que desempenhe uma tarefa da função administrativa do Estado.

Só porque são constituídas ao abrigo do direito privado, dada a irrelevância da propriedade dos capitais e da gerência, o que traduz uma transformação ao nível do «processual» ou instrumental, e portanto sem dignidade ôntica (de elemento definitório, elemento essencial das coisas).

Por isso, importa perguntar se uma pessoa colectiva de direito público, sem desempenhar nenhuma tarefa da função administrativa, não desenvolvendo um serviço público, como acontece com uma

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empresa pública, v.g., de cervejas, em concorrência com muitas outras privadas, desempenhando exactamente o mesmo papel produtor na sociedade, deve ser considerada como integrando organicamente a Administração Pública?

Tal construção é errada. Uma coisa é ser classificada como empresa pública, no sentido de direito público ou de direito privado pertencente à Administração em que esta tem influência dominante, outra é desempenhar tarefa administrativa e integrar a Função Administrativa.

Não se toma em consideração a distinção entre organizações realizando um serviço público sob uma opção de forma empresarial e uma empresa existente apenas com base numa simples justificação de interesse público, justificação constitucional suficiente par a iniciativa económica pública (v.g. interesse social de manutenção de postos de trabalho, que não pode ter o condão de transformar a natureza das coisas, dando à actividade anterior, exactamente a mesma do período da propriedade privada, a natureza de actividade da função administrativa).

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Ora, a Administração Pública, por vezes, tem, é proprietária de organizações de carácter económico, estruturadas por isso em empresas, criadas ao abrigo de direito público (pessoas colectivas públicas de regime jurídico misto) ou de direito privado (por vezes, com uma mobilidade de regime orgânico assente em puros critérios políticos, alheios ao Direito Administrativo).

Elas são empresas da Administração Pública, não são necessariamente Administração Pública, a menos que desempenhem em si um serviço público ou, em certo momento, contratem com Administração Pública a realização de tarefas públicas, como qualquer outra empresa de particulares o pode fazer (contratos de concessão de serviço público, obras públicas e bens do domínio público em empresas ou delegação de serviços públicos em entidades particulares sem fins lucrativos).

Mas, então, se, nestas condições, ou seja, se um particular desempenhar funções próprias da Administração pública, este, nessa medida, deve ser classificado como

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entidade organicamente administrativa. Ou seja, é organicamente

Administração pública quem desempenhe tyarefas administrativas do esatdo-Comunidade.

Também o são as entidades pertencentes a particulares, nas situações em que estas entidades particulares sejam de regime jurídico misto, ou seja, enquanto se trate de organizações que realizem fins públicos, sozinhas ou em concorrência com outras entidades da Administração Pública, aceitando submeter-se na sua actividade estatutária, pelo menos em parte, à aplicação do Direito Administrativo.

Elas contratam com uma dada pessoa colectiva pública a realização de serviço público, obra pública ou exploração de bem do domínio público, e, por isso, aplica-se-lhes activamente, como actores activo da função administrativa pública, o Direito Administrativo.

Há, pois, entidades da Administração Pública, de direito público ou privado, que não são Administração Pública e há entidades de particulares, tal como

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entidades de direito privado de Administrações Públicas, portanto umas e outras independentemente do direito ao abrigo do qual foram criadas, que o são.

Realce-se, pois, que há entidades da Administração Pública, criadas ao abrigo do direito privadas (ou objecto de transformação em sociedades comerciais a aprtir de empresas de direito público ou serviços da Administração) que são Administração Pública.

Tudo depende da verificação ou não do critério distintivo decisivo, que é o da prossecução ou não da Função Administrativa do Estado-Comunidade por parte das mesmas.

***

§12. OS ACTOS DAS ADMINISTRAÇÕES INSTRUMENTAIS DOS DIFERENTES ÓRGÃOS DE SOBERANIA, OS ACTOS DE ENTIDADES PRIVADAS NO EXERCÍCIO DE UMA TAREFA DA FUNÇÃO ADMINISTRATIVA E A APLICAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO

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Quando uma entidade pratica actos ao abrigo do direito administrativo, aí temos, normalmente, a competência jurisdicional dos tribunais do contencioso administrativo.

As entidades que aplicam ou podem aplicar aos seus actos o Direito Administrativo, são, pela sua natureza, as que exercem a função administrativa do Estado-Comunidade (independentemente da sua fórmula jurídica de criação ou ligação patrimonial). Mas, por previsão legal expressa, e dada a natureza de actos semelhantes, materialmente administrativos, as administrações que servem os outros órgãos de soberania, realizadores da função legislativa, da função moderadora e da função jurisdicional, estão sujeitas também ao direito administrativo.

Todos os seus actos materialmente administrativos estão sujeitos ao controlo provocado dos tribunais do contencioso administrativo, a menos que se esteja face a actos ditos governamentais, políticos ou constitucionais, em que ocorra um processo doutrinal-jurisprudencial de comutação de qualidade, para permitir que eles escapem

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ao controlo jurisdicional, ficando assim residualmente fora do Estado de Direito.

A aplicação do direito administrativo por uma categoria «especial» de tribunais, os tribunais da jurisdição administrativa, deve-se ao facto de estes estarem especializados na aplicação de tal ramo de direito, cuja complexidade o poder legislativo tem continuado a assumir como razão para a sua não integração na jurisdição judicial comum.

Assim, em regra (tendencialmente, se a lei nada disser em cointrário, dado que o legislador, nalgumas casos, prevê uma solução diferente) para se saber qual a jurisdição competente basta identificar o direito aplicável ao caso, pois a um tal direito corresponderá uma dada jurisdição.

E estas entidades não integrantes dos serviços da Administração Pública, ligadas a outros órgãos de soberania (que não o governo, outras pessoas colectivas infra-estaduais ou entidades de direito privado e regime jurídico misto, quais sejam as entidades particulares de interesse ou utilidade pública, quer de fim lucrativo –empresas ou sociedades de interesse

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colectivo – quer sem fim lucrativo –colectividades de interesse público, sejam pessoas colectivas de mero interesse público, instituições particulares de solidariedade social ou pessoas colectivas de utilidade pública administrativa), embora alheios à função administrativa, aplicam o direito administrativo em relação às actividades ligadas ao seu funcionamento administrativo, apesar, pois, de não serem uma Administração Pública no sentido do direito administrativo, ou seja, não exercerem a função administrativa do Estado.

E isto apenas porque o legislador entende que tais organizações implicam o mesmo tipo de questões na sua gestão, pelo que impõe que assim seja.

Tal deve-se, pois, apenas ao facto de as normas de direito administrativo serem normas tidas como ajustadas ao tipo de actos que essas entidades praticam, e não por terem algo que ver com a Administração Pública.

As primeiras entidades referidas, que exercem tarefas de Administração Pública, aplicam-no porque ele existe para isso.

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Mas, como nem sempre são obrigadas a aplicá-lo, podendo em muitas situações aplicar direito privado (actuando em gestão privada), por isso mesmo só estão sujeitas à especializada jurisdição administrativa apenas na medida em que tal é necessário, ou seja, na medida em que o apliquem, ou seja, actuem em gestão pública.

Portanto, os actos sujeitos à jurisdição administrativa, todos de natureza administrativa e de administrações diferentes, são de duas categorias genéticas: os das organizações administrativas desempenhando a Função Administrativa e os das administrações de suporte ao Presidente da República, Parlamento e Tribunais.

E, como se disse, também não há uma solução diferente para arrumar a disciplina de matérias que estão já arrumadas: os actos das administrações particulares desempenhando a Função Administrativa.

Não há três categorias genéticas de actos sujeitos à jurisdição administrativa: os (apenas) materialmente administrativos, das entidades que não realizam a função

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administrativa do Estado (Assembleia da República e Tribunais), os materialmente administrativos das entidades que realizam a função administrativa do Estado com excepção das constituídas ao abrigo do direito privado e os das entidades privadas que realizam, também, a título derivado ou admitido, uma dada função administrativa do Estado, que não seriam nem actos materialmente administrativos do Estado (porque os únicos que o seriam, seriam os praticados por uma entidade dependente de um orgão de soberania: Governo -ou outras entidades da Administração Pública autónomas ou independentes deste, criadas ao abrigo de direito público-, Assembleia da República ou Tribunais) nem organicamente administrativos do Estado (porque não praticados por uma organização de direito público). Tal doutrina seria de todo inconsistente.

Desempenhando uma tarefa do Estado, praticam actos materialmente de natureza administrativa: uns visam a satisfação de necessidades colectivas consideradas por lei como próprios de Administração Pública, outros estão ao serviço das necessidades instrumentais de outros poderes, realizadores de

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necessidades e interesses cuja concretização não tem que ver com a Administração Pública. E os actos de administração pública das entidades particulares integram-se na primeira categoria.

Os actos das entidades públicas que não praticam actos materialmente administrativos (como as empresas públicas de direito público mas de natureza meramente económica), as quais também não estão ligados ao exercício directo do poder legislativo ou judicial, não praticam actos de Estado e por isso, mesmo sendo do Estado, propriedade deste ou doutra entidade administrativa menor, não realizam uma função do Estado.

Estão fora deste debate sobre a aplicação do direito administrativo (apesar de constituídas, organizadas, sob o regime de direito administrativo e só neste aspecto orgânico não indiferentes ao direito administrativo).

As empresas de direito público ou privado, pertencentes às Administração Pública que pratiquem actos de direito civil ou comercial sem qualquer ligação à realização de uma tarefa de serviço público,

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não desempenhando obviamente funções de nenhum dos poderes do Estado, e, designadamente, não as desempenham do poder administrativo, portanto não são organicamente administrativas, pois os seus actos são indiferentes à organização da Função Administrativa e ao Direito Administrativo.

Mesmo aos actos materialmente administrativos de entidades organicamente administrativas regulados pelo direito privado é aplicável a teoria do direito privado administrativo, ou melhor, administrativizado, pela imposição constitucional64 de respeito obrigatório dos princípios constitucionais e gerais de direito administrativo (isto é, nos termos constitucionais que se referem à sua aplicação em geral, pelas Administrações Públicas, sem distinguir a actuação em gestão pública ou privada e o nº5 do artigo 2º do CPA que o concretiza).

A definição tradicional e primeira de

64 N.º 2 do artigo 266.º da CRP: «Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé».

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direito administrativo afirmava que ele era o direito da Administração Pública, ou seja, um direito estatutário de uma organização de natureza diferente das organizações privadas (independentemente dos esforços de redução à unidade, em termos de técnicas de organização e métodos de gestão, presente nalguns estudos da Ciência da Administração).

Esta definição, ainda hoje adoptada em certos meios doutrinais estrangeiros, embora criticada em geral pela doutrina nacional, a partir de considerações obre a relaidade da Administração pública e da sua abertura ao direito privado.

Hoje, para o direito administrativo, que, em parte, também é direito orgânico, a Administração Pública, acima de tudo, são pessoas jurídicas, congregando órgãos que dirigem serviços administrativos, e que dispõem deste ramo do direito específico, diferente do direito privado, mas que não contém só uma disciplina privilegiadora da sua posição, mas também normas mais favoráveis para os particulares em certos tipos de contratos (normas sobre a revisão do preço contratado) e, em geral, dispondo

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de técnicas garantísticas dos cidadãos. E, além do direito administrativo, a

Administração Pública deve aplicar, em dados momentos, sobre certas matérias, só direito privado (início de procedimentos de aquisição de bens imóveis, que segue via amigável, obrigatoriamente sujeita a normas privadas, e no regime de enquadramento do património privado) ou, desde logo, o podem aplicar no âmbito organizacional e mesmo, em geral, quando a lei ou a natureza da actividade não obrigue a aplicar o Direito Administrativo, sem da aplicação deste, pelo menos, numa dada fase da gestão administrativa (decisão de contratar, autorização de despesa, abertura de concurso público, adjudicação do contrato na fase pré-contratual privada), aqui como ali sempre com respeito dos princípios constitucionais e gerais da actividade administrativa, ou seja, em termos de direito administrativo ou direito privado administrativizado.

Será que estas várias direcções do direito administrativo, nem sempre orientadas à defesa das posições da Administração e a possibilidade dela aplicar também direito privado é suficiente para

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excluir esta tese do caráceter estatutário do direito administrativo? Seguramente que o tem pelo menos em parte?.

***

Mas o enquadramento do actual direito administrativo é fruto de uma longa evolução.

Há várias fases em cerca de dois séculos de história da elaboração dogmática do direito administrativo, em que a partir das suas normas a questão da definição da Administração Pública foi tendo um lugar central.

Primeiro, a Administração Pública foi tida como um dos Poderes do Estado. Num primeiro momento, desde a Revolução Francesa (altura em que começa a elaboração do direito administrativo moderno) até meados do século XIX, ela é concebida como um dos poderes orgânicos do Estado, de acordo com a Teoria da Separação dos Poderes. É o Poder Executivo.

Depois, a Administração Pública foi considerada como Função Administrativa.

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Na primeira metade do século XIX (por influência da pandectística alemã) o Estado, globalmente considerado, passa a ser objecto de personalização jurídica, base da construção do Direito Público, o que vai levar a considerar a Administração Pública como uma (a de administrar) das várias funções gerais do Estado-pessoa jurídica.

E então o que é administrar? O que é a Função Administrativa? O que é a Administração Pública? Qual a ontologia da Administração Pública?

Os autores foram dando formulações positivas ou negativas, renunciando a uma explicação uniforme da sua especificidade material, em face da crise da noção de serviço público, após a segunda grande guerra.

A Função Administrativa seria:- acção, diferentemente da Função

legislativa e Judicial, que é declaração do direito a todos os casos teoricamente subsumíveis ou a um dado caso real;

- actividade criadora de decisões individuais e concretas (actos singulares e concretos, ou actos administrativos);

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- actuação organizada;- actividade de conformação social;- gestão dos serviços públicos;- actividade com recurso a poderes de

autoridade;- actos-condição;- acto subjectivo (DUGUIT);- actuação executória;-complexo residual, sem unidade

material, de actuações analisáveis em funções e competências heterogéneas, de origem histórica ligadas ao Estado de Polícia, do Antigo Regime, não decompostas e entregues a outros poderes do Estado, distintas de legislar e julgar (OTTO MAYER e a escola alemã, CPA dos EUA de 1946, etc.);

- actividade com aplicação da «cláusula exorbitante» do direito privado (os direitos do príncipe absoluto eram tidos como exorbitant a jure commune) estabelecendo os privilégios do Estado (e às vezes as desvantagens, com privilégios até para os administrados).

Há que reconhecer que a Administrativa Pública é um conjunto de entidades, independentemente do regime jurídico da sua constituição, prosseguindo

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uma função, em parte executiva, mas também em grande parte apenas densificável pelo legislador, congregando um conjunto de matérias sem unidade substantiva própria, comungando materialmente das características das funções legislativa (criação de normas jurídicas: os regulamentos) e jurisdicionais (tarefas sancionatórias, etc.), que ultrapassa em muito as tarefas executivas das leis e que melhor se designará como Função Administrativa, a que corresponderá organicamente um Poder Administrativo, em geral subordinado a órgãos políticos e ao ordenamento jurídico, e aplicando em geral um ramo específico do direito, o Direito Administrativo, sem prejuízo do recurso a normas de direito privado (civil ou comercial), quando o legislador ou a natureza da actividade não o impeça.

***

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§13. OS RAMOS DO DIREITO E O DIREITO ADMINISTRATIVO COMO RAMO DO DIREITO PÚBLICO. A MACRODISTINÇÃO ENTRE DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO

Esta divisão do direito em ramos tem sentido numa perspectiva de divisão de matérias, desde logo para efeitos de estudo, efeitos didácticos, ensino, pedagógicos e até para efeitos do estudo de investigação em domínios mais abarcáveis, por quem faz, na medida em que o estudo conjunto incindível de todo o conjunto de normas que formam parte do direito aplicável num país, não é só o direito criado nesse país, seria algo sobre humano.

Mas, em certas situações, revela-se importante em face da especialização do sistema jurisdicional, quer no plano judiciário quer processual (tribunais administrativos e direito processual nos tribunais administrativos, tribunais fiscais e direito processual tributário, tribunal

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constitucional e respectivo processo, direito laboral e direito processual do trabalho, tribunais de comércio, etc.).

*

Fora das exigências impostas por necessidades racionalizadoras de funcionamento do sistemas jurídico, serão razões ou de ordem científica ou meramente de ordem prática, que levam a que se proceda, desde logo nos estudos nas universidades, mas também nos estudos de aprofundamento dos estudiosos, dos investigadores e, muitas vezes, até pelos aplicadores do direito, a que proceda a esta divisão.

Em termos de grandes divisões de todo o direito aplicável em Portugal e nos vário países, digamos que há especificidades que nos são bem comuns com países de União Europeia, embora haja sempre áreas como o direito internacional que é aplicável, em principio, em todos os países do mundo.

Mas pode haver matérias do direito internacional que são regionais, o direito europeu, por exemplo, já não se aplica nos

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países Americanos ou Asiáticos.

As grandes divisões, poder-se-á dizer que umas segundo o critério das suas fontes criadoras, porque todos estes ramos são aplicáveis em Portugal, mas, em função das fontes criadoras nacionais e acima do nosso país, podemos fazer esta grande divisão, daquilo que é o direito supra nacional e o direito nacional.

Direito nacional é aquele que é criado por instituições que estão fora do estado Português, e que no fundo têm uma posição supra ordenadora no plano normativo, estão acima do Estado.

Teremos, depois, uma divisão, já do direito português com um outro critério, o critério material, e aqui a grande divisão entre direito público começa por ser entre direito público e direito privado no caso português, nos países anglo-saxónicos esta divisão nem sequer existe, todos os tribunais julgam tudo, não tribunais administrativos, são os tribunais comuns que julgam todas as matérias.

Mas, no caso europeu continental, em

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que nos integramos, esta grande divisão interessa excepcionalmente, porque tem repercussões, em vários domínios de natureza legislativa.

*

Todo o direito aplicável em Portugal ou por Portugal, sofre uma grande divisão, entre o direito de origem supranacional e o direito de criação nacional.

O direito supranacional é aquele que é criado por instâncias que estão acima do Estado. Este também participará, mas é criado na sociedade internacional.

E, desde logo, temos o direito internacional público, e, também, normas criadas nas Instituições da EU. E temos aqui o direito da EU, que comummente tem vindo a ser designado como direito comunitário (direito comunitário europeu).

Esta grande divisão tem um interesse no que diz respeito à fixação das jurisdições de resolução de conflitos: o tribunal internacional de Haia ou arbitragem internacional e o Tribunal de Justiça da união Europeia, que conta hoje com uma Primeira Instância, sem prejuízo dos tribunais nacionais integrarem este

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complexo jurisdicional, obrigados como estão a aplicar o direito de fonte Comunitária Europeia.

Mas, independentemente de o direito ser de fonte nacional ou supranacional, temos uma macrodivisão, que já vem do tempo do Direito Romano, entre o direito público e o direito privado.

No entanto, esta divisão não aponta propriamente para ramos de direito.

Ela vai permitir que se faça uma divisão em ramos de direito público e ramos do direito privado.

Mas, previamente, coloca-se, naturalmente, a questão das fronteiras, ou seja, da distinção entre direito público e direito privado, que não são ramos temáticos mas áreas de agregação de ramos com fins variados, especialmente judiciários.

Elas são, pois, duas grandes agregações do direito, dentro das quais há ramos a integrar conforme a respectiva classificação for de direito público ou de direito privado.

E, às vezes, há ramos materiais de

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direito que, por integrarem normas de uma e outra divisão, importa catalogar como ramos de direito eclético ou misto, o que, portanto, já tem que ver com o facto de uma matéria ter simultaneamente normas do direito público e de direito privado.

*

Começando por arrumar mentalmente esta grande distinção do direito nacional, podemos dizer que ela também aparece e pode ser detectada em parte em termos de direito Internacional e de direito da União Europeia.

Ali temos, v.g., normas mercantis, aqui encontramos normas sobre sociedades, sobre concorrência no plano da boa fé (que não são normas públicas de defesa do mercado, enquanto instituição pública), normas também do direito privado e criadas a nível da União Europeia.

O resto ou são normas de organização da UE, as suas normas constitucionais, tratando dos órgãos e seu funcionamento, ou são normas do direito administrativo, que somam a maioria do direito da União, tal como acontece com as do direito internacional público.

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Vamos tentar ver como é que, doutrinalmente, pode ser enquadrada esta divisão.

Como podemos ter um critério que nos permita encaixar num domínio do direito público certas normas e no domínio do privado, outras, com implicações variadas, critérios de interpretação, preenchimento de lacunas?

Quais os juízes, os tribunais competentes para decidir nessa matéria, etc. etc.

Costumam ser apontados dois critérios.

Eu apontaria quatro, o que, na minha maneira de ver, resolve melhor esta macrodistinção.

Vejamos. O grande critério histórico, nascido no tempo dos romanos, expresso pelo grande Jurisconsulto ULPIANO, que faz essa distinção: é o critério dos interesses.

Em Portugal, ele foi seguido por um grande administrativista do século passado, o professor MARCELO CAETANO, o critério dos interesses envolvidos.

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Dizia ULPIANO que “Publicum jus est quod statum rei romanae spectat; privatum, quod ad singulorum utilitatem pertinet”. Portanto, segundo ULPIANO, o direito público protege os interesses públicos do Estado, e o direito privado protege, disciplina, os interesses que são privados, os interesses dos cidadãos.

Um primeiro critério, bem assente na história, ainda hoje será o que colhe a maioria da doutrina pública e privada, designadamente em Portugal: é o critério do interesse prosseguido pela norma.

O que importa começar por referir, é que este critério tem muito de verdade: este critério é, em geral, em princípio, correcto. E, por isso mesmo, tem sido considerado adequado, na doutrina em geral, que o colhe e o constrói a partir da grande maioria dos casos e na grande maioria das normas analisadas. V.g., no caso das normas administrativas sobre Câmaras Municipais, das normas constitucionais sobre o Presidente de República, das normas penais (sobre criminalidade), das normas fiscais (sobre impostos), etc., tidas como não

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integrando o direito privado, o critério revela-se correcto, adequado.

Mas acontece que há casos em que o critério falha, o que significa que não é um critério de valor absoluto.

Ora, quando um critério necessita de ser colmatado, completado, é insuficiente. E quando, gritantemente, ofende um conjunto significativo de casos, importa mesmo alterá-lo.

E acontece que se constata que há interesses particulares que acabam por não ser defendidos por normas de direito privado.

O direito processual civil é composto de normas de direito público e, no entanto, destina-se a regular os conflitos que correm nos tribunais e que têm que ver com particulares, visando dirimir esse conflito e evitar a vindicta privada ou evitar a resolução privada, à base da lei do mais forte.

As suas normas são normas do direito público de grande interesse para a aplicação da justiça na sociedade, que é um

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dos grandes fins do Direito. Ligam-se ao interesse em manter a

paz social, que é um interesse eminentemente público, o qual levou à construção das normas judiciárias e processuais, ou seja, normas sobre os tribunais, sobre instâncias imparciais de resolução de conflitos, roubando a sua resolução, meramente, às partes e impondo-a entre privados. E, no entanto, são normas do direito público.

Assim, como há normas em codificações de direito privado, que se impõem na esfera meramente privada dos particulares, mas que são normas que mexem fortemente com o interesse público, e, no entanto, não deixam, por isso, de ser de direito privado65. Ou seja, há, aqui, algo que ultrapassa a pura dinâmica dum interesse privado, e, no entanto, as normas consideram-se normas de direito privado.

Há outras normas, que são,

65 V.g., as regras do direito civil que visam proteger os interesses dos filhos menores, em caso de separação ou divórcio dos pais; as normas de direito civil que dizem que o Estado é o sucessor da herança de alguém no caso de não haver herdeiros; e, até mesmo, as normas do direito civil que, em Portugal, impõem a legítima, para que os titulares de bens não possam deserdar completamente os seus filhos.

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simultaneamente de interesse e ordem pública ou de interesse privado e ordem pública, o que levou alguma doutrina a construir um novo critério, o critério do sujeito das relações jurídicas.

Com efeito, uma certa doutrina abandonou o critério do interesse, na medida em que ele não resolve, e, portanto, não tem valor científico. E, por isso, avança-se com este critério do sujeito.

Segundo ela, as normas serão do direito público se disciplinam relações jurídicas que se estabelecem entre sujeitos, em que ambos ou, pelo menos um, são sujeitos do direito público, o Estado, as autarquias, as entidades de Administração indirecta, Regiões, Municípios, etc..

E, nesta perspectiva, seriam, então, normas de direito privado aquelas em que ambos os sujeitos da relação jurídica fossem sujeitos privados. Se ambos os sujeitos são sujeitos de direito privado as normas que eles aplicam são de direito privado, mas se ambos, ou um deles, forem sujeitos de direito público, então as normas aplicáveis nas suas relações são de direito público.

Este critério, avançado por alguma

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doutrina mais recente, é um critério que é correcto num grande número de casos, mas também ele falha, porque há casos em que ele não é verdadeiro.

Com efeito, há situações em que o Estado ou outras entidades públicas infra-estuduais decidem, apesar de os sujeitos serem de direito público ou um deles o ser, ao abrigo de normas do direito civil.

Significa isto que, apesar de serem entidades públicas, ou, pelo menos, uma é-o, no entanto, a norma reguladora da sua actuação é de direito privado, seja de direito comercial, seja civil. Há, pois, aqui uma excepção neste sentido.

E há casos em que ambos os sujeitos de uma relação jurídica de direito público são também meramente particulares, como acontece quando uma entidade exploradora de uma auto-estrada é uma entidade do direito privado concessionada, seja propriedade do Estado ou não. Neste caso nem sequer sendo uma empresa legalmente classificável como entidade pública de direito privado.

Com efeito, mesmo que o Estado ainda tenha participação no capital das sociedades de direito comercial, elas além da

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comparticipação pública nos capitais (conjuntamente com capitais privados e até estrangeiros), são sociedades anónimas, de direito privado, tenham capitais públicos ou não.

Do outro lado, estão utentes, que são cidadãos, e, no entanto, as auto-estradas são bens de direito público, e o direito aplicável, os seus regulamentos, são públicos.

O mesmo acontece com, v.g., uma universidade privada, que é uma entidade de direito privado ou cooperativo, e os estudantes são obviamente sujeitos privados; mas a relação estabelecida entre estudante e a universidade, no que toca ao ensino, desde que ela seja reconhecida pelo Estado para dar cursos, de utilidade pública, é de direito público, aplicando-se-lhe o direito administrativo e não o privado. Há aqui entidades do direito privado dos dois lados, mas acontece que, se uma delas estiver no exercício da Função Administrativa do Estado, o critério já não tem sentido, falha.

Em face disto, não pode aceitar-se, cientificamente, nem o critério do interesse, nem o do sujeito da relação jurídica.

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Perguntar-se-á: será aceitável um critério complexo, em que a distinção fundamental entre o direito público e o privado assente numa combinação dos dois critérios: o critério do interesse com o critério da qualidade do sujeito.

FEITAS DO AMARAL, referindo que defende esta solução, afirma que ela é combinada, mas acaba, de facto, por se afastar e bem da qualidade jurídica da entidade interveniente, dando um sentido diferente ao critério do sujeito, ao fazer apelo à qualidade da intervenção e não do actor, à qualidade em que a entidade age, com recurso ou não a poderes de autoridade, independentemente da qualidade de entidade pública ou privada que se tenha.

Com isto não afasta as entidades privadas que exerçam poderes públicos.

Com efeito, importa esclarecer que, na aplicação do direito público, até podem estar implicadas duas entidades privadas, uma delas exercendo uma tarefa da Função Administrativa do Estado-Comunidade, à base de um contracto de concessão, o que também põe em causa o critério do sujeito,

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mas não o da qualidade interventiva, apenas dependente de um deles intervir ou não com recurso a poderes de autoridade.

Sendo assim, se uma autoridade de direito público não exerce o poder de autoridade, admitindo que isto lhe dá uma qualidade interventiva que já não seria do direito público, também é possível que a relação se passe entre duas entidades de direito privado, em que uma delas exerce a função administrativa, não usando poderes de autoridade.

Pode exercer tarefas de interesse público sem usar poderes de autoridade, pois, tal como um sujeito de direito público pode não usar poderes de autoridade, também um sujeito de direito privado, no exercício de uma função pública, pode não usar poderes de autoridade. Isto é, ou usa normalmente direito Administrativo ou usa direito privado.

Ou seja, mesmo quando uma entidade pública recorre ao direito administrativo, ou quando uma autoridade privada, no exercício de uma função administrativa, é concessionário de um serviço público, de um serviço público ou da exploração de um bem público, e, por isso, está no exercício de

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uma função administrativa pública; essa entidade pode não recorrer aos tais poderes de autoridade.

Mas, além disso, importa ainda esclarecer que, seja ela de direito privado ou público, ao recorrer ao direito privado nunca estará a aplicar o mero direito privado, ou seja, um regime normativo igual àquele a que recorrem os cidadãos, porque há uma norma na Constituição que diz que toda a entidade, que exerça funções administrativas públicas, tem que respeitar o princípio da igualdade, o princípio da imparcialidade, o princípio da proporcionalidade, o princípio da justiça, da boa fé, etc., isto é, tem que aplicar os vários princípios que são fundamentais no desenvolver da actividade da Administração pública.

Isto significa que, mesmo quando uma entidade, no exercício da função administrativa, aplica o direito privado ela não o aplica da mesma maneira que uma empresa privada.

Um empresário privado, ao aplicar o direito privado, pode escolher e contratar para seu director ou para um quadro da sua

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empresa o seu filho, primo, pai, quem ele quiser, já que a empresa é dele. Se contrata alguém sem mérito, sem experiência ou sem capacidade, o prejuízo será dele.

O Estado não pertence aos seus dirigentes, que são meros representantes e actores na prossecução do interesse colectivo e, por isso, mesmo agindo em direito privado, não o podem fazer na qualidade de privados, que não assumem, v.g., contratando trabalhadores em direito privado sem qualquer limite em termos de quantidade ou qualidade. No mínimo ter-se-á que fazer preceder esse acto de um processo objectivo, simplificado que seja, de selecção, um processo de escolha que respeite o princípio da igualdade e o do mérito.

O Estado tem de dar hipóteses de emprego a todos os cidadãos em condições de igualdade, ou seja, respeitando o princípio da igualdade e da imparcialidade, enquanto uma empresa privada, em princípio, pode tratar de modo desigual os pretendentes a emprego, os seus compradores de bens ou utilizadores de serviços, respondendo apenas perante os

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seus fornecedores ou trabalhadores quando desrespeitem as normas legais ou contratuais que envolvem a relação comercial ou laboral.

Pode, v.g., se assim o entender, vender a um preço mais caro a um comprador do que a outro. O que não pode é deixar de pagar aos fornecedores o que compre, aos trabalhadores a remuneração mensal ou aos prestadores de serviços o valor acordados por estes

O direito privado, quando aplicado por uma entidade que desempenha a função administrativa, é um direito privado administrativizado.

Em face disto, podemos aceitar o critério resultante do tipo da função exercida por um dos sujeitos da relação jurídica e da natureza dos interesses protegidos. Isto é, não importa se uma entidade tem em si mesma uma dada qualidade.

A qualidade do sujeito, se é do direito público, criado ao abrigo do direito público ou do direito privado, não é isso que lhe dá qualidade diferente ao direito que usa. Nem mesmo o facto de aplicar ou não poderes de

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autoridade. O Estado não deixa de ser Estado por aplicar o direito privado e não exercer poderes de autoridade.

De qualquer modo, a distinção só pode passar por um critério misto, seja o do tipo da função exercida por um dos sujeitos da relação jurídica ligada à natureza dos interesses envolvidos, dos interesses a proteger, ou outra tida como mais correcta.

O critério dos interesses, conjugado com o da qualidade da intervenção, com poderes ou não de autoridade, parece só formalmente ser um critério misto, pois o recurso a poderes de autoridade pública só é concebível por parte de entidade no interesse público, no desempenho de «funções administrativas públicas, pelo que se reduz de facto a um critério unicitário, que dispensa a invocação do elemento de interesse público, que lhe é ínsito.

Podem ser interesses públicos da colectividade, a defender por entidades públicas, ou podem ser, até, interesses desta ordem a defender normalmente por privados, interesses colectivos e difusos, como os da defesa do ambiente, do

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urbanismo, do ordenamento do território, defesa do património cultural, defesa de bens do domínio público, que nunca utilizaram poderes de autoridade e, no entanto, aplicam direito pública etc..

O que mostra que o critério, mais do que cumulado, combinado, seria alternativo: nuns casos -basta o interesse público a realizar-, e pode até não coincidir com a existência de poderes de autoridades; e, noutros, coincidem ambos os elementos.

No fundo há que fazer intervir ou o critério da natureza do interesse a proteger (que podem ser públicos, difusos ou colectivos de base territorial), ou o critério da função pública exercida juntamente com a qualidade em que o sujeito intervém, sem prejuízo de haver situações de cumulação destes elementos, o que, de qualquer modo, não ocorre sempre.

A questão do interesse, parece-me, realmente, completamente inultrapassável.

Não pode deixar de ser chamada à colação, contrariamente àqueles que defendem o mero critério do sujeito.

Mas, o critério do interesse sozinho

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não resolve muitas das situações, o que explica a sua contestação por uma parte da doutrina, que se virou para o critério do sujeito.

No entanto, se o critério do sujeito tem algum sentido é numa formulação que, tendo que ver com o sujeito de direito público ou privado, também não deixe de ligar, não propriamente à qualidade do sujeito, mas ao tipo de intervenção a que recorre, com exercício ou não dos poderes públicos, o que não muda a qualidade do sujeito.

É o tipo da função exercida, qualquer que seja a qualidade do sujeito, que é um elemento decisivo.

Ou seja, mais do que a questão do sujeito, é o tipo da função exercida por um qualquer sujeito que conta.

Aqui, no fundo, desvaloriza-se o critério do sujeito, na medida em que o sujeito apenas decide sobre os poderes que pretende ou não usar, mas os poderes não se confundem com o sujeito.

Mas se se preferir, dir-se-ia que, no fundo, atende-se à qualidade em que o

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sujeito público ou privado intervém em cada relação jurídica.

E diz-se que, se o Estado ou um ente público menor, um outro ente administrativo, intervém em dada relação dotado de poderes de autoridade sobre os particulares, numa posição de supremacia jurídica, quanto a eles, aí temos direito público.

Mas se o Estado, ou uma outra entidade, intervém em dada relação sem poderes de autoridade, isto é, com recurso ao direito privado, aí temos um critério que, no fundo, não fica em causa, na medida em que ele não intervém na qualidade de ente público, não intervém numa qualidade de titular de poder de autoridade. Parece ser este o critério de Feitas do Amaral

É uma solução que evita as dificuldades dos critérios anteriores, mas, de qualquer modo, analisando esta construção teórica, importa esclarecer que, mesmo quando um órgão da Administração Pública intervém em posição de mero recurso ao direito privado, não despe totalmente a suas vestes públicas.

Se assim fosse, porque existem condicionantes, consequências e

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particularidades, que sempre acompanham a sua actuação, mesmo agindo em gestão privada? V.g., existe, por imposição do direito administrativo, o direito de reversão de um bem imóvel adquirido em processo contratual amigável em qualquer cartório entre uma Administração e um proprietário, que evitou uma expropriação jurisdicional, se depois o bem ficar sem utilização no período de dosi anos ou não for utilizado para o fim enunciado? Com um outro adquirente tal não teria sentido.

E porque deveria, então, aplicar-se sempre os princípios públicos da actividade administrativa, nos termos impostos pela Constituição e pelo Código do Procedimento Administrativo?

No fundo, ente público é sempre. Mas não intervém dotado de poder de autoridade.

Não recorrendo ao direito administrativo, que lhe dá poderes especiais, lhe permite a imposição de soluções, então não interviria nessa qualidade, mas interviria como sujeito privado.

A Administração, mesmo agindo com

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recurso ao direito privado, não despe as vestes de entidade pública. Nunca será um actor a comportar-se em qualidade não pública.

Ou seja, nunca deixa de ter a qualidade pública e nem sequer intervém despido dessa qualidade

No entanto, parece-nos que sempre haveria que se corrigir a designação do critério, pois a qualidade dele não deixa de ser de direito público, a sua intervenção concreta é que não o seria a esse título estatutário.

E, então, deveria dizer-se que seria o critério combinado do interesse público com a qualidade concreta da intervenção do sujeito (e não dele enquanto tal), que prossegue tal interesse público.

Dito isto, vamos, então, dar a definição de direito público e de direito privado.

Poder-se-ia definir estes dois blocos do ordenamento jurídico segundo o critério do conferimento ou de poderes de autoridade, dizendo que o direito público é o conjunto de ramos jurídicos, que tendo em vista a

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prossecução do interesse colectivo, conferem para esse efeito, a um dos sujeitos da relação jurídica, poderes de autoridade sobre o outro?

Por um lado, o direito público não é um ramo de direito e o privado, também não.

São sub-conjuntos do ordenamento jurídico resultantes da agregação parcial dos ramos de direito, sendo certo que existem áreas ecléticas, cujo estudo global será incompleto sem a consideração conjunta de normas de direito público e normas de direito privado.

Por outro lado, a referência a poderes de autoridade também não parece totalmente correcta, por não ser decisiva na caracterização do exercício de todos os poderes públicos e do conjunto das normas do direito público; mas é usada nalguma doutrina para evitar o critério tradicional do interesse que é em si insuficiente ou optar por um critério meramente formal para fundar essa macrodistinção.

No fundo, trata-se de uma summa divisio, sendo certo que se não fossem

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preocupações de demarcação por exigência do direito judiciário, podíamos abstrair desta grande primeira divisão, em termos das divisões dos ramos de direito.

Ou seja, só a mantemos porque ela tem várias implicações na organização e poderes dos tribunais e sua jurisdição, os quais vão tratar diversificadamente, de imediato ou em última instância, os vários ramos materiais do direito, quer no caso português, quer doutros Estados da Europa Continental.

Feitas estas reservas, diria que:a)- o direito público deve ser

considerado como o conjunto de normas jurídicas que disciplinam directamente interesses de natureza pública e a organização e exercício de funções públicas exercidas com poderes de autoridade; e

b)- o direito privado é o conjunto de normas jurídicas que regulam a actividade intersubjectiva dos particulares (entre uns e outros), sem intervenção dos poderes públicos, e que, mesmo que integrem soluções no interesse público, o fazem sem recurso a poderes de autoridade pública.

No que diz respeito ao direito

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administrativo, este é um ramo do direito público. Vamos dar a sua definição.

***

§14.NOÇÃO DE DIREITO ADMINISTRATIVO

Caracterizada a Administração Pública como o conjunto de entidades, de direito público ou privado, exercendo tarefas segundo o direito público ou privado, que desempenham a Função Administrativa do Estado-Comunidade, passemos a problemática sobre a ontologia do direito administrativo.

O que é, então, o direito administrativo?

A procura de uma definição para o direito administrativo está ligada a escolas jurídicas que se foram afirmando em França:

- as escolas clássicas de LÉON DUGUIT (escola do serviço público) e MAURICE HAURIOU (escola do poder público);

- as doutrinas ecléticas de MARCEL

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WALINE e RENÉ CHAUS; e- a doutrina das base constitucional de

GEORGES VEDEL.

O direito administrativo cobre todas as áreas da vida da Administração Pública, dado que a existência das diferentes pessoas colectivas, órgãos, serviços e pessoal e a gestão dessas pessoas colectivas está sujeito ao princípio da submissão da Administração ao direito.

E quais são os princípios fundamentais do direito administrativo?

Quais os princípios essenciais que é possível retirar da massa imensa de normas jurídico-administrativas?

Os autores voltam, hoje, a tentar reconduzir todas as normas administrativas a uma unidade passando pela noção central, que serviria de critério identificador, do serviço público.

Noção que há muito entrara em crise, após o seu apogeu, no início do século XX, com a teorização de DUGUIT e JÈZE, a partir de certos Acórdãos do Conselho de Estado e Tribunal de Conflitos franceses.

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Nos seus termos, que hegemonizaram, pela sua simplicidade e operatividade, a jurisprudência e a doutrina da primeira metade do século passado, a diferença essencial entre a actividade pública e privada residiria no facto de a primeira estar consagrada à gestão de entidades desempenhando tarefas ligadas à satisfação do interesse geral (necessidades colectivas), ou seja, serviços públicos.

Isto levava a permitir a definição do Direito Administrativo como o direito dos serviços públicos, assim se separando os campos jurídicos e jurisdicionais: os serviços públicos marcam simultaneamente o conteúdo do Direito Administrativo (com as soluções que lhe são próprias, configuradas segundo uma razão de ser unificada pelas necessidades do serviço público), a fronteira do Direito Administrativo em face dos outros ramos do direito e a competência dos tribunais administrativos.

Acontece que a Administração Pública não se limita a gerir serviços públicos (v.g., quando exerce o poder regulamentar circunscritivo da actividade dos

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particulares, a chamada actividade de polícia), sendo certo que o direito administrativo tem uma função mais ampla do que aquela para que esse critério aponta, enquanto que, por outro lado, a gestão do serviço público não tem que utilizar apenas o direito administrativo, o que fazia já aparecer uma área tradicional de excepções ao princípio definidor do direito administrativo.

E acontece que, após a primeira guerra mundial, se acentuaram as mudanças económico-sociais superadoras da teoria liberal, que já vinham do século XIX, num desafio crescente ao aumento das tarefas administrativas, com a concomitante alteração do conceito de interesse público, a partir do fim desse século (deixando de integrar um número limitado de tarefas bem definidas, que aliás, em si mesmas, por razões de operacionalidade, já vão impor outro tipo de exigências para a sua realização eficaz, num fenómeno de extensão das tarefas clássicas), passando-se a um Estado intervencionista, Estado que vai proteger e incentivar empresas privadas ou mesmo controlá-las, devido ao perigo da sua interferência sobre o poder político, e

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também, depois, a ter serviços sociais (no Estado-providência), vai intervir na gestão da vida urbana, etc.

Esta ultrapassagem das tarefas tradicionais para um desenvolvimento de serviços económicos e sociais muda a natureza tradicional da actividade administrativa, que vai exigir novos instrumentos de acção e colocar em cheque a noção tradicional de serviço público.

O Estado, ao assumir actividades económicas, isto é, industriais e comerciais, com fins lucrativos e, por isso, desenvolvendo actividades da mesma natureza dos particulares, organizadas segundo um mesmo modelo estrutural e em concorrência com essas empresas privadas, vai ter de lhes aplicar o mesmo direito que elas (além do Fiscal, também o Direito Privado, quer o Civil quer o Comercial), hoje inelutavelmente por imperativo do Direito da União Europeia.

E vai ter de as sujeitar, também, na resolução dos conflitos relacionais, aos mesmos tribunais da jurisdição comum.

Elas escapam, portanto, ao direito administrativo, excepto as que, apesar de

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ter forma empresarial, sejam de índole política, realizando serviços públicos.

Ao mesmo tempo, o Estado confia certas funções públicas a entidades de direito privado, suas ou pertencentes a particulares.

E mesmo nos serviços tradicionais vai aplicando, cada vez mais, o direito privado em simultâneo com o direito administrativo.

Tudo revelando que o serviço público não tem de ser construído e gerido necessariamente com recurso ao direito da organização administrativa ou ao direito da actividade administrativa, ou seja, ao direito administrativo.

As entidades que desempenham a actividade administrativa agem ou em «gestão pública», assumindo o seu poder administrativo, ou em «gestão privada».

Daí a crise da concretização de uma noção unificadora do direito administrativo.

Em face disto, alguns autores, têm pugnado por outra construção:

RENÉ CHAPUS propôs aquilo que poderíamos chamar de uma concepção dual

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estruturada em dois círculos, continuando o critério fundamental do Direito Administrativo a estar ligado à noção de serviço público e o critério da competência da jurisdição administrativa a estar ligado ao exercício do poder administrativo.

Mas tal distinção não colheu o apoio da doutrina, que continuou à procura de um critério único.

E haverá outro princípio geral capaz de organizar sistematicamente o conjunto das normas jurídicas, a demarcar como Direito Administrativo, de modo a fugir a um critério dual, ou a critérios empíricos (critério da necessidade ou critério do voluntarismo, na afectação de privilégios ou na limitação de poderes) ou, pior ainda, a um critério sem critério, de afirmação de um puro existencialismo jurídico-administrativo, reduzindo-o a uma simples colecção de soluções de casuísmo legal, administrativo ou jurisprudencial?

Isto, sabendo-se que a Constituição portuguesa permite toda a iniciativa organizacional pública (mesmo de índole económica, embora com aplicação dos mesmo princípios comunitários da livre e

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leal concorrência), independentemente da realização de qualquer serviço público, mas pela simples invocação de um dado interesse público?

Será que a noção de interesse público ou a noção de utilização de «poder de autoridade» podem desempenhar este papel?

Em França, MARCEL WALINE, durante algum tempo, tentou defender a substituição da noção de serviço público pela noção de interesse geral, dado o facto de ela comandar toda a actividade da Administração Pública, mas os problemas introdutores da crise da noção de serviço público, voltam a afirmar a sua força destrutiva, dado que a generalidade dos serviços industriais e comerciais aplicam o princípio da gestão privada, precisamente por imperativo de interesse geral, nacional e Comunitário Europeu.

É, portanto, uma noção que comanda a aplicação de qualquer ramo do direito, questão puramente instrumental a objectivos que não são a ínsitos ao direito administrativo e que este aliás em certas

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situações até prejudicaria. Isto é, é precisamente o interesse pública a impedir a aplicação do direito administrativo, pelo que ela não pode caracterizar o direito administrativo.

A noção de poder de autoridade, combinada com a de poder executivo, foi objecto de elaboração (mas com um conteúdo redefinidor do conceito clássico de autoridade pública), desde a década de sessenta até princípios da de oitenta do século passado, por parte de VEDEL, na suas aulas, e, designadamente, num artigo intitulado «As bases constitucionais do direito administrativo».

Segundo esta tese, o direito administrativo seria o conjunto de normas autónomas aplicáveis à actividade administrativa com recuso à puissance publique.

Ou melhor, ele seria o direito comum do poder administrativo, englobando não só as prerrogativas da Administração, os poderes de autoridade, mas também as normas derrogatórias ao direito privado que caracterizam a acção administrativa.

Não é, portanto, uma concepção

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ligada aos poderes de autoridade da Administração Pública.

E, de tese em tese, vivemos, hoje, sem ter, ainda, descoberto o tal critério unificador do direito administrativo.

Alguns autores acreditam que será, ainda, na procura de uma teorização refundadora da, historicamente mais fecunda, noção de serviço público que este escopo poderá ser conseguido.

A noção de serviço público só é operativa na medida em que esteja ligada à ideia de Função Administrativa do Estado (Estado em sentido amplo de Estado-Comunidade, todos os poderes administrativos existentes dentro de um Estado, e não só de administração estadual, que é apenas uma das Administração Pública que realizam essa função).

Seria descaracterizar tal noção, tratando como um todo aquilo que apenas é parte. Mas deste tema trataremos posteriormente a propósito da Administração em sentido material.

As dificuldades sobre a definição e os

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critérios identificadores do direito administrativo e da repartição das competências jurisdicionais resultam da complexidade crescente da sociedade actual e da actividade administrativa que a segue e procura adaptar-se a ela.

É, pois, um fenómeno normal da sociedade moderna, nesta sua fase de evolução, acompanhando por vezes orientações de sentido diferente.

Há o reenquadramento de velhos problemas ou problemas novos que vêm trazer a alteração de técnicas jurídicas tradicionais (Administração sancionatória, acompanhando a tendência descriminalizadora de comportamentos sem dignidade penal; ou a Administração programadora e planificadora, v.g. planos administrativos no domínio da economia, ordenamento do território e urbanismo, com normas sem carácter geral, de tipo directivo -não executória nem puramente interpretativa-, de duração determinada, de aplicação diferida dada a sua natureza prospectiva) ou impor o recurso a novas modalidades de intervenção (administração incentivadora e de concertação) e

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simultaneamente inflexões neoliberais de liberalização de intervenções com prevalência de processos contratuais ou a reprivatização, acompanhando orientações de descomprometimento directo da Administração Pública designadamente na economia, mas não só, mexendo por vezes já com áreas tradicionais da grande administração, ligada a tarefas da soberania (com fugas ao direito administrativo que muitas vezes são fugas ao controlo público).

O direito administrativo é sempre chamado a absorver estes fenómenos, por que ele é um puro instrumento ao serviço da sociedade.

Ele impõe-se à sociedade, mas a sociedade também se impõe a ele, não o deixando sedimentar e ganhar a estabilidade suficiente para uma construção teórica que consiga perdurar.

***

Chegados a esta altura da exposição da matéria, já é possível dar uma noção de direito administrativo, em termos compreensíveis.

A que costumamos dar, mais ou menos nos termos que se seguem, vai

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naturalmente, independentemente das expressões usadas, na linha da que é corrente na nossa literatura jusadministratista.

O direito administrativo é o sistema de normas jurídico-públicas que disciplinam a organização, o funcionamento e o relacionamento das entidades da Administração Pública entre si e com os particulares, no exercício da função administrativa, assim como a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares.

Em termos de noção mais omnicompreensiva, podemos dizer que o direito administrativo é o ramo do direito constituído por normas jurídicas de carácter organizacional (direito orgânico da Administração), «processual» (direito procedimental administrativo e outro de natureza «processual», regulando os comportamentos da Administração) e material, ou seja, que disciplinam a organização (entidades que desempenham a Função Administrativa do Estado-Comunidade, suas atribuições, seus órgãos, competências e serviços; diferentes pessoas

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colectivas (públicas que desempenham tarefas da satisfação de necessidades colectivas da população legalmente assumidas como integrantes da função administrativa do Estado e entidades particulares, concessionárias ou delegadas destas), o seu funcionamento e o relacionamento entre elas com os particulares e outras Administrações (a maior parte de natureza material, direito objectivo da Administração, designadamente dos diferentes ramos do direito administrativo especial; caracterizadas quer pela atribuição de prerrogativas e sujeições administrativas, quer pelo exercício de direitos), com recurso à gestão pública (aplicação de direito público, e, nessa medida, sujeitando os conflitos que daí resultantes à apreciação dos tribunais da jurisdição administrativa).

A gestão privada é a designação usada precisamente nas situações em que a Administração age com recurso não ao direito administrativo, mas ao direito privado, e nessa medida sujeitando os conflitos que daí surjam à apreciação dos tribunais comuns. Pelo contrário, a expressão «gestão pública» quer dizer

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administração com recurso ao Direito Administrativo e sujeita aos tribunais administrativos.

Voltando a considerações sobre a definição do direito administrativo, podemos dizer, de outro modo, em termos mais explícitos, que o direito administrativo é o conjunto de normas jurídicas que, não fazendo parte do direito privado, regem essencialmente como seus objectivo primário a organização da função Administrativa e a sua actividade, integrando, pois, essencialmente mormas sobre:

a)- a organização e o funcionamento da Administração Pública;

b)- as relações estabelecidas entre entidades das diferentes pessoas colectivas (públicas ou privadas que desempenham tarefas da satisfação de necessidades colectivas da população legalmente assumidas como integrantes da função administrativa do Estado); e

c)- as relações destas com os particulares, caracterizadas:

α)- quer pela atribuição de poderes regulamentares e prerrogativas decisórias, ligadas ao regime de auto-tutela declarativa

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e executiva e, ainda, a especificidades do direito contratual público

β)- quer de sujeições administrativas, inexistentes na disciplina do direito privado imposta à regulação de relações materialmente semelhantes estabelecidas entre os particulares.

Recapitulando, tendo presente a globalidade das normas- objectivo, normas-meio e normas-garantia, podemos dizer que o direito administrativo é constituído por normas de carácter organizacional, de funcionamento, procedimental e material, tipificáveis essencialmente em termos quadridimensionais: normas orgânicas (direito orgânico da Administração), funcionais (normas de direito procedimental e outras de regulação dos comportamentos da Administração) e relacionais (a maior parte de natureza material, direito objectivo da Administração, designadamente dos diferentes ramos do direito administrativo especial e sancionatório administrativo) e normas garantísticas.

***

Depois de, já anteriormente, termos

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dedicado algumas palavras à origem histórica da expressão, importa passar agora a tecer também breves notas sobre os vários ramos do direito administrativo e outras áreas da ciência jurídica, a autonomia, formação, evolução e crise deste ramo do direito e, posteriormente, o desenvolvimento do tema do direito administrativo como sistema normativo: modelos da submissão da Administração ao direito, ou seja, em que termos está hoje a Administração sujeita ao direito, quer actue em «gestão pública» ou em «gestão privada», referindo aqui a teoria do direito privado administrativo ou administrativizado e a sua consagração no ordenamento constitucional e ordinário português, preparando, para um momento posterior, a questão dos modelos de organização e submissão à tribunais: o sistema de dualidade de jurisdição ou de regime administrativo, o sistema unitário e o sistema paradual. Diferenças, semelhanças e linhas de aproximação.

No que diz respeito aos vários ramos do direito administrativo, quer com autonomia científica, quer meramente pedagógica do estudo do direito

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administrativo, quer à sua relação com outras áreas da ciência jurídica, de natureza auxiliar, importa começar por fazer a distinção entre o direito administrativo geral e os direitos administrativos especiais, definindo alguns destes ramos, domínios específicos do direito administrativo e mesmo áreas de estudo mistas.

***

§15.A CIÊNCIA DO DIREITO ADMINISTRATIVO GERAL

O que é o direito administrativo geral? Importa fazer algumas considerações

prévias sobre o que é uma parte geral de um ramo do direito66,

A dianemologia jurídica67, nos nossos estudos superiores, é normalmente acompanhada pela formulação e estudo de uma disciplina de Introdução ao Estudo do Direito68, Teoria do Direito69 ou Princípios

66 V.g., em geral, HERNÁNDEZ GIL, A. –Metodología de la ciencia del Derecho. Vol.I, Madrid, 1971, p.171.

67 διανέμω significa repartir.68 Em geral, nos Cursos de Direito, em Portugal.69 V.g., primeiro ano de Faculdades de Direito em Espanha.

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Grerais de Direito70, além de uma Teoria Geral do Direito Civil, a que se segue, posteriormente, muitas vezes, as Noções Fundamentais de vários ramos do Direito71, antecedendo os desenvolvimentos das suas matérias ou das áreas especiais, temáticas desse ramo.

70 V.g., primeiros anos de várias licenciaturas do ISCSP, UTL.

71 V.g., a recente aprovação governamental da proposta da UI de Lisboa (para todas as áreas científicas, com excepção das Ciências Jurídico-Políticas, com início logo em Direito Constitucional, Administrativo e Fiscal), para a sua licenciatura de Direito, em que se dá grande destaque à temeliologia (θέμέλιον, ου, fundamento) das principais áreas científicas do direito (sobre direito procedimental- normas diagogéticas (διαγωγή, ης); direitos processuais –normas diquéticas (δίκη, ης, acção judicial, vocábulo que, embora sem abarcar a riqueza do conteúdo dos direitos processuais, pretende, de qualwuer modo, acentuar, explicitar a separação, a diferença de natureza, entre o procedimento e o processo); e normas onomáticas (ονομα, ατος, substantivo): sobre criminalidade, economia e relações privadas). Como abordagem inicial às áreas de Ciências Jurídico-Processuais, Ciências Jurídico-Criminais, Ciências Jurídico-Económicas e Ciências Jurídico-Civilistas, das cadeiras de Noções Fundamentais sobre Resolução de Conflitos, Noções Fundamentais de Direito Penal, Noções Fundamentais de Economia e Noções Fundamentais de Direito (do direito em geral, aquí integrando não só a dianemologia (teoria referente às razões da existência dos vários ramos de direito, cuja inexactidão deriva não só da comparação com a árvore em termos de tronco (Direito Constitucional é tronco ou ramo? e DIP? e DUE? Como são ramos? Afinal quantos troncos? Ou seja: que tronco? Ou troncos? Ou afinal ramos mais grossos? Troncos secundários?) e ramos (direito público e privado são ramos? ou troncos? Ou terceiros troncos? Não será que os «verdadeiros» ramos acabarão por sair meras folhas? São ramos ou fazem parte do grande tronco?), o conceito de separação será preferível) como a catástese jurídica (:κατάστασις, formação, instituição, termo preferível ao vocábulo «fonte» de direito). Nós próprios publicamos, para um curso semestral, em 1999, de Direito

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Mas, para além das noções introdutórias, temos em certas áreas, construções teóricas gerais no âmbito de um dado ramo jurídico.

Não é aqui o lugar para traçar a distinção entre teoria geral e dogmática72, paradigma dominante e paradigma científico73, sistema, sistema orgânico ou conceito orgânico de sistema ou conceito lógico de sistema (redução da ciência do direito ao conceito lógico-dogmático, na jurisprudência dos conceitos), sistema piramidal, etc.74, mas não deixaremos de referir, sucintamente, alguns aspectos desta

Administrativo II, um manual de Noções Fundamentais de Direito do Urbanismo (Direito do Urbanismo: Noçõez Fundamentais. Lisboa: Quid Juris?, 1999), que visou intrroduzir os alunos nestas matérias, a desenvolver mais tarde no programa de urbanismo e ambiente a ministrar na cadeira de Direito Administrativo III.

72 Sobre a contraposição, nem sempre fácil, entre teoria geral e dogmática na ciência do direito, v.g., PÉREZ ROYO, J. -«El proyecto de constitución del Derecho público como ciencia en la doctrina alemana del siglo XIX». REP, n.º1, 1978, p.67 e ss.; GEBER, C.F. von –Diritto Publico. Milão: Guiffrè, 1971, tradução de Grundzüge des deutschen Staatsrechts, 1865-1880; LABAND, P. –Das Staatsrecht des Deutschen Reiches. Aalen: Scientia, 1964, Vol.I, p.IX, reimpressão da 5.ª Ed., 1911.

73 RUIZ RICO, J. J. -«Problemas de objectividad y neutalidad en el estúdio contemporáneo de la politica». REP, n.º205, 1975, p.191-192; Kuhn, Thomas S. –La estructura de las revoluciones científicas. Madrid: FCE, 1962, p.42 e ss, p.275 e ss, -Segundos pensamientos sobre paradigmas.Madrid: Tecnos:1978, p.13, nota 4.

74 WILHELM, Walter -oc, p.66 e ss, 86 e ss.196

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temática.

O conceito de ciência em geral vai seguindo muito numa linha de reflexão dependente da evolução das descobertas, no campo das ciências naturais, desde a inicial concepção racionalista absoluta até aos nossos dias, até às descobertas do século XX, que fizeram romper com os conceitos tradicionais de natureza, causas, leis fixas, proposições evidentes, que foram «substituídos por outros mais adequados de sistema de relatividade, princípios operativos, premissas convencionais, etc»75.

Segundo refere HERNÁNDEZ GIL, a parte geral de uma disciplina «é (…) a prova mais palmar, o expoente mais acabado do que é a que aspira a dogmática», constituindo «o resultado de um processo lógico completo», aparecendo como «um cume que se escala através de um procedimento rigorosamente indutivo», sendo com os «elementos comuns dos conceitos integrantes do sistema» que se «formam uns conceitos ainda mais gerais que são a quinta-essência do sistema: os

75 Na expressão sintética de BALAGUER CALLEJÓN, F. -o.c., nota 29, p.28. Sobre o tema, Vide BOBBIO, N. –Teoría della scienza guiridica. Turim: Giappichelli, 1950, p.200.

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pontos em que este se unifica»76, fazendo-se no entanto, «habitualmente, a distinção entre elaboração conceptual geral de uma matéria» e «construção dogmática por referência ao sistema jurídico próprio»77.

Não se trata, pois, de apresentar uma teoria geral do direito administrativo, à maneira de ADOLF MERKL, mas de uma teoria mais modesta dos princípios estruturantes da construção, da onticidade e da teleologia normativa do direito administrativo, com objectivos didácticos, ligando-os à principiologia enquadrante e explicativa do sistema constitucional.

A propósito não deixarei de referir a lapidar conclusão de PAULO OTERO sobre a temática em geral das partes gerais dos programas das cadeiras.

Diz ele, a propósito do programa de uma cadeira designável como Direito à Vida: «Há, desde logo, que separar aquilo que se pode designar como uma parte geral e uma parte especial no âmbito do Direito da Vida:

76 A, e o.c., p.178.77 Nas expressões de BALAGUER CALLEJÓN –o.c., §2 da

nota 31, p.30. Sobre o tema, sobretudo, CRISAFULLI, V. –Lezioni di Diritto costituzionale. Vol.I, Pádua:Cedam, 1970, p.43 e ss.;ver também sobre sistema e dogmática jurídica, LUHMANN, N. –Rechtssystem und Rechtsdogmatik, 1974.

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existe um conjunto de matérias que, dizendo respeito a todos os problemas específicos e revelando-se operativas no enquadramento de todas as questões, têm uma precedência lógica sobre as matérias mais circunscritas ou específicas - aqui reside o fundamento da referida parte geral».

Neste âmbito de reflexão, agora mais situada no âmbito do direito administrativo, permitimo-nos ainda introduzir na reflexão a posição de CHAPUS.

O autor resume as considerações sobre o que considera o direito administrativo geral do seguinte modo78:

«Les moyens d'action de l'administration»: ce pourrait être le sous-titre de ce volume par lequel se poursuit et s'achève l'étude du droit administratif général, tel que j'ai précédemment essayé de le définir (…).

Tel est, en tout cas, l'intitulé par lequel les auteurs classiques (de Maurice Hauriou à Marcel Waline) justi-fiaient que fasse l'objet d'une partie de leur ouvrage ou d'un ouvrage distinct

78 CHAUS, René -Droit administratif général. Tome I, 4.e Éd., 1988 (n°15 e ss.) e de novo em –«Avant-propos». In Droit administratif général. Tome 2, 3.e Éd., Paris :Montchrestien, 1998,

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l'étude de matières aussi diverses - en elles-mêmes comme par l'étendue des développements qu'elles appellent - que celles auxquelles ce volume se rapporte.

Moyens en personnels, et c'est l'étude de la fonction publique.

Moyens en biens, et c'est celle du domaine des personnes publiques.

Moyens de réalisation d'opérations immobilières (relevant du droit administratif général) : c'est l'étude, d'une part des travaux publics, et d'autre part de l'expropriation pour cause d'utilité publique (à laquelle, il convient de comparer les droits de réquisition et de préemption)»79.

No fundo, partilhamos da posição dos que consideram como direito administrativos geral, as matérias que, não autonomizadas em termos de cadeiras académicas, se referem às várias Administrações e à sua tipologia interventiva e modos de agir, ou seja, além dos fundamentos conceptuais da matéria e

79 O regime de obras públicas («travaux publiques») tanto se aplica às obras efectivadas por entidades públicas como às efectivadas por particulares desde que tenham um «fim de interesse público» e sejam realizadas no «cumprimento de uma missão de serviço público, que incumba a uma pessoa pública»(Tomo 2, oc, p.388).

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das fontes normativas, a teoria referente à organização (estadual e infra-estadual; institucional, empresarial, associativa; através de entidades particulares) e à actividade administrativa, incluindo a teoria da sua responsabilidade (e meios garantísticos de reacção dos administrados, a justiça administrativa), e, ainda, os meios ao serviço das Administrações públicas em geral (direito da função públicas e dos bens das administrações públicas).

Portanto, e, nesta linha de orientação, a ciência do direito administrativo geral integra o estudo científico de matérias que se prendem com os fundamentos conceptuais do Direito Administrativo, desde o próprio conceito deste ramo do direito, tipologia das suas normas, problemática da gestão pública e gestão privada pela Administração Pública e do concomitante uso de um direito privado administrativizado; as diferenças entre o Direito Administrativo e outros ramos do direito público, especialmente a sua relação com os direitos internacional, unionista europeu e constitucional, e a comparação e interligação com áreas científicas auxiliares do Direito Administrativo e ainda a divisão

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do Direito Administrativo nos seus vários ramos especiais; a teoria das atribuições e competências, teoria dos órgãos (especialmente, os colegiais) e dos serviços públicos administrativos, da delegação de poderes, a teoria do poder de direcção e da hierarquia e do enquadramento do princípio da obediência dos subalternos, a teoria da superintendência e da tutela, com especial análise dos poderes governamentais em relação às autarquias, e designadamente sobre as pessoas colectivas de direito privado e regime jurídico misto, e, ainda, o estudo da organização do Estado e entes menores, especialmente das autarquias locais (embora não se desenvolva esta matéria, caso haja uma cadeira específica obrigatória no mestrado, pois então, neste âmbito, tal será melhor desenvolvido), os princípios constitucionais da organização administrativa e da sua actividade, a teoria dos poderes normativos (regulamentos) e outros tipos de actividade jurídica (actos administrativos e contratos administrativos, em geral com grande incidência no direito procedimental geral) e não jurídica das Administrações, a teoria da responsabilidade civil extracontratual e noções gerais sobre o processo nos

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tribunais administrativos, e, ainda, as matérias do direito do emprego público e dos bens do domínio público.

***

§16.RAMOS DO DIREITO ADMINISTRATIVO E RAMOS ECLÉTICOS

O direito administrativo especial, em que se desdobra os vários ramos do direito administrativo, é constituído por matérias que foram ganhando um tratamento próprio dentro do direito administrativo, como o Direito Administrativo Militar, o Direito Administrativo Cultural, o Direito Administrativo Social, o Direito Administrativo Económico, o Direito Administrativo Financeiro, etc., designações normalmente utilizadas.

No entanto, há que referir algumas áreas que estão integradas nestas classificações, nestes ramos fundamentais do direito administrativo especial e que têm ganho autonomia disciplinar, tudo ramos

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especiais que ganharam foros de debate e tratamento específico nos últimos anos, de que aqui apenas damos breves definições, à base das nossas lições publicadas, que deles tratem, designadamente, quanto aos quatro primeiros, o Direito do Urbanismo (Quid Juris?, 1999), o Direito do Ambiente (Almedina, 2001) e o Ordenamento do Território (ISCSP, 2005):

O direito do urbanismo, ramo misto porquanto existe um conjunto importante de normas de direito civil que é aplicável à construção civil, mesmo que os seus destinatários sejam em geral os particulares e não a Administração pública, embora seja constituído essencialmente por normas revogatórias do direito privado no que se refere às faculdades de loteamento, urbanização e edificação. Trata de regular a intervenção da Administração no correcto ordenamento físico dos solos municipais, especialmente dos aglomerados urbanos e sua expansão, tendo a montante um enquadramento pelo direito do ordenamento do território, e procupando-se especialmente, enqunto tal com o condicionamento da edificação. Os diplomas fundamentais são o Decreto-Lei n.º 555/99,

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de 16 de Dezembro, neste momento já com uma sexta e significativa alteração, e, na parte dos planos municipais (dos quais. temos os especificamente de direito urbanístico aí regulados, os planos de urbanização e os planos de pormenor) e especiais, os únicos directamente aplicáveis aos particulares, o Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro.

O direito do ordenamento do território, que trata esencialmente da programação e planificação das actividades económicas e urbanizadoras no território, regulamentando os conteúdos, a autoria e os procedimentos de elabotação, aprovação e alteração do Programa Nacional do Ordenamento do Território, dos Planos Regionais do Ordenamento Território assim como dos Planos Sectoriais dos vários Ministérios, os Planos Especiais (das Àreas protegidas, das Albufeiras de Águas Públicas e da Orla Costeira) e os Planos Municipais de Ordenamento do Território (Planos Directores Municipais, Planos de Urbanização e Planos de Pormenor). O diploma fundamental é o Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro.

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O direito do património cultural visa assegurar a protecção e valorização dos bens que são testemunhos com valor de civilização ou de cultura portadores de interesse cultural relevante, designadamente histórico, paleontológico, arqueológico, arquitectónico, linguístico, documental, artístico, etnográfico, científico, social, industrial ou técnico, assim como daqueles que reflictam valores de antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade e de memória (mesmo que imateriais desde que constituam parcelas estruturantes da identidade e da memória colectiva portuguesas) e os respectivos contextos que, pelo seu valor de testemunho, possuam com aqueles uma relação interpretativa e informativa80.

80 Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro, Estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural (D.R. n.º 209, Série I-A, Páginas 5808 a 5829):«Artigo 1.º-Objecto: 1-A presente lei estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural, como realidade da maior relevância para a compreensão, permanência e construção da identidade nacional e para a democratização da cultura.2-A política do património cultural integra as acções promovidas pelo Estado, pelas Regiões Autónomas, pelas autarquias locais e pela restante Administração Pública, visando assegurar, no território português, a efectivação do direito à cultura e à fruição cultural e a realização dos demais valores e das tarefas e vinculações impostas, neste domínio, pela Constituição e pelo direito internacional. Artigo 2.º-Conceito e âmbito do património cultural: 1-Para os efeitos da presente lei integram o

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O direito do ambiente, também um ramo misto desde logo ao integrar normas civilistas sobre responsabilidade civil, mas que é essencialmente um ramo do direito administrativo especial de direito supranacional e nacional, que regula com normas substantivas e também sancionatória, penais e contra-ordenacionais, a conservação da natureza património cultural todos os bens que, sendo testemunhos com valor de civilização ou de cultura portadores de interesse cultural relevante, devam ser objecto de especial protecção e valorização.2-A língua portuguesa, enquanto fundamento da soberania nacional, é um elemento essencial do património cultural português.3-O interesse cultural relevante, designadamente histórico, paleontológico, arqueológico, arquitectónico, linguístico, documental, artístico, etnográfico, científico, social, industrial ou técnico, dos bens que integram o património cultural reflectirá valores de memória, antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade. 4-Integram, igualmente, o património cultural aqueles bens imateriais que constituam parcelas estruturantes da identidade e da memória colectiva portuguesas. 5-Constituem, ainda, património cultural quaisquer outros bens que como tal sejam considerados por força de convenções internacionais que vinculem o Estado Português, pelo menos para os efeitos nelas previstos. 6-Integram o património cultural não só o conjunto de bens materiais e imateriais de interesse cultural relevante, mas também, quando for caso disso, os respectivos contextos que, pelo seu valor de testemunho, possuam com aqueles uma relação interpretativa e informativa. 7-O ensino, a valorização e a defesa da língua portuguesa e das suas variedades regionais no território nacional, bem como a sua difusão internacional, constituem objecto de legislação e políticas próprias. 8-A cultura tradicional popular ocupa uma posição de relevo na política do Estado e das Regiões Autónomas sobre a protecção e valorização do património cultural e constitui objecto de legislação própria».

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(flora, fauna, paisagens, áreas protegidas, orla marítima, albufeiras de águas públicas), e a manutenção e recuperação de elementos ambientais (água, ar, solos) assim como a eliminação ou reutilização de resíduos, em termos humanos sadios e ecologicamente sustentáveis.

O direito da saúde regula a organização e o funcionamento das unidades de saúde do estado e do sector particular, e os deveres destas para com os utentes assim como os direitos destes face a elas e ao Estado em geral

O direito do consumo, que é um ramo misto, que visa proteger os consumidores, designadamente assegurando o direito à qualidade dos bens e serviços em geral e, especialmente, de saúde, assim como a interdição de quaisquer formas de publicidade oculta ou enganosa.

O direito da segurança social, que é o conjunto de normas e princípios elaborados pelo Estado coma finalidade de criar um sistema de protecção das situações de necessidade dos indivíduos, na doença, velhice, desemprego, incapacidade para o

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trabalho e outras situações de carência económica, independentemente da sua vinculação social a um empresário ou à Administração Pública, e da sua contribuição ou não para o sistema, de natureza pública e com tendência para a universalidade. Ou seja, estamos perante um carácter misto em termos de prestações, contributivas ou não; um sistema de carácter público, sem prejuízo da colaboração de entidades privadas; numa perspectiva histórica ligado ao direito do trabalho, mas actualmente com cetra emancipação, dada a tendência á universalidade subjectiva, alargado a sujeitos que não são trabalhadores por conta de outrem ou nem sequer trabalhadores; exisnto um direito internacional, comunitário europeu, constitucional da segurança social, assim como um direito do trabalho (normas de Convenções Colectivas do Trabalho) e de direito processual da segurança social.

O direito agrário refere-se a regras sobre a actividade agrícola, designadamente sobre a utilização de produtos químicos na agricultura e outras normas relacionadas com protecção do próprio ambiente..

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O direito da comunicação social (que alguma doutrina denomina direito da informação), é também um ramo misto, regulando o direito da organização e actividade de intervenção pública, incluindo a referente ao serviço público, nesta matéria e designadamente da Entidade Reguladora da Comunicação e a iniciativa empresarial e suas obrigações neste âmbito, assim como os direitos dos jornalistas e de entidades exteriores (cidadãos, partidos, governo e oposição) face a estas entidades, assim como normas específicas de publicidade comunicacional e direitos de autor dos jornalistas

O direito do desporto, que é um ramo misto, de origem plural, que regula as actividades desportivas e o seu condicionamento e fiscalização por organizações privadas e Estaduais, designadamente internacionais; etc..

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§17.IMPORTÂNCIA CONDICIONANTE DO DIREITO CONSTITUCIONAL

17.1.Considerações gerais

No que se refere à relação entre o direito administrativo e os outros ramos do direito que o subordinam, ou seja, quer o direito internacional e o direito da União Europeia, quer o Direito Constitucional, importa definir e referir alguns tópicos relevantes para o direito administrativo:

O direito da União Europeia (comunitário europeu), que é constituído pelas normas constantes dos tratados que regem a organização da União Europeia, seus poderes materiais cedidos pelos Estados, processos decisórios, fontes normativas e de criação de actos jurídicos derivados da actuação das Instituições por eles criados.

Como, também, há muito refere a doutrina estrangeira e nacional, «o direito administrativo sofreu também um contragolpe devido à emergência do direito comunitário, cujas regras vêm cada vez

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mais sobrepor-se às regras nacionais»81.

Por tudo isto, também é necessário expor aos alunos os fundamentos do direito da União Europeia, designadamente a teoria das fontes e os princípios essenciais do direito da União, a sua hierarquia normativa e sistema jurisdiconal, entre outros temas, que são importantes para a apreensão do modo como se cria, do valor relativo das suas normas no contexto do sistema normativo global comunitário, estadual e jusinternacional, modo de execução, garantias de efectividade, etc., de algo que é constituído, na sua maior parte, por direito administrativo, que os Estados aplicam directamente ou têm de transpor, o que se faz apresentando conceitos fundamentais que se sintetizam.

17.2. Direito constitucional e o direito administrativo

17.2.1. Noção de direito constitucional

O direito constitucional, de que já

81 CHAPUS, R.-o.c., p.6212

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falamos, e recapitulando, é o fundamento de muitas normas de direito administrativo, tendo supremacia sobre as restantes fontes de direito interno, designadamente de direito administrativo. Este ramo do direito público tem valor normativo supremo dentro do ordenamento jurídico de fonte nacional.

É constituído, essencialmente, por normas de enquadramento do sistema de organização dos poderes do Estado, direitos fundamentais, normas garantísticas da própria constituição com especial destaque para o sistema de fiscalização da inconstitucionalidade das normas e contém normas sobre vários temas que são impositivas para os vários ramos do direito, designadamente no que se refere á organização e actividade da Administração pública, e portanto do direito administrativo.

Ou seja, ele é, essencialmente, constituído por direito orgânico (normas sobre a organização e atribuições dos órgãos de soberania e outras entidades infra-estaduais, assim como fontes normativas e procedimentos de aprovação parlamentares), direitos subjectivos (direitos fundamentais e garantias

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institucionais, quer os direitos, liberdades e garantias quer os direitos económicos, sociais e culturais), direito programático (grandes orientações para a governação e concretização do ordenamento jurídico) e direito garantístico da própria constituição (sistema de fiscalização do ordenamento jurídico, cuja operacionalidade, pese embora o seu articulado, se reduz às normas de fonte interna, quer às leis constitucionais de revisão, quer a todas as normas infra-constitucional, enquanto estas não ganharem validade jurídica contra constitucionem, quer porque qualquer apreciação do Tribunal Constitucional não teve a virtualidade de as considerar nulas com efeitos erga omnes, mantendo-as com um sentido abrogatório da norma constitucional, quer porque haja ocorrido um fenómeno de vigência social criador de direito consuetudinário).

Importa, no entanto, constatar que o direito constitucional não é o critério e liomite de todo o direito aplicável pelos tribunais portugueses.

Com efeito, não é o critério de validade de normas de direito internacional

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(nem de normas derivadas de organizações internacionais dotadas de poderes decisórios que se imponham aos Estados, v.g., decisões do Conselho de segurança da ONU), e, muito menos, do direito unionista europeu, com origem na União Europeia ou no direito internacional que a obrigue (dado que ela constiui uma união supranacional de natureza para-estatal), nem é limite de todo direito nacional, quer porque há áreas importantes do direito nacional a que ele não se refere, quer porque pode ser posto em causa pela entrada em vigência de normas consuetudinárias que não só o complemente como se lhe oponham.

O que significa que a Administração Pública, os tribunais e os cidadãos portugueses tanto podem desaplicar normas positivas de fonte interna por contradição ou outros vícios anticonstitucionais (inconstitucionalidade material, orgânica e formal), como podem desaplicar uma norma constitucional, por contradição ou com uma norma do direito supranacional, seja internacional seja unionista europeu, ou com uma norma consuetudinária nacional, qualquer que seja a nsua natureza material, constitucional ou infraconstitucional

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Assim, procurando dar uma noção materialmente abrangente do direito constitucional instrumental, podemos dizer que é o ramo do direito constituído por normas subordinantes de todo o ordenamento jurídico de fonte estatal e infra-estatal, que regulam a organização, tarefas e funcionamento dos órgãos de soberania e outros poderes do Estado-Comunidade, os direitos fundamentais dos indivíduos, enquanto tais e enquanto cidadãos, e garantias institucionais, as grandes orientações das políticas públicas e do restante direito interno e ainda a fiscalização do respeito pelas suas próprias normas.

17.2.2. Relações entre o direito constitucional e o direito administrativo

Que relações, imposições e condicionamentos para o Direito Administrativo derivam do direito constitucional?

O direito constitucional tem reduzido a autonomia do direito administrativo?

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Sobre o tema, e reportando-se à crise e contestação ao direito administrativo, CHAPUS afirmava o seguinte82:

«Este movimento de contestação é sobretudo devido a um duplo conjunto de mutações concretas na estrutura da ordem juridica, que tocam no próprio estatuto do direito administrativo e reduzem a sua autonomia.

A mais espectacular destas mutações resulte da consolidação do direito constitucional a favor do desenvolvimento da jurisprudência constitucionel: até então parente pobre do direito publico, o direito constitu-cional paece entretanto em via de impor a sua supremacia sobre o direito administrativo»; subordinado e enquadrado pelo direito constitucional, este tende a aparecer como um simples direito de aplicação e o juiz administrativo parece apagar-se em face de um juiz constitucional omnipresente».

E acrescentava: «A teoria dos ‘princípios gerais do direito perdeu assim muito da sua substância, a partir do

82 CHAUS, R. –oc, p.6.217

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momento em que o Conselho Constitucional consagrou a existência de ‘princípios de valor constitucional’»83.

*

Damos alguns exemplos de elementos relacionais entre o direito constitucional inscrito na CRP e o direito administrativo84.

Vejamos os mais importantes com base na teoria da Constituição e no seu texto :

-Primado do direito constitucional-Estrutura e imposição de tarefas à

Administração Pública-Consagração de princípios

organizacionais gerais-Teoria das pessoas colectivas e

órgãos administrativos

83 A estes factores acresce em França a perda de espaço para a afirmação criativa de direito por parte da jurisprudência administrativa em face do «poids croissant des sources écrites», o que, como diz G. GUGLIELMI, «modifie l’équilibre d’un droit dont l’essor et le prestige avaient été liés depuis CORMENIN à son origine jurisprudentielle». Como diz, em geral, Chevalier embora referindo-se a nomes de prestigio do DA e do CE que passaram a dedicar-se ao direito privado ou têm vindo a abandonar funções no próprio CE, as várias «stratégies de reconversion vers le privé semblent témoigner de la perte de prestige de la juridiction administrative (…)»

84 Vide alguns exemplos de «fluxos bidireccionais entre o direito constitucional e o direito administrativo», em SOUSA, Marcelo Rebelo de –Direito administrativo geral, oc, p.89-90.

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-Teoria geral do acto jurídico-público-Enquadramento do exercício estadual

do poder regulamentar autónomo do Governo

-Estrutura da separação e interdependência dos poderes

-Admissibilidade de entidades administrativas independentes

-Enquadramento do poder de direcção-dever de obediência dos funcionários públicos

-Interpretação do direito administrativo conforme à Constituição

-Controlo das normas administrativas desconformes com a Constituição

-Princípio da constitucionalidade e não aplicação pelos órgãos máximos dos escalões da Administração Pública de normas manifestamente inconstitucionais

-Constitucionalização de princípios gerais de direito administrativo

-Consagração da transparência administrativa (n.º2 do artigo 268.º)

-Configuração do sistema jurisdicional e de um direito processual tendencialmente subjectivista (artigo 268.º)

-Mandato de aplicação directa de normas administrativas de fonte supra-nacional (artigo 8.º)

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-Procedimentalização da actividade administrativa

-Enquadramento da actividade de polícia

17.2.3. O direito administrativo e a cadeira de direito político

Nas licenciaturas do ISCSP da UTL não há nenhuma cadeira designada de direito constitucional, mas na Licenciatura de Ciência Política existe uma cadeira que, recentemente, passou a ser semestral, denominada direito político, o que na de Administração Pública não ocorre85.

A integração de uma cadeira chamada de direito político (designação que já aparece em ROUSSEAU, como sub-título do seu Contrato Social), na licenciatura de Ciência Política, obedeceu a uma lógica de

85 Isto tem implicações óbvias na construção do programa de direito administrativo da Licenciatura de Administração Pública, como se constata pela matéria que indicamos no Relatório apresentado em Provas públicas de Agregação no que se refere ao programa unificado que vigorou até finais do ano lectivo 2004-2005, e importa agora indagar em que termos tem ou deve tê-lo, em termos de noções basilares condicionantes da compreensão de matérias de direito administrativo, quer no programa semestral de direito administrativo de Administração Pública, a partir do próximo ano, e no anual, eventualmente refundido, a dar, isoladamente, também a partir do próximo ano lectivo, para os alunos da Licenciatura de Ciência Política.

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aplicação de um programa semelhante ao da cadeira com o mesmo nome nas licenciatura de direito de outros países, designadamente Espanha, como já dissemos, aliás aqui com muito mais razão, dado que a licenciatura é em ciência política e não em direito, em que a concepção subjacente a esta cadeira mais se justifica, contrariamente à identificação temática apresentada por MARCELO CAETANO na sua obra.

Ora, a ser-se respeitador da opção histórica e da razão de ser de tal disciplina, numa licenciatura de Ciência Política, estamos perante uma «disciplina científica em que junto aos elementos normativo-institucionais oferecidos pela Constituição e as leis que a desenvolvem», se consideram «outros de carácter histórico, ideológico, filosófico, sociológico», fazendo conviver no seu seio, «dois sectores diferenciados: o jurídico e o metajurídico»86.

E, exemplificando com o programa desta cadeira, seja qual for o «problema conceptual do direito político», v.g., tal como ele foi sendo desenvolvido por PABLO LUCAS VERDÚ e sua escola, na

86 LUCAS VERDÚ, P. –OC, p.22-23.221

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Complutense de Madrid, até à actualidade87, temos as seguintes temas:

-Teoria do Estado: O Estado como estrutura de convivência; O Estado Liberal, Demoliberal, Socialista, Fascista-Nacional-Socialista

-A Crise do Estado Social: A crise, fenómeno conatural ao Estado ocidental

-Teoria Jurídico-Política do Estado: Composição do estado, teoria convencional dos elementos do Estado; o Estado contemporâneo como Comunidade nacional; o poder político soberano; o princípio da separação de poderes; Personalidade jurídica do estado e órgãos estatais; teoria jurídica da representação política; configuração jurídica das formas políticas; O Estado de Direito como utopia e realidade, Estado de Direito e imaginação constitucional; a democracia como regime político

-Algumas questões sobre o Estado Federal: federalismo e Estado Federal; formação da teoria clássica do estado federal88.

87 LUCAS VERDÚ, Pablo e MURILLO DE LA CUEVA, Pablo Lucas –Manual de Derecho Político. Vol. I, Introducción y teoria del estado. 3.ª Edición Corregida, Madrid, Tecnos, 1994, p.[7-11].

88 Ora, a ser este, mais ou menos, o figurino que a caber, numa perspectiva lógica, consentânea com a abordagem própria a uma cadeira de direito político, por maioria de razão numa

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18§. DIREITO JUDICIÁRIO

18.1.Definição

O direito judiciário é o conjunto de normas que regulam quer a organização e funcionamento dos tribunais (de natureza administrativa), quer o exercício da função jurisdicional (de natureza processual, constantes de diferentes códigos que compilam o processo administrativo, constitucional, civil, penal, tributário, laboral, etc.).

18.2.Direito judiciário administrativo e o processo contencioso administrativo

A organização judiciária administrativa consta do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, enquanto a processual administrativa consta essencialmente do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, mas o direito processual civil é um ramo do direito público que também é aplicável, embora Licenciatura de Ciência Política, além do mais, de apenas um semestre, parece-nos ser de manter a exposição de alguns conhecimentos que devem considerar-se pressupostos e com ligação umbilical à temática compreensiva do direito administrativo.

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supletivamente e com as necessárias adaptações, nos tribunais administrativos.

Na parte final deste volume, teceremos considerações algo mais desenvolvidas sobre estes temas

***

§19.O DIREITO PENAL E DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONATÓRIO

19.1.O direito penal

O Direito Penal merece uma anotação mais circunstanciada, em termos de relação com o Direito Administrativo.

O Direito Penal ou Criminal é um conjunto de normas que classificam certos factos sociais de especial gravidade como crimes e, portanto, regulam a aplicação de penas aos seus autores. São sanções de tipo grave, as mais graves previstas na lei. Quem as transgredir é punido criminalmente. É um Direito repressivo que existe para garantir a segurança da colectividade perante possíveis práticas anti-sociais ou marginais.

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19.2.O direito das contra-ordenações sociais

Mas existem no Direito Administrativo também certas normas punitivas, que nascem de preocupações com a segurança. É o carácter preventivo do Direito Administrativo que está aqui presente.

São normas que prevêem um conjunto de sanções que não se posicionam face a certos valores da sociedade, pois são regras de tipo preventivo, que visam simplesmente impedir a prática de certos actos prejudiciais para a sociedade. È o direito administrativo sancionatório.

São regras de orientação, de precaução, de prudência para evitar ofensas aos valores que o Direito Criminal protege.

Em caso de transgressão, o Direito Administrativo manda que lhes sejam aplicadas sanções pecuniárias ou pelo menos de menor gravidade que as sanções criminais, cujo regime resulta do chamado Direito das Contra-Ordenações, que não é direito de natureza penal mas direito administrativo sancionatório.

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***

§20.CARACTERÍSTICAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO

Vejamos algumas notas sobre a autonomia do direito administrativo, cuja apreciação jurisdicionais em casos conflituais está entregue a tribunais especializados, sua sistematização, factores de evolução do regime administrativo, a crise do direito administrativo e a questão da codificação.

Vejamos desde já, a problemática da sua sistematicidade e tratamento científico autonomizador, deixando par o final a questão da autonomia e jurisdição própria, por um lado origem e por outro característica maior do regime administrativo.

20.1.Sistematização da ciência do direito administrativo

No que concerne à sistematização da ciência do direito administrativo, podemos sintetizar alguns momentos marcantes:

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A primeira obra específica de direito administrativo foi escrita por ROMAGNOSI, em Itália, em 1814. E é, também, em Milão que é criada a primeira cátedra universitária sobre a matéria.

ROMAGNOSI não segue os autores franceses da época, no tratamento predominantemente descritivo da matéria, pois inicia um trabalho de síntese entre os materiais fornecidos pela antiga ciência de polícia (designação de sentido etimológico então dada à actividade administrativa), pela legislação administrativa napoleónica e a jurisprudência do Conselho de Estado francês.

Os seus princípios fundamentais de direito administrativo contêm noções de razão pública, competência funcional, forma em direito administrativo e fazem um tratamento sistemático do acto administrativo.

Contemporaneamente a ROMAGNOSI, começa a formar-se o direito administrativo francês, que viria a ter influência decisiva na Europa Continental, propiciado pelo

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reforço do poder público central, formando um aparelho administrativo nacional, pela existência de uma jurisprudência apreciável do período da monarquia absoluta, em que existia o Conselho do Rei, que era um órgão central com funções de contencioso administrativo, e pela existência de abundante legislação referente à organização e ao funcionamento dos poderes públicos, que exigia um labor de compilação.

Cabe a MACAREL demonstrar que é possível explicitar princípios científico-administrativos, a partir da jurisprudência do Conselho de Estado, cujas decisões ele agrupa por matérias.

É, em 1819, quando ROMAGNOSI já havia perdido a sua cátedra milanesa de «Alta Legislação em Referência à Administração Pública», que é criada, em Paris, a Cátedra de Direito Público e Administrativo, entregue ao visconde DE GERANDO.

A cátedra foi abolida pela monarquia de Julho, em 1823, e restaurada em 1828, até que, em 1837, passou a fazer parte do curriculum de todas as universidades

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francesas, passando, então, os tratados e cursos a perder o carácter predominantemente descritivo e a ter um carácter sistemático.

Com o início da unificação italiana, aparecem, em 1865, leis centralizadoras da Administração e, em 1889, cria-se a IV Secção do Conselho de Estado e Juntas Provinciais administrativas com poderes jurisdicionais.

A nova dualidade de jurisdições vai levar a doutrina a desenvolver as noções de direito subjectivo e de interesse legítimo, em ordem ao estabelecimento da competência jurisdicional comum ou administrativa nos litígios contra a Administração.

ORLANDO é o grande nome da construção jurídica do direito administrativo, introduzindo a expressão método jurídico para significar a aplicação do método da escola pandectista.

Ele centra o direito público nos temas da personalidade jurídica do Estado e dos direitos subjectivos públicos, desenvolvendo

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todo um labor de conciliação das escolas oitocentistas francesa e alemã de direito público.

A consolidação do direito administrativo italiano processa-se com ORLANDO, BRONDI, RANELLETTI, CAMMEO, CODACCI-PISANELLI e SANTI ROMANO, com a sua teoria da instituição.

*

Em França, inicia-se a fase da justiça delegada, passando em 1872 o Conselho de Estado a ter funções jurisdicionais independentes, o que acentua a elaboração jurisprudencial do direito administrativo, sendo de destacar os institutos da responsabilidade civil, contratos administrativos, vício de desvio de poder, etc..

LAFERRIÈRE, com o seu Tratado da Jurisdição Administrativa, de 1887, será um dos grandes difusores da ciência jurídico-administrativa na Europa Continental.

Importará realçar a ideia do direito administrativo como exorbitante e

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derrogatório do direito privado e o aparecimento de teorias gerais do direito, com a procura dum critério único para fundamentar o direito administrativo, tendo subjacente a necessidade de definir a competência da jurisdição administrativa. Para HAURIOU, autor da teoria da instituição e da concepção do regime administrativo, a noção-chave é a de Poder Público, separando a gestão pública da gestão privada.

Para DUGUIT, fundador da escola do serviço público, as necessidades da vida colectiva passam pela gestão pública. Do labor jurídico deste período, resulta a separação das autoridades administrativas e judiciárias, numa original interpretação da doutrina da separação de poderes, o acento tónico no tema da jurisdição administrativa, conceito de interesse geral com a desigualdade de posição entre a Administração Pública e os particulares e a procura de equilíbrio entre as prerrogativas da Administração submetida ao direito e a defesa dos direitos dos particulares.

*

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No espaço germânico, algumas garantias haviam sido asseguradas aos cidadãos pela criação da teoria do fisco, que viabilizou o confronto entre o Poder Público e os particulares, através da atribuição da personalidade jurídica privada ao fisco, distinta do soberano e do Estado, o qual passa a ser titular do seu património e direitos financeiros e regendo-se as relações com os cidadãos pelo direito civil.

A teoria do fisco foi depois estendida à protecção jurídica em matéria administrativa, também à base do direito civil, o que acarretou a formação mais lenta de um direito específico para a actividade administrativa.

Nas primeiras décadas do século XIX, ocorrem algumas reformas que separam a Administração Pública da Justiça, começando a aparecer, paralelamente ao sistema do fisco, um direito público da Administração.

VON MOHL propõe a separação sistemática das funções estaduais e distingue o direito constitucional do direito administrativo.

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LORENZ VON STEIN, em 1850, vem considerar como elemento central do Estado de Direito, a garantia da igualdade jurídica, ao mesmo tempo que ressalta a missão social do Estado.

F. FELICE MAYER, em 1857, defende a possibilidade de formulação de princípios gerais de direito administrativo, ao mesmo tempo que importa noções do direito civil e do pandectismo.

Na Alemanha, é criado, em 1875, o Tribunal Administrativo Superior da Prússia, em 1876, os Tribunais Administrativos do Estado de Wuttemberg e, em 1878, na Baviera. A Prússia, a partir de 1883, passa a ter uma lei sobre a competência da jurisdição administrativa. Neste período, a doutrina alemã procura estabelecer a autonomia do direito público, separar a ciência do direito administrativo da ciência da Administração e aplicar-lhe o método da escola pandectista.

OTTO MAYER, na sua obra já referida, O Direito Administrativo Alemão, de 1895-96, vai analisar a organização e a actividade administrativa, nos seus aspectos jurídicos,

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em termos que o têm feito considerar o pai do direito administrativo alemão. Resultados fundamentais do trabalho de OTTO MAYER centraram-se nos temas da autonomia científica do direito administrativo em face do Direito do Estado, com o afastamento dos esquemas civilistas, relações de supremacia especial, de onde virá a brotar a concepção da existência de espaços de livre actuação administrativa e, em geral, a vinculação do direito administrativo ao Estado de Direito, com superioridade do legislador, como elemento diferenciador do Estado de Polícia.

A partir de 1893, o direito administrativo separa-se do Direito do Estado, vindo a consolidar-se com a obra Direito Administrativo Alemão, de OTTO MAYER.

Numa segunda fase, veremos aparecer jurisdições administrativas independentes.

A escola pandectista, que considera a lei como verdadeira fonte do direito, o qual deveria formar um conjunto semelhante ao sistema do direito romano, criada por PUCHTA e WINDSCHEID, influenciará também fortemente os administrativistas, entre os quais se destaca GERBER, LABAND

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e JELLINEK.

Assim, surge a distinção civilista em pessoas, coisas e obrigações, a Administração é considerada como um sujeito jurídico, o acto administrativo é configurado nos moldes do acto jurídico, etc..

*

Em Espanha, expande-se o modelo francês de concretização do Estado de Direito a partir da década de quarenta do século XIX, devido à doutrina e à jurisprudência do Conselho Real, assente no reconhecimento da personalidade jurídica do Estado e na existência de direitos subjectivos públicos.

À tentativa de enveredar por um sistema administrativo de tipo anglo-saxónico, com uma Administração não dotada do privilégio de auto-tutela declarativa e executória, e com unidade de jurisdição, seguiram-se, em 1845, duas leis que criaram o Conselho Real, com justiça retida, e Conselhos Provinciais, com justiça delegada.

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Em 1856, o Conselho Real transforma-se em Conselho de Estado. E, depois de um período de vinte anos de unidade de jurisdição, em 1888, a Lei Santamaría Pastor, com a restauração da monarquia, voltou ao sistema francês e atribuiu carácter perfeitamente jurisdicional ao Conselho de Estado e aos Tribunais Provinciais.

*

Em Portugal, a influência francesa predominou, tendo a Constituição de 1822 efectivado a separação entre Legislação, Administração e Justiça.

Mouzinho da Silveira inicia uma reforma centralizadora, de tipo napoleónico, em 1832.

Uma cátedra de Direito Público, abrangendo o Direito Constitucional, o Direito Administrativo e o Direito Internacional, é criada em 1836.

Em 1832, é criado o Conselho de Estado para aconselhar a Administração em relação aos conflitos surgidos com os

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particulares. Em 1853, cria-se a primeira cátedra

de Direito Administrativo. De 1924 a 1930, o contencioso

administrativo é da competência dos tribunais ordinários, surgindo, nesta altura, tribunais administrativos autónomos, com justiça delegada e prevendo-se um órgão paritário composto à maneira do tribunal de conflitos francês, para a solução de conflitos de competência jurisdicional.

***

20.2. Codificação do direito administrativo

Quanto à codificação, o direito administrativo é um Direito novo, não codificado, e algumas intenções de o codificar têm sido consideradas utópicas, dada a sua ininterrupta extensão, variedade temática e falta de estabilidade normativa.

Em Portugal, os diplomas designados de Códigos Administrativos codificaram parcelas de áreas específicas de matérias que interessavam ao direito administrativo (sobretudo, administração local comum).

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O primeiro texto que recebeu o nome de Código Administrativo, nesta acepção (muito parcelar e incompleta), foi o Código de Passos Manuel (1836), para tentar reagir contra leis de autarquias do tempo das reformas de Mouzinho da Silveira, que eram muito centralizadoras: o poder central dominava as autarquias. Este código de 1836 era muito descentralizador.

A este primeiro texto sucedeu o Código de Costa Cabral, que era mais centralizador devido à tendência relativamente autoritária do seu governo.

Seguidamente, foi o Código de Rodrigues Sampaio, tecnicamente bem elaborado, mas que durou muito pouco (publicado em 1878), e que pretendia acabar com a excessiva centralização do código de Costa Cabral.

Em 1886, o governo de Luciano de Castro produziu um código novo que substituiu o anterior. Este não se pode dizer que era centralizador, era fruto do novo poder, e tanto assim que foi posteriormente reposto, entrando em vigor quando a

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República pôs fim ao consulado de João Franco (que também teve um código próprio, 1895/96).

A Primeira República adoptou o Código de Rodrigues Sampaio e o de Luciano de Castro, com algumas adaptações.

A Segunda República, autocrática, elaborou, efectivamente, um código novo que era fortemente centralizador, devido à tendência anti-democrática do regime vigente: Código de 1936/40, de Salazar-Marcelo Caetano.

A partir da década de 60, começa-se a falar em Portugal na publicação de um código do procedimento administrativo, integrando um núcleo de normas administrativas de tipo processual (procedimentos a ter na preparação e tomada de uma decisão, do modo de agir para com a defesa e informação dos cidadãos, etc..).

Viria a publicar-se no início da década de noventa, em Maio de 1992, e tal como é habitual noutros países, ultrapassa a

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matéria puramente procedimental, com a designação de Código de Procedimento Administrativo.

Com relevância codificadora, importa ainda destacar a publicação recente do Código do Processo nos Tribunais Administrativos.

***

§21. CRISE E EVOLUÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO COMO REPTO PERMANENTE SOBRE A DOUTRINA E O ENSINO

21.1. Evolução do direito administrativo ao longo de dois séculos

Em termos de factores de evolução do regime administrativo, como vimos, a reforma de Napoleão procurou, seguindo embora a tradição do liberalismo económico, dar seguimento a um conjunto de enquadramentos e opções que tinham existido nos dois séculos anteriores.

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Iremos, agora, concluir esta abordagem histórica sobre o direito administrativo, referindo-nos aos factores da sua evolução.

Podemos dizer que o direito administrativo, configurado no ano VIII, não conheceu nenhuma revolução administrativa depois desse ano, em França.

Existem, claro, algumas modificações de orientação do regime, aplicável à Administração Pública, mas nada será propriamente reconstruído sobre bases novas.

Em face da instabilidade das instituições políticas, que é um fenómeno verificado durante o século XIX em França, em Portugal e em outros países, as instituições administrativas aparecem como instituições relativamente estáveis.

E é, por isso, que as revoluções e a instabilidade política acabam, graças à estabilidade do aparelho e do regime do direito administrativo, por permitir a continuidade da actividade do Estado.

À Administração do ano VIII respondeu um regime autoritário.

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No tempo de Napoleão existia um regime ditatorial, um regime autoritário em termos políticos, mas que respeitou completamente o liberalismo económico. Mais tarde, verifica-se uma evolução.

É importante ficarmos com a ideia de como é que, ao longo dos séculos XIX e XX, a Administração Pública e o direito administrativo foram evoluindo, até mais ou menos aos nossos dias, incluindo a passagem dum Estado autoritário para um outro de convivência democrática, que se deu em função da evolução que se verificou na passagem dum Estado liberal para um Estado intervencionista, já mais no século XX.

Com efeito, o desenvolvimento da democracia, da liberdade política, não podia deixar de ter as suas influências na ordem administrativa.

Aprofundam-se todas as ideias lançadas pela Revolução Francesa, em termos de liberalismo político, e há uma inversão em relação ao período que se seguiu à Revolução e em que Napoleão imperou, quando o liberalismo económico

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perdeu terreno porque, por razões várias, vai começar a acentuar-se, por um lado, a democracia e, por outro, o intervencionismo do Estado na economia.

É esta a diferença substancial que se vai verificar e que tem influência na Administração Pública.

O liberalismo político exige, acima de tudo, que o cidadão seja protegido contra os excessos do Poder Público, contra o Poder Político.

Há a separação do Poder Executivo e do Poder Legislativo, havendo supremacia reconhecida da lei sobre o Poder Administrativo, dentro da ideologia da Revolução.

Mas, no início, as garantias legais, as garantias jurisdicionais, na reforma do ano VIII, eram muito atenuadas. Em termos de evolução do Regime Administrativo, as coisas vão modificar-se.

O processo evolutivo é no sentido do desenvolvimento das garantias legais a favor dos cidadãos e das garantias de protecção de controlo de decisão por

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instituições independentes, que são os Tribunais, a favor do cumprimento da lei por parte da Administração.

Isto vai conduzir, de certo modo, não apenas à submissão da Administração ao direito, mas também à submissão às decisões dos Tribunais.

A evolução é no sentido de submeter a Administração também aos Juízes, ou seja, dá-se um desenvolvimento gradual das garantias legais e jurisdicionais, o que, aos poucos, trará uma efectiva subordinação da Administração Pública ao Direito e aos Tribunais.

Depois, a evolução democrática vai também passar por uma outra evolução: a participação dos cidadãos no exercício do poder.

No plano administrativo, a relação entre os administrados e o Estado vai-se modificar.

No plano local, desde logo, vemos que a evolução, na sequência do período pós-napoleónico, é no sentido da existência dos administradores municipais, a que hoje

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chamamos Presidentes da Câmara.

A liberdade política tem outra exigência, que é a participação dos cidadãos no exercício do poder que os rege.

Aparecem modificações nas leis (aliás, aceleradas nos últimos tempos), no plano das relações entre os administrados, o Estado e a Administração Pública. O que acontece é que, com o desenvolvimento da liberdade política, são as próprias populações que ficam encarregadas de se regerem a si próprias. Elegem-se os Presidentes da Câmara, num processo de verdadeira descentralização de competências e poderes.

Há um fenómeno, ao longo do século XIX e, sobretudo, ao longo do século XX, de descentralização que, hoje, está consagrado como um princípio orientador da organização administrativa, na Constituição Portuguesa.

Hoje, há uma reflexão no sentido de, de certo modo, reformar a Administração, encontrando novas formas para fazer proceder a esta descentralização.

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A preocupação, em termos de regime administrativo, de aperfeiçoamento das garantias dos cidadãos, a protecção dos cidadãos contra o arbítrio da Administração e de promoção da participação dos cidadãos na acção administrativa, manifestações simultâneas que vão marcando uma evolução do direito administrativo, em termos de relacionamento entre a Administração e os administrados, e que é um processo inacabado.

Há uma evolução, no plano económico, do Estado liberal para o Estado intervencionista.

Há, sem dúvida, em geral, uma acentuada intervenção do Estado, pondo em causa os princípios do liberalismo económico, segundo os quais o Estado devia criar as condições legais para a actividade privada se processar, mas não deveria interferir e não deveria substituir-se à actividade privada.

É muito desta filosofia que vai estar em causa, porque vai dar-se o desenvolvimento económico acelerado das sociedades e o aumento da população.

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Dão-se novos desenvolvimentos tecnológicos e científicos. Surgem novas reivindicações, novos interesses a satisfazer e tudo isto vai aumentar consideravelmente as tarefas públicas nascidas dessas repercussões sobre a estrutura da sociedade.

O liberalismo não respondia ao desenvolvimento económico, ao desenvolvimento científico, ao desenvolvimento técnico, ao desenvolvimento social e, daí, o nascimento de filosofias socialistas, até ao marxismo, procurando reagir contra o extremo da desprotecção das classes mais desfavorecidas que tinham aparecido com a industrialização, em face da doutrina liberal que não intervinha, deixava as coisas acontecer e que permitia que os mais fortes explorassem os mais fracos.

É este crescendo da necessidade do Estado de responder às necessidades colectivas que vai levar a uma modificação do próprio fim da acção administrativa, vai levar a uma transformação do conceito do interesse geral a partir dos fins do século XIX e, depois, durante todo o século XX,

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com um recuo progressivo da concepção liberal do Estado, que é levado obrigatoriamente a ter de intervir nos problemas económicos e sociais.

O interesse geral, inicialmente, não englobava, mas impunha à Administração, a criação de organização para prosseguir algumas necessidades, como: a defesa nacional, as relações internacionais, a manutenção da segurança, da ordem interna, a criação de condições gerais para que a economia pudesse prosperar (infraestruturas, estradas, moeda, etc.), a realização da justiça.

Era a época do liberalismo ligado a um conceito próprio do interesse geral, que podemos chamar de época do Estado Gendarme.

No plano económico, o interesse geral começa também a integrar uma preocupação que é o excessivo crescimento do poderio económico.

A partir de certa altura, há uma percepção de que o Poder Económico pode pôr em causa o próprio Poder Político e,

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portanto, no plano económico, a ideia liberal era uma ideia que poderia ser, a prazo, asfixiante da margem de manobra do Poder Político e, por esse meio, asfixiar também a intervenção do Estado na evolução económica e no Poder Político.

No plano social, a miséria, a pobreza, a situação desfavorecida do operariado no mundo industrial, criadora do proletariado, vai impor o desenvolvimento, a pouco e pouco, de uma Administração Social. É a isto que se costuma chamar Estado Providência.

As próprias tarefas tradicionais do Estado vão sofrer algumas transformações trazidas por esta evolução. Por um lado, é a extensão das tarefas tradicionais, que vão ter uma dimensão muito maior, por exigências muito maiores, mas, por outro lado, é a aparição de novas tarefas do Estado.

Será o Estado Social de Direito a aparecer, após a 2ª Guerra Mundial. E o Estado preocupa-se, hoje, com os domínios do urbanismo, do ambiente, etc..

Alguns falam já no Estado pós-Social. Outros acentuam novos enquadramentos

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constitucionais, como o português ou o brasileiro, apelando à afirmação do Estado de Direito Ambiental.

O Estado já não é alheio a nada e aparece omnicompreensivamente a tratar de todos os aspectos da sociedade, englobando todas as actividades possíveis da satisfação das necessidades colectivas e, muitas vezes, devido a certas ideologias, entrando mesmo naquelas que os particulares conseguem enquadrar bem.

Com as revoluções do século XIX e do século XX, que são revoluções de ordem técnica e de ordem científica, começa a existir pressão social e consciência de que muitas necessidades colectivas não podem ser respondidas através da iniciativa privada, não se prestando ao jogo da concorrência.

Os privados são os primeiros a duvidar da sua rentabilidade. Há necessidade de intervir mais em domínios variados, como caminhos-de-ferro, telégrafos, telefone, higiene, protecção do ambiente, etc..

Assim, para além do fundamento da

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vivência democrática, há outro acontecimento histórico que também impõe alterações, quiçá mais radicais, o qual tem que ver com o aumento contínuo de tarefas públicas que a Administração Pública vai ter de assumir e que derivam, ao fim e ao cabo, dos desenvolvimentos tecnológicos e científicos.

Nesse contexto, será exigida à Administração uma maior organização para responder a novas necessidades públicas. Mantém-se na Administração Pública o facto de as coisas serem seguidas em função de um interesse geral, de um interesse público. Mas, a função de interesse público transforma-se, a partir do fim do século XIX, com um recuo progressivo do Estado liberal.

Portanto, o Estado vai ser chamado a intervir na economia e no social. E com isso entra em crise.

De início, o interesse público não iria muito mais além da defesa nacional, criação de ordem, etc.. As revoluções técnicas e científicas dos séculos XIX e XX fazem o Estado intervir em áreas que deveriam ser prosseguidas por iniciativa privada, em face da concepção do liberalismo económico.

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O Estado começa a intervir mais no plano económico e, também, no social, para responder a carências sociais derivadas, sobretudo, da industrialização.

Em geral, são as actividades tradicionais do Estado que se desenvolvem mais, mas há também outras que o Estado terá de desenvolver.

Há uma incidência recíproca porque, se a democracia vai obrigar a tomar em consideração muitas reivindicações, a necessidade de satisfazer, em novos domínios, interesses públicos, leva a Administração a responder a algo a que não atendia tradicionalmente. A Administração, que era limitada inicialmente a certos domínios tradicionais, hoje, praticamente, não tem limite.

Quanto ao resultado desta evolução, o que se pode dizer é que, ao longo deste tempo, se deu uma grande transformação do conteúdo das coisas que deram muitas vezes origem a um manter de estruturas, mas já com outro significado, com outra perspectivação.

Por exemplo, a estrutura hierárquica

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na Administração manteve-se sempre mas, a dada altura, os próprios agentes públicos deixaram de estar desprotegidos em face dos superiores hierárquicos. Passaram a ter algumas garantias de defesa.

Havia uma Administração complexa na pré-Revolução Francesa, em que o Privado e o Público dificilmente se distinguiam.

A verdade é que, com a Revolução e a reforma napoleónica, isto veio a ser colocado no sítio. Mas, com o tempo e maior necessidade de intervenção da Administração Pública, voltou a confusão, passando a haver áreas em que essa diferenciação deixou de se sentir.

Hoje, é frequente vermos pessoas colectivas privadas associadas a tarefas de interesse público e, nesta medida, serem dotadas de prerrogativas da Administração Pública. E eis que, após uma dada evolução, chegámos ao momento em que as relações entre a Administração e os particulares continuam a fazer avanços em termos de relações do Poder Administrativo e do sujeito administrado. Noutras áreas o cidadão aparece, face à Administração, numa dupla qualidade: umas vezes ele é

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consumidor e outras, é colaborador da Administração.

Com uma grande amplitude, mesmo nas áreas em que a Administração não age sob poder vinculado, mas sob poder discricionário, ou seja, quando tem várias opções possíveis à escolha, mesmo aí é possível que muitos dos seus actos possam vir a ser anulados, desde que um particular se sinta lesado e haja desvio de poder, isto é, a Administração tenha actuado não visando principalmente a prossecução do interesse público apontado pela lei.

Se ela causar prejuízo ao particular, ela é responsável e tem de pagar por isso. Por exemplo, um paiol explode e arrasa tudo à sua volta. Um carro despenha-se porque rebentou um pneu num buraco da estrada. Um peão é morto devido à queda de uma árvore podre sobre o passeio por onde seguia. As coisas evoluíram excepcionalmente em termos de garantias. Isto não quer dizer que a Administração tenha chegado ao fim da sua evolução, porque ainda há muito para fazer.

Muitas das noções fundamentais foram elaboradas no quadro do Estado

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liberal do século XIX, e outras têm sido objecto de resposta devido à necessidade da Administração criar novas tarefas.

Ela precisa de uma renovação constante o que a abriga ir-se adaptando, falando-se recorridamente em crise.

***

21.2. Evolução e crise permanente

O direito administrativo tem cerca de dois séculos e só atinge a maturidade a partir de meados do século passado.

No entanto, a doutrina em geral considera que ele, hoje, está em crise profunda, havendo autores, como o Prof. TORNE JIMENES, que já se referem a ele como uma «venerável relíquia».

O sistema do direito administrativo foi-se construindo no século XIX e nas primeiras décadas do século XX, nos vários países da Europa Continental, à volta de um núcleo comum de temas, que marcam a essência dogmática da nova ciência jurídica, e que atinge a maturidade após a II Grande Guerra.

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Todavia, neste período, também marcado pelo reforço da aproximação entre o sistema anglo-saxónico e o ocidental continental, constata-se o aparecimento de elementos de crise no plano orgânico, ligado à noção de serviço público, dada a intervenção directa do Estado no mundo económico, com a assumpção de actividades empresariais e com aquilo que alguns autores chamam «a penetração de elementos privatísticos».

Com efeito, a «dimension nouvelle de la crise du droit administratif» é ilustrada pela fuga crescente para a aplicação do direito privado, o que também aparece como factor ligado à crise actual do direito administrativo, pois «son champ d’application tend à se réduire insensiblement du fait de la plus large soumission de l’administration au droit commun et de l’atténuation du caractère dérogatoire de ses règles»89-90.

89 CHAPUS, R. –o.c..90 Bibliografia sobre direito administrativo e direito privado:

v.g., SOUSA, Marcelo Rebelo de; e –Direito Administrativo Geral:Introdução e princípios fundamentais. Tomo I, Lisboa : Dom Quixote, 2004; SANTAMARIA PASTOR -J. LAMARQUE -Recherches sur l’application du droit privé aux services publics administratifs, Paris, 1960 ; WALINE, J. -Recherche sur

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***

JACQUES CHEVALIER, na sua apresentação de um estudo sobre «As mudanças do direito administrativo», na Jornada de Estudos, organizada em 7 de Maio de 1993, pelo Centre Universitaire de Recherches Administratives et Politiques de Picardie91, lembrava o seguinte:

«Le thème de la ‘crise du droit administratif’ est devenu un des lieux com-muns de la pensée juridique française depuis les années quatre vingt: le socle de croyances sur lequel ce droit était bâti s‘est brutalement fissuré puis lézardé; critiqué de toutes parts et pris à revers par certaines mutations de l’ordre juridique, le droit administratif paraît être promis à une

l’application du droit privé par le juge administratif, Paris, 1962 ; ROMANO, S. A. -L’attività priva ta degli enti pubblici, Milano, 1979 (capacidad jurídica); MARZUOLI, C. -Principio di legalità e attività di diritto privato della pubblica amministrazione, Milano, 1982; SANTILLI, M. -Il diritto privato dello Stato: momenti di un itinerario tra pubblico e privato, Milano, 1985 ; EHLERS, D. -Rechtsstaatliche und prozessuale Probleme des Verwaltungsprivatrechts. DVBL 1983, p. 422 e ss.; ZEZSCHWITZ, F. V. -«Rechtsstatliche und prozessuale Probleme des Verwaltungsprivatrechts», NJW, 1983, p. 1.873 e ss..

91 Texto posteriormente publicado em «PRÉSENTATION».In Le Droit Administratif en Mutation. Paris :Puf. Centre universitaire de recherches administratives et politiques de Picardie, 1993, p.5-8.

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lente régression, sinon voué à une mort certaine. Le bien-fondé du modèle français de droit administratif que ‘le monde entier’ était censé envier est désormais posé».

(…)«Contrairement à certaines idées

reçues, le système français de droit administratif n’a donc jamais relevé de l’ordre de l’évidence; la crise actuelle paraît des lors relèver d’un phénomène cyclique». Esta crise será, pois, a «l’expression d’un simple processus récurrent».

Mas se o «droit administratif a en effet été périodiquement confronté à des mouvements de contestation et à des facteurs de déstabilisation»92, a verdade é que a «‘crise du droit administratif’, telle qu’elle s’est développée récemment, com-porte en effet des aspects nouveaux, qui excluent toute idée de simple répétition compulsive», pois, agora, «le mouvement de contestation du droit administratif a pris une coloration différente», tido pelos sectores gestionários que julgam poder exportar-se para aí os métodos da

92 Facto que nem o reforço «de l’indépendance du juge administratif n’a pus mis fin aux critiques», sendo certo que também «l’invocation tardive de certains ‘principes généraux du droit’ ne saurait faire oublier l’ampleur des dénaturations que le droit administratif a subies à l’épreuve des lois d’exception».

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administração privada e pelos sectores neo-liberais como um obstáculo à modernização necessária da Administração93, «le droit administratif a subi ainsi un déficit de légitimité dont on ne saurait sous-estimer l’importance».

Mas a crise actual do direito administrativo, embora apresente aspectos particulares, «cela ne signifie pas pour autant qu’elle constitue le signe avant-coureur, du déclin de celui-ci».

93 Muitas críticas aparecem ainda enformadas por preconceitos históricos como a ideuia de que o DA é um direito derrogatório do direito comum, privado, um direito de privilégio, um direito «estatutário» priviligiador da organização administrativa. Como destacava CHEVALIER, na apresentação do estudo do Centre universitaire de recherches administratives et politiques de Picardie, a que presidiu, «Sans doute, retrouve-t-on dans les approches managériale et néo-libérale, qui en réalité s‘entrecroisent et s‘appuient réciproquement (…), trace des critiques traditionnelles formulées à l’encontre d’un droit administratif, perçu comme droit de dérogation et de privilège: le droit administratif constituerait un cadre excessivement rigide, un véritable carcan, qui serait un obstacle à la modernisation nécessaire de l’administration; irréversiblement marqué du sceau de l’unilatéralité, il serait l’instrument de la mise en tutelle de la société par l’Etat. L ‘important est pourtant que ce mouvement de contestation émane, non seulement des professionnels de la politique et des intellectuels, mais encore de la doctrine administrative elle-même; et la circulation de ces représentations d’un champ à l’autre contribue à les conforter et à les objectiver». Desenvolvidamente, em DUBOIS, F.; ENGUELEGUELE, M.; LEFEVRE, G. ; LOISELLE ; M. –La contestation du droit administratif dans le champ intellectuel et politique, o.c., p.149-174.

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Como diz CHEVALIER, referindo-se à realidade do direito administrativo e da crise em França, «D‘abord, les sévères critiques formulées à l’encontre du droit administratif ont été en fin de compte salutaires, en incitant le Conseil d’Etat à réagir, dans un contexte désormais concurrentiel, par de nouvelles avancées jurisprudentielles94», que acrescenta: «La raréfaction progressive des critiques portant sur le droit administratif atteste que cet objectif a été atteint».

E, ainda:

«Par ailleurs, les mutations en cours de l’ordre juridique ne sauraient être perçues comme signant l’arrêt de mort du droit administratif. L ‘effet de l’essor de la jurisprudence constitutionnelle sur le droit administratif est beaucoup plus ambigü que la doctrine constitutionnelle l’a parfois

94 Em face do desafio, o Conseil d’Etat procurou positivamente retomar a iniciativa no campo dos Direitos e liberdades, e efectivou ainda aprofundamentos meritórios no domínio da responsabilidade», com claro alargamento da «responsabilidade-sanção», designadamente através da «découverte de nouveaux gisements de faute, la restriction du domaine de la faute lourde et une admission plus fréquente de la présomption de faute», propiciando um caminho de maior abertura para uma «meilleure indemnisation des victimes»: o.c., com referência ao estudo de LOCHAK, Danièle -«Réflexions sur les Fonctions Sociales de la Responsabilité Administrative à la Lumière des Récents Développements de la Jurisprudence et de la Législation», oc, p.275-316.

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prétendu: non seulement la jurisprudence constitutionnelle apparaît comme un élément du droit administratif lui-même, intégré à ce droit95, mais encore cette intégration ne saurait avoir lieu sans la contribution active du juge administratif96, comme le prouvent notamment les ajustements qu’il a apportés à la théorie des « principes généraux du droit»97 ; et, si elle est porteuse de contraintes pour le juge administratif, elle apparaît aussi comme un facteur de consolidation et d’extension de sou contrôle.

En pair, le juge constitutionnel et le juge administratif tendent à se prêter un appui mutuel, ce qui exclut toute idée de dépendance unilatérale et toute vision d’un ordre juridique monolithique.

On retrouve des mécanismes rigoureusement identiques en ce qui concerne l’intégration du droit communautaire. Cette capacité du droit administratif à perdurer en tant que corps de règles spécifiques est particulièrement manifeste en cas de nouveau partage des

95 CHEVALLIER, Jacques -«Le droit administratif entre science administrative et droit constitucionnel», o.c., p.11-50.

96 MERCUZOT, Benoît -«L’Intégration de la jurisprudence constitutionnelle à la Jurisprudence Administrative», o.c., p.175-200.

97 MENNA, Domenico -«la theorie des Principes Généraux du Droit a l’Épreuve de la Jurisprudence Constitucionnelle», o.c., p.201-210.

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compétences juridictionnelles - le transfert aux tribunaux judiciaires du contentieux des actes de certaines autorités administra-tives indépendantes n ‘impliquant pas, en tant que tel, un recul du droit administratif98 - et de modification des processus d’élaboration des normes: les sages eux-mêmes resteraient prisonniers d’un « habitus juridique » qui les pousserait à se soumettre aux canons de la production juridique (99).

La survie du droit administratif n’en est pus moins assortie d’une série de changements en profondeur, dont il convient de ne pus sous-estimer l’impor-tance.

lncontestablement, le modèle classique qui faisait du juge administratif le producteur, sinon exclusif, du moins primordial, d’un droit administratif conçu comme essentiellement jurisprudentiel, est en déclin (100): non seulement le juge administratif se trouve concurrencé par d’autres juridictions, notamment constitutionnelle et européennes, mais encore l’essor du droit écrit et le développement d’instances de régulation

98 DECOOPMAN, Nicole -«Le contrôle Juridictionnel des Autorités Administratives Indépendantes», o.c., P.211-230.

99 BACHIR-BENLAHSEN, M. -«Lois Sages et sagesse des Légistes: L’Énonciation du Droit en Matière de Bioéthique et d’Immigration»,o.c., p.231-256.

100 POIRMEUR, Y. ; FAYET, E.–idem.262

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situées plus en amont (101) tend à réduire son rôle dans la production normative.

On assiste ainsi à une transformation, sans doute irréversible, du mode de production du droit administratif, dans le sens de l’ouverture et du pluralisme. La production du droit administratif passe désormais par une multitude d’acteurs, qui interviennent à des moments et sous des formes diffé-rentes dans le processus normatif: l’intervention des sages est une des illus-trations typiques de cette évolution; en s ‘appuyant sur un ensemble de ressources, les sages ont réussi à s’imposer comme concurrents à part entière, à côté des professionnels de la politique et du droit, dans la compétition pour le « droit à dire le droit »102. Cette ouverture est assortie d’une volonté de rationalisation des modes d’édiction de la norme, qui suppose le recours à des méthodes scientifiques de préparation des décisions, notamment par la mobilisation des ressources de l’intelligence artificielle(103). Cette transformation des conditions de production du droit administratif a une incidence sur les professionnels de ce droit: elle entraîne la différenciation

101 DECOOPMAN, N., idem.102 BOURCIER, Danièle - idem.103 BOURCIER, D. -oc, p.257-274.

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croissante de l’offre de produits doctrinaux (104), ainsi que la perte d’attrait des positions juridictionnelles (105). Elle se double surtout d’une mutation dans le contenu même du droit administratif: l’équilibre lentement forgé au fil de l’histoire par le juge administratif entre les prérogatives dont devait être dotée l’administration et la protection des droits individuels, tend à être remis en cause, sous la pression des jurisprudences constitutionnelle et européennes (106); le droit administratif tend ainsi à être infléchi dans son contenu même par la remise en cause de certains privilèges administratifs et ce mouvement ne fera, selon toute probabilité, que s’amplifier au cours des années à venir.»

Não estando, pois, em causa a sobrevivência do direito administrativo, são vários os factores significativos e de resultados ainda não totalmente desvendáveis, que o acompanham, implicando mudanças de grande profundidade, ocasionadoras da crise que a ciência jusadministrativista atravessa.

104 POIRMEUR, Yves e FAYET, Emmanuelle -«La Doctrine Administrative et le Juge Administratif», oc, p.97-120.

105 KESSLER, Marie Christine-«L’Évasion des members du conseil d’État vers le secteur privé», oc, p.121-148.

106 MERCUZOT, Benoît -idem.264

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21.3. Evolução para o direito privado administrativizado.Caso do emprego público

Não só no plano da organização das entidades não territoriais da Administração Pública, como noutros domínios a aplicação do direito privado tem feito caminho, embora no plano da sua actividade a chamada «gestão privada» deva sempre ocorrer com aplicação do direito privado complementado com os princípios constitucionalizados do direito administrativo (n.º5 do artigo 2.º do Código do Procedimento Administrativo).

Um caso paradigmático desta evolução, aliás muito longe de estar terminada, é o do emprego público, cujo regime, por isso, embora em termos sintéticos, aqui se refere.

Em causa está, pois, a relação jurídica de emprego com a administração pública, além do regime de prestação de serviços na Administração Pública, em substituição do regime jurídico da função pública e do

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regime jurídico do contrato administrativo de provimento107.

*

A celebração de contratos de trabalho pelo Estado e outras pessoas colectivas públicas (designadamente, a Administração regional autónoma e a administração municipal108), é agora já admitido genericamente como regime normal para

107 A problemática geral da matéria exigiria um desenvolvimento maior, que aqui não se fará: contrato de trabalho: normas aplicáveis, o artigo 6.º da Lei n.º99/2003, de 22 de Agosto (CT) e a Lei n.º23/2004, de 22 de Junho (RJCITAP), as normas aplicáveis e as revogadas da Lei n.º 3/2004, de 15 de Março (LQIP), alterações e revogações nos DL n.º 184/89, de 2 de Junho (art.º9.º e 11.º-A) e n.º427/89, de 7 de Dezembro (art.ºs 18.º a 21.º), o regime jurídico do CITAP: aplicação do CT e legislação especial, especificidades do contrato individual de trabalho por tempo indeterminado na AP (âmbito orgânico de aplicação do regime jurídico do CIT na AP, processo de selecção, limites à contratação, forma contratual e menções obrigatórias, regime de aprovação dos regulamentos laborais, regime de contratação de pessoal de direcção e chefia, deveres dos trabalhadores, níveis remuneratórios, regime do despedimento colectivo e da extinção, fusão ou reestruturação dos serviços, tipologia e níveis das convenções colectivas de trabalho e sua articulação, princípio geral da revogação das normas especiais anteriores sobre a matéria e aplicação da LRJCITAP no tempo).

108 Mas sem aplicação dos n.º 3, 5 e 6 do artigo 7.º, n.º5 do artigo 9.º, n.º3 do artigo 11.º, n.º 2 do artigo 15.º e artigos 19.º a 21.º., a sua adaptação devendo excluir em geral a matéria sobre competências e o regime de intervenção tutelar: vide, neste sentido, RAMALHO, Maria do Rosário Palma; BRITO, Pedro Madeira de –Contrato de Trabalho na Administração Pública. Coimbra: Almedina, 2004.

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satisfação das necessidades públicas permanentes109, em paralelo com o da função pública (e não apenas a título excepcional como anteriormente); no seguimento da previsão expressa no artigo 6.º da Lei n.º99/2003, de 22 de Agosto, que aprovou o novo Código do Trabalho, vindo a Lei n.º23/2004, de 22 de Junho, e respectivas alterações ao Decreto-Lei n.º184/89, de 2 de Junho, e 427/89, de 7 de Dezembro (artigo 28.º) não só aplicar e adaptar o regime geral deste Código na Administração pública, como tratar matérias de «bases do regime e âmbito da função pública» (alínea t) do n.º1 do artigo 165.º da CRP).

Começarei por dizer, neste breve resumo do tema, que é necessária uma previsão expressa nos diplomas orgânicos das entidades públicas para as legitimar a celebrar contratos nos termos do Código do Trabalho, desde que o façam nos termos e

109 No entanto, conjugando os artigos 46.º e 34.º da Lei-Quadro dos Institutos Públicos, constata-se que o regime regra é o contrato de trabalho, embora possa adoptar-se o regime da função pública, devendo os diplomas instituidores determinar o regime concreto que será aplicado, sem prejuízo de em situações de transição institucional geral de regime, o da função pública só poder aplicar-se (manter-se) para o pessoal já em funções segundo esse regime (n.º 2 do artigo 46.º).

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sujeitos às especificidades deste regime de aplicação geral, designadamente debaixo da prévia criação de quadros específicos para esta categoria de empregados e quanto à Administração directa do Estado tendo presente as limitações em função das tarefas a desempenhar, que, para além das de apoio administrativo, auxiliar e serviços gerais (n.º1 do artigo 25.º), outras a definir em decreto-lei autónomo, que respeitará as excepções do n.º 4 do artigo 1.º.

O âmbito subjectivo de aplicação do regime do contrato de trabalho desenha-se através de um duplo dispositivo, um positivo (genericamente dizendo quem fica sujeito a este regime contratual laboral específico: n.º 1 e 2 do artigo 1.º) e outro negativo (dizendo quem fica excluído deste regime, independentemente de poder ou não recorrer à contratação privada nos termos gerais: n.º3 e 4 do artigo 1.º).

Os critérios excepcionatórios usados não são unívocos, pois tanto são de natureza material (actividades da Administração estadual directa: n.º4 do artigo 1.º) como institucional (exclusão tipológica orgânica: n.º3 do artigo 1.º)

O regime jurídico do contrato de trabalho não se aplica:

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a) Nem às entidades a que já se aplica normalmente o direito privado laboral sem especificidades: empresas públicas, pessoas colectivas particulares de utilidade pública administrativa, associações públicas, associações ou fundações criadas como pessoas colectivas de direito privado por pessoas colectivas de direito público, entidades administrativas independentes, universidades, institutos politécnicos e escolas não integradas do ensino superior, Banco de Portugal e os fundos que funcionam junto dele (n.º3 do artigo 1.º);

b) Nem, no âmbito da administração directa do Estado, às actividades que impliquem o exercício directo de poderes de autoridade, que definam situações jurídicas subjectivas de terceiros ou o exercício de poderes de soberania, que não podem ser objecto de contrato de trabalho por tempo indeterminado.

Quando as entidades públicas ajam como empregadores públicos (artigo 3.º):

a)-Equiparação, em geral, às grandes empresas privadas, no plano da aplicação das regras laborais privadas (Código do Trabalho, legislação especial e lei específica).

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b)-Equiparação, no domínio das relações de colaboração entre pessoas colectivas públicas ou da existência de estruturas organizativas comuns, às grandes empresas privadas (v.g., serviços partilhados com prestação de trabalho subordinado a mais de uma pessoa colectiva), com aplicação do regime da pluralidade de empregadores do Código do Trabalho.

c)-Dependência da sua celebração da existência de um quadro de pessoal de trabalhadores por tempo indeterminado e nos limites aí previstos (artigo 7.º).

d)-Sujeição destes contratos para funções dirigentes (direcção e chefia) ao regime de comissão de serviço prevista no próprio Código do Trabalho (artigo 6.º), e ficando tais dirigentes sujeitos ao regime de incompatibilidades e aos deveres específicos do pessoal no regime da Função Pública.

e)-Competência contratual, na Administração directa do Estado, apenas do dirigente máximo do serviço, sob pena de nulidade do mesmo e de responsabilidade civil, disciplinar e financeira dos titulares dos órgãos que os celebrem;

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f)-Comunicação ao Ministro das Finanças e ao membro do Governo que tiver a seu cargo a Administração Pública;

g)-Sujeição a autorização do Ministro das Finanças da sua celebração desde que envolvam encargos com remunerações globais (contando quaisquer suplementos remuneratórios, designadamente a fixação de indemnizações ou valores pecuniários incertos: n.º 6 do artigo 7.º) superiores às que resultam da aplicação de regulamentos internos ou dos instrumentos de regulamentação colectiva;

Quanto ao «empregados públicos», este contrato segundo o direito laboral privado não confere a qualidade de funcionário público ou agente administrativo, ainda que estas tenham um quadro de pessoal em regime de direito público (n.º2 do artigo 2.º).

Quanto ao regime jurídico dos trabalhadores públicos (artigo 2.º), ele é o do Código do Trabalho e legislação especial, mas com várias especificidades:

a)-No plano dos deveres especiais, regem as seguintes orientações (artigo 4.º):

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-sujeição aos deveres gerais do Código do Trabalho, instrumento de regulamentação colectiva de trabalho ou decorrentes do contrato;

-sujeição especial ao dever de prossecução do interesse público;

-obrigação de agir com imparcialidade e isenção perante os cidadãos;

-cumprimento do regime de incompatibilidades do pessoal com vínculo de funcionário público ou de agente administrativo;

-necessidade de autorização para exercerem outra actividade, nos mesmos termos que o pessoal com vínculo de funcionário ou agente;

b)- No plano do processo de celebração do contrato (artigo 5.º), ele tem que ser regido por regras (que devem constar dos estatutos ou dos regulamentos internos) de transparência (princípio da publicitação da oferta de trabalho: feita em jornal de expansão regional e nacional, incluindo obrigatoriamente informação sobre o serviço a que se destina, a actividade para a qual o trabalhador é contratado, os requisitos exigidos e os métodos e critérios objectivos de selecção),

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igualdade de acesso (respeito pela igualdade de condições e oportunidades) e rejeição de motivações de natureza subjectiva (selecção fundamentada, por escrito, comunicado aos candidatos, segundo critérios objectivos: métodos e critérios de selecção efectuados por uma comissão, preferencialmente constituída por pessoas com formação específica na área do recrutamento e selecção). Mas a este processo prévio de selecção não se aplica o Código do Procedimento Administrativo, a não ser no que se refere aos princípios gerais da actividade administrativa.

Estes contratos estão sujeitos à forma

escrita, sob pena de nulidade (artigo 8.º), devendo do mesmo constar, designadamente, o tipo de contrato e prazo (quando não for por tempo indeterminado), actividade contratada e retribuição do trabalhador (estas referências, tal como nome ou denominação e domicílio ou sede dos contraentes, também sob pena de nulidade) e, ainda, a indicação do processo de selecção adoptado e a identificação da entidade que autorizou a contratação.

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Estes contratos não podem conter um termo resolutivo (artigo 9.º), a não ser para:

a) livremente, para substituir, directa ou indirecta, outro empregado público (qualquer que seja o seu regime), ausente ou temporariamente impedido de prestar serviço, em relação ao qual esteja pendente em juízo acção de apreciação da licitude do despedimento, em situação de licença sem retribuição, ou em regime de tempo completo que passe a prestar trabalho a tempo parcial;

b)-sujeito a autorização do Ministro das Finanças e do membro do Governo que tiver a seu cargo a Administração Pública, para assegurar necessidades públicas urgentes de funcionamento das pessoas colectivas públicas (e, neste caso, só pode ser celebrado a termo certo);

c)-executar tarefa ocasional ou serviço determinado, precisamente definido e não duradouro;

d)-exercício de funções em estruturas temporárias;

e)- responder a um aumento excepcional e temporário da actividade do serviço;

f)-realizar projectos fora das actividades normais dos serviços;

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g)-quando a formação dos trabalhadores no âmbito das pessoas colectivas públicas envolva a prestação de trabalho subordinado.

Os contratos celebrados para assegurar necessidades públicas urgentes de funcionamento dos serviços (duração máxima de seis meses) e pelo facto de tarefas de formação dos trabalhadores envolver a prestação de trabalho subordinado, não podem ser celebrados a termo incerto.

*

Quanto ao contrato de trabalho a termo certo 110conta hoje com especificidades na AP que têm vindo a ser reguladas nos art.ºs 9.º e 10.º da Lei 23/2004 e subsidiariamente pelo Código do Trabalho111. De grande importância é a

110 Anteriormente regido pelo Decreto-Lei 427/89, de 7 de Dezembro, tal como previsto no Decreto-Lei n.º184/89, de 2 de Junho.

111 Em parte, dado o artigo 8.º do regime na AP, a al.c) do n.º 2 do artigo 103.º; artigo 108.º -período experimental; artigos 127.º e 128.º, 130.º -não o n.º 2, 131.º -não o n.º1, excepto al.e), e n.º4, 132.º -não o n.º3, 133.º a 138.º -mas a aplicação do artigo 135.º está condicionada ao disposto no artigos 5.º e 7.º do regime na AP, 139.º -não o n.º 3, 140 –não o n.º4, e 141 a 145.º- tudo sobre regras gerais, duração e renovação a termo certo e duração a

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aplicação do disposto no n.º3 do artigo 131.º do CT, que obriga também na Administração Pública, segundo o qual tem de se indicar o motivo justificativo da aposição da cláusula a termo, com menção expressa dos factos subjacentes e respectiva relação entre estes e o tempo do contrato. Há que atentar também em que o contrato de trabalho a termo resolutivo certo, que obedece a um processo de selecção simplificado (precedido de publicação da oferta de trabalho por meios adequados, com decisão reduzida a escrito e fundamentada em critérios objectivos de selecção), não pode ser celebrado, sob pena de nulidade, com cláusula de sujeição a renovação automática, caducando no termo do prazo máximo de duração previsto no Código do Trabalho, não se podendo converter em contrato por tempo indeterminado (artigo 10.º).

Finalmente, ainda, no âmbito do CITAP, refira-se que é possível a redução do período normal de trabalho ou a suspensão dos contratos, quando haja uma redução grave e anormal da sua actividade por

termo incerto, com excepção artigos 129.º, n.º 2 do artigo 130.º, n.º3 do artigo 331.º-efeitos da suspensão ou da redução de actividade, al.a) do artigo 387.º, 388.º e 389.º. cessação por caducidade.

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razões estruturais ou tecnológicas (declarada em termos devidamente fundamentados pelo ministro da tutela), pela ocorrência de catástrofes ou por outras razões de natureza análoga, nos mesmos termos do Código do Trabalho, com algumas especificidades (artigo 15.º e seguintes), sem prejuízo do direito do trabalhador a receber uma compensação retributiva (nos termos do Código do Trabalho)112.

112 Estes e outros temas serão desenvolvidos na cadeira de Regime Jurídico da Função Pública (melhor se diria hoje do emprego público). Desde logo, há que distinguir entre contratos de constituição de relação de emprego e os contratos de prestação de serviços, explicitando as especificidades do contrato de prestação de serviços à AP (art.ºs 10 e 11.º do DL 184/89). Depois outros temas igualmente essenciais são o do recrutamento e selecção de pessoal (o concurso como meio de acesso à função publica, os princípios fundamentais do recrutamento e selecção de pessoal, a classificação dos concursos, a abertura do concurso: competência, restrições e eventual obrigatoriedade, natureza jurídica do acto autorizador da abertura do concurso, a composição do júri, o aviso de abertura do concurso: requisitos e formas de divulgação, a apresentação das candidaturas e procedimento decisório, requisitos de admissão ao concurso, gerais e especiais, a lista dos candidatos admitidos e excluídos, os métodos de selecção, a classificação e ordenação dos candidatos, a audiência dos interessados, a homologação da acta contendo a lista de classificação final, a publicitação da classificação final, eventuais reacções contra o acto homologatório, a eficácia do acto homologatório. Seguidamente, importa tratar do acto de nomeação: modalidades e efeitos, a publicitação do despacho de nomeação, a aceitação da nomeação e seus efeitos. Essencial na economia da matéria é também o tema das modificações da relação jurídica de emprego com a Administração pública (âmbito de aplicação das modificações da relação jurídica e diferentes situações), a nomeação em substituição, a comissão de serviço extraordinária, a transferência, a permuta, a requisição e o

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II - NOMOGÉNESE DO DIREITO POSITIVO

§22.FONTES E FUNDAMENTOS INTERNACIONALISTAS E UNIONISTAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO:

destacamento e outras formas de modificação da relação jurídica de emprego. Outro tema a tratar é o da extinção da relação jurídica de emprego com a Administração pública, natureza taxativa das causas extintivas, causas de extinção próprias dos funcionários e comuns aos agentes e causas de extinção próprias dos agentes contratados em regime de contrato administrativo de provimento. A seguir, parece ser o momento de tratar do regime de progressão na categoria: a promoção na carreira e a reclassificação profissional; da acumulação de funções (acumulação de funções públicas, acumulação de funções privadas, autorização de acumulação de funções) e da antiguidade (e aposentação). Sobre o emprego público, quadros de pessoal e carreiras, há que desenvolver as questões relacionadas com as necessidades dos serviços públicos e a constituição de quadros de pessoal de direito público e privado, a competência para a aprovação dos quadros, as modalidades de quadros de pessoal: privativos, departamentais e interdepartamentais, a estruturação dos quadros de pessoal: grupos, carreiras e categorias; a noção de carreira e sua tipologia: verticais, horizontais, mistas e de dotação global, carreira como arquétipo ou como designação de profissão, as categorias: sua noção e diferenciação, as alterações aos quadros de pessoal, as classificações de serviço. Matéria também fundamental é a que se refere aos deveres funcionais e ao regime disciplinar substantivo e processual, que devem ser dadas com algum possível aprofundamento. Outras matérias a expor referem-se ao regime do horário de trabalho e das férias, faltas e licenças, segurança social e regalias dos trabalhadores estudantes. Finalmente, a matéria da publicidade dos actos relativos à situação do pessoal ao serviço da Administração pública merece algumas considerações: actos sujeitos a publicação em Diário da República e a publicidade como requisito de eficácia. E, se houver tempo, o sistema retributivo da função pública merecerá não só considerações genéricas introdutórias (direito ao lugar e ao exercício efectivo de funções, protecção constitucional da

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NOMOLOGIA, PLURALIDADE DAS FONTES DE CRIAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO

22.1. Considerações gerais

remuneração, caracteres gerais e natureza jurídica da remuneração dos funcionários e agentes administrativos), como um a certa explanação dos seus diferentes aspectos: componentes do sistema retributivo (remuneração base, adicional à remuneração, prestações sociais/familiares (e sua enumeração: subsídio familiar a crianças e jovens, subsídio por frequência de estabelecimento de educação especial, subsídio mensal vitalício, subsídio por assistência de terceira pessoa, subsídio de funeral; titularidade, condições de atribuição e duração das prestações sociais/familiares; cumulabilidade das prestações sociais /familiares, prestações de acção social complementar, subsídio por morte, subsídio de refeição, suplementos (por trabalho extraordinário, por trabalho nocturno, por trabalho em dia de descanso semanal e feriado, por disponibilidade permanente ou por outros regimes especiais de trabalho, por trabalho prestado em condições de risco, penosidade ou insalubridade, suplementos por incentivo à fixação em zonas de periferia, pela prestação de trabalho em regime de turnos, para falhas, pela participação em reuniões, comissões ou grupos de trabalho, por compensação de despesas efectuadas por motivo serviço (ajudas de custo em território nacional, ajudas de custo no estrangeiro, suplementos de transporte, despesas de representação, despesas por transferência para localidade diversa), as remunerações extraordinárias (subsídio de férias, subsídio de Natal), os limites remuneratórios, Os descontos obrigatórios e facultativos, o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, as quotas para aposentação e sobrevivência, a quota para a ADSE, a reposição e restituição de vencimentos. Bibliografia nacional sobre a matéria a destacar: ALFAIA, João -Conceitos Fundamentais do Regime Jurídico do Funcionalismo Público. Vol.I, 1985 e Vol.II, 1988. AMADO, João Leal -A protecção do salário. Coimbra, 1993. AZEVEDO, Arnaldo –Função Pública.(....). Lisboa: Grupo Editorial Vida Económica, 2000. BORGES, Luís Pais -«Concursos de Provimento na Administração Pública: Critérios de Avaliação». Revista do

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O direito administrativo, vigente na nossa ordem jurídica, é integrado, desde que Portugal pertence à União Europeia, não só por normas de produção nacional, mas também, em grande medida, por normas de direito internacional oriundos da

Ministério Público, Ano 10, n.º 39, p. 55-61. CARDOSO, Teresa Alves -«Atribuição de abono para falhas». Revista de Administração Local, n.º 123, Ano 14, Maio/Julho 1991, p. 454-456. CARVALHO, A. Nunes De -«Sobre o dever de ocupação efectiva do trabalhador». Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XXXIII (VI da 2, série), n.º 3-4, Julho/Dezembro 1991, p. 261-327. CAUPERS, João - Os Direitos Fundamentais dos trabalhadores e a Constituição. Lisboa, 1985.-«Situação jurídico comparada dos trabalhadores da Administração Pública e dos trabalhadores abrangidos pela legislação do contrato de trabalho». Revista de Direito e Estudos Sociais, Janeiro/Junho de 1989, Ano XXXI (IV da 2.ª Série), nº 1 e 2, p. 243-254.CORREIA, Sérvulo -Legalidade a Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos. Coimbra, 1987. COUTINHO, Pereira -«A relação de emprego público na Constituição: Algumas notas». In Estudos sobre a Constituição, 3.º Vol., p. 684-706. DIAS, Francisco Maria -Estatuto Remuneratório da Função Pública. Coimbra, 1990. ESTEVÃO, José Carlos -«A transferência dos funcionários na Administração Pública Portuguesa». Revista da Administração Pública, Ano V, nº 17, Julho/Setembro 1982, p. 389-421. FERNANDES, F. Liberal –«Sobre a proibição de conversão dos contratos de trabalho a termo certo no emprego público: comentário à jurisprudência do Tribunal Constitucional». QL, n.º19, 2002, p.76-95; -O direito de negociação colectiva na Administração Pública. QL, n.º12, 1998, p.221-225 (221); -Autonomia Colectiva dos Trabalhadores da Administração. Crise do modelo clássico de Emprego Público. Coimbra, 1995. FERNANDES, Monteiro -Direito do Trabalho. Vol. 1, 7ª Ed., 1991. GANHÃO -«A Acumulação de funções no funcionalismo público: Regime jurídico geral». Revista do Ministério Público, Ano 17, nº 67, Julho/Setembro 1996, p. 57-124. GODINHO, Júlio S. -«Conceito jurídico de funcionário e empregado público segundo o Código Penal». Mensário Administrativo, 1949, nº 22-23. GONÇALVES, Pedro - «Quem vence um concurso para escolha do funcionário a nomear: o primeiro classificado ou, em

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Comunidade Internacional, de âmbito geral, regional ou bilateral, e de Direito Comunitário Europeu ou Direito da União Europeia, oriundo das Instituições Europeias (dotadas de poderes multimateriais de natureza para-estatal, que

conjunto, todas os que ficam em condições de ser nomeados?». Cadernos de Justiça Administrativa, nº 6, Dezembro 1997, p. 20-22. JORDÃO, Carvalho -«Caracterização jurídico administrativa dos funcionários e agentes da Administração Regional Autónoma». Revista de Direito Público, Ano I, 1986, nº 2, p. 93-115.-«Limite de idade na função pública (Parecer)». In Scientia Juridica, Tomo XL, 1991, n° 229/234, p. 21-42. LEITE, Jorge -Direito do Trabalho e da Segurança Social. Lições ao 3º ano da Faculdade de Direito, Coimbra, 1986-1987.-«Flexibilidade funcional». Questões Laborais, Ano IV, 1997, nº 9-10, p. 5-37. LIMA, Pedro Pedroso de -«Nomeações de pessoal autárquico». Revista de Administração Local, Ano 10, n.º 102, Nov/Dez. 1987, p. 794-802. MACEDO, Adalberto Monteiro de -«A transferência como figura de inabilidade, pessoal e interdepartamental». Revista de Direito Administrativo, Ano 3, n.º 12-13, Março/Junho de 1982, p. 110-119.-«Contributos para uma teoria de mobilidade». Revista de Direito Público, Ano II, n.º 4, Julho 1988, p. 51-77.-«O destacamento na Administração Pública Portuguesa». Revista da Administração Pública, Ano 1, nº 2, Outubro/Dezembro 1978, p. 229-241.-«A requisição na Função Pública Portuguesa». Revista da Administração Pública, Ano II, nº 3, Janeiro/Março 1979, p. 75-84.-«As requisições no âmbito dos Gabinetes Ministeriais: Sector Empresarial e Função Pública propriamente dita». Revista de Direito Público, Ano 1, n.º1, Novembro de 1985, p. 119-132. MOURA, Paulo Veiga e –Função pública. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. MINISTÉRIO DA REFORMA DO ESTADO E DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, Direcção-Geral da Administração Pública –Regime Geral da Função Pública: Colectânea de Legislação. 4.ª Edição corrigida e actualizada. Lisboa:DGAP, Fevereiro de 2000. NEVES, Ana Fernandes –A preivatização das relações de trabalho na Administração Pública. In Caminhos da Privatização da Administração Pública. Coimbra, 2001, p.163-192; –«Os ‘desassossegos’ de Regime da Função Pública. Revista da faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. XLI, n.º1, 2000,

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lhes foram afectadas por atribuição directa ou com base em cláusula de ampliação evolutiva), ou de instituições de organizações internacionais clássicas, dotadas de atribuições especificadas, criadas em Tratados, celebrados pelos

p.49-69. OLIVEIRA, Eduardo Vaz de -«A Função Pública Portuguesa. Estatuto Novo ou Nova política?». Ciência e Técnica Fiscal, n°122, Fevereiro 1969, p. 7-111. OTERO, Paulo -«As garantias impugnatórias dos Particulares no Código do Procedimento Administrativo». Scientia Jurídica, Tomos XLI, nº 235-237, 1992, p. 49-76.-O poder de substituição em Direito Administrativo: Enquadramento Dogmático-constitucional, Lisboa, 1995. PINTO, Maria da Gloria Ferreira -«Serviço Público». Polis, Vol. V, p. 717-726. QUADROS, Fausto de -«Agentes Administrativos». Polis, Vol. 1, p. 187-189. RAMALHO, Maria do Rosário Palma –Contrato de trabalho na Administração pública: anotação à Lei n.º23/2004, de 22 de Junho. Coimbra: Almedina, 2004 RATO, António Fermiano -«A possibilidade de um funcionário público na situação de aposentado poder regressar à anterior situação no activo, reocupando o lugar que exercia». Revista de Direito Administrativo, Ano 1, nº 4, Julho/Agosto 1980, p. 273-286. RIBEIRO, José Ribeiro; Soledade -A relação jurídica de emprego na Administração Pública. Coimbra, 1994. RIBEIRO, Maria Teresa -Princípio da Imparcialidade da Administração Pública. Coimbra, 1996. RIBEIRO, Vinício -Estatuto Disciplinar dos Funcionários Públicos. Coimbra, 1990. SÁ, Almeno de -Administração do Estado, Administração Local e Princípio da Igualdade no Âmbito do Estatuto de Funcionário. Coimbra, 1985. TELLES, Fernando Galvão -«Dos funcionários putativos e da poder disciplinar da Administração». Revista de Direito Administrativo, Tomo V, 1961, p. 1-10. VITAL, Fézas -A situação dos funcionários (Sua natureza jurídica). 1915. BibliografIa estrangeira: AFONSO, Luís -«Superintendência na gestão e direcção do pessoal autárquico». Revista de Administração Local, Ano 10, nº 102, p. 779-793. ALONSO MAS, Maria José -La fiscalización jurisdiccional de las pruebas tipo test para el acceso a la función pública». Revista de Administración Pública, 144, septiembre/diciembre 1997, p. 171-

217. ALVAREZ GENDIN, Sabino -«El problema de las incompatibilidades de los funcionarios públicos». Revista de

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Estados ou pela celebrados pela UE, e cuja aplicação, em caso de divergência reguladora, têm primazia sobre quaisquer normas de fonte nacional (princípio do primado do Direito Internacional e do Direito da União Europeia ou Direito

Administración Pública, nº 39, septiembre/diciembre 1962, p. 93-126. BARRANCHINA JUAN, Eduardo -La Función Pública: Su Ordenamiento jurídico. Parte Especial, II, Vols. 1 e 2. BOUSBIA, Mahmoud -«Les systèmes de rémunérations dans la fonction publique». Revue Française d’Administration Publique, n.º 28, Octobre-Décembre 1983, p. 751-768. CÁDIZ DELEITO, José Luís -«Notas sobre la carrera profesional del funcionario público». Documentación Administrativa, n.º 210-211, mayo/septiembre 1987, p. 97-119. CAEN, Gérard Lyon -Le Salaire. Paris, 1981. CASTILLO BLANCO, Frederico A. -«Las problemáticas fronteras entre el Derecho laboral y el Derecho administrativo: a propósito de los contratos temporales en el sector público». Revista Española de Derecho Administrativo, n.º86. Madrid: Civitas, Abril/Junio 1995, p. 187-218. DE LA ROSA, Manuel Alvarez -«El régimen jurídico de las incompatibilidades en los contratos de trabajo del sector público». Documentación Administrativa, n.°210-211, mayo/septiembre 1987, p. 227-265. DIEZ QUIJADA, Angel Martin -«La remuneración de los funcionarios». Revista de Administración Pública, n.º39, septiembre/diciembre 1962, p. 151-185. DUFFAU, Jean-Marie -«Les rémunérations principales dans la fonction publique. Problématique générale». Revue Française d’Administration Publique, nº 28, Octobre/Décembre 1983, p. 769-787. FÉREZ, Manuel -«El sistema de mérito en el empleo público: principales singularidades y analogías respecto del empleo en el sector privado». Documentación Administrativa, nº 241-242, Enero/Agosto 1995, p. 61-123. GAZIER, François -La fonction publique dans le monde. Bibliothèque de L’Institut International d’Administration Publique, Ed. Cujas, 1972. GENTOT, Michel -«Les rémunérations accessoires dans la fonction publique». Révue Française d’Administration Publique, n.º 28, Octobre 1983, p. 789-801. GUAITA, Aurelio -«El ascenso de los funcionarios públicos».Revista de Administración Pública, nº 39, septiembre/diciembre 1962, p. 127-150. GUTIERREZ REÑÓN, Alberto -«La carrera administrativa en España: evolución histórica

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Comunitário Europeu).

O Direito da União Europeia, salvo as normas sobre organização e poderes das instituições e de outros órgãos da União e normas sobre sociedades europeias e

y perspectivas». Documentación Administrativa, nº 210, mayo/septiembre 1987, p. 45-70. JAEGER, Marc -«La Notion D’Emploi Dans L’Administration Publique au Sens de L’article 48, paragraphe 4, du Traité CEE, à Travers la Jurisprudence de la Cour». Rivista di Diritto Europeo, nº 4, Oct./Dic.1990. LOPEZ GOMEZ, J. M. -El régimen jurídico del personal laboral de las Administraciones Públicas. Madrid: Tecnos, 1995. LOPEZ NAVARRO, Luís -Funcionários públicos, 1940. LOUVARIS, Antoine -«La constitutionnalisation du droit de la fonction publique». Revue du Droit Public et de la Science Politique en France et à L’étranger. Tome cent huit, Septembre/Octobre 1992, p. 1402-1450. MEDINA, Lúcia -«Transição de pessoal em situação irregular». Revista de Administração Local, Ano 16, nº 137, Set./Out., 1993, p. 559-562. MERLE, M. -«La règle du paiement après service fait». Revue de Science et Législation, 1950. MUZELLEC, R. -«Privatización y contractualización en la función pública». Documentación Administrativa, n.° 239, julio/septiembre 1994, p. 125-141. NIETO, Alejandro -«Los derechos adquiridos de los funcionarios». Revista de Administración Pública, nº 39, septiembre/diciembre 1962, p. 241-266. OJEDA AVILÉS, A. -«Los limites del paradigma laboral en la función pública». Relaciones Laborales, 1991. PALOMAR OLMEDA, Alberto -Derecho de la función pública. Régimen jurídico de los funcionarios públicos. Madrid: Dikynson, 1996. PARADA VÁZQUEZ, Ramón -Derecho administrativo y empleo público. Vol II, 5.ª ed.,1996. PIÑAR MAÑAS, J. L. -«El pleno control jurisdiccional de los concursos y oposiciones». Documentación Administrativa, n.º 220, 1989, p. 135 e ss. PRATS CATALÀ, Juan -«Los fundamentos institucionales del sistema de mérito: la obligada distinción entre función público y empleo público». Documentación Administrativa, n.º 241-242, Enero/Agosto 1995, p. 11-59. RODRÍGUEZ RAMOS, Maria José –El Estatuto de los Funcionarios Públicos: su convergencia con el Estatuto de los trabajadores (Actualizado Conforme a la Ley 13/1990, de 30 de diciembre).Granada: Editorial Comares, 1997.

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poucas mais, são, em geral, normas de direito administrativo, pelo que, pela sua importância e volume, a teoria das suas fontes é matéria extremamente importante no estudo quer do direito administrativo geral, quer de vários ramos de direito administrativo especial.

Sendo o Estado português um Estado unionista europeu, sujeito à nomogénese comunitária europeia, em processo «aberto» à contínua unificação europeia113, não admira que se esteja face a matéria que as revisões constitucionais procuraram enquadrar nos n.º 6 do artigo 7.º e n.º 3 e 4 do artigo 8.º, e, tendo presente essa importância quantitativa e qualitativa, tanto em domínios substantivos como procedimentais e jurisdicionais, do direito administrativo oriundo das Instituições da União, é de interesse ministrar conceitos

SÁNCHEZ MORÓN, Miguel –Derecho da le Función Pública. Cuarta Edición, Madrid: tecnos, 2004. TARDIO PATO, J. A. -Control jurisdiccional de los concursos de merito, oposiciones y exámenes académicos. Madrid: Civitas, 1986. TOLEDO, Octavio de -La prevaricación del funcionario público. Madrid: Civitas, 1979. TREVIJANO FOS, J. A Garcia -«Relación orgánica y relación de servicio en los funcionarios públicos». Revista de Administración Pública, nº 13, enero/abril 1954, p. 53-101.

113 Usando aqui a expressão «aberto» com um sentido já anteriormente utilizado em outra obra (Direito do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2001), e que, à falta de melhor terminologia, também LUCIANO PAREJO ALFONSO, em seu recente Manual, acabou por acolher.

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basilares sobre o tema114, matéria a que passamos a referir-nos.

Com efeito, Portugal é membro da União Europeia, encontrando-se as suas autoridades legislativas e administrativas, enquanto Administração indirecta da União, obrigadas a aplicar o direito comunitário europeu.

Por isso, além da afirmação inicial da existência do primado do direito comunitário, designadamente dos princípios de direito administrativo geral, designadamente procedimental comunitário, sobre qualquer norma de direito interno, importa tecer algumas considerações gerais sobre a nomologia comunitária.

*

Começamos por referir que também se integram neste direito de aplicação obrigatória por todas as entidades do Estado e cidadãos as normas de direito internacional, de aplicação ligada à cláusula

114 Domínio em que seguimos os tópicos da exposição relativamente sintética «Nomologia comunitária», inserida na nossa publicação Direito do Ambiente, edição da Almedina, 2001, p.283 e ss.

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da recepção plena, e também afastando a aplicação de normas de fonte nacional incompatíveis (princípio do monismo com primado do direito internacional e n.º 1º e 2.º do artigo 8.º da CRP).

Estas afirmações levam-nos a tratar, nesta altura, da nomologia administrativa, dado que, numa Administração nomocrática, subordinada não só aos legisladores internos mas também aos supra-nacionais e ao direito internacional, ganha grande importância a questão da identificação e hierarquização das fontes globais do direito administrativo que lhe é aplicável.

Vamos fazer breves referências quer ao DIP e especialmente ao jus cogens internacional quer ao direito da União Europeia (o direito originário: convencional, cuja fonte está nas normas dos tratados e, em breve, Tratado Único de Lisboa; o direito derivado: institucional, cuja fonte está em normas e actos jurídicos produzidos pelos órgãos cimeiros, de natureza para estatal, as chamadas Instituições da União; e o direito complementar: também convencional constante das normas de tratados celebrados pela União com estados terceiros, estritamente nos termos das Convenções de Viena do Direitos dos

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Tratados).

Depois, uma referência, em geral recapitulativa de matéria tida como dada noutras cadeiras, às normas da Constituição, desde as normas directamente aplicáveis e exequíveis por si mesmas; normas não exequíveis por si mesmas e normas programáticas), interpretação sobre o enquadramento do DIP em geral e do DUE (artigo 8.º da CRP), leis ordinárias de valor reforçado geral e específico, leis ordinárias, regulamentos estaduais (decreto regulamentar, resolução, portaria e despacho normativo, etc.) e infra-estaduais, costume, jurisprudência e doutrina.

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22.2.TEORIA GERAL DAS FONTES DE DIREITO ADMINISTRATIVO

22.2.1. Considerações prévias sobre as fontes do direito administrativo

O direito administrativo tem, em geral, as mesmas espécies de fontes que a generalidade dos outros ramos do direito, aplicando-se-lhe os mesmos princípios que, cientificamente, se construam, em geral, em sede da teoria nomocrática.

Mas, tudo isto, sem prejuízo de, por um lado, como é frequente em outros sectores da normatividade, se dever constatar especialidades, com significado no regime das fontes (com influência no campo da determinação das normas aplicáveis e do sentido a atribuir-lhes).

E, por outro, depararmos aqui com tipos de fontes com especial importância, como acontece com os princípios de aplicação à actividade administrativa em geral, em gestão pública ou em gestão privada (direito privado administrativizado), hoje constitucionalizados.

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Estes princípios assumem um mesmo valor jurídico, por força da lei e da existência de vastos poderes discricionários em muitas matérias).

E tem, mesmo, de se acrescentar a importância de certos tipos de fontes específicas, como acontece com as praxes administrativas e de práticas interpretativas correntes, não só obrigando à fundamentação das soluções deferentes como preenchendo a densificação da cláusula geral de autorização de poderes delegados em imediatos inferiores hierárquicos, adjuntos ou substitutos (n.º1 do artigo 35.º do CPA).

E não pode esquecer-se a especial quantidade e portanto importância da multiplicidade, por vezes escalonada, de regulamentos, mas também as directivas internas e pareceres ou recomendações, designadamente do Provedor de Justiça115 e deliberações de Entidades Independentes116.

115 E as decisões, se, ao na linha da teoria do DUE, incluirmos também os actos administrativos como fonte de direito.Vide, v.g., CONDESSO, F. – «A nomologia comunitária». In Direito do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2001, p.283 e ss.

116 Artigo 24.º, n.º2, al.c) do EERC: «Aprovar regulamentos, directivas e decisões, bem como as demais deliberações que lhe

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Além disso, realce-se o facto de estarmos perante uma área do direito que vive não apenas de normas verticais, que tratam directamente matérias como o ambiente, directamente aplicáveis, em termos imperativos ou subsidiariamente, mas também de normas de direito judiciário e processual, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o que significa que, nos termos dos critérios distintivos tradicionais, é enformado por normas quer de natureza orgânica, quer substantivas, quer processuais, e cujas fontes e seus regimes jurídicos diversos adquirem relevo maior ou menor, mas que importa destacar e situar.

Vamos estudar primeiro, sinteticamente, a teoria geral das fontes de direito e depois apontaremos alguns diplomas fundamentais que se lhe referem e abordaremos o papel das outras fontes, sejam as internas (geradas no âmbito da comunidade nacional) sejam as comunitárias europeias e as internacionais

são atribuídas pela lei e pelos presentes Estatutos». N.º 6 do artigo 65.º: «Os regulamentos, as directivas, as recomendações e as decisões da Entidade Reguladora da Comunicação (…)».

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(geradas no âmbito supranacional da União Europeia ou da sociedade internacional em geral).

22.2.2.TEORIA DAS FONTES DE DIREITO EM GERAL

A)- TEORIA CLÁSSICA E NEOCLÁSSICA

Na teoria clássica das fontes, vigente em Portugal na maior parte do século XX, e cuja orientação aparece seguida no Código Civil de 1966, a fonte formal de direito era a lei (norma positiva) e a jurisprudência apenas a título excepcional, quando imposta por lei (os assentos, enquanto acórdãos uniformizadores da jurisprudência com impositividade prevista a partir de 1926), aparecendo o costume com força obrigatória dependente da lei, mas não se aceitando o costume autónomo, que se afirmasse por si mesmo (apesar de ser a fonte mais antiga e «genuína»117), nem a jurisprudência e a doutrina enquanto tais.

Com efeito, segundo o Código Civil 117 AMARAL, Diogo Freitas do –Manual de Introdução ao

Direiuto. Colaboração Ravi Afonso Pereira. Coimbra: Almedina, 2004, p.371.

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(artigos 1.º a 4.º, com estatuições com pretensão nesta matéria, a assumir uma natureza materialmente constitucional; de regulação exclusiva das fontes), a principal fonte imediata era a lei e previam-se como fontes mediatas, dependente da vontade da lei (ou seja, existentes na medida em que do legislador lhe conferisse tal qualidade), os assentos, os usos e a equidade (apesar de não se compreender tal integração, pois esta não é fonte de factos normativos, mas apenas um modo de decisão meramente casuística, ou seja, recurso admissível, em certas situações, para casos individuais e concretos118).

B)- TEORIA GERAL ADOPTADA E POSIÇÃO SOBRE A QUESTÃO DAS FONTES DE DIREITO ADMINISTRATIVO, SUA HIERARQUIZAÇÃO E APLICAÇÃO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Nesta matéria, remete-se para os conhecimentos já adquiridos na Introdução ao Estudo Direito ou em Princípios Gerais de Direito119, limitando-nos antes a expor as

118 AMARAL, D.F. –o.c., p.359.119 Quer em termos de fontes, quer de competências para

legislar (Assembleia da República, Governo, Assembleias 293

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questões específicas que se levantam ao nível da aplicação do direito administrativo, e onde há que tomar-se posição clara sobre a aplicação do direito pela Administração Pública, em que, em geral, as posições da doutrina portuguesa não nos têm merecido acolhimento, designadamente quanto às fontes do direito, à sua hierarquização e à aplicação pela Administração Pública.

*

Os temas que consideramos de interesse desenvolver aos alunos de direito do ISCSP, sobre a teoria das fontes do direito e a sua hierarquia (em que se interligam considerações sobre a teoria da produção das fontes internas, das fontes de direito da União Europeia, das fontes de direito internacional e sua relativa ordenação global), podem ser ordenados do seguinte modo:

a)- noção de fontes do direito e a noção de norma jurídica; sentido jurídico-formal de fonte de direito; fontes de actos Legislativas Regionais) ou regulamentar, quer sobre a forma e publicação das leis e a sua vigência ou a teoria jurídico-política da lei, processos legislativos, etc., matérias que, a não serem dadas em PGD, melhor caberão na cadeira de Direito Político ou de Direito Constitucional.

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jurídicos em geral e fontes de normas jurídicas;

b)- tipologia das normas jurídicas: tipologia estrutural (regras e princípios; princípios generais do direito); tipologia formal das normas jurídicas (normas de tratados internacionais e unionistas, normas constitucionais, leis, regulamentos); classificação das normas jurídicas;

c)- teoria das fontes: teoria nacionalista positivista (clássica) das fontes e o CCV de 1946; teorias neoclássica pós-Constituição da República Portuguesa; reformulação da teoria das fontes imposta pela realidade político-social do país: teoria realista, pan-nomocrática, integradora de todas as fontes e segundo um escalonamento de hierarquização a todos os níveis, coerente com a ordenação relativa dos vários poderes, supra e intranacionais, que é a que corresponde à nossa posição tradicional e à doutrina pluralista das fontes expressa no Manual de Introdução ao Direito, de DIOGO FREITAS DO AMARAL120;

120 AMARAL, D.F.-Manual de Introdução ao Direito.Coimbra: Almedina, 2004, I Vol., p.343 e ss. Índice temático do capítulo sobre o sistema da hierarquia das fontes: O problema da hierarquia das fontes, O problema em face da teoria clássica, A

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questão da equidade e o artigo 4.º do CCV;

d)- princípio de hierarquia, ordenamento integral das várias fontes121e sua razão de ser.

***

Quanto à noção de fonte, começo por referir que a palavra fonte é equivoca por ser multívoca, podendo atribuir-se-lhe vários sentidos, desde o sentido físico a sentidos teoria neo-clássica: um constitucionalismo nacionalista, A Posição de DIOGO FREITAS DO AMARAL: As fontes internacionais, As fontes comunitárias europeias, A guerra e a revolução, A Constituição, O Direito ordinário, ou infra-constitucional.

121 Artigo 1º do CCV (Fontes imediatas): «1São fontes imediatas do direito as leis e as normas corporativas. 2. Consideram-se leis todas as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais competentes; são normas corporativas as regras ditadas pelos organismos representativos das diferentes categorias morais, culturais, económicas ou profissionais, no domínio das suas atribuições, bem como os respectivos estatutos e regulamentos internos. 3. As normas corporativas não podem contrariar as disposições legais de carácter imperativo»; Artigo 2º (Assentos): «Nos casos declarados na lei, podem os tribunais fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral» (Revogado pelo Decreto-Lei 329-A/95, de 12-12); Artigo 3º (Valor jurídico dos usos):«1. Os usos que não forem contrários aos princípios da boa fé são juridicamente atendíveis quando a lei o determine. 2. As normas corporativas prevalecem sobre os usos; Artigo 4º (Valor da equidade): Os tribunais só podem resolver segundo a equidade): Quando haja disposição legal que o permita; b) Quando haja acordo das partes e a relação jurídica não seja indisponível; c) Quando as partes tenham previamente convencionado o recurso à equidade, nos termos aplicáveis à cláusula compromissória» (Código Civil, Livro I, Parte Geral, Título I, Das leis, sua interpretação e aplicação, Capítulo I, Fontes do direito).

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metafísicos. Se de facto, no primeiro sentido, o vocábulo fonte é usado correntemente com um significado, o de nascente de água, já, em sentido figurado, é usado com sentidos mais extensos, normalmente, embora não só, à volta das ideias de causa, factor desencadeante, nascente ou origem de algo.

Em sentido figurado, mas próximo do literal, a aplicação do vocábulo fontes no âmbito do direito (fontes de direito, mesmo que um pouco forçada à realidade e ciência do direito) traduziria a ideia de factos de onde parte (origens, causas) o aparecimento de normas de conduta social consideradas como impositivas (com força jurídica), ou que as viabiliza ou que funcionam como circunstâncias que conformam as suas soluções concretas.

Ou seja, não são as normas em si, mas os vários tipos de factos (jurídicos) criadores destas122, as organizações que a processam ou os factores que implicaram uma dada modelação concreta do seu conteúdo123.

122 MARQUES, José Dias –Introdução ao Estudo do Direito .3.ªEd., Lisboa: José Dias Marques, 1970, p.197 e ss.

123 Os diplomas concretos em que aparecem escritas na medida em que são apenas o continente das normas, são

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*

Mas podemos falar de fonte de direito em vários sentidos:

a)- fonte radical (de radix, radicis, raiz), causal, a um tempo justificativa e aferidora da validade do direito, identificada com o Direito Natural ou Direito Racional, que sem necessidade de positivação seria fonte normal do direito e, mais do que fonte de direito, seria também fonte e medida de validade do direito positivo;

b)- fonte explicitadora do direito (material, explicativa ou fonte iuris cognoscendi), para referir a fonte do conhecimento do direito; e

c)- fonte expositiva (ou fonte iuris essendi), para significar as normas (o direito exposto, normas que se expõem) em sentido directamente normativo: as normas de conduta e de produção dessas mesmas normas comportamentais (ou normas primárias e secundárias, na construção de H. Hart)124.designados como fontes em sentido textual, para se distinguir do seu sentido jurídico-formal, ou seja, dos factos normativos.

124 Próximo desta catalogação, no plano jurídico, veja-se De Castro, enunciando como principais, os três tipos de fontes que considera utilizados na ciência jurídica, que denomina fonte filosófica (raíz do jurídico), fonte técnica (fontes de direito positivo,

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*

A expressão fontes de direito é usada na teoria do direito em sentido formal, como as maneiras através das quais se efectiva, independentemente das suas modalidades, o aparecimento escrito ou oral (criação ou revelação) de normas com força jurídica.

Portanto refere-se quer às fontes produtoras de factos normativos (quanto ao direito de origem estadual, -e sem prejuízo de outros centros estaduais não oficiais ou supra e infra-estaduais, públicos ou particulares, geradores de normas jurídicas-, o direito estadual oficial nasce dos poderes legislativo, executivo e jurisdicional do Estado), criadores, modificadores ou extintores de normas (actos normativos legislativos,

com a sua variada tipologia de normas constituindo o ordenamento jurídico positivo, determinadas legitimamente por organizações jurídicas, v.g., lei, costume) e fonte instrumental («fontes de conhecimento do direito positivo ou o material que se utiliza para averiguar o conteúdo das normas jurídicas»):DE CASTRO, F. – Naturaleza de las reglas para la interpretación. Madrid, 1978, p.139-140.. há quem fale no direito como faculdades (como direitos subjectivos), como norma (como fonte xe direito objectivo) ou como conhecimento ou ciência (como fonte do conhecimento do direito ): CASTAN TOBEÑAS, J –Derecho Civil Español Común y Foral. Ed.rev.ista por José Luis de los Mozos. Madrid, 1975.

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administrativos e jurisdicionais; fontes constitutivas de direito, modos de o produzir, fontes juris essendi,125), quer às fontes reveladas, que permitem aceder ao conhecimento do direito complementando (adicionando, suprindo, corrigindo ou modificando) os factos normativos produtores deste (factos de natureza diversa, como a doutrina, as regras de ciência ou de arte, ou mesmo factos normativos de natureza interpretativa: fontes declarativas, reveladoras, modos de o conhecer, fontes juris cognoscendi126.

Quanto às teses sobre as fontes, constata-se que, na literatura nacional, temos, de um lado, as tradicionais teses clássicas, que rejeitamos, e, do outro, a tese realista (que sempre perfilhámos, nas várias disciplinas em que tivemos de expor sobre fontes, designadamente nas cadeiras de direito comunitário, direito internacional público, direito da comunicação social e direito administrativo, e que, recentemente, aparece bastante desenvolvida e fundamentada, em termos muito semelhantes, por DIOGO FREITAS DO

125 Traduzindo à letra: fontes do ser do direito.126 Traduzindo à letra: fontes «de conhecimento do direito».

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AMARAL, no seu Manual de Introdução ao Direito).

Não podemos deixar de nos demarcarmos de teses neoclássicas, em posturas em que se reconhecem progressos de base teórica, mas que, ficando sempre a meio caminho, entre novos princípios e dados políticos, que se aceitam em face da realidade, para a qual se mostra sensibilidade, mas dos quais não se tiram todas as consequências, e, portanto, imprimindo avanços relativos em simultâneo coma a manutenção, em parte, de soluções tradicionais, com conclusões «à la carte» (que lhes introduz toda uma incoerência científica), de que os próprios não conseguem deixar de se admirar e lamentar.

Mesmo que os propósitos afirmados parecem diferentes, em geral, acabamos realmente por nos deparar perante construções globais incoerentes, que só aparentemente poderiam fugir a uma integração no rol de teses neoclássicas, dado que se situam mais numa postura de racionalização de parte do status quo e, portanto, de conformação com as práticas ou na maior parte continuando presas às

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bases e premissas de reflexão das doutrinas correntes, de que não conseguem afastar-se (por vezes, afirmando o direito a partir de textos e dogmas não jurídicos, mesmo que respeitáveis), até chegarem, finalmente, em sede de antinomias jurídicas a concluir, em sede de regras de hierarquização aplicativa das normas, que as cientificamente válidas o são apenas para os tribunais, mas não para a Administração Pública, ou seja, que a Administração Pública deve aplicar um direito diferente do dos tribunais e, portanto, também daquele a que estão sujeitos os administrados, numa construção dual, pretensamente científica, em que o direito poderia, ao mesmo tempo, ser e não ser, pois que o cidadão, em caso de conflito de normas ou de sucessão de normas ou de cumulação de normas de poderes diferentes, não poderia deixar de procurar reger-se pela norma que deve ser aplicável127, mas em que a Administração Pública teria que aplicar normas diferentes realmente e não aplicáveis128, porque

127 O cidadão não tem de conhecer a norma que é aplicável em cada momento e interpretá-la correctamente (ignorantia legis non excusat: vide artigo 6.º do CCV)?

128 E na medida em que, quem desobedecer às autoridades, comete o crime do artigo 348.º do Código Penal (desobediência à autoridade pública), sujeitando-se o cidadão, por princípio, a estar sujeito a processos crimes se quiser cumprir, contra a posição

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pautando-se essencialmente pelo princípio lex posterior ou, quando muito, lex specialis, com desprezo em geral da supremacia da norma constitucional, do DIP e do DUE, para que caiba depois aos tribunais, nos poucos casos que aí vão parar, intervirem para repor a verdadeira legalidade, aplicando as normas que devem ser cientificamente aplicáveis129-130. errada da autoridade, a norma aplicável, sob pena de se sujeitar a julgamento e provar em tribunal a ilegalidade da ordem por invocação de norma indevida, para obter a justa absolvição? Se os tribunais não podem aplicar normas injustas ou imorais, por força da própria cRP, como pode admitir-se tal postura injusta e até imoral, por princípio, no agir da Administração Pública?

129 Em geral, comungamos das posições e argumentos de DIOGO FREITAS DO AMARAL, que explanaremos, posições que sempre foram em geral as nossas, constantes de textos (e lições policopiadas desde 1992), sofrendo a influência da universidade de Bruxelas, onde, na década de oitenta, estudamos, sem prejuízo de mantermos definições, expressões, argumentos e até algumas posições distintas, na linha do que sempre ensinamos.

130 Vide, v.g., JORGE MIRANDA –Direito Constitucional. 3.ª Ed, Vol III.Não nos referiremos desenvolvidamente às posições com que PAULO OTERO, em recente livro denominado Legalidade e Administração Pública, enfileira na defesa de uma doutrina que obriga ou dispensa a Administração Pública de pocurar aplicar a norma que resulta aplicável, para os cidadãos e os tribunais, segundo os critérios científicos da hierarquia das normas, após um esforço de longa investigação neste caminho (tal como não é aqui o ligar para desmontar todas a argumentação em que assentam estas doutrinas criadores a de uma dualidade de direitos aplicáveis num só ordenamento jurídico). Mas, repescando algumas passagens mais significativas deste autor, no que se refere à aplicação das normas pela Administração Pública, não deixamos de referir que o autor opta por preferir «sacrificar momentaneamente a discussão sobre a validade do fundamento normativo da actuação administrativa e, nesse sentido, a própria validade da respectiva decisão» por considerar de «preferir a

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Será que é aceitável que os princípios da primazia de normas de direito internacional e comunitárias sobre todo o direito de fonte interna e das constitucionais em relação às outras que destas dependem, pode ter um valor relativo para a

segurança (…) fundada numa norma inválida, à legalidade ou inconstitucionalidade», assim acabando por chegar a um «opção subjacente à excepcionalidade da vinculação administrativa ao critário hierárquico», a uma «preferência pela invalidade do fundamento normativo da actuação dos órgãos administrativos» (sic), concluindo, entre várias coisas, face às posições que vai tomando, que «vinculada normalmente a ter de aplicar uma normatividade inconstitucional ou ilegal, enquanto expressão da ausência de um poder administrativo genérico de rejeição aplicativa de normas inválidas, a Administração Pública pode encontrar-se obrigada a praticar actos ilegais». E, por isso, o autor não tem outro remédio senão, em coerência, reconhecer a aberração a que as suas argumentações dão origem, concluindo, pelos vistos tranquilamente, dado que não reviu: «revelando-se aqui a incoerência da configuração global do princípio da juridicidade e a quebra da ideia de sistema jurídico-administrativo: em tais casos, o sentido vinculativo dos órgãos administrativos à juridicidade é contraditório, imperfeito e incompleto» (ponto c) da conclusão geral, ou ponto 21.7, sétima conclusão, da Parte II). O autor, prisioneiro das suas posições ultraconservadoras sobre a relação da Administração Pública com o direito, não pode deixar de concluir pelo absurdo da normalidade da «auto-vinculação da Administração Pública à invalidade» e, portanto, pela normalidade de um obrigatório e sistemático recurso aos tribunais pelos cidadãos e outras administrações em relação interadministrativa, transformando a jurisdicção em verdadeira administrada quotidiana da legalidade administrativa, e nem intenta voltar ao início para se obrigar a rever todas as bases dogmáticas ínsitas nas suas posições anteriores, de modo a ter de concluir da única maneira possível em Estado de Direito, para o qual a sua reflexão devia contribuir, aceitavelmente: que o sentido vinculativo dos órgãos administrativos à juridicidade, tal como deve ser cientificamente configurado pelo sistema jurídico, não é (pelo menos no campo dos princípios, do dever-ser, independentemente

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Administração Pública, a decidir cientificamente «a la carte», e com um regime diferente do aplicável aos cidadãos e tribunais, que está obrigada ou habilitada a aplicar normas infra-ordenadas com elas incompatíveis?

A minha posição, comungando embora das precauções de JORGE MIRANDA e na linha das posições de princípio de Freitas do Amaral, é a de que a juridicidade que a Administração está obrigada a respeitar, inclui em geral as próprias normas supranacionais131 e as normas constitucionais, todas elas parte do bloco da normatividade enquanto vigentes, e dotadas de supremacia normadora, embora, quanto à Constituição da República Portuguesa, só em casos de inconstitucionalidade material das práticas ou doutrinas erradas), nem contraditório, nem imperfeito e nem incompleto. Até porque se a conclusão, com as suas teses, o que é, e não devendo, não podendo ser, então haveria que dizer o que deve ser feito para não o ser, o que levaria, na mesma, o autor a dizer à frente o que evitaria se voltasse atrás e tivesse refeito todas as suas posições teóricas anteriores que o obrigaram a cair nesse inaceitável abismo teórico da ilegalidade que teve de considerar «insuperável». Basta ler a doutrina defendida por DIOGO FREITAS DO AMARAL ou por nós mesmos sobre a hierarquia das normas para se perceber como as conclusões sobre o tema se situam ou podem situar em termos bem diferentes.

131 E mais do que isso, inclui mesmo a obrigação de aplicar as Decisões da União Europeia, que em geral são meros actos administrativos, mesmo que contrárias a normas nacionais.

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com uma desconformidade manifesta, especialmente em situações de unanimidade doutrinal sobre o tema, ou em que os tribunais, no controlo difuso ou concentrado, já tenham considerado alguma vez a norma infraconstitucional (pelo menos, recentemente, se se trata de tribunais comuns) como desconforme à Constituição, e desde que a questão seja colocada ao e resolvida pelo órgão máximo do ministério (ou de pessoa colectiva em causa), tudo sem prejuízo do direito normal de impugnação pelo destinatário, público ou privado, da decisão que não aplique a norma tida como inconstitucional, para o tribunal administrativo competente.

De qualquer modo, esclareça-se que o termo fonte de direito, será aqui usado, não no sentido corrente em direito comunitário, de modo de produção ou revelação de actos impositivos132, mas de modos de produção (criam uma norma ou alteram e extinguem normas existente; carácter inovador,

132 No direito comunitário abrange não só actos gerais e abstractos, mas até os actos concretos e individuais. No Tratado da Comunidade Europeia, temos como actos típicos «criadores de direito», os regulamentos, directivas, decisões e, por vezes mesmo, tudo dependendo do seu conteúdo real, independentemente da designação atípica, os pareceres e recomendações.

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natureza constitutiva da norma) e de modos de revelação (dão a conhecer pela primeira vez, em si ou no seu conteúdo, direito pré-existente; sem carácter inovador, mas meramente declarativo) de uma parte desse actos, as normas jurídicas133.

Dado que as fontes tanto se encontram numa relação de paridade (situação em que uma pode revogar as outras: caso do costume, lei e decreto-lei), como, na maior partes dos casos, em pé de desigualdade, numa relação de supra e infra-ordenação (em que a de valor infra-ordenado é inválida (nulidade, anulabilidade, ineficácia) se contraria a de nível superior, enquanto esta pode revoga aquela, ou seja, de hierarquia ou de ordenação vertical (por ordem de supremacia relativa, Direito Internacional Público, Direito da União Europeia, Constituição da República Portuguesa, Lei de Valor Reforçado, Lei Simples, Regulamento, etc.134.).

133 Princípios e regras jurídicas constituem as normas jurídicas. Sobre estes conceitos, vide, v.g., Souda, Marcelo Rebelo de; Galvão, Sofia –Introdução ao Estudo do Direito. 4.ª Ed., Lisboa: Europa-América, 1998, p.188 e ss.

134 Vide, AMARAL, Diogo Freitas do –oc, p.483 a 562: como actos produtores de direito, as praxes administrativas e usos sociais, convenções colectivas de trabalho, normas corporativas e

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DIOGO FREITAS DO AMARAL135, criticando os constitucionalistas nacionalistas (e a desvalorização da norma supranacional, do DIP e do DUE, em face da Constituição da República Portuguesa, cujo «valor» e «significado» exageram), ordena as fontes da seguinte maneira:

No topo, coloca o Direito Internacional Público em geral (costume, tratado, princípios gerais, jurisprudência, etc.).

E isto, em face do princípio do seu primado, pese embora aos enunciados, designadamente em sede de fiscalização da constitucionalidade caracterizadores de uma Constituição que pretenderia amarrar-nos ao primado do direito interno, sendo certo que estas «cláusulas constitucionais ilegítimas à face do direito internacional», quer o princípio pacta sunt servanda, transcrito no artigo 26.º, quer o disposto no artigo 27.º da Convenção de Viena sobre o profissionais, adopçãp de normas técnica, declarações políticas orais.

135 Tal como nós sempre havíamos feito no ensino em geral e, também, já no debate em Comissão de Revisão Constitucional, no processo não acabado de finais da primeira metade da década de noventa e, simultaneamente, em textos académicos, designadamente no capítulo sobre fundamentos comunitários da política e do direito do ambiente: CONDESSO, F. –Direito do Ambiente. Coimbra:Almedina, 2001, p.282 e ss.

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Direito dos Tratados, que constituem ius cogens e elas violam, pelo que são inválidas ou, pelo menos, ineficazes e como tal devem ser desaplicadas pelos nossos tribunais136.

E quanto ao direito comunitário, afirma este autor, na linha do Manual de Direito Internacional, de ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO DE QUADROS e em correspondência com os nossos textos sobre a matéria, que o princípio do primado abrange todas as normas, designadamente as da Constituição da República Portuguesa, o que considera resolvido pelo novo n.º4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, em face da Lei Constitucional n.º1/2004, de 24 de Julho., não tendo o inciso final qualquer interesse prático, porque a União Europeia é um espaço respeitador dos direitos fundamentais137.

Em geral, teremos presente que, no desenvolvimento desta temática, é importante abordá-la, tendo em atenção as questões específicas que se levantam em relação à Administração Pública: o dever de

136 AMARAL, D.F. –oc,P.570.137 A. e o.c., p.575 e 576.

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obediência da Administração Pública à lei e o bloco da legalidade, ou seja, os princípios da constitucionalidade, da legalidade, o jus cogens internacional e o primado do Direito Comunitário.

22. 3. Fontes de direito administrativo

Iremos debruçar-nos sobre as principais e mais correntes, que interessam mais ao dia a dia do direito administrativo.

Não nos referiremos aqui nem aos contratos, que têm força normativa entre as partes, nem aos actos administrativos, que são decisões individuais e concretas proferidas unilateralmente pela Administração Pública que, também, a vinculam nos seus termos e da lei em face dos seus destinatários.

a)- Os princípios gerais de direito.

Em termos de princípios gerais de direito138, aplicáveis no direito administrativo em geral, importa destacar sobretudo os consagrados na própria

138 CRISAFULLI, Vezio –«Per la determinazione del concetto dei principi generali del diritto». In Studi sui principi generali dell’ordinamento guiridico. Pisa, 1941.

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Constituição da República Portuguesa e Código do Procedimento Administrativo, sobretudo os princípios fundamentais de toda a actividade da Administração Pública, princípios gerais «da» actividade desenvolvida pela organização enquanto tal ou por quem, a qualquer título, desenvolva uma actividade considerada no âmbito da Função Administrativa do Estado-Comunidade, em que há que, desde já, começar por destacar não só os princípios da igualdade, imparcialidade, justiça, interdição de excesso, boa fé, legalidade positiva em geral e especialmente o do respeito pelas posições jurídicas subjectivas dos particulares -dos direitos e interesses legalmente protegidos- e princípios de natureza procedimental, também, pela sua importância fundamental neste campo, outros princípio de raiz constitucional, como os da ponderação de quaisquer interesses relevantes para a actividade decisória, da transparência no funcionamento da Administração pública (livre acesso aos documentos e informações detidos pelos serviços públicos, fora das excepções – que, aliás, apenas permitem o deferimento do seu conhecimento no tempo- ligadas à confidencialidade da vida íntima das

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pessoas e famílias, juízos de valor negativos sobre pessoas singulares, segredos de defesa nacional e de segurança interna sob prévia classificação governamental, segredo de justiça penal impostos pelos tribunais e, eventualmente, quando se justifique, matérias de natureza económica empresarial)139, da garantia patrimonial (sujeita ao regime administrativo especial da responsabilização civil extra-contratual: actos ilícitos, dolosos ou negligentes –responsabilidade subjectiva, pela culpa individualizável, ou pela culpa dos serviços; actos resultantes de actividades perigosas- responsabilidade objectiva, pelo risco-; actos lícitos: legalmente previstos no interesse geral mas que criem sacrifícios apenas a alguns; desde que entre o acto e o dano produzido haja um nexo de causalidade adequada), matérias que cujo tratamento caberá na parte referente ao direito da actividade administrativa.

139 Constante da Lei n.º 46/2007, 24 de Agosto de 2007, que regula o acesso aos documentos administrativos e a sua reutilização, revoga a Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto, com a redacção introduzida pelas Lei n.os 8/95, de 29 de Março, e 94/99, de 16 de Julho, e transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2003/98/CE, do Parlamento e do Conselho, de 17 de Novembro, relativa à reutilização de informações do sector público (D.R. n.º 163 Série I)

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b)- O costume (supranacional ou interno)

c)-A Constituição, as leis e as restantes normas escritas («lei» em sentido amplo, no sentido de «bloco da legalidade»: quer a comummente designada como norma fundamental, texto positivo de impositividade interna, a Constituição, quer as verdadeiras leis, comummente designadas como «leis infra-constitucionais», quer e os regulamentos, quer as normas supranacionais (acordos internacionais e decisões normativas de instituições de âmbito supra-nacional): uma qualquer norma jurídica, originada numa manifestação de vontade impositiva de uma qualquer autoridade com competência para tal)140-141.

d)-A jurisprudência e a doutrina. Seu valor como fontes produtoras ou reveladoras do jurídico. A importância do

140 V.g., MENDES, João de Castro –Introdução ao Estudo do Direito. Lisboa.PF, 1994, p.77.

141 E normas, segundo a seguinte ordenação de valor hierárquico: normas internacionais, normas comunitárias e da União Europeia em geral, normas constitucionais nacionais, leis de valor reforçado, leis simples, regulamentos (de acordo com a diferente ordenação se supremacia dos órgãos emissores), etc.. Neste âmbito, há que referir o fenómeno do declínio e relativização da lei em sentido estrito como fonte do direito.

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recurso à jurisprudência e doutrina, nacionais e estrangeiras.

*

Começo por referir já uma noção perfunctória de costume, que justificarei e que se voltará posteriormente.

O costume não é uma fonte receptícia de direito, dado que a sua obrigatoriedade não provém do reconhecimento estabelecido positivamente por qualquer norma, de natureza constitucional, legal ou regulamentar, nas situações em que o legislador se «esqueceu» de criar uma norma adequada para a situação ou se demitiu de o fazer remetendo para o costume.

Ele existe por si independentemente da vontade do legislador representativo, de base directamente popular, sendo uma fonte espontânea do direito (fruto da autonomia privada, que não tem que ser reconhecida pelo Poder, porque, aliás, em democracia, é ela que reconhece o Poder).

Em tempos recuados, antes do

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aparecimento da lei, ele terá mesmo sido a fonte única do direito, tendo ela a partir de certo momento acompanhado o direito costumeiro.

Mas, por razões da sua quase instantaneidade de formação e necessidade de se afirmar a actividade legislativa como principal atributo do Poder político na Europa continental (não assim nos países anglo-saxónicos, em que continua a ser a principal fonte normativa), sujeita a períodos de grande mudança política e exigindo alterações normativas rápidas e a subalternização do papel dos tribunais conservadores, a lei viria a impor-se como fonte qualitativamente dominante e viu mesmo os dirigentes políticos procurarem anular ou subalternizar-lhe os costumes, que não só, quando anteriores, eram objecto de revogação, como, se posteriores, de uma pretensão de desvalor para não poderem ter efeito revogatório das leis.

*

A teoria da vontade da doutrina tradicional apontava como requisitos fada existência de um costume com valor jurídico, o uso uniforme, frequente e

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duradouro, a conformidade desse uso com o direito natural e a aprovação expressa ou tácita pelo Estado142.

Independentemente de voltarmos ao assunto mais abaixo, em termos mais desenvolvidos, diga-se, desde já, que esta não é a concepção dominante na doutrina moderna, que perfilhamos.

Os costumes jurídicos são factos normativos, constituídos por condutas ou omissões, seguidas na vida social ou de uma instituição, de modo reiterado ao longo do tempo, por serem tidas como de cumprimento obrigatório, ou por permissões lícitas (e portanto insancionável).

Ou seja, na sua formação congregam-se, pois, dois elementos:

a)- por um lado, o elemento externo: a prática prolongada, generalizada, e uniforme; e

b)- por outro, o elemento interno: a «opinio iuris vel necessitatis», ou seja, a convicção jurídica generalizada da obrigatoriedade de conformar os

142 MARTÍNEZ ROLDÁN, L; FERNÁNDEZ SUÁREZ, J.A.-Curso de teoría del Derecho y metodología jurídica. Barcelona: Ariel derecho, 1994 , p.167.

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comportamente a esse costume.

A generalidade dessa prática existe mesmo que não tenha uma abrangência em todo o território nacional, mas apenas que no âmbito em que esse uso exista ele se revele no comportamento da generalidade das pessoas aí residentes ou das que integram uma dada instituição, classe ou actividade.

A uniformidade implica que os actos sejam semelhantes, e não necessariamente idênticos.

A sua duração no tempo tem que ficar demonstrada, mas não se exigem períodos de tempo determinados à partida, sendo suficiente a sua repetição constante durante um certo tempo necessário para se concluir que passou a ser cumprido como sendo obrigatório.

*

Em direito público, designadamente internacional, constitucional ou administrativo, acontece a formação de uma norma consuetudinária quando se constate

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que uma norma, legal ou do costume, com solução contrária, já não é aplicável e exigível.

Quanto ao costume e aos usos sociais, como dizem MARCELO REBELO DE SOUSA E SOFIA GALVÃO, ao lado do direito estadual, gerado a partir do poder político do Estado, direito escrito, «existe um Direito estadual não escrito, costumeiro ou consuetudinário, que é «fruto das pulsões diárias do grupo e da sociedade, sem necessidade da intervenção do poder político do Estado», ou seja, que resultam da própria dinâmica da sociedade civil», que «Brotam de um jogo de vida entre forças que procuram soluções para um projecto de construção colectiva em permanente revisão», afirmando-se como tal apenas logo que reunidos os dois requisitos que são o usus e a opinio iuris vel necessitas, não dependendo nem de um reconhecimento da lei nem de uma efectiva aplicação coactiva, sendo uma forma autónoma de criação do Direito 143.

No direito administrativo, DIOGO 143 SOUSA, Marcelo Rebelo de; GALVÃO, Sofia –Introdução

ao Estudo do Direito. 4.ª Ed., Lisboa: Europa-América, 1998, 130 e ss.

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FREITAS DO AMARAL refere a existência de numerosos casos, quer de uns, quer de outros, designadamente de costumes vigentes a todos os níveis144, v.g., o poder regulamentar para a boa execução das leis detido pelos órgãos dirigentes da Administração directa e institutos públicos estaduais, na medida em que não estejam previstos em norma positiva, tal como, em geral, o reconhecimento pelo ordenamento jurídico do poder regulamentar de auto-organização, em termos de estrutura e funcionamento, dos órgãos administrativos colegiais (elaboração e aprovação dos seus regimentos); amplos poderes de delegação dos superiores nos seus subalternos; costumes regionais sobre feriados e locais sobre feiras; e mesmo costumes universitários sobre os intervalos académicos, «voto de Minerva» (que, assente em mito tradicional sobre a vontade da Deusa da Sabedoria, leva a que, «no caso de dúvida ou empate num júri académico, a votação ser desempatada a favor do aluno»), a tradição que leva a dever suspender-se as aulas e exames durante o período de duração da «Queimas das Fitas».

144 Manual de Introdução ao Direito. Coimbra: Almedina, 2004, p.379.

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O costume não seria fonte imediata de direito, segundo as disposições iniciais do CCV sobre a matéria, mas o próprio Código Civil viria posteriormente também a reconhecer que o costume pode ser aplicado pelos tribunais do Estado e, portanto, pode ser um fonte de direito (com primazia sobre a lei: n.º1 do artigo 348.º do Código Civil145), embora, como já dizia J. BAPTISTA MACHADO (-Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador. Coimbra: Almedina, 1983, p.158), tal não tenha carácter decisivo, pois a sua força não só não advém da lei como esta também, por isso mesmo, não tem, só por si, força social própria para proibir o costume, dado que se este onde existir tem primazia face à lei, então esta

145 Artigo 348.º (Direito consuetudinário, local, ou estrangeiro): «1. Àquele que invocar direito consuetudinário, local ou estrangeiro, compete fazer a prova da sua existência e conteúdo; mas o tribunal deve procurar, oficiosamente, obter o respectivo conhecimento.2. O conhecimento oficioso incumbe também ao tribunal, sempre que este tenha de decidir com base no direito consuetudinário, local ou estrangeiro, e nenhuma das partes o tenha invocado, ou a parte contrária tenha reconhecido a sua existência e conteúdo ou não haja deduzido oposição.3. Na impossibilidade de determinar o conteúdo do direito aplicável, o tribunal recorrerá às regras do direito comum português». Trata-se, aliás, de uma norma que vem no seguimento da solução já constante do artigo 521.º do CPC de 1939. Vide REIS, José Alberto dos –Código de Processo civil Anotado, Vol.III, 3.ª Ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1950, p.304 e ss, e AMARAL, D.F. do –o.c., p.382, nota 17.

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não pode ditar genericamente a sua sorte, o que significa que, onde o costume se impuser, ele será fonte autónoma de direito, de aplicação preferente à lei, sem prejuízo da possibilidade de revogação recíproca casuística.

A questão que importa dirimir é a de saber se o costume é uma fonte primária do direito, nos termos da definição perfunctória, dada acima, ou não?

Ora, as duas principais teses sobre o assunto são a teoria estatista e a teoria sociológica.

Segundo a primeira teoria, clássica entre nós, o costume já não é, em Portugal, como foi no passado, uma fonte primária do direito, pois a única fonte primária é a lei, aparecendo o costume com vigência apenas nas situações e na estrita medida em que ele for mandado aplicar pela lei146.

Para a segunda teoria147, não positivista, realista, o costume continua hoje a ser, embora nos países do continente e

146 Como acontece, v. g., nos artigos 1400.º e 1401.º do Código Civil; tese assente no dogma positivista mas que, mesmo assim, vai ao ponto de esquecer o próprio mandato geral dado aos tribunais e em geral aos aplicadores do direito, constante do n.º1 do artigo 348.º também do Código Civil.

147 Na linha da doutrina anglo-saxónica, que sempre valorizou o costume e a jurisprudência como fontes de direito.

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designadamente em Portugal, com muito menor importância e densidade normativa, uma fonte primária do direito, o que aliás se constata em situações muitos claras, mesmo contra legem, que a doutrina vai apontando (como referimos anteriormente e a que poderíamos acrescentar outros exemplos colhidos na doutrina, v.g., número de litros da pipa de vinho por regiões, touros de morte nas touradas de Barrancos, etc.)

Portanto, neste debate, há que considerar inaceitável a irrealista teoria estatista e positivista, segundo a qual o costume é obrigatório se e apenas na medida em que é consentido pela vontade do Estado, ou seja, pela lei, dependendo desta no seu valor jurídico, e adoptar a doutrina romana do tacitus consensus populi (longa consuetudine comprobavit), na expressão de ULPIANO, sintonizada com a teoria sociológica, para a qual o costume é obrigatório porque e sempre que seja querido pela vontade popular ao criá-lo, mesmo que opondo-se a regras anteriormente escritas e, portanto, de facto, socialmente rejeitadas.

Ele identifica-se por se traduzir num

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comportamento habitual na vida social, mesmo que apenas seguido por uma parte das pessoas que a integram, devido à convicção de que se está perante uma prática de regras permissivas ou impositivas do ordenamento jurídico, neste caso passíveis de a sua violação permitir a aplicação de sanções pelas às instâncias de controlo social.

Em conclusão, constituem costumes quaisquer condutas ou omissões reiteradas ao longo do tempo, habitualmente respeitadas por serem tidas como de cumprimento obrigatório ou com permissão lícita, e, portanto, não sancionável, na vida social ou de uma instituição.

Na medida em que tais práticas sejam aceite como fonte de direito, são criadoras de chamado direito costumeiro ou direito consuetudinário

Dito isto, é fácil destacar os elementos essenciais do costume, que são o corpus e o animus:

a)-O corpus, que é a prática generalizada, ou seja, habitualmente seguida pelos membros da respectiva comunidade. A habitualidade implica uma

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dada reiteração ao longo do tempo e uma dada generalização dos comportamentos em cada momento durante esse tempo, sem prejuízo de condutas divergentes, que podem traduzir meros incumprimentos da regra.

Hoje, devido ao ritmo acelerado da vida social, quer no decurso do tempo, quer em cada momento, que permite constatar rapidamente a repetição e generalização maior ou menor com as práticas sociais se processam, já não se exigirá um período tão longo de tempo, como o fazia o DIP ou, no direito interno, a Lei pombalina da Boa Razão (100 anos), para que um costume deva ser aceite como fonte de direito, nem mesmo uma «prática imemorial» (ou seja, uma prática que ninguém sabe quando começou por se perder na memória dos tempos).

No domínio do direito público, basta que se entenda que uma norma positiva contrária já não é aplicável, exigível, para desde logo, sem mais indagações, devermos considerar estarmos perante um costume

b)-O animus (opinio juris vel

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necessitatis), que é a convicção da obrigatoriedade (regras impositivas) ou da licitude (regras permissivas).

Posto isto, vejamos as diferentes espécies de costumes, para podermos, desde já, manejar os diferentes conceitos.

Quanto ao âmbito territorial de abrangência, ele pode ser internacional, se gerado na sociedade internacional; comunitário, se gerado no âmbito das Instituições da União Europeia; regional, se gerado a nível de uma região político-administrativa ou meramente administrativa148; e local, se meramente ao nível da autarquia de base de uma povoação149.

Quanto às suas posição em face das normas escritas, temos os costumes secundum legem (desenvolvendo o seu conteúdo aplicativo, muitas vezes em termos regulamentadores), praeter legem (complementando a norma escrita, em

148 Seria o caso de costume formado nas regiões Autónomas dos Açores ou/e Madeira, ou de qualquer maneira em áreas geográfica infraterritoriais alargadas, v.g., para lá do Marão (onde «mandam os que para lá estão»), no Algarve, no Minho, etc.

149 Exemplo de um costume meramente local é o da morte pública dos touros em praça, na povoação de Barrancos.

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termos inovadores, em termos que normalmente caberiam a outra norma escrita) e contra legem (efectivando uma normação diferente da que está consignada na norma escrita (caída em desuso -eficácia social-, com consequente perda de eficácia jurídica), apontando assim soluções em sentido diferente).

De qualquer modo, como diz DIOGO FREITAS DO AMARAL, que defende uma teoria pluralista das fontes de direito, em face do CCV português, «o tribunal só está autorizado a julgar o caso por aplicação da lei, se não existir (ou não puder determinar-se o respectivo conteúdo) uma norma consuetudinária mais adequada que deva ser aplicada», pelo que numa «interpretação actualista» deste artigo o costume e a lei são –no entendimento da própria lei- duas fontes do Direito primário, colocadas em pé de igualdade», de tal modo que o tribunal «se puder conhecer bem o conteúdo da ambas as normas» deve aplicar ao caso sub judice «aquela das duas normas que se mostrar mais adequada à resolução correcta desse caso», ou seja, «aquela das duas normas potencialmente aplicáveis que se mostrar mais adequada à resolução do

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caso» 150-151.

E, em relação à questão mais delicada do costume contra legem ou contra constitucionem, devem ter-se como aplicáveis estes critérios de preferência normativa em relação à lei (ou a costume anteriormente afirmado):

- aplica-se o costume contra legem, que faz cair em desuso a norma legal, operando a sua caducidade, tal como o costume contra constitucionem faz cair a norma constitucional escrita (ou costumeira anterior);

- aplica-se a norma para que este costume remeter;

- em caso de normas legais ou costumeiras internas contrárias a uma

150 Oc, p.384.Tese de igualdade e disponibilidade judicial de escolha de norma aplicável, que, a nosso ver, foi concebida por um legislador que não pretendia atribuir ao costume natureza de fonte primária, mas se viu confrontado com a necessidade de enquadrar a aplicação por tribunais nacionais de direito estrangeiro, sendo certo que, nalguns sistemas, o costume é direito aplicável, pelo que a jurisdição nacional, de qualquer modo, teria de o aplicar em situações definidas pelo direito internacional privado. Trata-se, pois, de um artigo que pretendeu em geral responder a essa necessidade, como se vê quando fala na parte final do n.º3 em direito comum «português», mas a que o legislador acabou por referir o direito consuetudinário, mas meramente o local, em que, nas condições aí referidas, admitiria a preterição da lei, aliás parecendo mesmo pretender acentuar, em princípio, a preferência pela aplicação do costume.

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norma supranacional (internacional ou comunitária), aplica-se esta fonte, sendo aquelas ilegítimas, por não poderem afectar o princípio da supremacia normativa desta e, portanto, a legitimidade aplicativa da norma do DIP e DUE;

-se se tratar de uma norma geral e outra especial, aplica-se esta;

-se se tratar de uma geral ou especial e outra norma excepcional aplica-se a norma excepcional, desde que seja legítima;

E se ambas regularem a situação de maneira semelhante, ou se houver «identidade de situações, tipos e circunstâncias»? Segundo DIOGO FREITAS DO AMARAL, no primeiro caso, prevalece a que «melhor se ajustar às circunstâncias específicas de caso concreto», e, no segundo, a que «proporcionar uma solução mais justa do caso concreto em apreciação», em homenagem ao valor justiça.

Mas uma coisa é o costume e outra são as praxes administrativas e os usos sociais. Começo por referir o conteúdo do n.º 1 do artigo 3º do CCV sobre o valor jurídico dos usos, que afirma que «Os usos que não forem contrários aos princípios da boa fé são juridicamente atendíveis quando a lei o determine. Estes usos seriam meros

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costumes de facto, simples práticas sociais (tidas como destituídas de animus cogentis), que não só são diferentes do costume como fonte de direito consuetudinário152, como não seriam fonte senão quando a lei para eles remetesse. Aqui, a não afronta aos princípios da boa fé traduz uma exigência, a apreciar em cada caso, relacionada o estado ético-moral do momento153.

Quanto às praxes administrativas, que traduzem condutas usuais que, em termos idênticos, os órgãos da Administração costumam ter habitualmente para solucionar alguns problemas de gestão corrente.

Temos aqui, v.g., no âmbito da vida universitária, a não se considerar como costume, a prática em geral sedimentada no tempo de se fazer «intervalos académicos» de 10 minutos entre as aulas e mesmo de um período adicional de tolerância de duração semelhante para o início das prelecções (não só para permitir a troca de salas e docentes, mas também para satisfação de necessidades fisiológicas e descanso regenerador dos alunos e

152 PINTO, Carlos Mota –Teoria Geral. 2.ª Ed.,Coimbra, p.49.153 Vide, v.g., LIMA, Pires de; VARELA, Antunes –Código

Civil Anotado, 1.º, 11.329

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docentes, com vista à aula seguinte), a que se poderia acrescentar-se, v.g., uma prática académica sobre a leccionação de aulas, que se pode enunciar assim: prima non datur, ultima non reciptitur, ou ainda a prática de menor exigência sobre conhecimentos para a aprovação na última cadeira de licenciatura etc..

O carácter usual de uma prática constante e idêntica, constituindo o seu corpus identificativo, aponta para um elemento semelhante ao do direito consuetudinário, tendo como especificidade o âmbito restrito dessas posturas comportamentais, apenas referentes à vida da Administrações públicas e não à vida social em geral, pelo que se impõe perguntar se não estaremos perante o costume administrativo, ou melhor, um costume criador de direito administrativo, ou, antes, face a meros usos académicos.

A alínea d) do n.º 1 do artigo 124.º (Dever de fundamentação), diz que, «devem ser fundamentados os actos administrativos que, total ou parcialmente, decidam de modo diferente da prática habitualmente seguida na resolução de casos semelhantes, ou na interpretação e aplicação dos mesmos

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princípios ou preceitos legais».

E, assim, podemos concluir que de duas uma: se tal prática não for contra legem, situação em que o preceito não é aplicável a menos que deva sê-lo obrigatoriamente por ser costume, temos práticas interpretativas ou integrativas de lacunas, e portanto, meramente secundum legem ou praeter legem, em que importa procurar distinguir a sua natureza jurídica segundo a sua intensidade normativa mas não segundo a sua natureza jurídica e não jurídica, pois não é possível defender-se a tese de que tais práticas são indiferentes ao direito, ou seja, não vinculam minimamente a Administração Pública.

Ou seja, caso não se comprove que existe o animus suficiente para se considerar que estamos em face de costume e portanto de uma regra de cumprimento obrigatório sem mais, então estaremos perante uma mera «praxe» administrativa, mas que, por força da lei procedimental geral, de qualquer maneira continua a ser obrigatória e, portanto, também, fonte de direito, se não houver razão aceitável para a alterar, mudando de critério

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justificadamente.

A menos que, o que nada impede, entretanto, mesmo sem justificação, comece a ser desrespeitada por uma prática diferente, criada e reiterada com animus próprio do costume, ou apareça norma escrita distinta, a sai não aplicação sem qualquer razão válida é ilegal, não só por força directa da norma citada, mas de verdade em geral também por força do princípio constitucional da igualdade de tratamento, pelo que temos que convir que em princípio a praxe é vinculativa e, portanto, fonte de direito e como tal só passível de revogação por outra fonte de direito ou por outra orientação devidamente justificada, que, por sua vez, se poderá vir a afirmar também, se ganhar estabilidade aplicativa, e como tal merecer integrar o ordenamento jurídico, como fonte de direito.

No que se refere à norma jurídica positiva («lei em sentido amplo»), importa esclarecer o seguinte:

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A norma interna escrita, lei ou regulamento, é fonte primária do direito154.

Qualquer comando de carácter geral e abstracto, regra ou princípio, na medida em que obriga a um comportamento social é fonte de direito e, portanto, uma norma jurídica, embora só se considere como leis aqueles que simultaneamente tenham origem numa instituição do poder legislativo e formalmente se designem de lei ou decreto-lei, dado quer os titulares deste poder também podem produzir actos de outra natureza, cuja distinção material é em geral questionável (v.g., resoluções ou normas regimentais, a AR, e regulamentos, o governo).

Mas, além destes actos normativos, quando em Direito Administrativo nos referimos ao princípio da legalidade, devemos considerar incluídas quaisquer outras normas, não apenas convencionais, de natureza legal ou regulamentar, de fontes supranacionais, internacionais ou unionistas (da CE ou da EU em geral) e nacionais (também a Constituição da República Portuguesa), regionais (leis e regulamentos) como as regulamentares

154 Os tipos de actos legislativos encontram-se previstos no artigo 112.º, n.º 1, da Constituição, sendo as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais.

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locais.

***

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§23.DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA E SUAS FONTES

1. Considerações gerais

No que se refere às fontes de direito administrativo, sendo o Estado português um Estado unionista europeu, sujeito à nomogénese comunitária, porque «aberto» ao processo da unificação europeia155, matéria que as revisões constitucionais procuraram enquadrar nos n.º 6 do artigo 7.º e n.º 3 e 4 do artigo 8.º, e tendo presente a importância quantitativa e qualitativa, tanto em domínios substantivos como procedimentais e jurisdicionais, do direito administrativo oriundo das Instituições da União, é de interesse ministrar conceitos basilares sobre o tema156, matéria que passamos a expor.

155 Usando aqui a expressão «aberto» com um sentido já anteriormente utilizado em outra obra (Direito do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2001), e que, à falta de melhor terminologia, também LUCIANO PAREJO ALFONSO, em seu recente Manual, acabou por acolher.

156 Domínio em que seguimos os tópicos da exposição relativamente sintética «Nomologia comunitária», inserida na nossa publicação Direito do Ambiente, edição da Almedina, 2001, p.283 e ss.

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Com efeito, Portugal é membro da União Europeia, encontrando-se as suas autoridades administrativas obrigadas a aplicar o direito comunitário europeu em sentido estrito e outras normas orieundas da União Europeia.

Por isso, além da afirmação inicial da existência do primado do direito comunitário, designadamente dos princípios de direito administrativo geral e procedimental comunitário sobre qualquer norma de direito interno, importa tecer algumas considerações gerais sobre a nomologia comunitária. Começamos pois por nos referir ao sistema jurídico das Comunidades Europeias.

Começamos pois por nos referir ao sistema jurídico das Comunidades Europeias.

Uma ordem jurídica é o conjunto organizado e estruturado de normas jurídicas, dotado de órgãos e procedimentos, aptos a criar e interpretar as suas próprias fontes e, sendo necessário, a fazê-las aplicar e a sancionar as suas violações.

Ora, a União Europeia têm uma ordem

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jurídica. E a ordem jurídica comunitária

europeia157 existe porquanto o direito comunitário é uma ordem jurídica própria, integrada no sistema jurídico dos Estados membros (a característica mais original da ordem jurídica comunitária)158.

Os tratados comunitários não se limitaram a criar obrigações recíprocas entre os diferentes sujeitos de direito a que se aplica.

Estes estabeleceram «uma ordem jurídica» nova, que regula os poderes, direitos e obrigações desses sujeitos, assim como os procedimentos necessários para fazer constatar e sancionar qualquer eventual violação.

O Tratado da União Europeia, apesar 157 conforme afirmou o Acórdão M. Flamino Costa contra

ENEL, de 15 de Julho de 1964: assunto n.º6-64, sobre questão prejudicial ao abrigo do art.º 177.º do TCE, a solicitação do Giudice Conciliatore de Milão, Recueil, 1964, págs.1141 e segs. e GEORGES VANDERSANDEN, Droit des Communautés Européennes, Recueil de Documents et Textes, Universidade Livre de Bruxelas, PUB, 2.ª Ed. 1994-1995/1, pág. 26. (sumário: «3.«Comunidade CEE-ordem jurídica comunitária-carácter particular- classificação com referência aos sistemas nacionais, primado das normas comunitárias- limitação definitiva dos direitos soberanos dos Estados membros».

158 Acordão de 13.11.64, COM c/. Luxemburgo e Bélgica; proc. 90/63, Rec. 1964, p. 1217.

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de concluído sob a forma de acordo internacional, não deixa de ser a carta constitucional de uma Comunidade de Direito. É mesmo o mais avançado Tratado-Fundação existente pelas Atribuições e Poderes, já estabelecidos ou passíveis de se desenvolver, com uma clara fisionomia de estadualidade situando a União como uma construção política parafederal.

Os tratados comunitários criaram uma nova ordem jurídica, em benefício da qual os Estados têm limitado, cada vez mais, os seus direitos soberanos, e cujos sujeitos são não só os Estados mas também os seus cidadãos e residentes.

E as características essenciais desta ordem jurídica são sobretudo a sua primazia em relação aos direitos estaduais e o efeito directo de toda uma série de disposições aplicáveis aos Estados e aos seus residentes, o que coloca a teoria da sua nomogénese como questão fundamental do estudo sobre os métodos da sua aplicação na ordem interna e da sua relação com a Constituição, designadamente em termos de debate sobre a aferição da constitucionalidade das normas constantes

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das suas várias fontes.

E quanto às fontes do direito comunitário, começa-se por referir que o direito comunitário não indica as suas fontes taxativamente através de uma lista, à maneira do artigo 38.º do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, mesmo que esta hoje já se considere desactualizada.

O regime das fontes (catálogo e hierarquia) resulta não só dos tratados como da prática das Instituições, da prática dos Estados, e, sobretudo, da sistematização feita pelo Tribunal das Comunidades159.

Quanto ao direito comunitário originário ou primário, temos tido, por

159 Segundo a jurisprudência do TJC do Luxemburgo. Mas o núcleo central destas fontes resulta do direito comunitário em sentido estrito (art.º 5, 177 C.E.), compondo-se dos Tratados institutivos - fonte primária ou direito originário, e das regras contidas nos actos criados institucionalmente em aplicação dos Tratados - fontes secundárias ou direito derivado. No entanto, nas fontes em sentido amplo, global, integra-se todo o conjunto de regras de direito aplicável na ordem jurídica comunitária (164, 173 C.E). Ou seja, também, as normas não escritas, como os princípios gerais de direito e a jurisprudência, as regras com origem exterior à ordem jurídica comunitária, como o direito das relações exteriores da comunidade, o direito complementar derivado de actos convencionais celebrados pelos Estados membros para a aplicação dos Tratados.

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razões históricas, uma multiplicidade de tratados comunitários.

Com efeito, o direito comunitário primário ou originário tem sido constituído pelos tratados institucionais comunitários (três, um dos quais já expirara a sua vigência temporal, o da CECA), procurando-se hoje, com o novo projecto de Tratado Europeu de Lisboa, após a inviabilização pela França e Holanda da Constituição Europeia, a unificação de todas as matérias num só texto). Mas os Tratados constitutivos anteriores haviam já sido modificados por muitos instrumentos convencionais posteriores.

No chamado direito originário, integram-no, por isso, todas as normas dos tratados originais e as de tratados posteriores que as modificaram.

No entanto, os tratados comunitários, embora tendo vivido integrados no chapéu do Tratado da UE, mantêm a sua autonomia.

O Tratado de Bruxelas de 1965 sobre a fusão dos executivos manteve as Instituições exercendo poderes no quadro das diferentes Comunidades, deixando no artigo 32.º para data indeterminada a unificação dos tratados, o que coloca problemas no âmbito das relações mútuas

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entre os vários actos convencionais, ou seja, entre os tratados, que se regem pelo disposto no artigo 232.º do Tratado da Comunidade Europeia (seguem as regras do direito internacional público): o tratado geral não modificava as normas do Tratado da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, nem derroga o Tratado da Comunidade Europeia da Energia Atómica, porque são tratados especiais, pelo que as regras específicas da CECA não se aplicavam no quadro da Comunidade Europeia, mas as normas do tratado geral e do direito derivado da Comunidade Europeia aplicam-se nas lacunas dos tratados especiais, sem necessidade de acto específico ou de outra interpretação ou declaração interpretativa160. O Tribunal da Comunidades procurou a harmonização, interpretando as disposições de um tratado à luz dos outros como tratados especiais, que são interpretados sistematicamente à luz do Tratado da Comunidade Europeia.

Quanto ao conteúdo dos tratados, temos 4 categorias de cláusulas, estruturando os tratados. Podemos

160 Acórdão de 15.12.87, Deutsche Babcock contra Hauptzolland Lübeck-Ost, Rec. 1987, p.5119

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distinguir o preâmbulo e as disposições iniciais, que contêm os objectivos sócio-económicos próprios das Comunidades, princípios de carácter geral e as acções a prosseguir pelas instituições. São disposições sem aplicação directa, embora não sejam só declarações de intenção, bastando recordar que o princípio do efeito directo é confirmado pelo Tribunal das Comunidades a partir do Preâmbulo do Tratado da Comunidade Europeia161, parte do Tratado aliás com papel fundamental na explicitação de competências potenciais das Comunidades. Na fundamentação sobre o «efeito directo imediato no direito interno», afirma-se no seu § 3 que «Atendendo a que o objectivo do Tratado da C.E.E., que é instituir o mercado comum cujo funcionamento respeita directamente aos cidadãos da Comunidade, implica que este

161 Acórdão de 5 de Fevereiro de 1963, Assunto n.º26/62, N.V. Algemeine Transport en Expeditie Onderneming van Gend & Loos contra a Administração Fiscal Holandesa, em pedido de parecer, apresentado por Tariefcommissie de Amesterdão, em 16.8.1962). O método da interpretação finalista assente nesta parte do Tratado da Comunidade Europeia (Acórdão de 21.2.73, no caso Europembalage) que orienta imperativamente a interpretação do conjunto dos Tratados. O Acórdão Van Gend En Loos resulta do processo n.º 26-62, em pedido de decisão prejudicial ao abrigo do art.º 177.º do TCEE, apresentado pela TariefCommissie de Amesterdão, em 16.8.1962 no litígio N.V.Algemene Transport –en Expeditie onderneming Van Gend & Loos contra a Administração Fiscal Holandesa, Recueil, 1963, pág. 1 e segs..

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tratado constitua mais do que um mero acordo que só criaria obrigações mútuas entre Estados contratantes; que esta concepção se encontra confirmada pelo preâmbulo do Tratado que, para além dos Governos, visa os povos, e de maneira ainda mais concreta, pela criação de órgãos que institucionalizam direitos soberanos cujo exercício afecta tanto os Estados membros como os seus cidadãos» e, no § 6 «Que é preciso concluir, deste estado de coisas, que a Comunidade constitui uma nova ordem jurídica de Direito internacional, em benefício da qual os Estados limitaram, ainda que em domínios restritos, os seus direitos soberanos, e cujos sujeitos são não só os Estados membros mas igualmente os seus nacionais».

O Tratado não estabelece a hierarquia no interior dos objectivos fundamentais, todos tendo um carácter igualmente imperativo, apesar de isso implicar problemas de conciliação.

E há as cláusulas materiais que definem o regime económico e social, criando, numa visão técnico-jurídica, tratados com a natureza de tratados-leis (tratados especializados da CECA e

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EURATOM) e de tratado-quadro (CEE e depois CE).

O Tratado da Comunidade Europeia contém claúsulas materiais que se limitam geralmente a formular objectivos e princípios a cumprir, deixando às instituições a tarefa de legislar, e no Tratado EURATOM, a maior parte das vezes, as instituições têm competências mais operacionais do que normativas. Quanto à natureza e efeitos das disposições materiais dos Tratados, há disposições de aplicação directa e outras sujeitas a medidas prévias de desenvolvimento por parte quer dos Estados quer das Instituições162.

Quanto à autoridade dos Tratados, há que destacar a sua proeminência. O direito originário está no topo da hierarquia da ordem jurídica comunitária, prevalecendo sobre qualquer outra norma de direito comunitário sem excepção, sendo o fundamento, o quadro e os limites do direito derivado e dos tratados saídos das relações

162 Depois temos as cláusulas institucionais, que, materialmente, aparecem como a constituição das CE. Finalmente, os tratados contêm declarações finais, que tratam das modalidades de comprometimento dos Estados, posicionamento em face dos compromissos internacionais dos Estados membros, entrada em vigor e revisão dos tratados.

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exteriores, no fundo em sistema de parametricidade agindo segundo o modelo de aferição de «constitucionalidade».

No caso dos tratados internacionais concluídos pela Comunidade, há a fiscalização preventiva pelo Tribunal das Comunidades Europeias dos textos a aprovar, com exigência de revisão formal do tratado, em caso de parecer negativo.

O direito originário prevalece sobre outros Tratados entre os Estados membros, mesmo anteriores, os quais só mantêm valor quando compatíveis. Prevalece sobre Tratados concluídos entre Estados membros com terceiros Estados posteriormente à entrada em vigor.

De acordo com o direito internacional público, o direito originário só cederia perante Tratados concluídos anteriormente por Estados membros, na medida em que os Estados não podem invocar o Direito Comunitário para deixar de cumprir as obrigações internacionais anteriores.

Mas as obrigações comunitárias implicam que os Estados membros se devam desligar-se desses acordos que se revelam contrários ou que se tornem supervenientemente desconformes. E não podem usufruir contra a Comunidade dos

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direitos usufruíveis por força de Convenções anteriores.

O direito comunitário derivado não é direito convencional, mas direito legiferado. Resulta e traduz a institucionalização da capacidade de criar regras de direito, confiada a certos órgãos, segundo procedimento pré-estabelecido. É um direito derivado de um poder normativo.

O Tribunal da UE fala de um sistema legislativo do Tratado, e de um poder legislativo da Comunidade (Acórdão de 9.3.78, Simmenthal).163

As fontes de direito típicas (nomenclatura oficial do TCE), são os Regulamentos da Comunidade Europeia (correspondiam às decisões gerais da CECA), as Directivas (correspondem às recomendações) e as Decisões (às decisões individuais). No entanto, a natureza do acto

163 Assunto 106/77, Administração de Finanças do estado contra a Sociedade Anónima Simmenthal, apresentado pelo pretor de Susa¸versando sobre a não aplicação pelo juiz nacional de uma lei contrária ao direito comunitário (GEORGES VANDERSANDEN, Droit des Communautés Européennes, Recueil de Documents et Textes, Universidade Livre de Bruxelas, PUB, 2.ª Ed. 1994-1995/1, pág.68).

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não depende da sua denominação, mas do seu objecto e conteúdo.

O Tribunal das Comunidades reserva-se o direito de proceder à sua requalificação.

Por isso, a recomendação ou o parecer podem ter carácter vinculativo, conforme o Tribunal da CE já declarou em várias situações, tendo dependendo do seu conteúdo.

O Regulamento é a principal fonte do direito derivado, por onde se exprime, sobretudo, o poder legislativo das Comunidades, conferindo-lhe o Tratado da CE uma eficácia comparável à de lei no sistema nacional.

As suas características são as seguintes: o Regulamento tem alcance geral, de carácter essencialmente normativo, aplicável a categorias visadas abstractamente e no seu conjunto e não a destinatários limitados, designados e identificáveis. Correspondia à anterior Decisão no Tratado da CECA que também estabelece princípios normativos, condições abstractas aplicáveis com consequências jurídicas decorrentes. Tem um carácter normativo «erga omnes».

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O Regulamento é obrigatório em todos os seus elementos, impedindo a aplicação incompleta aos Estados. Traduz o poder normativo completo das Comunidades, porque não só prescreve o resultado, como acontece com as Directivas, mas as próprias modalidades de aplicação e de execução julgadas oportunas.

Embora possam existir regulamentos incompletos, que reenviem, explicitamente ou implicitamente, para as autoridades nacionais ou comunitários a tomada de medidas de aplicação ou de execução. O Regulamento é directamente aplicável em todos os Estados (única fonte de direito que é directamente aplicável, nos termos expressos do Tratado).

Produz, por si, automaticamente, efeitos jurídicos na ordem jurídica interna dos Estados, sem interposição das autoridades nacionais45. Dirige-se directamente aos sujeitos, seus destinatários, criando por si direitos e obrigações aos particulares.

Tem efeitos imediatos, porque são aptos a confiar aos particulares direitos que

DD 45 sem a sua recepção-transcrição ou transformação como acto jurídico interno, que é proibida.

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as jurisdições nacionais têm de proteger obrigatoriamente.

Tem eficácia em todos os Estados, pois um Regulamento não pode reger a situação específica dum determinado Estado, com exclusão dos outros, porque tem de entrar em vigor e aplicar-se simultânea e uniformemente no conjunto das Comunidades.

Quanto à Directiva, definida no Tratado da CE, trata-se de um método de legislação em duas etapas (como técnica de lei-quadro) completada por diplomas de aplicação). É um instrumento de uniformização jurídica, assente na divisão de tarefas e na colaboração clara entre o nível comunitário e o nível nacional. Pode não ter alcance geral, obrigando só os Estados, dirigindo-se a Estado(s) ou empresas, pois pode não ser dirigida a todos os Estados.

Tendo alcance geral, deve ser executada e, portanto, adquirir efeito normativo simultaneamente no conjunto dos Estados. Então, é um processo legislativo indirecto (Acórdão de 22.2.84, Kloppenburg).

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Há uma total liberdade na escolha do acto jurídico de transposição (lei, decreto, despacho, circular e designação entidades competentes e dos meios, conforme a finalidade).

Neste plano da intensidade normativa das Directivas, a margem de escolha deixada aos Estados (forma, meios) depende do resultado pretendido pela Comissão ou Conselho.

Em princípio, não é directamente aplicável, havendo no final do articulado um artigo a fixar o prazo de transposição. Portanto não tem efeitos obrigatórios por ela, mas não deixa de ter efeitos jurídicos, designadamente para os particulares, na medida em que o Estado não pode exigir o seu cumprimento nem pode criar regras desconformes com as suas orientações enquanto não a transcreve, e pode ainda adquirir efeito directo, ou seja, tornar-se invocável pelos destinatários dos seus objectivos, após o decurso do prazo de transposição, em relação a normas passíveis de execução, por serem claras, precisas e incondicionais.

A Decisão obriga em todos os seus elementos os destinatários indicados, mas

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não tem alcance geral (obriga um Estado, uma empresa ou um indivíduo). Normalmente aplica o direito dos tratados a um caso particular (acto administrativo comunitário), como instrumento de execução administrativa do direito comunitário. Mas também pode ser instrumento legislativo indirecto, quando prescreve a um Estado ou a um conjunto de Estados um objectivo que passa pela criação de medidas nacionais de alcance geral. Pode ser muito detalhada e prescrever os meios para atingir o resultado imposto, deixando aos Estados apenas a escolha das formas jurídicas de execução nacional. Consequentemente, tem efeito direito, quando o destinatário é um particular porque modifica por si a situação jurídica. Mas essa modificação da situação jurídica do particular só ocorre com a transposição estadual quando o destinatário é um Estado, embora com efeitos internos directos também, se inaplicada, tal como Directivas. Na primeira situação há aplicação directa, na segunda há efeito direito possível.

Quanto às Recomendações e aos Pareceres, não têm em princípio força obrigatória, enquanto instrumentos típicos

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de intervenção comunitário, porquanto não aparecem expressamente referidas no Tratado como fonte de direito.

A Recomendação é um convite para a adopção de regras de conduta, como fonte indirecta de uniformização legislativa, mas sem a obrigatoriedade das Directivas.

O Parecer é uma opinião, servindo de instrumento de orientação dos comportamentos e da legislação.

No entanto, o Tribunal da Comunidade atribuiu a estes actos efeito jurídico, obrigando os Estados a considerá-los, quando clarificam a interpretação das disposições nacionais para plena execução ou visam completar disposições de direito comunitário com carácter obrigatório, em que correspondem à Decisão (v,.g., Acórdão Grimaldi, de 13.12.89).

No que se refere ao regime de edição do direito derivado, o sistema legislativo comunitário implica o respeito do princípio do uso previsto dos actos comunitários.

Em termos de atribuições das Comunidades e da UE em geral, vigora o princípio da competência de atribuição, pelo

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que as instituições, Conselho, Comissão, Parlamento Europeu e Banco Central Europeu não têm um poder normativo geral. A competência nacional é a regra e a competência comunitária é a excepção.

Portanto, trata-se de competências específicas, porque funcionais.

Assim, quanto aos vários princípios que regem os limites ao poder normativo das instituições comunitárias, começarei por referir que as principais competências de atribuição estão ligadas às competências funcionais (poderes e meios para o cumprimento de uma «missão» cometida à Comunidade).

O princípio da atribuição é completado pela reserva de competências subsidiárias e o conceito pretoriano de competências implícitas.

As competências subsidiárias impõem-se quando necessário, para realizar um objectivo com falta ou insuficiência de poderes. As competências implícitas são competências não escritas ligadas à teoria dos poderes implícitos (com origem jusinternacionalista, no Parecer do Tribunal Internacional de Justiça de 11 de Abril de

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1949: trata-se de novas competências e funções necessárias à realização dos fins fixados no Tratado ONU).

O princípio da legalidade comunitária (art.º4 do TCE) implica que cada instituição aja nos limites das atribuições conferidas pelo Tratado, com controlo jurisdicional que o operacionaliza (173CE/33CECA).

O poder comunutário tem de respeitar normas habilitantes (base jurídica do acto) e o conjunto de disposições gerais dos Tratados (Ac. Bela-Mühle de 5.7.77). Ele tem de respeitar o conjunto ou bloco da legalidade comunitária, os Acordos internacionais e os princípios gerais de direito não escritos. E impera o princípio da vinculação aos instrumentos normativos consagrados, embora as instituições escolham o tipo de acto jurídico que consideram apropriado segundo a natureza e conteúdo das medidas queridas quanto o tratado não prevê o tipo instrumento a utilizar. Se não há escolha, embora a Comissão tenha à base do artigo 155.º o poder geral de Recomendação ou Parecer e na prática siga também emita programas ou declarações de intenção, actos principalmente políticos.

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O princípio da hierarquização do direito derivado resulta do não esgotamento de toda a regulação comunitária num momento e acto.

O processo de criação do direito derivado pode ter duas fases sucessivas, numa aparecendo um direito derivado de primeiro grau, com regulamentos ou directivas de base (medidas assentes directamente no tratado) e um direito derivado de segundo grau (visando assegurar a execução das primeiras medidas), com regulamentos ou directivas de execução, actos normativos adoptados quer pela Comissão, com habilitação do Conselho (artigo 155º CE), quer pelo próprio Conselho de Ministros (e na prática também directivas de execução adoptadas pela Comissão, com fundamento num regulamento ou numa directiva do Conselho de Ministros.

Portanto, os regulamento e directiva de execução não podem modificar nem desconhecer os regulamentos e directivas de base (Ac. Tradax 10.3.71).

Há actos comunitários fora da

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nomenclatura, ou seja, não previstos no articulado dos actos jurídicos, mas previstos nos Tratados.

São os actos atípicos, usados com os nomes referidos na normas referente aos actos tóipicos, mas sem a natureza nem os efeitos típicos desses actos.

E não são submetidos ao mesmo regime de edição.

Ou seja, também se designam como Regulamentos os regulamentos internos das instituições, regimentos, que assim são partes integrantes do direito orgânico das Comunidades; sem alcance geral, obrigando só as instituições, mas com importância porque têm alcance externo, contendo, v.g., regras sobre delegação de oderes que condicionam a validade dos actos.

Há Directivas, Recomendações e Pareceres que são actos dirigidos a outra Instituição comunitária sem efeitos jurídicos fora das relações interinstitucionais.

Exprimem o exercício de funções de certos órgãos consultivos (pareceres) ou directivas de orientação das negociações da Comissão com Estados terceiros, após a recomendação da Comissão em comunicação ao Conselho de Ministros, para

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ser autorizada a abrir negociações. Ou Decisões sui generis, sem

destinatários e sem sujeição a regras de notificação da norma referente às Decisões típicas, emnqunto actos administrativos individuais e concretos.

Estas Decisões estão na hierarquia máxima do direito derivado, acima dos regulamentos de base. São utilizadas pelo Conselho de Ministros para exercer poderes de revisão dos tratados, autonomamente, modificando disposições institucionais.

As Decisões podem ser emitidas ao abrigo do artigo 235.º do Tratado da CE (disposições mais genéricas que específicas) ou dos artigos referentes às várias modalidade de estabelecimento de programas económicos de médio termo ou fundados sobre os tratados (Decisão de 29.12.81 sobre actividades da pesca enquanto não tomadas medidas definitivas).

Podem, ainda, ser Decisões orgânicas de criação organismos subsidiários, de criação de estatutos, de nomeações. Isto é, de alcance interno ou orgânico.

Toma, também, a forma de Decisão a

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obrigação de os Estados-Membros cobrarem e verterem os recursos próprios da Comunidade.

Há Decisões do Presidente do Parlamento Europeu sobre a aprovação do orçamento e Decisões da conclusão de Tratados (acordos externos) no processo de comprometimento internacional (sem ser o acto vinculante).

Há, ainda, os Actos das instituições, não previstos pelos Tratados (actos extra-convencionais).

E temos os Actos nascidos da prática comum: resoluções, deliberações, conclusões, declaração, comunicações, cuja adopção começou por ser criticada pelo Parlamento Europeu, pelos riscos de falseamento dos mecanismos comunitários; mas a jurisprudência aceitou-os, sob reserva de não poderem derrogar os tratados constitutivos e reconheceu a alguns carácter obrigatório.

Na prática, do Conselho de Ministros (oficializado pelo artigo 3.4 do Acto de Adesão de 1972), temos também Programas

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com princípios fundamentais de acção, v.g., os referentes à política ambiental comunitária, com prazos de desenvolvimento, que são declarações de intenção, expressão da vontade política, documentos preparatórios de futuros actos obrigatórios164.

De qualquer modo, alguns destes Actos são obrigatórios.

Quando, independentemente da denominação formal, o seu conteúdo mostra que o Conselho de Ministros teve a intenção de se vincular, tomando disposições visando produzir efeitos de direito.

E há as Declarações que acompanham a adopção de um acto típico (visando condicioná-lo) do Conselho de Ministros, da Comissão e dos Estados membros165.

164 V.g., Ac. Comissão contra o Conselho, de 31.3.71, sobre deliberação obrigatória das instituições e dos Estados membros; Ac.France contra Reino Unido de 4.10.79 e da Comissão também contra o RU, de 10.7.80, sobre a Resolução de 3.11.76 -anexo VI à Resolução de Haya, autorizando os Estados transitoriamente a proteger recursos piscatórios, com associação da Comissão e Declaração complementar de 30.1.80.

165 A Jurisprudência serve-se delas para confirmar

interpretação assente noutras condiderações (Ac. Auer 7.2.79), mas despreza os elementos não conformes ao acto, designadamente declaração unilateral dos Estados membros (Ac. Comissão contra Dan, de 30.1.85).

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Na prática da Comissão, temos as Comunicações, de alcance geral, em matérias onde só há poder de decisão casuística.

Vêm fixar orientações ao exercício futuro do poder discricionário. Ou os simples pareceres de carácter geral (com alcance jurídico indirecto, porque responsabiliza a Comunidade a segui-los, em face do princípio da confiança legítima dos administrados nas declarações da própria Administração166. 167

A prática passa ainda por declarações comuns a várias instituições, com compromissos recíprocos de seguir um dado procedimento ou a respeitar certos princípios de funcionamento168, o que pode implicar obrigações jurídicas, quando contêm obrigações precisas e incondicionais para as instituições169.

O que importa reter, em geral em 166 V.g., ac. Companhie Continental France, de 4.2.75.167

168 q 57 Vg. sobre os direitos fundamentais JOCE 27.4.77.169 58 Vg. Acordo Interinstitucinal de 29.6.88 sobre

disciplina orçamental e melhoria procedimento orçamental JOCE 15.7.88.

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relação a actos comunitários, é que juridicidade está ligada à vontade manifestada de os aplicar.

Também são importantes as regras sobre as formas dos actos e a sua vigência.

Quanto às formas, os regulamentos internos do Conselho de Ministros e da Comissão dispõem que o acto comunitário deve ser precedido da indicação dos dispositivos que legitimam a sua criação, os vistos respeitantes a propostas, pareceres e consultas recolhidas, a motivação do acto.

Quanto à entrada em vigor, impõe-se a sua publicidade prévia à execução.

O acto só é oponível depois da possibilidade de se tomar conhecimento dele.

Há a obrigação de publicação dos Regulamentos da CE e da EURATOM, regulamento, directiva e decisões em co-decisão, directiva do Conselho de Ministros e Comissão dirigidas a todos os Estados-

56 Vg. Comunicação de 7.11.74, relativa ao enquadramento no plano comunitário das ajudas de Estado em matéria de ambiente; Comunicação de 26.2.75, referente aos novos princípios de coordenação de ajudas nacionais com finalidade regional, acto que vincula juridicamente a Comissão (correspondendo ao regulamento de auto-vinculação no direito administrativo.

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Membros, e das decisões e recomendações gerais CECA.

E as disposições de aplicação de um acto não publicado só entram em vigor após a publicação do texto principal. Se não, impõe-se a notificação. São notificáveis as decisões do Conselho de Ministros e Comissão, mesmo que os destinatários sejam todos os Estados-membros e as directivas dirigidas só a certos Estados membros.

As formas de notificação e de publicação são as seguintes: a notificação é feita por via postal, registada com aviso de recepção, envio contra recibo a uma pessoa com qualidade para os receber; ao Estado membro através representantes permanentes em Bruxelas; aos particulares por via postal ou via diplomática quanto ás empresas sujeitas jurisdição de Estados terceiros.

E na língua do Estado a cuja jurisdição o particular está sujeito. Quanto aos prazos (contagem para efeitos da entrada em vigor), os actos consideram-se notificados, normalmente, no dia da notificação.

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Quanto aos actos publicados: as instituições fixam livremente a data, sob reserva de regras referentes à retroactividade. Ou no seu silêncio, 20 dias após publicação.

Considera-se como dia da publicação, o dia em que a publicação do JOCE fica disponível na sede serviço publicações oficiais da Comunidade no Luxemburgo que, salvo prova em contrário, coincide com a data do nº do Jornal, que está no texto, independentemente da data da chegada ao território de cada Estado-Membro (Ac. Racke 15.1.79).

Na solução habitual, prevê-se a entrada em vigor retardada (após 20 dias). Mas pode ocorrer a aplicação diferida (produção efeitos após entrada em vigor) para permitir Estados tomar medidas de aplicação requeridas.

Nas situações urgentes, a entrada em vigor não respeita o prazo mínimo de 20 dias, mas não deve ser inferior a 3 dias (necessários para o encaminhamento para o território dos Estados). A entrada em vigor imediata, no dia da publicação JOCE so é

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aceite quando há a obrigação de evitar o vazio legislativo ou de prevenir a especulação.

Tal invocação é controlável pelo TCE, que afere caso a caso a possibilidade de prejuízos comunitários, pela não entrada imediata (Ac. Max Neumann 13.12.67). V.g., um regulamento fixando montantes a receber por importação ou exportação de produtos agrícolas.

E a Comissão comunica na véspera ou no dia de manhã via telex a aparição do regulamento.

Quanto à transposição das directivas, a data da aplicação na ordem jurídica dos Estados é fixada na própria directiva.

No plano da aplicação dos actos comunitários no tempo, a regra é a do efeito imediato das novas regulamentações (Ac. Westgucker 4.7.73): as normas modificativas de disposição anterior aplicam-se, salvo disposição em contrário, aos efeitos actuais e futuros das situações materiais criadas sob o império da norma antiga.

Sob reserva que não sejam ofendidos

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direitos definitivamente adquiridos é livre a modificação ou revogação de regulamentos (princípio da não retroactividade).

Mesmo sem direitos adquiridos à manutenção do regulamento, os seus destinatários bebeficiam da teoria da protecção da confiança legítima na regulamentação existente que responsabiliza a Comunidade na supressão ou modificação com efeito imediato, sem aviso, e sem medidas transitórias adequadas, excepto existindo um interesse público peremptório ou fosse previsível para o operador económico.

Portanto, em termos de aplicação do direito comunitário no tempo, temos o efeito imediato dos regulamentos modificativos das normas anteriores.

O problema da retroactividade (efeitos jurídicos fixados para situações anteriores à publicação) leva-nos às seguintes considerações: vigora o princípio da não retroactividade para as situações constituídas ao abrigo da regulamentação anterior criadora de direitos definitivamente adquiridos.

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A retroactividade dos regulamentos é excepcional.

Quando o fim a atingir o exige e é devidamente respeitada a confiança legítima dos interessados (Ac. Racke 25.1.79).

Ou seja, a retroactividade é condicionada a duas condições: que a confiança na manutenção da regulamentação não seja legítima porque seria possível ou pelo menos previsível a intervenção de medidas retroactivas (v.g. sistema a que seja conatural qualquer alteração produzida); que a instituição cuide de fazer conhecer aos Estados em tempo útil, vg. telex, as alterações (Ac. IRCA, 7.7.76).

No plano da revogação retroactiva dos actos administrativos, a jurisprudência admite a revogação dos actos ilegais unilaterais por parte da autoridade competente (A. Algera 12.7.57).

Quanto aos actos criadores de direito só são revogáveis quando ilegais (Ac. SNUPAT 22.3.61).

O prazo para reforma dos actos ilegais, deve efectuar-se só em tempo razoável: actos criadores direitos, dentro de

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mais ou menos seis meses; actos não criadores de direitos, até a um máximo de 2 a 3 anos (Ac. Hoogonens 12.7.62).

Impõe-se a ponderação de interesses, em face da irregularidade do acto, da necessidade de retroactividade entre o interesse público e interesses privados (Ac. Lemmerz-Werke 13.7.65), senão haverá simples abrogação para o futuro do acto ilegal.

Em termos de características, o direito comunitário não é um direito exterior às ordens jurídicas nacionais, mas um direito próprio de cada um dos Estados membros, na medida em que é aplicável nos seus territórios nos mesmos termos que os direitos nacionais e colocado no topo da hierarquia das normas aplicáveis em cada um dos Estados, porque o direito comunitário adquire automaticamente o estatuto de direito positivo na ordem interna dos Estados (princípio de aplicação imediata).

O direito comunitário pode criar por si mesmo direitos e obrigações para os particulares (princípio da aplicabilidade

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directa).

O direito comunitário aplica-se nas ordens jurídicas nacionais, mesmo que conflitue com as normas de criação interna de qualquer natureza (princípio da primazia).

Hoje, podemos falar na construção de um direito público europeu, numa linha de evolução jurídico-administrativa ocidental, em que não só o Tribunal dos Direito do Homem, de Estrasburgo, ao interpretar o direito referente aos Direitos do Homem, como o Tribunal da União, a nível dos seus Estados, ao erigir os Direitos do Homem em princípios gerais dos Estados membros, tal como a europeização dos Tribunais Constitucionais nacionais, com recurso à análise comparada na aplicação dos direitos fundamentais nos ordenamentos internos, propiciam a europeização dos direitos públicos nacionais.

O Tribunal da União é um órgão jurisdicional muito marcado pelas experiências nacionais, e com uma jurisprudência construtiva que exerce grande influência nos Estados membros,

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implicando a União uma profunda e constante interacção entre os ordenamentos comunitário e os dos diferentes Estados, o que faz prefigurar uma dada uniformização do direito administrativo na Europa, com raízes no Direito Comunitário.

Os Tratados ou o direito derivado consagravam alguns princípios gerais do direito administrativo, como o dever de motivação dos actos normativos ou a enumeração dos vícios substantivos passíveis de revisão judicial, mas a sua maior parte foi elaborada pela jurisprudência, com base nos princípios comuns dos Estados membros, v.g., desde o Acórdão Algera, em matéria de funcionários, caso 7/56, referente à revogação dos actos administrativos, não prevista no T.CEE, o que colocava a questão da denegação da justiça, se o Tribunal das Comunidades não avançasse pela aplicação de princípios comuns aceites pela doutrina, legislação e jurisprudência dos Estados.

Depois veio o princípio da legalidade da acção administrativa, o direito ao processo devido, nomeadamente o direito a ser ouvido, o princípio da igualdade, da

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interdição de excesso (proporcionalidade) e da confiança legítima.

E há não apenas a emergência de um direito administrativo, substantivo e procedimental, mas uma emergência jurídico-constitucional comunitária.

Este plano do direito constitucional constitui o segundo bloco normativo material emergente do Direito Público Europeu.

Depois da primeiro abordagem de reticência no reconhecimento de direitos subjectivos positivados no âmbito da protecção dos direitos fundamentais, o TCE inflectiu a sua orientação a partir do Acórdão Stander de 1959, reconhecendo o enraizamento dos direitos fundamentais nos princípios gerais do Direito Comunitário, de modo que logo em 1970, o Acórdão Insternacionale Haudelsgesellschaft, em que parte das tradições comuns dos Estados quanto à protecção destes direitos, reconhece que os mesmos tinham que ser garantidos no âmbito da estrutura e objectivos da Comunidade.

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No Ac. Nold de 1974, após a ratificação francesa da Convenção Europeia Direitos do Homem, o TCE declarava que o Direito Comunitário pode integrar princípios gerais e critérios a partir dos tratados internacionais de que os Estados sejam parte.

O Tratado de Maastricht, no artigo F2, veio consagrar expressamente esta doutrina, sobre Direitos Fundamentais, especialmente quanto à CEDH de 1950 e às tradições constitucionais comuns.

Há, pois, hoje, princípios gerais comunitários no âmbito dos direitos fundamentais, que importa considerar.

Esta supremacia absoluta do direito da União Europeia impele à sua consideração como direito supraconstitucional (independentemente das normas constitucionais sobre a regulação do tema, ou mesmo da sua inexistência, e da divisão doutrinal dos autores sobre o modo de enquadrar a aplicação da regra da sua supremacia, pelo menos, suspensão da vigência das normas que o contradigam) ou, não se aceitando tal,

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e impelindo-se assim à obrigação sistemática de uma revisão constitucional prévia à sua adopção (embora sem real autonomia da vontade nacional, só formalmente soberana, do parlamento estadual, obrigado a ir a reboque da vontade comunitária, em que a vontade nacional dos representantes governamentais ou dos parlamentares europeus se impõe), sempre que haja desconformidade de preceitos.

Quanto às fontes não escritas do direito comunitário, temos o Costume (de facto, pela joventude da União e sua forte dinâmica legisladora e evolutiva, ele é uma realidade quase inexistente: (v.g., havia a exigência de parecer conforme do Parlamento Europeu na fixação do orçamento operacional da CECA) e a Jurisprudência, que, esta sim, tem tido um lugar importante e memso fundamental na criação jurídica, podendo falar-se de um direito de fonte jurisprudencial, aparecendo sobretudo ao nível da explicitação de princípios gerais de direito a partir dos Tratados constitutivos e dos ordenamentos

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jurídicos dos Estados.

O direito jurisprudencial tornou-se importante devido ao carácter geral, impreciso e incompleto das regras dos Tratados, à rigidez do direito primário, rigidez do seu procedimento revisão, inércia do direito derivado por bloqueamentos de membros do Conselho de Ministros, aptidão do Tribunal da União de criar direito devido à igualdade institucional que sempre teve com o Conselho de Ministros e a Comissão Europeia e à sua capacidade operacional em face do monopólio da interpretação autêntica.

A missão normativa do Tribunal da União afirma-se no devido ao uso de métodos interpretativos dinâmicos e no recurso generalizado aos princípios gerais de direito.

Quanto aos métodos de interpretação, eles correspondem às ecxigências de uma jurisprudência construtiva. Há a preferência pelos métodos sistemáticos (contexto geral) e métodos teleológicos (objecto e fim), ultrapassando a interpretação literal, em termos diferentes, portanto, do disposto no

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art.º 31.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.

O método sistemático é explicitado perfeitamente no Acórdão Manghera, de 3.2.76, que prossegue uma interpretação no contexto em relação com outros parágrafos do mesmo artigo e no sistema geral do tratado (interpretação sistemática).

Mas, como o Tribunal refere, é menos importante a conexão das disposições do que as relações estruturais (interpretação dos artigos, tendo presente os títulos das subdivisões do Tratado) ou do seu lugar nessas subdivisões (v.g., Acórdão Unger de 19.3.64; Acórdão Comissão contra o Luxemburgo e a Bélgica, de 14.12.82). Noutras alturas, refere que o efeito directo do Direito depende da sua função no sistema do Tratado (v.g., Acõrdão SACE, de Bergame).

O método teleológico é resultante da busca do sentido, apreendido no quadro dos objectivos propostos pelo Tratado (Preâmbulo e disposições iniciais, interpretáveis à luz das finalidades do Tratado: Ac. Mij PPV 13.3.73; RFA cntra

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COM 16.6.66), como princípio de interpretação.

Conclui-se, várias vezes, pelo efeito directo de normas dos Tratados (v.g., artigo 119 do TCEE), tendo presente a natureza do princípio da igualdade das remunerações, do objectivo perseguido e do lugar no sistema do Tratado (Ac. Defrenne 8.4.76).

O método sistemático e teleológico (usado na interpretação dos regulamentos em relação direito originário e também em relação regulamentos de base para medir poderes de execução da Comissão (v.g. Ac. Koster, de 17.12.70), é sobretudo importante nos Tratados, pois os princípios da interpretação são instrumentos directamente operatórios, tanto para interpretar restritivamente excepções (Ac. Reyners 21.6.74), como para afastar as consequências duma omissão normativa do Conselho, assim evitando aplicar princípios de interpretação do juiz internacional (vg. Ac. Charmusso, de 10.12.74).

Há a desvinculação em relação aos métodos de interpretação do juiz internacional (DIP). No DIP, o princípio da

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soberania dos Estados obriga a uma interpretação estrita dos compromissos dos Estados, enquanto a jurisprudêncua comunitária vai contra a soberania dos Estados em nome das finalidades da integração: não se presume a caducidade das normas Tratado e portanto não renacionalização atribuições conferidas Comunidade, não exercidas sem disposições expressas Tratados (Ac. Comissão contra França, de 14.12.71), atribuição implícita competência compromissos internacionais (Parecer 1/76, 26.4.77), rejeição regra §3, artigo 31 da Convenção de Viena do Direito dos Tratados, quanto ao valor das condutas posteriores dos Estados para deduzir a vontade inicial das partes ou constatar a modificação implicitamente do conteúdo do tratado na insuficiência de reacção contra a Comissão (Ac. Defrenne, 8.4.76), sendo tais condutas sempre violações (para não esvaziar os tratados e a Comunidade).

A utilização da regra do efeito útil leva a afastar as interpretações que fazem perder tal efeito, enfraquecer ou limitá-lo em relação a qualquer norma, com consequências na afirmação da interpretação actualista (Parecer 1/75

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11.11.75 e 1/78 4.10.79, em que se afirma que a leitura dos Tratados deve ser feita segundo as necessidades actuais).

Ou seja, não segundo uma leitura indutiva (pensamento dos autores dos textos), mas uma leitura dedutiva, a partir da noção de Comunidade, com consequências inelutáveis. Desde logo, a ideia do respeito pelo acervo comunitário (estado do avanço da construção europeia e implicações necessárias, e, desde logo, a salvaguarda da existência e unidade do direito, através do princípio da primazia do direito comunitário (Ac. Costa, de 15.7.64; San Michele, de 22.6.1965); e princípio da autonomia do direito comunitário (não aplicação regras nacionais para apreciar a validade dos actos jurídicos comunitários ou para limitar o alcance das suas disposições, atacar a unidade e eficácia do direito comunitário (Ac. internationale. Handelsg. 1970).

Da noção de Comunidade e da noção de política comum resulta o princípio do paralelismo de competências internas e externas da União, para contratar com Estados terceiros: o carácter exclusivo das

63 377

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competências externas comunitárias, após as competências internas da Comunidade começarem a ser exercidas, em face do princípio da preempção.

E temos, ainda, os princípios gerais de direito, já referidos anteriofrmente.

Em termos de natureza, são regras não escritas, que o juiz, constatando existirem, compatibiliza e aplica, integrando na ordem jurídica comunitária, a partir dos diferentes sistemas jurídicos, designadamente dos dos Estados membros.

Há três categorias de princípios: os princípios gerais de direito (princípios comuns ao conjunto dos sistemas jurídicos nacionais e internacional, que dão resposta a exigências supremas de direito e da consciência colectiva, v.g., o do carácter contraditório do processo judicial65, ou princípio geral da segurança jurídica, com conteúdo operativo mais difícil de identificar; os princípios de direito internacional público, só aplicáveis a título excepcional, v.g. matéria de tratados contraditórios, dado que normalmente são

o

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incompatíveis com a estrutura e as exigências do sistema comunitário (pois a noção de Comunidade impede que os Estados façam justiça por si mesmos ou se desobriguem, invocando o princípio de direito internacional da reciprocidade, em face da inexecução de obrigações que lhes incumbam, por incumprimento por parte do outro Estado, etc.); e os princípios gerais comuns aos direitos dos Estados membros, que traduzem um património jurídico comum, o ponto de convergência do conjunto dos sistemas nacionais ou uma corrente dominante, mas também pode ser minoritária (v.g., o princípio da proporcionalidade, da confiança jurídica, próprios da RFA.) quando os outros Estados não têm disposição significativa na matéria.

No caso Sayag (Ac. 11.7.68), adopta-se a noção restritiva de exercício de funções de agentes públicos, só vigente num Estado.

Por vezes, adopta-se um princípio transposto de dada regra, derivada da autonomia do Direito Comunitário (o Ac. International Handelsgesellschaft, de 17.12.70, rejeita princípios comuns não compatíveis com as exigências comunitárias: Ac. Dausin 11.7.68).

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No que diz respeito às fontes complementares do direito comunitário, temos o direito resultante de Acordos entre os Estados membros, nos domínios de competência nacional «reservada», situando-se no desenvolvimento dos objectivos definidos pelos tratados. Ou seja, direito que ainda é direito comunitário em sentido amplo, porque apesar do regime inter-estadual têm relações com a ordem jurídica comunitária.

E assim, temos as Convenções Comunitárias, as Decisões e Acordos convencionados pelos representantes dos governos dos Estados membros reunidos no seio do Conselho de Ministros em conferência diplomática e as Declarações, resoluções e tomadas de posição relativas às Comunidades, adoptadas por comum acordo dos Estados membros.

Há, ainda, outros actos jurídicos que vinculam a Comunidade.

Há, ainda, a considerar o direito resultante dos compromissos externos das Comunidades. Trata-se de acordos celebrados no quadro das competências externas, que obrigam internacionalmente

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(pela simples conclusão internacional). Integram-se na ordem jurídica comunitária, e, portanto, dos Estados membros, tendo aplicação interna com a mera publicação.

E a integração de qualquer Estado aderente na ordem jurídica comunitária processa-se desde a entrada em vigor dessas normas ou das sentenças proferidas pela Jurisdição da União (com informação no Jornal Oficial da anteriores Comunidades e da União).

Há, depois, os actos unilaterais dos órgãos criados por certos Acordos externos (sejam tratados da UE sejam mistos), com poder decisional adequado, verdadeiro direito derivado dessas organizações. Refiro-me a órgãos de gestão com poderes para adoptar actos obrigatórios unilaterais (sem necessidade de ratificação ou aprovação). São fontes de direito comunitário.

As Decisões de órgãos criados por acordos externos ou de organização internacional em que a Comunidade se integre fazem parte integrante do Direito Comunitário desde que produzam efeitos

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jurídicos sobre a Comunidade, adquirindo força obrigatória segundo o direito internacional, mesmo que a Comunidade não os transponha para regulamentos, como é habitual e mesmo que não os publique autonomamente.

E os tratados concluídos por Estados membros com Estados terceiros, em que a Comunidade não foi parte, vinculam-na quando esta dever considerar-se «substituída» pelos Estados, comprometidos em tratados multilaterais anteriores a 1958.

Quanto aos Direitos do Homem e Liberdades Fundamentais, em vez de considerar a Comunidade vinculada à Convenção Europeia como fonte formal da legalidade comunitária, o TUE limitou-se a considerar CEDH como fonte inspiração indirecta, junto com catálogos constituições nacionais, pela via dos princípios gerais de direito.

E quanto às Convenções Internacionais concluídas pelos Estados depois da entrada em vigor do Tratado da CEE, em domínios de competência residual ou transitória, v.g., no domínio do trabalho,

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a Organização Internacional do Trabalho, ou no quadro Conselho da Europa?

É uma questão não resolvida pelo Tribunal das Comunidades Europeias.

A resposta parece dever ser no sentido da sua não integração automática na ordem jurídica comunitária, ou seja, enquanto não haja a sua aceitação (declaração de aceitação).

No plano da hierarquia entre normas vigentes na ordem jurídica comunitária, começo por referir que, quanto à hierarquia do direito convencional, celebrado com terceiros, obrigando a Comunidade, alguma doutrina a considera como inferior ao direito comunitário primário, mas superior ao direito comunitário derivado170, embora se deva aplicar aqui o mesmo princípio da supremacia aplicável em relação ao direito interno dos Estados.

Quanto ao princípio da primazia do direito convencional complementar sobre o direito derivado, ele assegura o seu respeito em via contenciosa ou prejudicial e em relação aos actos comunitários anteriores

170 GUY ISAAC -Direito Comunitário Geral, 1996.383

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ou posteriores, independentemente da forma da conclusão do tratado internacional.

Quanto direito primário orgânico e procedimental, que fixa normas atributivas de competências externas e regras de procedimento no seu exercício, há nulidade dos Acordos internacionais se faltarem atribuição à Comunidade na matéria e pode haver a invalidade no plano interno por falta de procedimento, mesmo que seja válido internacionalmente à face da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.

Quanto direito primário material, a sua violação pode ser evitada pelo controlo preventivo do Tribunal da União, segundo o procedimento organizado nos termos da respectiva norma do Tratado da UE.

No que diz respeito às fontes complementares do direito comunitário, em relação ao direito originário, elas são fontes de igual valor convencional, sem relação de subordinação.

Mas as finalidades do direito complementar exige uma relação de

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compatibilidade (pelo que não há por princípio antinomias a resolver), e implica, de qualquer modo, sempre, uma interpretação não prejudicial do direito comunitário, presumindo-se que os Estados não derrogaram o Tratado da União Europeia, em face da cláusula de fidelidade do artigo 5.º: dupla obrigação dos Estados-membros, expressamente veiculado no Tratado de Roma, sem prejuízo da aplicação do novo princípio da subsidiariedade.

Quanto às relações entre o direito complementar e o direito comunitário derivado, importa distinguir entre as matérias da competência comunitária exclusiva, situação em que a regulação convencional pelos Estados traduz violação do tratado, por incursão dos Estados membros nas atribuições transferidas.

Quanto às matérias da competência concorrente, especialmente no âmbito do artigo 235.º do Tratado da CE, impera o princípio da prioridade do direito derivado.

E nas matérias de competência nacional exclusiva, só pode haver actos comunitários com fundamento e para

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execução de actos de direito complementar, subordinados a estes.

***

§24.HIERARQUIA DAS NORMAS JURÍDICAS

Quanto à sua hierarquia, temos o direito internacional geral, a Constituição, as leis de valor reforçado, as leis e decretos-leis, os decretos legislativos regionais, os regulamentos gerais (do Estado), os regulamentos regionais e os regulamentos locais.

Os princípios sobre a hierarquia das normas, pode enunciar-se assim: a norma de valor superior pode revogar a norma inferior que não se conforme com ela (afectada de ilegalidade, e se, implicar directa ou indirectamente (directamente: lei de valor reforçado) a Constituição da República Portuguesa, a nulidade de que fica afectada (ilegalidade ou inconstitucionalidade), é declarável pelo Tribunal Constitucional; se ofender norma internacionalista ou comunitária/unionista, é inaplicável, considerando-se, no mínimo

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como de vigência suspensa).

Quanto à jurisprudência, os três sentidos correntes em que é entendida são correspondem a ciência do direito, actividade casuística cogente dos tribunais (jurisdicional na resolução dos casos concretos submetidos a julgamento) ou actividade doutrinal resultante da actuação corrente (traduzida em orientações gerais dedutíveis das resoluções dos tribunais na solução de casos semelhantes. ou seja, questões factuais idênticas com aplicação das «mesmas» normas jurídicas).

É em relação ao conjunto destas orientações que se põe a questão de saber se elas são ou não fontes de direito. E em sentido criador ou revelador?.

Seguindo de perto DIOGO FREITAS DO AMARAL, que distingue entre fontes juris essendi e fontes juris cognoscendi, podemos encontrar várias teorias sobre a matéria:

a)- Segundo a teoria montesquiana da negação da autonomia teórica da qualificação da jurisprudência como fonte do Direito, que é a teoria clássica, resultante do próprio pensamento de

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MONTESQUIEU171, e que tem sido seguida pela maioria da doutrina portuguesa, os juízes não criam direito, tendo apenas uma função secundária, que se traduz na mera aplicação do direito, pelo que sendo as fontes do direito são apenas a lei e o costume, a jurisprudência não o é. Como refere DIOGO FREITAS DO AMARAL, esta teoria é inaceitável, porquanto os tribunais não são meras máquinas de reprodução exacta da vontade do normador, constituídos por juízes transformados em puros agentes passivos, meros conversores de «ditados» exteriores em soluções concretas, e portanto a jurisprudência não é um mero altifalante da voz do legislador, neutra, sendo certo que os tribunais ultrapassam o mero labor de executores da norma escrita ou costumeira, pelo que tal teoria é de afastar.

b)- Segundo a teoria realista radical, defende-se não só a autonomização conceptual da jurisprudência como fonte do direito, como a secundarização em geral do papel da lei e do legislador. Com efeito, para esta concepção americana, quem cria o

171 Segundo ele, «le juge c’est la bouche qui prononce les paroles de la loi».

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direito são os juízes, afirmando rotundamente que antes dos tribunais de um país se pronunciarem, não se sabe verdadeiramente qual é o direito vigente nesse país. Nesta linha de pensamento, o célebre juiz americano HOLMES172chegava ao ponto extremo de dizer que as leis não passam de meras «profecias» daquilo que os tribunais acabarão por decidir quando julgarem os casos concretos. Mais concretamente, escreveu HOLMES, em 1897, que uma obrigação legal não é mais do que a predição de que, se um homem faz ou deixa de fazer certas coisas, terá de sofrer desta ou daquela maneira, por sentença dum tribunal», as profecias do que farão os tribunais, e nada mais pretensioso do que isso, é o que eu entendo por Direito, num caminho de mera análise do funcionamento real dos tribunais com rejeição do direito como sistema lógico173.

Comentando estas afirmações, DIOGO FREITAS DO AMARAL demarcando-se, diz

172 HOLMES, O.W. –The Path of Law. In The Holmes Reader, oc, p.60, apud LATORRE, Ángel –«Los Realistas Norteamericanos». In Introducción al derecho: Nueva edición puesta al día. Barcelona: Ariel, 1997, p.142, tradução portuguesa de Manuel de Alarcão: Introdução ao Directo. 5.ª reimpressão, Coimbra: Almedina, p.191.

173 A. e o.c., p.192.389

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que «as leis não são meras ‘profecias’», pois «têm valor próprio, são obrigatórias por si mesmas, independentemente de virem ou não a ser interpretadas e aplicadas pelos tribunais. Aliás, a maioria das leis são obedecidas espontaneamente pela maioria dos cidadãos na maioria dos casos, sem recurso a qualquer tribunal», pelo que haverá aqui algum excesso no modo de encarar a relação lei-sentença.

Consideramos que, quer a teoria clássica em Portugal, quer a teoria realista radical, generalizam «o campo factual» que seleccionam e a que se agarram redutoramente nas suas análises, pois, não é pelo facto de, muitas vezes, os juízes tal como os órgãos das Administração Pública, na aplicação de certos conceitos e previsões normativas não terem margens de inovação jurídica que pode negar-se as outras, e são muitas, em que o têm, por não se estar perante conceitos e previsões muitas precisas (em que se limitam à efectivação de operações de cálculo matemático) ou perante uma estreita margem de densificação jurídica, em que não há espaço para grande criatividade apreciativa e decisória.

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Como é possível desconhecer-se que há situações típicas em que a jurisprudência aparece como um fonte não só reveladora como realmente autónoma em termos de criação de direito e, assim, é fonte de direito, tal como: acontece com os acórdãos com força obrigatória geral, acórdãos uniformizadores de jurisprudência com eficácia jurídica, acórdãos de actualização de jurisprudência uniformizada, as correntes jurisprudenciais uniformes?

c)-Nesta linha de constatação e numa postura teórica realista moderada, em que nos colocamos, e que em Portugal vemos perfilhada, desde logo, por DIOGO FREITAS DO AMARAL, há que considerar que, embora na maioria dos casos, a fonte primária do direito seja a lei ou o costume, a jurisprudência, também pode ser fonte juris esssendi, e fonte cognoscendi.

Com efeito, nas situações em que os tribunais intervêm, os juízes, de facto, muitas vezes, desempenham uma função criativa, que há que reconhecer que integra o seu espaço institucional de intervenção.

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Há situações em que os juízes, nas suas tarefas de aplicação de conceitos e previsões normativas operam operações com clara criatividade apreciativa e decisória, reservando-lhes o próprio direito espaços heurísticos no plano da conformação dos factos a subsumir ou decisórios seja em termos de tempo de actuação e conteúdos das soluções que revelam remissões criativas mais ou menos significativos, através do uso de conceitos imprecisos (vagos, indeterminados), seja pelo recursos a termos e saberes técnicos e científicos de implicam uma mobilidade de soluções à medida dos avanços na densificação desses conceitos extra-jurídicos, seja pela atribuição de poderes discricionários, sendo certo que, no caso dos tribunais, isso dá origem à afirmação do direito vigente no caso e, por influência posterior da própria decisão precedente, a orientações generalizáveis na jurisdição, e embora nem todos os casos de aplicação do direito cheguem a tribunal propiciando este espaço reorientador ou corrector da aplicação do direito, as suas orientações, na medida em que existam, influenciam a doutrina e os destinatários das normas, designadamente os poderes públicos,

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devendo, de qualquer modo, evitar confundir os planos de intervenção pois estamos perante aspectos distintos que a análise dos processos revela claramente: se é verdade que os tribunais não criam normas jurídicas, pois a decisão dos casos concretos não traduzem comandos gerais e abstractos, de eficácia erga omnes, pelo que as sentenças, sendo, em si e em geral, meras decisões individuais e concretas, não têm natureza normativa174, também é verdade que não sendo realmente as sentenças fonte de direito, não deixa de se constatar como historicamente sedimentada a realidade de um fenómeno extremamente relevante que é a existência de decisões jurisdicionais criativas na solução casuística das questões jurídicas colocadas aos tribunais, que não podem considerar-se derivadas, automaticamente, de uma mera aplicação da norma ao caso concreto. Independentemente de haver países (Inglaterra e em parte também nos E.U.A.), em que o «precedente judicial» é obrigatório nos casos julgados

174 Noutro lugar nos referimos ao papel do TC nas suas declarações de inconstitucionalidade com eficácia geral, eliminadora das normas jurídicas. E do STA, em aplicação da al.g) do n.º1 do artigo 119.º da CRP, ao produzir declarações de ilegalidade com força obrigatória geral (artigos 72.º, 73.º e 76.º do CPTA).

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posteriormente, e, em regra, tal não ocorrer em Portugal, onde a lei, no entanto, não deixa de, excepcionalmente, impor uma jurisprudência obrigatória (de jure) em certas situações175: o preenchimento de casos omissos, com o dever não só de julgar, mesmo que ocorra falta ou obscuridade da lei ou dúvida acerca dos factos em litígio; o dever de tomar em «consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito»176, a concretização de conceitos imprecisos, geralmente designados como conceitos vagos ou indeterminados (situações de uso de margens de livre decisão ou de poderes discricionários pelo juiz), as sentenças especiais, a que dá lugar, os acórdãos de uniformização de jurisprudência, que

175 Recorde-se que, em Portugal, existiu até 1993 o chamado instituto chamado dos «assentos», previsto no artigo 2.º do Código Civil, que foi declarado inconstitucional pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 810/93, de 7.12.93, solução que, aliás, tem sido criticada por alguma doutrina.

176 Artigo 8.º (Obrigação de julgar e dever de obediência à lei): «1. O tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio.2. O dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo.3. Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito».

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implicam a sua obrigatoriedade para todos os tribunais hierarquicamente subordinados, instituto do julgamento ampliado de revista e agravo para assegurar a uniformidade da jurisprudência177, recursos para uniformização da jurisprudência penal (artigo 437.º do Código de Processo Penal, e recurso de reexame actualizador da jurisprudência, no interesse da unidade do direito, do artigo 447.º do Código de Processo Penal, que DIOGO FREITAS DO AMARAL considera de aplicação analógica a todos os tipo de processos178) e da administrativa179-180-181.

Além disso, a jurisprudência dos tribunais será também fonte indirecta do costume, designadamente quando leve à afirmação de normas claramente contrárias ao direito tido como vigente até aí ou quando seja manifestação da sua existência,

177 Artigos 732.º-A e n.º3, 762.º.178 O.c., p.477.179 Artigo 152.º do CPTA.180 Vide, desenvolvidamente sobre o tema, AMARAL, DIOGO

FREITAS DO –o.c., p.459 e ss.181 Em plenário das secções cíveis, requerido pelas partes ou

MP, sugerido pelo relator ou adjuntos, presidentes das secções, parecer MP, publicação 1.ª Série A do DR: artigos 732.º-A e 732.º-B do Código do Processo Civil). Sobre os assentos, na sua configuração antiga, sem contraditório e imodificáveis: Acórdão do Tribunal Constitucional n.º810/93.

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em que ela apareça como nomogenética, na medida em que seja inovadoramente «geradora» de actos jurídicas gerais e abstractos, que posteriormente não só a generalidade dos tribunais como também as autoridades administrativas e os cidadãos acatem como sendo de natureza obrigatória, ou seja, verdadeiro direito. No entanto, como se constata, neste caso de co-autoria material de direito, juridicamente a verdadeira fonte é o costume, cuja lógica protocriativa propicia ou a cuja afirmação responde, embora o arranque da sua prática reiterada possa partir da própria actuação dos tribunais, em processo algo semelhante à do costume internacional com base nas resoluções parlamentares da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (que alguns autores chamam de fonte parlamentar, para distinguir do costume de criação normativa não escrita e inicialmente não intencional).

Isto pode acontecer sobretudo em dois tipos de situações:

Quando se criem correntes jurisprudenciais claramente maioritárias, que criem a convicção de que um caso idêntico virá a ser decidido segundo essa

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orientação (da mesma maneira), e que portanto comecem a ser acatadas, de facto, como se fossem obrigatórias até que entrando na prática social corrente, acompanhadas da convicção da sua vinculatividade, se tornem obrigatórias ou seja acatadas de iure.

De qualquer modo, quer para os tribunais, quer para a Administração Pública e os cidadãos em geral, o valor prático da jurisprudência, seja na interpretação e aplicação da lei aos casos concretos, seja como fonte excepcional de normatividade ou como sua base nomogénica, é bastante muito importante. O direito socialmente «vigente» é o que o juiz diz que é direito e aplica, pois as sentenças obrigam todos os seus destinatários, cidadãos ou poderes públicos182-183.

182 De facto, mesmo quer toda a doutrina defenda uma dada interpretação de uma norma que pode ter mais do que uma interpretação possível, se o juiz optar por uma interpretação diferente, é esta a que passa a valer, enquanto a doutrina, sendo uma mera opinião de especialistas, existente a montante do momento aplicativo, por muito conceituada que seja, não é aplicável por si, ao não obrigar nem cidadãos nem autoridades.

183 Com efeito, o cidadão ou a Administração Pública ficarão sujeitos à interpretação em que assenta a sentença, no caso submetido a julgamento, independentemente das posições científicas propostas pelas Escolas e seus Doutores. Para se compreender a diferença, basta reproduzir a seguinte explicação dada por AMARAL, DIOGO FREITAS DO: «se acerca de um dado

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Em conclusão, o conhecimento do direito de um dado país não passa apenas pelo conhecimento da norma-regra, pois há, além dos princípios gerais (embora estes tenham perdido muito do seu anterior sentido autónomo, ao serem paulatinamente consagrados em normas escritas, muitas vezes mesmo de natureza constitucional) e do costume, a jurisprudência dos tribunais, sobretudo a dos tribunais superiores.

***

No que se refere à problemática relacionada com o papel da doutrina na construção do direito, ou seja, ao valor da doutrina como fonte do direito, temos em pólos opostos, a doutrina (teoria clássica) que se rejeita como fonte do direito e as posições doutrinais, como a expressa por Diogo Freitas do Amaral, segundo as quais a doutrina é simultaneamente uma fonte juris essendi e uma fonte juris cognoscendi.

assunto, toda a doutrina entender A e a jurisprudência decidir B, um advogado português, interrogado por um cliente estrangeiro sobre qual é o Direito português sobre a matéria, terá de responder B; se responder A, estará a enganar o cliente - e poderá ser responsabilizado pelos danos que lhe causar».

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Desde já, se afirma que não se considera nunca doutrina em geral como fonte primária de direito.

Mas afirma-se que ela pode exercer um papel protonormador ou conformador do conteúdo ou interpretação concretos de normas pré-existentes, pois, por vezes, exerce uma influência decisiva não só na criação de normas positivas e outras na explicitação de normas consuetudinárias, quer junto do legislador e Administração Pública (elaboração de novas leis e regulamentações e alteração de normas existentes), como na aplicação das normas pela Administração Pública e, sobretudo, pelos julgadores, desde logo junto dos tribunais superiores, ajudando, juntamente com a acção casuística dos advogados, a construir aquela parte da jurisprudência que muitas vezes se revela mais estável.

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E, sobretudo, a «doutrina unânime» ou, pelo menos, «maioritária» têm realmente uma influência marcante, junto dos tribunais. Com efeito, quotidianamente a jurisprudência portuguesa, em apoio aos fundamentos das suas decisões judiciais, recorre e cita essencialmente a doutrina, que assim, por esta via, ganha foros de uma «fonte ‘indirecta’ do Direito» (Diogo Freitas do Amaral).

***

Não terminaremos estas breves considerações sem lembrar que a Administração Pública portuguesa é chamada a aplicar directamente normas comunitárias, quer as de vigência directa e transcrição interdita em normas nacionais, como acontece com os regulamentos da CE, quer as dependentes de transcrição obrigatória, e mesmo que não efectivada, apesar de decorrido o tempo para o efeito (Directivas; e mesmo Decisões dirigidas ao Estado) desde que tenham efeito directo (nos termos fixados pela doutrina pretoriana do Tribunal do Luxemburgo)184.

184 Sob pena de condenação pelo TUE. Seria, v.g., impensável que um dirigente da Administração Pública tivesse punido um funcionário, que acabasse de ser progenitor e, à falta

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Pela sua importância, vejamos, pois, especificamente a teoria das fontes unionistas.

***

§25. FONTES DE DIREITO E SUA APLICAÇÃO. PRINCIPIO DA SUPREMACIA DAS NORMAS INTERNACIONAIS E UNIONISTAS. PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA CONSTITUCIONALIDADE E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A Administração pública portuguesa tem os seus princípios organizatórios e de actividade inseridos no texto constitucional.

Vivemos em Estado constitucional democrático, o que implica um conjunto de considerações que permitam fazer a ligação do direito constitucional e suas exigências ao direito administrativo.

No Estado democrático actual, a Constituição não um mero conjunto de linhas programáticas a juridificar pelo de legislação de aplicação da Directiva sobre a igualdade dos cônjuges, tivesse gozado desse direito com ausência ao serviço, nos termos da normativa europeia, que teve efeito directo no período de inadimplemento estatal, até ser objecto de transcrição em fonte interna.

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legislador ou a concretizar em políticas públicas pela Administração. É normação. Não só a sua criação deve ter eficácia imediata mesmo não exequibilidade ou aplicação directa, como cumprimento das normas constitucionais, tal como o controlo deste, assumem uma importância fundamental.

E isto não pode deixar de implicar que qualquer teoria de exercício e de limitação dos Poderes a nível nacional só ganha sentido numa abordagem constitucionalocêntrica.

Não significa isto que a tripartição clássica dos Poderes ou mesmo mais, aceitando a função política, designadamente a moderadora do Estado, tenha que perder interesse. E isto não tanto por corresponder ou não à delimitação material de distintas funções (que é, hoje, secundário na perspectiva garantística, reganhando sobretudo valor, no plano da eficácia organizacional do Estado), sendo certo que tal distinção não existe senão tendencialmente, com «confusão» das várias funções nos vários Poderes.

Mas porque hoje o heterocontrolo não deriva apenas da pluriorganicidade do Estado, em termos do exercício da

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soberania, mas porque há uma função básica que exprime a totalidade da soberania popular, de cuja expressão resulta a conformação concreta de todos os poderes, a sua importância e a validade dos seus actos. Porque a soberania está no Povo, os Poderes de Estado não são apenas Órgãos de Soberania. São Órgãos Soberanos, não poderes instituídos. Há aqui uma ideia de Poder e Função Constituinte que tornam fundamentais e superiores, no plano do exercício interno de poderes, as normas que criam.

Por isso, a Constituição é a Grande Norma, a Lei Fundamental do Estado. Todas as actividades necessárias ao desenrolar quotidiano da sociedade, criando normas e aplicando-as em concreto ou actuando para a sua concretização em geral, têm que a respeitar e aplicar. Isto é, os Poderes que dirigem o Estado são poderes juridicamente subordinados à Constituição, o que se exprime e cumpre na perspectivação teleológico-constitucional da sua actividade e no respeito do princípio da constitucionalidade.

Ou seja, as funções clássicas de MONTESQUIEU são hoje apenas sub-funções referentes à gestão corrente de

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Estado: sub-funções da Função Governativa (governação em sentido amplo, aqui usado). A própria função tida como a mais importante no Estado, a Função Legislativa, porque é uma função subordinante, também é uma função subordinada, porquanto a nomocracia e a nomogénese estão constitucionalmente definidas. Toda a função governativa - seja ligada ao Poder Legislativo, ao Poder Executivo ou ao Poder Judicial, ou seja, que satisfaça necessidades de enquadramento de conveniência -é constitucionalocêntrica e, portanto, não tem sentido falar a este nível de uma função política ou governativa senão como actos derivados da Constituição e, assim, passíveis de controlo aferidor do seu cumprimento. Neste aspecto, não haveria actividade anómica do Executivo e dos órgãos de soberania, visto que as actividades governativas são nomocêntricas, quanto mais não seja penduradas directamente na Constituição.

Quer a normação entregue pelo legislador à Administração Pública, quer a execução, interpretação e aplicação das normas pela Administração Pública e Tribunais, são actividades legitimadas e

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guardadas na Constituição, que aplicam. Classicamente, entendia-se que o Parlamento seria fiscalizador do cumprimento da Constituição e das leis que ele próprio elaborava, devendo não só perder a capacidade de controlar o Executivo, dada a evolução dos regimes democráticos para a partidocracia que acabou com a subordinação do Executivo ao Parlamento, ambos sujeitos a uma direcção política única.

E, de qualquer modo, os Parlamentos podem ser constitucionalicidas, liberticidas. Impõe-se o controlo da função governativa, para verificar a sua conformidade com a vontade soberana expressa na Constituição.

A Constituição, base do consenso social, do contrato social, só persiste pela função reconstituinte e actualizadora permanente do Tribunal Constitucional e dos tribunais em geral, que devem fiscalizar as actividades nomocêntricas bem como os actos que têm sido enquadrados como anómicos, não sindicáveis. Uma função reconstituinte porque elimina do ordenamento jurídico as normas que ensombram (revogam) a Constituição, actuando como legislador inconstitucional, ou seja, em nosso entender, tal como HANS

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KELSEN pensava, como «legislador negativo».

***

Tema a destacar é o da supremacia do direito supranacional, internacional e unionista, e da Constituição e da eficácia das suas normas.

O Direito Administrativo é um subsistema normativo dentro do ordenamento jurídico global, que tem a sua base no DIP, DUE e Constituição, sendo certo que todo o direito positivo terá de se adequar a ela e interpretar-se a partir dela.

o DIP, o DUE e a Constituição contêm enunciados fundamentais de muitos ramos do direito., que se impõem, aqueles a todo o direito de fonte interna, e o direito constituciona, não àqueles, mas a todo o restante direito de fonte nacional.

Quanto ao direito constitucional, OTTO MAYER, no seu Direito Administrativo Alemão, acentuava o carácter de permanência do Direito Administrativo em face do carácter passageiro do Direito Constitucional. E FRITZ WERNER não

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deixaria de proclamar que o Direito Administrativo era Direito Constitucional concretizado.

A Administração e o Direito Administrativo são uma realidade histórica, porque instrumento ao serviço de opções constitucionais, em cada momento assumidas pela soberania popular.

O Direito Administrativo constrói-se em grande parte a partir de parâmetros consensualizados na Constituição, a cujos postulados tem de se adaptar.

Aqui, tal como no DIP e DUE, e aliás com primazia relativa para estes, há princípios que se impõem ao legislador e, no caso do DC, tal ocorre quer na construção da Administração, como na conformação dos regimes jurídicos nas diferentes matérias, e posteriormente na actuação concreta da Administração.

E, dado o carácter jusprogramático da Constituição, há orientações dirigidas à Administração em diversos sectores, que cobrem as atribuições dos vários ministérios.

Normalmente não são normas de aplicação directa, porquanto dependem da interpositio legislatoris, e assim

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condicionadas organicamente e, nas suas exigências materiais, pelo estado de desenvolvimento do país.

De qualquer modo, toda a norma constitucional é obrigatória.

A sua aplicação é que pode não ser imediata.

No entanto, a questão da aplicabilidade directa continua, hoje, a provocar reflexões doutrinais inacabadas.

No Brasil, em face do artigo 5.º da Constituição de 1988, referente ao direito de acesso à informação administrativa, este direito é declarado de aplicação directa.

Com efeito, ressalvando as várias situações de excepção (que não devam resultar já de outros preceitos referentes à intimidade e honra das pessoas), ligadas à segurança nacional, apenas se deixa para o legislador, tal como em Portugal, a fixação do prazo máximo de resposta obrigatória ao requerimento de acesso.

Mas não fora a possibilidade de o cidadão recorrer ao «mandado de injunção» e a declaração da «aplicabilidade imediata» desta norma poderia ver-se paralisada.

É verdade que a questão da aplicabilidade de certos direitos

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proclamados na Constituição brasileira se complicou, com alguma doutrina e jurisprudência a ler desinserida a letra do § 1 do artigo 5º, que, apesar de colocado apenas no capítulo dos direitos e deveres individuais e colectivos, fala na aplicação imediata das «normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais (a que justamente se refere todo o título II), que logo a seguir tem o capítulo dos Direitos Sociais, a que aqueles sectores querem estender o mandado de injunção (que permite o suprimento pelo juiz da falta de regulamentação pelo legislador, apenas aplicável na situação em apreço, e a efectuar segundo parâmetros de equidade). Esta divisão doutrinal tem prejudicado o desenvolvimento da jurisprudência que, receosa das consequências da extensão do âmbito da sua aplicação, em vez de o clarificar, começou a corromper a própria construção teórica deste mandado.

Importa ainda referir que, no Brasil, o cidadão pode impugnar directamente qualquer agressão aos direitos fundamentais (à semelhança do recurso de amparo espanhol e de alguns países latino-americanos, bebido na experiência piloto da Constituição mexicana de 1917, e que tem

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geminação no recurso público suiço e nos recursos constitucionais alemão e austríaco), através do mandado de segurança (que acaba por se ir construindo em reacção à evolução restritiva do habeas corpus, acantonado à ofensa ou ameaça de violação da liberdade de locomoção).

Mas qualquer que seja a técnica garantística criada para obviar à falta da interpositio legislatoris, prevista na Constituição, e o sentido das declarações sobre a aplicabilidade inseridas na própria lei fundamental, a questão da eficácia das normas constitucionais mantém todo o seu sentido.

Dizer que certas normas são de aplicação directa significa reconhecer que outras o não são. Mas se a distinção tem sentido, só pode querer dizer que todas as normas têm valor jurídico. No entanto, há normas que não são passíveis de aplicação senão em termos mediatos, porquanto só podem ser aplicadas após a verificação de certas alterações, sejam elas de ordem programática (implicando inovações a executar pelo governo, com uma dada margerm de liberdade, dado que seria ilegítimo, o quer se poderia designar por um

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governo de Constituição, o confiscar da governação pela «geração» criadora da Constituição, sem prejuízo do respeito do fim pretendido, sob pena de inconstitucionalidade por desvio de poder legislativo), de ordem institucional ou simplesmente legislativa (muitas vezes, explicável para evitar uma excessiva regulamentação constitucional, outras para fugir à regidificação das regras de funcionamento, a ir fixando e alterando de acordo com as lições da experiência).

Mas se é assim, por mais hábeis que sejam as reflexões sobre o tema, só tem sentido falar de aplicação directa a propósito de uma norma que puder ser imediatamente aplicada, ou seja, que puder ter eficácia plena, por ela ter o enquadramento mínimo para a vivencialidade social que pretenda regular, porquanto se todas são normas jurídicas todas produzem certos efeitos directos em face do legislador (obrigado a cumpri-las), ou de outras normas (cuja conformidade àquelas e interpretação e integração à base delas se imporá). Neste aspecto, poderá dizer-se que, na ausência da atribuição de um poder de regulamentação concreta atribuído ao juiz e de lei regulamentadora

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com carácter geral, a norma ou é ou não é directamente aplicável por si mesma, independentemente da declaração que sobre a sua eficácia imediata o legislador constituinte puder efectivar, a qual, como o demonstra a realidade da sua não aplicação (em muitas situações declaradas nas Constituições como de aplicação directa ou imediata), até à criação da respectiva regulamentação quando esta não é elaborada em simultâneo com a própria lei fundamental.

***

A Constituição encerra macroprincípios que implicam, explícita ou implicitamente, a Administração Pública e o direito administrativo.

As normas constitucionais têm força vinculativa. E mesmo as cláusulas gerais, como a do Estado de Direito Democrático, que integram a macro-estrutura normativizadora do sistema constitucional, traduzindo tecnicamente princípios gerais de direito, princípios de princípios, encarnando valores superiores da ordem jurídica: a liberdade, a justiça e a igualdade perante a lei, como valor superior do Estado

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de Direito; a Justiça Social e a Promoção da Igualdade, como valores ínsitos ao Estado Social; o pluralismo e liberdade de informação, activa e passiva, como valores ligadps á formação da opinião públiac e ao estatuto do cidadão, condição de participação e escolha, livre e esclarecida, do seus representantes, no Estado Democrático, e a unidade, a autonomia e a solidariedade, como valores que traduzem a ideia da realização adequada da vida de um Estado único mas com autonomias regionais e locais.

Estes princípios colocam questões de eficácia concreta (operatividade) e de coexistência.

Em termos de eficácia, como princípios gerais de direito, são autênticas normas jurídicas que se impõem como fonte de poderes dos vários poderes públicos, critérios interpretativos de todo o sistema jurídico, até das outras normas constitucionais, orientações para a actividade positiva de todos os poderes públicos e limites jurídicos a essa actividade.

Em termos de coexistência, o facto de alguns destes princípios chocarem entre si tem que ser superado, tendo presente que

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eles regem em simultâneo e com o mesmo valor jurídico, sem sobreposição, o que obriga a encontrar o ponto de equilíbrio entre todos num dado caso concreto.

A organização e a actividade administrativas encontram-se integralmente imbuídas e condicionadas por estes princípios, que são as suas autênticas bases jurídico-constitucionais, pelo que há que analisar as disposições constitucionais referentes ao Estado de Direito, Estado Social, Estado Democrático, Estado Autonómico e Unificação Europeia.

O Estado de Direito constitucional implica além do princípio da pré-determinação normativa, o da injunção normadora primária da Constituição.

A expressão Estado de Direito tem assumido historicamente um significado que tem evoluído. Deve-se a ROBERT VON MOHL a criação do termo Rechsstaat, que veio a cristalizar a concepção teórica de Estado do primeiro liberalismo alemão, com raízes em KANT, FICHTE e ALEXANDER VON HUMBOLDT, em oposição ao Estado de Polícia ou Estado de Bem-Estar, designações de Estado da monarquia absoluta que, no entanto, aparecia ligada a

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preocupações de felicidade e bem-estar dos súbditos.

O Estado de Direito aparecia exigindo que o Estado se limitasse a garantir a liberdade dos cidadãos, através da criação e manutenção de uma ordem jurídica adequada.

É um Estado que se define axiologicamente como garantidor da Liberdade e do Direito - portanto, um Estado limitado, não intervencionista.

O Estado de Direito é o antimodelo dialéctico ao modelo endemonista do Estado idealizado por CHRISTIAN WOLFF, e que perpassa a ideologia do despotismo iluminado.

Depois, ocorre um processo de desubstanciação e, portanto, de formalização do conceito, iniciado em meados do século com F.J.STAHL, que se aprofunda com o positivismo de LABAND e JELLINEK, no fim do século, culminando com HANS KELSEN, que esvazia o conteúdo originariamente liberal do conceito, agora confinado à identificação absoluta entre Estado e Direito, na preocupação de reduzir toda a actividade do Estado ao Direito.

Os juristas alemães do primeiro terço do século XX acabariam por caracterizar o

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Estado de Direito como aquele que é regido pelo princípio da legalidade da Administração Pública, em que esta não pode intervir na esfera da liberdade dos cidadãos senão com expressa habilitação legal e em que impera a divisão de poderes, a supremacia e reserva de lei, a protecção dos cidadãos mediante órgãos jurisdicionais independentes e a responsabilidade do Estado por actos ilícitos.

O desastre nacional-socialista revelou a insuficiência das técnicas jurídicas, ínsita ao Formalles Rechtsstaat, pelo que a doutrina do pós-guerra procurou criar um Materialles Rechtsstaat, dando àquele um conteúdo material complementar de natureza axiológica, a beber nas suas origens históricas.

O Estado de Direito aparece então concebido como um princípio material de ordenação da actividade estatal, dirigido a valores, entre os quais têm de sobressair o da garantia e protecção da liberdade pessoal e política, assim unificando a forma e o conteúdo na densificação do Estado de Direito.

Hoje, entre os princípios integrantes da ideia de Estado de Direito, afectando directamente a Administração Pública,

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temos, desde logo, o princípio da legalidade, o princípio da tutela judicial efectiva e o princípio da garantia patrimonial, além da imperiosidade de respeitar o princípio da divisão de poderes e as regras estruturais do sistema normativo que traduzam a Administração como organização e actividade ligada a um dos poderes e a sua subordinação aos outros poderes.

Outra dimensão desta exposição referente ao Estado nomocrático tem que ver com a submissão da Administração ao direito, em que importa tratar alguns tópicos explicativos, referentes às manifestações históricas do Estado de Direito em relação à Administração Pública.

Há uma relação entre acção administrativa e direito.

Mas será que essa relação é indispensável? Historicamente, essa relação nem sempre existiu. E além disso, há modelos diferentes de submissão da Administração ao Direito.

Com efeito, a Administração pode, teoricamente, não estar submetida ao Direito. Por exemplo, antes dos regimes democráticos, durante as monarquias absolutas, a administração actuava, de certo

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modo, arbitrariamente. Isso não significa que não houvesse regras.

Pode haver regras sem haver subordinação ao Direito.

Se há regras mas a Administração tem toda a liberdade de as fazer e de as mudar, se elas se criam para ter influência apenas no círculo dos administradores, é óbvio que não nos encontramos numa Administração submetida ao Direito.

Uma Administração submetida ao Direito é aquela em que as regras existem para a defesa do cidadão e, quando não são cumpridas, aquele tem o direito de reagir, se se sentir prejudicado por isso.

O chamado Estado de Polícia é o Estado em que a Administração, que nessa altura se designava Polícia, está submetida a uma dada regulamentação, mas não tendo essa regulamentação qualquer valor jurídico no plano exterior à Administração.

Era assim, ainda, a Administração no século XVIII, no tempo do Absolutismo, do Iluminismo ou do Despotismo Iluminado. Ainda hoje, por vezes, se encontram vestígios deste modo de actuar em certos documentos de valor interno, chamados circulares ou directrizes, que são documentos que têm, por vezes,

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repercussões, que não são neutras, na vida dos cidadãos, bem como nos seus interesses.

A Administração tem de ser objecto de controlo exterior. Não pode ser um simples assunto interno. Por contraposição ao Estado de Polícia surge-nos, assim, o Estado de Direito, em que é suposto reger totalmente o princípio da legalidade.

O Estado de Direito é característico dos regimes modernos, dos regimes democráticos.

O seu princípio fundamental é o liberalismo político, que nasceu com a Revolução Francesa que teve, desde logo, a ver com a ideologia da criação e defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, a ideologia de 1789.

A existência de separação de poderes está ligada à prevenção contra a queda na ditadura.

Os poderes devem ser divididos por várias entidades, de modo a não haver a hegemonia de uma só pessoa e, por outro lado, devem assentar na supremacia do Parlamento, órgão directamente legitimado pelo Povo. A lei, uma vez criada, tem de ser

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respeitada - é este o papel da Administração. É daqui que vem o hábito de chamar aos Governos o Poder Executivo. A Administração tinha, e ainda hoje tem, uma função essencialmente executiva, embora também já possa legislar. A Administração também pode criar regulamentos, mas estes têm que ser permitidos pela lei, nunca podem ser independentes desta.

O princípio da legalidade (positiva: só é legítimo actuar nas áreas em que a lei expressamente dá poderes para tal, sendo a lei que define os limites em que ser pode actuar), embora, de facto, não seja aplicado em relação à actividade prestacional e de fomento, senão na sua formulação de vinculação negativa, é fundamental para enquadrar e legitimar a Administração Pública.

***

Mas, como já dissemos, existem também os princípios da primazia do direito supranacional e o princípio da constitucionalidade, ou seja, o princípio da supremacia do direito supranacional e da Constituição.

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Quanto à Constituição é um conjunto de normas de imposição prevalecente no plano do direito de fonte nacional.

Todos os Poderes lhe devem respeito e, portanto, a Administração deve-lhe também respeito.

Tema importante é o da posição dos cidadãos perante normas inconstitucionais, e, em especial, sobre a inconstitucionalidade das normas administrativas e o sistema institucional de controlo pela Administração e pelos tribunais185, matéria que melhor

185 Ou seja, a inconstitucionalidade em geral, noção de inconstitucionalidade, o sistema constitucional de garantia da Constituição, a hierarquia das normas, inconstitucionalidade e ilegalidade controlável pelo Tribunal Constitucional de normas desconformes com leis ordinárias paraconstitucionais, tipologia da inconstitucionalidade e das formas de invalidade das normas inconstitucionais, inconstitucionalidade e desvio de poder legislativo; norma jurídica, imperatividade e meios de garantia de sua efectividade; sistemas de garantia institucional e o modelo hiperbólico português: caracterização geral, falta de recurso geral de amparo, a fiscalização difusa e concentrada, critérios substantivos e processuais de fiscalização, consequências da declaração de inconstitucionalidade e, por fim, a margem de sindicabilidade administrativa da constitucionalidade: a Administração Pública, princípio da legalidade e princípio da constitucionalidade, a Administração Pública perante norma declarada inconstitucional erga omnes, a Administração Pública e as situações de inexistência jurídica-constitucional, a Administração Pública e as situações de mera irregularidade orgânico-formal, a Administração Pública perante a normal figura de paranulidade da norma, Administração Pública e direito de resistência dos cidadãos no caso de matéria de Diretos, Liberdades e Garantias, os requisitos orgânicos gerais de ponderação administrativa da inaplicabilidade da norma, os requisitos substantivos da inaplicabilidade da norma, critério de invalidade manifesta, a Administração Pública estatal e a infra-

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cabe ser desenvolvida na cadeira de Direito Constitucional e Direito Político.

Mas, sobre ela, pela sua importância, referiremos alguns apontamentos, com a nossa posição, no que essencialmente importa à Administração Pública.

***

O regime geral das inconstitucionalidades é a invalidade na forma de nulidade de regime misto186, enquanto segue os elementos caracterizadores da anulabilidade (as

estatal no caso da inconstitucionalidade orgânica, o caso da inconstitucionalidade formal, vícios de procedimento documentado, vícios de forma, o caso de inconstitucionalidade material manifesta, as situações consideradas na doutrina unânime, as situações já apreciadas pelo Tribunal Constitucional em fiscalização preventiva e sucessiva, as normas dependentes de leis de revisão constitucional com ofensa do clausulado sobre limites materiais, as normas e actos praticados com ofensa do artigo 19.º da Constituição, a Administração Pública e a apreciação jurisdicional de regulamentos e actos administrativos, a situação de regulamentos inconstitucionais ou ilegais em face de leis paraconstitucionais, a situação de normas e actos dependentes de leis paraconstitucionais declaradas inconstitucionais, a declaração de inconstitucionalidade e a modulação dos seus efeitos na actividade disciplinar e contra-ordenacional da Administração Pública, a interdição de indefesa procedimental e processual e o ordenamento jurídico português.

186 Vide síntese recapitulativa de suas características, embora chegando a conclusão distinta, MIRANDA, J. –Manual de Direito Constitucional: Constituição e Inconstitucionalidade. Tomo II, 3.ª Ed. (reimpressão), Coimbra: Coimbra Editora1996, p.372-373.

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autoridades e os cidadãos devem obedecer à norma enquanto não declarada nula) e da nulidade (efeitos ex tunc, porque ab inicio inválida, pois a declaração de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional retroage ao momento da sua produção: nulidade radical, de direito; excepto se o Tribunal Constitucional decidir diferentemente e com possíveis efeitos putativos, mas em direito constitucional determinar-se o respeito por expectativas razoáveis e com base em condutas públicas ou particulares a respeitar (n.º 4 do artigo 282.º), tal implica um desvio que revela uma nulidade não radical.

*

Mas e qual a posição da Administração face a normas inconstitucionais e também de direito supranacional que seja chamada a aplicar em casos concretos ou a executar?

No que concerne à aplicação da Constituição pela Administração Pública, em geral (e mesmo em caso de normas de aplicabilidade directa ou de exequibilidade de per se, se acontece haver normas de desenvolvimento desconformes), tem-se

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afirmado a tese da não atribuição constitucional de poderes de inaplicação de normas aos órgãos administrativos187, por força do princípio da legalidade, quando estas sejam inconstitucionais, perante o artigo 204.º, o qual só manda fazê-lo aos tribunais. E mais, Paulo Otero no seu último livro sobre a Legalidade, vai mesmo ao ponto de defender uma tese sobre a hierarquia das normas que implica a dualidade de vigências normativas sobre uma mesma matéria, ou seja, a existência de dois direitos, um aplicável aos cidadãos e pelos tribunais e outro aplicável pela Administração pública, na medida em que aqueles têm que aplicar a norma que em cada momento dever considerar-se vigente na ordem jurídica portuguesa, e aquela a norma que resultar dos princípios da posteridade e especialidade, sem curarem de saber qual a que é de valor superior em face de princípios da constitucionalidade ou supranacionalidade (DIP e Direito originário ou derivado da União Europeia, podendo e devendo desconhecer o impositivo princípio da primazia destas normas), tudo numa construção aberrante, totalmente alheia à ideia de Estado de Direito e da unidade da

187 MIRANDA, J. -oc, p.373.424

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ordem jurídica no plano da sua aplicação material. Recentemente, no seu Manual sobre Introdução ao Direito, vem Freitas do Amaral tomar em toda a matéria das fontes e hierarquia as únicas posições que nos parecem aceitáveis e correspondem ao nosso ensino desde sempre.

Ou seja, e falando agora especificamente sobre a questão da aplicação ou não do constitucionalidade, tal posição dual é, pelo menos, numa dada leitura radical, totalmente questionável, pois a Constituição da República Portuguesa manda a todas as autoridades respeitar a Constituição e há um afloramento de um princípio que deve reputar-se geral, nos nºs 6 e 7 do artigo 19.º (não respeito dos limites dos poderes materiais e orgânicos em situação de estado de sítio).

Assim, parece não dever seguir-se totalmente por esta posição, desde que os actos dos distintos poderes possam ser controlados pelos tribunais, o que só não ocorre na actividade governativa: actos políticos, constitucionais ou de governo do Executivo.

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Esta tese de exclusão por princípio não o permitiria nem sequer, pelo menos, quando haja direito de resistência, no caso de direitos fundamentais?

Somos de parecer que não há, por princípio, uma faculdade genérica de inaplicar normas com fundamento na invocação da inconstitucionalidade, mas (sem prejuízo de tal só dever caber aos órgãos máximos da Administração Pública, suscitada a questão pelos subalternos, e da consagrada sindicabilidade jurisdicional de todos os actos pelo destinatário da decisão, neste caso com inaplicação da lei ou regulamento) em casos limite de inconstitucionalidade manifesta ou quando a doutrina ou a jurisprudência já se venham pronunciando nesse sentido, isto é, desde logo quando os tribunais ou o Tribunal Constitucional, mesmo sem declaração obrigatória (porque neste caso é pacífico: não há aplicação, dada a sua eliminação do ordenamento jurídico), se pronunciaram já nesse sentido, a Administração Pública pode decidir os casos em apreciação, com inaplicação da norma considerada inconstitucional, notificando sempre do fundamento de suas decisões concretas os destinatários, para efeito de impugnação.

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III – SISTEMAS DE REGIME ADMINISTARTIVO E REGIME JUDICIAL

§26.SISTEMAS DE REGIME ADMINISTRATIVO: PLURALIDADE DE DIREITOS E PLURALIDADE DE JURISDIÇÕES

26.1. Autonomia do direito administrativo e regime administrativo

O direito administrativo (apesar de relativamente recente, dado ter começado a construir-se apenas após a Revolução Francesa), é um ramo do direito autónomo.

Esta afirmação impõe-se pelo facto de ele ter o seu objecto, princípios gerais próprios, soluções específicas para os diferentes problemas implicados pela organização e a actividade da Administração, expressas em regras diferentes da regras comuns do direito que regula a organização da sociedade e as relações entre os particulares.

A jurisprudência e o legislador foram criando regras jurídicas distintas dos princípios e regras de direito privado. E, por

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isso, o direito administrativo é distinto do direito privado.

Elas aparecem no direito administrativo devido pelas próprias necessidades da Administração Pública no prosseguimento das suas finalidades ou da resolução institucionalizada de conflitos que ela se confiou inicialmente a si mesma, o que deu origem a regras de tipo dissemelhante ou que não respondem ao mesmo tipo de problemas da Administração Privada.

Por isso, a doutrina tem considerado que não é aceitável defender-se uma concepção de direito administrativo como direito especial, constituído por excepções do direito privado, na medida em que o direito administrativo é um direito completo, que forma um todo coerente e articulado, um sub-sistema normativa autónoma dentro do ordenamento jurídico de aplicação nacional.

Ele constitui um sistema ou corpo de normas jurídicas: um corpo de princípios e regras que dão ao direito administrativo uma coerência global enquanto direito que é autónomo do direito privado.

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Podemos constatar que esta autonomia passa, desde logo, pela questão da resolução dos casos omissos ou integração das lacunas, em que, em direito administrativo, se começa por recorrer à analogia (casos análogos) dentro do próprio sistema jurídico-administrativo, aos princípios gerais do direito administrativo, à analogia nos outros ramos do direito público, aos princípios gerais do direito público, aos princípios gerais de direito e só, em último caso, de modo adaptado, ao direito privado.

Em verdade, nos ordenamentos jurídicos de inspiração francesa, chamados de «regime administrativo», a Administração tem as suas próprias regras, que vão variando conforme as necessidades dos serviços e as necessidades de conciliar os interesses do Estado com os direitos dos particulares.

O direito administrativo é, portanto, um direito autónomo em relação ao direito privado. O que não quer dizer que, hoje, pela própria razão de ser dessa autonomia reguladora da vida da Administração em si e

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na sua relação com os cidadãos, desde que as soluções do direito privado servirem para satisfazer as necessidades colectivas, não se possa e em certos casos deva mesmo 188 este ramo do direito ser utilizado pela Administração.

No entanto, o legislador é em geral livre de seguir uma via distinta, não tem de obrigar a aplicar ou não tendo de copiar o direito privado.

Historicamente, o regime administrativo, de inspiração francesa, afirmou-se com a Revolução Francesa e no ano VIII com Napoleão.

A sua originalidade, face ao modelo judicialista inglês, explica-se pelo facto de os juízes franceses serem, na altura da Revolução, muito conservadores e a Revolução precisar de não ter o controlo desses juízes, que poderiam anular a sua obra, que, muitas vezes, já tinham feito com os governos monárquicos anteriores.

Era preciso, pois, afastá-los e arranjar as suas próprias entidades

188 O direito de expropriação pressupõe, obrigatoriamente, um procedimento de negociação privada prévio ao acto administrativo de válida declaração de utilidade pública.

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desconflituadoras das relações intersubjectivas implicando a Administração Pública, os seus próprios «juízes», funcionários pertencentes à Administração, pelo que se foi criando uma «jurisdição» própria, e depois especial, estreitamente ligada ao Poder Executivo.

Acontece que ela foi ganhando alguma autonomia e, constituída por agentes prestigiados mas desconhecedores do direito, tornou-se casuisticamente aplicadoras de princípios que criaram precedentes e «regras», base da criação de muitas normas novas, normas próprias do direito administrativo.

*

A formação do direito administrativo, como ramo autónomo, começa na fase do Estado Moderno, em que se inicia o Estado de Direito, estruturado sobre os princípios da legalidade e da separação de poderes, segundo o entendimento resultante dos doutrinadores pós-revolucionários franceses, garantindo respectivamente a submissão da Administração às normas jurídicas (e, hoje, até mesmo uma maior

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protecção dos direitos individuais), concomitantes às revoluções que acabaram com os regimes absolutistas.

Para essa formação do direito administrativo contribuíram, essencialmente, o direito francês, alemão e italiano:

a)- o primeiro, pela interpretação dos textos do Conselho de Estado;

b)- o segundo, ao iniciar a sua elaboração científica; e

c)- o terceiro, pela enorme contribuição dada à sua sistematização.

Quanto ao direito administrativo francês, procurando apontar algumas notas evolutivas, destaque-se que a França iniciou a organização jurídica da Administração Pública em 1799.

A dualidade de jurisdição, que melhor se explicitará posteriormente, deve-se, como já se referiu, à velha desconfiança do conservadorismo dos juízes, o que foi a verdadeira causa da originalidade da teoria de separação dos poderes ter sido conformada, em nome da não admissibilidade da subordinação do Poder

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Executivo ao Judicial, de modo a não permitir que os juízes apreciassem a actividade da Administração.

Por isso, se cria o contencioso administrativo, tendo, no início, a Administração começado por decidir os seus próprios conflitos com os particulares (fase do administrador-juiz).

Em 1800, com a criação do Conselho de Estado, inicia-se o desenvolvimento de uma jurisdição administrativa, que só ocorrerá a partir de 1872, quando ela se tornou independente e as suas decisões deixaram de ficar sujeitas à aceitação do Chefe de Estado (fim da fase da justiça retida).

E a autonomia do direito administrativo, como ciência jurídica, começa a constatar-se a partir do Acórdão Agnès Blanco, de 1873, em que o Tribunal de Conflitos afasta explicitamente a aplicação do Código Civil Napoleónico, enquadrando a questão da responsabilidade civil extracontratual em termos diferentes daqueles que regulam a matéria entre os particulares, dado que o Estado era parte no litígio, decidindo assim, no conflito de

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atribuições negativo a dirimir, a favor da competência do Conselho de Estado e não do Tribunal de Cassação.

O Tribunal de Conflitos não só confirma a jurisprudência administrativa dos casos Rotschild de 1855 e Dekcister de 1862, como vem fixar o critério de definição da competência da jurisdição administrativa de acordo com a teoria do serviço público, e dar uma solução à questão com base em princípios distintos do direito civil.

Em 1945, o Estado virá invocar, na ausência de direito escrito, princípios gerais de direito, a que atribuirá força de lei, e a que conferirá mesmo valor constitucional após a Constituição Francesa de 1958, que deu poder regulamentar autónomo à Administração Pública.

O Conselho de Estado francês havia realizado todo um trabalho de produção de direito, que passou não só pela responsabilidade civil extra-contratual da Administração, como pelo princípio de alteração unilateral dos contratos administrativos, o regime jurídico especial dos bens do domínio público, os vícios e a

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teoria da invalidade dos actos administrativos, num incessante trabalho, não só de preenchimento de lacunas mas também de interpretação dinâmica e construtiva de leis e regulamentos.

Procura-se solucionar, com regras e princípios de direito administrativo, todas as questões em que a Administração é parte, sendo certo que a sua construção se faz por referência à Administração Pública, o que levou ANDRÉ HAURIOU a dizer que ele é «uma disciplina interior a um grupo», numa concepção estatutária, que, ainda hoje, merece aceitação de certa doutrina, designadamente espanhola189.

De qualquer modo, a autonomia do direito administrativo nunca foi absoluta, apesar de o juiz administrativo ser o único que pode decidir aplicar ou não, a determinada matéria lacunar, as normas de direito privado, na medida em que pode derrogar as regras deste direito em benefício de «normas» que ele vai criando.

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189 V.g., EDUARDO GARCIA DE ENTERRÍA da Universidade Complutense de Madrid, no seu Curso de Direito Administrativo.

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No direito administrativo alemão, vemos que a República Federal Alemã também é um Estado de regime administrativo, mas com particularidades em relação ao direito administrativo francês, quer quanto aos princípios substanciais e formadores, quer quanto à organização jurídica do contencioso administrativo.

Na Alemanha, o direito administrativo resultou, sem rupturas, de uma longa evolução a partir do sistema administrativo anterior ao Estado de Direito.

Esta evolução sofreu ritmos diferentes nos vários Estados, sem eliminações ou substituições revolucionárias, mas com subsistências de institutos e concepções de fases anteriores.

Na Idade Média, autoridade e súbditos sujeitam-se às instâncias jurisdicionais dos Tribunais, sem prejuízo do jus iminens do monarca, integrando prerrogativas e poderes justificados pela defesa do interesse colectivo.

O jus politiae congregava poderes de

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intervenção na vida privada em nome da preservação da segurança e do bem-estar colectivo, com a separação entre a Polícia (ou seja, a Administração) e a Justiça. Para combater este poder absoluto do monarca, aparece a teoria do fisco, que retira o património público da sua propriedade e da do Estado: pertence ao Fisco, entidade de personalidade jurídica de direito privado, diferente do Estado, só este dotado de império.

O Fisco submete-se ao direito privado e aos tribunais, enquanto o Estado se rege pelas normas editadas pelo monarca, sem controlo judicial.

Assim, passaram a ser regidas pelo direito privado e fiscalizadas muitas das relações jurídicas implicando a Administração Pública, com o reconhecimento aos particulares da titularidade de direitos adquiridos contra o Fisco, ou seja, direitos inscritos no direito civil, porque não há outro, além do direito penal e processual.

Ou seja, não há direito público, porquanto os regulamentos do monarca não criam direito para os súbditos, pois não obrigam a Autoridade em face dos

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administrados. No Estado Moderno desaparece o

dualismo Estado-Fisco, mas mantêm-se os enquadramentos do regime de polícia, designadamente a submissão de parte da actividade do Estado ao Direito Civil, mas agora em coexistência com o Direito Público, especialmente o Direito Administrativo, sendo aquele aplicável subsidiariamente.

A origem do direito administrativo alemão e a sua formação é diferente da do direito administrativo francês, esta devido ao Conselho de Estado, de carácter pretoriano, aquela devido à doutrina, em geral muito mais influenciada pelo direito civil.

A Função Administrativa tem um direito administrativo que é um direito excepcional em face do direito comum ou privado, inspirado por princípios próprios, dando lugar a instituições semelhantes às francesas, embora respondendo historicamente às concepções antagónicas, com o conceito-chave de serviço público em França e Poder Público na Alemanha, neste assunto mais próximo do conceito de

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DUGUIT, em França. No plano jurisdicional, o sistema alemão segue o princípio da especialização dos tribunais administrativos.

Hoje, no domínio do recurso contencioso, vigora o princípio da cláusula geral, que permite que um particular impugne qualquer acto administrativo ou leve a tribunal qualquer litígio de direito público que a lei não leve expressamente ao conhecimento de outra jurisdição. Todos os actos produzidos no âmbito de relações especiais de poder são atacáveis jurisdicionalmente.

A teoria dos actos de governo não conduziu a restrições jurisdicionais comparáveis às existentes em França e outrora em Espanha.

Juntamente com tribunais administrativos com competência genérica a nível federal e dos Estados, existem tribunais administrativos especiais para as questões fiscais, segurança social, disciplinares, militares e referentes ao exercício da advocacia.

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No que diz respeito ao direito administrativo italiano, este bebe a sua origem no direito administrativo piemontês, influenciado durante a ocupação napoleónica pelo direito administrativo francês do período pós-Revolução.

Nesta primeira fase, os esquemas de direito privado inspiram o direito administrativo em concorrência com a doutrina administrativista francesa.

Na fase posterior a 1865 e até à Primeira Guerra Mundial, ele adquiriu sistematização própria, embora sofrendo uma especial influência alemã, procurando simultaneamente superar o excessivo casuísmo francês e a excessiva abstracção alemã.

Aqui, o direito administrativo não atribui à Administração um poder tão autónomo, pois em parte a sua actividade está hoje subordinada aos tribunais judiciais.

Ele possui um conjunto de leis exclusivamente para regular a actividade

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administrativa, como corpo jurídico especial da Administração.

Há analogia com os institutos jurídico-administrativos franceses, mas há particularidades quanto ao sistema jurisdicional de controlo da actividade administrativa, sendo o sistema italiano um sistema misto, ou seja, possuindo ainda uma jurisdição administrativa (geral e também tribunais administrativos especiais), juntamente com a atribuição de competências aos tribunais ordinários.

A jurisdição administrativa, pelas leis de 1865, 1877 e 1889, era composta por juntas provinciais administrativas e secções jurisdicionais do Conselho de Estado.

Questão fundamental foi sendo a do critério de repartição de competências entre a jurisdição ordinária e a administrativa, quando uma das partes é a Administração, que veio assentar respectivamente na distinção entre direitos subjectivos e interesses legítimos. As excepções referem-se à competência exclusiva da jurisdição administrativa quanto a litígios entre funcionários públicos e a Administração e à

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competência do Conselho de Estado quanto à «jurisdição de mérito».

A partir de 1971, criaram-se tribunais de Primeira Instância, que vieram receber competências do Conselho de Estado, agora transformado em Tribunal de Apelação.

Quanto à execução de sentenças dos tribunais ordinários, condenatórias da Administração Pública, mantém-se a proibição da lei de 1865 sobre a revogação ou modificação por si dos actos administrativos impugnados, dependendo de novo recurso administrativo a anulação propriamente dita destes actos, devendo a Administração conformar-se com as sentenças dos tribunais, sob pena de o particular poder intentar novo processo agora no Tribunal Administrativo.

Os tribunais ordinários só podem condenar a Administração para pagar quantidades de dinheiro ou entregar um bem determinado.

No entanto, o Conselho de Estado e os tribunais administrativos regionais podem anular ou modificar o acto administrativo,

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embora sem condenar a Administração Pública ao ressarcimento de danos em matérias que não sejam da sua competência exclusiva.

26.2.Sistema de administração judiciária

Portugal tem uma ordem de jurisdição paralela e independente da jurisdição judicial, a dos Tribunais Administrativos e Fiscais, onde são resolvidos jurisdicionalmente quer os conflitos administrativos quer os de natureza fiscal.

Por aqui passam as questões relacionados com a justiça administrativa, através do processo contencioso administrativo.

Esta jurisdição está constituída também por verdadeiros órgãos de soberania, e, portanto, estritamente independente da Administração, diferentemente do que acontece no caso francês, em que ela ainda está, embora hoje já só formalmente, integrada na Administração.

Ou seja, aqui temos verdadeiros

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tribunais, embora a jurisdição administrativa, distinta da jurisdição ordinária por razões históricas, e hoje justificada apenas pelo facto de se considerar oportuno e mais eficaz existir uma jurisdição especializada, em que se pressupõe que os juízes para aí nomeados sejam melhor conhecedores deste ramo do direito e se dediquem especificamente a estas matérias.

Quanto à jurisdição administrativa francesa, podemos aceitar a afirmação de FRANÇOIS BURDEAU de que se trata de «uma instância da Administração, mas distinta dela»190, dada a inexistência entre os seus membros de funcionários da Administração activa e o reconhecimento da independência dos juízes administrativos e conselheiros de Estado.

A jurisdição administrativa conhece os litígios nascidos da Administração, pelo menos em gestão pública, enquanto a jurisdição judicial regula os litígios entre particulares e penais.

No entanto, esta hoje também pode

190 Les Livres du Principe de Dualité de Jurisdictions, 1990, R.F.D.A., p. 724.

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conhecer de certos assuntos administrativos.

De qualquer modo, se é verdade que as regras de delimitação de competências são complexas, o critério fundamental é o do direito aplicável à questão em litígio, ou seja, em princípio, se o direito que pode solucionar o diferendo é o direito administrativo, a competência é do tribunal administrativo. Pelo contrário, se o direito a aplicar for o direito privado, a competência pertence ao tribunal comum.

Às vezes, há derrogação deste princípio, normalmente em detrimento da jurisdição administrativa, como acontece com os litígios referentes ao direito de propriedade e sanções contra-ordenacionais, designadamente com a aplicação do Código da Estrada.

As questões que se suscitem sobre delimitação de competências são resolvidas por um tribunal de conflitos, dotado de estrutura paritária, tanto podendo a conflitualidade ser-lhe levada pela jurisdição administrativa (conflito positivo de competência, quando sem razão um tribunal comum se declarou incompetente para

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decidir uma questão) ou por um particular, parte num litígio em risco de não apreciação jurisdicional por declaração de incompetência de ambas as jurisdições (conflito negativo de competência).

Nestas situações, compete ao Tribunal Constitucional interpretar a legislação vigente delimitadora de competências ou estabelecer o critério adequado em caso de lacuna legislativa.

Em França, a hierarquia normal da ordem jurisdicional administrativa francesa é composta de tribunais administrativos regionais, que dispõem de competência de direito comum em matéria de contencioso administrativo; tribunais de 2ª Instância de recurso das decisões dos Tribunais Regionais (desde 1989); e o Conselho de Estado, que dispõe de competências de atribuição sobre matérias limitadas (residuais da competência de direito comum que deteve até 1953), actuando sobretudo como Administração de recurso das decisões dos tribunais administrativos e juiz de cassação em relação às instâncias administrativas que decidem em última instância.

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Em Portugal, existem tribunais administrativos de círculo, dois tribunais administrativos centrais (Sul e Norte, em Lisboa e Porto) e o Supremo Tribunal Administrativo.

E existem outros tribunais administrativos fora da hierarquia normal, mas que têm uma competência em relação a actividades muito precisas, como acontece com o Tribunal de Contas e outros.

Em França, no Conselho de Estado, há secções que servem de conselheiras da Administração activa, que é obrigada ou pelo menos pode solicitar pareceres no plano do direito e do mérito.

Em Portugal, nenhuma instância administrativa exerce tal função consultiva geral.

Trata-se de uma dupla vocação bicentenária, que sempre funcionou bem e ajudou a preparar os juízes para a tarefa jurisprudencial que lhe deu grande autoridade e papel essencial na criação do Direito Administrativo continental.

A dualidade jurisdicional desdobra-se

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numa dualidade de direito aplicável, sendo certo que, entre alguns aspectos, o direito privado e o direito administrativo tendem a propor soluções comuns, dado que nada impede de o juiz criador da norma jurídica se inspire no direito privado, com as devidas adaptações às necessidades da actividade administrativa.

Foi a partir de 1873, com o Acórdão Blanco, do Tribunal de Conflitos francês, ficou definitivamente consagrado o referido dualismo jurídico.

Importa começar por referir que todos os sistemas, mesmo os não administrativos, têm legislação referente à estrutura da Administração Pública. Essas estruturas variam com o tempo e de país para país. As formas jurídicas de organização, de funcionamento e de fiscalização da Administração não são iguais, nem em todas as épocas nem em todos os espaços políticos. Por isso, quando se fala em sistema administrativo, há, desde logo, uma distinção que tem por base uma raiz histórica.

Vejamos como se processava a

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Administração Pública no sistema administrativo tradicional anterior à Revolução Francesa, portanto em contraposição ao sistema moderno da pós-Revolução, quer em França quer em Inglaterra (época da Casa de Orange, 1688), países construtores dos dois modelos, o francês que se foi afirmando no século XIX e o inglês, distintos, que são os modelos de referência mundial, embora tenham vindo a aproximar-se.

*

Quanto ao anterior sistema administrativo tradicional, do Antigo Regime, designado de Estado de Polícia (da monarquia tradicional europeia), ele como características a confusão de poderes (não havia separação) e a inexistência de um Estado de Direito.

Havia uma indiferenciação entre o órgão executivo e o judicial. O Rei era o órgão supremo. Não havia Estado de Direito porque a Administração não estava subordinada ao Direito.

As leis não podiam ser invocadas pelos

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cidadãos. Eram regras internas da Administração, que procuravam dar coerência e eficácia à acção administrativa. Vinculavam os funcionários e estes podiam ser responsabilizados pelo seu incumprimento.

Mas estas regras eram apenas internas e, portanto, destituídas de carácter jurídico face ao exterior. Mesmo as regras internas que responsabilizam os funcionários perante os superiores podiam ser dispensadas pelo Rei que, quando quisesse, as podia alterar livremente. Este era o modelo de funcionamento da Administração na Monarquia Absoluta da Europa Continental, em geral até ao século XIX.

Com a Revolução Francesa, as coisas vão alterar-se, pois esta Revolução, na esteira do constitucionalismo inglês, vai também trazer a separação de poderes, ou seja, o poder do rei vai ser dividido em funções executivas e jurídicas.

Aparece a ideia de que há um Direito do Homem e que este é superior ao Estado, logo tem de ser respeitado pelo Estado e

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pelo Rei.

Daí que a Administração tenha que estar sujeita a várias regras que têm a ver com a defesa do cidadão e, a partir daí, a sujeição da Administração a verdadeiras regras jurídicas, isto é, normas de direito com carácter externo, com eficácia geral, obrigatórias para todos e que podem ser invocadas por particulares quando o Estado não as cumpra. Daqui surge o Estado de Direito.

A evolução é diferente em Inglaterra e em França. Quanto a Inglaterra, o direito anglo-saxónico foi-se formando ao longo dos séculos e assenta no costume como fonte fundamental de direito.

Eram os juízes que explicitavam o costume, dizendo que determinado caso devia ser resolvido de determinada forma porque assim era costume. O que os tribunais diziam transformava-se numa lei que os tribunais a seguir tinham que adoptar.

A sentença cria precedentes originando uma vinculação à regra do

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precedente. Os juízes ingleses eram pessoas de grande prestígio na sociedade e desempenhavam um papel muito importante na aplicação e explicitação do Direito.

No Reino Unido, o sistema unitário assenta no princípio da rule of law (primado do direito), historicamente ligado ao desenvolvimento da soberania do Parlamento, sendo certo que o princípio da separação dos poderes não constitui, em regime parlamentar, um fundamento da unidade da jurisdição, pois aqui confunde virtualmente os Poderes Legislativo e Executivo, o que torna tal princípio operativo em termos de independência dos Juízes do Poder Judicial, que aliás podem receber funções normativas ou executivas e que nem sequer lhes garante o monopólio da função jurisdicional.

As lutas no Reino Unido levaram à supremacia do Poder Judicial, contrariamente aos objectivos da luta em França que visaram a separação do Poder Executivo em face do Poder Judicial, que o manietava.

No início do século XV, são criadas

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prerrogative courts, à margem dos tribunais de Common Law, nascidos e emancipados do Poder Real no período medieval.

Estas Prerrogative Courts estão próximas do Conselho do Rei, através do qual o monarca exerce quase todos os poderes do Estado, e que vem permitir ao Executivo impôr a sua vontade.

No século XVII, o poder legislativo reage ao aumento dos poderes do Executivo, tendo em 1640 abolido estes tribunais de jurisdição especial e confiado a sua jurisdição aos tribunais de Common Law.

E pelo Bill of Rights, de 1688, o Parlamento inglês proibiu o Rei de isentar ministros e funcionários do cumprimento da lei, que assim passa definitivamente a reger todas as relações na sociedade britânica, quer impliquem só os particulares quer impliquem também a Administração Pública.

E, em 1700, o Parlamento consagra a independência dos juízes, que passam a poder controlar livremente os actos do Poder Executivo. São estas leis do século XVII que acabam com a jurisdição paralela à jurisdição ordinária, agora independente do

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Executivo, e submetem a Administração ao Direito Comum que esta aplica. No sistema administrativo judiciário (anglo-saxónico), podemos encontrar o princípio da descentralização aplicado em termos de auto-governo local, enquanto que no sistema francês e, após a tomada do poder por Napoleão, ocorreu essencialmente a valorização do princípio da centralização.

No sistema anglo-saxónico, a Administração sujeita-se aos tribunais comuns (dos cidadãos), enquanto em França foram criados os tribunais para a própria Administração.

Quanto à descentralização, existe a Administração Central e a Administração Local, que é constituída por várias figuras (autarquias, etc.), com poderes muito amplos e com grande autonomia (local government). Nunca houve, como em França, delegados designados pelo Poder Central.

Quanto à sujeição aos tribunais, a Administração inglesa encontra-se submetida ao controlo jurisdicional dos tribunais comuns.

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Quando há litígios entre a Administração e os particulares, não são tribunais extra-ordinários (Administrativos) que vão resolver as questões, mas sim os tribunais dos cidadãos (Comuns). As relações entre a Administração e os particulares são iguais às relações dos particulares entre si.

A Administração não tem direito especial, logo não dispõe de privilégios (prerrogativas). Qualquer que seja a entidade pública, está subordinada ao Direito Comum.

Quanto à execução judicial das decisões administrativas, se a Administração Pública toma uma decisão e o particular não a aceita, aquela não pode executar a sua decisão por autoridade própria (v.g., não pode decidir fazer uma demolição ou expulsar alguém do país). Não pode aplicar meios coercivos e, se quiser impôr a sua decisão, tem de recorrer ao tribunal para este, através de um processo, acolher a sua posição em termos de direito e torná-la imperativa (não há decisão administrativa com carácter executivo,

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porque estas são dadas pelos tribunais).

As decisões da Administração não têm carácter executivo próprio e não podem ser impostas à decisão prévia do Poder Judicial, que lhe dá o carácter imperativo e coercivo que elas podem ter. Quanto às garantias judiciais da Administração, os particulares dispõem de um sistema de garantias contra os abusos da Administração.

Podem recorrer das decisões nas quais entendam que as leis não são cumpridas ou quando a Administração toma atitudes que sejam contra a lei.

O tribunal comum goza de plena jurisdição face à Administração.

***

No regime administrativo, a Administração tem o poder de executar por sua própria autoridade as decisões, e os particulares que não concordem vão ao tribunal contestar a actividade da Administração.

O tribunal, se entender que há uma irregularidade, anula a acção mas não

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substitui a Administração, ou seja, não actua como Administração num segundo momento (não lhe diz o que tem ou o que pode fazer, limita-se a anular a irregularidade).

Diferentemente, no Reino Unido, o tribunal tem plena jurisdição face à Administração e, portanto, ordena às autoridades administrativas que cumpram a lei quando ela é violada (tem de ser acatada pela Administração e, se não for, a entidade que desobedecer sofre as devidas sanções).

O sistema de administração judiciária foi exportado para outros países anglo-saxónicos (EUA, Canadá -hoje país de sistema dual-, Austrália, Nova Zelândia, etc.) e para outros países que também receberam as suas influências, como os da América Latina.

Quanto a França, os traços fundamentais do seu direito assentam no direito romano-germânico em geral. Neste tipo de direito, a lei formada pelo Governo (texto da lei) é fundamental e o costume tem pouca importância.

O direito consuetudinário não é fonte

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principal de criação de direito, sendo esta o poder político.

O juiz não tem papel explicitador do direito, mas sim aplicador. O papel principal é da lei como fonte de direito.

O legislador cria direito com privilégios na parte que tem que ver com o direito público.

Há uma maior influência de doutrina jurídica do que de jurisprudência.

O grande prestígio está no Poder Executivo e não na magistratura, isto é, o Governo tem mais prestígio do que os Tribunais. Depois da Revolução, o princípio da separação de poderes foi consagrado, mas a partir daí começam as diferenças.

No sistema administrativo executivo (francês), a questão da centralização traduz a procura de organização do aparelho hierarquizado de Napoleão. Este sistema era disciplinado através da força do Poder Central, com delegados no local (os Prefeitos eram delegados pelo Poder Central). Pelo menos durante um determinado período, os municípios não têm

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autonomia nem financeira nem administrativa, mas têm possibilidades jurídicas que, no entanto, não passam de instrumentos ao serviço do Poder Central.

Quanto à sujeição aos tribunais administrativos, os tribunais administrativos não são verdadeiros tribunais porque são órgãos da Administração (como foram em Portugal até ao 25 de Abril).

Os tribunais administrativos são órgãos da Administração, embora dotados de características de independência e devendo julgar segundo critérios de independência e de imparcialidade. Estão incumbidos de fiscalizar a actividade da Administração, julgar conflitos do contencioso dos seus actos, etc.. Quanto à subordinação ao Direito Administrativo, a partir do fim do século XIX, começa a desenvolver-se a ideia de que a Administração tem de ter prerrogativas, uma vez que não está na mesma posição dos particulares, que agem com um objectivo egoísta, enquanto a Administração tem que satisfazer os interesses de toda a comunidade.

Assim, começou-se a afastar as regras

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comuns e a criar o Direito Administrativo.

A Administração é dotada de poderes de autoridade (embora lhe seja imposta a sujeição a deveres e restrições que não teria se se pautasse apenas pelo Direito Privado); tem o privilégio da execução prévia (não tem que ir aos tribunais buscar legitimidade).

Tudo se passa como se a decisão da Administração fosse uma primeira sentença e o particular tem que ir ao tribunal pedir a anulação desta sentença. O facto de ir a tribunal não suspende a execução.

O acto administrativo tem carácter executório e força executória própria, podendo ser imposto por coacção antes de qualquer decisão do poder judicial. Apesar de os particulares também poderem pedir a suspensão do acto enquanto o tribunal aprecia o problema, isto constitui uma excepção. E no sistema puro, a Administração era normalmente obrigada a indemnizar, mas não a cumprir a decisão do tribunal. Quanto às garantias judiciais dos particulares, apesar da Administração ter privilégios, os particulares também os têm

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(estamos num Estado de Direito).

O Direito Administrativo oferece aos particulares um conjunto de garantias contra os abusos do Poder. Os privilégios são efectivados através dos tribunais administrativos e não dos tribunais comuns, o que poderia trazer muitas mais garantias de independência.

Os tribunais não gozam de plena jurisdição porque podem declarar um acto nulo, mas não podem dizer à Administração o que deve fazer. Aquela é que tira conclusões (v.g., se a Administração nomear para um cargo que exija um curso superior uma pessoa que não o tenha, e houver outro concorrente que seja licenciado, o tribunal pode declarar nulo o acto mas não pode dizer à Administração para contratar o licenciado).

O sistema francês vigora em geral nos países do continente europeu, embora com algumas nuances. Em Itália e na Alemanha há muitas diferenças. Este sistema está em vigor em Portugal desde 1832, mas sofreu alterações mais tarde.

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Hoje, podemos referir a existência já de um Estado anglo-saxónico que evoluiu para um Sistema Ecléctico de Paradualidade.

Com efeito, mesmo sem referir a solução eclética italiana, com o direito administrativo aplicado por princípio por duas ordens de jurisdições, a administrativa e a comum, temos o Canadá com um sistema administrativo com características e bases históricas diferentes do francês, dado que, após a França ceder definitivamente este território ao Reino Unido, foi instaurado aí, em 1763, o Direito Público Inglês. Quando, em 1867, o Canadá é dotado de uma Lei Constitucional, já a Confederação vivia em sistema de unidade de jurisdição. E hoje não há uma verdadeira dualidade porquanto tal pressuporia a estruturação dos tribunais especializados no contencioso administrativo, numa ordem hierarquizada encimada por um Supremo Tribunal também especializado neste contencioso, independente do Supremo Tribunal Judicial.

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Não há um tribunal superior que disponha em exclusivo e definitivamente do contencioso administrativo, tal como os tribunais administrativos inferiores que, sendo formalmente entidades administrativas, embora independentes, estão sujeitas ao controlo dos Tribunais Superiores de Justiça do Estado.

No entanto, a solução recente do Direito Administrativo Canadiano criou: Tribunais da Administração especializados, um Tribunal de Justiça com vocação administrativa, e introduziu uma norma de controlo judicial que o aproximam do modelo europeu continental.

E esta procura de especialização jurisdicional não conduz apenas à dualidade de jurisdições a um dado nível jurisdicional, mas também propicia, tal como no exemplo francês, o desenvolvimento de um Direito Administrativo autónomo.

O regime federal divide a competência relativa à organização do sistema judicial entre as Assembleias Estaduais e o Parlamento Federal, tendo cada Estado um ou mais Tribunais Superiores e Inferiores, muitos dos quais foram mantidos pela

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Constituição de 1867, constituindo os Tribunais Superiores as instâncias de Direito Comum, decidindo litígios de toda a natureza, desde constitucionais a civis, penais ou administrativos, enquanto os Tribunais Inferiores têm as competências que as leis lhes atribuem.

Os Tribunais Superiores têm ainda um poder de supervisão e fiscalização da acção dos Tribunais Inferiores e dos Poderes Executivos, fundado na rule of law (princípio da primazia do direito, a que se refere expressamente a Constituição de 1982, Estado de Direito), que implica desde logo a submissão da Administração ao Direito Comum e, designadamente, à teleologia normativa subjacente à atribuição de poderes discricionários.

Em 1875, o Parlamento Federal criou o Supremo Tribunal do Canadá, que aprecia o recurso das decisões dos Tribunais Superiores de cada Estado e do Tribunal Federal do Canadá (criado também pelo parlamento em 1970) sobre qualquer matéria, independentemente do direito aplicável, constitucional ou ordinário, e da fonte estadual ou federal da sua

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proveniência. Ao nosso tema interessa, sobretudo, o

estatuto do Tribunal Federal, porque lhe foram atribuídas, em exclusividade, competências relacionadas com a actividade administrativa, com o intuito de criar uma jurisdição especializada em certas matérias.

Além das questões relativas à propriedade intelectual e à cidadania, só ele pode conhecer sobre certos contratos em que é contratante a Corôa e efectivar o controlo judicial dos actos da Administração Federal (organismos criados e dotados fde poderes por uma lei federal).

Além disso, o Tribunal Federal tem competência concorrente com os Tribunais Superiores dos Estados, no domínio da responsabilidade contratual e por actos ilícitos envolvendo a Corôa, obras inter-estaduais, aeronáutica, etc.. A solução para este sistema mitigado de dualidade imperfeita, que poderia designar-se por sistema paradual, é fruto de uma evolução que partiu da não exigência constitucional de um monopólio dos Tribunais na aplicação da Justiça.

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Assim, começou-se por permitir a convivência institucional daqueles com organismos não judiciais criados pelos Parlamentos, com funções jurisdicionais e seguindo processos diferentes de apreciação de litígios, mais aptos a uma colaboração moderna, porque mais rápida e eficaz, no enquadramento e superação dos assuntos administrativos num momento em que o Estado-Gendarme há muito havia dado lugar a um crescente Estado-Providência. Já antes da criação do Tribunal Federal se praticavam excepções ao princípio da unidade jurisdicional, dentro da linha também trilhada pelos outros países anglo-saxónicos.

A primeira entidade administrativa autónoma desta índole, criada no Canadá, foi a Comissão dos Caminhos de Ferro.

A criação de tribunais administrativos anglo-saxónicos e, em geral, a motivação criadora destas entidades administrativas independentes segue as explicações que politólogos e administrativistas têm apontado em face da sua proliferação nestas últimas décadas do século XX: uma reinstitucionalização pragmática de

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poderes, com transferência da responsabilidade política em domínios sensíveis desgastantes para o poder político; a necessidade de chamar especialistas ou os próprios interessados ao cumprimento das funções administrativas mais complexas; e a inadequação funcional e demora excessiva do aparelho judicial, submetido a um processo formal demorado numa época em que a procura de “Justiça” tem cada vez maior consumo (exigindo processos acessíveis e decisões rápidas e com menos custos). No Canadá, estes tribunais administrativos nascem das leis ordinárias, que os criam como prolongamentos do Poder Executivo.

Aqui, as suas decisões, tais como as dos órgãos da Administração, estão sujeitas ao controlo dos Tribunais Superiores de Justiça. Inicialmente, no plano da sua conformação jurisprudencial, estas entidades estiveram sujeitas à tentativa dos Tribunais de Justiça de lhes impôr o seu processo e modo de funcionamento, mas o Supremo Tribunal, no início da década de 60, reconheceu-lhes autonomia conformadora do seu processo administrativo (v.g., .Komo construction inc.

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v. com. des r´rlations du travail au Québec,1968) e viria mesmo a favorecer a autonomia decisional nas suas áreas de especialização (syndicat canadian de la function públique, section local 1963 v. société des alcools du nouveau-brunswick, 1979).

Certas Comissões podem aplicar a Carta Canadiana dos Direitos e Liberdades e declarar a sua aplicação à legislação que se lhe oponha (tétreault-gadoury v. canada- com. del’emploi et de l’immigration, 1991).

Os poderes dos Tribunais Administrativos cifram-se expressamente na apreciação do mérito das decisões administrativas, mas tem ocorrido uma evolução que os tem levado a praticar o Judicial Review (controlo da legalidade dos actos dos organismos administrativos inferiores) que pertenceria apenas aos Tribunais de Justiça.

O Tribunal Federal é um tribunal de justiça e não uma entidade de natureza administrativa, visando controlar a legalidade dos actos da Administração Pública Federal, o que faz em termos quase exclusivos (os tribunais superiores dos

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Estados mantêm jurisdição, concorrente para apreciar questões de constitucionalidade das leis federais e controlar a legalidade dos actos da Administração federal que levantem questões de constitucionalidade - CCRT v. Paul l’Anglais inc., 1983), marcando claramente uma excepção não só ao monopólio jurisdicional pelo Poder Judicial mas criando finalmente uma excepção formal ao princípio da unidade de jurisdição, tratando-se de uma jurisdição de recurso de decisões de organismos e doutros tribunais em certos domínios.

As razões que levaram à criação deste tribunal tiveram que ver com a necessidade de uniformização do direito aplicável à Administração Federal, para evitar a contradição da jurisprudência dos tribunais estaduais, e a procura de celeridade na resolução de litígios envolvendo entidades federais, dada a lentidão e sobrecarga dos Tribunais Superiores.

Em síntese, no Canadá, as Administrações Públicas estaduais continuam sujeitas, tal como os particulares, à competência jurisdicional dos tribunais

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ordinários e só a Administração Federal, a partir de 1970, vê a legalidade dos seus actos sujeita à apreciação de um Tribunal Federal especializado no contencioso administrativo, cujas decisões no entanto continuam sujeitas à apreciação do Supremo Tribunal Canadiano.

Não foram razões ideológicas que levaram à criação deste Tribunal e, portanto, desta forma tendencial de dualidade, mas o pragmatismo exigido pela necessidade de dar resposta ao número, complexidade e tecnicidade das intervenções do Estado.

26.3.Comparação dos sistemas modelares jurídicos europeus

Em termos de comparação dos sistemas jurídicos europeus, efectuando uma investigação histórica e problemática sobre as semelhanças e as diferenças entre os diversos sistemas administrativos modernos de Estados de Direito Democrático, importa concluir que se deparam duas questões fundamentais: a relação entre o Direito Administrativo e o Direito Comum; e o equilíbrio entre os remédios contenciosos jurisdicionais e os

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mecanismos não jurisdicionais de protecção dos cidadãos em face da Administração.

A doutrina tem continuado a realçar a oposição entre o sistema de Direito Comum e o sistema de Direito Administrativo, o primeiro típico da experiência anglo-saxónica e o segundo característico do sistema de regime administrativo da Europa continental.

No sistema de direito comum (common law, rule of law), também designado por sistema judiciário e ao qual cabe melhor a designação de regime de unidade de jurisdição e de direito, as relações da Administração com os cidadãos são reguladas pelo mesmo direito que rege as relações dos particulares entre si (com algumas derrogações, sem prejuízo da recondução essencial ao princípio da aplicação do direito privado).

No sistema de regime administrativo, também designado por sistema executivo e a que melhor caberia a designação de sistema de dualidade de jurisdiçõe e direito, aplicam-se, em princípio, regras privilegiadoras da Administração (colocada

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numa posição supewrior em nome do interesse colectivo), claramente exorbitantes em relação ao Direito Privado, enformadas por princípios específicos que lhe dão carácter de direito autónomo.

Deve-se à influência do professor ALBERT VENN DICEY (através do seu difundido livro Introdução ao estudo do direito e da constituição, 1885), a defesa de uma suposta oposição radical entre os dois sistemas, com a proclamação das virtudes da Administração de direito comum inglesa e dos pecados da invenção do direito administrativo à francesa. DICEY é influenciado pela ideologia liberal inglesa de LOCKE a BURKE e pela literatura francesa da primeira metade do século, como os Estudos Administrativos, de ALEXANDRE VIVIEN e a obra de ALEXIS DE TOCQUEVILLE (Democracia na América, o Antigo Regime e a Revolução), donde se depreende a tese da continuidade do quadro institucional francês e da origem do direito e da jurisdição administrativos anteriores à Revolução.

Para DICEY, em Inglaterra rege o princípio da regra ou supremacia do direito

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(rule or supremacy of law), afastando a outorga à Administração Pública, nas suas relações com os cidadãos, de qualquer prerrogativa especial, mantendo-se a sua sujeição ao Direito Comum (ordinary law of the realm) e a competência do juiz ordinário em relação aos litígios administrativos. Pelo contrário, a Administração francesa é governada por um Direito não Comum integrando regras e jurisdições especiais, em que o Conselho de Estado era um corpo dependente do Poder Executivo, pelo que teria de ser considerado um direito privilegiador do Estado e dos seus funcionários nas relações com os cidadãos.

Ou seja, tratar-se-ia de um Direito Administrativo que instituía um regime jurídico não paritário, o que o levou a negar que se estivesse perante a aplicação da rule of law, único sistema que preencheria as condições da existência de um Estado de Direito.

A primeira aparecia como a única própria de um Estado de Direito (regime da rule of law) e a segunda como a de um regime de não Direito.

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Só mais tarde, em ulteriores edições do seu livro, DICEY viria a reconhecer os seus exageros, designadamente que o direito da Administração Pública britânica também tinha regras especiais derrogatórias da common law e que o direito administrativo francês se tornara mais liberal, sobretudo pelo facto do Conselho de Estado também passar a ser considerado um órgão jurisdicional e produzir jurisprudência relevante. DICEY não reparou que tal jurisdicionalização já havia ocorrido treze anos antes da primeira edição do seu livro e, quanto à sua jurisprudência, ao seu mérito e à sua importância, constituem um dado permanente na construção do Direito Administrativo e na fixação de posições doutrinais favoráveis aos cidadãos.

É verdade que, inicialmente, até metade do século passado, havia uma grande diferença entre os dois sistemas, com a experiência britânica a transmitir uma ideia de paridade nas relações entre os cidadãos e os poderes públicos, enquanto o sistema francês, com uma génese autoritária bebida no Antigo Regime e no período napoleónico, dava uma imagem

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diferente da afirmação do poder.

A tradição inglesa, desde a Magna Carta, do século XIII, é portadora de uma concepção liberal do poder e da ligação estreita entre Administração e Justiça. Aqui a formação da Administração Pública é tardia, sendo certo que, desde os Tudor e os Stuart até ao fim do primeiro decénio do século XIX, não existe uma verdadeira Administração, assumindo o Parlamento uma parte da função administrativa.

Por isso, o Reino Unido não tem necessidade de um direito especial.

E há o respeito dos princípios da justiça natural própria dos processos, implicando a imparcialidade e um procedimento contraditório, permitindo aos interessados pronunciar-se em sua defesa antes das decisões (fair procedure), a complementar com as vias judiciais ordinárias, que assim não assumem um papel garantístico fundamental.

Pelo contrário, a tradição francesa, com uma forte Administração Real, centralizada e hierarquizada, formada em fins do século XVI e princípios do século

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XVII; e com a separação, em meados deste século, entre os poderes administrativos e judiciários (com o conselho do rei e dos intendentes como juízes em causa própria), que exprime uma soberania não judiciária e um poder administrativo separado do Direito Comum e do exercício da justiça.

O período revolucionário produz leis que confirmam a exclusão da autoridade judicial em relação aos litígios administrativos e a Constituição do ano VIII (a constituição napoleónica de 1799) sanciona a primazia da Administração, na pessoa do primeiro Cônsul, entre os poderes do Estado e a irresponsabilidade dos funcionários públicos.

O direito administrativo consolida uma forte «especialidade» em relação ao direito privado, derivada da intensidade dos privilégios da Administração.

Neste sistema, as garantias jurisdicionais assumem uma primacial importância em face das vias não judiciais.

Em Inglaterra e nos Estados Unidos, desenvolve-se, com base numa antiga

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tradição inglesa, uma Administração com específicas funções jurisdicionais e reguladoras de protecção dos administrados, assente nos Administrative Tribunals, copiando o modelo jurisdicional, e em geral noutras entidades administrativas independentes (independent agencies).

Em França, no princípio do século XIX, houve uma experiência parcial de procedimentos administrativos não contenciosos, prévios à adopção dos actos administrativos, que acabou por se perder em face da lógica do controlo sucessivo do juiz administrativo, assente na ideia de que o procedimento compete ao contencioso jurisdicional. Mas a procedimentalização da actuação da Administração Pública tem-se imposto também na Europa continental, como é o caso de Portugal.

Em conclusão, a diferença inicial entre os dois sistemas refere-se tanto à natureza dos direitos aplicáveis como aos mecanismos de protecção dos cidadãos, com a França e os Estados continentais desenvolvendo regras especiais e remédios contenciosos posteriores à adopção dos

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actos administrativos, confiados a uma jurisdição administrativa, e com o Reino Unido a aplicar as regras da ordinary law of the realm (apesar da existência do judicial review, reservado aos tribunais ordinários), dando proeminência aos mecanismos do procedimento administrativo preliminares às decisões administrativas e à assumpção de funções jurisdicionais e reguladoras pela própria Administração.

O sistema inglês do império da lei ou primado da lei (rule of law) tem subjacente uma concepção do princípio da separação de poderes que impõe o controlo pelos tribunais ordinários de toda a actividade administrativa, enquanto no sistema francês tal princípio implica a proibição de esses tribunais se imiscuírem na actividade da Administração e seus funcionários (ao ponto de os juízes nem poderem proceder penalmente contra eles, nem exigir-lhes responsabilidade civil sem autorização prévia da Administração, o que foi derrogado pelo direito francês em 1870).

Mas, no fundo, a questão não podia colocar-se em termos de o sistema inglês se um sistema de Estado de Direito (rule of

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law) e o francês ser um sistema sem Direito, como pretendia DICEY.

O que é possível concluir é apenas que o sistema anglo-saxónico é de aplicação do direito comum e da sujeição aos tribunais comuns de todos os sujeitos de direito, cidadãos ou Administração. Mas há sempre uma aplicação de direito mesmo contra a Administração Pública, e portanto de um regime totalmente distinto do do Estado de Polícia.

E a história sempre demonstrou, pese embora as teses improvadas de DICEY, que era melhor a existência de regras especiais e diferentes do direito privado e de uma jurisdição própria, especial, que tornou possível a submissão dos poderes públicos ao Direito, do que a realidade inglesa da existência de regras que tornavam a Coroa irresponsável (dogma de que o rei não se engana), que impedia o controlo sobre as relações contratuais, designadamente com os funcionários, e impedia de todo acções de indemnização por danos causados pela Administração.

No Reino Unido, a Administração não

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se submetia às mesmas regras que os particulares (empresas e indivíduos) e só os funcionários, a título particular (não a Administração), podiam ser perseguidos civil e penalmente por danos, sem necessidade de autorização prévia da Administração.

Só em 1947, ou seja 77 anos depois do que ocorreu em França, a Crown Proceeding Act veio viabilizar (mas não em termos iguais ao do direito comum) a responsabilidade da Coroa pelo incumprimento contratual e por danos de natureza extracontratual, embora os funcionários continuem a não poder accionar a Administração.

E o crescente intervencionismo estatal fez criar tribunais especiais da Administração para apreciar certas matérias administrativas (vg. Segurança Social, etc.).

A existência do chamado «Regime de Direito Administrativo» ou «regime administrativo« e, portanto, a diferença deste em relação ao direito privado deriva de vários facores, e, desde logo, do facto de a Administração Pública ser dotada de poder de auto-tutela, quer declarativa quer

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executiva, isto é, integrado, também, pelo privilégio de decisão executória dos actos administrativos (um e outro, em substituição, em primeira mão, dos tribunais, que apenas intervêm se provocados pelos administrados legalmente prejudicados), protegendo directa e indirectamente a eficácia das normas administrativas; e pelo poder sancionador que lhe permite punir, por si mesma, as situações de incumprimento do direito administrativo, fora do sistema penal.

A estes poderes há que juntar outros privilégios, destacando-se o princípio do cumprimento por equivalência, o privilégio de prazos mais dilatados para o exercício de posições processuais, garantias de preferência na cobrança dos seus créditos, vigentes na legislação tributária e o princípio solve et repete, relatividade do sistema de cumprimento das sentenças referentes à Administração Pública (inexecução e suspensão das sentenças e privilégio da inembargabilidade e inexecutoriedade dos bens da Administração), embora hoje se deva registar a possibilidade de medidas compulsórias em ordema obrigar os

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dirigentes administrativos a cumprir as sentenção em que não exista incidente de causa legítima de inexecução, maior garantia penal para a protecção das normas de Direito Público (condutas que lesem um bem jurídico que pertença à Administração), condutas de funcionários, sobretudo aparelho policial e militar, disciplina sancionatória dos actos administrativos inválidos, favorável à Administração (anulabilidade, sanabilidade, convalidação), possibilidade de protecção directa dos bens do domínio público e privado da Administração, ocultação de dados administrativos191, etc.

Em síntese, pela confrontação dos dois sistemas, vemos que, nos planos fundamentais da ordenação jurídica, há soluções diferentes que ainda se mantêm e que importa realçar. Quanto à organização

191 Ainda, hoje, vigora, na generalidade dos países, a ocultação aos cidadãos dos dados administrativos (mesmo democráticos e mesmo na UE, excepto nestas no domínio das matérias ambientais, em sentido amplo, em que a transparência resulta da imposição do Direito da União Europeia. O acesso geral e livre à informação detida pela Administração Pública, anteriormente em regime de segredo administrativo geral, está, hoje, em muitos Estados excluídas apenas, no que se refere aos interesses do Estado, em relação a segredos oficiais e a título excepcional e por tempo limitado (por razões de interesse público: dados da segurança do Estado e segredos de justiça).

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administrativa, o modelo francês estava ligado a tendências centralizadores e o inglês, descentralizadoras.

Claro que tal correspondia aos sistemas puros, porque agora a tendência tem sido sempre para a descentralização.

Outro elemento e essencial para a carecterização dos Estados continentais europeus, de regime administrativo, refere-se ao controlo jurisdicional da Administração.

No sistema inglês, são os tribunais comuns, enquanto que, no francês, começaram por ser os tribunais criados no âmbito da Administração (que não são verdadeiros tribunais, porque não têm estatuto de independência, tendo, no entanto, evoluído, com o tempo, no sentido de funcionarem em termos independentes).

Quanto ao direito regulador da Administração, não é o direito comum, que rege, em termos de igualdade, as relações entre os sujeitos de direito. No direito francês e no nosso, uma jurisdição totalmente separada dos tribunais que resolvem os conflitos os cidadãos.

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No inglês só há uma ordem de tribunais, seja para resolver os conflitos implicando a Administração Pública seja os cidadãos entre si.

Quanto à execução das decisões administrativas, na administração judicial, os actos só podem ser executados se o tribunal der razão; no sistema executivo, qualquer entidade tem, por si própria, poder para tomar decisões e para as executar.

Quanto às garantias jurídicas da Administração, as garantias existem nos dois sistemas, mas no inglês é diferente, na medida em que a Administração não sofre o poder de injunção derivado dos poderes de plena jurisdição dos tribunais (no sistema francês sofre-o) e está completamente subordinado às sentenças dos tribunais comuns em Inglaterra.

Quanto à organização administrativa, com o crescimento das tarefas que a Administração de tipo inglês foi chamada a desempenhar, faz com que a Administração, para responder às necessidades, assumisse muitas responsabilidades que antes pertenciam ao poder local.

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Mas, apesar de tudo isto, efectivamente, podemos detectar uma aproximação dos dois sistemas.

Há um fenómeno de crescimento burocrático para haver uma satisfação mais eficaz das necessidades (fenómeno centralizador).

Estes poderes locais ficaram sujeitos a uma superintendência do poder central.

Quanto aos poderes centrais, independentemente de tendências centralizadoras, têm-se desenvolvido tendências descentralizadoras, com a democracia, a eleição de dirigentes autárquicos, as regiões autónomas em Portugal, as regiões administrativas em França e Itália.

Em relação ao controlo jurisdicional da Administração, mantém-se o essencial dos sistemas, ou seja, em Inglaterra surgem o que alguns autores chamam de «tribunais administrativos», embora não passem de entidades administrativas independentes, e, em França, assiste-se ao aumento de casos da Administração que são resolvidos por

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tribunais comuns.

A Administração passa a recorrer mais à gestão privada e ao Direito Privado, em vez do Administrativo (embora com respeito dos princípios fundamentais da actividade da Administração pública), mas isto não significa dar aos tribunais comuns as competências de julgar em geral os actos da Administração. Apenas que a Administração começou a regular certas situações pelo Direito não público, que, nessa medida, passam a ser julgados por tribunais comuns, se a lei processual administrativa não dispuser de outra maneira.

A criação ditos chamados «tribunais administrativos» em Inglaterra não é igual ao regime continental, isto é, a Administração inglesa continua baseada e sujeita ao controlo dos tribunais comuns e estes órgãos não passam de entidades administrativas mesmo que dotadas de independência decisória.

O fenómeno de afastamento ou aproximação dos sistemas não tem que ver com o dacto de o sistema administrativo continental ter segregado o próprio direito

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administrativo para regular o funcionamento da Administração.

As questões organizacionais sempre existiram e foram disciplinadas num e outro sistema e até normas de natureza materialmente administrativa sempre existiram em qualquer dos sistemas. Só em parte este fenómeno se acentuou com alguns domínios recentes a implicar que este sistema tivesse criado mais intensamente normas específicas para regular certas matérias novas de grande importância social (v.g., planeamento, urbanismo, ambiente), que são normas de direito administrativo, que constituem a regulação de uma dada matéria, embora não tenham de tratar da relação da Administração com os cidadãos. É direito administrativo, mas não é a essência, ou seja, não é aquilo que caracteriza a diferença de sistemas.

Esta evolução por si não traduz uma linha aproximativa dos sistemas, embora interfira nela e o propicie.

Quanto à execução das decisões administrativas, a evolução no sistema continental tem sido, muitas vezes, a sua efectivação por requerimento da

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Administração e com regras reguladoras do procedimento administrativo.

O sistema continental contém realmente princípios relacionais diferentes, desde logo o de autotutela declarativa, autotutela executiva e autotutela sancionatória. Mas há a possibilidade de se requerer perante a própria Administração, a suspensão da execução dos seus actos; mas, mesmo que a Administração não aceite, é possível, em condições reguladas na lei, que a suspensão seja decretada pelos tribunais, embora o enquadramento legal e jurisprudencial das providências cautelares e a respectiva eficácia sejam muitos díspares nos vários ordenamentos continentais.

Mas há, aqui, uma moderação do chamado privilégio da execução prévia.

De qualquer modo, a doutrina jurídica vem considerando que, quanto às garantias face à Administração, hoje elas já são, geralmente, maiores no sistema de matriz francês do que no britânico.

O nosso direito processual actual, que neste aspecto veio finalmente pôr o processo de acordo com a Constituição, no

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plano da defesa face a decisões ilegais, é disso claro exemplo.

E existe, também, uma regulação ampla de garantias de defesa perante decisões ilegais ou inoportunas, no plano procedimento impugnatório (procedimento administrativo derivados de reapreciação de actos administrativos anteriores), a exercer perante a própria Administração activa ou entidades da Administração de natureza independente, o seu regime, admitindo-o quer em termos de mérito, quer de legalidade, através de reclamação para o autor do acto quer de recurso hierárquico para outra entidade, situada na organização num plano de hierarquia (recurso hierárquico próprio) ou não (recurso hierárquico impróprio; recurso tutelar, quer em situação de relação de superintendência quer de mera tutela, quando a lei o preveja), em termos de poder assumir poderes de reapreciação (seja de mera revogação, seja mesmo de revisão da decisão anterior).

Legitimidade procedimental derivada (n.º 4.º do artigo 53.º do CPA): -Os titulares de posições legitimadas em

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HierárquicoRecurso

-Próprio

- Impróprio

-para superior hierárquico

para órgão colegial em que se integre o autor do acto administrativo para delegante/subdelegante fora da cadeia hierárquica para outra entidade sem relação hierárquica administrativa (v.g. a ministro e secretário ou sub-secretátio de estado; câmara municipal e seu presidente)

Tutelar : para entidade com poder de superintendência ou de mera tutela

procedimento originário, independentemente de terem declarado aceitar o acto administrativo antes da sua prática;ou -tendo-o eceite depois de praticado, se o fizeram com reserva do direito de reclamar ou de recorrer

Tipologia dos recursos administrativos:recursos administrativos:

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1.Competência: dos autores e superiores hierárquicos (fora da situações de competência exclusiva de subalterno) e órgãos delegantes / subdelegantes ou tutelares, se existir permissão legal expressa (art.142º)

2.Forma: legalmente exigível para o acto revogado ou mais solene, se esta tiver sido usada (art. 143º)

3.Formalidades: as previstas para o acto revogado (art. 144º)

- Quanto ao acto revogado ex-post, no caso de acto válido, excepto por atribuído efeito retroactivo, sendo tal favorável aos interessados ou, tratando-se de direitos/interesses disponíveis, houver concordância expressa deles, ou se se tratar de actos anuláveis. (art. 145º)

- Quanto a acto anteriormente existente: não produção de efeitos represtinatórios, excepto se o acto revogação ou a lei o determinar. (art. 146º)

Procedimento resolutório derivado(Revogação, alteração e substituição dos actos

administrativo)s

Regime geral da revogaçãoRegime geral da revogação

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*

De qualquer forma, os nossos tribunais ganham alguns poderes de tipo declarativo face à própria Administração. Esclareça-se que os tribunais administrativos, na maior parte dos países, já não são órgãos da Administração.

Embora independentes, não eram verdadeiros tribunais porque lhes faltava o

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estatuto de integração nos órgãos de soberania. Hoje são órgãos de soberania e têm uma particularidade especial, ou seja, só julgam casos de Direito Administrativo e, como tal, os juízes são especializados na matéria, logo podem julgar melhor.

No caso português, hoje e após a Revolução de 1974, a jurisdição administrativa deixou de estar na órbita governamental e, embora sem seguir uma solução segundo o modelo espanhol de integração na cúpula jurisdicional do STJ, ganhou o necessário estatuto pleno dos tribunais, como órgãos de soberania, justificada por razões de aplicação de um ramo especial de direito.

As suas sentenças têm que ser cumpridas sob pena de as entidades que não as cumpram poderem responder disciplinarmente ou até criminalmente.

Aqui também aparece uma evolução no sentido do sistema administrativo anglo-saxónico.

Quer um sistema, quer o outro, introduziram uma figura de apoio ao cidadão, que é o Provedor de Justiça

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(comissário parlamentar ou do Governo para a Administração).

***

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IV-DIREITO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO

Sumário de matérias:

Vejamos agora a matéria referente ao direito

do procedimento administrativo e ao conteúdo em

geral do respectivo Código (CPA), sem prejuízo de

um maior desenvolvimento na secção seguinte da

temática referente aoos princípios gerais da

actividade administrativa. Começaremos por expor

ou aprofundar algumas noções básicas, desde logo

as constantes do artigo 1.º do Código do

Procedimento Administrativo português e, depois,

iremos dando conceitos pertinentes no decorrer da

apresentação da disciplina do direito procedimental, assente no regime comum previsto neste Código e

de acordo com a ordenação aí efectivada.

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1.Noções de enquadramento

1.1. A codificação, de cuja temática, estrutura

e conteúdos aqui deixamos algumas notas, tal como

a disciplina em geral desta matéria, recebe a

designação de «procedimento administrativo», em

vez da tradicional de «processo administrativo

gracioso» (Código do procedimento Administrativo).

Trata-se, no fundo e essencialmente, de regular

juridicamente o modo de proceder da Administração

perante os particulares e daí a designação preferida

pelo legislador de Código do Procedimento

Administrativo, embora o seu conteúdo global

ultrapasse a simples matéria procedimental.

1.2 O procedimento administrativo é a

sucessão ordenada de actos e formalidades

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tendentes à formação e manifestação da vontade da

Administração Pública ou à sua execução

1.3. O processo administrativo é o conjunto de

documentos em que se traduzem os actos e

formalidades que integram o procedimento

administrativo.

2.Normação em cumprimento da Constituição da República Portuguesa

2.1.Foi em cumprimento de preceito constitucional que se elaborou o presente Código do

Procedimento Administrativo.

2.2.A Constituição de 1976 veio dispor no

artigo 268.º, n.º 3 (actual artigo 267.º, n.º 4), que «o

processamento da actividade administrativa será

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objecto de lei especial, que assegurará a

racionalização dos meios a utilizar pelos serviços e a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes dissserem respeito».

3. Razão prática da necessidade de um Código do Procedimento Administrativo

3.1. Fundamentalmente, há cinco objectivos:

a)- Disciplinar a organização e o funcionamento da Administração Pública, procurando

racionalizar a actividade dos serviços; o aumento

constante das tarefas que à Administração Pública

portuguesa cabe realizar nos mais diversos sectores

da vida colectiva bem como a necessidade de

reforçar a eficiência do seu agir e de garantir a

participação dos cidadãos nas decisões que lhes

digam respeito, têm vindo a fazer sentir cada vez

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mais a necessidade de elaboração de uma disciplina geral do procedimento administrativo.

b)- Regular a formação da vontade da Administração, por forma a que sejam tomadas

decisões justas, legais, úteis e oportunas;

c)- Assegurar a informação dos interessados e a sua participação na formação das decisões que

lhes digam directamente respeito;

d)- Salvaguardar em geral a transparência da acção administrativa e o respeito pelos direitos e interesses legítimos dos cidadãos; uma lei do

procedimento administrativo havia sido prometida por

sucessivos governos desde o já longínquo ano de

1962, mas nem a Administração conhecia com rigor os seus deveres para com os particulares no decurso dos procedimentos administrativos por ela levados a

cabo, nem os cidadãos sabiam com clareza quais os seus direitos perante a Administração Pública.

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e)- Evitar a burocratização e aproximar os serviços públicos dos cidadãos.

3.2. Com ele, quer o cidadão comum, quer os

órgãos e funcionários da Administração, passam a

dispor de um diploma onde se condensa o que de essencial têm de saber para pautar a sua conduta

por forma correcta e para conhecerem os seus

direitos e deveres uns para com os outros.

4. Fontes materiais do CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO

4.1. Na elaboração deste Código tiveram-se

em conta os ensinamentos do direito comparado e a

larga experiência que já se pode colher da aplicação

de leis de procedimento administrativo em países

com sistemas político-administrativos tão diferentes

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como a Áustria, os Estados Unidos da América, a

Espanha, a Jugoslávia e a Polónia, para apenas citar

alguns dos mais importantes sob este ponto de vista.

Particular atenção mereceu a Lei do Procedimento

Administrativo da República Federal da Alemanha,

publicada em 1976, e a riquíssima elaboração

doutrinal a que deu lugar. Foi, porém, na doutrina e

na jurisprudência portuguesas que se recolheram, de

maneira decisiva, muitas das soluções adoptadas,

devendo igualmente mencionar-se os projectos

anteriormente elaborados, que serviram como

trabalhos preparatórios indispensáveis.

4.2. A primeira versão do projecto, com data

de 1980, foi entretanto submetida a ampla discussão

pública, em resultado da qual foi elaborada em 1982

uma segunda versão. Finalmente em 1987 o

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Governo incumbiu um grupo de especialistas de

preparar uma terceira versão.

5. Entidades a quem se aplica o Código do Procedimento Administrativo

5.1.A aplicação das disposições do Código do

Procedimento Administrativo abrange todos os órgãos da Administração Pública que estabeleçam relações com os particulares, no desempenho da sua

actividade de gestão pública, regulando

expressamente a actuação intersubjectiva de gestão

pública da Administração (artigo 2.º),

5.2. E os princípios gerais da actuação

administrativa, constitucionalmente consagrados e

contidos no Código, são ainda aplicáveis a toda e qualquer actividade da Administração Pública,

505

Page 507: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

mesmo que meramente técnica ou de gestão privada (artigo 2.º, n.º 4), ou seja, a restante actividade

administrativa, sem ser directamente regulada, não deixa de ficar subordinada aos princípios gerais da

acção administrativa (aplicação de direito privado

administrativo).

5.3. E prevê-se, ainda, a possibilidade de os

preceitos deste Código serem mandados aplicar à actuação dos órgãos das instituições particulares de interesse público disciplinas pelos DL n.º460/77, de

7 de Novembro, DL n.º119/83, de 25 de Fevereiro e

artigo 416.º do Código Administrativo (artigo 2.º, n.º

5), bem como a procedimentos especiais, sempre

que essa aplicação não envolva diminuição de

garantias dos particulares (artigo 2.º, n.º 6).

6. Estrutura das matérias reguladas

506

Page 508: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

6.1. Estrutura analítica do CÓDIGO DO

PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO (quatro partes): Parte I - Princípios gerais; Parte II - Dos

sujeitos; Parte III - Do procedimento administrativo;

Parte IV - Da actividade administrativa.

6.2.Parte I – noções, entidades e princípios da actuação administrativa

a)-Disposições preliminares (artigos 1.º e 2.º):

Noção de processo e de noção de procedimento

(art.º1.º); Entidades e matérias a que se aplica o

CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO

(art.º2.º).

b)--Princípios gerais da acção administrativa (artigos 3.º a 12.º; e garantias de imparcialidade -causas e aplicação do princípio da imparcialidade:

art.º 44 a 51; impedimentos: 44 e suspeição: 48.º).

507

Page 509: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

Trata-se de princípios gerais cuja existência

decorre, expressa ou implicitamente, dos preceitos

constitucionais (máxime, artigos 266.º e ss) e que

respeitam à organização e ao funcionamento de uma

Administração Pública típica de um moderno Estado

de direito: princípio da legalidade (artigo 3.º),

princípios da igualdade e da proporcionalidade

(artigo 5.º) princípios da justiça e da imparcialidade

(artigo 6.º), princípio da colaboração da

Administração com os particulares (artigo 7.º),

princípio da participação (artigo 8.º), princípio da

decisão (artigo 9.º), princípio da prossecução do

interesse público e da protecção dos direitos e

interesses do cidadão (artigo 4.º: A razão de ser da

Administração pública e do direito administrativo

aparece expressamente afirmada na Constituição da

República Portuguesa, que diz que a Administração

Pública visa a prossecução do interesse público, no

508

Page 510: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

respeito pelos direitos e interesses legalmente

protegidos dos cidadãos (nº 1 do artigo 266.º).

É essa prossecução do interesse público, das

necessidades colectivas, que justifica a existência da Administração Pública, enquanto que o respeito

pelos direitos e interesses legítimos dos cidadãos é

exigível pela natureza do Estado de Direito

democrático, funcionando simultaneamente como

fundamento e limite da actuação da Administração. É

isso que tudo isto que dá conteúdo, expressão

concreta às normas de Direito Administrativo. Essa

prossecução e estes direitos são referentes em

permanente tensão dialéctica proporcionada à

medida dos interesses gerais a satisfazer, o que

permite dentro de certos limites o sacrifício dos

interesses particulares em nome dos interesses

colectivos. Portanto, a necessidade de dar a

supremacia ao interesse geral com a garantia do

509

Page 511: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

respeito adequado dos direitos dos particulares

marca a essência, num plano escatológico e ôntico,

do Direito Administrativo), princípio da

desburocratização e da eficiência (artigo 10.º),

princípio da gratuitidade (artigo 11.º), princípio do

acesso à justiça (artigo 12.º)

6.3.O princípio democrático exige uma

Administração Pública democrática, ou seja,

enformada pelas características de subordinação ao poder político-legislativo, aberta ao pluralismo, funcionando com objectividade, tratando todos de maneira pré-determinada e igual (princípios da legalidade, imparcialidade, igualdade), publicidade e transparência.

6.4.A Administração Pública deve respeitar

sempre os princípios gerais de actuação: não só

510

Page 512: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

quando exerce poderes de autoridade («em gestão pública», com aplicação de direito administrativo: ao

conceder uma licença ou nomear um funcionário),

mas também quando age «em gestão privada»:

como se fosse uma entidade privada: ao comprar um

automóvel ou alugar uma máquina) ou quando

pratica simples actos ou operações técnicos ou materiais (ao construir uma estrada ou tratar um

doente num hospital público).

6.5.Os mais importantes desses princípios gerais são:

a)-Princípio da Legalidade: a Administração

Pública deve obedecer à «Lei e ao Direito»

(artº3º), incluindo aqui todo o bloco da

legalidade, em especial: Direito Internacional

(DIP: costume e tratados, actos decisórios do

511

Page 513: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

Conselho de Segurança da ONU e de outras

organização dotadas de poderes normativos e

decisórios concretos, declarações unilaterais,

etc.) e Direito Comunitário (DUE:

Regulamentos, Directivas, Decisões, etc.),

Constituição, l Leis de valor reforçado e Leis

ordinárias simples da Assembleia da

República, os Decretos-Leis do Governo e

Decretos Legislativos Regionais das Regiões

Autónomas, princípios gerais de Direito”

(como o do não enriquecimento sem causa),

regulamentos administrativos (decretos

regulamentares do Governo; decretos

regulamentares regionais; portarias;

despachos normativos; regulamentos dos

governos civis; posturas municipais e outras

deliberações de órgãos administrativos), etc.

b)-Princípio da Igualdade (artº 5º, nº 1): é-lhe

512

Page 514: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

vedado favorecer ou desfavorecer alguém por razões

de ascendência, sexo, raça, língua, território de

origem, religião, convicções políticas ou ideológicas,

instrução, situação económica ou condição social.

Este princípio não impõe um igualdade de tratamento

absoluta. A igualdade justifica-se em relação a

situações equiparáveis; se estão em causa situações

objectivamente diferentes, elas devem ser tratadas

por forma adequadamente diversa.

c)-Princípio da Proporcionalidade: as decisões

administrativas que atinjam direitos ou interesses

legítimos dos particulares têm de ser adequadas e

proporcionadas aos seus objectivos, não causando

mais prejuízos àqueles do que os necessários para

alcançar estas finalidades e respeitando um

equilíbrio na justa medida entre os meios utilizados e

os fins a alcançar através deles (artº 5º, nº 2).

513

Page 515: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

d)-Princípio da Justiça: a Administração

Pública deve actuar por forma ajustada à natureza e

circunstâncias de cada caso ou situação (artº 6º).

e)-Princípio da Imparcialidade: na sua acção,

os órgãos da Administração Pública devem ser

isentos, não se deixando influenciar por razões

subjectivas ou pessoais, que os levem a favorecer ou

desfavorecer indevidamente certos particulares (artº

6º).

f)-Princípio da Boa-fé: a Administração Pública

e os particulares devem, nas suas relações, agir com

boa-fé, respeitando, em especial, a confiança que

possa ter sido criada pela sua actuação anterior (artº

6º-A).

g)-Princípio da Colaboração da Administração com os Particulares: a Administração Pública deve

colaborar estreitamente com os particulares,

prestando-lhes, em especial, as informações e

514

Page 516: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

esclarecimentos de que necessitem (artº 7º).

Desenvolvendo este princípio, o Decreto-Lei nº

129/91, de 2 de Abril (artº 2º), dispõe que, nas

situações em que sejam possíveis procedimentos

diferentes para conseguir um mesmo resultado, a

Administração Pública deve adoptar o que seja mais

favorável ao particular, em especial para a obtenção

de documentos, comunicação de decisões ou

transmissão de informações.

h)-Princípio da Participação: cabe à

Administração Pública fazer com que os particulares,

e as associações que defendam os seus interesses,

intervenham na preparação das suas decisões. Este

princípio concretiza-se, especialmente, através da

chamada audiência dos particulares, no decurso do

procedimento administrativo (artº 8º).

i)-Princípio da Decisão: não é legítimo, aos

órgãos da Administração Pública, manterem-se pura

515

Page 517: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

e simplesmente silenciosos perante as questões que

lhes sejam postas pelos particulares. Eles têm, pelo

contrário, o dever de decidir sobre quaisquer

assuntos que lhes sejam apresentados, quer se trate

de matérias que digam directamente respeito aos

que se lhes dirigem, quer de petições, queixas ou

reclamações em defesa da Constituição, das leis ou

do interesse geral (artº 9º). Este dever só deixa de

existir se a entidade competente já se tiver

pronunciado há menos de dois anos sobre igual

pedido, apresentado pelo mesmo particular com

idênticos fundamentos.

j)-Princípio da Desburocratização e da Eficiência: a Administração Pública deve aproximar

os seus serviços da população, agindo por forma

desburocratizada, para facilitar a rapidez, economia e

eficiência da sua acção (artº 10º). Uma das

consequências deste princípio é a de que a

516

Page 518: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

Administração Pública não pode exigir formulários ou

formalidades que não sejam expressamente

referidos em lei ou regulamento (Decreto-Lei nº

129/91, artº 3º).

l)-Princípio da Gratuitidade: salvo lei especial

em contrário, o procedimento administrativo é

gratuito (artº 11º). Se alguma lei especial impuser o

pagamento de qualquer taxa ou despesa efectuada

pela Administração, o particular que comprove falta

de meios económicos será destas isento, total ou

parcialmente, conforme os casos.

6.6.Princípios específicos do procedimento administrativo

Especificamente, quanto às fases

procedimentais, elas obedecem a princípios

estruturantes de que se destaca, desde já, os

517

Page 519: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

seguintes: o princípio do requerimento escrito e da

unicidade do pedido que não seja alternativo nem

supletivo; o da obrigatoriedade de suprimento

oficioso de deficiências do mesmo e da instrução

inicial ou em alternativa da concessão da

possibilidade do interessado as suprir num dado

prazo; o da não vinculatividade da solicitação dos

pareceres, quando meramente exigidos (carácter

obrigatório e não vinculativo dos pareceres

legalmente previstos: artigo 98.º; sem prejuízo dos

regimes específicos, designadamente no campo do

direito do planeamento territorial, urbanismo e

ambiente) e princípio da prova; o princípio do

inquisitório ou oficialidade (artigos 87.º, 56.º) e da

verdade material (n.º2 do artigo 91.º, 60.º), da não

preclusão das provas (derivado do da verdade

material: artigo 91.º), da liberdade de apreciação das

provas, da admissibilidade da produção antecipada

518

Page 520: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

de prova, em situações de risco da sua perda (artigo

93.º), ónus da prova do alegante (artigo 88.º) e dever

comprovação pela AP (artigo 87.º), colaboração

intersubjectiva (artigo 7.º, com a AP a dever

colaborar com os particulares, ouvindo-os, etc., e os

particulares a deverem ajudar a esclarecer os

factos).

Parte II - Sujeitos das relações administrativas no procedimento

6.3.1.Administração Pública em sentido subjectivo ou orgânico, referida aos meios humanos, técnicos e financeiros, com o seu direito orgânico e a teoria geral da organização administrativa Na

concepção subjectiva ou concepção orgânica, a

Administração Pública é o conjunto de órgãos, serviços e agentes das pessoas colectivas públicas e

519

Page 521: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

outras entidades particulares que desempenham a Função Administrativa. Ou seja, é a organização ao

serviço da Função Administrativa do estado-

Comunidade dos cidadãos. Trata-se de entidades

públicas integradas no poder executivo e outras que

exercem o poder administrativo,isto é, entidades

públicas que não pertencem ao poder legislativo e

judicial. Os serviços legislativos e os serviços

judiciais não fazem parte da AP, embora em geral se

lhes aplique também o Direito Administrativo, por

remissão legislativa.

6.3.2.Administração em sentido objectivo ou materal refere-se às tarefas que têm a ver com as necessidades colectivas prosseguidas pelas

estruturas que organizam aqueles meios, com o seu

direito administrativo objectivo e a teoria geral da actividade administrativa. Na concepção objectiva ou

520

Page 522: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

concepção material, a Administração Pública

caracteriza-se por traduzir o desenvolvimento de

uma actividade de tipo administrativo, sendo certo

que, por um lado, não é apenas o poder executivo

que executa as normas e, por outro, o próprio poder

executivo exerce actividades que não são

executivas.

A Administração Pública em sentido material ou objectivo é o conjunto de actividades consistentes no exercício de tarefas de aplicação da lei, promoção de desenvolvimento económico-social e em geral de satisfação permanente das necessidades colectivas, enquadradas por normas legitimadoras e balizadoras de intervenção pública em razão do interesse colectivo, sob a direcção, orientação ou fiscalização do poder político e sujeitos ao controlo de entidades independentes, administrativas, e em última instância jurisdicionais.

521

Page 523: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

6.3.3.Administração Pública em sentido formal parte do tratamento desta e dos seus actos pelo

Direito a que está submetida.

6.3.4. A Administração pública é o sistema de órgãos, serviços e agentes, integrados em pessoas colectivas, sejam de de direito público ou privado, que desempenham tarefas da Função Administrativa do Estado, designadamente de promoção de desenvolvimento económico-social e em geral de todas que traduzam a satisfação permanente das necessidades colectivas, enquadradas por normas legitimadoras e balizadoras de intervenção pública em razão do interesse colectivo, sob a direcção, orientação ou fiscalização do poder político e sujeitos ao controlo do parlamento e de entidades

522

Page 524: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

administrativas independentes e, em última instância, dos tribunais.

6.5. Tendo presente o seu grau de

dependência em relação ao Estado e ao Governo,

temos a Administração dirigida (Administração directa do Estado: Lei nº 4/2004, de 15 de Janeiro),

Administração orientada (Administração Indirecta, superintendida: Lei n.º 3/2004, de 15 de Janeiro:

institutos públicos; e Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de

Dezembro: empresas públicas do Estado),

Administração tutelada (Administração autónoma) e

Administração independente (Entidades Administrativas Independentes, por vezes também

legalmente designadas como Entidades Públicas Independentes, personalizadas sob a forma de

«institutos públicos», ou não como meros órgãos

sem personalidade).

523

Page 525: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

6.6.O princípio da desconcentração administrativa (de competências) é diferente da

partilha de atribuições por pessoas colectivas

distintas, que se designa por descentralização de poderes. Na desconcentração, estamos em face de

um princípio que é realizado quando, numa pessoa

colectiva ou ministério, não há apenas um órgão a

tomar as decisões realizadoras das respectivas

atribuições, mas as diferentes tarefas a

desempenhar são objecto de uma decomposição

material, dando esta partilha origem a uma

distribuição dos poderes funcionais (competências),

em princípio, efectivada em linha vertical, entre

vários escalões orgânicos e, portanto, da hierarquia

administrativa. A tipologia da desconcentração pode

ser concebida em função da dispersão territorial

(central e periférica), em função da relação inter-

524

Page 526: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

orgânica (absoluta: criando órgãos independentes,

isto é, com quebra da dependência hierárquica; e

relativa: mantendo a subordinação hierárquica); em

função da forma de concretização da afectação dos

poderes (originária: resulta da lei; e derivada: resulta

de delegação de poderes, isto é, de uma decisão

concreta do titular legal dos poderes, em termos

facultativos, mas legalmente enquadrada).

6.7.A Administração directa do Estado é desconcentrada, ou seja, constituída pelos «serviços centrais e periféricos», que, pela natureza das suas

competências e funções, devam estar sujeitos ao

poder de direcção do respectivo membro do

Governo, designadamente aqueles que têm que ver

com atribuições referentes ao exercício de poderes de soberania, autoridade e representação política do Estado ou o estudo e concepção, coordenação,

525

Page 527: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

apoio e controlo ou fiscalização de outros serviços administrativos, incluindo a Administração militar e

das forças militarizadas e os serviços do Sistema de

Informações da República Portuguesa, com as

adaptações constantes das suas leis orgânicas

(artigo 2.º).

6.8.A Administração directa, composta por

órgãos e serviços, é vertical, hierarquizada, que

assenta numa desconcentração legal piramidal, fundada na organização hierárquica da

Administração. A hierarquia administrativa é a

estruturação escalonada, vertical, com a criação de

vínculo jurídico relacional, existente entre órgãos

singulares e agentes de uma pessoa colectiva

pública ou ministério, em que o superior detém

poderes de autoridade, especialmente o poder de dar

ordens e orientações nos termos legais e em matéria

526

Page 528: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

de serviço e de controlo dos actos e dos agentes

subalternos, sujeitos ao dever de obediência.

6.9.Este modelo de organização vertical

caracteriza-se pela aplicação de vários princípios:

1.Princípio do relacionamento juridicamente vinculado por um encadeamento funcionalmente

subordinante; 2.Princípio do escalonamento relacional competencial entre órgãos dentro de uma

mesma pessoa colectiva pública (hierarquia externa)

ou entre agentes (órgão e agentes) de um mesmo

serviço dessa pessoa colectiva ou ministério

(hierarquia interna, v.g., dentro de uma direcção-

geral); 3.Princípio da comunhão de atribuições a

prosseguir pelos diferentes elos da cadeia (relação

interorgânica e não inter-pessoal);

527

Page 529: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

6.10.princípio do respeito pela legalidade no exercício do poder de direcção (sob pena de,

fazendo o subalterno menção expressa de que

considera ilegal o comando ou instrução), inexistir o dever de obediência (casos de comandos em matéria

que não é de serviço, ou sendo, imponham a prática

de actos nulos ou criminosos ou provenham de actos

nulos) ou apenas existir um dever de obediência diferida (com aplicação do regime do direito de representação (em reclamação, exigência prévia de

transmissão ou confirmação por escrito) perante

actos anuláveis, mesmo que oriundos de órgão

competente e o vício não seja manifesto, o que

permite adiar a execução daqueles actos (desde que

o comando não seja acompanhado de instrução para

cumprimento imediato), até à resposta à reclamação

efectivada e pedido de transcrição em escrito da

ordem ou ao limite temporal em que o atraso no seu

528

Page 530: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

cumprimento pode causar prejuízo ao interesse

público), ou de obediência condicionada (com

reclamação enviada imediatamente ao recebimento e

cumprimento da ordem, dada com indicação de

cumprimento imediato, ou comunicação ao imediato

superior hierárquico, antes da execução da ordem,

quando, esperando pela confirmação ou não,

entenda que a ordem a não ser cumprida pode

causar prejuízo ao interesse público (artigo 10.º do

estatuto Disciplinar dos Funcionários Públicos);

5.Princípio da afectação de poderes de autoridade funcional, compreendendo o poder de direcção (dar

ordens: imposição de condutas individuais e

concretas, e emitir instruções, no respeito pela

legalidade e em matéria de serviço (sendo as

instruções transmitidas por escrito e a todos os

subalternos, designadas por circulares), instituindo

normas funcionais sem relevância externa aos

529

Page 531: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

serviços; o poder de supervisão (faculdade de

revogar ou suspender actos praticados pelo

subalterno) e o poder de decidir recursos (em

procedimentos derivados, reapreciadores das

decisões tomadas pelos subalternos, revogando-as

ou confirmando-as, em recurso hierárquico; o poder de inspecção (fiscalização do funcionamento dos

serviços e comportamento dos subalternos); poder

de instaurar inquéritos e processos disciplinares e o

poder disciplinar (isto é, de punir as infracções nos

termos do respectivo Estatuto constante do DL

n.º24/84, de 16.1) e usando o poder de dirimir conflitos de competências (declaração sobre a

titularidade de poderes funcionais numa dada

matéria, em caso de conflito positivo ou negativo de

competências, por iniciativa própria, de subalterno

implicado ou do interessado) e, em certas situações,

o poder de substituição [faculdade de exercício de

530

Page 532: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

competências conferidas por lei ou delegação ao

subalterno; as situações possíveis são: substituição

sistemática ou «arbitrária» (em situações de

competência simultânea), substituição casuística

(avocação), substituição por omissão (em face da

abstenção de prática de actos legalmente

obrigatórios substituição ou considerados

necessários e urgentes), substituição revogatória

(total ou parcial; nas situações em que exerça o

poder de revogar o acto do subalterno); a regra geral

nas relações externas é a não substituição

sistemática e a regra geral nas relações internas é a

inexistência de competência simultânea]

6.11.No que respeita ao princípio da descentralização, ele implica os conceitos de

superintendência das Administrações indirectas e

tutela das entidades da Administração autónoma.

531

Page 533: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

6.12.A Administração indirecta do Estado

(institutos públicos: serviços personalizados do

Estado, fundações públicas e estabelecimentos

públicos; e empresas públicas): quanto ao direito institucional, importa enquadrar a sua tríplice

tipologia: institutos dependentes (de regime geral,

sujeitos ao regime geral de superintendência e

tutela), institutos para-autonómicos (v.g., as

universidades públicas) e institutos independentes (as entidades administrativas independentes, quando

sejam personalizadas, cuja existência sem qualquer

intervenção alheia, com mera sujeição ao controlo

jurisdicional está hoje constitucionalizada). Ou seja,

os institutos de regime comum (que são serviços

personalizados e fundos personalizados: fundações

públicas) e os institutos de regime especial, quer os

que, sendo embora ainda de Administração indirecta,

532

Page 534: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

têm uma natureza fortemente autonómica (por

imposição constitucional, as universidades) e os

«institutos públicos» independentes. E analisar a

distinção entre instituto e o estabelecimento.

Referindo em geral os regimes jurídicos aplicáveis. A

Administração institucional, que integra a

Administração indirecta do Estado (como das

Regiões Autónomas192: artigo 2.º), está hoje

enquadrada pela Lei n.º 3/2004, de 15 de Janeiro193,

que estabelece os princípios e as normas

reguladoras da organização e funcionamento dos

institutos públicos, de aplicação imperativa,

prevalecendo sobre quaisquer normas especiais

anteriormente em vigor, a menos que tal esteja

expressamente ressalvado (artigo1.º). No plano

conceptual, os institutos públicos definem-se como 192 Este regime geral é aplicável aos institutos públicos das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, com as necessárias adaptações estabelecidas em decreto legislativo regional (parte final do n.º2 do artigo 2.º).193 Lei-quadro dos institutos públicos, D.R. n.º12 Série I-A, p. 301-311.

533

Page 535: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

pessoas colectivas de direito público, dotadas de

órgãos e património próprio e, em regra,

preenchendo os requisitos caracterizadores da

autonomia administrativa e financeira194. Os institutos

públicos, que só podem prosseguir os fins

específicos que justificaram a sua criação, são

criados para a realização de certas atribuições,

especialmente de produção de bens e prestação de

serviços, que não se mostrem adequadas a uma

gestão subordinada à direcção do governo, face à

sua especificidade técnica, estando interdita a sua

existência quando as actividades a desenvolver

devam ser, nos termos constitucionais,

desempenhadas por organismos da administração

directa do Estado, ou se trate de serviços de estudo

e concepção ou serviços de coordenação, apoio e

194 Só em casos excepcionais, devidamente fundamentados, podem existir institutos públicos sem autonomia financeira (n.º3 do artigo 4.º).

534

Page 536: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

controlo de outros serviços administrativos (artigo

8.º).

6.13.A tutela administrativa é uma actividade

administrativa visando garantir a harmonização dos

interesses de uma entidade pública com os de outra

entidade com uma gestão autónoma (mas que

desenvolve certas tarefas de interesse colectivo:

função administrativa), e por isso insusceptível de

receber ordens ou mesmo orientações suas.

É uma actividade traduzida apenas num poder

de intervenção externa em relação à decisão da

entidade tutelada. Ou seja: intervenção alheia no

plano orgânico (diferente dos controlos efectivados

dentro da pessoa colectiva por órgãos desta -

controlos internos- ou pelo substracto humano da

mesma - referendo) e alheia ao procedimento de

elaboração da decisão administrativa em apreço,

535

Page 537: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

apesar de excepcionalmente poder ser condição de

validade (tutela de aprovação prévia do acto da

entidade tutelada). Mesmo que se trate da actuação

posterior de um procedimento não originário,

referente à apreciação de uma decisão administrativa

anterior (recurso administrativo dentro da hierarquia

administrativa- recurso hierárquico próprio ou sem

hierarquia administrativa - recurso hierárquico

impróprio), o controlo exercido derivado de uma

relação inter-orgânica ou de uma relação pessoal

colectiva de superintendência, ultrapassa a relação

administrativa puramente tutelar, sendo englobado

instrumentalmente no poder mais amplo de direcção

ou de superintendência)

Portanto, trata-se da intervenção de uma

pessoa colectiva pública na gestão de outra,

independentemente da existência ou não de

qualquer relação hierárquica ou de superintendência,

536

Page 538: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

situações em que a tutela naturalmente também

existe como direito interorgânico instrumental da

verificação do cumprimento das ordens e orientações

- poder de direcção próprio da superioridade

hierárquica- ou das orientações (poder de

superintendência), em que aqueles poderes se

traduzem, mas visando apenas garantir o respeito

pelo bloco da legalidade (tutela da legalidade) ou,

quando o legislador ordinário assim o entender (na

Administração associativa, mas não na

Administração autárquica, em que tal possibilidade

está interdita pela CRP, embora o legislador ordinário

possa aqui ultrapassar a simples tutela inspectiva para que tende o ordenamento jurídico português

actual), também da actuação que a entidade

interventora tenha como a mais correcta dentro da

legalidade (tutela da legalidade e tutela do mérito).

537

Page 539: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

Dito isto, conclui-se que os requisitos da existência de uma relação tutelar são: - a existência

de duas entidades juridicamente distintas, em

princípio duas pessoas colectivas; - uma das quais, a

tutelante, de direito público, prosseguindo a função

administrativa, isto é, sem fins lucrativos (pessoa

pública não empresarial), podendo a entidade

tutelada ser de direito privado (entidade de direito

privado e regime jurídico misto, ou seja, empresa

privada e interesse colectivo ou colectividade de

utilidade pública), embora independentemente da

propriedade e do direito que enquadrou a sua

constituição, tenham sempre que envolver o

exercício de actividades referentes à função

administrativa.

E o conteúdo desta relação tutelar refere-se

ao direito de intervenção na gestão da entidade

tutelada: - ou para verificar da regularidade legal com

538

Page 540: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

que actua, -ou para levar a uma actuação que

corresponda à escolha das soluções gestionárias

tidas como melhores em termos do interesse público

comum a prosseguir em cada caso, sempre que ele

não tenha ainda sofrido uma conformação normativa

(caso em que tudo se resolve através do controlo da

legalidade) ou tenha merecido um enquadramento

normativo em termos de afectação exclusiva como

atribuição da entidade tutelada, em face da

consideração por parte do legislador da

predominância do interesse desta.

Em termos de tipologia, a intervenção traduz-

se por um poder de fiscalização da organização,

funcionamento e actividade (tutela inspectiva, por

vezes através de serviços de controlo existentes para

o efeito, v.g. a Inspecção-Geral da Administração

Local, na tutela estadual), no poder de autorizar um

acto que não pode ser produzido sem tal

539

Page 541: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

autorização, condição da sua validade (tutela integrativa a priori), aprovar um acto posteriormente

à sua produção, em que a sua execução fica

suspensa da posição da entidade tutelar, condição

da sua eficácia, mas não da sua validade (tutela integrativa a posteriori, por conformação - declaração

de que o aprovou, obrigando a entidade tutelada a

aguardar a posição; ou por veto - necessidade de

manifestação da posição de não aprovação, para

evitar a execução, a poder efectivar-se sem a

declaração de oposição no prazo legalmente fixado),

poder de extinguir o acto da entidade tutelada -

revogação (tutela revogatória), prática de actos

legalmente devidos pela entidade tutelada, por conta

dela, suprindo as omissões verificadas (tutela substitutiva).

Qualquer destas formas de tutela tem de

resultar expressamente da lei e só pode ser exercida

540

Page 542: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

nos termos por esta balizados, tendo a entidade

tutelada, por sua vez, direito à «tutela jurisdicional» contra actos da tutela administrativa ilegais, através

da sua impugnação contenciosa.

6.14.A Administração autónoma do Estado

pode ser associativa ou territorial infra-estatal. A

administração associativa não territorial: associações públicas de entidades públicas (compostas por

entidades da mesma natureza: associações de

municípios ou associações/uniões de freguesias, ou

por entidades de natureza diferente); associações públicas de entidades privadas -Cruz Vermelha

Portuguesa, Casa do Douro, Ordens, Câmaras e

outras associações de habilitação profissional ou

administração corporativa; e associações públicas de composição mista (centros de formação profissional,

centro tecnológicos). A administração associativa

541

Page 543: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

territorial: administração associativa intermunicipal

Leis 10 e 11/2003, de 18.5 (tipologia das

associações intermunicipais: grandes áreas

metropolitanas, comunidades urbanas, comunidades

intermunicipais e associações de municípios de fins

específicos) e autarquias locais: municípios e

freguesias Lei n.º169/99 sobre atribuições e

competências autárquicas e Lei de transferências de

atribuições do Estado para as Autarquias, a Lei

n.º159/99). Quanto ao controlo estadual dos actos de gestão autárquica, temos a tutela governamental

sobre as autarquias concebida como uma tutela

inspectiva da legalidade, nela desempenhando papel

essencial a Inspecção-Geral da Administração Local

e os Governadores Civis. E os tribunais: o Tribunal

de Contas, em matéria financeira e os outros nas

outras matérias. Além disso, a consagração geral do

direito de livre acesso aos documentos detidos pela

542

Page 544: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

Administração autárquica (LADA) serve também ao

objectivo da fiscalização (pública) da sua actuação.

6.15.Órgãos administrativos (artigos 14.º a

51.º)

6.15.1. O Código do Procedimento

Administrativo regula o funcionamento dos órgãos colegiais (artigos 14.º e ss); -regras referentes à

competência dos órgãos administrativos (artigos 29.º

a 34.º).

6.15.2. Regime de funcionamento dos órgãos administrativos: quórum de funcionamento e

deliberação: a regra geral é a da maioria absoluta dos votos dos membros presentes (art.º25, 1: mais

de metade), desde que lei não exija maioria

qualificada (2/3; ¾; 4/5) ou não permita maioria

relativa (maior votação obtida, sem contar

abstenções ou votos brancos). Havendo apenas

543

Page 545: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

maioria relativa na primeira votação, há logo

repetição da votação. E, no caso de nesta não haver

maioria absoluta (mesmo contando o voto de

qualidade do presidente), adia-se a votação para

reunião seguinte; e, no caso de manutenção de falta

de maioria absoluta, basta maioria relativa (art. 25º).

Em caso votação pública: se mesmo com voto

de qualidade do presidente; se mantiver empate: há

rejeição da proposta (art. 26º). Se em votação secreta, faz-se nova votação, e, mantendo-se

empate, na reunião seguinte, então passa-se a

votação nominal; e, se continua o empate, há

rejeição da proposta.

6.15.3. Proibição de abstenção de qualquer

membro em órgãos consultivos ou em matéria

consultiva

As deliberações só ganham eficácia (só são

544

Page 546: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

aplicáveis) com a aprovação da acta no final da

reunião ou posteriormente (ou de minuta avulsa,

mesmo parcial sobre um dos assuntos, no final da

reunião, havendo urgência) e assinaturas

certificadoras do presidente e do secretário (art.º27,

4º).

6.16. Regime da competência: competência territorial: art.º32.º. n.º 3 do 30.º; competência para a resolução de conflitos

6.17. Delegação de poderes 6.17.1. Delegação de poderes: artigos 35.º a

40.º; substituição: artigo 41.º.

6.17.2. No caso do Governo: o regime de

delegação encontra-se no Decreto-Lei contendo a

chamada Lei Orgânica do Governo.

545

Page 547: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

6.17.3.Quanto à desconcentração derivada da

permissão legal e acto de vontade do titular das

competências, a delegação de poderes, ela é matéria

hoje enquadrada nos artigos 35.º a 40.º e o regime

de suplência, no artigo 41.º do CÓDIGO DO

PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. A noção e

exigência de habilitação específica (ou genérica, em

matérias de gestão ordinária e para o «imediato

inferior hierárquico, adjunto ou substituto» estão

consignadas no artigo 35.º; as regras sobre a

subdelegação, no artigo 36.º; requisitos do acto de

delegação, no 37.º; exigência de menção da

qualidade em que age, no 38.º; os poderes do

delegante e subdelegante, no 39.º, a extinção da

delegação, no 40.º.

6.17.4.A noção de delegação adoptada

corresponde à expressa pela maioria da nossa

doutrina: transmissão do exercício de parte de

546

Page 548: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

competências, desde que tal recaia em matérias em

que a lei o habilite para tal ou, então, para meros

actos de administração ordinária, nos agentes

previstos no artigo 35.º.Quanto aos requisitos, por

parte do delegante: habilitação legal, acto

administrativo concretizador, especificação das competências em delegação, publicação como

condição de eficácia (Diário da República no caso do

estado, Boletim oficial, no caso das regiões, locais de

estilo ou boletins autárquicos, se existirem). Da parte

do delegado ou subdelegado: menção da qualidade

em que age e, sendo no exercício de mero apoio ao

dirigente de que é mero suplente, respeito pelos

limitados poderes de administração ordinária nas

matérias em causa. No que diz respeito aos poderes do delegante e subdelegante, eles traduzem-se no

de dar ordens e orientações, se a delegação ocorre

na cadeia hierárquica ou só orientações, no caso

547

Page 549: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

1.Noção: existe quando mais do que um órgão ou de um tribunal de jurisdição diferente (administrativo e judicial) se arroga a competência para decidir (c. c. positivo) ou quando nenhum órgão ou tribunal se considera incumbido de decidir (c.c. negativo): art. 42º.

2. Conflitos de jurisdição: Resolução pelo Tribunal de Conflitos

4. Conflitos de competência: (n.º 3 do art. 42º): órgão superior de menor categoria hierárquica com poderes de supervisão.

- entre órgãos de diferentes pessoas colectivas: Tribunais Administrativos;

- entre órgãos de ministérios diferentes: Primeiro-Ministro;

- entre órgãos do mesmo ministério ou entre estes e pessoa colectiva da Administração

- indirecta: Ministro com poder direcção ou superintendência.

3.Conflitos de atribuições: (n.º2 do art. 42º)

contrário, e em geral de avocar ou revogar total ou

parcialmente o acto de transferência do exercício dos

poderes em causa. A delegação extingue-se por

caducidade (esgotamento dos efeitos, mudança de

um dos pólos relacionais em face da base de

confiança mútua que a justifica: do intuitus personae)

ou revogação.

6.17.Conflitos de jurisdição, de atribuições e de competências (artigos 42.º e 43.º)

548

Page 550: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

6.18. Uma norma que refira Governo significa

que é competente o Ministro em razão da matéria,

sem prejuízo da aplicação da alínea g) do n.º1 do

art.º 200.º da CRP

7. Parte III - Procedimento Administrativo

549

Page 551: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

7.1. Os princípios gerais do procedimento

(artigos 54.º a 60.º).

7.2. Regime dos interessados no

procedimento (artigos 52.º e 53.º).

7.3. Estabelece-se o direito de intervenção dos particulares no procedimento administrativo (artigo 52.º).

7.4. Atribui-se legitimidade para iniciar o

procedimento administrativo ou para intervir nele aos

titulares de direitos ou interesses legalmente

protegidos e às associações que tenham por fim a

defesa desses interesses, bem como aos titulares de

interesses difusos, que são os que têm por objecto

bens fundamentais, referidos na CRP, como a saúde

pública, a habitação, a educação, o património

cultural e o ambiente e a qualidade de vida [artigo

550

Page 552: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

53.º, n.º 2, alínea a)]e às associações dedicadas à

defesa dos mesmos (artigo 53.º)

7.5.O desenvolvimento (marcha) do

procedimento administrativo contém princípios gerais

que visam equilibrar a participação dos interessados e a celeridade (o procedimento administrativo deve

ser rápido e eficaz, tendo, em princípio, de estar

concluído no prazo de 90 dias, prazo este

prorrogável, por uma ou mais vezes, até ao limite de

mais 90 dias (artº 57º, 58º).

No âmbito deste procedimento, é de dez dias

o prazo geral, quer para a prática de actos pela

Administração, quer para os particulares requererem

ou praticarem quaisquer actos (artº 71º) da Administração Pública: o procedimento rege-se pelo

princípio do inquisitório (artigo 56.º: no procedimento

administrativo, o interesse público tem um peso

551

Page 553: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

superior ao dos particulares. Por isso, ainda que o

procedimento tenha tido início a requerimento de um

particular, a Administração Pública pode realizar

todas as diligências que considere convenientes,

mesmo para além das matérias referidas por aquele.

E pode decidir coisa diferente ou mais ampla do que

o pedido do interessado (art.º56º), afastando

formalidades inúteis e assegurando o princípio do

contraditório.

7.6. Direito à informação (artigos 61.º a 65.º)

O CÓDIGO DO PROCEDIMENTO

ADMINISTRATIVO contém disposições que

concretizam o direito à informação (artigos 61.º e

seguintes), visando tornar a actividade administrativa

mais transparente, e remetendo para legislação

própria (LADA) o desenvolvimento do novo princípio constitucional da administração aberta (artigo 65.º), a

552

Page 554: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

completar com a Lei n.º 46/2007, de 28 de Agosto,

de acesso geral á documentação detida por

entidades públicas, e leis especiais, tais como a Lei

n.º.12/2005, sobre informação respeitante à saúde, a

Lei n.º 19/2006, referente ao acesso à informação

ambiental, o Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de

Setembro, com o regime dos Instrumewntos ed

Gestão Territorial, e o Decreto-Lei n.º 555/99, de 16

de Dezembro, do regime jurídico da urbanização e

edificação.

7.7. Notificações (artigos 66.º a 70.º)

7.8 Prazos: art.º 71 a 73.º e 95.º; revogação:

art.º141.º; impugnações dos actos: art.º162, 164.º,

168.º e 175.º):

553

Page 555: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

7.9. Contém a disciplinada para garantir aos interessados um efectivo conhecimento dos actos administrativos.

8. Parte IV- Actividade Administrativa:

regula as três principais formas jurídicas da

actividade administrativa de gestão pública:

8.1. Procura facilitar e promover a

colaboração entre a Administração Pública e os

interessados, bem como as reais possibilidades de

participação destes na instrução e na discussão das

questões pertinentes

8.2. Regulamento (artigos 114.º a 119.º)

8.2.2. Fixam-se regras genericamente

aplicáveis à actividade regulamentar da

Administração.

554

Page 556: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

8.2.2. Princípio da participação dos administrados no processo de elaboração dos

regulamentos inspira algumas das suas disposições:

desde logo, reconhece-se aos particulares o direito de dirigirem petições à Administração, com vista a

desencadear o procedimento de criação, alteração

ou extinção de regulamentos (artigo 115.º).

8.2.3. Possibilidade da audiência prévia dos interessados no caso de regulamentos cujo conteúdo

lhes possa ser desfavorável (artigo 117.º)

8.2.4. Incentivada a submissão a apreciação pública, para recolha de sugestões, de regulamentos

cuja matéria o permita (artigo 118.º)

8.2.5. Elaboração dos projectos de regulamento: artigo 116.º contém a regra da sua

fundamentação obrigatória.

8.2.6. Proibição da mera revogação global (art.º 119.º), sem substituição por nova disciplina, dos

555

Page 557: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

regulamentos necessários à execução das leis em

vigor (necessidade de obviar a vazios susceptíveis

de comprometer a efectiva aplicação da lei) e a

obrigatoriedade da especificação, quando for caso

disso, das normas revogadas pelo novo regulamento

(preocupações de certeza e segurança na definição

do direito aplicável)

8.3. Acto administrativo (artigos 120.º a

177.º)

8.3.1. Só há acto administrativo se a decisão

administrativa tem por objecto uma situação individual e concreta (artigo 120.º) e contiver a

identificação adequada do destinatário ou

destinatários [artigo 123.º, n.º 2, alínea b)]

8.3.2. Fases da marcha do procedimento (artigos 74.º a 113.º): fases inicial (requerimento de

556

Page 558: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

apreciação liminar de deficiências), instrutória

(instrução pré-decisional, audiência prévia, eventuais

diligências complementares e eventual relatório),

decisória e de produção de eficácia

A)-Fase inicialO procedimento é iniciado oficiosamente ou a

requerimento dos interessados (artigo 54.º).

Requerimento: Requisitos: art.º74.º; Lugar de

apresentação do requerimento: art.º77 a 93.º;

Requerimento dirigido a órgão incompetente: art.º

34.º; Questões prejudiciais: art.º83 e 31.º; Medidas

provisórias: 84 e 85.º

B)-Fase da instrução (art.º 86 a 105.º);

Direcção da instrução. Art. 86.º; Questões de prova:

87 a 93.º (ónus de prova: 88.º); Exames, vistorias,

avaliações (peritos: 94 a 97.º; designação dos

peritos: 96.º); Regime de pareceres: art.º 98 e 99.º;

557

Page 559: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

Regime da audiência prévia dos interessados: art.º

100 a 105, 104, 59.º, 117.º.

Faz-se a concretização do preceito

constitucional que visa assegurar a participação dos

cidadãos na formação das decisões que lhes

disserem respeito: especialmente com a obrigação

em geral do direito de audiência dos interessados antes de ser tomada a decisão final do procedimento (artigos 100.º a 105.º); diligências complementares:

após a audiência prévia: art.º 103.º.

C)-Fase da decisão e fundamentação do acto (artigos 124.º a 126.º)

8.3.4.Eficácia do acto administrativo (127 a

132.º): regulam-se os termos da eficácia retroactiva e da eficácia diferida (artigos 128.º e 129.º) e

disciplina-se cuidadosamente, com preocupações de

558

Page 560: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

garantia dos particulares, a publicação e a

notificação dos actos administrativos.

8.3.5.Invalidade dos actos (art.º 133 a 137.º:

por ilegalidade: vícios de usurpação de Poder

(legislativo ou jurisdicional); incompetência absoluta

(falta de atribuições) ou relativa (falta de poderes

funcionais do órgão=falta de competências), vício de

forma (forma incorrecta ou falta de formalidades:

fundamentação, pareceres obrigatórios, audiência

prévia), desvio de poder )no uso de poderes

discricionários) e violação de lei (normas: regras ou

princípios); por iliciude:: vícios da vontade: ameaça,

tumulto:art.º133.º

8.3.6. Sanções jurídicas: explicita-se quais

são os actos nulos (clausula geral do n.º 1 do art.º

133, mais exemplificações típicas do n.º2, mais as

559

Page 561: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

previstas em lei), e estabelecendo aqui que são

sempre nulos os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental ou cujo objecto constitua um crime (artigo 133.º). Regime: 134.º

Em geral:

Inexistência: previsão legal expressa ou falta

absoluta de elementos essenciais, se a lei não

cominar a sanção de nulidade (n.º1 do art. 133º)

Nulidade: previsão legal expressa (nº1 do art.

133º), ou falta de elementos essenciais (nº1 do art.

133º, in fine) ou situações exemplicadas mais

correntes (n.º 2 do art. 133º)

Anulabilidade: é regra geral dos actos

administrativos inválidos: sempre que a nulidade não

resulte de uma lei ou do art.º 133.º (artigo 135.º e

136.º).

560

Page 562: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

Invalidade do acto administrativo e respectivos vícios de ilegalidade:

Tipologia dos

Vícios

Orgânicos

Formais

Materiais

-Desrespeito do princípio constitucional da separação de poderes- Desrespeito de atribuições de outra pessoa colectiva ou ministério-Desrespeito de poderes funcionais de outro órgão

-Falta da forma específica legal-mente exigida-Falta de formalidade essencial(parecer, audiência prévia, etc.)

-desconformidade com o conteúdo da previsão normativa ou princípios gerais da actividade administrativa

-Teleologia desviante do legalmente previsto (motivo principalmente determinante da decisão distinto da finalidade motivante da regulação normativa e do conferimento do poder discricionário)

Sanções jurídicas normais (se a lei não

cominar outra sanção diferente) para os diferentes

vícios dos actos administrativos: 1.Usurpação de poder: Nulidade; 2.Incompetência absoluta: Nulidade;

3.Incompetência relativa: Anulabilidade; 4.Vícios de forma: em geral: anulabilidade; mas: inexistência

absoluta de forma legal (al. f), n.º2, art. 133º) e

561

Page 563: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

desrespeito de quorum legal: nulidade (al. g), n.º2, in

fine, art. 133º).

8.3.7. Regime geral (consequências) das sanções jurídicas:

inexistência nulidade anulabilidade

562

Page 564: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

Ineficácia por si Ineficácia por si Revogabilidade nos termos do art. 141º do CÓDIGO DO

PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO

Ivoncabilidade premanente (Ex tunc) Presunção da legalidade e sanabilidade com

decurso do prazo de impugnação

Impugnação a todo o tempo (declaração de

inexistência)

Impugnação jurisdicional sem prazo

(declaração de nulidade)

Impugnabilidade jurisdicional em geral, no prazo de 3

meses (…), pelos particulares e de 1 ano pelo M. P., nos

T.A. (anulação)

Cognoscibilidade por qualquer autoridade ou tribunal, de modo provocado ou oficioso Actos impositivos para autoridades e particulares, até à

anulação jurisdicional

Direito de resistência Direito de resistência em caso de ofensaa

direitos fundamentais

Cognoscibilidade apenas pelos TA e por invocação de

particulares legitimados

Insusceptibilidade de revogação, reforma ou reconversão (al. a), n.º1, art. 139º e art. 147º) Passíveis de revogação, ratificação reforma ou

reconversão

Impossibilidade de produção efeitos

putativos

Produção excepcional de efeitos putativos

pelo decurso do tempo

Sanabilidade ope legis, se não impugnado

jurisdicionalmente

Declaração com efeitos ex tunc Declaração com efeitos ex nunc

8.3.8. Portanto: regime geral dos actos feridos de

nulidade (artigo 134.º C PA):1.Legalidade de incumprimento generalizado a todo o tempo, por ineficácia ex tunc (não produção de efeitos desde a origem)

2.Desnecessidade de accionamento declaratório

3.Oposição excepcionatória a todo o tempo

4.Faculdade de impugnação a todo o tempo

5.Insanabilidade sem um novo acto administrativo primário regular

6.Consolidação excepcional por manutenção de feitos indevidos durante um período

excessivo de tempo (efeitos putativos)

7.Apreciação e inaplicabilidade por qualquer tribunal ou Autoridade

8.Questionamento processual por iniciativa de parte ou do órgão jurisdicional (em processo

563

Page 565: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

provocado)

9.Direito de resistência no caso de ofensa a direitos fundamentais

10.Não constituição de crime de desobediência à autoridade no caso de imposição pela

mesma

11.Não sujeição a dever de obediência, com incumprimento de ordens por parte de

subalternos

12.Sujeição a responsabilidade civil extra-contratual em face de danos ocasionados ao seu

destinatário

12.Carácter sancionatório severo levando à aplicação de norma superveniente menos severa

às situações resultantes de acto originariamente viciado

13.Apreciação pelo tribunal constitucional no caso de assumir forma normativa e ofender a

CRP, em processo de fiscalização preventiva ou sucessiva, abstracta ou concreta (seja um

decisão concreta e individual propriamente dita seja uma norma intuitus persona)

8.3.9. Outras causas-formas de extinção do procedimento são reguladas em pormenor, para

além da decisão.

8.3.10. Enumera-se também um conjunto de

situações em que no silêncio da Administração há

deferimento tácito (e previa-se noutros outros o

significado de indeferimento para permitir o recurso

anulatório pelo tribunal -artigo 108.º-, solução que

hoje está ultrapassada pelo novo CPTA, que criou a

564

Page 566: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

acção administrativa especial de condenação da AP

na prática do acto administrativo (legalmente devido).

8.3.11. Regime de ratificação: v.g., decisões

do Governador civil em situações de urgência: art.º

8.º do Estatuto do Governador Civil), reforma e

conversão de actos inválidos: art.º 137.º

8.3.12.Impugnação dos actos administrativos (reclamação e os recursos administrativos).

a)-A impugnação pode, em regra, ter por

fundamento a ilegalidade ou a inconveniência do

acto administrativo (artigo 159.º)

b)-Há a distinção entre reclamação (pedido de

reapreciação apresentado ao próprio autor do acto) e

recurso, e uma diferente disciplina, em conformidade

com a sua diferente natureza) das as três figuras do

565

Page 567: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

recurso: recurso hierárquico próprio, recurso hierárquico impróprio e recurso tutelar (em situações

de superintendência ou de mera tutela): artigos 176.º

e ss.

c)- Reclamação contra decisão anterior: art.º

162 a 165.º

d)-Recurso administrativo:

-recurso hierárquico: art.º 166 a 177; e

-recurso tutelar: art.º 177.º

e)- Efeitos destas garantias dos cidadãos: a

reclamação e o recurso hierárquico facultativo não

têm em geral efeito suspensivo (artigo 170.º), sem

prejuízo de requerimento nesse sentido e decisão

suspensiva se se verificarem as condições dos

artigos 163 e 170.º.

566

Page 568: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

A reclamação só suspende automaticamente a eficácia do acto quando este não é logo susceptível

de recurso contencioso (artigo 163.º).

O recurso hierárquico necessário: tem, em

geral, efeito suspensivo, cabendo, todavia, ao órgão

recorrido atribuir-lhe efeito meramente devolutivo

quando a não execução imediata do acto possa

causar graves inconvenientes para o interesse público

8.3.13. Revogação (e alteração ou

substituição) do acto administrativo (artigos 138.º a

148.º, especialmente o art.º 141.º (revogação actos anuláveis) e 141.º (revogação de actos origináfria mente válidos ou que, passado o prazo de

impugnação jurisdicional, tal como dispõe o

art.º141.º, se tornaram válidos ope legis).

567

Page 569: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

8.3.14. Rectificação de meros erros materiais

no acto: art.º148.º

8.3.15. Execução do acto administrativo (actividade da Administração onde ela -em geral com

autotutela executiva- mais claramente se manifesta

como Poder (artigos 149.º a 157.º).

Faz-se a distinção entre executoriedade e execução.

Pode haver apreciação jurisdicional dos actos de execução arguidos da ilegalidade própria: que não seja mera consequência do acto exequendo, ou seja,

com ofensa do princípio da legalidade quanto à

execução.

Há três modalidades clássicas da execução

quanto ao seu objecto: para pagamento de quantia certa (art.º 155.º: aqui manda aplicar-se o disposto

no Código de Processo das Contribuições e

568

Page 570: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

Impostos), entrega de coisa certa (art.º 156.º) e

prestação de facto, fungível (1 e 2 do art.º 157.º) e

infungível (3 do art.º 157.º) (a execução das

obrigações positivas de prestação de facto infungível

é rodeada, atenta a sua natureza, de especialíssimas

cautelas: artigo 157.º, n.º 3).

Em geral, porque estamos num Estado de

Direito, a imposição coerciva pela própria

Administração Pública dos actos administrativos,

portanto sem recurso aos tribunais, só seja possível

desde que seja feita pelas formas e nos termos admitidos por lei, designadamente precedida por

decisão com respeito das normas do procedimento

administrativo e com respeito do conteúdo dessa

decisão (artigo 149.º, n.º 2)

8.4. Contrato administrativo (artigos 178.º a

188.º)

569

Page 571: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

8.4.1. A importância do contrato numa

Administração que se quer em medida crescente

aberta ao diálogo e à colaboração com os

administrados, eficiente e maleável, impunha, porém,

que se traçassem alguns princípios orientadores.

8.4.2. Definição dos tipos de contratos

administrativos: contrato de empreitada de obras públicas: a Administração Pública acorda na

construção de uma obra e paga-a ao empreiteiro;

contrato de concessão (de exploração) de obras públicas: a Administração Pública contra a

construção e concede a sua exploração por um dado

tempo em que os utentes (v.g., portagens) pagam

taxas até o concessionário se pagar das despesas e

auferir os lucros esperados, etc.

570

Page 572: Direito Administrativo- Liçoes Introduçao

8.4.3. Enunciam-se os poderes-privilégios da administração como parte no contrato (fiscalização do cumprimento; resgate: rescisão unilateral por

interesse público, com indemnização de danos emergentes e lucros cessantes; modificação unilateral, com compensação para equilíbrio

financeiro; sanções, rescisão com justa causa ou

sequestro (ocupação das instalações e

funcionamento pela Administração, em caso de

abandono do concessionário, que terá de pagar aos

encargos financeiros tidos nesse período pela

Administração Pública: artigo 180.º).

8.4.5. Consagra-se o princípio da admissibilidade da sua utilização, salvo quando outra

coisa resultar da lei ou da própria natureza das

relações que tiver por objecto (artigo 179.º).

571

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8.4.6. Ao processo de formação dos contratos:

aplica-se, na medida do possível, as disposições

relativas ao procedimento administrativo (artigo

181.º).

8.4.7. Trata do modo de escolha do co-contratante, regulando de forma geral a dispensa de

concurso, limitando, naturalmente, esta possibilidade

(artigos 182.º e 183.º)

8.4.8. Estabelece-se, com carácter geral, a não executoriedade dos actos administrativos interpretativos ou que modifiquem ou extingam relações contratuais, pondo, assim, termo à

possibilidade de comportamentos abusivos: a

execução forçada das obrigações contratuais devidas pelos particulares, salvo se outra coisa tiver

sido previamente acordada, só pode ser obtida

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mediante acção a propor no tribunal competente

(artigo 187.º)

8.4.9. Consagra-se a admissibilidade de cláusulas compromissórias, nos termos da legislação

processual civil (responsabilidade, contratos, artigo

188.º).

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III - A PRINCIPIOLOGIA FUNDAMENTAL DA ACTIVIDADE PÚBLICA EM ESTADO ADMINISTRATIVO DE DIREITO. DO ENQUADRAMENTO DECAIOLÓGICO AO REGIME DOS PRINCÍPIOS GERAIS

Sumário de matérias:

1. CONSIDERAÇÕES GERAIS

1.1.Comecemos por situar o enquadramento da actividade exercida pela Administração Pública em Portugal. Não porque aqui se encontrem todos os princípios da actividade administrativa aplicável num Estado unionista como o é o caso, que impõe a reconstrução da ciência jurídica face à estadualidade limitada e aberta, mas porque face à realidade do mito democrático acentuada no século XX, com «opas» das lideranças partidárias sobre os órgãos de Poder e do capitalismo sobre a própria comunicação social, há princípios gerais de actuação das administrações públicas que se entendeu transcrever na própria Constituição formal, instrumental, e

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novos princípios, que esta também entendeu afirmar, como o do open file.

Vejamos, pois, quais as normas que, na Constituição portuguesa, tratam dessa actividade relacionada com a Função Executiva (ou melhor, actividade formalmente administrativa em geral) do Estado-Comunidade? Quais os temas que mereceram do legislador constitucional a consagração na Lei Fundamental? E por quê?

*A Constituição, em termos que

aparecem repetidos no artigo 4.º do Código do Procedimento Administrativo, diz, no n.º 1 do seu artigo 266.º, que «A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos».

Devidamente interpretada, não pode deixar de se concluir que esta norma justifica a existência da Administração Pública em termos instrumentais (ad manus trahere: para servir o interesse público) e, simultaneamente, impõe um princípio macrolimitador da sua actuação, o do «respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos», que,

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claramente, destaca de todos os outros, ao dar-lhe o mesmo estatuto sistemático, inultrapassavelmente copulado. Deste modo, exige uma concepção existencial intrinsecamente interligada (não concebe o interesse público sem o respeito pelos direitos e interesses dos administrados) e em termos quase isónomos (na medida em que, por um lado, não deixa de referir primeiro o do interesse público, mas, por outro, coloca o do respeito pelos direitos ao mesmo nível deste e não dos outros princípios fundamentais, enunciados no n.º2 do mesmo artigo, que considera meras aplicações ao serviço destes (de ambos: directamente, do respeito casuístico pelos direitos e interesses em presença com protecção jurídica e, indirectamente, do interesse público, pois a imposição do respeito pelos direitos e interesses dos administrados não se limita a encabeçar a enunciação dois princípios em geral referidos no n.º 2, mas vem antes e interligado ao do interesse público). Portanto, esta norma constitucional sobre o tema, que implica uma interpretação que aponta para o prosseguimento do interesse público no respeito dos direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos, não está

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colocada numa perspectiva puramente competencial, porque este enquadramento teleológico no plano orgânico e, portanto, ratio existencialis da Administração Pública, envolve e legitima toda a sua actuação, mesmo em gestão privada (mera questão de meio para atingir o fim), quer se trate de actos jurídicos, quer de operações materiais, enformando assim a própria densificação do princípio da legalidade, base e baliza da sua actuação em todos os domínio e sob qualquer tipo de intervenção (princípio da legalidade positiva).

1.2.Os interesse sociais, qualificados pelo legislador como públicos ou que o legislador habilitou a Administração a prosseguir, mesmo que se esteja no âmbito do exercício discricionário do poder administrativo (em que este tem uma maior margem de escolha e conformação, ou pelo menos de apreciação caso a caso, sobre a oportunidade e as soluções, face às circunstâncias concretas), devem ser executados dentro de balizas que implicam a limitação da actuação da Administração em face da obrigatória ponderação das decisões a tomar, ou seja, da procura da realização mais adequada do interesse

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público, tendo presente todos os interesses envolvidos (princípio da justiça, princípio da justa ponderação dos interesses relevantes (decorrente da cláusula do Estado de Direito); igualdade, boa fé, imparcialidade, interdição de excesso (de modo a atingir o interesse público sem sacrifícios desnecessários ou desproporcionados dos interesses dos particulares, titulares de posições materiais legalmente protegidas), etc.. E isto, quer estas posições jurídicas se traduzam em direitos subjectivos, em que a pretensão da posição traduz um interesse específico num determinado bem (coisa, conduta ou utilidade), previsto na norma legal criada para o proteger directamente, em termos que lhe atribuam o poder de exigir da Administração Pública condutas em conformidade com ele, pois ele está dentro das condições legais vinculadas à sua satisfação, quer ainda quando estas posições traduzam «só» interesses legalmente protegidos de que um particular é titular, quando a norma o faz beneficiar de uma tutela ou protecção jurídica indirecta, na medida em que se por um lado a norma invocada a favor da existência de tal interesse, tutela directamente interesses e não a sua própria posição jurídica concreta

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envolvida na decisão a tomar, por isto mesmo também lhe são conferidos poderes jurídicos instrumentais que lhe permitem, caso se realize o interesse público pretendido, ver reflexamente satisfeito o seu próprio interesse.

Não podendo exigir directamente da Administração a conduta que realiza o seu interesse, pode exigir que ela respeite a legalidade em ordem à realização prevista do interesse público, quando tal for o meio adequado a poder esperar também do seu interesse próprio.

Estamos aqui por algo que devemos entender abranger todas as posições jurídicas dos particulares merecedoras de protecção, todas as situações de vantagem derivadas do ordenamento jurídico, que não apenas as protegidas individualmente por uma dada norma, como as inseridas em relações jurídicas poligonais ou multipolares (vg. interesses na fixação de planos urbanísticos, interesses ambientais, etc.), que colocam certas pessoas em situações diferentes da generalidade dos administrados, de modo a merecer especial protecção, dado estarem ligadas a interesses públicos latentes, serem titulares

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de interesses difusos195.Impõe-se também a ponderação dos

interesses de certos círculos de cidadãos, cujos interesses ou direitos podem não estar especialmente personalizados, mas que merecem acolhimento (e devem mesmo contar com a atribuição ao cidadão uti cives de meios de defesa preventiva ou sucessiva, do tipo procedimental e jurisdicional), na medida em que traduz a incorporação em cada um dos indivíduos desse círculo de interesses comunitários a preservar.

2.A JUSTIÇA E SEUS PRESSUPOSTOS VALORATIVOS EM FACE DO DIREITO. SUA INFLUÊNCIA NA CONCEPÇÃO DO DIREITO. O PROBLEMA DA JUSTIÇA FACE À NECESSIDADE DE SEGURANÇA

Algumas considerações iniciais ao conceito de que de facto os vários princípios que vamos analisar e ao fim e ao cabo o

195 Em toda esta matéria, vide, v.g., VIEIRA DE ANDRADE, FREITAS DO AMARAL e FERNANDO CONDESSO, respectivamente, Justiça Administrativa (Lições). 6.ª Edição, Coimbra: Almedina, 2004; Curso de Direito Administrativo. Vol. II, Coimbra: Almedina, 2001, p.61-73 e Direito Administrativo. Lições Policopiadas. Lisboa: AISCSP, 2006/2007 e Relatório Sobre o Programa, o Conteúdo e os Métodos do Ensino de Direito Administrativo, Provas de Agregação em Ciências Jurídico-Políticas, 2005.

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próprio são tributários, o conceito de justiça.

O direito natural propiciou a identificação dos dois termos, na medida em que a rectidão comportamental ditada pela razão implica que o justo o seja em absoluto, ou seja absolutamente bom e desejável. Isto mesmo resulta, desde logo, da teoria platónica das ideias, em que, no seu enquadramento do ponto de vista ética, numa concepção idealista da justiça, esta era a virtude máxima, superior a todas as outras, aparecendo mesmo como a síntese delas. ARISTÓTELES faz a distinção entre justo por natureza e justo por lei., que haverá que se acomodar normativamente ao justo por natureza, numa verdadeira afirmação construtiva da ideia de direito natural.

A teoria estóica, numa linha doutrinária panteísta, com fundamento metafísico, da racionalidade imanente ao Ser, elabora uma primeira precisão sobre o direito natural, como lei ditada pela recta razão (lógos orthós), o que justifica o seu valor absoluto

O positivismo jurídico irá considerar qualquer valor como alheio ao direito, que é mera forma, admitindo qualquer possível

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conteúdo (v.g., Hans Kelsen), podendo portanto haver um direito injusto, que não deixava por isso de ser direito, ou seja, não sendo una «contradictio in adjectis» (LEGAZ LACAMBRA) falar em direito injusto. Concepção que choca com uma outra segundo a qual a lei só é direito se for justa, pois a legalidade é apenas mera legalidade, só se assumindo como legitimidade se o seu conteúdo estiver enformado pela ideia de justiça.

*Como valor de exigência formal e com

tendência de exigência de realização material aparece, hoje, na Constituição Portuguesa, com valor juridificado, quando refere:

a)- o objectivo de «construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno» (preâmbulo);

b) - a criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos (artigo 7.º, n.º 2) ou no empenhamento do «fortalecimento da acção dos Estados europeus a favor da democracia, da paz, do progresso económico e da justiça nas relações entre os povos (n.º 5); a transferência do exercício convencionado de

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poderes a nível da união europeia, visando a «realização (…) de um espaço de liberdade, segurança e justiça (n.º6), ou à aceitação da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, para a «realização de uma justiça internacional que promova o respeito pelos direitos da pessoa humana e dos povos» (n.º7);

c)- que a justiça não pode ser «denegada por insuficiência de meios económicos» (artigo 20.º, n.º 1);

d)- que o Provedor de Justiça, em face de queixas dos cidadãos, por acções ou omissões dos poderes públicos, deve apreciá-las, dirigindo aos órgãos competentes as recomendações necessárias para prevenir e reparar injustiças» (parte final do artigo 23.º, n.º 1);

e)- que, entre as incumbências prioritárias do Estado, que as políticas e o direito têm de traduzir, deve estar a promoção da «justiça social» e o «assegurar a igualdade de oportunidades e operar as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, nomeadamente através da política fiscal» (al.b) do artigo 9.º), acrescentando, no capítulo dos impostos, que a «tributação do consumo visa adaptar a estrutura do

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consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo» (artigo 104.º, n.º4);

f)- que os tribunais são «órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo» (artigo 202.º, n.º1), que o patrocínio forense é um «elemento essencial à administração da justiça» (artigo 208.º), apelida os funcionários dos tribunais como «funcionários de justiça» (artigo 218.º, n.º3), sendo mesmo o mais alto tribunal de da organização judicial designado tradicionalmente como o STJ, e dispõe ainda que o Tribunal Constitucional é o «tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional» (artigo 221.º);

g)- E, finalmente, com todo o relevo que tal deve merecer, ao consagrá-la como um dos princípios constitucionais impostos à actividade da Administração Pública: «Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da

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imparcialidade e da boa-fé (artigo 266.º, n.º2).

*As duas noções, embora devam tender

a interpenetrar-se, e, portanto, devam estar próximas, não coincidindo em si mesmas, não têm que coexistir, sendo certo que o direito é apenas um conjunto de normas cuja obrigatoriedade social implica que a sua violação leve à aplicação de sanções, pelas instâncias sociais de controlo, e a justiça se reporta a valores que devem enformar a convivência social, mas sem que a sociedade os possa impor directamente, dado que a sua não realização não permite a aplicação de qualquer tipo de sanções. Isto só acontece se e na medida em que a normas jurídicas os aceitem e integrem, o que, em princípio, deve ocorrer, mas pode não ocorrer por vezes, com ou sem fundadas razões assentes noutros fins do direito, desde logo o da segurança.

A justiça é anterior e está acima do direito positivo, devendo ser de considerada o fim fundamental do direito. Como proclamava ACÚRCIO, a justiça vem antes (prius iustitia quod ius), ou, como considerava Baldo, o direito nasce da justiça

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(ius iustitia ortum hubuisse)196.A segurança é também um fim do

direito, a combinar adequadamente com os outros fins, cabendo-lhe garantir em geral a certeza do direito (prazos, prescrição de direitos, caducidade das acções; publicação das normas como condição da sua vigência, fundamentação precisa, coerente e suficiente das decisões dos órgãos de poder; verdade formal, preclusão da prova; caso julgado judicial; irrevogabilidade incondicionada de decisões administrativas inválidas após certo decurso do tempo, ope legis, com formação de caso decidido administrativo, etc.) e estabelecer mecanismo que evitem perigos, ou permitam funcionar adequadamente as instâncias de investigação criminal ou realizar os direitos de outros (regras do código da estrada, designadamente interdições de circulação redoviária; prisão preventiva, soluções de limitação da liberdade para inimputáveis perigosos, segredo de segurança interna e segredo de justiça, etc.).

*Dada a importância do tema, vamos

aprofundar um pouco esta questão.

196 Vide citações em Amaral, D. F.- oc, p.53586

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A justiça é o fim indissociável do direito, independentemente das questões de segurança, que são importantes e da defesa e dignidade da pessoa humana. E, muitas vezes, a dignidade e o direito não têm choques, a não ser no direito positivo de Estados autoritários, não democráticos. Já a dignidade e a segurança podem ter choques. Como já referi, às vezes a segurança vence sobre a justiça na afirmação do direito.

Aprofundando o conceito de justiça para nos permitir entender muitas questões, vamos ver muitas ideias fundamentais da evolução histórica do conceito de justiça. O ideal de justiça corresponde muito ao ideal do direito. Este ideal andou sempre muito ligado ao pensamento do homem culto, do homem que procura aprofundar a razão de ser das coisas e a paz nas relações sociais. Sem justiça, uma norma, um direito imposto não conduz à paz, não conduz, obviamente, ao favorecimento do interesse geral, que exige o equilíbrio de interesses, que é, também, um modo de procurar a paz social a que o direito e as instituições jurídicas, designadamente os tribunais, devem procurar responder.

Numa aproximação popular corrente

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do termo, a justiça implica a ideia de repressão do mal, do castigo dos crimes, em ordem a garantir que os outros, os que querem cumprir, possam ser membros da sociedade, vivendo em paz e segurança, quer individual, quer colectiva. Isto põem-nos, desde logo, a ideia da dinâmica fundamental da ideia de justiça nas sociedades, mesmo nas primitivas, quer fosse a justiça mais pública, quer fosse justiça individual ou privada.

É a ideia da justiça política ou justiça repressiva.

A partir daqui, as coisas não deixam de evoluir, e, a justiça aparece como uma das funções do Estado. A lei aparece ligada ao Estado, a quem compete dizer o que é justo e o que é injusto. Uma ideia de justiça que o Estado deve assumir pela lei é a lei fruto do poder político, portanto do Estado. Esta ideia leva a esta afirmação; há que actuar de acordo com o que, para ser justo, a lei estabelece. Há aqui, já, uma exigência da lei, não como produto da força mas, como produto do que é justo. Fala-se então na justiça legal. Ainda hoje á habitual, v.g., José Carlos Vieira de Andrade, no seu conhecido manual de processo dos tribunais administrativos, fala em Justiça

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Administrativa, num dado sentido da sua real aplicação plena pelos tribunais. No entanto, há ainda noções que a filosofia clássica greco-romana não deixa de nos apontar, em que já aparece a génese do embate entre justiça e vida em sociedade, socialismo vivencial. ARISTÓTELES, o grande filósofo e politólogo grego, sai para fora desta ideia de justiça e lei, ou justiça pela lei. Para se ser justo, dizia ele, para além da obediência à lei, é preciso que se respeite duas ideias fundamentais, sem as quais não há justiça, independente da lei a respeitar ou não: igualdade de tratamento e proporcionalidade das soluções nas resoluções do conflito.

É importante que se diga, que este conceito, que podemos chamar extralegal, impõe aquilo, que, em princípio, o legislador consagra ou deve consagrar.

Vejamos, ainda, uma questão muito actual nos dias de hoje, a que se referiu Aristóteles: a distinção importantíssima entre justiça comutativa e justiça distributiva. Quando se fala em justiça comutativa, o que se pretende é fazer apelo a uma ideia de equivalência das prestações num contrato. Nas prestações de um contrato, terá que haver justiça comutativa.

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Por exemplo, se alguém vende um terreno, o preço deve corresponder aos preços que estão no mercado, porque se for cem vezes mais, diz-se que é um negócio leonino. Pois, deve de haver equivalência das prestações num contrato. A justiça distributiva tem que ver com esta ideia: deve haver a justa repartição das riquezas, a justa repartição dos cargos, a justa repartição dos privilégios entre os cidadãos. Já não é algo que toque o mundo individual, mesmo entra na interrelação, pois é algo que toca o mundo do colectivo, da vida em sociedade. Estamos perante conceitos de justiça, comutativa e distributiva, que se deverá reter. Sabe-se que, entre os grandes filósofos da Grécia, que influenciaram o saber romano e, também, até muito do pensamento cristão, que lhe sucedeu, do pensamento renascentista e da época moderna, está um outro filósofo que terá sido, nos tempos antigos, antes do tomismo (doutrinação de S. Tomás de Aquino), na idade média: Platão. Este não seguiu por esta procura de construção de um conceito individual de justiça. Para ele, há que abandonar o conceito de justiça, ou pelo menos não dar esta importância à justiça individual ou justiça meramente no plano dos

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comportamentos intersubjectivos, interpessoais, dos comportamentos individuais. Ele formula uma outra ideia de justiça. Para ele, a justiça, tem que partir de um critério igualitário na organização geral do Estado, na organização do Estado e da sociedade. Critério igualitário significa que, para ele, uma menor importância do tratamento do homem injusto, apesar de importante, a partir do momento em que um homem vive essencialmente em grupo, como ser sociável.

O que é mais importante no estado de sociedade vivencial é pensar o que é justo em termos de sociedade. O importante é falar-se do Estado justo e da sociedade justa. Esta aponta para aquilo que podemos referir como conceito de justiça social.

O tomismo, filosofia S. Tomás de Aquino, frade extremamente inteligente, grande luz intelectual da idade média, que a Igreja católica, mais tarde, canonizou, vem dizer-nos outra coisa importante, que é, hoje, uma conquista da humanidade, algo muito importante na luta contra a tirania, contra o desportismo, contra aquilo que era a característica do poder absoluto, que existiu na Idade Média e existe em todas as épocas, mas que irrompeu muito na Europa

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sobretudo até ao século XVIII. Ele vem dizer que a ideia de justiça está acima da lei. Não podemos ver a justiça na lei, porque ela pode não estar lá. S. Tomás de Aquino analisa o Estado e a lei do seu tempo e chega à conclusão de que os homens não têm que respeitar a lei, mesmo que haja quem diga que a lei feita pelo poder monárquico é uma lei divina. Ele não aceita isso.

A justiça tem que estar acima da lei. Ele diz que é a justiça que deve orientar a elaboração da lei, mas quem a faz pode não ter preocupações de justiça. E, como de facto ela pode não orientar essa elaboração, não a respeitando, deve por isso analisar-se a lei para ver se ela é justa. Esta concepção de justiça acima da lei vai permitir que todo o cidadão tenha direito a criticar a lei. Isto na sua época era um escândalo. É revolucionário admitir que todo o cidadão tem direito a criticar a lei, tem direito a contestá-la e tem direito a procurar alterá-la, e, nos casos mais extremos, admitir mesmo que o cidadão possa desobedecer-lhe. Se a tirania a impuser ao cidadão, pode fazer-se guerra ao tirano (direito de revolução), pondo em causa um direito de distribuição do poder, que era matemático,

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automático, de geração em geração, no plano da sucessão e legitimidade real (e, mesmo, habitualmente de todos os cargos relacionados com o funcionário público civil e militar). Este é um conceito supralegal.

Recapitulando: são três as noções fundamentais de justiça, em relação com as leis do Estado e outras já fora da relação entre as leis e a justiça: uma procurando relacionar a justiça com a lei, construindo o conceito por relação ou não com a lei; e outra situando-se completamente fora da lei, como é o caso do pensamento de Platão.

Em relação à justiça do Estado, a justiça legal, temos uma questão de valor ou conjunto de valores assumidos pela lei.

No conceito de justiça extralegal, a justiça aparece como um critério ou conjunto de critérios que obrigam os homens a procurarem ir além do que está na lei.

Quanto à justiça supralegal, a justiça encarna um valor ou um conjunto de valores que são anteriores à lei, tem assento desde logo na ideia da dignidade da pessoa humana. A lei não pode ir contra eles. São superiores, são anteriores à lei, são cogentes. Mas, como tal pode acontecer, logicamente só resta a aceitação legítima de

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que temos todo o direito de crítica e de oposição às leis injustas e aos tiranos que as fazem: critério supralegal.

Num plano em que as coisas já não são vistas nesta relação de justiça e da lei, temos essa outra concepção social de Platão, da justiça social, que só seria retomada a partir do século XIX pelos socialistas e pelos sociais-democratas em sentido relacional com o social, e que, nesse sentido, hoje é aceite por todas as correntes, porque, desde logo, a partir da segunda guerra mundial, o mundo destruído, o mundo desfasado, o mundo de guerras, de países mas também de classes, demonstrou que vivíamos num época essencialmente injusta, independentemente das leis, o que levou a emergência do estado Social de Direito, eivado essencialmente da ideia de justiça social.

*O princípio da igualdade, subproduto

do conceito de justiça em sentido amplo, era algo entendido a partir daquilo que já se «era», mas como uns nasciam tão desiguais dos outros, com meios tão desiguais para se afirmarem, por mais méritos pessoais que tivessem não era possível igualdade. Havia um mundo de tal maneira desigual que

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havia sempre quem tivesse a dianteira. A desigualdade perante a lei é importante. O legislador, em princípio, não deve favorecer uns em detrimento de outros, mas também deve propiciar igualdade em face da procura da igualização, isto é: para criar a paz social, evitar, a igualdade desigualizadora, aplicando regras iguais para o que é igual, mas admitindo a aplicação de regras desiguais para o que é desigual. E isto não ofende igualdade.

As discriminações positivas que, sobretudo depois da construção alemã em 1946 vão dar origem àquilo que se veio a chamar, não um Estado meramente liberal em que o Estado garante os direitos e as liberdades, mas em que o Estado promove que todos tenham acesso aos direitos e a um tendencialmente exercício dessas liberdades. No nosso país cada vez há mais extremos, mas isso já é um erro dos homens não das concepções. Haverá muita gente com fome e muita gente que esbanja, mas, são erros da governação não da concepção da justiça ou do direito.

Todas as correntes do pensamento, hoje, acabaram por alinhar com estas ideias fundamentais do socialismo e da justiça social. A justiça situa-se no plano das

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relações de igualdade ou desigualdade económica e social dos homens. Como é possível afirmar-se que se respeita a dignidade de alguém que vive debaixo de uma escada ou num casebre sem condições, que não tem uma remuneração mínima? Não será o princípio da igualdade mas o princípio mínimo da dignidade humana de que todos possam viver de cabeça levantada e como seres humanos dignos.

Isto é a mais-valia de que o pensamento grego troce, despegando-se da sua reflexão sobre o que é justo na sociedade e no Estado, independentemente daquilo que são as construções do poder e das leis.

O princípio da igualdade consagrado na nossa constituição manda ter um tratamento desigual para igualizar, também o sacrifício imposto como punição, mas que normalmente os nossos tribunais têm muito pouco em consideração, pela pressa, pelo conjunto de processos suspensos, porque não há arbitragens quase nenhumas, vai tudo para os juízes de tribunais permanentes. Uma boa reflexão destes permitir-lhes-ia uma melhor justiça nesse sentido.

Qual é, então, a melhor definição de

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justiça?Nenhuma definição é perfeita. Toda a

definição reduz um complexo de conhecimento e elemento a um esquema restrito para nós permitir uma apreensão didáctica aproximada da realidade, através de um esquema para fixarmos melhor e percebermos o funcionamento dessa realidade, à custa do seu empobrecimento, na medida em que se retiram sempre elementos dela. Isto, apesar de o conceito dever reter os elementos que tenham maior importância caracterizadora, pois não há conceitos perfeitos. No entanto, podemos dizer que a justiça é uma noção, uma ideia que traduz um conjunto de valores que implicam o Estado, impondo-lhe (todas as autoridades públicas, Estado e mesmo aos cidadãos em geral) obrigação de se dar a cada um aquilo que lhe pertence, na definição clássica suum cuique tribuere (obrigação de dar a cada um o que lhe é devido) em função dos novos valores, designadamente a dignidade da pessoa humana.

Normalmente o sentimento do colectivo de uma sociedade aponta qual é esta … onde começa e onde acaba essa obrigação de dar, mas a verdade é que há

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dois mundos diferentes: um de obrigação de dar a cada um o que lhe pertence e outro mundo relativamente individualista e que o Estado liberal até meados do século XX aceitou. O dar a cada um o que lhe é devido, pertence já a este outro mundo em que a justiça social se associa à justiça, a esse tal outro conceito mais legalista ou até individualista de justiça. Os valores obrigam a dar a cada um o que lhe é devido, quer seja seu, que não seja. A dignidade da pessoa humana impõe que também seja dividido com essas pessoas.

Aqui temos as dimensões da noção de justiça, globalmente considerada e neste modo, para quem preferir dizer só, a cada um o que lhe é devido, isto é, o que é seu e o que deve de ser seu num Estado de justiça social.

Significa, portanto, que não está em causa apenas os direitos, as liberdades, as garantias, o direito de propriedade, o direito à remuneração mínima que lhe permita não passar fome, está em causa, também os direitos sociais, económico, culturais, o direito à habitação, etc., etc.

Nesse aspecto, é de acolher a doutrina, hoje muito ligada a outros direitos naturais ou princípios da racionalidade do

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direito, que assenta, como critério orientador, no critério da dignidade da pessoa humana. Esta é a concepção de S. Tomás, que já existia também em Platão e que é a expressão do pensar de um grande jurisconsulto romano, Cícero.

III - OS PRINCÍPIOS GERAIS DA ACTIVIDADE ADMINISTRATIVA

2.1.Os princípios gerais que devem enformar a actividade administrativa têm, hoje, consagração positiva, não só a nível legal como mesmo constitucional, sendo aplicáveis quer em «gestão pública» quer em «gestão privada» da Administração, quer porque é a própria Constituição que o exige, ao impor no n.º 2 do artigo 266.º que «Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito» por esses princípios, quer porque, concretizando-a, tal é claramente expresso no n.º5 do artigo 2.º do Código do Procedimento Administrativo, ao estipular que estes Os princípios gerais da actividade administrativa são aplicáveis a toda a

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actuação da Administração, ainda que meramente técnica ou de gestão privada.

Estamos, hoje, perante princípios gerais, ou melhor, princípios escritos de aplicação geral, cuja existência decorre, expressa ou implicitamente, dos preceitos constitucionais (especialmente dos artigos 266.º e ss) e que respeitam ao funcionamento e à actividade de uma Administração Pública típica de um moderno Estado de Direito.

2.2.Para além dos princípios que enquadram a vida da Administração Pública em face do desenrolar da actividade administrativa (o princípio da procedimentalização da actuação administrativa: artigo 268.º, n.º3 da CRP; da responsabilização e garantia patrimonial, da transparência, da sujeição ao controlo dos tribunais, instâncias independentes e cidadãos, etc.), que também abordaremos, importa citar os que, uns de natureza propulsora e outros limitadores197, devem

197 Princípios derivados da natureza dicaiótica (δίκαιος, ον, justo, devido) e fileleuterópica (φιλελεύθερος, ου, liberal, amante da liberdade) enformante da nossa AP, administração em Estado Liberal de Direito (e não meramente de legalidade), o que lhe impõem condutas com interdição de assimetria nas soluções (ασυμμετρία, ας, falta de proporção, implicando a exigência de ’ανάλογία, proporcionidade, adequação), dotadas de isonomia

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enformar, directamente, em concreto, o conteúdo das várias formas dessa actividade, sobretudo, os seguintes princípios:

-o princípio nomocrático (da juridicidade ou da legalidade: artigo 3.º do CPA);

-o princípio da prossecução do interesse público;

- o da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos (artigo 4.º);

- o da boa fé: (artigo 6.º-A CPA);- o da igualdade (artigo 5.º), - o da transparência (artigos 61.º a

65.º do CPA e Lei n.º46/2007, de 24.8);- o da justiça - o da imparcialidade na condução e

resolução do processo (artigo 6.º e respectivo regime de impedimento e de suspeição: artigos 44.º a 51.º do CPA);

- o da interdição de excesso (proporcionalidade em sentido amplo: idoneidade ou adequação da medida prevista, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito); e

(ἰσονομία: iso, igual e nomos, norma; igualdade no tratamento; segundo a politóloga HANNAH ARENDT, a vocábulo isonomia apecere usado, no tempo de Heródoto, com um conceito equivalente a liberdade política) e, com isenção, imparcialidade, ainda condutas aplotéticas (άπλότης, ητος, boa fé), ou seja, com interdição a posturas de apistia (απιστία, má fé).

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- o princípio da devida ponderação dos interesses relevantes; públicos e privados (ínsito na cláusula do Estado de Direito);

o princípio da colaboração da Administração com os particulares (artigo 7.°).

- o da princípio da participação (artigo 8.º),

- o da princípio da decisão (artigo 9.º), - o da princípio da desburocratização e

da eficiência (artigo 10.º), - o da princípio da gratuitidade (artigo

11.º), - o da princípio do controlo

jurisdicional ou da sujeição à Justiça (artigo 12.º)

2.3.Muitos destes princípios, de que além dos constitucionalizados, abordaremos os mais importantes, expressos na legislação procedimental, resultam da cláusula do Estado de Direito Democrático.

Com efeito, o princípio democrático exige uma Administração Pública democrática, ou seja, enformada pelas características de subordinação ao poder político-legislativo, aberta ao pluralismo, funcionando com objectividade, tratando todos de maneira pré-determinada e igual

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(princípios da legalidade, imparcialidade, igualdade, publicidade e transparência).

2.4.A Administração Pública deve respeitar sempre os princípios gerais de actuação: não só quando exerce poderes de autoridade («em gestão pública», com aplicação de direito administrativo: ao conceder uma licença ou nomear um funcionário), mas também quando age «em gestão privada»: como se fosse uma entidade privada: ao comprar um automóvel ou alugar uma máquina) ou quando pratica simples actos ou operações técnicos ou materiais (ao construir uma estrada ou tratar um doente num hospital público).

IV – DENSIFICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS QUE ENFORMAM E ENVOLVEM A VIDA DAS ADMINISTRAÇÕES PÚBLICAS

Vejamos, pois, o que impõem à AP os mais importantes desses princípios gerais da actividade administrativa, começando por aquele que a orienta acima de tudo, e que constitui a sua razão de ser e base da sua legitimação originária e funcional, e o que mais a limita.

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Dado que regime sobre responsabilidade civil extracontratual consagra uma disciplina unitária e muitas questões de responsabilidade com origem nos vários órgãos se implicam no que se refere aos fundamentos jurídicos de onde deriva o dano em concreto, trataremos este tema em relação às diferentes funções públicas, e, tal como em relação ao tema da transparência da Administração pública, alargaremos a sua exposição um pouco mais, dado o facto de estarmos perante diplomas muito recentes e sobre os quais a literatura actualizada não existe.

3.1. Princípio da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses do cidadão

3.1.1.A razão de ser da Administração pública e do direito administrativo aparece expressamente afirmada na Constituição da República Portuguesa, que diz que a Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (nº 1 do artigo 266.º da CRP e artigo 4.º do CPA).

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É essa prossecução do interesse público, das necessidades colectivas, que justifica a existência da Administração Pública, enquanto que o respeito pelos direitos e interesses legítimos dos cidadãos é exigível pela natureza do Estado de Direito democrático, funcionando simultaneamente como fundamento e limite da actuação da Administração. É isso que tudo isto que dá conteúdo, expressão concreta às normas de Direito Administrativo. Essa prossecução e estes direitos são referentes em permanente tensão dialéctica proporcionada à medida dos interesses gerais a satisfazer, o que permite dentro de certos limites o sacrifício dos interesses particulares em nome dos interesses colectivos.

Portanto, a necessidade de dar a supremacia ao interesse geral com a garantia do respeito adequado dos direitos dos particulares marca a essência, num plano escatológico e ôntico, do Direito Administrativo)

3.1.2.No plano da obrigação de respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, tal implica que a Administração Pública tenha em conta os

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vários tipos de situações jurídicas, quer os direitos subjectivos quer os interesses simples, de que os particulares são portadores.

A)-Os direitos subjectivos desdobram-se em:

a)- direitos subjectivos de tutela plena (direitos subjectivos clássicos: com protecção directa e imediata resultante da norma);

b)- direitos subjectivos sem tutela plena:

α)-Os direitos subjectivos limitados são direitos subjectivos sujeitos a limitações à sua existência, realização ou fruição (com estatuto existencial debilitado, menorizado, em si mesmo: v.g., direito de propriedade face ao poder público de imposição de planos urbanísticos ou de expropriação;

β)-os direitos subjectivos condicionados são direitos subjectivos dependentes de intervenção pública: sujeitos a intervenção permissiva do seu exercício: sujeitos a licenças ou inscrições viabilizadoras do seu exercício legal: exercício da medicina, carta de condução); e

γ)-os direitos subjectivos de conteúdo impreciso são direitos subjectivos sem

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concretização de elementos importantes da sua realização prática: não directamente accionáveis, necessitando que o seu conteúdo seja precisado a posteriori, na medida em que, apesar de estarem protegidos como interesses individualizáveis directamente, por uma norma, estão ainda sujeitos a intermediações que os concretizem: v.g., direitos genéricos a prestações de tipo ou montante variável.

B)- Os interesses legítimos, que, por gozarem de um estatuto quase totalmente equiparado aos direitos subjectivos clássicos, face desde logo ao disposto em geral na CRP e no CPA, permitindo em geral a reacção contra situações anómalas que prejudiquem a hipótese da sua afirmação nos termos legalmente enquadrados, poderíamos considerar como direitos subjectivos de tutela paraplena..

Há, em geral, uma equiparação legal entre dos interesses legítimos ao regime dos direitos clássicos, designadamente para efeitos de desencadeamento da responsabilidade civil das entidades públicas, no domínio do regime condicionado da revogação dos actos constitutivos de direitos (regulado pela

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alínea a) do n.º2 do artigo 140.º e 141.º do CPA), obrigatoriedade de fundamentação das decisões que os afectem (a, 1,124.º CPA), accionabilidade jurisdicional (CPTA); podendo apontar-se como diferença a possibilidade da retroactividade de normas restritivas referentes a interesses legítimos ou inexistência de certas limitações à actividade policial198 impostas em relação aos direitos clássicos e em geral situações em que resulta da lei uma tutela total para os direitos clássicos e não apenas um interesse no cumprimento da lei como meio de defesa dos seus interesses.

C)- Os interesses simples, quer os interesses resultantes de vantagens acidentais auferidas por normas que à partida são estranhas aos seus objectivos ou interesses directos: são meras situações jurídicas de vantagem acidental; interesses acidentalmente, lateralmente, protegidos; na medida em que não há qualquer intencionalidade normativa de protecção, mas aproveitando ao beneficiário a legalidade da actuação alheia, o que lhe permite impugnar as actuações ilegais de

198 Amaral, D Freitas –Curso de Direito Adminstrativo. Vol.II, Coimbra: Almedina, 2001, p.70.

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outrem, apesar de elas não o tocarem enquanto tal e, por isso, a «ofensa» da legalidade nunca pode implicar qualquer para si qualquer direito indemnizatório, quer os interesses não individualizáveis, sejam os interesses colectivos (interesses de entidades representativas de interesses dos associados afectados; ou interesses de usufruidores de bens do domínio público local, ou seja de bens de entidades autárquicas ao dispor da generalidade dos seus residentes), sejam os interesses difusos: interesses indivisíveis de grupos amplos de pessoas: 60, 66, 78 CPA; ? CRP; Lei Acção Popular e Participação Procedimental).

3.1.3.Quanto à diferença de regime entre os direitos, interesses legalmente protegidos e os simples interesses, tal assume um maior significado, devendo ser encontrado nas normas específicas que visam protegê-los, mas sem qualquer obrigação em geral de motivação de actos que os desconheçam, nem atribuição de direitos indemnizatórios, nem condicionamentos revogatórios que os afectem.

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3.2.Princípio da procedimentalização

3.2.1.Hoje, a Administração pública portuguesa, na sua actuação, obedece a um conjunto de normas que se encontram ou codificadas no CPA, de procedimento administrativo comum, ou em diplomas materiais, com procedimentos administrativos especiais, em que aquele também se aplica supletivamente.

Foi o aumento exponencial das tarefas de que a Administração Pública cada vez mais é incumbida pelo legislador nos mais diversos sectores da vida da comunidade e o avança num processo, embora inacabado, de construção do Estado de Direito, que face, à necessidade de potenciar a sua eficiência quer a de melhor garantir a participação dos cidadãos nas decisões que lhes digam respeito e a defesa dos seus direito e interesses com protecção jurídica, levaram à elaboração desta regulação do procedimento administrativo em geral.

Deve-se ao artigo 267.º, n.º 4 da Constituição (anterior artigo 268.º, n.º 3), a obrigação imposta ao legislador para disciplinar o processamento da actividade administrativa, apontando-se aí como sua

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finalidade o assegurar a racionalização dos meios a utilizar pelos serviços e a participação dos cidadãos na formação das decisões que lhes interessam199.

3.2.3.No direito procedimental da actividade administrativa, o legislador vem aplicar, dando exequibilidade e em geral desenvolvendo, normas ou princípios constitucionais, tornando efectiva a orientação e imposição da norma fundamental (sem prejuízo de em certos domínios dever ter-se presente certas regras do direito procedimental comunitário, que também tem relevância200), tendo como finalidade a ponderação devida da pretensão, no seu iter e no conteúdo da decisão administrativa final, fixando o desenvolvimento das várias fases da sua prossecução em termos que garantam a certeza sobre as motivações e a imposição e verificação dos prazos, em ordem à tomada de decisões da Administração, consubstanciadoras quer de actos

199 Como refere o CPA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro, (D.R. n.º 263/91, Série I-A, páginas 5852 a 5871.

200 Vide, v.g., Isaac, Ruy –Manual de Derecho Comunitária General. 2.ª ed., Barcelona: Ariel,1992, p.121 e ss.; CONDESSO, F. -«Os Fundamentos da Programação Comunitária». In Direito do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2001, p.282.

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administrativos e regulamentos quer de contratos ou operações materiais, e, ainda, o enquadramento da iniciativa de revisão das decisões, a requerimento dos interessados ou a título oficioso, e exercício de poderes modificativos ou não, nesse âmbito da Administração.

O C.P.A. prevê o regime geral do procedimento administrativo, sendo pois de aplicação como norma subsidiária.

O legislador começa por apresentar, no artigo 1.º do CPA, os conceitos de procedimento (sucessão ordenada de actos e formalidades tendentes à formação e manifestação da vontade da Administração Pública ou à sua execução) e processo administrativo conjunto de documentos em que se traduzem os actos e formalidades que integram o procedimento administrativo).

3.2.4.Quanto ao procedimento administrativo geral resolutório, original e derivado, o CPA consagra os seus princípios enformadores e enquadra as sanções jurídicas e seu regime jurídicas, quer para o seu desrespeito, quer em geral para os vários vícios de ilegalidade.

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Os aspectos essenciais do iter procedimental administrativo são arrumados em fases e princípios pertinentes: desde a fase inicial (requerimento e apreciação liminar), passando pela instrução normal, audiência prévia, eventual instrução complementar, até à decisão e actos de produção de eficácia, além de regular os temas transfásicos, como o das medidas provisórias e produção antecipada das provas. Ou seja, trata a fase inicial, com o respectivo princípio da unicidade do pedido que não seja alternativo nem subsidiário, que termina com a apreciação liminar, para eventual correcção de deficiências instrutórias do requerimento ou na junção inicial de documentos, e respectiva notificação para suprimento (quando não puderem ser supridas oficiosamente); fase da instrução, com respectivos ónus de prova pelo interessado, sem prejuízo do princípio da oficialidade; a fase da elaboração do relatório e projecto de decisão; a audiência pré-decisonal e eventual instrução suplementar para efectivar diligências requeridas pelo destinatário do acto administrativo; a fase resolutória e a fase complementar de produção de eficácia.

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3.2.5.Ele consagra os princípios gerais específicos do procedimento, procura-se dar uma explicação sobre os princípios referentes aos requisitos do requerimento e do seu suprimento, ou seja, sobre a legitimidade e o requerimento em si, questões prévias para o bom desenrolar do procedimento: regularidade do requerimento, junção de documentos, legitimidade, oportunidade temporal, etc.., como o princípio do carácter escrito (artigo 122.º, corpo do n.º1 do artigo 74.º), unicidade do pedido (n.º2 do artigo 74.º), suprimento oficioso das deficiências do pedido (n.º2 do artigo 57.º), passando pelos referentes à instrução normal e complementar à audiência pré-decisional, assim como os referentes a esta, para terminar com os que dizem respeito à decisão e sua produção de eficácia. Em geral, destaco os princípios da economia processual, rapidez e eficácia, da celeridade do procedimento (artigos 10.º e 57.º), com as obrigações daí decorrentes para os órgãos e os destinatários das decisões: em ordem a evitar a burocracia, com consequente não formalismo das formalidades (com indicação apenas das

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linhas gerais da marcha e formalidades essenciais ou, pelo menos, simplificação do formalismo (procedimento livre de formalismos rígidos) e interdição de requerimento de diligências dilatórias (artigo 6.º). E temos, ainda, o princípio da pluralização dos locais e meios de apresentação do pedido (artigos 77.º a 79.º).

Enquadra, ainda, a natureza jurídica do prazo, regulando o início e forma da sua contagem. Trata da gratuitidade (dos actos que não impliquem actividade extraordinária dos serviços requerida em proveito predominante dos particulares), admissibilidade das medidas provisórias (artigo 84.º), assistência às partes e da responsabilidade em geral pela informação deficiente ou errada que seja prestada por escrito ou devida (n.º2 do artigo 7.º) e comunicação aos contra-interessados como forma de consagração dos princípios da participação e do contraditório.

3.2.6.Quanto ao procedimento administrativo derivado, reclamações e recursos administrativos (hierárquicos, próprios e impróprios; ou tutelares; e seus prazos de apresentação e decisão), algo de essencial para a garantia jurídica dos

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particulares, «a tal ponto que a generalidade dos mais recentes manuais norte-americanos de Direito Administrativo versam quase exclusivamente sobre essa matéria»201, tal como o novo processo jurisdicional, reconstruído pelo CPTA.

Aliás, em geral, disciplina-se não só o procedimento derivado, de reapreciação de acto administrativo anterior, por questões de legalidade ou simplesmente de de mérito, passível de provocar uma revogação ou alteração da decisão administrativa, assim como o regime da revogação oficiosa, de actos anuláveis ou actos originariamente válidos ou tidos como tais ope legis, por sanação dos primeiros (art.º 141.º e 140.º do C.P.A.).

3.3.Princípio da subordinação ao direito. Princípio nomocrático

3.3.1.A Administração Pública deve obedecer à «Lei e ao Direito» (artº3º), incluindo aqui todo o bloco da legalidade, em especial: Direito Internacional (DIP: costume e tratados, actos decisórios do Conselho de Segurança da ONU e de outras

201 AMARAL, D. F. –Relatório, o.c,, p.263.616

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organização dotadas de poderes normativos e decisórios concretos, declarações unilaterais, etc.) e Direito Comunitário (Regulamentos, Directivas, Decisões, etc.), normas da Constituição, Leis de Valor Reforçado e Leis ordinárias simples da Assembleia da República, Decretos-Leis do Governo e Decretos Legislativos Regionais -das Regiões Autónomas-, princípios gerais de Direito, regulamentos administrativos e outras normas fonte de direito (decretos regulamentares do Governo: portarias; despachos normativos; regulamentos dos governos civis; decretos regulamentares regionais; posturas municipais e outras deliberações de órgãos administrativos), etc.

3.3.2.O princípio da legalidade implica a subordinação da Administração Pública ao Direito, quer a normas (regras e os princípios jurídicos, escritas ou costumeiras), quer a outros actos a que as normas atribuem força impositiva (neste sentido é, literalmente, um princípio da juridicidade, mas do que da legalidade): com duas dimensões distintas: a Administração Pública não pode contrariar o direito vigente (preferência de lei), e deve fundar-

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se, basear-se, no Direito, estando reservada a este a definição primária das actuações administrativas (reserva de lei: com duas vertentes: por uma lado, anterioridade necessária do fundamento jurídico-normativo da actuação administrativa (precedência de lei) e necessidade desse fundamento legal (reserva de suficiente densificação normativa contendo a disciplina do essencial da matéria, dos interesses públicos a prosseguir enquanto escopo específico, e a repartição de atribuições e competências, sendo certo que o princípio da legalidade tem concretização através do princípio da competência).

3.3.3.Não há espaços de exercício arbitrário de actividade administrativa.

Este princípio da legalidade abarca todos os tipos de intervenção da administração, não só a de tipo limitador das liberdades como a própria Administração constitutiva, todas as formas de actividade, desde o regulamento, às decisões concretas e individuais e aos contratos e sujeita-se a toda as fontes de direito, sejam de carácter geral, normas supranacionais e da CRP, leis e regulamentos (princípio da

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inderrogabilidade singular das suas próprias normas regulamentos), sejam aos actos jurídicos unilaterais por ela proferidos ou aos actos bilaterais, sejam estes ou não acordos sinalagmáticos.

*

3.3.4.Mas a normatividade impõe-se em termos e segundo intensidades variadas: mais ou menos vinculados, mais ou menos controlados, mais ou menos sancionáveis.

Estão sujeitos ao respeito do princípio da subordinação ao direito o regime do estado de necessidade em sentido amplo (regime legal excepcional: n.º 2 do art.º 3.º; art.º 8.º da Estatuto do Governador Civil, etc.), o regime de insindicabilidade dos actos políticos (apenas passíveis de responsabilidade civil, pela falta de respeito à CRP e à lei) e o exercício de poder discricionário ou do preenchimento de conceitos imprecisos ou da aplicação de regras extra-jurídicas de natureza técnica, para que o legislador remeta

.3.3.5.A aplicação de regras extra-

jurídicas, técnicas ou morais, ou regras de prudência comum, para que as normas

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jurídicas remetam ou que naturalmente devam ser respeitadas como exigências mínimas da sociabilidade, a sua força normativa impositiva advém-lhes do comando normativo que, não as transcrevendo directamente (por comodidade ou para evitar a contínua instabilidade normativa, por impossibilidade de as fixar, em face do seu dinamismo evolutivo independente da vontade e da conformação do legislador), remete para elas tal como existam num dado momento, renunciando a fossilizá-las desactualizadamente. Valendo como lei por força da lei, vinculam também os poderes administrativos, integrando o bloco da legalidade, que na medida em que sejam admitidas com um conteúdo móvel, a regra actualizável, que esteja em vigoror em cada momento (e não meramente a regra extra-jurídica para que se remeteu, apenas fixada como técnica de normação indirecta), será uma legalidade heterofixada.

3.3.6.O poder discricionário (que tanto pode existir sobre a decisão de agir ou não; o momento de agir; a determinação em geral dos pressupostos factuais para a aplicação de certa medida ou escolha de

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certa solução, através de avaliações pessoais situadas, ou seja orientadas pelo interesse público específico mas sem prejuízo da devida ponderação dos interesses relevantes envolvidos no caso, públicos ou privados; a determinação do conteúdo concreto da decisão, na forma de discricionariedade optativa -opção entre várias soluções legalmente previstas- ou criativa –conformação global da solução concreta dentro dos limites apontados pela norma; a forma ou formalidades a adoptar; a motivação da decisão quando a norma a não imponha; o poder de apor condições, modos e outras cláusulas acessórias, quando a norma as não proíba ou de lhe dar conteúdo quando a norma as preveja sem o precisar) é uma das formas típicas de concretização da subordinação ao direito, sem vinculação total à norma; mas sempre com legalidade na atribuição e juridicidade na actuação, com obrigação de prosseguir a solução que, na perspectiva de um decisor competente e responsável, seja tida como mais ajustada para o interesse público, em face da ponderação devida de todas as circunstâncias do caso concreto: aparecendo aqui não o executor autómato mas o executor inteligente e diligente).

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O exercício do poder discricionário, quando a norma atributiva não aponte para a manutenção do poder de livre apreciação das circunstâncias e condicionalismos de cada caso, apenas abalizado pela ela, ou seja a isso se não oponha, pode passar pela elaboração prévia de normas genéricas dos critérios decisórios no futuro, situação em que esta auto-vinculação se impõe, sem prejuízo da sua revogação, tal como mesmo independentemente de qualquer normação, em nome do princípio da igualdade de tratamento e da protecção da confiança de terceiros não pode altera os critérios que vá aplicando sem a devida fundamentação da referida modificação.

Os actos derivados do poder discricionário são jurisdicionalmente impugnáveis na medida em que os poderes públicos os actuem sem atribuições e competência ou os concretizem com defeitos de vontade (erro de facto, etc.), com desrespeito de forma ou formalidades exigidas para a sua prática (de que se destacam a falta de fundamentação, de audiência de outras entidades (pareceres) quando exigida e audiência dos interessados prévia à decisão), ou com conteúdos contrários ao disposto materialmente nas

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normas ou alheios à finalidade que deveriam visar, pelo menos que traduzam uma motivação que não foi decisiva na sua produção (motivo não principalmente determinante: art.º 19.º da LOSTA) ou à aplicação dos princípios aqui analisados.

No que se reporta em geral ao controlo dos actos discricionários, ele tanto se efectiva em face do vício típico de desvio de poder, como de vícios de violação de lei (desrespeito dos princípios gerais da actividade administrativa, de que aqui se trata), vícios orgânicos (usurpação de poder, incompetência absoluta ou relativa), vícios de forma (falta de forma ou formalidades exigidas), ou mesmo erro de facto (defeitos de vontade)

3.3.7.O conceito de conceitos imprecisos integra um conjunto variado de expressões linguísticas com um conteúdo caracterizado por revelar uma maior incerteza e portanto dificuldade concretizadora e, portanto, traduzem uma exigência acrescida no plano interpretativo ou mesmo no plano recreativo no seu momento aplicativo.

Com efeito, umas vezes, implicam o apelo a conhecimentos comuns ou

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acessíveis a um aplicador minimamente inserido e capaz, directamente ou com apoio de especialistas, sejam regras da experiência, sejam conhecimentos técnicos e científicos (por vezes mesmo a regras extra-jurídicas de natureza técnica, para que o legislador remete e que se tornam juridicamente vinculativas, o que é questão diferente) sejam saberes jurídicos, o que permite a sua normal sindicabilidade jurisdicional, mas outras vezes implica uma ponderação valorativa, seja objectiva (vigentes na vida social, de moralidade, em certos sectores, etc., ou seja implicando uma eurística das concepções vigentes em cada momento, aplicativa, o que, sendo também um exercício vinculado, viabiliza a sua sindicabilidade correctora) seja subjectiva (viabilizando apreciações assentes na própria experiência ou convicções do decisor administrativo: a solução mais adequada ao interesse público segundo os seus próprios critérios, v.g. o poder de adoptar providência fora das regras normalmente estabelecida em circunstâncias excepcionais e urgentes de interesse público, desde que o seu resultado não possa ser obtido por outras vias, o que inviabiliza a sua sindicabilidade, neste plano

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justificativo e das soluções tidas como mais adequadas, o que significaria a substituição do papel discricionário da Administração pelo juiz, ou seja uma Administração pelos tribunais, embora os aspectos envolventes sejam controláveis na medida em que sejam legalmente conferíveis).

3.4. Princípio da justiça em sentido amplo e estrito

3.4.1.Em sentido estrito, com um conteúdo historicamente cada vez mais exigente, o princípio da justiça a que se reporta o n.º 2 do artigo 266.º da CRP e ao CPA, afirma-se como o principal princípio enformador da construção do sistema jurídico, desde logo das regras positivas e da sua interpretação. Este princípio constitui a última ratio da subordinação da AP ao direito, intervindo residualmente apenas «em situações concretizadoras do princípio da justiça e sentido amplo, onde não sejam aplicáveis outras condicionantes da actividade administrativa»202, que evitem que sejam intoleráveis as soluções que as regras e outros princípios não excluam.

202 Ac.STA, de 12.5.98, Caso Oliveira Fernandes e Ribeiro, Lda.

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No fundo, podemos afirmar que existe um direito à justiça

3.4.2.O princípio da justiça, tomado no seu sentido mais amplo, implica que a Administração Pública deva actuar em geral por forma ajustada à natureza e circunstâncias de cada caso ou situação (artº 6º), decompõe-se, hoje, em vários princípios que têm designação e autonomia legal e científica: igualdade, imparcialidade, interdição de excesso, boa fé, etc.

Vamos analisar cada um deles de per si.

3.5. Princípio da Igualdade

3.5.1.É vedado à AP (art.º 13.º da CRP, etc, artº 5º, nº 1 do CPA) favorecer ou desfavorecer alguém por razões de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social. Este princípio não impõe uma igualdade de tratamento absoluta. A igualdade justifica-se em relação a situações equiparáveis; se estão em causa situações objectivamente diferentes, elas devem ser tratadas por forma adequadamente diversa

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(discriminação positiva).V.g., quando há diferente tratamento com valorização diferente da experiência de candidatos nacionais e da UE; ou repetição de prova em concurso público apenas para alguns candidatos, com base n suspeita em relação a estes de que tiverem conhecimento prévio da prova; depois de encerrado o período instrutório e imediatamente antes da decisão, a aceitação de um nova proposta mais baixa do que a originalmente apresentada por um concorrente sem ouvir o outro, que juntamente consigo havia sido preliminarmente seleccionado.

3.5.2.O princípio da igualdade e não discriminação é fruto, juntamente com a liberdade, das Revoluções liberais de finais do século XVIII, especialmente da revolução americana e francesa. Mas o seu entendimento actual deriva de uma longa evolução histórica203, de natureza acumulativa de sentido, que, desde essas Revoluções, o foi densificando até ao aperfeiçoamento que adquiriu no Estado Social, com gradual ampliação do seu

203 PÉREZ LUÑO, A. E. -«Dimensiones sobre la igualdad material». In Anuário de Derechos Humanos, n.º3, Madrid, 1985.

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âmbito e a aquisição de novas dimensões isonónicas.

Na primitiva concepção liberal está em causa uma afirmação formal na aplicação igual do direito (igualdade perante a lei, do artigo 1.º da Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789), integrando dois elementos204: «a igual capacidade de todos os cidadãos face à aplicação do aplicação do direito pelos tribunais», e a exigência de «generalidade da lei». Trata-se de uma concepção de igualdade formal, no ponto de partida de cada um, mas sem conteúdo jurídico que leve à sua real vigência, e que portanto por si só se transformará em meio de descriminação. Com efeito205, ele «oferece na sua aplicação à vida inúmeras e sérias dificuldades». De facto, ele é indissociável da realização da justiça, pois «conduziria a inomináveis injustiças se importasse em tratamento igual para os que se achem em desigualdade de situações»206.

204 GARCIA DE MORA, M. V. G. y A. et alteri- Derecho Constitucional III: Derechos y Libertades. Madrid: Colex, 2003, p.99.

205 Como refere Manuel Gonçalves Ferreira Filho -Comentários à Constituição de 1967. Saraiva, São Paulo, 1983, p.587.

206 MALUF, Said - Direito Constitucional. 13.ª Ed., São Paulo: Sugestões Edições, 1983, p.337.

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É de destacar que o princípio da igualdade já era entendido como um conceito de justiça na análise do filósofo grego Aristóteles, que se referiu a ela da seguinte forma207: «Assim pois, se o injusto é desigual, o justo é igual…E uma vez que o igual é um termo médio, o justo será também um termo médio… Necessariamente o justo será um termo médio e igual em relação com algo e com alguns».

3.5.3.Precocemente, os EUA haviam marcado o avanço histórico, em 28 de Julho de 1868, com a sua décima quarta Emenda Constitucional208.

Na Europa, tal só ocorreria posteriormente, com a crise do Estado liberal, que permitiu superar tal concepção, com uma evolução teórica que apontará claramente para uma igualdade-finalidade, igualdade no ponto de chegada209, ou igualdade na lei, no conteúdo da normação, funcionando como um comando e um limite

207 Ética Nicomáquea, tradução espanhola, Livro V, nº.3, Madrid, Gredos, 1985, p.243.

208 O.c., p.99.209 RUBIO LLORENTE, F. -Juez y ley desde el punto de vista

del princípio de igualdad. In La Forma del Poder. Estudios sobre la Constitución. Centro de Estudios Constitucionales. Madrid, 1993, p.656.

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ao legislador, materializado no seu reconhecimento constitucional.

O principio da igualdade dos homens foi consagrado pela primeira vez no Virgínia Bill of Rights, de 12/06/1776 («Todos os homens são pela natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos direitos que lhe são inerentes»), foi retomada na Constituição de Massachussets, de 2.3.1780, que afirma que «todos os homens nascem livres e iguais e têm certos direitos naturais, essenciais e inalienáveis» e, depois, aperfeiçoado no artigo n.º1 da Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, segundo a qual os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. A Constituição francesa de 1791 viria, depois, consignar, no seu preâmbulo o seguinte: A Assembleia Nacional «Elimina irrevogavelmente as instituições que agridam a liberdade e a igualdade dos direitos. Já não há nem nobreza, nem pares do reino, nem distinções hereditárias, nem de ordens, referindo-se, neste último caso, aos três estamentos sociais componentes das Cortes monárquicas tradicionais: o clero, a nobreza e o povo.

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3.5.4.Hoje, o princípio da igualdade é proclamado como um valor fundamental, não só pelas constituições de diversos países, como também por duas das mais importantes declarações de direitos: a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

Apesar disso, o sentido e alcance do princípio da igualdade assumam uma dimensão histórica, como referiu Castanheira Neves210: «é um daqueles princípios que, pela densa carga ideológica e axiológica que lhes vai imanente, não permanecem inalterados no seu sentido autêntico ao longo do tempo, apesar da constância das formulas, e antes terão de ser sempre compreendidas no contexto histórico e social em que se proclamem».

3.5.5.Em Portugal, o princípio da igualdade está consagrado no artigo 13.º de Constituição da Republica Portuguesa. Refere o seu n.º1 que «todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei». No nº.2 proíbe distinções que

210 Curso de Introdução ao Estudo do Direito, Lições Proferidas a um Curso do 1.º Ano da Faculdade de Direito de Coimbra no Ano Lectivo 1971-72, p. 118-119.

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se traduzam na Constituição de privilégios, benefícios, prejuízos, privação de qualquer direito ou isenção de qualquer dever com base na «ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções politicas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual». Acresce no nº.9, al. d) a promoção da igualdade real entre os portugueses. No artigo 47, nº.2 refere que «todos os cidadãos têm acesso à função pública, em condições de igualdade». O artigo 50 nº.1, proclama o «direito de acesso em condições de igualdade aos cargos públicos». O artigo n.º58 nº.3, al. b) «igualdade de oportunidades na escolha da profissão». O artigo n.º 59, nº.1, al. a) diz que para «trabalho igual salário igual, sem distinção de idade, sexo, cidadania, território de origem, religião e convicções politicas e ideológicas». O artigo n.º74, nº.1 refere a «Igualdade de oportunidades de acesso ao ensino e êxito escolar».

3.5.6.No contexto dos valores afirmados na ordem constitucional portuguesa, a justificação do conceito ínsito ao princípio da igualdade assenta na isonomia ligada à dignidade social dos

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cidadãos, derivada da igual dignidade humana de todas as pessoas, o que transforma este principio numa regra fundamental do estatuto social dos cidadãos.

A nossa concepção actual ultrapassa a visão historicamente adquirida por afirmação do estado liberal, da mera igualdade perante a lei, recebendo hoje em Estado Social de direito, um conteúdo muito mais rico que se vem alargando continuamente.

Finalmente, a pluralidade das suas valências desdobra-se na imposição de igual posição de todos em matéria de direitos e deveres (interdição de privilégios ou de prejuízos discriminatórios), interdição do arbítrio, interdição de discriminações ilegítimas e obrigações de diferenciação (atribuindo-lhe uma função social e respeito por específicos direitos fundamentais no plano material determinante no labor legislativo da Administração Pública e dos Tribunais).

É um direito fundamental de invocação directa, sem necessidade de envolvimento legislativo específico. É um princípio que se encontra muitas vezes

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repetido e mesmo aplicado na construção de normas do próprio Direito Constitucional.

Podemos dizer que é um valor superior do ordenamento jurídico, juntamente com a justiça, a liberdade, o pluralismo político e, em geral, a defesa da dignidade humana, devendo todos eles impregnar toda a ordem jurídica portuguesa.

A constituição portuguesa vai mesmo ao ponto de atribuir a este principio, a capacidade para afastar os obstáculos, para que os poderes públicos possam garantir o seu cumprimento, aparecendo assim como uma aspiração, cujo carácter finalista ao desenvolvimento da vida social.

Na sua configuração constitucional existe, de facto, um claro mandato a todos os poderes públicos: O legislativo na criação do direito, mas também o administrativo e o jurisdicional na sua aplicação, obrigando ao cumprimento efectivo da igualdade.

Exemplos de normas da constituição que o enformam, temo-lo no direito de acesso ao emprego público, igualdade do sistema tributário juntamente com a progressividade dos impostos, a igualdade dos conjugues, igualdade entre filhos legítimos e ilegítimos e muitos outros.

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3.5.7.Decompondo este princípio fundamental, distinguirei sobretudo a existência de exclusão da discriminação e o direito à diferença.

Quanto ao primeiro, podemos dizer que estamos perante uma desigualdade em face da lei, quando esta em face de pressupostos, de facto idênticos, trata de forma diferente, sem nenhuma justificação, diferentes sujeitos por algumas das causas referidas.

A discriminação na aplicação do direito conduz-nos também à desigualdade por falta de tutela judicial, quando os tribunais ditam sentenças diferentes, perante pressupostos de facto semelhantes.

A igualdade como direito à diferença impõe-se na medida em que implica a ideia de que a proibição de discriminação tenha algo de finalista.

Se a sociedade é desigual impõe-se a formulação da desigualdade compensatória, como meio de obter níveis maiores de igualdade real.

Ou seja, esta desigualdade compensatória ou descriminação positiva justifica-se precisamente, a partir da consideração finalista da igualdade, que

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implica o afastamento de uma leitura meramente formal da proibição da descriminação.

3.6. Princípio da Proporcionalidade

3.6.1.Este princípio impede o exercício desproporcional da margem de livre decisão no uso de poderes discricionários, atentatório de bens ou interesses privados em termos inidóneos (inadequados, meios manifestamente incapazes de atingir o objectivo em causa) ou mais lesivos do que o estritamente necessário para se atingir o fim público visado ou, de qualquer modo, desrazoável (ou mesmo intolerável) por traduzirem soluções de grande desequilíbrio (desproporção) entre os benefícios esperáveis e os custos a suportar.

3.6.2.As decisões administrativas que atinjam direitos ou interesses legítimos dos particulares têm de ser idóneas (adequadas), estritamente necessárias (não causando mais prejuízos àqueles do que os necessários para alcançar estas finalidades) e proporcionadas aos seus objectivos (respeitando um equilíbrio, segundo

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parâmetros materiais razoáveis, em termos de custo benefício) na justa medida entre os meios utilizados e os fins a alcançar através deles (art.º 5º, nº 2).

3.7. Princípio da Imparcialidade (artigos 3.º a 12.º) e garantias de da mesma (art.º 44 a 51 do CPA)

3.7.1.O princípio da imparcialidade, integrante do princípio da objectividade, que, pela sua importância, assumiu uma regulação garantística especialmente cuidadosa no CPA: conteúdo, importância do princípio, delimitação da imparcialidade numa abordagem subjectiva e objectiva, o procedimento garantístico de imparcialidade subjectiva, a falta de imparcialidade objectiva (défices absoluto e relativo de ponderação e excesso de ponderação dos interesses), as situações de impedimentos e de mera suspeição, os deveres do titular do órgão e do agente público envolvido, a delimitação dos casos de impedimento e de suspensão, a escusa, o sub-procedimento Administrativo, os efeitos sancionatórios em relação ao acto administrativo e ao agente, são tudo temas que não podem deixar de ser abordados.

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Em geral, podemos, prima facie, reduzir a ideia central deste princípio, dizendo que, na sua acção concreta, os órgãos da Administração Pública devem ser isentos, não se deixando influenciar por razões subjectivas ou pessoais, que os levem a favorecer ou desfavorecer indevidamente certos particulares (art.º 6.º), designadamente tomando em consideração todos os interesses públicos e privados juridicamente relevantes.

3.7.2.Quais as causas e qual a aplicação concreta do princípio da imparcialidade (art.º 44 a 51; impedimentos: 44.º e suspeição: 48.º do CPA)?

As garantias de imparcialidade, impõem-se através da previsão de impedimento de carácter absoluto ou sujeito a apreciação interna para a intervenção no procedimento administrativo.

O procedimento a efectivar, face à constatação de uma situação de impedimento, passa pela comunicação imediata do agente público211 (n.º 1 do artigo 45.°: «…deve o mesmo comunicar

211 Os actos em que tiverem intervindo ilegalmente os agentes são anuláveis, além de que a omissão do dever de comunicação no caso das situações de impedimento constitui falta grave para efeitos disciplinares (artigo 51.°).

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desde logo o facto ao respectivos superior hierárquico ou ao presidente do órgão colegial dirigente, consoante os casos) e auto-suspensão da sua actividade concreta ou requerimento de interdição pelo destinatário do acto (n.º2: «Até ser proferida a decisão definitiva ou praticado o acto, qualquer interessado pode requerer a declaração do impedimento, especificando as circunstâncias de facto que constituam a sua causa»), com auto-suspensão do referido titular, a partir do conhecimento do mesmo (início do n.º1 do artigo 46.°: «O titular do órgão ou agente deve suspender a sua actividade no procedimento logo que faça a comunicação» ou «tenha conhecimento do requerimento» do interessado, «até á decisão do incidente), salvo se receber uma ordem em contrário do superior hierárquico; aguardando posterior declaração do impedimento pelo superior hierárquico ou presidente do órgão colegial (n.º3 do art.º 45º: «Compete ao superior hierárquico ou ao presidente do órgão colegial conhecer da existência do impedimento e declará-lo ouvindo, se considerar necessário, o titular do órgão ou agente») ou pelo órgão, tratando-se do presidente (n.º 4 do art. 45º: «Tratando-se

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do impedimento do presidente do órgão colegial a decisão do incidente compete ao próprio órgão sem intervenção do presidente»), a verificarem-se as circunstâncias invocadas (n.º3 do art. 45.º e n.º 1, in fine do art. 46.º). Logo que o impedimento seja declarado, o titular agente será imediatamente substituído no procedimento pelo seu substituto legal, a menos que o superior hierárquico resolva tratar directamente da questão, avocando-a. No caso de estarmos perante um órgão colegial, em que não haja ou não possa designar-se substituto, ele funcionará sem o membro impedido e, ou seja, sem a sua pronúncia, quer no caso de resoluções quer de meros pedidos de emissão da pareceres ou informações burocráticas (artigo 47.°). Portanto, tratando-se de um órgão colegial, ocorrerá obrigatoriamente a não participação do impedido no ponto da ordem de trabalhos em causa (e não presidência da reunião, sendo presidente).

3.7.3.Entre as causas do impedimento absoluto, e, portanto de eficácia automática, temos algumas subjectivas (desde logo, interesse próprio ou de familiar próximo, etc.) e outras objectivas (situações

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anteriores que possam fazer perigar a imparcialidade).

Assim (com excepção das intervenções que se traduzam em actos de mero expediente, designadamente actos certificativos), impõe-se que o agente não intervenha em procedimento administrativo ou em acto ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública quando nele tenha interesse, por si, como representante ou como gestor de negócios de outra pessoa; por si ou como representante de outra pessoa, nele tenha interesse o seu cônjuge, algum parente ou afim em linha recta ou até ao 2.° grau da linha colateral, ou qualquer pessoa com quem viva em economia comum; por si ou como representante de outra pessoa, tenha interesse em questão semelhante à que deva ser decidida, ou tal situação se verifique em relação também a cônjuge, algum parente ou afim em linha recta ou até ao 2.° grau da linha colateral, ou qualquer pessoa com quem viva em economia comum; tenha intervindo no procedimento como perito ou mandatário ou haja dado parecer sobre questão a resolver; tenha intervindo no procedimento como perito ou mandatário o seu cônjuge, parente ou afim em linha recta

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ou até ao 2.° grau da linha colateral ou qualquer pessoa como quem viva em economia comum; contra ele, seu cônjuge ou parente em linha recta esteja intentada acção judicial proposta por interessado ou pelo respectivo cônjuge; se trate de recurso de decisão proferida por si, ou com a sua intervenção, ou proferida por cônjuge, algum parente ou afim em linha recta ou até ao 2.° grau da linha colateral, ou qualquer pessoa com quem viva em economia comum ou com intervenção destas pessoas.

Quanto às medidas a tomar sejam as inadiáveis, face a estas situações de «impedimento do titular de órgão singular, aplica-se um regime especial. Com efeito, em situações de urgência ou de perigo para os interesses públicos ou outros em presença, os impedidos devem actuar mas nos termos estritamente necessários (n.º2 do art.º46.º), ficando, no entanto, as medidas tomadas sujeitas a ratificação pelo substituto, sob pena de caducidade e nova gestão do procedimento (art.º 47.º).

3.7.4.Quanto às garantias de imparcialidade de valor relativo, em que apenas se possam colocar dúvidas sobre a isenção do agente, mas em que esta

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hipótese já é de molde a prever cautelas jurídicas e mecanismos consequentes, importa considerar a solução de escusa oficiosa e a possibilidade de levantamento de um incidente procedimental de suspeição por parte da entidade exterior à Administração interessada na resolução da questão: o(s) destinatário(s) da medida com que terminará o procedimento..

No que se reporta ao fundamento da escusa e suspeição, independentemente da exemplificação feita pelo legislador em relação a certas situações ou factores de natureza subjectiva ou objectiva tidas como típicas embora sem carácter absoluto, o critério genérico parte de uma cláusula estabelecida no corpo do n.º1 do art.º. 48.º, que manda o agente pedir dispensa ou permite que (neste caso até ser proferida decisão definitiva) qualquer interessado possa opor suspeição para intervenção em procedimento procedimento, acto ou contrato, sempre que ocorra circunstância pela qual possa razoavelmente suspeitar-se da sua isenção ou da rectidão da sua conduta.

As situações tipificadas referem-se aos casos em que, por si ou como representante de outra pessoa, no procedimento tenha

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interesse parente ou afim em linha recta ou até ao 3.° grau de linha colateral, ou tutelado ou curatelado dele ou do seu cônjuge; o titular do órgão ou agente do seu cônjuge, ou algum parente ou afim na linha recta, for credor ou devedor de pessoa singular ou colectiva com interesse directo no procedimento, acto ou contrato; tenha havido lugar ao recebimento de dádivas, antes ou depois de instaurado o procedimento, pelo titular do órgão ou agente, seu cônjuge, parente ou afim na linha recta; se existir inimizade grave ou grande intimidade entre o titular do órgão ou agente ou o seu cônjuge, e a pessoa com interesse directo no procedimento, acto ou contrato:

3.7.5.No que se refere aos elementos formais, deve ocorrer um pedido formal agente (que a entidade competente pode exigir que seja efectivado por escrito) ou um requerimento escrito formulado pelo interessado à entidade competente para o conhecer (indicando com precisão os factos que o justifiquem), neste caso seguindo-se a audição do titular do órgão ou agente visado e depois a apreciação e eventual dispensa de intervenção (artigo 49.° e 50.º). A

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decisão deve ser proferida no prazo de oito dias, para não permitir o protela da decisão.

3.8. Princípio da Boa-Fé

3.8.1.A Administração Pública e os particulares devem, nas suas relações, agir com boa-fé, tendo presente:

a)- por um lado, a confiança e previsibilidade suscitada na contra-parte, que podem resultar dos seus comportamentos, em especial, respeitando essa confiança que possa ter sido criada pela sua actuação anterior e que merece tutela por parte do direito; e,

b)- por outro, a primazia dos aspectos materiais subjacentes à questão em apreço nas decisões em que, apesar das irregularidades formais, não saem prejudicados os objectivos ínsito á normatividade, na medida em que não deixem de ser atingidos (art.º 6º-A).

3.8.2.A protecção da confiança legítima (que não permite a frustração dessa confiança) pode ocorrer, v.g., com o encurtamento de um prazo anunciado ou pretensão de sancionar um funcionário que

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se ausentou autorizado, mesmo que em termos ilegais ou perseguindo actividades que incitou o outro a promover; o decidir contra informação, retirando aquilo a que anteriormente se comprometera dando em geral o dito por não dito, etc.

3.8.3.A entender-se que o princípio da igualdade não funciona em situações anteriores que eram ilegais, então em face de diferente tratamento, a tutela da confiança exige indemnização pelos gastos, desde que lesado demonstre carácter não censurável do seu desconhecimento da ilegalidade da conduta administrativa esperada, ao invocar a expectativa a uma solução igual.)

3.8.4.Os pressupostos jurídicos da tutela da confiança são quatro:

a)- confiança criada na outra parte (crença subjectiva na possibilidade de um certo comportamento futuro);

b)- idoneidade dos elementos em si mesmos para poderem ter razoavelmente criado a plausibilidade de um certo comportamento (existência de- fundamento objectivo da confiança);

c)- ocorrência de situações

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preparatórias de actuações futuras na crença de comportamentos administrativos concordantes ou viabilizadores das mesmas e cujo impedimento ou bloqueamento provoque danos à outra parte (provocação de prejuízos, resultantes de actuações concretas baseadas na confiança criada); e, finalmente,

d)- um nexo relacional permitindo imputar os prejuízos à frustração da confiança (relação adequada entre dano e comportamento alheio à confiança criada).

3.9. Princípio da Decisão

3.9.1.Não é legítimo, aos órgãos da Administração Pública, manterem-se pura e simplesmente silenciosos perante as questões que lhes sejam postas pelos particulares.

Têm o dever de decidir sobre quaisquer assuntos que lhes sejam apresentados, quer se trate de matérias que digam directamente respeito aos que se lhes dirigem (e requerem a sua resolução em procedimento administrativo originário ou derivado: reclamação e recurso administrativos), quer de petições, queixas,

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reclamações em defesa da Constituição, das leis ou do interesse geral (artº9º).

2.9.2.Este dever só deixa de existir se a entidade competente já se tiver pronunciado há menos de dois anos sobre igual pedido, apresentado pelo mesmo particular com idênticos fundamentos.

3.10. Princípio da Gratuitidade

3.10.1. O procedimento administrativo é gratuito, excepto quando a lei especial permitir eu assim não seja (artº 11º).

3.10.2.No entanto, quando haja lei especial que imponha o pagamento de qualquer taxa ou despesa efectuada pela Administração, o particular que comprove falta de meios económicos será destas isento, total ou parcialmente, conforme os casos212.

3.11.Princípio da Colaboração da Administração com os Particulares

212 A situação de insuficiência é enquadrar pela Lei n.º30-E/2000, de 20.12.

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A Administração Pública deve colaborar estreitamente com os particulares, prestando-lhes, em especial, as informações e esclarecimentos de que necessitem (art.º 7.º). Desenvolvendo este princípio, o Decreto-Lei nº129/91, de 2 de Abril (art.º 2.º), dispõe que, nas situações em que sejam possíveis procedimentos diferentes para conseguir um mesmo resultado, a Administração Pública deve adoptar o que seja mais favorável ao particular, em especial para a obtenção de documentos, comunicação de decisões ou transmissão de informações.

3.12.Princípio da sujeição ao controlo dos órgãos jurisdicionais a quem cabe a sua aplicação imparcial.

3.12.1.O acesso dos destinatários das suas decisões à Justiça administrativa:, efectivado enquadrado pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais213 e Código do Processo nos Tribunais Administrativos214, em princípio (com

213 Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, alterada pela Lei nº4-A/2003, de 19 de Fevereiro.

214 Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, Aprova o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (revoga o Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho) e procede à quarta alteração do Decreto-Lei n.º555/99, de 16 de Dezembro, alterado pelas Leis n.os

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excepções) quando tenha sido aplicado o direito administrativo (gestão pública) e aos Tribunais Judiciais, na maior parte dos casos em que tenha sido aplicado direito privado, em geral administrativizado (gestão privada):

3.12.2. Em breve descrição da organização dos tribunais administrativos, refere-se que existem os designados Tribunais Administrativos de Círculo, dispersas pelo país, sediados em geral a nível distrital ou regional, dois Tribunais Centrais Administrativos, o Sul, com sede em Lisboa e o Norte, com sede no Porto, e o Supremo Tribunal Administrativo, situado em Lisboa.

3.12.3. Quanto ao enunciação da tipologia dos meios processuais nos tribunais administrativos, refira-se que o direito de acesso aos tribunais em questões envolvendo a Administração Pública (artigo 2.º), na realização do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva, abrange o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, cada 13/2000, de 20 de Julho, e 30-A/2000, de 20 de Dezembro, e pelo Decreto-Lei n.º 177/2001, de 4 de Julho.

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pretensão regularmente deduzida em juízo e de a fazer executar e, ainda, de obter as providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, destinadas a assegurar o efeito útil da decisão, designadamente a suspensão de decisões ilegais.

Nestes termos, a todo o direito subjectivo ou interesse legalmente protegido e mesmo interesse simples (que mereça protecção jurídica) corresponde a tutela adequada junto dos tribunais, designadamente para o efeito de obter o reconhecimento de situações jurídicas subjectivas directamente decorrentes de normas jurídico-administrativas ou de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo, o reconhecimento da titularidade de qualidades ou do preenchimento de condições; o reconhecimento do direito à abstenção de comportamentos e, em especial, à abstenção da emissão de actos administrativos (quando exista a ameaça de uma lesão futura), a anulação ou a declaração de nulidade ou inexistência de actos administrativos; a condenação da Administração ao pagamento de quantias, à entrega de coisas ou à prestação de factos, a condenação da Administração à

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reintegração natural de danos e ao pagamento de indemnizações, a resolução de litígios respeitantes à interpretação, validade ou execução de contratos (cuja apreciação pertença ao âmbito da jurisdição administrativa); a declaração de ilegalidade de normas (emitidas ao abrigo de disposições de direito administrativo), a condenação da Administração à prática de actos administrativos legalmente devidos; a condenação da Administração à prática dos actos e operações necessários ao restabelecimento de situações jurídicas subjectivas; a intimação da Administração a prestar informações, permitir a consulta de documentos ou passar certidões e, como se referiu, a adopção das providências cautelares adequadas para assegurar o efeito útil da decisão.

3.12.4. No que diz respeito aos poderes dos tribunais administrativos (que se pretendem pautados pelo respeito pelo princípio da separação e interdependência dos poderes e, por isso, restritos apenas do cumprimento pela Administração das normas (regras e princípios jurídicos) que a vinculam (e não da conveniência ou oportunidade da sua actuação, questão que

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apenas pode ser colocada por quem se sinta prejudicado em sede de impugnações administrativas: reclamações ou recursos).

3.12.5. Em geral, podem fixar oficiosamente um prazo para o cumprimento dos deveres que se imponham à Administração e aplicar, quando tal se justifique, medidas para assegurar a execução das suas sentenças, designadamente daquelas que proferem contra a Administração, desde a emissão de sentença que produza os efeitos do acto administrativo devido (quando a prática e o conteúdo deste acto estejam estritamente vinculados), e de providenciar pela concretização material do que foi determinado na sentença (art.º3.º), cujo cumprimento, independentemente de imposição de sanções penais (crime de desobediência á autoridade jurisdicional), está garantido através da possibilidade de impor medidas financeiras compulsórias (a cargos do património dos titulares dos órgãos incumpridores).

3.12.6. No que se refere às diferentes formas de processo, existe as formas de acções com processo administrativo comum

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(artigo 35.º), nas formas ordinária, sumária e sumaríssima e acções administrativas especiais, que se regem pelas disposições deste CPTA e pelas disposições gerais, sendo subsidiariamente aplicável o disposto na lei processual civil.

Assim, seguem, entre outras situações, a forma da acção administrativa comum regulada no Código de Processo Civil, os processos que tenham por objecto litígios relativos a reconhecimento de situações jurídicas subjectivas directamente decorrentes de normas jurídico-administrativas ou de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo, reconhecimento de qualidades ou do preenchimento de condições, condenação à adopção ou abstenção de comportamentos, designadamente a condenação da Administração à não emissão de um acto administrativo, quando seja provável a emissão de um acto lesivo, condenação da Administração à adopção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos ou interesses violados, condenação da Administração ao cumprimento de deveres de prestar que directamente decorram de normas jurídico-administrativas e não

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envolvam a emissão de um acto administrativo impugnável, ou que tenham sido constituídos por actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo, e que podem ter por objecto o pagamento de uma quantia, a entrega de uma coisa ou a prestação de um facto, responsabilidade civil das pessoas colectivas, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, incluindo acções de regresso, condenação ao pagamento de indemnizações decorrentes da imposição de sacrifícios por razões de interesse público, interpretação, validade ou execução de contratos, enriquecimento sem causa e relações jurídicas entre entidades administrativas.

3.12.7. Quando, sem fundamento em acto administrativo impugnável, particulares, nomeadamente concessionários, violem vínculos jurídico-administrativos decorrentes de normas, actos administrativos ou contratos, ou haja fundado receio de que os possam violar, sem que, solicitadas a fazê-lo, as autoridades competentes tenham adoptado as medidas adequadas, qualquer pessoa ou entidade cujos direitos ou interesses sejam

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directamente ofendidos pode pedir ao tribunal que condene os mesmos a adoptarem ou a absterem-se de certo comportamento, de forma a assegurar o cumprimento dos vínculos em causa.

3.12.8. E seguem a forma da acção administrativa especial os processos cujo objecto sejam pretensões emergentes da prática ou omissão ilegal de actos administrativos e de normas, que tenham ou devessem ter sido emitidas ao abrigo de disposições de direito administrativo.

Nestes processos podem ser formulados os seguintes pedidos principais: anulação de um acto administrativo ou declaração da sua nulidade ou inexistência jurídica, condenação à prática de um acto administrativo legalmente devido, e, ainda, quer a declaração da ilegalidade de uma norma emitida ao abrigo de disposições de direito administrativo ou a declaração da ilegalidade da não emanação de uma norma omitida, por dever ter sido emitida ao abrigo de disposições de direito administrativo.

3.12.9. A impugnação de actos administrativos praticados no âmbito do

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procedimento de formação de contratos rege-se pelas mesmas regras do processo especial geral e ainda pelo regime especial do contencioso contratual, respeitante à impugnação de certos actos (artigo 46.º) relativos à formação dos contratos de empreitada, concessão de obras públicas, prestação de serviços, fornecimento de bens, e, ainda, o programa do concurso, caderno de encargos ou qualquer outro documento conformador do procedimento de formação destes contratos (com fundamento na ilegalidade das especificações técnicas, económicas ou financeiras que constem desses documentos), sendo equiparados a actos administrativos os actos dirigidos à celebração de contratos destes tipos, que sejam praticados por sujeitos privados, no âmbito de um procedimento pré-contratual de direito público (artigos 100.º e seguintes).

3.12.10.Estão também à disposição dos cidadãos, desde logo, além doutros processos previstos em leis específicas, processos especificados com carácter urgente, destacando-se os relativos ao contencioso eleitoral, contencioso pré-

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contratual, intimação para prestação de informações, consulta de documentos ou passagem de certidões, intimação para defesa de direitos, liberdades e garantias e várias providências cautelares, de acordo com o CPC215.

3.12.11. Recapitulando e sintetizando, destaquem-se as inovações dos recentes ETAF, quanto à competência e alçada dos diferentes tribunais, e CPTA216, com as novas formas de acções administrativas, as comuns e as especiais, e os processos urgentes (processo de suspensão dos actos administrativos, processo contencioso pré-contratual; de intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias e, também, de intimação em domínios urbanísticos e para a prestação de informações, a consulta

215 Estes processos correm em férias, com dispensa de vistos prévios, mesmo em fase de recurso jurisdicional, e os actos da secretaria são praticados no próprio dia, com precedência sobre quaisquer outros (artigo 36.º).

216 Que, como dizem MÁRIO e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, vieram terminar com o «desacreditado sistema judiciário e processual administrativo com que vivemos em Portugal até 31 de Dezembro de 2003», fazendo-nos passar «de chofre (…) ao século XXI do direito do processo nos tribunais administrativos, com a instituição de um sistema de garantias judiciais que nos coloca, pelo menos na perspectiva normativa, no grupo da frente das ‘nações civilizadas’ mais progressivas neste aspecto, seja na Europa, seja fora dela»: Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Volume I. Estatuto dos tribunais Administrativos e Fiscais. Anotados, p.7.

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de documentos ou a passagem de certidões e providências cautelares).

No que se refere às acções, refira-se ainda a acção comum popular, as acções da Administração Pública contra particulares; as acções de reconhecimento ou simples apreciação, seja de situações jurídicas subjectivas derivadas directamente de normas administrativas ou actos jurídicos, praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo, seja de qualidades ou preenchimento de condições cujo reconhecimento não esteja sujeito à exigência de decisão administrativa prévia, condenação da Administração Pública à não emissão de um provável acto administrativo lesivo; acções de condenação da Administração Pública à adopção de condutas necessárias para reconstruir os factos integrantes da situação hipotética necessários ao restabelecimento de direitos ou interesses violados, por omissão de actuações legalmente exigíveis ou por actuações ilegais, jurídicas ou por meras operações materiais, designadamente em via de facto; acções de condenação da Administração Pública ao cumprimento de deveres de prestações de dinheiro, factos ou coisas derivados de direitos subjectivos

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directamente resultantes de normas relacionais sem necessidade de qualquer acto administrativo constitutivo; acções de indemnização por responsabilidade civil contra entidades públicas (agindo em gestão pública ou privada), ou entidades particulares exercendo a função administrativa quanto aos actos submetidos ao enquadramento do direito administrativo, e, solidária ou isoladamente, contra titulares ou membros de órgãos administrativos e servidores públicos e respectivas acções de regresso; acções comum contratual: sobre existência, alteração, interpretação, validade, execução e extinção de contratos e responsabilidade deles derivada; acções sobre contratos referentes ao modo de exercício de poderes públicos (contratos obrigacionais); acções sobre prestações restitutivas devidas a situações de enriquecimento sem causa; acções entre entidades administrativas; acções administrativas contra particulares investidos ou não em tarefas de função administrativa. E ainda o regime de conhecimento, a título incidental, em acções comuns, da ilegalidade de actos administrativos já não impugnáveis.

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Quanto à acção administrativa especial, prevista para pretensões emergentes da prática ou omissão ilegal de actos administrativos e de normas enquadráveis pelo direito administrativo, importa referir a existência do regime de cumulação de pedidos e de processos em massa, além dos de anulação –assim como, da declaração de nulidade ou de inexistência- de acto administrativo, condenação à prática de acto legalmente devido, declaração de ilegalidade de norma emitida ou da sua indevida não emissão (quando tal ilegalidade resulte de disposições de direito administrativo), assim como a impugnação de actos administrativos praticados no âmbito da formação de contratos (sem prejuízo do regime especial de contratos especificados no artigo 100.º e ss. do CPTA).

3.13.Princípio da responsabilização e garantia patrimonial

3.13.1. Enquadramento Normativo.

O actual regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais

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entidades públicas217, cujo fundamento doutrinal aparece normalmente assente na ideia da «anormalidade de uma agressão excessiva ao princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos»218, e que abarca em geral todos os danos decorrentes do exercício da função administrativa, legislativa e jurisdicional, que foi objecto de uma significativa reforma no sentido de melhor defender os direitos das pessoas, vindo cumprir normas de UE, em face designadamente de condenações recentes do TJUE, consta da recente Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro219, que vem

217 Este novo regime entra em vigor no prazo de 30 dias após a data da sua publicação (artigo 6.º).

218 ROUGEVIN-BAVILLE, Michel -«La spécificité du droit public». In La Responsabilité administrative, Paris : Hachette, 1992, p.16.

219 Diário da República, 1.ª Série, n.º 251, p. 9117 e ss. Esta lei revoga o Decreto -Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967, e os artigos 96.º e 97.º da Lei das atribuições e competências autárquicas, a Lei n.º169/99, de 18 de Setembro, na redacção da Lei n.º 5-A/2002, de 11 de Janeiro. Entra em vigor no dia 30 deste mês de Janeiro de 2008. Com efeito, segundo o artigo 279º (Cômputo do termo), á fixação do termo são aplicáveis, em caso de dúvida, as seguintes regras: a)Se o termo se referir ao princípio, meio ou fim do mês, entende-se como tal, respectivamente, o primeiro dia, o dia 15 e o último dia do mês; se for fixado no princípio, meio ou fim do ano, entende-se, respectivamente, o primeiro dia do ano, o dia 30 de Junho e o dia 31 de Dezembro; b)

Na contagem de qualquer prazo não se inclui o dia, nem a hora, se o prazo for de horas, em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr; c)O prazo fixado em semanas, meses ou anos, a contar de certa data, termina às 24 horas do dia que corresponda, dentro da última semana, mês ou ano, a essa data;

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sistematizar toda esta matéria da sujeição a responsabilização em relação aos actos políticos, legislativos, jurisdicionais e administrativos, tendo presente o direito constitucional (artigo 22.º da CRP220, com o seu princípio de responsabilidade e garantia patrimonial, que abarca todo o tipo de funções públicas e não apenas as da Função Administrativa221), independentemente dos regimes substantivos que enforma o conteúdo dessa responsabilidade e dever de concretizar tal sujeição a indemnização.

3.13.2. Elementos constitutivos da responsabilização

mas, se no último mês não existir dia correspondente, o prazo finda no último dia desse mês; d)É havido, respectivamente, como prazo de uma ou duas semanas o designado por oito ou quinze dias, sendo havido como prazo de um ou dois dias o designado por 24 ou 48 horas; e)O prazo que termine em domingo ou dia feriado transfere-se para o primeiro dia útil; aos domingos e dias feriados são equiparadas as férias judiciais, se o acto sujeito a prazo tiver de ser praticado em juízo.

220 Artigo 22.º (Responsabilidade das entidades públicas): O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.

221 MEDEIROS, Rui –Ensaio sobre a responsabilidaade do estado por actos legislativos. p.85-88; CANOTILHO, Gomes; MOREIRA, Vital –Constituição da República Portuguesa Anotada. 3.ª ed., Coimbra Ed., 1993, p.168;

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Em geral, existe a obrigação de indemnizar danos, sejam de natureza patrimonial ou não patrimonial222, já produzidos e a produzir no futuro, em face de factos (acções ou omissões), culposos (responsabilidade subjectiva, pela culpa individualizável ou por culpa de serviço) ou resultantes de actividades, coisa ou serviços especialmente perigosos (responsabilidade objectiva ou pelo risco) ou sacrificadoras de um particular por lhe imporem encargos ou causar prejuízos especiais ou anormais (no interesse público, nessa medida, por factos lícitos), originados por entidades com poderes públicos e seus actores funcionais, na medida em que exista um nexo de causalidade adequada na sua produção.

Estes são, pois, os elementos constitutivos da responsabilidade: facto; dano; culpa (facto interdito: culpa, facto «permitido»: risco; ou facto justificado:

222 Segundo o artigo 496-º do CCV (Danos não patrimoniais), na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

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interesse público e cláusula vital: normalmente previsto na lei ou com base em razões de legalidade excepcional).

3.13.3. Conteúdo da obrigação de indemnizar

Quanto aos modos de reparação dos danos, nos termos gerais de direito, a obrigado de reparar um dano implica a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, devendo a respectiva indemnização ser fixada em dinheiro223 apenas quando essa reconstituição natural já não seja possível, não seja adequada a reparar integralmente os danos ou, em situações excepcionais, se torne desproporcionalmente inexigível, por excessivamente onerosa e tal substituição não ofenda manifestamente o valor justiça que deve nortear a aplicação do direito, cabendo aqui ao juiz um papel aberto à criatividade em termos de uma normatividade jusracional.

Portanto, a regra geral é a reconstituição natural e só nas situações

223 Artigo 3.º

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legalmente previstas existe indemnização por compensação financeira

3.13.4. Entidades sujeitas a responder por danos

No plano do seu âmbito subjectivo de aplicação, este novo regime de direito público sobre a responsabilidade civil extracontratual por danos resultantes do exercício de funções públicas aplica-se:

a)- às entidades do Estado e a todas as pessoas colectivas de direito público, que desempenhem tarefas administrativas, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, legislativas e jurisdicionais;

b)- aos titulares de órgãos, funcionários, agentes públicos e trabalhadores em geral224, por danos decorrentes de acções ou omissões adoptadas no exercício das funções administrativa e jurisdicional e por causa

224 N.º4 do artigo 1.º: «As disposições da presente lei são ainda aplicáveis à responsabilidade civil dos demais trabalhadores ao serviço das entidades abrangidas, considerando -se extensivas a estes as referências feitas aos titulares de órgãos, funcionários e agentes».

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desse exercício.

3.13.5.O critério geral do exercício da função administrativa pública

No que se refere ao exercício da Função Administrativa do Estado- Comunidade, este regime é ainda aplicável, quanto ao exposto neste regime administrativo, quer às pessoas colectivas de direito público que ajam em gestão privada, ou seja, em geral ao abrigo de normas do regime de responsabilidade civil extracontratual de direito privado, cuja lei não prevalece mesmo que haja remissão normativas de direito administrativo para a sua aplicação (artigo 2,º do DL de aprovação deste regime), quer, nas mesmas condições aplicáveis nas entidades de direito público, às pessoas colectivas de direito privado e seus trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares (n.º5 do artigo 1.º do RRCEE), nas tarefas que traduzam o exercício da Função Administrativa, por concessão ou delegação.

3.13.6.Regimes especiais de responsabilização

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Fora deste regime ficam apenas os regimes previstos em leis especiais, desde que não contenham antinomias com normas de aplicação prevalecente de direito internacional, da União Europeia ou leis de valor reforçado, o que significa que fica, pois, salvaguardado qualquer regime especial de responsabilidade civil por danos originados no exercício da função administrativa.

3.13.7.Noção de ilicitude e tipologia da culpa (individualizável ou de serviço, por normal funcionamento deste), dolo, negligência grave ou culpa leve (presunções iuris tantum) no exercício da função administrativa:

A)-Responsabilidade pela culpa

a)-Noção de culpa individualizável e presunção de culpa leve

Considera-se ilícita toda a acção ou omissão de titular de órgãos ou de qualquer agente da administração que viole disposições ou princípios jurídicos (constitucionais, legais ou regulamentares)

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ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos (n.º1 do art.º 9.º).

A culpa desses titulares de órgãos e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão agente da AP zeloso e cumpridor225.

E existe responsabilidade pessoal dos titulares e outros agentes da AP pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, por eles cometidas com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo (n.º1 do art.º 8.º).

A culpa leve presume -se em geral na prática de actos jurídicos ilícitos, sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave (presunção iuris tantum). E, para além dos casos previstos em outras leis, também se presume, em face da aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil, sempre que tenha havido incumprimento de deveres de vigilância (n.º3 do art.º10.º.

225 N.º1 do art.º 10.º.669

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b)- Noção de ilicitude com culpa não individualizável («culpa» do serviço)

Também existe ilicitude quando os danos não tenham resultado de ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos assacáveis a comportamento concreto de determinado titular de órgão ou agente da AP, ou não seja possível provar a autoria pessoal da acção ou omissão, situação em que é imputado ao funcionamento anormal do serviço.

Este funcionamento anormal ocorre sempre que, atendendo às circunstâncias e a padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço uma actuação susceptível de evitar os danos produzidos (n.º 2 do art.º 9. e 2 e e 3 do artigo 7.º).

3.13.8. Vejamos as situações de responsabilidade exclusiva da AP.

Há responsabilidade exclusiva da AP no caso de culpa leve, impossibilidade de imputação individual e anormal funcionamento do serviço. Ou seja, todas as pessoas colectivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos

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que resultem de acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos ou restantes agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício. Tal como o são, também, responsáveis, quando os danos não tenham resultado do comportamento concreto de um titular de órgão, funcionário ou agente determinado.

3.13.8. Titulares do direito à reparação

No que se refere ao âmbito subjectivo activo, é também concedida indemnização às pessoas lesadas por violação de norma, ocorrida no âmbito de procedimento de formação dos contratos226 referidos no artigo 100.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. O regime aqui

226 Estão abrangidos pelo artigo 100.º do CPTA, ou seja sujeitos a impugnação, os actos administrativos relativos à formação de contratos de empreitada e concessão de obras públicas, de prestação de serviços e de fornecimento de bens, o programa do concurso, o caderno de encargos ou qualquer outro documento conformador do procedimento de formação dos contratos, com fundamento na ilegalidade das especificações técnicas, económicas ou financeiras que constem desses documentos, sendo equiparados a actos administrativos os actos dirigidos à celebração desses contratos, que sejam praticados por sujeitos privados, no âmbito de um procedimento pré-contratual de direito público.

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estabelecido impõe que os processos do contencioso pré-contratual, que devem ser intentados no prazo de um mês a contar da notificação dos interessados ou, não havendo lugar a notificação, da data do conhecimento do acto, tenham carácter urgente. (artigo 101.º). Estes processos obedecem em geral à tramitação estabelecida para a acção administrativa especial (artigo 78.º e seguintes), com algumas especificidades: só são admissíveis alegações no caso de ser requerida ou produzida prova com a contestação e os prazos a observar são de 20 dias para a contestação e para as alegações, quando estas tenham lugar, 10 dias para a decisão do juiz ou relator, ou para este submeter o processo a julgamento e 5 dias nos restantes casos, podendo o objecto do processo ser ampliado à impugnação do contrato, no stermos previstos em sede do regime da modificação objectiva de instância (artigo 63.º 227), e se, na pendência

227 Artigo 63.º (Modificação objectiva de instância): «1 - Quando por não ter sido decretada, a título cautelar, a suspensão do procedimento em que se insere o acto impugnado, este tenha seguimento na pendência do processo, pode o objecto ser ampliado à impugnação de novos actos que venham a ser praticados no âmbito desse procedimento, bem como à formulação de novas pretensões que com aquela possam ser cumuladas. 2 - O disposto no número anterior é extensivo ao caso de o acto impugnado ser relativo à formação de um contrato e este vir a ser

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do processo, se verificar que à satisfação dos interesses do autor obsta a existência de uma situação de impossibilidade absoluta, o tribunal, não proferindo a sentença requerida, convida as partes a acordarem, no prazo de 20 dias, no montante da indemnização a que o autor tem direito, seguindo-se os trâmites referentes à hipótese de modificação objectiva da instância previsto no artigo 45.º228. Se o tribunal considerar aconselhável para o celebrado na pendência do processo, como também às situações em que sobrevenham actos administrativos cuja validade dependa da existência ou validade do acto impugnado, ou cujos efeitos se oponham à utilidade pretendida no processo. 3 - Para o efeito do disposto nos números anteriores, deve a Administração trazer ao processo a informação da existência dos eventuais actos conexos com o acto impugnado que venham a ser praticados na pendência do mesmo.

228 Artigo 45.º (Modificação objectiva da instância): «1 - Quando, em processo dirigido contra a Administração, se verifique que à satisfação dos interesses do autor obsta a existência de uma situação de impossibilidade absoluta ou que o cumprimento, por parte da Administração, dos deveres a que seria condenada originaria um excepcional prejuízo para o interesse público, o tribunal julga improcedente o pedido em causa e convida as partes a acordarem, no prazo de 20 dias, no montante da indemnização devida. 2 - O prazo mencionado no número anterior pode ser prorrogado até 60 dias, caso seja previsível que o acordo venha a concretizar-se em momento próximo. 3 - Na falta de acordo, o autor pode requerer a fixação judicial da indemnização devida, devendo o tribunal, nesse caso, ordenar as diligências instrutórias que considere necessárias e determinar a abertura de vista simultânea aos juízes-adjuntos quando se trate de tribunal colegial. 4 - Cumpridos os trâmites previstos no número anterior, o tribunal fixa o montante da indemnização devida.

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mais rápido esclarecimento da questão, pode, oficiosamente ou a requerimento de qualquer das partes, optar pela realização de uma audiência pública sobre a matéria de facto e de direito, em que as alegações finais serão proferidas por forma oral e no termo da qual é imediatamente ditada a sentença (artigo 103.º).

3.13.9. Situações de responsabilidade solidária e direito de regresso

A)-Responsabilidade solidária entre os vários responsáveis

Quando haja pluralidade de responsáveis, é aplicável o disposto no artigo 497.º do Código Civil (n.º 4 do art.º10.º). Ou seja, nas situações em que existem várias pessoas responsáveis pelos danos, a sua responsabilidade é solidária, ou seja, todos e cada uma delas responde pela totalidade do montante indemnizatório a que haja direito, existindo a seguir direito de regresso entre os responsáveis na medida das suas culpas e das consequências que delas advieram, à partida presumindo-

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se iguais as culpas das pessoas responsáveis229.

B)-Responsabilidade solidária entre a AP e os seus agentes (n.º2 do art.º 8.º:)

As entidades sujeitas á responsabilização civil nos termos deste regime, são responsáveis de forma solidária com os respectivos titulares de órgãos e outros agentes e trabalhadores, se as acções ou omissões tiverem sido cometidas por estes no exercício das suas funções e por causa desse exercício.

3.13.10.Direito de regresso da Administração Pública dos montantes pagos em indemnização e procedimento disciplinar contra os seus agentes (n.º3 do art.º8.º)

229 Vide também, as situações resultantes de acidentes com intervenção de viaturas de propriedade pública, o artigo 507.º do CCV, em que se prevê a responsabilidade solidária quando a responsabilidade pelo risco que recaia sobre várias pessoas, respondendo, pois, todas pelos danos causados, mesmo que haja culpa de alguma ou algumas. Acontece que, nas relações entre os responsáveis em causa, a obrigação de indemnizar reparte-se depois de harmonia com o interesse de cada um na utilização do veículo; mas, se houver culpa de algum ou de alguns, apenas os culpados respondem, sendo aplicável quanto ao direito de regresso, entre eles, ou em relação a eles, o disposto no nº 2 do artigo 497.º (artigo 507º).

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No entanto o direito de regresso só existe nos casos de comportamentos dolosos ou com culpa grave230, por parte desses agentes públicos.

Por um lado, acontece que, sempre que, nestas situações, elas satisfaçam qualquer indemnização, as entidades públicas gozam de direito de regresso contra os titulares de órgãos ou seus agentes responsáveis, competindo obrigatoriamente aos titulares de poderes de direcção, de supervisão, de superintendência ou de tutela adoptar as providências necessárias à efectivação daquele direito, sem prejuízo do eventual procedimento disciplinar (n.º 3 do art.º 8.º, parte final) ou criminal que caiba ao comportamento em causa.

Neste plano, o legislador manda efectivar o prosseguimento da acção jurisdicional em que a AP seja condenada sem que, no entanto, tenha sido ainda apurado do grau de culpa do agente. Com efeito, sempre que o Estado ou outra entidade de direito público ou privado seja condenado em responsabilidade civil fundada no comportamento ilícito adoptado por um titular de órgão ou agente seu, sem

230 Artigo 8.º676

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que tenha sido apurado o grau de culpa do titular de órgão, funcionário ou agente envolvido, a respectiva acção judicial prossegue nos próprios autos, entre a pessoa colectiva de direito público e o titular de órgão, funcionário ou agente, para apuramento do grau de culpa deste e, em função disso, do eventual exercício do direito de regresso por parte daquela (n.º4 do art.º 8.º).

O tribunal que tenha condenado a pessoa colectiva deve para o efeito remeter certidão da sentença, após o seu trânsito em julgado, à entidade ou às entidades competentes para o efectivarem231.

3.13.11. Concurso de culpas

A)-Concurso de culpa do lesado

No caso de concorrência de culpa do lesado o tribunal pode, também, tendo em conta todas as circunstâncias, reduzir ou excluir a indemnização.

Com efeito, há situações m que o lesado concorreu com culpa própria na produção da lesão

Se acontecer que, numa dada

231 Artigo 6.º677

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situação, a própria actuação do lesado ti.ver concorrido para a produção ou agravamento dos danos causados, o tribunal determinará, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que de cada uma delas tenha resultado em concreto, a indemnização e atribuir, podendo ser totalmente concedida, reduzida ou até mesmo excluída232.

Uma das razões ponderáveis, em que de qualquer modo não podem deixar de entrar ponderações relativizadoras da omissão do lesado, tendo presente a posição de fragilidade relacional e eventuais limitações culturais e financeiras de meios de reacção, prende-se com a não utilização da via processual adequada à eliminação do acto jurídico lesivo, até porque uma coisa é eliminar o acto, cuja legalidade ou adequação não danificadora cabe sempre em primeira linha à AP, e sobretudo em regime administrativo de autotutela administrativa declarativa e executiva, e outra a indemnização pelo prejuízo decorrente da não eliminação ou não eliminação tempestiva da conduta incorrecta da AP, devendo pois os tribunais

232 Artigo 4.º678

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recorrer a este expediente transformadora de uma actuação irregular dos poderes públicos em actuação irregular do lesado (quando a lei, porque em Estado de Direito apenas faculte garantisticamente a favor de cidadão certos meios gerais de defesa, sem obrigar expressamente a uma dada reacção em domínios materiais concretos, em que a sua intervenção reactiva também era exigível na defesa colaborativa de valores públicos importantes, v.g., um associação constituída para a defesa de ecrtos valores com vantagens legais específicas, e que não reage em defesa de interesses difusos para aa qual existe e recebe benefícios, apoios ou isenções, públicos, etc) cum grano salis (e excepcionalmente, em relação a cidadãos; sendo o seu campo de aplicação previsível sobretudo no âmbito dos grandes concursos e contratos públicos, alheios ao emprego público). Estamos aqui com uma norma cuja formulação, com abertura a resultados muito diferentes em face das circunstâncias concretas de cada situação, que se assemelha a uma permissão de decisão em termos perequativos ou paraperequitativos, ou seja, de um direito do caso segundo a equidade, a procura de uma justiça objectiva, embora medida pela

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subjectividade criativa do direito que ao juiz caberá sem desconhecer a desproporção entre a a obrigação de actuar correctamente dos poderes públicos e a faculdade de reagir dos lesados e a posição de responsabilidade comportamental originária de lesante, o que em princípio não havendo negligência procedimental instrutória do lesado por falta de colaboração devida, mesmo que com alguma inércia administrativa irregular face ao princípio daa oficialidade, não permite, pelo menos fora do âmbito da grande contratação pública referida, levar a considerar a AP como inocente.

Em resumo, impõe-se, neste caso, uma interpretação restritiva da previsão de concurso de culpas por falta de impugnação do acto lesivo fora das situações de negligente instrução deficiente do procedimento por parte do lesado convidado a cooperar ou casos inexistência de reacção à ilegalidade em situações especialmente exigentes: grandes concursos e contratos públicos e de silêncio em situações referentes a entidades de defesa de interesses colectivos, autárquicos ou difusos.

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B)- Concurso de facto culposo de terceiro

Quando um facto culposo de terceiro tenha concorrido para a produção ou agravamento dos danos, o Estado e as demais pessoas colectivas de direito público respondem solidariamente com o terceiro, sem prejuízo do direito de regresso (artigo 11.º).

3.1.3.12.Responsabilidade pelo risco

O princípio geral nesta matéria é que, desde que, nos termos gerais, não se comprove que houve força maior, o Estado e as outras pessoas colectivas, a que este regime é aplicável, respondem pelos danos decorrentes de actividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos.

3.13.13. Indemnização por encargo ou outro facto lícito que implique sacrifícios ou danos especiais ou anormais

As entidades da AP devem indemnizar os particulares a quem, por razões de

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interesse público, imponham encargos ou causem danos especiais e anormais. No cálculo da indemnização atender-se-á ao grau de afectação do conteúdo substancial do direito ou interesse violado ou sacrificado, além de outros elementos pertinentes233.

Os danos ou encargos são especiais se incidirem sobre uma pessoa ou um grupo, sem afectarem a generalidade das pessoas e os danos são de considerar anormais em face da sua gravidade e por excederem os custos próprios da vida em sociedade, situação em que devem merecer a tutela do direito (artigo 2.º)234.

3.1.3.14. Situações de indemnização diminuída

Quando os lesados forem em tal número que, por razões de interesse público de excepcional relevo, se justifique a limitação do âmbito da obrigação de indemnizar, esta pode ser fixada equitativamente em montante inferior ao

233 Artigo 16.º234 Seguem a forma de acção administrativa comum (al g),

n.º2 do art.º 37.º do CPTA: os pedidos de «Condenação ao pagamento de indemnizações decorrentes da imposição de sacrifícios por razões de interesse público».

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que corresponderia à reparação integral dos danos causados.

3.1.3.1.5. Sujeição do pedido a prazos de prescrição

O direito à indemnização por responsabilidade civil extracontratual das entidades que desempenham tarefas públicas e dos titulares dos órgãos e outros agentes ed trabalhadores, tal como o direito de regresso está sujeito a prescrição235, no prazo de três anos, a contar da

data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, mesmo que com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, desde que não ultrapasse o prazo da prescrição ordinária a contar do facto danoso.

O direito de regresso entre os responsáveis também prescreve nesse prazo de três anos, a contar do cumprimento. No caso de o facto ilícito, que deu origem ao dano, constituir crime, em que a prescrição legal prevista esteja sujeita a um prazo mais longo, será este prazo mais favorável o

235 Sendo-lhes também aplicável o disposto no Código Civil sobre sua suspensão e interrupção.

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prazo aplicável. No entanto, a prescrição deste direito não implica a prescrição da acção de reivindicação nem da acção de restituição por enriquecimento sem causa, se houver lugar a uma ou a outra (artigo 498.º).

3.1.3.1.6.A questão do não pagamento voluntário de indemnizações por entidades não integrantes da Administração directa do Estado. Pagamentos por dotação orçamental inscrita à ordem do CSTAF

Nas situações em que se mostrem esgotadas as providências de execução para pagamento de quantia certa previstas na lei processual civil236 sem que tenha sido possível obter o respectivo pagamento

236 Artigo 170.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (Artigo 170.º Execução espontânea e petição de execução: 1-Se outro prazo não for por elas próprias fixado, as sentenças dos tribunais administrativos que condenem a Administração ao pagamento de quantia certa devem ser espontaneamente executadas pela própria Administração no prazo máximo de 30 dias. 2 - Quando a Administração não dê execução à sentença no prazo estabelecido no n.º 1, dispõe o interessado do prazo de seis meses para pedir a respectiva execução ao tribunal competente, podendo, para o efeito, solicitar: a) A compensação do seu crédito com eventuais dívidas que o onerem para com a mesma pessoa colectiva ou o mesmo ministério; b) O pagamento, por conta da dotação orçamental inscrita à ordem do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais a que se refere o n.º 3 do artigo 172.º

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através da entidade responsável, a secretaria do tribunal notifica imediatamente o CSTAF para que emita a ordem de pagamento da indemnização, independentemente de despacho judicial e de tal ter sido solicitado, a título subsidiário, na petição de execução.

O pagamento de indemnizações devidas por pessoas colectivas pertencentes à administração indirecta do Estado ou à administração autónoma, por força de uma sentença judicial que não seja espontaneamente executada no prazo máximo de 30 dias, o crédito indemnizatório apenas pode ser satisfeito por conta da dotação orçamental inscrita à ordem do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF), se, através da aplicação do regime da execução para pagamento de quantia certa, nos termos da lei processual civil, não tenha sido possível obter o respectivo pagamento junto da entidade responsável. Neste caso de satisfação do crédito indemnizatório por via do Orçamento do Estado, o Estado goza de direito de regresso, incluindo juros de mora, sobre a entidade responsável, a exercer mediante desconto nas transferências a efectuar para a entidade

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em causa no Orçamento do Estado do ano seguinte, inscrição oficiosa no respectivo orçamento privativo pelo órgão tutelar ao qual caiba a aprovação do orçamento (se se tratar de entidade pertencente à Administração indirecta do Estado) ou acção de regresso a intentar no tribunal competente.

Esta solução, prevista a título subsidiário, não prejudica a possibilidade de o interessado solicitar directamente a compensação do seu crédito com eventuais dívidas que o onerem para com a mesma pessoa colectiva, sem necessidade de solicitar previamente a satisfação do seu crédito indemnizatório através da aplicação do regime da execução para pagamento de quantia certa previsto na lei processual civil237.

14.º- Princípio da transparência14.1. Para além destes princípios do

elenco inicial, outros estão enunciados na Constituição e disciplinados noutras partes do CPA e leis concretizadoras, devendo destacar-se os da publicidade e transparência.

237 Artigo 3.º da Lei que aprova o novo RJRCEE686

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O princípio da transparência do processado, na fase endoprocedimental, em relação aos interessados e contra-interessados está em geral disciplinado nos artigos 61.º a 64.º do CPA, e, já na fase pós-decisional, de acesso generalizado aos administrados, no artigo 65.º do CPA e na Lei n.º46/2007, de 24 de Agosto238, que veio ampliar (tratando, agora, também, a questão da reutilização da informação) a matéria da anterior Lei n.º65/93, de 26.8, que pela primeira vez veio concretizar o direito de acesso aos documentos detidos pelas Administrações públicas).

Com efeito, ela regula o acesso aos documentos administrativos, no cumprimento e concretização do direito fundamental constitucionalmente consagrado, quer em termos de documentos de acesso livre, quer no que se refere a documentos nominativos, nomeadamente quando incluam dados de saúde, efectuado pelo titular da informação, por terceiro autorizado pelo titular ou por quem demonstre um interesse directo, pessoal e legítimo (n.º3 do artigo 2.º), aplicável juntamente com a Lei específica relativa ao

238 Diário da República, 1.ª série — N.º 163 — 24 de Agosto de 2007 5681

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acesso à informação em matéria de ambiente, em transposição da última Directiva Europeia sobre a matéria, embora não na medida em que seja conforme à directiva, que é mais restritiva do que a nossa Lei geral, mas, por isso mesmo, apenas na medida em que seja mais aberta do que esta, como disciplina ainda a possibilidade da reutilização dos documentos do sector público, transpondo também para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2003/98/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Novembro, nas situações de acesso para fins diferentes do seu mero conhecimento e uso ut cives, ou seja, para defesa do interesse público, ou seja.

Já, naturalmente, o regime de exercício do direito dos cidadãos a serem informados pela Administração sobre o andamento dos processos em que sejam directamente interessados e a conhecer as resoluções definitivas continua a constar do CPA, assim como o acesso aos documentos notariais e registrais, de identificação civil e criminal, aos depositados em arquivos históricos e documentos em segredo de Estado e de Justiça mantem-se regido pela legislação específica sobre a matéria.

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Não se aproveitou a alteração para precisar e modificar no n.º2 do artigo 3.º o elenco dos documentos excluídos da classificação de administrativos, como não se modificou o valor das deliberações da CADA que continuou com uma função em geral meramente consultiva. No primeiro caso, refiram-se as situações em que se podem produzir notas meramente pessoais e outros registos pessoais mas com implicações administrativas, tal como no caso dos esboços, apontamentos e outros registos de natureza semelhante, e mesmo de documentos referentes à reuniões do Conselho de Ministros e de secretários de Estado, e à sua preparação, quando relevem material ou formalmente da actividade administrativa, quer decisória quer regulamentar.

14.2. Vejamos a disciplina fundamental do regime do acesso à informação detida por entidades da administração pública.

14.3.No seu âmbito de aplicação subjectiva entram todas as entidades organicamente integradas no exercício da Função Administrativa do Estado

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Comunidade e dos outros poderes de soberania. Aqui integram-se, hoje, também os órgãos das empresas públicas estatais e regionais, intermunicipais e municipais239. E, além das entidades de direito público, aplica-se, ainda, aos documentos detidos ou elaborados por quaisquer entidades dotadas de personalidade jurídica que tenham sido criadas para satisfazer de um modo específico necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, que sejam financiadas maioritariamente por alguma entidade pública, ou a sua gestão sujeita a um controlo por parte de alguma entidades sujeita à aplicação da obrigação de comunicação documental, os órgãos de administração, de direcção ou de fiscalização sejam compostos, em mais de metade, por membros designados entidades sujeita à aplicação da obrigação de comunicação documental.

239 E alarga-se a outras entidades que não apenas aquelas a quem incumbe o exercício de funções administrativas, mas também às que detêm poderes públicos em geral (n.º1 do artigo 4.º), o que passa a incluir a documentação de natureza administrativa das entidades do poder legislativo e jurisdicional, sem prejuízo de qualquer modo das limitações previstas e relação à actividade jurisdicional que neste estrito âmbito se rege pelo direito processual respectivo

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14.4.A comunicação de dados de saúde, hoje objecto de desenvolvimento em lei especial, a Lei 12/2005, fuge às concepções americanas da livre comunicação ao doente, mantendo-se o sistema europeu de comunicação por intermédio de médico, quando o requerente o solicite e indique médico para o efeito, a quem cabe a responsabilidade de temporalizar o volume de informação a transmitir, segundo parâmetros pautados por precauções de natureza psicológica.

14.5.O direito de acesso a documentos constantes de inquéritos e sindicâncias só existe após o decurso do prazo para o exercício de eventual procedimento disciplinar ou terminado este.

Em geral no do acesso a documentos administrativos preparatórios de uma decisão ou constantes de processos ainda não concluídos, existe um poder discricionário para o seu diferimento até à tomada de decisão. Neste caso, não tendo sido cumpridos os prazos legais para o terminar, o direito de acesso ocorre um ano após a sua elaboração, momento a partir de quando se torna de comunicação obrigatória.

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14.6.Quanto a terceiros em relação a documentos administrativos, ou seja com dados da vida íntima das pessoas (relacionados a sua vida emocional, afectiva, sexual ou com juízos de valor negativo), só lhes assiste o direito de acesso se estiverem munidos de autorização escrita da pessoa a quem os dados digam respeito ou demonstrarem um interesse directo, pessoal e legítimo suficientemente relevante (repercussão negativa ou positiva nas suas posições jurídicas), segundo o princípio da proporcionalidade.

14.7. No entanto, se em situações de livre acesso, este se pode processar por opção do interessado através de consulta pessoal, emissão de fotocopia ou suporte físico de gravação e por certidão, acontece que, tratando-se de documentação com segredos, fica interdito o acesso por exame directo, sem prejuízo da fotocópia «parcial», impondo-se o respeito pelos princípios do sombreamento (das partes com informação não comunicável) ou acantonamento (exclusão em bloco da parte inicial ou final do texto) das informações confidenciais, em ordem a permitir o acesso às restante

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constantes de dossiers ou documentos, através de fotocópias truncadas, prevendo a lei que os documentos administrativos sujeitos a restrições de acesso são «objecto de comunicação parcial sempre que seja possível expurgar a informação relativa à matéria reservada». Portanto, em geral, a entidade requerida não tem o dever de criar documentos, mas tem o de os adaptar e de fornecer extractos dos mesmos, para satisfazer os pedidos, desde que tal não implique um labor desproporcionado, que ultrapasse a simples manipulação dos mesmos.

14.8.E, tratando-se de documentos informatizados, eles devem ser ou copiados para suporte informático ou de papel, ou, se o requerente o preferir, enviados directamente por transmissão electrónica de dados, neste caso se tal for possível e sempre sem prejuízo da garantia de adequada inteligibilidade e fiabilidade do seu conteúdo, mesmo que tal implique o labor informativo autónomo da respectiva descodificação de siglas, rubricas ou linguagem burocrática, e em termos rigorosamente correspondentes ao do conteúdo do registo tal como existe.

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14.9.Quanto à divulgação de informação, existe a obrigação dos órgãos e entidades sujeitas ao regime de transparência administrativa assegurarem a sua divulgação, enunciando-se designadamente especificações técnico-materiais de suporte: bases de dados electrónicas, facilmente acessíveis ao público e redes públicas de telecomunicações, e impondo-se isso nalguns tipos de informação administrativa, a actualizar no mínimo semestralmente, a saber, todos os documentos que comportem: enquadramentos da actividade administrativa, designadamente despachos normativos internos, circulares e orientações; e enunciação de todos os documentos que comportem interpretação de direito positivo ou descrição de procedimento administrativo, mencionando designadamente o seu título, matéria, data, origem e local onde podem ser consultados.

14.10. Há uma matéria que foi recentemente objecto de uma revisão opacitadora, que marca um claro recuo no dispositivo da transparência, e aliás num domínio onde mais se faz sentir, e onde a

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corrupção dos administradores tem uma maior dimensão, é no acesso aos documentos que contenham segredos comerciais, industriais ou sobre a vida interna de uma empresa. Com efeito, onde existia um poder discricionário da Administração passou a vigorar o princípio da interdição de comunicação, indo ao ponto de, ao arrepio de objectivos de combate à corrupção, onde mais se faz sentir e em que a transparência mais se justifica, equiparar ou mesmo agravar o regime de acesso a dados da vida interna das empresas com o regime aplicável à vida íntima das pessoas e famílias, ao estatuir-se em geral como regra, não só que um terceiro só tem direito a aceder a esses documentos se estiver munido de autorização escrita da empresa ou demonstrar interesse directo, pessoal e legítimo, como que tal interesse tem que ser «suficientemente relevante, segundo o princípio da proporcionalidade.

E isto apesar de se declarar em geral que não é permitida a utilização de informações em violação, não apenas dos direitos de autor, como dos «direitos de propriedade industrial» (artigo 8.º), acrescentando-se que os documentos nominativos comunicados a terceiros não

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podem ser utilizados para fins diversos dos que determinaram o acesso, sob pena de responsabilidade por perdas e danos, nos termos legais, previsão que tinha, sobretudo, sentido no regime anterior de acesso a documentos de interesse económico, cuja comunicação pressupunha e pretendia e abuso de uso pretendia acautelar.

Oprevisão da possibilidade de comunicação sujeito embora ao critério da ponderação comparativa dos interesses em presença abriria a porta a uma comparação relativa, favorecendo designadamente por princípio o direito fundamental da comunicação social e, portanto, o acesso nas situações de maior interesse para o esclarecimento da opinião pública em momentos de desconfiança de ineficácias, irregularidades e corrupção, mas se, ao juntar-se-lhe a exigência de dever tratar-se de um interesse relevante, se pretende uma ponderação especialmente qualificada, introduz-se um parâmetro perturbador do mero exercício do princípio da proporcionalidade, que pode, sistematicamente, ser usado para bloquear o exercício do direito de acesso.

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14.8.Nenhuma razão de irrazoabilidade funcional, assente em situações de declaração pela Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos ou pelos tribunais, sobre o direito de acesso existia que justificasse esta alteração, que apenas vem revelar uma tendência liberticida do próprio legislador.

14.9.O modo de fixar e calcular os custos das fotocópias, questão fundamental para o exercício por todos do direito fundamental de acesso à informação, deveria poder ser fixada apenas por lei e fixada de molde a integrar apenas a soma dos encargos proporcionais com a utilização de máquinas e ferramentas e dos custos dos materiais usados e do serviço prestado, o que não acontece, o que coloca a questão da sua constitucionalidade, desde logo ao permitir-se encostar esses custos ao preço de mercado, o que aliás ultrapassa a noção de taxa.

Com efeito, na parte final da norma, desdiz-se este critério ao reportar-se ao mercado, naturalmente sempre, com valores maiores ou menores, mas sempre com intuitos lucrativos, que implicam a rotura com tal critérios, que nem sequer admite, e

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bem, a incorporação de cálculos sobre o tempo dispendido na procura dos documentos detidos pelas entidades sujeitas ao acesso, cujo ónus de bom arquivo lhe cabe e portanto devem sofrer o ónus da sua má técnica, em que, porém, o legislador vem agora, quiçá para conestar à fixação ilegal dos valores pelas portarias governamentais e regulamentações autárquicas, permitir que possa incorporar alguma mais valia de natureza lucrativa, a admitir, como se referiu, apenas, como limite para tal valor montantes, que não ultrapassem o «valor médio praticado no mercado por serviço correspondente», admitindo-se que, a cumprir-se a determinação de ser o Governo da República e os Governos das Regiões Autónomas (ouvidas a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos e as associações nacionais das autarquias locais), a fixar as taxas a cobrar (com lista a enunciar em lugar acessível ao público e com possibilidade do acréscimo de um montante a título de preparo com o objectivo de garantir as taxas devidas e encargos de remessa, se solicitada) não só pelas reproduções como pelas certidões, tal possa implicar pelo menos, a nível do

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governo estadual, o respeito pelo critério de novo imposto, e cujo cumprimento é essencial pois certas experiências históricas já revelaram que, pela via dos preços, se consegue tirar toda a eficácia ao direito de acesso, o que levou mesmo a legislação americana a ser alterada com imposição de gratuitidade até um certo número relativamente volumoso de cópias, desde que o requerente não seja entidade de natureza comercial (artigo 12.º).

Nesta matéria, permite-se, ainda, que a reprodução, a efectivar através de um exemplar possa ficar sujeita a pagamento, pela pessoa que a solicitar, a um montante antecipado. E admite-se, também, que outras as entidades infra-estatais com poder tributário autónomo possam fixar taxas até 100% mais dos valores fixados nos termos do critério legalmente fixado, o que significa uma delegação em poderes regulamentares em termos contrários à lei, atentatória da Constituição, quer por permitir critérios claramente comerciais, quer por atentar contra o n.º 5 do seu artigo 112.º («Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar,

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suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos»).

A Administração passa, agora, a ter ao seu dispor o instrumento da possível exigência de um preparo que garanta as taxas eventualmente devidas no futuro e, quando for caso disso, os encargos de remessa recusa, o que traduz um retrocesso (em relação à norma anterior) na promoção deste direito ao serviço do controlo da administração em que os cidadãos deviam ser estimulados a actuar uti cives (designadamente em matérias de ambiente, urbanismo, em geral defesa de interesses difusos, estímulo à eficácia, luta contra a corrupção, e em geral no interesse público) e não apenas directamente para defesa dos seus interesses pessoais.

14.10.Existe um órgão administrativo independente das administrações activas com obrigação de velar pelo correcto cumprimento deste direito, a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), a quem a Administração, em caso de dúvida ou pedidos de acesso a informações nominativas, podem pedir parecer e os administrados podem apresentar queixas, o que pressupõe um

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pedido escrito prévio de acesso sem resposta, a existência de formalização por escrito do indeferimento de pedido efectuado verbalmente ou comunicação meramente parcial.

14.11.A Administração não está obrigada a satisfazer pedidos com carácter repetitivo e sistemático, e, quanto aos pedidos volumosos, e portanto sem possibilidade de cumprimento no curto prazo de 10 dias, a comunicação será paulatina, podendo naturalmente ultrapassar o prazo legal de acesso, devendo entender-se que só excepcionalmente se possa recusar o pedido qualificando-o de «manifestamente abusivo».

Em princípio há uma obrigação de comunicação tempestiva e, eventualmente, em caso de pedidos de grande montante, escalonada através da ordenação efectivada no requerimento ou acordada pela Administração com o requerente.

Por princípio, o que importa referir é que, perante pedidos velumosos, e não apenas em casos excepcionais, a Administração em vez de recusar a documentação, perante um volume ou a

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complexidade da informação solicitada (em termos de qualquer modo teriam que ser sempre devidamente fundamentados), pode protelar o prazo de acesso para lá dos 10 dias embora nunca para além de um máximo de dois meses, fixado precisamente dentro do razoável e para evitar abusos da Administração, devendo o requerente ser informado disso, em ordem a poder reequacionar o seu pedido ou impugnar tal decisão, pelo que A Administração deve comunicar tal deferimento também dentro do prazo normal de resposta, que é de 10 dias.

14.12.Nos termos do 2 do artigo 15.º, o exercício do direito de queixa à CADA, embora continue a vigorar o regime instaurado em 1999, de inexistência desta queixa como pré-contencioso obrigatório antes de se ir para tribunal, passa no entanto a interromper o prazo para intentar o processo jurisdicional no tribunal administrativo.

Face a qualquer queixa, a CADA deve convidar a entidade requerida a responder à queixa no prazo de 10 dias. Ela tem o prazo de 40 dias para elaborar o relatório de

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apreciação da situação, a enviar ao queixoso e entidade pública.

O prazo da entidade requerida comunicar ao requerente a sua decisão final fundamentada é de novo de 10 dias, sem o que, para efeito de direito de iniciativa processual, a tramitar nos termos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, se considera haver falta de decisão.

O prazo jurisdicional é de 20 dias (que começará a contar de novo) para a introdução em juízo de petição para desencadear o processo urgente de intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões (prazo a que se aplicam, com as devidas adaptações, as disposições relativas à remessa a juízo das peças processuais).

14.13. Apesar de críticas específicas a certas alterações, tal como a do regime regra de não acesso a documentos económicos e a outras normas, como a referente aos custos, e tal inquinar em termos qualitativos o novo diploma, em termos que o direito comunitário não exigiam e o direito constitucional, devidamente lido, impedia, uma vez já concretizado em termos mais aberto à

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transparência na anterior Lei n.º65/93, de 26 de Agosto, a verdade é que, nos restantes aspectos, sobretudo sobre prazos (salvo a ampliação do prazo de elaboração dos relatórios da CADA, denotando sobrecarga de processos e a exigência de um regime mais adequado, segundo o modelo francês, de não acumulação de função), a disciplina do livre acesso aos documentos quase não sofreu alteração substantiva, pois todo o restante regime do novo diploma é transcrito do já constante do diploma de 1993.

§27.PRINCÍPIO DA TUTELA JUDICIAL EFECTIVA E DIREITO PROCESSUAL NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS

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27.1. Considerações gerais

A parte final destas Noções Fundamentais de natureza preliminar de Direito Administrativo integra, pela sua importância para a compreensão do regime administrativo e para a percepção das garantias ao dispor dos cidadãos face a conflitos com a administração, alguns apontamentos com noções fundamentais de Justiça Administrativa: o princípio da tutela judicial efectiva (o direito de acesso aos tribunais, o direito de obter solução judicial em tempo razoável e o direito à execução das sentenças) e o controlo jurisdicional em concreto, organização dos tribunais administrativos e formas processuais, embora sucintamente expostas.

*

27.2. Princípio constitucional da tutela judicial efectiva e da interdição de indefesa

Quanto ao princípio da tutela judicial efectiva, ele é um dos instrumentos de realização do princípio da legalidade.

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Com efeito, o princípio da legalidade só é garantido quando existam mecanismos de controlo eficaz do respeito da Administração Pública ao bloco da legalidade.

Há controlos externos à Administração Pública, tais como a fiscalização parlamentar de tipo político, mais amplo do que a fiscalização da legalidade ou de instituições especializadas, como o Tribunal de Contas ou o Provedor de Justiça.

Há controlos internos, quer de natureza processual (o procedimento administrativo) quer hierárquica (poder de direcção e impugnação administrativas).

O controlo jurisdicional é exercido por juízes integrantes do poder judicial, independentes, inamovíveis, submetidos apenas à lei, constituindo um dos princípios básicos do Estado de Direito.

O poder jurisdicional exercido sobre a Administração Pública é mais intenso do que aquele que é exercido sobre actividades privadas, controlando-se a actividade administrativa com a leitura de qualquer norma do ordenamento jurídico e até através da simples leitura dos fins a prosseguir à base das normas (sob pena de

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desvio de poder), o que é excepcional no Direito Privado.

No plano da sua nomogénese, o princípio da tutela judicial está consagrado na Convenção Europeia dos Direitos dos Homem de 1950 (n.º 1, artigo 6.º) e tem expressão constitucional no n.º 1 do artigo. 20.º e n.º. 4 e 5 do artigo 268.º da Lei Fundamental. Diz o n.º 1 do artigo 20.º da CRP que é garantido «a todos o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos».

É um princípio aplicável a toda a actividade da Administração Pública, quer se desenvolva em gestão privada quer pública, impondo a protecção jurisdicional das posições jurídicas do cidadão-administrado e que implica, em situações de discordância com os actos aplicativos ou omissões na aplicação do Direito Administrativo, não só a possibilidade de recurso contencioso, mas também de acção de reconhecimento de direitos e interesses legítimos, quando o recurso não seja o meio mais adequado para a sua efectivação (n.º 5,

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artigo 268.º da CRP).

Este princípio constitucional, densificado no n.º 5 do artigo 268.º, tem hoje plana tradução no noivo Código do Processo nos Tribunais Administrativos.

Este princípio, durante muito tempo sem tradução no nosso sistema ed contencioso, há muito que impunha a possibilidade genérica de os cidadãos acederem à justiça administrativa perante qualquer acto ofensivo dos direitos ou interesses legalmente protegidos, o que significa a impossibilidade legal da exigência de prévias impugnações administrativas que retirem o carácter de acesso «directo e imediato» à jurisdição.

Este tema leva-nos ao debate sobre o enquadramento constitucional do recurso hierárquico necessário.

Em Portugal, a questão da admissibilidade ou não de um recurso administrativo obrigatório como condição para a interposição de um recurso contencioso mereceu uma dada reflexão do Tribunal Constitucional, a quando da elaboração da Lei do Segredo de Estado e

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da Lei do Acesso aos Documentos da Administração, que, ao concretizar o direito geral à informação administrativa, criou a Comissão de Acesso aos Documentos da Administração, cujo enquadramento da competência para apreciar queixas ou «reclamações» dos cidadãos em termos obrigatórios, como procedimento pré-contencioso, serviu de modelo à Comissão de Fiscalização do Segredo de Estado e valor do respectivo parecer.

Nela se prevê, ainda hoje, a formulação obrigatória de um parecer por esta entidade como condição para a interposição do recurso jurisdicional, o que foi questionado com base nos artigos 268.º, n.º4, e 20.º da CRP.

O problema foi mesmo levado ao Tribunal Constitucional quanto ao pedido prévio de apreciação da recusa da Administração no âmbito das excepções à comunicação documental por razões de segredo de Estado.

E situou-se em saber se é ou não possível interpor entre a Administração decisória, «activa», e a entidade jurisdicional, uma outra qualquer entidade

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de apreciação do acto administrativo denegador de um direito do cidadão.

Trata-se de saber se, independentemente das suas características e de ser classificável como administrativa ou não, é possível fazer depender a impugnação contenciosa de uma prévia apreciação do acto de recusa da solicitação do administrado, lesiva de um seu direito, da exigência de um parecer prévio a uma outra interposta entidade.

Com efeito, esta interferência com o desenvolvimento da apreciação administrativa do pedido teve consequências no dispositivo normativo, quer pelo rearranjo, feito pelo legislador, dos prazos de actuação da Administração quer por lhe dar obrigatoriamente uma segunda oportunidade de apreciação do requerimento com deferimento da possibilidade de recurso judicial, mesmo depois de a decisão administrativa já ter sido tomada. Assim, dentro do espírito do texto constitucional, parecia que não deixava de se criar uma entorse ao princípio da recorribilidade imediata de decisões administrativas com efeito externo? É ou

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não constitucional a exigência da mediação deste parecer puramente conciliador entre uma decisão da Administração, que produz logo efeitos sobre a esfera jurídica exterior? O que importa, neste caso, sabido que está garantido o recurso constitucionalmente exigido em relação a qualquer acto administrativo, parece ser o enquadramento da questão na perspectiva de saber se essa possibilidade está a ser retirada por vias travessas, em termos que conflituem com o disposto no artigo 20.º da Lei Fundamental e artigo 268.º que impõem que a todos seja assegurado o acesso aos tribunais para a defesa dos seus direitos e deveres legítimos sem restrições, que, no caso dos direitos, liberdades e garantias, devem limitar-se ao mínimo necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Em geral, esta questão coloca o problema da impugnação contenciosa dos actos administrativos, em face da Constituição.

Com efeito, a nova norma constitucional, de aplicação directa, por força do n.º 1 do artigo 18.º da Constituição, garante o controlo jurisdicional das decisões administrativas que lesem direitos ou

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interesses legalmente protegidos. Isto é, toda a declaração unilateral resultante do exercício do poder administrativo, que produza efeitos jurídicos externos em relação a um caso concreto, é passível de impugnação perante os tribunais administrativos, com fundamento em vício invalidante, sem qualquer condicionamento à existência da natureza desses actos como «actos definitivos e executórios», expressão entretanto eliminada da constituição e também já da legislação contenciosa.

E antes de continuar no tema, refira-se desde já, o sentido da exigência de executoriedade dos actos, esclarecendo o seguinte: os actos administrativos que preenchem as condições de eficácia são obrigatórios em relação ao seu destinatário e, por via disso, quando susceptíveis de execução, são passíveis de execução pela via administrativa. A executoriedade é uma característica da actividade administrativa, pelo que, em relação a actos que só produzem efeitos mediante actos de execução, quando esta puder ser imposta coercivamente e a lei não obrigue a que tal se processe por meio dos Tribunais judiciais, a Administração Pública executa

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por si as suas próprias decisões, nisto se traduzindo o seu poder executivo, dado que uma actuação de acordo com os comandos do legislador se presume respeitadora da legalidade.

O juiz só intervém pondo em causa a auto-tutela administrativa em face da invocação do não respeito da legalidade e apenas para obrigar a repor a vontade do legislador.

Todos os actos executórios, tal como os actos de eficácia imediata, ou seja, que cumprem os seus efeitos jurídicos sem necessidade de actos de execução, na medida em que lesem as posições jurídicas substantivas dos particulares o que só ocorre quando sejam eficazes, são passíveis de apreciação jurisdicional.

O n.º 4 do artigo 268.º, ao dar um direito de recurso nestes casos, atribui obviamente ao particular lesado legitimidade para interpor esse recurso. Que sentido tem o ter retirado a exigência da executoriedade do acto administrativo como condição de impugnação contenciosa, na actual Constituição?

Quer se entenda a executoriedade

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como a possibilidade de execução coactiva do acto pela Administração, quer como imperatividade ou obrigatoriedade de o particular executar imediatamente o acto, pode dizer-se que o acto administrativo traduz uma decisão executória, no sentido em que tem força executória por si mesmo, independentemente de em certos casos não poder ser objecto de execução forçada quando o particular não lhe obedecer.

De qualquer maneira, a doutrina portuguesa entende que o sentido dado pelo legislador ao termo executoriedade enquanto requisito de recorribilidade corresponde ao da eficácia, ou seja, aptidão para produzir efeitos jurídicos.

A eliminação desta expressão de exigência no texto constitucional veio acabar com a polémica doutrinária sobre o sentido do conceito, sendo certo que se ele já não acrescentava nada anteriormente, agora isoladamente seria incompreensível, tendo presente que as questões de eficácia estão enquadradas noutro normativo constitucional.

E, quanto à definitividade, já a

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alteração constitucional tem um sentido inovador. Com efeito, a Constituição até à 2.ª Lei de Revisão, em 1989, ligava a garantia de recurso contencioso à existência de um acto definitivo e executório, como pressupostos processuais, conforme resulta da leitura do então n.º3 do artigo 268.º.

Esta norma, garantindo a impugnação destes actos, não impedia que o legislador ordinário estendesse tal recurso aos actos não definitivos. Apenas se abstinha de o impor.

Tal garantia tinha, no pós-25 de Abril, o interesse de levar à declaração de inconstitucionalidade de qualquer lei que impedisse o controlo jurisdicional dos actos administrativos definitivos.

Hoje, é a própria Constituição que impede a construção do regime dos recursos contenciosos em função do carácter definitivo do acto.

Quanto ao conceito de acto administrativo, importa referir o seguinte: em face da ligação entre o conceito de acto administrativo e o contencioso administrativo, o acto administrativo é, por natureza, dada a função da sua existência,

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passível de impugnação contenciosa.

A sua construção, a manter-se, visa precisamente delimitar os comportamentos da Administração Pública em ordem à garantia dos particulares, em face de toda a declaração autoritária proferida por um órgão investido do poder administrativo e com utilização de regras de direito administrativo, em ordem a provocar efeitos jurídicos externos num caso concreto. Sendo assim, a ordem jurídica portuguesa, em face do n.º 4. do artigo 268.º, e tal como se constata também do artigo 120.º do Código do Procedimento Administrativo, consagra uma noção apertada do acto administrativo, em que só cabem aqueles actos da Administração que visem produzir efeitos jurídicos externos.

E, neste contexto, qual o interesse actual do conceito doutrinal tradicional de acto definitivo? É sabido que foi por razões de ordem prática que a jurisprudência individualizou, entre os actos da Administração, aqueles que seriam controláveis jurisdicionalmente, através do recurso à ideia de acto que lesa imediata e directamente um direito ou interesse do

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particular, com o objectivo de demarcar os actos da Administração sem direito a recurso jurisdicional, pelo afastamento de toda a actividade que não lesasse directa e especificamente um particular ou só o fizesse, como refere ROGÉRIO SOARES240, em termos virtuais, hipotéticos ou condicionais. Acontece que esta construção evoluiu para uma concepção de acto definitivo como aquele que, decidindo uma pretensão ínsita num procedimento administrativo, vem definir uma situação jurídica de um particular. Esta corrupção doutrinária acabaria por implicar algumas excepções, pela necessidade de não deixar certas actuações sem controlo jurisdicional.

É por isso que a jurisprudência veio a admitir a impugnabilidade contenciosa de actos não definitivos que produzem logo efeitos jurídicos substantivos designados por actos prejudiciais ou actos destacáveis e que, sendo preparatórios da decisão final, não põem fim a um incidente autónomo nem excluem um dado interessado do processo em apreciação.

Além disso, outros actos preparatórios que, produzindo efeitos jurídicos externos,

240 Direito Administrativo, p. 58.717

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lesam os administrados, foram objecto de uma abrangência formal no conceito de acto definitivo, segundo a teoria da tripla definitividade (que despreza o sentido de acto horizontalmente definitivo, ou seja, aquele que definiria em termos finais o procedimento) como acontece com os actos procedimentalmente intermédios que põem termo a um incidente autónomo operado no processo ou aqueles que excluem do processo um interessado na resolução final, ou seja, no acto definitivo.

Avança-se, assim, numa perspectivação subjectivista do recurso contencioso, apesar de o seu objecto imediato continuar a ser o acto administrativo inválido e não a invocação da lesão dos direitos ou interesses protegidos.

De qualquer modo, abandona-se expressamente nesta norma formulada na revisão constitucional de 1989, a exigência dos tradicionais requisitos formais, de efeito redutor, da definitividade e executoriedade, a favor da impugnação directa de qualquer decisão pela Administração que ponha em causa as posições jurídicas substantivas dos particulares.

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Em resumo, a Constituição impõe que as decisões com eficácia externa sejam sempre passíveis de recurso directo quando lesem os direitos e interesses legalmente protegidos.

Mas coisa diferente é saber se a Constituição impõe uma garantia de recurso imediato.

Como nos devemos posicionar em relação aos actos intercalares, de natureza precária, ao terminarem um dado procedimento sem constituírem a última palavra da Administração?

Na teoria do acto verticalmente definitivo, o conceito de acto definitivo reporta-se à hierarquia.

Com efeito, no conceito tradicional de acto administrativo definitivo, este só o é quando, além das características de definitividade material e horizontal, o acto não possa ou já não possa ser objecto de recurso hierárquico (acto vertical ou hierarquicamente definitivo).

A definitividade hierárquica ocorre em relação a actos praticados por um órgão com competência exclusiva na matéria, ou por não haver para quem interpor recurso

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ou por o recurso contencioso não ter sido interposto no prazo legal. No caso de o acto ainda não constituir a última palavra da Administração, então ele não é definitivo, mas precário, uma vez que reexaminado ou revisto pelo órgão mais elevado do respectivo escalão hierárquico, pode não subsistir.

De qualquer maneira, é do acto precário do subalterno ou do acto do superior que constitui a última palavra da Administração, que o particular pode recorrer?

Não teria passado a ser inconstitucional a exigência prévia de recurso hierárquico necessário?

O legislador ordinário não era obrigado a manter a definitividade do acto para efeitos de recurso contencioso, como fez até à 2.ª Lei de Revisão Constitucional de 1989, mas, ao mantê-la agora passou a faltar a uma obrigação constitucional, a de eliminar tal exigência, em face do n.º 4 do artigo 268.º.

O direito de recurso não só estava

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constitucionalmente consagrado, como o estava com um dado enquadramento, que o liga à defesa dos direitos fundamentais, pelo que, independentemente da sorte da legislação ordinária, nesta matéria, tal direito podia ser, já antes da actual reforma do direito processual, exercido por invocação da aplicação directa do artigo 18.º, nº 1 do texto fundamental. Isto significa a vigência hoje também do princípio da «imediatividade» na impugnação de acto lesivo dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, independentemente de o acto administrativo ser definitivo ou não.

É impugnável o acto que provoque uma lesão directa e imediata da posição jurídica do particular. Com efeito, que sentido teria, em termos de aumento garantístico dos particulares, impor um recurso directo para depois admitir um recurso de todo em todo alheio à ideia da «imediatez», que é precisamente o problema subjacente à constatação de uma menor garantia anterior que implicou a alteração constitucional operada?

De qualquer modo, a haver interesse

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em não fechar a porta à apreciação de certos actos administrativos por parte de entidades independentes, como a Comissão de Acesso aos Documentos da Administração e à Comissão de Fiscalização do Segredo de Estado, que se poderão pronunciar utilmente sobre uma dada pretensão, deveria, no entanto, interpretar-se esta exigência com grano salis, no sentido de não considerar inconstitucional a obrigação de pedido prévio a essas entidades, desde que a dilação temporal na interposição de recurso jurisdicional seja pequena.

E a mesma orientação não pode deixar de se aplicar em relação aos recursos administrativos necessários, desde que, além disso, a decisão em reapreciação obrigatória em procedimento derivado, contrariamente ao que dispõe a actual legislação em certas situações, não possa ser executada, e o recurso a interpor seja do acto originário mantido.

De qualquer maneira, o Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre esta questão no seu Acórdão nº458/93 de 12 de Agosto, a propósito precisamente da Lei do Segredo de Estado, no sentido da

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admissibilidade da exigência do parecer prévio como condição para a interposição do recurso.

Na medida em que se recorre do acto lesivo do particular e em termos que, como refere o próprio Tribunal, implicam um atraso pequeno no acesso à justiça, parece que esta exigência não vai contra o pensamento atrás desenvolvido que deve ser de aplicação geral em face da nova norma constitucional. Em conclusão, o recurso deve ser directo e enquadrado em termos que caibam dentro de um conceito não muito rígido de imediatividade. Nos termos do Acórdão em causa, considera-se que a exigência de um parecer prévio não vinculativo da Comissão de Fiscalização não constitui uma restrição desproporcionada à garantia do direito de reapreciação judicial do caso. Por isso, este Acórdão, neste plano, assumiu importância prática, na medida em que a interpretação sobre a conformidade constitucional se repercute sobre a própria existência e funções destas entidades. Com efeito, este parecer é aplicável não só à Comissão de Fiscalização mas também à CADireito Administrativo, e daqui para o futuro para quaisquer entidades públicas

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independentes, quer funcionem na dependência do Governo, quer do Parlamento, e quer sejam classificadas pelo legislador como administrativas ou simplesmente como públicas241.

241 É o seguinte o parecer do tribunal: «Em especial na vertente que tem a ver com a impugnação contenciosa de actos administrativos de denegação de acesso a documentos anteriormente classificados como segredo de Estado (artigo 9.°, n.º 2, do Decreto), considera-se que a exigência de obtenção de um prévio perecer não vinculativo de Comissão de Fiscalização não se configura como uma restrição desproporcionada ao previsto nos artigos 20.°, n.°1, e 268.°, n.°4, da Constituição, violadora do disposto no artigo 18.°, n.° 2, da Lei Fundamental, apesar de o artigo em apreciação não estabelecer qualquer regime específico quanto aos prazos de interposição de recurso contencioso (solução diversa é a da lei francesa sobre acesso dos cidadãos aos arquivos da Administração, na medida em que impõe o prazo de um mês para a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos emitir o parecer sobre o acto de recusa de acesso, o qual é comunicado à autoridade que denegou o acesso para reconsiderar a situação, sendo o prazo de interposição de recurso contencioso prorrogado, para ter em conta a notificação do administrado por parte da autoridade administrativa». E continua o Acórdão dizendo que, «não obstante o artigo13.°do Decreto não referir qualquer prazo para a emissão de parecer da Comissão, ele obtém-se devido à remissão feita no artigo 16.° do Decreto, para o disposto na Lei do Acesso aos Documentos de Administração. Aí se estatui que, sem prejuízo do regulamento que vier a ser publicado pelo Governo sobre a matéria referente aos direitos e regalias dos membros da Comissão de Fiscalização, ‘nos casos omissos, designadamente no que diz respeito a prazos, se aplica o disposto nessa lei’. Importa referir que a Assembleia da República aprovou na mesma data (2 de Junho de 1993) os Decretos sobre segredo de Estado (nº 129 VI) e sobre acesso aos documentos da Administração (125/Vl)». Este último Decreto foi promulgado como lei em 28 de Julho do corrente ano, referendado em 3 de Agosto e publicado como a lei nº 65/93 em 26 de Agosto de 1993. É a lei sobre o acesso aos documentos administrativos. Ora analisando o

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Em conclusão, com esta sentença a nossa jurisdição constitucional acabou por admitir a possibilidade de estas entidades, que estão a dar os primeiros passos e a começar a ter êxito noutros países, se poderem multiplicar. Importa referir que

disposto na lei, verifica-se que a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) tem o prazo legal de trinta dias para efectuar o ‘relatório de apreciação de situação’, em caso de reclamação de um interessado contra o acto de indeferimento expresso ou tácito do requerimento de acesso a documentos da Administração (art. 16°, n° 2). O Decreto não estabelece directamente ou por remissão para a Lei do Acesso aos documentos da Administração, que os pareceres da Comissão de Fiscalização, quando favoráveis ao peticionário ou queixoso, devem implicar uma nova apreciação do pedido pela autoridade com competência para deferir o acesso. E não resulta directamente da disciplina enunciada nos artº 13° e 16º do Decreto, que a intervenção da Comissão de Fiscalização se destina primeiramente a conseguir uma composição não jurisdicional de conflitos entre o interessado no acesso ao documento ou informação classificados e a Administração Pública ou o órgão constitucional decisor. Mas isso resulta do sistema global criado, designadamente nos nº1 e 4 do artigo 13º sobre competências da Comissão de Fiscalização». E conclui o Tribunal Constitucional: «A imposição desta solicitação a uma estrutura extrajurisdicional, de natureza consultiva, não prejudica de forma desproporcionada a interposição de recurso no contencioso administrativo, por se entender que o parecer em causa tem de ser emitido pela Comissão de Fiscalização no prazo de 30 dias. E, por isso, deve entender-se que na falta da emissão desse parecer, o requerente pode sempre recorrer a tribunal, no prazo normal para a interposição do recurso contencioso, considerando-se terminada completamente a fase pré-contenciosa. A jurisprudência constitucional já considerou ser certo que o direito de acesso aos tribunais não podia ser interpretado de modo absoluto, como impedindo toda e qualquer regulamentação de acesso aos tribunais, designadamente de cariz processual ou administrativo». E acrescentou-se que o preceito em causa (artigo 20.º, n°2, da Constituição, correspondente hoje ao n.°1 do mesmo artigo) não

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sem a possibilidade de valorizar os seus pareceres, nos termos ora propostos pelo legislador, quer no âmbito da lei do acesso quer no regime do segredo, a existência de Entidades Administrativas Independentes teria sempre um interesse muito reduzido.

***

O direito à tutela judicial efectiva tem a natureza constitucional de um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias (artigo 17.º CRP). Independentemente da consagração constitucional, Portugal sempre estaria obrigado ao seu cumprimento, não só por ser parte de Tratado Europeu de 1950, a Convenção Europeia sobre os Direitos do Homem, como, mesmo que o não fosse, por ele constituir um princípio de ius cogens do Direito Internacional Público, que se impõe a qualquer Estado (considerações sobre a admite decerto que o acesso aos tribunais seja condicionado ou limitado por prévia e inultrapassável decisão de uma mera autoridade administrativa, precisamente sobre o litígio em causa. Autoridade essa que, no caso concreto, e em obediência à ordem hierárquica, pode recusar tomar a referida decisão. Ora, no caso vertente, pelas razões expostas, entende-se que há a possibilidade de ultrapassar a falta de emissão de parecer, caso ocorra. Nestes termos, tem de considerar-se que não há inconstitucionalidade no condicionamento da impugnação contenciosa à recusa do pedido e obtenção prévia de parecer da Comissão de Fiscalização de Segredo de Estado».

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natureza do ius cogens: com carácter supra-constitucional).

E termos da amplitude do princípio, esta tutela só é real se estiver garantida a abrangência a toda a actividade da Administração Pública (gestão privada ou pública), com todos os meios processuais adequados à protecção dos vários direitos e interesses legítimos colocados em causa; inexistência de requisitos injustificados; inexigibilidade de custos processuais que dissuadam o seu exercício; impraticabilidade de dilacções indevidas; exercício em condições de igualdade de todos os meios de defesa em qualquer tipo de processo e eficácia das sentenças.

Portanto, o princípio implica o direito de acesso aos tribunais. Mas não só. Também implica o direito a obter uma solução judicial em tempo razoável, que não ponha em causa a sua utilidade. E o direito à execução das sentenças.

E a proibição de as próprias regras processuais e os juízes em si memsos desprezarem as regras de tomada de conhecimento da existência de processo contra alguém, ao contraditório e à

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apresentação e produção de prova (interdição de indefesa)

Quanto ao conteúdo deste direito de acesso à justiça administrativa, ele traduz-se no seguinte: todo o acto ou omissão da Administração Pública e dos seus agentes pode ser submetida à apreciação dos órgãos jurisdicionais, a pedido de qualquer pessoa privada ou pública a quem essa situação lese direitos ou interesses legítimos, em ordem a apurar da sua adequação ou não ao ordenamento jurídico e obter uma decisão imparcial que vincule todas as partes (o que implica a obrigatoriedade de a Administração executar as sentenças dos Tribunais).

As características gerais do sistema jurisdicional, no plano constitucional, afectam quer o âmbito objectivo quer o âmbito subjectivo da protecção visada, ou seja: o poder jurisdicional de controlo e o direito à tutela jurisdicional.

Quanto ao poder jurisdicional, o controlo que tem que ser efectivado por um poder jurisdicional não impede a sua atribuição a tribunais especializados, como

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os tribunais administrativos, de contencioso administrativo, admitindo a sua partilha por estes e os ordinários, de acordo com as matérias, mas é um poder de exercício obrigatório, embora condicionado a uma petição prévia, a enquadrar num processo, por uma pessoa com capacidade e legitimidade (princípio da rogação), o que impede o tribunal de actuar oficiosamente, salvo em situações excepcionais.

A rogação implica uma sentença de provimento ou não, embora a omissão de direito ou de facto a julgar não esteja sancionada por um direito a interpor em recurso directo de inconstitucionalidade (recurso público ou de amparo) como lesão de um direito constitucional que é.

Poder de protecção total quanto ao âmbito material de exercício, ou seja, o controlo efectiva-se quer em relação ao poder regulamentar quer ao decisório unilateral e em relação a qualquer parâmetro da legalidade, seja ele externo ou interno (controlo dos fins que justificam a actuação administrativa - desvio de poder).

Nenhuma norma pode excluir a possibilidade de fiscalização jurisdicional de

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qualquer acto administrativo ou regulamento emanado da Administração Pública.

A CRP consagra, pois, uma cláusula geral de controlo judicial nos mesmos termos dos artigos 106.º, 1.º Constituição Espanhola ou do 19.º, 4.º da Grundnorm; o que significa que tal tutela efectiva não pode ser excluída nem limitada a meios particulares de impugnação para determinadas categorias de actos, do chamado parágrafo régio do Estado de Direito.

Quanto ao direito à tutela, ele é um direito pessoal, fundamental.

O seu carácter objectivo é instrumental. Todos têm direito a um juiz pré-determinado por lei.

As garantias processuais são aplicáveis a todos os tipos de processos e, portanto, também aos do contencioso administrativo, e até ao exercício de poderes administrativos do tipo jurisdicional, que se decompõem em: direito à acção ou ao processo, implicando; a justiciabilidade de todos os actos da Administração Pública; o direito à emissão

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de uma sentença sobre o fundo, ou seja, o direito a uma resolução efectiva sobre o caso em conflito submetido a tribunal; direito a um processo igualitário, implicando a proibição de não exercício de defesa de qualquer das partes (condenação pressupõe audição); a exigência efectiva de contraditório processual; direito a um processo sem dilacções indevidas (decurso em tempo razoável), considerando a complexidade do assunto, o comportamento do recorrente e a forma como o assunto foi seguido pelas autoridades administrativas e judiciais.

Quanto ao direito a uma sentença, importa referir o seguinte:

Trata-se de um direito a obter uma solução judicial em tempo razoável, que não ponha em causa a utilidade da decisão do órgão jurisdicional, sem prejuízo das necessárias garantias processuais e materiais adequadas ao iter judicial, mesmo que com admissibilidade das medidas cautelares (para permitir conciliar a celeridade com a ponderação).

Quanto a esta exigência de solução, num tempo útil, só há uma maneira de

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compensar o periculum in mora, conatural às exigências processuais, que consiste na consagração do princípio da suspensão da execução do acto administrativo ou da disposição regulamentar ilegal, enquanto dura a sua apreciação judicial (acabando-se assim com o princípio contrário, consagrado pela primeira vez pelo artigo 3.º do Decreto Napoleónico, de 22.7.1806), dado que a possibilidade de a Administração Pública impor coactivamente as suas decisões sem recurso a tribunal (virtualidade executória), nada tem que ver com a questão da suspensão da sua execução, quando haja recurso contencioso ou mesmo com uma prática geral restritiva da sua execução forçosa, com a imposição de pressupostos muito exigentes e sua expressa permissão legal.

A protecção jurídica só opera quando é o meio, não de garantir a existência de um processo, mas a utilidade da sentença, ou seja, quando permita manter os bens ou situações jurídicas litigiosas até à decisão da justiça, não permitindo factos consumados ou actuações inadmissíveis que «anulem» a sentença de anulação.

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A sua presunção de legalidade pode justificar a sua executoriedade, mas não necessariamente o desencadear dos seus efeitos quando haja interposição de recurso e tal possa trazer danos não ressarcíveis, designadamente em face da morosidade processual. Essa produção de efeitos não pode deixar de ficar paralisada quando tal retire utilidade à solução jurisdicional, pondo em causa o princípio da tutela judicial efectiva. Importa assegurar a integridade do objecto em discussão até ao julgamento, o que, em princípio, pressupõe a suspensão da executoriedade.

*

27.3.Procedimento de suspensão jurisdicional de actos da administração

No direito português, hoje o direito processual admite todo o tipo de providências cautelares para garantirem a efectividade da própria sentença do tribunais assim como medidas financeiras compulsórias incidindo sobre os próprios responsáveis da administração que sejam incumpridores destas.

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Mas, neste plano, um dos temas mais importantes que importa a analisar é sem dúvida o da providência cautelar de suspensão judicial dos actos administrativos (e, agora, também das normas).

Este instituto tem tido carácter excepcional, exigindo-se tradicionalmente que o dano resultante da execução seja irreparável ou de difícil reparação, e desde que da suspensão não resulte grave lesão para o interesse público, o que tem, na interpretação jurisdicional, face à relatividade dos vários requisitos, não deixou de desequilibrar a balança dos interesses a ponderar, com a aceitação do desrespeito frequente de direitos e interesses dos particulares, pela sobrevalorização dos interesses funcionais da Administração Pública (artigo 266.º, n.º1 da CRP).

Hoje, a matéria é tratada no CPTA, no título V, capítulo I, artigo 112.º e seguintes, sobre providências cautelares, cujas características são a instrumentalidade estrutural do processo, a sumaridade da cognição e a provisioriedade da decisão e do seu conteúdo. Os requisitos, além

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naturalmente da necessidade, adequabilidade e urgência da medida, são, continuando a usar expressões de VIEIRA DE ANDRADE, a perigosidade (periculum in mora), a juridicidade material (como padrão decisório) e a proporcionalidade na decisão da concessão242.

A suspensão, em termos limitados ao necessário para evitar a lesão dos interesses do requerente, depende em geral da verificação de interesses públicos e privados, regulados no artigo 120.º do mesmo Código.

Os critérios gerais relevantes de apreciação pelo juiz são os seguintes: evidência da procedência da pretensão (v.g., por estar em causa a impugnação de acto manifestamente ilegal, de acto de aplicação de norma já anteriormente anulada ou de acto idêntico a outro já anteriormente anulado ou declarado nulo ou inexistente; fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses do requerente; e

242 ANDRADE, J.C. Vieira de –Justiça Administrativa. Coimbra:Almedina, 2004, p.324 e ss.

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probabilidade de que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente (em pedido de uma providência antecipatória) ou não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito (em pedido de uma providência conservatória), desde que, «devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da concessão da providência não se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências».

Deve considerar-se não existir lesão quando a mesma não seja manifesta ou ostensiva e a autoridade requerida não tenha contestado ou, fazendo-o, não tenha alegado que a adopção das providências cautelares causa grave lesão ao interesse público.

No entanto, se, no processo principal, o que está em causa é apenas o pagamento de quantia certa, sem natureza sancionatória, a adopção das providências

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cautelares não depende da verificação dos requisitos antes referidos, desde que tenha sido prestada garantia (por uma das formas previstas na lei tributária).

No Código do Processo nos Tribunais Administrativos dispõe-se em geral que, quem tenha legitimidade para interpor um processo junto dos tribunais administrativos, também tem legitimidade para solicitar a adopção de providências cautelares, sejam antecipatórias ou sejam conservatórias, em ordem a assegurar a utilidade da futura sentença.

Para além das previstas no Código de Processo Civil, o legislador veio especificamente referir a suspensão da eficácia de actos administrativos ou normas, a admissão provisória em concursos e provas de exames, a intimação para a adopção ou abstenção de uma conduta (pela Administração ou por um particular: v.g., concessionário) por alegada violação ou fundado receio de violação de normas de direito administrativo, a atribuição provisória da disponibilidade de um bem, a autorização provisória ao interessado para iniciar ou prosseguir uma actividade ou

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adoptar uma conduta e a regulação provisória de uma situação jurídica (v.g., imposição à Administração do pagamento de uma quantia por conta de prestações alegadamente devidas ou a título de reparação provisória). E o artigo 118.º (produção de prova) impõe a presunção como verdadeiros os factos invocados pelo requerente, quando a Administração não os conteste.

Além disso, no seguimento do disposto no artigo 80.º da LEPTA, vem proibir-se a execução do acto administrativo (artigo 128.º), nas situações em que seja requerida a suspensão da sua eficácia, a qual se mantém até à decisão jurisdicional em primeira instância (terminando independentemente de recurso, que nos termos do n.º2 do artigo143.º tem efeito meramente devolutivo243), não só interditando-se o seu início ou o prosseguimento, após a recepção do duplicado do requerimento, a menos que, de modo fundamentado (a apreciar pelo tribunal) e no prazo de 15 dias, venha declarar que o diferimento da execução

243 ALMEIDA, Mário Aroso –O Novo Código do Processo nos Tribunais Administrativos.Coimbra: Almedina, 2003, p.271.

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seria gravemente prejudicial para o interesse público (justificação que o trabunal pode não aceitar, naturalmente), como ainda mandando que a autoridade recorrida impeça, com urgência, os serviços ou os interessados de proceder ou continuar a proceder à sua execução.

E o acto já executado pode ser suspenso (artigo 129.º, no seguimento do artigo 81.º da LEPTA), pois a execução de um acto «não obsta à suspensão da sua eficácia, quando desta possa advir, para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender, no processo principal, utilidade relevante no que toca aos efeitos que o acto ainda produza ou venha a produzir».

E quanto à suspensão da eficácia de normas emitidas ao abrigo do direito administrativo, tidas por ilegais (artigo 130.º), pode a mesma ser solicitada, com efeitos circunscritos ao caso invocado, pelo interessado na sua declaração, desde que esses efeitos se produzam imediatamente, sem dependência de um acto administrativo ou jurisdicional de aplicação, além de e, aqui com efeitos naturalmente erga omnes,

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próprio Ministério Público pode pedir essa suspensão em relação a normas cuja declaração de ilegalidade com força obrigatória geral «tenha deduzido ou se proponha deduzir».

O princípio para que aponta a garantia da tutela efectiva só pode ser o da regra da suspensão da eficácia dos actos administrativos, prevendo a lei a possibilidade de a Administração, sempre que entenda que há razões de interesse público a exigir a sua execução imediata, permitir a sua execução através de uma decisão casuística nesse sentido, devidamente fundamentada e controlável jurisdicionalmente.

Em termos de direito comparado, constata-se que o § 80º da Lei Orgânica dos Tribunais Administrativos Alemães atribui, em geral, eficácia suspensiva aos recursos administrativos e contenciosos até ser tomada uma decisão, com excepção das situações envolvendo o pagamento de impostos, determinação e medidas de polícia de execução urgente, execução imediata por efeito de lei federal ou existência de um interesse público ou

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interesse prevalecente da Administração Pública que determine essa execução imediata.

Os tribunais não poderão deixar de ter sempre presente que, em princípio, o particular teria de poder ver ser restaurada naturalmente a sua situação, tocada pelo acto nulo ou anulado (voltar ao status quo anterior), sendo certo que a substituição da reparação natural por uma compensação financeira só deveria ser aceitável em casos-limite, em que a Administração Pública tenha de executar o acto administrativo, pois ela não é uma autêntica reparação.

Perante a postura tradicional da jurisprudência, quase inaplicando o procedimento de suspensão, o novo CPTA veio impor uma disciplina que pretende levar a mudar os rumos dessa atitude de valorização quase absoluta dos interesses afirmados pela Administração.

Com efeito, os valores a defender pela Administração Pública no interesse público não justificam a execução de actos em muitos casos que a jurisprudência ignorava sistematicamente e levaram o o legislador

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ordinário a apontar-lhe claramente outro caminho, mas, de qualquer modo, mais importante do que as disposições da lei será o modo como os tribunais as aplicarão.

Em face da legislação portuguesa, e apesar do Acórdão 366/92, do Tribunal Constitucional, emitido na vigência do antigo artigo 74.º da LEPTA, impõe-se que os Tribunais Administrativos interpretem, em termos favoráveis aos particulares, os requisitos da suspensão, valorizando essencialmente «a gravidade do prejuízo possível para o recorrente», pela duração do processo (que não pode ser o factor decisivo de vitória real, prática, de uma Administração com poderes de execução, independentemente da sua razão jurídica e do resultado de sentença futura), pelo que consideramos que deveriam conceder a providência cautelar de suspensão do acto, quando, havendo uma aparência perfunctória de existência de razão jurídica do particular (fumus boni iuris), seja de admitir um receio fundado de verificação de prejuízos irreparáveis para o direito ou situação litigiosa, durante o tempo necessário para a tomada de decisão judicial (pericula in mora).

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O princípio da tutela judicial efectiva, em relação à Administração Pública, tem uma importância especial, porque ela está obrigada, pela sua própria natureza, a actuar sem jurisdição prévia, devido à posição privilegiada que desfruta em face dos particulares.

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§28. §28. NOÇÕES FUNDAMENTAIS SOBRE A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA (DIREITO JUDICIÁRIO E PROCESSUAL ADMINISTRATIVO)

Quanto à Justiça Administrativa, transmitiremos apenas, nesta fase do Curso, algumas ideias gerais que habilite a saber-se que caminhos têm os cidadãos ao seu dispor.

Além de noções introdutórias sobre a justiça administrativa, expõem-se alguns apontamentos sobre as matérias do contencioso administrativo, especialmente sobre a acção administrativa especial de condenação à prática do acto administrativo devido e a acção comum de indemnização por danos) e da jurisdição administrativa (ordem jurisdicional administrativa: Tribunais Administrativos de Círculo, Tribunal Central Administrativo do Norte e Tribunal Central Administrativo do Sul e Supremo Tribunal Administrativo).

E, naturalmente, há que ministrar noções sobre o processo administrativo: tipologia das formas de processo. Sobre a acção administrativa comum: objecto,

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interesse processual e legitimidade, sua tramitação e decisão judicial. Casos de extensão dos efeitos da sentença. Sobre as acções administrativas especiais, além da tramitação comum, a acção administrativa especial de impugnação de actos administrativos (objecto, acto impugnável, espécies de legitimidade activa, ónus de não-aceitação do acto impugnado, legitimidade passiva, prazos de impugnação e a instância) e execução de sentenças de anulação de actos administrativos; a acção administrativa especial de condenação à prática de acta devido (objecto, acto administrativo devido, pressuposto de omissão ou recusa da Administração, legitimidade activa e passiva, prazos de propositura e instância); a acção administrativa especial de impugnação de normas e de declaração de ilegalidade por omissão (objecto, normas impugnáveis e legitimidade activa, inexistência de prazo de propositura, declaração de ilegalidade com força obrigatória geral e os seus efeitos, declaração de ilegalidade por omissão e os seus efeitos).

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Os outros temas, sobre que também consideramos útil que tenham alguns conhecimentos, são os referentes ao contencioso pré-contratual e providências relativas a procedimentos de formação de contratos (artigo 132.º): nas situações em que está em causa a anulação ou declaração de nulidade ou inexistência jurídica da actos administrativo» (sendo «equiparados a actos administrativos os actos praticados por sujeitos privados, no âmbito de procedimentos pré-contratuais de direito público») relativos à formação de contratos, em que se pode requerer «providências destinadas a corrigir a ilegalidade ou a

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impedir que sejam causados outros danos aos interesses em presença, incluindo a suspensão do procedimento de formação do contrato»; produção (antecipada) de prova antes de intentado o processo (depoimento, arbitramento e inspecção: artigo 134.º), no caso de haver «justo receio de vir a tornar-se impossível ou muito difícil o depoimento de certas pessoas ou a verificação de certos factos por meio de prova pericial ou por inspecção»; e, com um maior desenvolvimento, a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, terminando-se esta temática com algumas notas sobre os processos cautelares e processos urgentes244, processo executivo, recursos jurisdicionais e o enquadramento dos tribunais arbitrais245 e centros de arbitragem.

*

Enquadramento da jurisdição arbitral:

244 Vide, v.g., FONSECA, Isabel Celeste M. -Dos Novos Processos Urgentes no Contencioso Administrativo: (Função e Estrutura). Lisboa: LEZ, 2004.

245 GONÇALVES, Pedro –Contratos Administrativos.Policopiado. Coimbra, 1998 (n.º 4 da Parte VII).

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Lei especial: urbanismo, despesas públicas, etc

Contratos com aplicação normas de DA

em gestão públicaTipologia Responsabilidade extracontratual

Tipologia material em gestão privadados

Actos de execução de contratosTribunais

Actos com efeitos legalmente disponíveis (passíveis de revogação sem

fundamento em ilegalidade nos termos da lei substantiva Arbitrais

Celeridade

Características Possibilidade julgamento segundo equidade

Especialização dos juízes privados

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«Democratização» da justiça

Legislação aplicável transitoriamente (artigo 181.º do CPTA): Lei n.º31/86, de 29.8

(lei geral sobre arbitragem voluntária)

Recurso para o TCA Recursos de anulação ou recurso ordinário, quando não julgue

segundo a equidadeCritérios possíveis de delimitação daCritérios possíveis de delimitação da competência da jurisdição administrativacompetência da jurisdição administrativa (Tribunal Administrativo e Relação Jurídico-(Tribunal Administrativo e Relação Jurídico-administrativo):administrativo):1. Critério personalidade jurídica de direito1. Critério personalidade jurídica de direito público (Sentido Subjectivo)público (Sentido Subjectivo)

Tribunal de uma organização especial: Administração PúblicaTribunais estatutários: Jurisdição privativa da Administração PúblicaO que conta é a organização administrativa (pessoa colectiva de direito público)Consequências: integra gestão pública e gestão privada; exclui entidades privadas,

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exercendo Função Administrativa com aplicaçãodo DA

2. Critério de aplicação do DA (Sentido2. Critério de aplicação do DA (Sentido Objectivo)Objectivo)Tribunal aplicação de um ramo específico do direito: o DAO que conta é o exercício de poderes de autoridade: gestão pública (aplicação do Direito Administrativo)Consequências: Intera entidades públicas, entidades privadas no exercício da função administrativa, com aplicação de DA; Exclui Entidades públicas em gestão privada

3. Critério das tarefas exercidas (Sentido3. Critério das tarefas exercidas (Sentido Funcional)Funcional)Tribunais de derimição de conflitos envolvendo uma entidade no âmbito do exercício de Função AdministraçãoO que conta é a actividade exercidaConsequências: Abrange actividade em gestão pública e gestão privada da Administração Pública e tarefas administrativas por entidades privadas; Pessoas colectivas de direito público e pessoas colectivas de direito privado no exercício da FA com aplicação do DA

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**Quadro: âmbito da jurisdição (artigo 4.º do ETAF):1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal; b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração; c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos, praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não

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pertençam à Administração Pública; d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos; e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público; f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público; g) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, nos termos da lei, bem como a resultante do funcionamento da administração da justiça; h) Responsabilidade civil extracontratual

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dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos; i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público; j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir; l) Promoção da prevenção, da cessação ou da perseguição judicial de infracções cometidas por entidades públicas contra valores e bens constitucionalmente protegidos como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais; m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal; n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal. 2 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de:

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a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa; b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal; c) Actos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões. 3 - Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso; b) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça; c) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo seu Presidente; d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, que não confiram a qualidade de agente administrativo, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público.

 

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Regime da jurisdição administrativa246: 1.Semelhante ao regime tradicional típico dos tribunais judiciais2.Aplicação subsidiária adaptada do regime aplicável aos tribunais judiciais3.Regra da dupla alçada [determina a recorribilidade (artigo 142.º CPTA) e forma do processo (artigo 43 do CPTA) e duplo grau de jurisdição]; excepcionalmente triplo grau (artigo 6.º ETAF, 142.º CPTA; n.º2 do artigo 24.º ETAF, 150.º CPTA), e , por princípio, cabe aos TAC funcionar como tribunais primários, de 1.ª instância, conhecendo os tribunais superiores da matéria de facto só a título excepcional (artigos 24.º, 37.º e 44.º do ETAF).

-permanentes (competência compulsória)

4. Tribunais administrativos -arbitrais (tribunais arbitrais voluntários; ad hoc, compromisso arbitral ou clausula contratual compromissória sem oposição de contra-interessados)

246 (vide ANDRADE, J.C.Vieira de –o.c., p.141 e ss.; DL 325/2003, de 29.12).

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Tribunais locais (16): Tribunais Administrativos de Círculo, em capitais de distrito5.Espécies e localização dos TA Tribunais regionais (2): TACN (Porto) e TACS (Lisboa) Tribunal nacional, supremo: Supremo Tribunal Administrativo (Lisboa)

-juiz singular -colectivo de juízes: julgamento matéria facto nas acções comuns, quando requerido e não TAC’s houver gravação da prova -formação de 3 juízes: acções administrativas especiais de valor superior à Alçada NB.podem ser desdobrados em juízos funcionando fora da sede (artigo 9.º)

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Pode dividir-se em subsecções: 3 juízes, com relator Secção do contencioso dos TCA’s (artigo 32, 34 e 35.º ETAF) Pleno da secção

6.Funcionamento dos tribunais

Pode dividir-se por subsecção: 3 juízes, um dos quais com relator Secção do contencioso do STA Pleno: por decisão do Pres., mínimo 2/3 dos juízes em efectividade de funções, independentemente do número de juízes da Secção: uniformização de jurisprudência e processos em massa

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NB: -As sessões de julgamento realizam-se nos mesmos termos e condições que no Supremo Tribunal de Justiça, sendo aplicável, com as devidas adaptações, o disposto quanto a este Tribunal. -O Supremo Tribunal Administrativo funciona por secções e em plenário da secção do contencioso administrativo e da do contencioso tributário

*

No que concerne à problemática da relação jurídica administrativa e à nova justiça administrativa, importa destacar que o conceito de relação jurídico-administrativa é basilar para a definição do âmbito da Justiça Administrativa e do enquadramento do direito processual administrativo.

Com efeito, o n.º 3 do artigo 212.º da CRP (Tribunais administrativos e fiscais) afirma que «Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes

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das relações jurídicas administrativas e fiscais».

O que não pode deixar de implicar a centralidade deste conceito, em prejuízo da centralidade de uma das formas da actividade administrativa, o acto administrativo, tradicionalmente prevista no contencioso de modelo francês como base do contencioso-regra e consequentemente afirmada no desenvolvimento doutrinal apresentado no ensino do direito administrativo geral.

Ou seja, é hoje necessário, como refere VIEIRA DE ANDRADE, «pensar o mundo jurídico-administrativo em termos de relação jurídica»247.

Com efeito, se antes o contencioso administrativo foi o «´berço’ do acto administrativo»248, hoje, a nova Justiça Administrativa imposta pela Constituição portuguesa e pelos novos diplomas concretizadores do acesso à justiça em aplicação do princípio da tutela judicial

247 ANDRADE, José Carlos Vieira –«O domínio substancial da Justiça Administrativa».In A Justiça Administrativa: (Lições). 6.ª Ed., Coimbra: Almedina, 2004, p.64.

248 SILVA, Vasco M. Pereira da –oc, p.8, 11 e ss., 43 e ss.759

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efectiva, implicam não só uma dogmática diferente sobre o acto249, mas, mais do que isso, um novo centro da teorização do direito administrativo, assente essencialmente nas relações subsumidas.

Justamente, VASCO PEREIRA Direito Administrativo SILVA intitula um dos capítulos da sua tese doutoral, publicada em Meio de 1995, com a habitual sugestiva enunciação-noção das suas ideias, nos títulos e subtítulos dos seus escritos, de «A Justiça administrativa como novo ‘centro’ do direito administrativo250».

Digamos, desde já, que o conteúdo da relação jurídica administrativa são as posições jurídicas decorrentes de normas de direito administrativo251.

249 Sobre a dogmática do acto administrativa num mundo de transformação das formas da actuação da Administração Pública, vide SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da -«A transformação das formas de actuação da Administração Pública e suas consequências para a dogmática do acto administrativo». In Busca do Acto Administrativo Perdido. Colecção Teses. Coimbra: Almedina, p.99-122.

250 SILVA, Vasco Pereira da -«A relação jurídica como novo conceito central do direito administrativo». In Em busca do acto administrativo perdido. Colecção teses. Coimbra: Almedina, 1996, p.148 e ss.

251 Sobre toda esta temática, na literatura portuguesa, vide ANDRADE, José Carlos Vieira –«O domínio substancial da Justiça Administrativa».In A Justiça Administrativa: (Lições). 6.ª Ed., Coimbra: Almedina, 2004, p.55-87, que se segue de perto; e,

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Com efeito, como a caracteriza VIEIRA ANDRADE, uma relação jurídica, «enquanto relação social disciplinada pelo direito, pressupõe um relacionamento entre dois ou mais sujeitos, que seja regulado por normas jurídicas, das quais decorrem as posições jurídicas, activas e passivas, que constituem o respectivo conteúdo»252.

Hoje, portanto, é inultrapassável a centralidade do tema, pela conexão fundamental entre a existência de uma relação jurídica administrativa e a competência da jurisdição administrativa, o que justifica que, desde já, se avance com algumas considerações sobre esta interligação, tal como ela resulta do enquadramento da nova Justiça Administrativa, que, assente naturalmente na CRP, designadamente no princípio da competência residual da jurisdição administrativa como jurisdição comum em matéria administrativa, em questões de natureza administrativa não expressamente

ainda, AMARAL, Diogo Freitas do – Curso de Direito Administrativo Vol.II., Coimbra: Almedina, 2001, p.61 e ss. e SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da –Em busca do acto administrativo perdido. Colecção teses. Coimbra: Almedina, 1996.

252 ANDRADE, Vieira –o.c., p.64.761

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atribuídas por lei a nenhuma outra jurisdição, na medida em que tal não ofenda a garantia institucional de respeito pelo núcleo essencial da organização dos tribunais administrativos, cuja existência é incontornável (209253 e n.º 3 do artigo 212).

Conexão que parte da Constituição e é efectivada em concreto na legislação sobre a Justiça Administrativa, englobando em geral, sem prejuízo de normas especiais, o ETAF (Lei n.º13/2002, de 19.2) e o CPTA (Lei n.º15/2002, de 22.2), entrados em vigor em 1.1.2004, por força da Lei n.º4-A/2003, de 19.2, complementadas pela Lei n.º17-D/2003, de 31.12.

Estes diplomas, no uso de margens evidentes de poder de discricionariedade legal, não dão tradução à tese da reserva material absoluta da jurisdição administrativa em matérias não constitucionalmente atribuídas a outras jurisdições (v.g., jurisdição civil: contencioso eleitoral; Jurisdição constitucional:

253 Capítulo II (Organização dos tribunais), artigo 209.º (Categorias de tribunais): «1.Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais: a) O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância; b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais; c) O Tribunal de Contas».

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fiscalização abstracta e força obrigatória geral da inconstitucionalidade e ilegalidade (tecnicamente tradutora de fenómenos de inconstitucionalidade indirecta) de normas; Jurisdição supranacional da EU -Tratado-Constituição da UE- e Tribunal de Contas: legislação financeira)254.

O modelo da Justiça Administrativa é bastante alterado, com clara ampliação de meios garantísticos, quer no plano dos poderes da jurisdição, quer das pretensões com acesso a ela quer das formas processuais, sua cumulação, prazos e medidas de prevenção de situações e de precaução do efeito útil ou imposição de efectividade das decisões, ou seja, no plano cautelar e no executivo do seu cumprimento (direito processual).

Uma alteração ecléctica, no seguimento da orientação constitucional, que embora sem determinar um modelo processual subjectivista, aponta para uma abordagem centrada essencialmente na garantia dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, dentro de uma solução organizatória judicialista e de respeito pleno pelo princípio da tutela

254 ANDRADE, JCV -oc, p.50.763

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judicial efectiva, com o objectivo de assegurar uma protecção plena dos cidadãos face á Administração, mas sem esquecer o sentido global da existência da Administração Pública, constante do n.º1 do artigo 266.º da CRP255 e a própria valorização da defesa de bens públicos, interesses difusos e colectivos (52.3 da CRP256).

Alteração num sentido subjectivista, inspirado no modelo alemão, mas conciliado com elementos significativos de um modelo objectivista, típico da visão tradicional de inspiração francesa, e reafirmando-se o sistema de administração executiva (respeito de espaços de valoração própria da Administração Pública nas sentenças condenatórias, processos de execução e

255 TÍTULO IX (Administração Pública). Artigo 266.º(Princípios fundamentais): «1. A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos».

256 Artigo 52.º (Direito de petição e direito de acção popular):«3. É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural; b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais».

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estabilidade do caso resolvido sobre actos anuláveis)257.

Este modelo objectivista caracteriza-se por aparecer ligado a uma mera defesa da legalidade e do interesse colectivo, independentemente da implicação ou não de direitos e interesses dos cidadãos, o que é visível nos seguintes aspectos:

A)-legitimidade activa, integrando na impugnação dos actos:

1.º - Os interessados detentores de direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos

2.º - Os interessados de facto na acção particular

3.º - Associações e membros da comunidade (acção popular)

4.º - Ministério Público, também legitimado para condenação à prática de actos devidos e em contratos (acção pública)

5.º sindicância dos conflitos interadministrativos e intra-administrativos (entre órgãos e membros do órgão)

6.º sancionamento específico não reenvio processo administrativo ao tribunal

257 Vide, em geral, ANDRADE, J.C. Vieira de –Justiça Administrativa, oc, p.54.

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e presunção de prova (84.4 e 5).

No plano das pretensões e meios processuais, consagram-se os princípios da tutela judicial efectiva (2.1 CPTA) e da plena jurisdição dos TA,

Assim, importa reter as seguintes modificações significativas:

1.º -aumento dos poderes de cognição e de pronuncia do juiz perante a Administração Pública (2.2. do CPTA), abarcando pretensões e poderes jurisdicionais «declarativos, constitutivos, condenatórios, intimativos, preventivos e executivos, em especial perante a Administração Pública»258; e concomitantemente:

2.º - ampliação da espécies de decisões jurisdicionais: condenação à prática de actos devidos ou à não emissão de indevidos, intimações para a adopção ou para a abstenção de comportamentos administrativos, declaração de ilegalidade de normas ou de não emissão devida delas, resolução de litígios administrativos entre

258 ANDRADE, JCV -oc, p.51.766

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entidades privados e entre órgãos da mesma pessoa colectiva ou o presidente ou mesmo um outro membro de órgão colegial e esse órgão.

3.º- O antigo recurso contencioso de anulação (mera declaração de inexistência jurídica, declaração de nulidade ou de anulação do acto) é reconvertido, como impugnação de actos, num dos possíveis pedidos da Acção Administrativa Especial, imprestável agora para situações de silêncio da Administração Pública ou indeferimentos; a anterior acção para o reconhecimento de direitos legalmente protegidos, decomposta em acção declarativa e acção condenatória, segue a forma de acção administrativa comum (37 CPTA)

4.º- Cria-se um regime uniforme de tramitação da AAE (35.2 e 78 e ss.) com certas particularidades:

-impugnação dos actos: 50 e ss.-condenação à prática de actos

devidos: 66 e ss-processos relativos a normas: 72 e ss.-processos principais urgentes

(impugnações e intimações urgentes): 97 e

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ss259.

5.º-Possibilidade de cumulação de pedidos mesmo com tipologia accionária distinta desde que seja a mesma a relação jurídica, a matéria de facto ou de direito (4.º, 4.2, 47 CPTA)260.

259 Artigo 36.º (Processos urgentes):«1-Sem prejuízo dos demais casos previstos na lei, têm carácter urgente os processos relativos a: a) Contencioso eleitoral, com o âmbito definido neste Código; b) Contencioso pré-contratual, com o âmbito definido neste Código; c) Intimação para prestação de informações, consulta de documentos ou passagem de certidões; d) Intimação para defesa de direitos, liberdades e garantias;e) Providências cautelares. 2 - Os processos urgentes correm em férias, com dispensa de vistos prévios, mesmo em fase de recurso jurisdicional, e os actos da secretaria são praticados no próprio dia, com precedência sobre quaisquer outros».

260 Artigo 47.º (Cumulação de pedidos): «1-Com qualquer dos pedidos principais enunciados no n.º 2 do artigo anterior podem ser cumulados outros que com aqueles apresentem uma relação material de conexão, segundo o disposto no artigo 4.º, e, designadamente, o pedido de condenação da Administração à reparação dos danos resultantes da actuação ou omissão administrativa ilegal. 2-O pedido de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência de um acto administrativo pode ser nomeadamente cumulado com: a) O pedido de condenação à prática do acto administrativo devido, em substituição, total ou parcial, do acto praticado; b) O pedido de condenação da Administração à adopção dos actos e operações necessários para reconstituir a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado e dar cumprimento aos deveres que ela não tenha cumprido com fundamento no acto impugnado; c) O pedido de anulação ou declaração de nulidade do contrato em cujo procedimento de formação se integrava o acto impugnado; d) Outros pedidos relacionados com a execução do contrato, quando o acto impugnado seja relativo a essa execução. 3 - A não formulação dos pedidos cumulativos mencionados no número anterior não preclude a possibilidade de as mesmas pretensões serem accionadas no âmbito do processo de execução da sentença

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6.º- ampliação do campo de litígios de competência da organização jurisdicional administrativa, no âmbito dos «contratos que envolvam a aplicação de direito público», da responsabilidade civil por actos resultantes do exercício da Função Administrativa, e actos da Função legislativa e jurisdicional.

7.º- A protecção cautelar abarca quaisquer providências antecipatórias e conservatórias adequadas a assegurar o efeito útil da sentença

8.º- Alargamento do conceito já muito amplo de legitimidade para impugnação de actos: interessados directos, MP, qualquer cidadão, titulares de interesses difusos na Acção Popular, pessoas colectivas e órgãos

de anulação. 4 - Salvo quando seja apresentada em termos de subsidiariedade ou de alternatividade, é possível a cumulação de impugnações de actos administrativos: a) Que se encontrem entre si colocados numa relação de prejudicialidade ou de dependência, nomeadamente por estarem inseridos no mesmo procedimento ou porque da existência ou validade de um deles depende a validade do outro; b) Cuja validade possa ser verificada com base na apreciação das mesmas circunstâncias de facto e dos mesmos fundamentos de direito. 5 - No caso de absolvição da instância por ilegal cumulação de impugnações, podem ser apresentadas novas petições, no prazo de um mês a contar do trânsito em julgado, considerando-se estas apresentadas na data de entrada da primeira para efeitos da tempestividade da sua apresentação».

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administrativos.

9.º- alteração da tipologia dos meios processuais principais, com a criação diferenciada de verdadeiras acções administrativas, a comum e a especial;

10.º - Consagra-se o princípio da igualdade de armas:

-processo de partes: 189.1-sujeição a condenação por litigância

de má fé: 6.º-admissão geral dos vários meios de

prova, incluindo a prova testemunhal:

11º- Reenquadramento do papel do MP

Se há alguma redução de poderes, com a limitação do papel na fase instrutória, supressão da vista final e a não participação na sessão de julgamento, a verdade é que se lhe atribuem poderes na defesa de valores da Comunidade: emissão de pareceres sobre mérito e invocação de novos vícios.

Vejamos:

A)-No âmbito da impugnação de actos

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anuláveis:

a)-Mantém uma legitimidade genérica e com um prazo accionário mais longo de que os destinatários ou contra-interessados dos actos: um ano (n.º 2 do artigo 58)261.

b)-Pode, no exercício da acção pública, assumir a posição de autor, requerendo o seguimento de processo que, por decisão ainda não transitada, tenha terminado por desistência ou outra circunstância própria do autor, devendo, neste caso, o juiz, uma vez extinta a instância, dar-lhe vista do processo (artigo 62)262;

c)-pode invocar causas de invalidade diversas das que tenham sido arguidas na petição (n.º3 do artigo 85.º);

d)-pode suscitar quaisquer questões que determinem a nulidade ou inexistência do acto impugnado (n.º4 do artigo 85.º).

261 SUBSECÇÃO III (Dos prazos de impugnação), Artigo 58.º (Prazos):«1 - A impugnação de actos nulos ou inexistentes não está sujeita a prazo. 2-Salvo disposição em contrário, a impugnação de actos anuláveis tem lugar no prazo de: a) Um ano, se promovida pelo Ministério Público; b) Três meses, nos restantes casos».

262 Artigo 62.º (Prossecução da acção pelo Ministério Público): «1 -O Ministério Público pode, no exercício da acção pública, assumir a posição de autor, requerendo o seguimento de processo que, por decisão ainda não transitada, tenha terminado por desistência ou outra circunstância própria do autor. 2-Para o efeito do disposto no número anterior, o juiz, uma vez extinta a instância, dará vista do processo ao Ministério Público».

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B)-No âmbito da impugnação de normas e declaração de ilegalidade por omissão:

a)-pode, com fundamento em ilegalidade, quaisquer normas emitidas ao abrigo de disposições de direito administrativo, pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, sem dependência da verificação da inaplicação em processos anteriores (n.º 3 e 5 do artigo 73)263.

b)-pode pedir a apreciação jurisdicional da existência de situações de

263 SECÇÃO III (Impugnação de normas e declaração de ilegalidade por omissão), Artigo 73.º (Pressupostos): «3-O Ministério Público pode pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, sem necessidade da verificação da recusa de aplicação em três casos concretos a que se refere o n.º 1. 5-Para o efeito do disposto no número anterior, a secretaria, após o respectivo trânsito em julgado, remete ao representante do Ministério Público junto do anuláveis tem lugar no prazo de: a) Um ano, se promovida pelo Ministério Público; b) Três meses, nos restantes casos». Artigo 62.º (Prossecução da acção pelo Ministério Público): «1 -O Ministério Público pode, no exercício da acção pública, assumir a posição de autor, requerendo o seguimento de processo que, por decisão ainda não transitada, tenha terminado por desistência ou outra circunstância própria do autor. 2-Para o efeito do disposto no número anterior, o juiz, uma vez extinta a instância, dará vista do processo ao Ministério Público». SECÇÃO III (Impugnação de normas e declaração de ilegalidade por omissão), Artigo 73.º (Pressupostos): «3-O Ministério Público pode pedir a declaração tribunal certidão das sentenças que tenham desaplicado, com fundamento em ilegalidade, quaisquer normas emitidas ao abrigo de disposições de direito administrativo».

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ilegalidade por não adopção de normas administrativas devidas, necessárias para dar exequibilidade a actos legislativos (artigo 77)264.

C)- No âmbito da marcha do processo na acção administrativa especial

a)-pode solicitar a realização de diligências instrutórias,

b)- pode pronunciar-se sobre o mérito da causa, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens comunitários referidos no n.º 2 do artigo 9.º (artigo 85.º)265,

264 Artigo 77.º (Declaração de ilegalidade por omissão):«1 - O Ministério Público, as demais pessoas e entidades defensoras dos interesses referidos no n.º 2 do artigo 9.º e quem alegue um prejuízo directamente resultante da situação de omissão podem pedir ao tribunal administrativo competente que aprecie e verifique a existência de situações de ilegalidade por omissão das normas cuja adopção, ao abrigo de disposições de direito administrativo, seja necessária para dar exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação. 2 - Quando o tribunal verifique a existência de uma situação de ilegalidade por omissão, nos termos do número anterior, disso dará conhecimento à entidade competente, fixando prazo, não inferior a seis meses, para que a omissão seja suprida».

265 Artigo 85.º (Intervenção do Ministério Público): «1 - No momento da citação da entidade demandada e dos contra-interessados, é fornecida cópia da petição e dos documentos que a instruem ao Ministério Público, salvo nos processos em que este figure como autor. 2 - Em função dos elementos que possa coligir e daqueles que venham a ser carreados para o processo, o

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D)- No âmbito da intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões

-pode exercer a acção pública para pedir a intimação intimação de uma entidade sujeita à aplicação das direito à informação procedimental ou do direito de acesso aos arquivos e registos administrativos normas sobre o direito à informação procedimental ou ao direito de acesso aos documentos administrativos nos termos da Lei n.º65/93, de 26 de Agosto (n.º2 do artigo 104)266.Ministério Público pode solicitar a realização de diligências instrutórias, bem como pronunciar-se sobre o mérito da causa, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º 3 - Para o efeito do disposto no número anterior, o Ministério Público, nos processos impugnatórios, pode invocar causas de invalidade diversas das que tenham sido arguidas na petição. 4-Nos processos impugnatórios, o Ministério Público pode ainda suscitar quaisquer questões que determinem a nulidade ou inexistência do acto impugnado. 5 - Os poderes de intervenção previstos nos números anteriores podem ser exercidos até 10 dias após a notificação da junção do processo administrativo aos autos ou, não tendo esta lugar, da apresentação das contestações, disso sendo, de imediato, notificadas as partes».

266 Capítulo II (Das intimações), Secção I (Intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões), Artigo 104.º (Pressupostos):«1- Quando não seja dada integral satisfação aos pedidos formulados no exercício do direito à informação procedimental ou do direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, o interessado pode requerer a intimação da entidade administrativa competente, nos termos e com os efeitos previstos na presente secção. 2 - O pedido de intimação é igualmente aplicável nas situações previstas no n.º 2 do artigo 60.º

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E)-No âmbito dos recursos jurisdicionais:

a)-Pode pronunciar-se sobre o mérito do recurso, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º.2 (artigo146)267, e pode ser utilizado pelo Ministério Público para o efeito do exercício da acção pública.

267 Artigo 146.º (Intervenção do Ministério Público, conclusão ao relator e aperfeiçoamento das alegações de recurso):«1-Recebido o processo no tribunal de recurso e efectuada a distribuição, a secretaria notifica o Ministério Público, quando este não se encontre na posição de recorrente ou recorrido, para, querendo, se pronunciar, no prazo de 10 dias, sobre o mérito do recurso, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º.2-No caso de o Ministério Público exercer a faculdade que lhe é conferida no número anterior, as partes são notificadas para responder no prazo de 10 dias.3 - Cumpridos os trâmites previstos nos números anteriores, os autos são conclusos ao relator, que ordena a notificação do recorrente para se pronunciar, no prazo de 10 dias, sobre as questões prévias de conhecimento oficioso ou que tenham sido suscitadas pelos recorridos. 4 - Quando o recorrente, na alegação de recurso contra sentença proferida em processo impugnatório, se tenha limitado a reafirmar os vícios imputados ao acto impugnado, sem formular conclusões ou sem que delas seja possível deduzir quais os concretos aspectos de facto que considera incorrectamente julgados ou as normas jurídicas que considera terem sido violadas pelo tribunal recorrido, o relator deve convidá-lo a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de não se conhecer do recurso na parte afectada.5 - No caso previsto no número anterior, a parte contrária é notificada da apresentação de aditamento ou esclarecimento pelo recorrente, podendo responder no prazo de 10 dias».

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b)-pode dirigir ao Supremo Tribunal Administrativo o pedido de admissão de recurso para uniformização de jurisprudência (artigo152)268;

c)-pode requerer a revisão das sentenças transitadas em julgado, com qualquer dos fundamentos previstos no Código de Processo Civil (n.º 1 do artigo155)269.

268 Capítulo II (Recursos ordinários), Artigo 152.º (Recurso para uniformização de jurisprudência):«1-As partes e o Ministério Público podem dirigir ao Supremo Tribunal Administrativo, no prazo de 30 dias contado do trânsito em julgado do acórdão impugnado, pedido de admissão de recurso para uniformização de jurisprudência, quando, sobre a mesma questão fundamental de direito, exista contradição: a) Entre acórdão do Tribunal Central Administrativo e acórdão anteriormente proferido pelo mesmo Tribunal ou pelo Supremo Tribunal Administrativo; b) Entre dois acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo.2 - A petição de recurso é acompanhada de alegação na qual se identifiquem, de forma precisa e circunstanciada, os aspectos de identidade que determinam a contradição alegada e a infracção imputada à sentença recorrida. 3 - O recurso não é admitido se a orientação perfilhada no acórdão impugnado estiver de acordo com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo. 4 - O recurso é julgado pelo pleno da secção e o acórdão é publicado na 1.ª série do Diário da República. 5 - A decisão de provimento emitida pelo tribunal superior não afecta qualquer sentença anterior àquela que tenha sido impugnada nem as situações jurídicas ao seu abrigo constituídas. 6 - A decisão que verifique a existência da contradição alegada anula a sentença impugnada e substitui-a, decidindo a questão controvertida».

269 Capítulo III (Recurso de revisão), Artigo 155.º (Legitimidade):«1-Têm legitimidade para requerer a revisão, com qualquer dos fundamentos previstos no Código de Processo Civil, o Ministério Público e as partes no processo.2-Tem igualmente legitimidade para requerer a revisão quem, devendo ser

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***

Quanto à matéria da justiça administrativa, na perspectiva do direito processual administrativo, começamos naturalmente por dar o conceito de justiça administrativa.

Na linha do enquadramento constitucional do tema, e demarcando-se de uma visão reducionista e meramente finalística, ao considerar a «protecção dos direitos dos particulares como o objectivo exclusivo do princípio da legalidade administrativa, importa, como o faz, v.g., JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, definir a Justiça Administrativa, em sentido amplo, como «um sistema de mecanismos e de formas ou processos destinados à resolução das controvérsias nascidas de relações jurídicas administrativas»270.

obrigatoriamente citado no processo, não o tenha sido e quem, não tendo tido a oportunidade de participar no processo, tenha sofrido ou esteja em vias de sofrer a execução da decisão a rever».

270 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, afasta claramente uma perspectiva puramente garantística dos particulares («o conjunto das garantias dos particulares contra as actuações ilegítimas da Administração que ofendessem os seus direitos ou interesses»). O autor, que seguimos de perto em algumas destas considerações sobre o conceito e âmbito da justiça administrativa, dá outros exemplos de definições semelhantes dadas pela

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Em Estado de Administração pública pluralizada, a justiça administrativa não pode reduzir-se «à garantia dos particulares, nem na sua estrutura, nem na correspondente função», sendo certo que os processos de descentralização crescente de atribuições (administrações estaduais indirectas, administrações autónomas, territoriais ou corporativas) de concessões a particulares e de «privatização formal»271

(sociedades públicas em forma comercial com poderes públicos: sociedades de capitais exclusiva ou predominantemente públicos), também surgem conflitos nas relações entre estes diferentes exercendo a Função administrativa, a que são directamente alheios os particulares, mas a que o direito contencioso e os tribunais administrativos não podem deixar ser

doutrina, que não parecem dever merecer acolhimento: «complexo dos institutos dirigidos à garantia da legitimidade da actividade administrativa e ao uso correcto do poder discricionário por parte da Administração Pública face aos direitos e interesses das pessoas físicas e jurídicas confrontadas com o seu poder»; «conjunto das garantias jurídicas contenciosas dos particulares»; «conjunto dos meios de reacção dos particulares à ilegalidade administrativa»; «conjunto dos meios de que a ordem jurídica dispõe para reintegrar os direitos ou interesses que ela tutela e que hajam sido violados pela actuação da Administração pública»: ANDRADE, J. C. Vieira de –Justiça Administrativa. 3.ª Ed., Coimbra: Almedina, 1999, p.9, designadamente nota 1.

271 Ibidem, p.10.778

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chamados a resolver.

E se a garantia da juridicidade da Administração272 serve um triplo objectivo «garantístico», o da defesa dos direitos e interesses dos particulares, o do respeito das atribuições e direitos contratualizados das diferentes Administrações e o da defesa da prossecução do interesse público legalmente definido, (artigo 266.° da Constituição), melhor é não nos apartarmos do conceito competencial (n.º3 do artigo

272 A A expressão «princípio da juridicidade» referida à Administração Pública pretende significar uma Administração aberta a uma dimensão da realização do direito para além da mera aplicação do princípio da legalidade (GARCIA, Maria da Glória Ferreira Pinto Dias -«Da Justiça Administrativa em Portugal: sua origem e evolução». Lisboa: UCP, 1994, p.634-648, nota 611), cobrindo a dimensão garantística do direito, mas não a intencional ou política, o que não traduziria uma abertura à «realização global do direito», problemática que tem levado alguma doutrina a defender o recurso a outras expressões. De qualquer modo, estaria prehjudicada a de «princípio da justiça», que Maria Dias Garcia preferiria porque integraria «as exigências decorrentes de uma ideia condutora de justiça» (JC Vieira de Andrade –O princípio da Imparcialidade (…), p.29, apud Garcia, M. D. -oc, p.634), dado o sentido parcelar que a consagração constitucional como um dos princípios juridificados implica, poderia usar-se a de princípio da racionalidade jurídica, com inspiração na expressão acolhida em doutrina alemã, princípio da racionalidade, referida a toda a actuação estadual no sentido de «realização do direito» (HOFFMAN, gerhard –«Das Verfassungsrechtliche Gebot der Rationalität im Gesetzgebungsverfahren». In Zeitschrift für Gesetzgebund, 1990, Heft2, p.97-116; MENGEL, Hans Joachim –«Die verfahrensmässigen Pflichten dês Gesetzbers und irhe verfassungsgerichtliche». In Zeitschrift für Gesetzgebund, 1990, Heft3, p.193-212, apud GARCIA, M D. –oc, p.634 .

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212.°273) constitucionalizado da justiça administrativa, de natureza orgânico-material, substancial e não apenas finalístico, segundo o qual esta existe para o «julgamento de todas as acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas».

Portanto, a Justiça Administrativa, como conceito global, a utilizar quando pretendemos reportar-nos simultaneamente à organização (definida pelo direito judiciário administrativo) e ao processo e funcionamento jurisdicionais (definidos pelo direito processual administrativo), é o conjunto de órgãos, regras processuais e actos daí derivados («julgamento», «acções»-«recursos»), orientados para a solução, em termos jurídicos, dos conflitos emergentes das relações jurídico-administrativas («objecto»).

O direito processual administrativo

273 Artigo 212.º (Tribunais administrativos e fiscais): «3. Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

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(contencioso administrativo) é o ramo do direito ordenador dos conjuntos sequenciais de actos e formalidades de instauração, desenvolvimento e extinção das instâncias (formas dos processos) previstas para a apreciação da actuação das entidades públicas e privadas que exerçam a Função Administrativa do Estado-Comunidade ou a actuação de natureza materialmente administrativa de outros órgãos do Estado, visando a reintegração da legalidade (controlo da legalidade e não do mérito) ou a compensação pelas violações e danos ocasionados (responsabilidade), através da declaração casuística do direito aplicável (processo declarativo) ou da adopção de medidas executórias de índole coerciva conformadoras desse direito (processo executivo), que garantam a tutela jurídica adequada (processo principal) ou salvaguardem o seu efeito útil no futuro (processo cautelar, urgente).

No domínio dos conceitos referentes às diferentes formas do processo contencioso, a acção administrativa comum (título II do Código) segue a forma de processo de declaração ordinária, sumária e sumaríssima e regem-se pelo disposto no

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CPC274. A acção administrativa especial (título

III) e os processos urgentes (título IV) regem-se pelas disposições próprias reguladas nestes títulos e as regras gerais, com aplicação subsidiária da lei processual civil275.

A forma da acção administrativa comum é a usada nos processos sobre litígios cuja apreciação se inscreva no âmbito da jurisdição administrativa e que não contem com qualquer regulação especial.

Entre os litígios que a seguem, temos os seguintes:

-Reconhecimento de situações jurídicas subjectivas directamente decorrentes de normas jurídico-administrativas ou de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo;

-Reconhecimento de qualidades ou do preenchimento de condições;

-Condenação à adopção ou abstenção de comportamentos, designadamente a condenação da Administração à não emissão

274 Artigo 37.º (Objecto) e seguintes.275 Artigo 35.º (Formas de processo).

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de um acto administrativo, quando seja provável a emissão de um acto lesivo;

-Condenação da Administração à adopção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos ou interesses violados;

-Condenação da Administração ao cumprimento de deveres de prestar que directamente decorram de normas jurídico-administrativas e não envolvam a emissão de um acto administrativo impugnável, ou que tenham sido constituídos por actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo, e que podem ter por objecto o pagamento de uma quantia, a entrega de uma coisa ou a prestação de um facto;

-Responsabilidade civil das pessoas colectivas, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, incluindo acções de regresso; -Condenação ao pagamento de indemnizações decorrentes da imposição de sacrifícios por razões de interesse público;

-Interpretação, validade ou execução de contratos;

-Enriquecimento sem causa;-Relações jurídicas entre entidades

administrativas.

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A forma de acção comum serve para a condenação à adopção ou abstenção de certo comportamento, por particulares, nomeadamente concessionários, que, sem fundamento em acto administrativo impugnável, violem vínculos jurídico-administrativos que ofendam directamente direitos ou interesses, decorrentes de normas, actos administrativos ou contratos, ou haja fundado receio de que os possam violar, de modo a assegurar o cumprimento dos vínculos em causa, desde que, solicitadas a fazê-lo, as autoridades competentes não tenham adoptado as medidas adequadas (n.º3 do artigo37.º).

Tal como serve para o conhecimento, a título incidental, da ilegalidade de um acto administrativo já inimpugnável, quando a lei o admita (artigo 38.º).

A forma da acção administrativa especial é para as pretensões emergentes da prática ou da omissão ilegal de actos administrativos, e de normas que tenham ou devessem ter sido emitidas ao abrigo de disposições de direito administrativo.

Os processos principais que a seguem

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são os seguintes: -Anulação de um acto administrativo e

declaração da sua nulidade ou da sua inexistência jurídica;

-Condenação à prática de um acto administrativo legalmente devido;

-Declaração da ilegalidade de uma norma emitida ao abrigo de disposições de direito administrativo;

-Declaração da ilegalidade da não emanação de uma norma que devesse ter sido emitida ao abrigo de disposições de direito administrativo.

Quanto aos actos administrativos praticados no âmbito do procedimento de formação de contratos a sua impugnação rege-se em geral pelas regras da AAE mas existe um regime especial urgente (artigos 100.º e seguintes276), para a impugnação dos

276 Artigo 101.º (Prazo): «Os processos do contencioso pré-contratual têm carácter urgente e devem ser intentados no prazo de um mês a contar da notificação dos interessados ou, não havendo lugar a notificação, da data do conhecimento do acto». Artigo 102.º (Tramitação): «1-Os processos do contencioso pré-contratual obedecem à tramitação estabelecida no capítulo III do título III, salvo o preceituado nos números seguintes. 2 - Só são admissíveis alegações no caso de ser requerida ou produzida prova com a contestação. 3-Os prazos a observar são os seguintes: a) 20 dias para a contestação e para as alegações, quando estas tenham lugar; b) 10 dias para a decisão do juiz ou relator, ou para este submeter o processo a julgamento; c) 5 dias para os restantes casos. 4 - O objecto do processo pode ser ampliado à impugnação do contrato, segundo o disposto no artigo 63.º 5 - Se, na pendência

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actos relativos à formação dos contratos de empreitada e concessão de obras públicas, de prestação de serviços e de fornecimento de bens e o programa do concurso, o caderno de encargos ou qualquer outro documento conformador do procedimento de sua formação com fundamento na ilegalidade das especificações técnicas, económicas ou financeiras que constem desses documentos. Sendo, para efeito de aplicação destas regras especiais, equiparados a actos administrativos os actos dirigidos à celebração desta tipologia contratual praticados por sujeitos privados, no âmbito de um procedimento pré-contratual de direito público.

Em geral, são impugnáveis os actos administrativos, mesmo que não inseridos num procedimento administrativo, que tenham eficácia externa, especialmente os

do processo, se verificar que à satisfação dos interesses do autor obsta a existência de uma situação de impossibilidade absoluta, o tribunal não profere a sentença requerida mas convida as partes a acordarem, no prazo de 20 dias, no montante da indemnização a que o autor tem direito, seguindo-se os trâmites previstos no artigo 45.º». Artigo 103.º (Audiência pública):«Quando o considere aconselhável ao mais rápido esclarecimento da questão, o tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento de qualquer das partes, optar pela realização de uma audiência pública sobre a matéria de facto e de direito, em que as alegações finais serão proferidas por forma oral e no termo da qual é imediatamente ditada a sentença».

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que sejam susceptíveis de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos, assim como as decisões materialmente administrativas proferidas por autoridades não integradas na Administração Pública e por entidades privadas que actuem ao abrigo de normas de direito administrativo.

O facto de não se ter impugnado qualquer acto procedimental não impede o interessado de impugnar o acto final com fundamento em ilegalidades cometidas ao longo do procedimento, excepto se o acto em causa tiver determinado a exclusão do interessado do procedimento, a menos que haja disposição diferente em lei especial.

No caso de ter sido deduzido um pedido de estrita anulação contra um acto de indeferimento, o tribunal deve convidar o autor a substituir a petição, formulando o adequado pedido de condenação à prática do acto devido, e, se tal ocorrer, a entidade demandada e os contra-interessados devem ser de novo citados para contestar (artigo 51.º).

Importa esclarecer que, por um lado, a possibilidade de impugnar os actos

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administrativos não depende da forma normativa assumida, e, por outro, que o facto de não se ter exercido o direito de impugnar um acto, logo directamente no próprio diploma legislativo ou regulamentar, tal não impede a impugnação dos actos de execução ou de aplicação posteriores nele fundados, tal como o não exercício do direito de impugnar um acto que não individualize os seus destinatários não impede a impugnação dos actos de execução ou aplicação cujos destinatários venham a ser identificados em actos individualizados (artigo 52.º).

Sempre que sejam intentados mais de 20 processos reportados a diferentes pronúncias da mesma entidade administrativa, mas respeitantes à mesma relação jurídica material ou a relações jurídicas coexistentes em paralelo, se eles forem susceptíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas a idênticas situações de facto (processos em massa), o tribunal pode determinar que, ouvidas as partes:

a)- o andamento apenas de um (ou de alguns deles, caso em que os processos são apensados num único processo),

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suspendendo-se a tramitação dos demais. b)-a suspensão dos processos que

venham a ser intentados na pendência do processo seleccionado.

Estes processos seleccionados seguem as regras dos processos urgentes e com intervenção no julgamento de todos os juízes do tribunal ou da secção.

Além disso, esta opção depende da garantia de que, no processo ou processos aos quais seja dado andamento prioritário, a questão é debatida em todos os aspectos de facto e de direito e a suspensão da tramitação dos demais processos não limita o âmbito da instrução, afastando a apreciação de factos ou a realização de diligências de prova necessárias ao apuramento da apuramento da verdade.

Em face de decisão transitada em

julgado, esta é imediatamente notificada aos outros peticionários, que podem optar por uma das seguintes soluções:

-desistência do processo;-requerimento da extensão ao seu caso

dos efeitos da sentença proferida (n.º3, 4 e 5 do artigo 176.º), caso em que se seguem os trâmites do processo de execução das

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sentenças de anulação de actos administrativos (artigos 177.º a 179.º);

-requerimento da continuação do seu processo; ou

-recorrer desta sentença, no caso de ela ter sido proferida em primeira instância (no prazo de 30 dias), e se ele fôr favorável, com posterior pedido de extensão dos seus efeitos e aplicação do disposto nos artigos 177.º a 179.º (artigo 48.º)

Algumas notas devem ser ministradas sobre a existência de dois diplomas, o ETAF como direito judiciário e o CPTA, como direito processual.

No que concerne ao âmbito material da jurisdição administrativa, a jurisdição a quem cabe, por norma, aplicar este ramo do direito é a jurisdição administrativa, que é definida pelo ETAF como aquela que é composta pelos «órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas» (n.º1 do art.º 1.º), com independência e sujeição única à lei (art.º2.º), mas no respeito pelo princípio da constitucionalidade (n.º2 do art.º1).

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O seu âmbito essencial desta jurisdição vem enunciado no art.º 4.º do diploma, que lhes atribui competência para a apreciação de litígios que tenham «nomeadamente» por objecto:

- a tutela de direitos fundamentais;-a tutela geral dos direitos e interesses

legalmente protegidos dos particulares, «directamente fundados em normas de direito administrativo ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo»;

-a fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos, «emanados por pessoas colectivas de direito público, ao abrigo de disposições de direito administrativo» ou «praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos»;

-a fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos, praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;

- as questões relativas à validade de actos pré-contratuais, a verificação da invalidade de quaisquer contratos. «que directamente resulte da invalidade do acto

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administrativo no qual se fundou a respectiva celebração» e as questões relativas «à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público», assim como as questões «relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público»;

-as questões «em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa», a responsabilidade civil extracontratual dos «titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos», e dos «sujeitos privados aos quais

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seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público»;

-as «relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir»;

-a promoção da «prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional»;

-o contencioso eleitoral «relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal»;

-a «execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa» (n.º1).

Dela estão excluídas, «nomeadamente» (além de outras actuações referidas noutras leis), a apreciação de litígios que tenham por objecto (n.º2 e 3 do art.º4,º):

-Os actos praticados «no exercício da

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função política» e legislativa; -as decisões jurisdicionais proferidas

por tribunais de outras jurisdições; -os actos relativos ao inquérito e à

instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões;

-a apreciação das acções de «responsabilidade por erro judiciário, cometido por tribunais de outras ordens de jurisdição e as correspondentes acções de regresso»;

-a fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo presidente deste;

-a apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, que não conferem a qualidade de agente administrativo, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, matéria hoje enquadrada essencialmente pela Lei n.º23/2004, de 22 de Junho.

Quanto aos órgãos da jurisdição administrativa, sem prejuízo da criação de tribunais arbitrais (constituídos ad hoc, por juízes privados, por vontade das partes), os órgãos permanentes da jurisdição

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administrativa compulsória são o Supremo Tribunal Administrativo, os tribunais centrais administrativos e os tribunais administrativos de círculo (art.º8.º), que podem ser desdobrados em juízos, a funcionar na sua sede ou em local diferente dela, desde que dentro da respectiva área de jurisdição do respectivo TAC (art.º9.º).

O regime de organização destes tribunais conta normalmente com mais do que um grau de jurisdição em recurso restrito à matéria de direito (revista): duplo grau de jurisdição e em certas situações, mesmo três (artigo 150.º do CPTA e n.º2 do 24.º do ETAF), só em certos casos muito limitados conhecendo da tribunais matéria de direito (situações de privilégio subjectivo em que funcionam como 1.ª instância: artigos 24.º, 137.º, 44.º da CPTA).

Estes diferentes tribunais têm alçada (art.º6.º), de que depende quer a forma do processo e em princípio a admissibilidade de recursos jurisdicionais, que é definida por correspondência com a jurisdição judicial. Assim, a alçada dos tribunais administrativos de círculo corresponde àquela que se encontra estabelecida para os

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tribunais judiciais de 1.ª instância (n.º3), e a dos tribunais centrais administrativos e do Supremo Tribunal Administrativo, nos processos em que exerçam competências de 1.ª instância, corresponde, para cada uma das suas secções, respectivamente à dos tribunais administrativos de círculo (n.º5); enquanto a dos tribunais centrais administrativos, norte e sul, corresponde à que se encontra estabelecida para os tribunais da Relação (n.º4).

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IV - ESTATUTO DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS E ACTIVIDADE ADMINISTRATIVA DO PODER JUDICIAL

Sumário de matérias: Introdução.-1.A governação nomocrática.-2.O auto-governo dos tribunais.-3.O poder regulamentar do Conselho Superior da Magistratura.-4.O estatuto dos juízes. -5.O regime das impugnações das decisões do Conselho Superior da Magistratura.

4.1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

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A aplicação do direito administrativo e a atribuição à organização judicial de poderes materialmente iguais aos existentes na Administração Pública do Estado277 merecerá, nesta breve análise, acompanhada de uma explanação em geral do regime estatutário dos juízes, o seu enquadramento normativo. Esta prelecção trata, pois, do estatuto dos magistrados judiciais e da actividade administrativa na organização judicial portuguesa.

Efectivaremos o desenvolvimento da exposição de modo a ir tocando os pontos essenciais da matéria, a saber:

a)-A nomocraticidade do governo da organização judicial;

b)-As várias formas de exercício de poderes de natureza administrativa, ínsitos às exigências instrumentais da realização da função de soberania específica de realização da Justiça, que lhes compete;

277 Estado em sentido amplo, enquanto conjunto de organizações territoriais e outras «dependentes» (ou não) destas; isto é, a Administração estadual e outras entidades que, pelo fenómeno da descentralização, também participam da realização da Função Administrativa do Estado – Comunidade. Todo as dotadas de poderes de actuação caracterizados pelo exercício de autoridade definidora em concreto ou normativamente das situações em relação.

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c)-As diferentes áreas em que esse poder se exerce, densificando um verdadeiro sistema de auto-governo da magistratura278;

d)-O enquadramento da reacção dos implicados perante regulamentos e decisões que considerem ilegais, cometidos pelo referido órgão de auto-governo;

e)-A jurisdição competente; e, finalmente,

f)-As normas processuais aplicáveis para a apreciação dos seus recursos contenciosos.

4.2.A GOVERNAÇÃO NOMOCRÁTICA

278 Configurado, para evitar qualquer interferência de outros poderes, que possam pôr em causa a independência dos tribunais, passando para o efeito em revista o Estatuto dos juízes, a propósito do qual se justificou a atribuição de tais poderes ao órgão próprio, independente, de gestão dos Tribunais, o Conselho Superior da Magistratura.

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Começo por referir que o poder judicial, enquanto organização, está também, em «Estado de direito», sujeito ao princípio da legalidade, na sua actividade materialmente administrativa.

Com efeito, há que referir que, na gestão da coisa pública, vigora sempre um enquadramento nomocrático, por que ela é uma actuação assumida e enquadrada por lei.

É a lei que legitima qualquer actividade de poder público.

Ela é positivamente a base e a baliza deste poder de auto-administração.

Neste aspecto, hoje, a actividade de gestão dos interesses públicos difere da actividade de gestão dos particulares, na medida em que o agente privado é livre de agir, desde que não agrida o ordenamento jurídico, podendo actuar desde que a lei não o proíba, enquanto, em geral, a Administração e os Poderes ao serviço dos cidadãos só podem fazer o que a lei diz que deve fazer-se, dentro dos limites e das fronteiras traçadas pela lei (princípio da legalidade positiva).

Com efeito, a norma, hoje, não é 800

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apenas um limite à acção pública. Ela não só limita o actuar como

habilita a actuar.

Seria difícil saber onde estão, em cada momento, (isto é, quais são) as necessidades colectivas, pois a sua concretização depende mais da necessidade sentida, em cada época histórica, de satisfazer necessidades colectivas, do que da natureza intrínseca de um dado bem ou serviço, de um sector ou actividade prestadora279.

Por isso, cabe à lei dizer quando uma tarefa é assumida como tal e até onde pode ir a Administração Pública na efectivação do interesse colectivo que subjaz a essa definição material do campo de intervenção pública.

Neste aspecto, é a noção de Função Administrativa do Estado-Comunidade que identifica a organização administrativa ou a Administração em sentido orgânico e implica o direito administrativo relacional, colocado ao seu

279 Natureza que apenas pode ter carácter orientativo ou eurístico, de procura e análise problemática das necessidades e carências da população, por parte dos poderes definidores do interesse público.

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serviço280, mesmo que não exclusivamente.

O poder judicial integra uma função diferente, hoje autonomizada da Administração Pública, em face do princípio liberal da separação dos poderes

280 Mas então, tanto há actividades da Função Administrativa, designadamente de serviços públicos, desenvolvidas por entidades criadas ao abrigo do direito administrativo, como há serviços públicos a serem desenvolvidos por entidades criadas ao abrigo de normas de direito privado, com capitais e gestão nas mãos da Administração Pública ou nas mãos de particulares. Na concepção dominante, a esta actividade desenvolvida por particulares, materialmente integrada na função administrativa do Estado, não corresponderia um serviço organicamente administrativo, ou seja, um serviço público em termos de organização administrativa, um serviço administrativo.

No entanto, há que perguntar: como é possível que a teoria da «actividade material e organicamente administrativa (no caso da Administração Estadual, desenvolvida por entidades subordinadas ao governo, salvo as excepções assumidas como tais, referentes às Entidades Administrativas Independentes) como critério de localização material de uma Função Administrativa do Estado em face de actividades também materialmente administrativas do Parlamento e dos Tribunais seja depois contrariada, por uma tese segundo a qual a actividade de uma entidade que prossegue essa actividade integrável na função administrativa, isto é, materialmente e organicamente administrativa já não é organicamente administrativa, por não se considerar essa entidade como sendo da organização administrativa. E se for de direito privado, com capitais e gestão pública, isto é, pertença e gestão de representante da Administração Pública, também não seria organicamente administrativa, mesmo que desempenhe uma tarefa da função administrativa do Estado.

Só porque constituídas ao abrigo do direito privado, dada a irrelevância da propriedade dos capitais e da gerência, o que traduz uma transformação ao nível do «processual» ou instrumental, e portanto sem dignidade ôntica (de elemento definitório, elemento essencial das coisas).

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do Estado, constituindo um Poder de soberania independente daquela.

No caso da actividade administrativa desenvolvida pelos órgãos de governo da Magistratura, é a

Por isso, uma pessoa colectiva de direito público, sem desempenhar nenhuma tarefa da Função Administrativa, não desenvolvendo um serviço público, como acontece com v.g. uma empresa pública de cervejas, em concorrência com muitas outras privadas desempenhando exactamente o mesmo papel produtor na sociedade, tem sido considerada integrada organicamente na Administração Pública. Esta construção parece errada. Não se toma em consideração a distinção entre organizações realizando um serviço público sob uma opção de forma empresarial e uma empresa existente apenas com base numa simples justificação de interesse público, justificação constitucional suficiente par a iniciativa económica pública (vg. interesse social de manutenção de postos de trabalho, que não pode ter o condão de transformar a natureza das coisas, dando à actividade anterior, exactamente a mesma do período da propriedade privada, a natureza de actividade da função administrativa).

Ora a Administração Pública, por vezes, tem, é proprietária de organizações de carácter económico, estruturadas por isso em empresas, criadas ao abrigo de direito público (pessoas colectivas públicas de regime jurídico misto) ou de direito privado (por vezes, com uma mobilidade de regime orgânico assente em puros critérios políticos, alheios ao Direito Administrativo).

Elas são empresas da Administração Pública, não são necessariamente Administração Pública, a menos que desempenhem em si um serviço público ou, em certo momento, contratem com Administração Pública a realização de tarefas públicas, como qualquer outra empresa de particulares o pode fazer (contratos de concessão de serviço público, obras públicas e bens do domínio público em empresas ou delegação de serviços públicos em entidades particulares sem fins lucrativos).

Mas, então, se nestas condições devem ser classificadas como entidades organicamente administrativas, também as pertencentes a particulares o devem ser, nas situações em que entidades particulares sejam de regime jurídico misto, ou sejam,

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identidade natural da actividade que leva o legislador a mandar aplicar o direito administrativo já criado para as entidades organicamente integradas no exercício da Função Administrativa, em vez de criar um direito próprio, por certo inspirado ou mesmo decalcado naquele, dada a comunhão de temas e problemas que o legislador teria de enquadrar.

Estamos perante uma actividade sujeita ao princípio da legalidade, em que se integram as normas de direito administrativo geral do Estado, sem prejuízo das regras orgânicas próprias da organização judicial previstas nos diplomas específicos.

são constituídas para realizarem fins públicos, sozinhas ou em concorrência com outras entidades da Administração Pública, aceitando submeter-se na sua actividade estatutária, pelo menos em parte, à aplicação do Direito Administrativo, ou contratem com uma dada pessoa colectiva pública a realização de serviço público, obra pública ou exploração de bem do domínio público, e por isso se lhe aplicando o Direito Administrativo.

Há, pois, entidades da Administração Pública que não são Administração Pública e entidades de particulares, umas e outras independentemente do direito ao abrigo do qual foram criadas, que o são, tal como há entidades da Administração Pública criadas ao abrigo do direito privadas (ou objecto de transformação em sociedades comerciais) que são Administração Pública. Na minha perspectiva, tudo depende da verificação ou não do critério da prossecução ou não da Função Administrativa do Estado por parte das mesmas.

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E que se passa com os actos que, pela sua natureza material, são teoricamente sujeitáveis, e de legislativamente sujeitos ao direito administrativo e, em correspondência com isso, deveriam ser sujeitos à jurisdição especializada na sua aplicação, a dos tribunais da jurisdição administrativa?

Sendo os actos de poderes públicos de natureza administrativa e de administrações ou poderes diferentes, são de duas categorias genéticas: os das organizações administrativas desempenhando a Função Administrativa e os das administrações de suporte à actividade do Parlamento e dos Tribunais281.

281 Digamos de passagem, embora o tema não tenha que ver directamente com o nosso estudo, que não há uma terceira categoria para arrumar o que está já arrumado na primeira: os das administrações de particulares que desempenhando a Função Administrativa, em virtude de contrato com uma Administração ou por reconhecimento público do interese da sua acção em termos de interesse colectivo (entidades particulares que assumam um regime jurídico misto).

Ora, não há três categorias de actos sujeitos à jurisdição administrativa: os (apenas) materialmente administrativos, das entidades que não realizam a função administrativa do Estado (AR e T), os materialmente administrativos das entidades que realizam a função administrativa do Estado (em sentido amplo) .... com excepção das do Estado mas constituídas ao abrigo do direito

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Desempenhando uma tarefa do Estado, desempenham actos materialmente estaduais, e dentre estes, os de natureza administrativa ou visam a satisfação de necessidades colectivas consideradas por lei de Administração Pública ou estão ao serviço das necessidades de outros poderes realizadores de necessidades e interesses cuja concretização não tem que ver com a Administração Pública282.

privado e os ... das entidades privadas que realizam a função administrativa do Estado... que: não seriam nem actos materialmente administrativos do Estado (porque os únicos que o seriam, são os praticados por uma entidade dependente de um orgão de soberania: Governo - ou outras entidades da Administração Pública autónomas ou independentes deste, criadas ao abrigo de direito público-, e os da administração do Parlamento ou dos Tribunais) nem seriam organicamente administrativos do Estado (porque não praticados por uma organização de direito público). Concepção formal que não responde à natureza das coisas.

282 Assim, os actos das entidades particulares integram-se na primeira categoria. Por outro lado, os actos das entidades públicas que não praticam actos materialmente administrativos não ligadas ao exercício directo do poder legislativo ou judicial, não praticam actos de Estado e por isso, mesmo sendo do Estado, não realizam uma função do Estado. Refiro-me às empresas de direito público ou privado, pertencentes às Administrações Públicas que pratiquem actos de direito civil ou comercial, sem qualquer ligação à realização de uma tarefa de serviço público; não desempenhando obviamente funções de nenhum dos poderes do Estado, também não as desempenham do poder administrativo; portanto não são organicamente administrativas, pois os seus actos são indiferentes à organização da Função Administrativa e ao Direito Administrativo.

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E quando a organização judicial actuar, na sua administração, ao abrigo do direito privado, e portanto não aplicando o direito administrativo, deve tal como as entidades da Administração Pública, respeitar sempre os princípios gerais de direito administrativo283, como manda o Código do Procedimento Administrativo, no seguimento da teoria do direito privado administrativo?

E quando uma entidade pratica actos ao abrigo do direito administrativo, aí temos a competência jurisdicional dos tribunais do contencioso administrativo ou nem sempre, como acontece no caso da organização judicial?

Realmente, essas entidades que aplicam, ou podem aplicar, aos seus actos o direito administrativo são, pela sua natureza, as que exercem a Função Administrativa do Estado,

283 Mesmo aos actos materialmente administrativos de entidades organicamente administrativas regulados pelo direito privado é aplicável a teoria do direito privado administrativo, ou melhor, administrativizado pelo respeito obrigatório dos princípios constitucionais e gerais de Direito Administrativo. Nos termos constitucionais que se referem à sua aplicação em geral pelas administrações públicas, sem distinguir a actuação em gestão pública ou privada e o nº5 do artigo 2º do Código do Procedimento Administrativo, que o concretiza.

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independentemente da sua fórmula jurídica de criação, e, por previsão legal expressa, dada a natureza de actos semelhantes, materialmente administrativos, as administrações que servem os outros órgãos de soberania, realizadores da função legislativa e da função jurisdicional, sujeitas também ao direito administrativo.

Mas nem todos estes actos estão sujeitos aos tribunais do contencioso administrativo, porque embora sejam estes que estão especializados na aplicação de tal direito, o princípio «tal direito, tal jurisdição» é, em Portugal, excepcionado na apreciação de actos materialmente administrativos ligados ao governo dos tribunais.

Estes últimos aplicam o direito administrativo em relação às actividades ligadas ao seu funcionamento administrativo, sem serem uma Administração Pública no sentido do direito administrativo, ou seja, sem exercerem a função administrativa do Estado, porque o legislador manda que assim seja, apenas pelo facto de o legislador considerar que estas são as normas mais ajustadas ao tipo

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de actos que praticam, e não por terem algo que ver com a Administração pública.

Diferentemente, as entidades da Administração pública os aplicam porque o direito administrativo existe para isso.

No entanto, nem sempre são obrigadas a aplicá-lo e, por isso, só estão sujeitas à especializada jurisdição administrativa na medida em que tal é necessário, ou seja, na medida em que o apliquem.

Mas isto não é assim quanto aos regulamentos e actos relativos à administração da organização judicial nem em geral quanto às Administrações instrumentais do Parlamento e dos Tribunais judiciais.

A Administração do poder judicial aplica o direito administrativo, mas não está sujeita à jurisdição dos tribunais administrativos, contrariamente ao que acontece com os actos de governo dos outros tribunais, alheios à magistratura judicial, que já são apreciados pelos tribunais do contencioso administrativo.

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2. O AUTO-GOVERNO DOS TRIBUNAIS

A matéria do regime jurídico da actividade materialmente administrativa desenvolvida no âmbito da organização judicial portuguesa encontra-se enquadrada não só pelo Estatuto dos Magistrados Judiciais284, como, em geral, por diplomas referente à actividade da Administração Pública.

Isto é, aplica-se-lhe naquilo que não esteja especialmente regido pelo Estauto e legislação judiciária, as normas referentes à Função Administrativa do Estado-Comunidade, que são aplicáveis, em geral, às Administrações estadual e outras territoriais, entidades de Administração indirecta, autónoma e independente destas, e mesmo às entidades particulares investidas no exercício desta Função285.

A característica essencial do Poder Judicial é a independência dos tribunais286.

284 Aprovado pela Lei nº21/85, de 30 de Julho (alterada pelas Leis nº2/90, de 20 de Janeiro e nº10/94 de 5 de Maio.

285 Aprovado pelo Decreto-Lei nº442/91, 15 de Novembro, alterado pelo Decreto-Lei nº6/96, de 31 de Janeiro.

286 Princípio com assento no artigo 216º da Constitucional da República Portuguesa.

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Trata-se de um princípio que estende a sua eficácia erga omnes, incluindo em face dos próprios órgãos jurisdicionais, o que implica que não pode haver correcção de decisões judiciais pelos próprios juízes, salvo se existir uma reclamação da decisão para o decisor ou um recurso, legalmente previsto287, para os tribunais superiores.

Destes, tal como também do próprio Conselho Superior da Magistratura288, não podem emanar ordens ou orientações de carácter geral em relação à aplicação ou interpretação das leis.

E a plenitude da independência da judicatura implica a obrigação imposta aos poderes públicos em geral e aos cidadãos de respeitarem essa independência.

É a subtracção absoluta do estatuto jurídico dos juízes a qualquer interferência por parte dos outros poderes do Estado, conseguida e concretizada na imobilidade289 e auto-regulação, que excluem a competência do Poder Executivo em relação

287 Nos termos legalmente enquadrados.288 É o órgão de autogoverno, a que faremos referência mais

abaixo.289 Artigo 216º da Constituição.

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à aplicação do estatuto orgânico dos magistrados judiciais, levando à consagração de um sistema de disciplina exclusivamente regulada por lei e por decisões administrativas, apenas adoptáveis pelo órgão de auto-governo já citado, o Conselho Superior da Magistratura, em termos vinculados ou em âmbito discricionário estatutariamente limitado.

Este órgão, criado na própria Constituição290, tem as funções gestoras fundamentais fixadas, desde logo, no artigo 217.º da Constituição.

Daqui resulta uma gama de poderes de natureza materialmente administrativos atribuída ao Conselho Superior da Magistratura.

Aqui, ficou consagrada a competência, nos termos da lei, para efectivar a «nomeação, a transferência e a promoção dos juízes dos tribunais judiciais e o exercício da acção disciplinar»291.

290 Artigo 218º da Constituição.291 Competindo esta matéria no que diz respeito aos

magistrados dos tribunais administrativo e fiscais a um Conselho próprio, cuja designação é, nos termos do nº2 e 3 do mesmo artigo, feita pelo legislador, que o apelidou de Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e, quanto aos outros tribunais, tudo - competências e regras sobre a colocação, transferência, promoção e acção disciplinar, tudo ficou para a lei, à qual, de qualquer modo, se impôs o respeito pelas garantias

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Com efeito, o órgão do governo dos tribunais tem poderes de natureza administrativa no âmbito da organização judicial, quais sejam o poder regulamentar e o poder de praticar actos administrativos (em autotutela declarativa e executória).

Estes poderes exercem-se em variados domínios e, desde logo, como vimos, e tendo presente os critérios do artigo 215.º da Constituição:

- nomeação dos juízes;- selecção e provisão de destinos;- promoções;- regulação das suas situações

administrativas;- poder de inspecção dos tribunais; - poder disciplinar em relação aos

magistrados, etc.

Quanto a poderes administrativos em relação aos funcionários judiciais, eles pertencem ao Ministério da Justiça, através da Direcção-Geral dos Serviços Judiciários.

A realização de contratos, administrativos ou de direito privado292, previstas na Constituição.

292 Em gestão privada da coisa pública, que o direito português admite como princípio, quando a lei não impuser a

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para a realização de fins da organização judicial, sejam empreitadas de obras públicas ou contratos de fornecimento, são levados a cabo também através do governo, competindo a sua efectivação ao Ministério da Justiça.

Quanto à titularidade dos bens ao serviço da organização judicial, edifícios, equipamentos, etc., estão também afectados à Direcção-Geral do Património do Estado, na dependência do Ministro das Finanças.

Os magistrados judiciais são governados por um órgão próprio, como dissemos, não governamental, que bebe a sua legitimidade, além da constitucional, como os próprios juízes, na designação em parte (no maior número dos seus membros) pelos órgãos de soberania do Estado directamente eleitos, isto é, pelo legislativo e pelo Presidente da República.

Este «órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial»293, é, para os Tribunais judiciais, o Conselho aplicação do direito administrativo, embora com a aplicação da «teoria do direito privado administrativizado, pela aplicação dos princípios constitucionais e gerais de direito público, nos termos hoje expressos do nº 5 do artigo 2º do C.P.A.

293 Como se lhe refere o artigo 136º do Estatuto da Magistratura Judicial.

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Superior da Magistratura.

No que se reporta à composição deste Conselho Superior da Magistratura294, ele tem 17 membros.

É presidido pelo Presidente do Supremo tribunal de Justiça, e conta com mais 16 membros:

- sete juízes eleitos pelos seus pares;- sete personalidades eleitas pelo

Parlamento, e - duas personalidades designadas pelo

Presidente da República.O cargo de vogal do Conselho

Superior da Magistratura não pode ser recusado por magistrados judiciais.

Quanto à eleição no seio da própria magistratura, os juízes eleitos pelos pares, são-no através de sufrágio secreto e universal295.

294 Definida nos termos do artigo 218º e nº1 do artigo 137º do Estatuto.

295 Segundo o princípio da representação proporcional e o método da média mais alta, com obediência às regras de conversão dos votos expressa no nº2 do artigo 139º do Estatuto, mediante a apresentação de listas elaboradas por organizações sindicais de magistrados judiciais, ou por um mínimo de vinte juízes eleitores. As listas incluem um suplente em relação a cada candidato efectivo, havendo em cada lista um juiz do Supremo Tribunal de Justiça, dois juízes da Relação e um juiz de direito de cada distrito judicial. Não pode haver candidatos por mais de uma lista. Na falta de candidaturas, a eleição realiza-se à base de listas

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E o colégio eleitoral é formado pelos magistrados judiciais em efectividade de serviço judicial, com base em recenseamento organizado oficiosamente pelo Conselho Superior da Magistratura.

A distribuição de lugares é feita segundo a ordem de conversão dos votos em mandatos pela seguinte forma: 1.° mandato: juiz do Supremo Tribunal de Justiça; 2.° mandato: juiz da Relação; 3.° mandato: juiz da Relação; 4.° mandato: juiz de direito proposto pelo distrito judicial de Lisboa; 5.° mandato: juiz de direito proposto pelo distrito judicial do Porto; 6.° mandato: juiz de direito proposto pelo distrito judicial de Coimbra; e 7.° mandato: juiz de direito proposto pelo distrito judicial de Évora.

Quanto às regras de apuramento, o processo leva a que comece por se apurar em separado o número de votos obtido por cada lista, que é dividido, sucessivamente, por 1, 2, 3, 4, 5, etc., sendo os quocientes, considerados com parte decimal, alinhados por ordem decrescente da sua grandeza numa série de tantos termos quantos os mandatos atribuídos ao órgão respectivo.

elaboradas pelo Conselho Superior da Magistratura.816

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Os mandatos pertencem às listas a que correspondem os termos da série, estabelecida pela regra referida, recebendo cada uma das listas tantos mandatos quantos os seus termos na série.

No caso de restar um ou mais mandatos para distribuir e de os termos seguintes da série serem iguais e de listas diferentes, o mandato ou os mandatos cabem à lista ou às listas que tiverem obtido um maior número de votos. Se mais de uma lista obtiver igual número de votos, não há lugar à atribuição de mandatos, devendo o acto eleitoral ser repetido.

A fiscalização da regularidade dos actos eleitorais e o apuramento final da votação competem a uma comissão de eleições. Constituem a comissão de eleições o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e os presidentes das relações.

Têm o direito de integrar a comissão de eleições um representante de cada lista concorrente ao acto eleitoral. As funções de presidente da comissão são exercidas pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

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As deliberações do órgão eleitoral são tomadas à pluralidade de votos, cabendo ao presidente o voto de qualidade.

Compete, especialmente, a comissão de eleições as seguintes tarefas:

- resolver as dúvidas suscitadas na interpretação das normas reguladoras do processo eleitoral; e

- decidir as reclamações que surjam no decurso das operações eleitorais.

Em termos de contencioso eleitoral, o recurso dos actos eleitorais é interposto, no prazo de quarenta e oito horas, para o Supremo Tribunal de Justiça e decidido nas quarenta e oito horas seguintes à sua admissão.

No que diz respeito às providências relativas ao processo eleitoral, o Conselho Superior da Magistratura deve adoptar aquelas que se mostrem necessárias à organização e boa execução do processo eleitoral.

Quanto ao momento da eleição, ela tem lugar dentro dos trinta dias anteriores a cessação dos cargos ou nos primeiros

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sessenta dias posteriores à ocorrência de vacatura.

E é anunciada com a antecedência mínima de quarenta e cinco dias, em relação à data da sua realização296.

No plano do exercício do cargo de vogal eleito pelos juízes, ele é exercido por um período de três anos, não imediatamente renovável297.

E sempre que, durante o exercício do cargo, um vogal eleito deixe de pertencer à categoria de origem ou fique impedido é chamado a substitui-lo o suplente. Na falta deste, o Conselho Superior da Magistratura declara a vacatura do lugar, procedendo-se a nova eleição298.

Quanto à eleição dos membros do Conselho Superior da Magistratura, a indicar pelo Parlamento, nos termos da Constituição, ela tem o seu processo estabelecido no Regimento da Assembleia da República299, que constitui direito

296 por aviso a publicar no Diário da República.297 Artigo 147º.298 Não obstante a cessação dos respectivos cargos, os vogais

mantêm-se no seu exercício até à entrada em funções dos que os venham substituir.

299 Diploma que é, nas suas grandes linhas, um texto da minha autoria, elaborado já no princípio desta década (na

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constitucional material.

Quanto ao regime de prestação de funções pelos seus membros, compete ao Conselho Superior da Magistratura determinar os casos em que o cargo de vogal deve ser exercido em tempo integral ou apenas com redução do serviço correspondente ao cargo de origem.

Quanto às tarefas do Conselho Superior da Magistratura, a ele compete300, em relação aos juízes:

a)- efectivar a sua nomeação e exoneração;

b)- proceder à sua colocação e transferência;

c)- apreciar o mérito profissional e efectivar a sua promoção;

d)- praticar actos referentes a licenças, faltas e férias;

e)- autorizar que os magistrados se ausentem do serviço;

f)- autorizar a residência em local fora da circunscrição judicial;

g)- em geral, praticar todos os actos

qualidade de membro e relator da Comissão de Reforma do Parlamento).

300 Nos termos do catálogo do artigo 149º e de outras normas do Estatuto dos Magistrados Judiciais.

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de idêntica natureza a estes, respeitantes aos magistrados judiciais, sem prejuízo das disposições relativas ao provimento de cargos por via electiva, em relação aos quais deve adoptar as providências necessárias à organização e à boa execução do respectivo processo eleitoral;

h)- ordenar inspecções, sindicâncias e inquéritos aos serviços judiciais, quanto àquelas à base do plano anual que ele elabora;

i)- exercer a acção disciplinar sobre os magistrados;

j)- alterar a distribuição de processos nos tribunais com mais de um juízo, a fim de assegurar a igualação e operacionalidade dos serviços; estabelecer prioridades no processamento de causas que se encontrem pendentes nos tribunais por período considerado excessivo, sem prejuizo dos restantes processos de carácter urgente e, ainda, propor ao Ministro da Justiça as medidas adequadas, por forma a não tornar excessivo o número de processos a cargo de cada magistrado; e

l)- fixar o número e a composição das secções do Supremo Tribunal de Justiça e dos tribunais da relação301.

301 Além disso, compete-lhe, ainda, aprovar o regulamento 821

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Hoje, ele já não tem poder para apreciar o mérito profissional e exercer a acção disciplinar sobre os funcionários de justiça, o que acontecia anteriormente, sem prejuízo da competência disciplinar atribuída a juízes302.

Quanto ao funcionamento do Conselho Superior da Magistratura, ele processa-se em Plenário e em Conselho Permanente. O Plenário é constituído por todos os membros do Conselho.

As suas reuniões têm lugar ordinariamente uma vez por mês e extraordinariamente sempre que sejam convocadas pelo presidente.

Em termos de quórum, as suas deliberações são tomadas à pluralidade dos votos, cabendo ao presidente voto de qualidade.

Para a validade das deliberações, interno e a proposta de orçamento relativos ao Conselho; emitir parecer sobre diplomas legais relativos a organização judiciária e ao Estatuto dos Magistrados Judiciais e em geral, sobre matérias relativas à administração da justiça; estudar e propor ao Ministro da Justiça as providências legislativas para aumentar a eficiência e aperfeiçoar as instituições judiciárias e exercer as outras funções conferidas por lei.

302 Esta, matéria pertence a um órgão próprio, presidido pelo Director-Geral dos Serviços Judiciários do Ministério da Justiça.

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exige-se a presença de, pelo menos, doze membros.

Nas reuniões em que se discuta ou delibere sobre o concurso de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça e designação dos respectivos juízes participam, com voto consultivo, o Procurador-Geral da República e o Bastonário da Ordem dos Advogados.

O Conselho Superior da Magistratura pode convocar para participarem nas reuniões, com voto consultivo, os presidentes das Relações que não façam parte do Conselho.

O Conselho Permanente é composto pelos seguintes membros:

-o presidente do Conselho Superior da Magistratura, que preside;

-o vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura;

-um juiz da Relação; -dois juizes de direito; -um dos vogais designados pelo

Presidente da República; e -dois vogais de entre os designados

pela Assembleia da República. A designação dos seus membros, com

excepção do presidente e vice-presidente do

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Conselho Superior da Magistratura, faz-se rotativamente por períodos de dezoito meses.

O Ministro da Justiça pode participar nas reuniões, para prestar esclarecimentos ou recolher aqueles que haja solicitado, mas apenas quando convidado para o efeito.

O Conselho Permanente reúne ordinariamente uma vez por mês e extraordinariamente sempre que convocado pelo presidente303.

Para a validade das suas deliberações exige-se a presença de, pelo menos, cinco membros. Aplica-se em geral ao funcionamento do Conselho Permanente o disposto na lei em relação ao Plenário.

Quanto à competência reservada dos vários órgãos do Conselho Superior da Magistratura, é da competência do seu Plenário304 o seguinte:

- a prática dos actos da competência do Conselho Superior da Magistratura respeitantes a juízes do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações ou referentes a

303 Artigo 157º.304 Nos termos do artigo 151º.

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estes tribunais; - a apreciação e decisão das

reclamações contra actos praticados pelo Conselho Permanente, pelo presidente ou pelo vice-presidente;

- a aprovação do regulamento interno;- a aprovação da proposta de

orçamento relativos ao Conselho; - a adopção das providências

necessárias à organização e à boa execução do processo eleitoral para o Conselho Superior da Magistratura;

- a emissão de parecer sobre diplomas legais relativos a organização judiciária e ao Estatuto dos Magistrados Judiciais e, em geral, sobre matérias relativas à administração da justiça;

- a proposição ao Ministro da Justiça das providências legislativas para aumentar a eficiência e aperfeiçoar as instituições judiciárias;

-a apreciação e decisão sobre outros assuntos da competência do Conselho Superior da Magistratura, que sejam avocados, por sua iniciativa, por proposta do Conselho Permanente ou a requerimento fundamentado de qualquer dos seus membros.

- outras tarefas conferidas por outras

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leis

Quanto aos poderes do Conselho Superior da Magistratura relativos a juízes, alguns são passíveis de transferência de exercício, nos termos das regras sobre delegação de poderes, previstas no Código do Procedimento Administrativo, que sinteticamente se passam a expor.

A delegação de poderes traduz a aplicação do princípio da desconcentração administrativa, efectivando uma desconcentração derivada, isto é, não processada directamente por lei, mas por ela prevista e permitida, mediando a vontade do titular normal dos poderes, cujo exercício é passível de transferência.

Não é uma desconcentração ope legis mas derivada de uma habilitação legal.

Em geral, podemos dizer que há desconcentração quando, numa pessoa colectiva ou ministério, neste caso da organização de governo do poder judicial, não há apenas um órgão a tomar as decisões realizadoras das respectivas atribuições, mas as diferentes tarefas a desempenhar são objecto de uma decomposição material,

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dando esta partilha origem a uma distribuição dos poderes funcionais, em princípio em linha vertical, entre vários escalões orgânicos e portanto da hierarquia administrativa.

Neste caso, não há propriamente esta divisão hierárquica entre as várias entidades integradas no Conselho Superior da Magistratura em que se opera os diferentes poderes atribuídos à instituição.

Em função da forma de concretização da afectação dos poderes, podemos dizer que a desconcentração é originária, que resulta da lei, ou é derivada, se resulta de delegação de poderes, isto é, de uma decisão concreta do titular legal dos poderes, em termos facultativos, mas legalmente enquadrada.

É o caso das tarefas a que nos reportamos. Vigora enquanto aquela composição do Conselho existir, extinguindo-se com a sua renovação ou a mudança de presidente (delegação) ou vice-presidente (subdelegação). Importante é a caracterização dos respectivos requisitos, que são os seguintes: só pode ocorrer nas matérias que indicamos; depende de

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deliberação expressa do Conselho Superior da Magistratura; o acto de delegação tem de especificar as matérias em concreto em que o delegado pode decidir; a deliberação está sujeita a publicação no Diário da República; o presidente ou o vice-presidente do Conselho, como delegado ou subdelegado, tem de mencionar, quando decida nessa matérias, que o faz na qualidade de delegado do Conselho Superior da Magistratura; a deliberação pode ser revogada a qualquer altura.

Os processos, em qualquer matéria, podem ser avocados, para deliberação individual pelo Conselho Superior da Magistratura.

O Conselho pode dar ao delegado e também este, por sua vez, o pode fazer ao subdelegado (sem prejuízo da sujeição sempre deste às emanadas do delegante), instruções ou emitir directivas sobre o modo de serem exercidos os poderes em causa305.

Nos termos do artigo 158.º, o Conselho Superior da Magistratura pode delegar no presidente, com faculdade de sub-delegação no vice-presidente, poderes

305 Artigos 35º a 40º do C.P.A.828

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para ordenar inspecções extraordinárias, instaurar inquéritos e sindicâncias, autorizar que magistrados ou funcionários se ausentem do serviço, conceder a autorização para residência em local diferente da circunscrição judicial, prorrogar o prazo para a posse e autorizar que esta seja tomada em lugar ou perante entidade judicial diferente, indicar magistrados e funcionários de justiça para participarem em grupos de trabalho, resolver outros assuntos, nomeadamente de carácter urgente.

E pode, ainda, o Conselho Superior da Magistratura delegar nos presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações a prática de actos próprios da sua competência, designadamente os relativos a licenças, faltas e férias, e, ainda, estabelecer prioridades no processamento de causas que se encontrem pendentes nos tribunais por período considerado excessivo, sem prejuízo dos restantes processos de carácter urgente.

O Conselho Superior da Magistratura pode convocar para participar nas reuniões, com voto consultivo, os presidentes das

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Relações, que não façam parte do Conselho.

No entanto, deve sempre convocá-los, desde que não estejam impedidos, quando se trate de tomar decisões sobre a graduação para acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.

E é da competência do Conselho Permanente306, o conjunto de actos que não integram a competência reservada do Plenário do Conselho Superior da Magistratura.

Ao Presidente do Conselho Superior da Magistratura compete307 exercer, além das funções fixadas em outras normas legais, ou que receba por delegação de poderes, nos termos já referidos, as que passam a indicar-se:

- dar posse ao vice-presidente, aos inspectores judiciais e ao secretário do Conselho Superior da Magistratura;

- dirigir e coordenar os serviços de inspecção;

- elaborar, mediante proposta do secretário, ordens de execução permanente.

306 Nos termos do artigo 152º,307 Conforme estabelece o artigo 153º.

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O vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura não tem funções originárias, a ele cabendo308, substituir o presidente nas suas faltas ou impedimentos e exercer as funções que Ihe forem delegadas.

Ao Secretário do Conselho Superior da Magistratura cabe309, promover a execução das deliberações do Conselho, propor ao presidente ordens de execução permanente e elaborar propostas do movimento judicial.

Os processos, que devam correr no Conselho Superior da Magistratura, são distribuídos por sorteio, nos termos do seu regulamento interno310.

O vogal, a quem o processo for distribuído, é o seu relator.

O relator requisita os documentos, processos e diligências que considere necessários, sendo aqueles requisitados pelo tempo indispensável, com ressalva do impropriamente designado «segredo de justiça»311.

308 Nos termos do artigo 154º.309 Entre outras tarefas previstas no artigo 155º.310 Artigo 159º.311 Isto é, do segredo administrativo endoprocedimental

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De qualquer modo, diferentemente do que se passa no acesso em geral aos processos findos, ou parados há mais de uma ano, aqui na fase pós-procedimental, a organização judicial está isenta desta obrigação de comunicação aos cidadãos dos dossiers por si detidos, por não lhe ser aplicável a legislação do open file vigente hoje na Administração Pública em geral, nos termos da Lei n.º 65/93, de 26 de Agosto312, regime que aparece justificado essencialmente pela necessidade de uma mudança coperniconiana na eficácia e transparência da Administração313.

Registe-se, no entanto, que em debate de parecer da Comissão de Acesso aos

conatural a esta fase de necessidade de intimidade da administração activa, mas a que se aplicam as regras de acesso pelo próprio e de cariz restritivo quanto a terceiros, que têm de ter um interesse legítimo no facto, referidas nos artigos 61º a 64º do C.P.A, por forma a não causar prezuízo às partes.

312 Baseada em projecto de lei da minha autoria, recentemente alterada nalguns aspectos pela Lei n.º94/99, de 16.7; esta alteração é baseada em texto da responsabilidade da C.A.D.A., embora com alterações significativas efectuadas à sua revelia e sem o seu parecer, em desrespeito flagrante do disposto na Lei do Acesso aos Documentos Administrativos.

313 No sentido da democratização administrativa, conforme referíamos em livro sobre a matéria, redigido em 1993, posteriormente publicado (Fernando Condesso, Direito à Informação Administrativa, Editor Pedro Ferreira, Lisboa, 1995, pág.583).

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Documentos Administrativos, já se geraram tentativas de estender a aplicação do princípio da transparência dos documentos administrativos a favor de quaisquer cidadãos, independentemente das entidades que os detenham, numa clara omniabrangência dos poderes públicos314, desde que desempenhem «poderes de autoridade», o que englobaria também as administrações instrumentais, quer do Legislativo, quer dos Tribunais.

Voltando, directamente, ao procedimento resolutório, no âmbito do Conselho Superior da Magistratura, no caso de o relator ficar vencido, a redacção da deliberação cabe ao vogal que for designado pelo presidente. Mas se a matéria for de manifesta sirnplicidade, o relator pode submetê-la à apreciação, com dispensa dos vistos.

A deliberação que adoptar os fundamentos e propostas, ou apenas os primeiros, do inspector judicial ou do instrutor do processo pode ser expressa por simples concordância, com dispensa de

314 Www.cada.pt. O que nem a «Freedom of Information Act» americana ousou fazer.)

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relatório.

Importantes na economia da organização do auto-governo do Conselho Superior da Magistratura são os serviços de inspecção, que nos termos do artigo 160.º funcionam junto do Conselho Superior da Magistratura e que são constituídos por inspectores judiciais e secretários de inspecção.

Os inspectores judiciais são nomeados, em comissão de serviço, de entre juízes da Relação ou, excepcionalmente, de entre juízes de direito com antiguidade não inferior a 15 anos e classificação de serviço de muito bom315.

O quadro de inspectores judiciais e secretários de inspecção é fixado em Portaria do Ministério da Justiça, sob proposta do Conselho Superior da Magistratura. Compete aos serviços de inspecção facultar ao Conselho Superior da Magistratura o conhecimento do estado, necessidades e deficiências dos serviços judiciais316, a fim de o habilitar a tomar as

315 Nº1 do artigo 162º.316 Artigo 161º.

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providências convenientes para o exercício das suas funções de governo da magistratura ou para propor ao Ministro da Justiça as medidas que dependam da intervenção do Governo. «Complementarmente», os serviços de inspecção destinam-se a colher informações sobre o serviço e o mérito dos magistrados.

Quando deva proceder-se a inspecção, inquérito ou processo disciplinar a juízes do Supremo Tribunal de Justiça ou das Relações, é designado um inspector extraordinário, que tem de ser juiz do Supremo Tribunal de Justiça.

3.O PODER REGULAMENTAR DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Em termos de poder regulamentar, o Conselho Superior da Magistratura pode ditar regulamentos, a aprovar pelo Pleno, por maioria dos membros presentes, desde que superior a doze, ou seja, dois terços dos titulares do órgão, dos seus membros, sobre o seu pessoal, organização e funcionamento

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no âmbito da legislação sobre a função pública e sobre o desenvolvimento do Estatuto dos Magistrados Judiciais, para estabelecer regulações de carácter secundário, acessórias para o exercício dos direitos e deveres que conformem o estatuto judicial, mas sem poder inovar no plano dos direitos e deveres ou alterar disposições estatutárias com assente na lei, estando o poder regulamentar sujeito ao princípio da legalidade.

Para a execução ou aplicação do Estatuto dos Magistrados Judiciais podem aprovar regulamentos quanto ao sistema de ingresso, promoção e especialização da carreira judicial, sobre a organização e funcionamento do Centro de Estudos Judiciários317, actividades de distribuição entre turnos e provimento de lugares de juízes, tempo mínimo da sua permanência no destino, situações administrativas dos juízes, ausência da circunscrição judicial, procedimento dos concursos regulamentados e forma de petição de provisão de lugares e de cargos de nomeação discricionária, regime de licenças

317 CEJ, que corresponde ao Centro de Selecção e Formação de Juízes, em Espanha.

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e autorizações, valoração do mérito, regime de incompatibilidades e tramitação de processo sobre questões do estatuto dos juízes, escalões judiciais, regime de substituições, funcionamento e faculdades dos órgãos de governo e eleições, nomeação e cessação de funções dos membros desses órgãos, inspecções e tramitação de queixas e denúncias, publicidade das actuações judiciais e constituição dos órgãos judiciais fora da sua sede, especialização dos órgãos judiciais, repartição de assuntos e relatórios, normas sobre prestação de serviços de permanência, forma de posse e cessação de funções dos órgãos judiciais.

Tudo visto, constata-se que, tal como acontece na organização judicial espanhola, há, em geral, uma tendência à concentração de competências no Pleno do Conselho Superior da Magistratura, que, além das propostas de nomeação de membros da organização judicial318, tem o poder regulamentar, a competência de decidir sobre os processos de reabilitação instruídos pela Comissão de Disciplina e o poder decisório derivado (apreciação das

318 E aqui não apenas dos tribunais superiores.837

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«reclamações»319 sobre as deliberações da Comissão Permanente, da Comissão Disciplinar e dos outros órgãos de governo dos Tribunais).

Quanto ao regime dos actos administrativos do Conselho Superior da Magistratura, importa referir que :

-os actos administrativos do Conselho, não regulados por norma especial, ficam sujeitos ao direito procedimental administrativo geral,

-as deliberações dos órgãos colegiais do Conselho, que têm sempre que ser motivadas, serão adoptadas por maioria dos membros presentes, na ausência de norma expressa, tendo o presidente voto de qualidade;

-a adopção destes actos, em forma escrita, só é válida quando as deliberações resultem de votações em reuniões precedidas de devida convocatória e efectivadas com existência de quorum exegível;

-estas deliberações gozam de executividade e executoriedade, podendo ser impugnadas em via administrativa,

319 Ou melhor, dado que não são dirigidos à Comissão, dos recursos administrativos.

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através de reclamação, para o pleno do Conselho Superior da Magistratura, quando tenha sido outro o órgão a decidir320;

-os actos válidos, no termos dos artigos 140.º ou inválidos, meramente anuláveis, nos termos do 141.º , ambos do CPA, podem ser revogados ou modificados, ou seja todos os actos a menos que sejam inexistentes ou nulos, salvo, neste último caso, os actos de nomeação e promoção nulos que, pelo decurso do tempo, adquiram, nos termos gerais de direito, efeitos putativos, que os tornem subsistentes321.

E, em último caso, há recurso jurisdicional para o Supremo Tribunal de Justiça322 e não para o Supremo Tribunal Administrativo323.

Isto é, a jurisdição do contencioso administrativo não aprecia os actos do poder judicial, como acontece em Espanha. Em Portugal, só os actos materialmente administrativos praticados no âmbito da

320 Artigo 165º e 166º do Estatuto dos Magistrados Judiciais.321 Nº3 do artigo 134º do C.P.A.322 Nº 1 do artigo 168º do Estatuto dos Magistrados Judiciais.323 Como aliás sempre resultaria a contrario sensu da alínea

c) do nº1 do artigo 26º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro.

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organização do Parlamento ou de jurisdições alheias ao judicial ficam sujeitos aos Tribunais administrativos, pois os actos administrativos originários do poder judicial, fugindo à regra da competência por especialização, em que hoje assenta a legitimidade da jurisdição administrativa em Portugal, constituída por tribunais previstos na Constituição, e considerados como órgãos de soberania em igualdade com os da jurisdição comum, e não já como órgãos domésticos da Administração para o julgamento das questões que a envolvem como acontecia no tempo da Administração-juiz.

Neste momento, a apreciação destas matérias pelo Supremo Tribunal de Justiça e não pelo Supremo Tribunal Administrativo é que constitui um privilégio dos membros da organização judicial, que são julgados pelos seus próprios membros, e neste sentido se julga corporativamente a si mesma, sendo certo que os tribunais do contencioso administrativo, que, em Portugal, também são órgãos de soberania, não estão integrados na organização judicial dos tribunais comuns, tendo uma organização autónoma e um conselho de autogoverno

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paralelo, à parte, o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Os regulamentos e os despachos de nomeação dos juízes são publicados no Diário da República, enquanto os actos administrativos são notificados aos seus destinatários e às entidades que lhes devem dar cumprimento.

Os actos são imediatamente executivos, salvo suspensão decretada em apreciação de recurso administrativo324 ou judicial325, sendo certo que, em Portugal, vigora a regra da não suspensão dos actos administrativos326.

4. O ESTATUTO DOS JUIZES

Mas vejamos, mais em pormenor, o modo como normativamente os direitos, deveres e poderes aparecem desenvolvidos no Estatuto.

Já dissemos que toda a estrutura 324 Artigos 163º e 170º do C.P.A.325 Atigo 76º da Lei de Processo dos Tribunais

Administrativos, aprovado pelo Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho).

326 Ferida de inconstitucionalidade tal como está redigida e é aplicada pela jurisprudência, em face do princípio da tutela judicial efectiva.

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normativizadora do estatuto dos juízes assenta no princípio axilar da sua independência, consagrado na Constituição.

Este princípio aparece transcrito no artigo 4.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, que reza assim: «os magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores».

O dever de obediência à lei compreende o de respeitar os juízos de valor legal, mesmo quando se trate de resolver hipóteses não especialmente previstas e o dever de non liquet.

Em consequência deste enquadramento, proclama-se o princípio da irresponsabilidade, com assento constitucional327, segundo o qual os magistrados judiciais não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, excepto nos casos especialmente previstos em lei, que os sujeite, em razão do exercício

327 Nº2 do artigo 216º.842

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das suas funções, a responsabilidade civil, criminal ou disciplinar328.

Quanto ao foro competente para o inquérito, a instrução e o julgamento dos magistrados judiciais por infracção penal, bem como para os recursos em matéria contra-ordenacional, é o tribunal de categoria imediatamente superior àquele em que se encontra colocado o magistrado, sendo para os juízes do Supremo Tribunal de Justiça quando neste último Tribunal.

E proclama-se também o princípio da inamovibilidade329, que impõe que os magistrados judiciais sejam nomeados vitaliciamente, não podendo ser transferidos, suspensos, promovidos, aposentados, demitidos ou, por qualquer forma, mudados de situação, senão nos casos previstos no seu Estatuto330.

Em contrapartida, aos juízes exige-se imparcialidade e como garantias de imparcialidade, veda-se-lhes o exercício de funções em tribunal ou juízo em que sirvam juízes de direito, magistrados do Ministério

328 Artigo 5º.329 Nº1 do artigo 216º.330 Artigo 6º.

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Público ou funcionários de justiça a que estejam ligados por casamento, parentesco ou afinidade em qualquer grau da linha recta ou até ao 3.º grau da linha colateral; servir em tribunais em que tenham desempenhado funções de Ministério Público nos últimos três anos ou que pertençam ao círculo judicial em que, em igual período, tenham tido escritório de advogado331.

Quanto a deveres, incompatibilidades e direitos, é aplicável aos magistrados judiciais, a título subsidiário, inexistindo normas próprias no estatuto, o regime da função pública332.

E, nesta matéria de deveres, incompatibilidades, direitos e regalias, importa referir o disposto no artigo 8.º, segundo o qual os magistrados judiciais têm domicílio necessário na sede do tribunal onde exercem funções, podendo, todavia, residir em qualquer ponto da circunscrição judicial, desde que não haja inconveniente para o cabal exercício da função.

331 Artigo 7º.332 Artigo 32º.

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Os juízes do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações estão dispensados da obrigação de domicílio, salvo determinação em contrário do Conselho Superior da Magistratura, por motivo de serviço.

Quando as circunstâncias o justifiquem e não haja prejuízo para o cabal exercício da função, os juízes de direito podem ser autorizados pelo Conselho Superior da Magistratura a residir fora da circunscrição judicial.

Em geral, os magistrados judiciais só podem ausentar-se da circunscrição judicial quando em exercício de funções, no gozo de licença, nas férias judiciais e em sábados, domingos e feriados.

No entanto, a ausência nas férias, sábados, domingos e feriados não pode prejudicar a realização de serviço urgente, podendo ser organizados turnos para o efeito333.

De qualquer modo, a interdição de ausência é flexibilizada, com a permissão de, quando ocorrer um motivo ponderoso, os

333 Artigo 9º.845

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magistrados judiciais poderem ausentar-se da sua circunscrição, desde que tal se verifique apenas num número de dias que não exceda três em cada mês e dez em cada ano.

O magistrado deve comunicar previamente o facto ao Conselho Superior da Magistratura ou, não sendo possível, imediatamente após o seu regresso. E não sendo contadas como faltas as ausências em dias úteis fora das horas de funcionamento normal da secretaria, quando não impliquem falta a qualquer acto de serviço nem perturbação deste.

Além disso, são equiparadas às ausências por razões ponderosas, até ao limite de quatro por mês, as que ocorram em virtude do exercício de funções de direcção em organizações sindicais da magistratura judicial.

Em caso de ausência, nos termos atrás referidos, os magistrados judiciais devem informar o local em que podem ser encontrados.

A ausência ilegítima implica responsabilidade disciplinar.

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No entanto, pode haver dispensa de serviço. Com efeito, o novo artigo 10.º A diz que, não existindo inconveniente para o serviço, aos magistrados judiciais podem ser concedidas pelo Conselho Superior da Magistratura dispensas de serviço para participação em congressos, simpósios, cursos, seminários ou outras realizações, que tenham lugar no País ou no estrangeiro, conexas com a sua actividade profissional.

E é, ainda, aplicável aos magistrados judiciais, com as devidas adaptações, o disposto para a função pública no Decreto-Lei n.º272/88, de 3 de Agosto, quando se proponham realizar programas de trabalho e estudo, bem como frequentar cursos ou estágios de reconhecido interesse público, o que é objecto de despacho do Ministro da Justiça, sob proposta do Conselho Superior da Magistratura, no qual é fixada a respectiva duração, condições e termos.

O abandono do lugar está expressamente enquadrado no artigo 125.º do Estatuto, levando à abertura de «auto por abandono» o facto de um magistrado deixar de comparecer ao serviço durante dez dias, manifestando expressamente a intenção de abandonar o lugar, ou faltar

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injustificadamente durante trinta dias úteis seguidos.

Nos termos do artigo 126.º, a intenção de abandono presume-se quando há ausência injustificada do lugar durante trinta dias úteis seguidos. E esta presunção só pode ser elidida em processo disciplinar, embora com admissibilidade de recurso a qualquer meio de prova.

Os magistrados estão interditados de exercer qualquer actividade política, sendo vedado aos magistrados judiciais em exercício a prática de actividades político-partidárias de carácter público.

Os magistrados judiciais na efectividade não podem ocupar cargos políticos, excepto o de Presidente da Republica e de membro do Governo ou do Conselho de Estado334.

E estão sujeitos ao dever de sigilo, pelo que não podem fazer quaisquer declarações relativas a processos, nem revelar opiniões emitidas durante as conferências nos tribunais que não constem de decisões, actas ou documentos oficiais de carácter não confidencial ou que versem

334 Artigo 11º.848

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assuntos de natureza reservada (artigo 12.º ).

No que diz respeito às incompatibilidades, dispõe o artigo 13.º que os magistrados judiciais em exercício não podem desempenhar qualquer outra função pública ou privada de natureza profissional, salvo em termos condicionados as funções docentes ou de investigação científica de natureza jurídica, não remuneradas, e ainda funções directivas em organizações sindicais da magistratura judicial.

Com efeito, o exercício de funções docentes ou de investigação científica de natureza jurídica carece de autorização, que só pode ser concedida se não envolver prejuízo para o serviço.

Em ordem ao exercício dos direitos especiais de que gozam, têm direito, nos termos do n.º3 do artigo 17.º, ao uso de um cartão de identificação (a ser renovado no caso de mudança de categoria, e de onde devem constar, nomeadamente, a categoria do magistrado e os direitos e regalias inerentes), que é atribuído pelo Conselho Superior da Magistratura.

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Nos termos do artigo 28.º, os juízes gozam as suas férias, em princípio durante o período de férias judiciais, devendo a ausência para tal efeito e o local para onde se desloquem, ser comunicados ao Conselho Superior da Magistratura, que pode determinar o regresso às funções, sem prejuízo do gozo anual de um período de 22 dias úteis de férias.

No domínio das classificações335, os juízes de direito são classificados, de acordo com o seu mérito, devendo a classificação atender ao modo como os juízes de direito desempenham a função, ao volume e dificuldades do serviço a seu cargo, às condições do trabalho prestado, à sua preparação técnica, categoria intelectual, trabalhos jurídicos publicados e idoneidade cívica.

A classificação de medíocre implica a suspensão do exercício de funções do magistrado e a instauração de inquérito por inaptidão para esse exercício. Se, em processo disciplinar instaurado com base no inquérito, se concluir pela inaptidão do magistrado, mas pela possibilidade da sua permanência na função pública, pode, a

335 Artigo 33º.850

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requerimento do interessado, substituir-se as penas de aposentação compulsiva ou de demissão pela de exoneração.

Neste caso, o processo, acompanhado de parecer fundamentado, é enviado ao Ministério da Justiça para efeito de homologação e colocação do interessado em lugar adequado às suas aptidões.

A homologação do parecer pelo Ministro da Justiça habilita o interessado para o ingresso em lugar compatível dos serviços dependentes do Ministério.

Quanto à classificação daqueles que estão em comissão de serviço, começo por referir que esta comissão 336tem um enquadramento no Estatuto dos Magistrados Judiciais segundo o qual os magistrados judiciais em exercício não podem ser nomeados para comissões de serviço sem autorização do Conselho Superior da Magistratura, só podendo a autorização ser concedida relativamente a magistrados com, pelo menos, cinco anos de efectivo serviço.

E os juízes de direito, que se

336 Artigo 53º.851

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encontrem nesta situação em tribunais não judiciais, são classificados periodicamente nos mesmos termos dos que exercem funções em tribunais judiciais337.

Os que estejam em comissão de serviço sem ser em tribunais, são classificados se o Conselho Superior da Magistratura dispuser de elementos bastantes ou puder obter esses elementos, através das inspecções necessárias. Se não, considera-se actualizada a última classificação. Artigo 36.º.

No caso de falta de classificação não imputável ao magistrado, presume-se a de Bom, excepto se o magistrado requerer inspecção, caso em que será realizada obrigatoriamente.

Em termos de elementos a considerar nas classificações338, há que ter igualmente em conta o volume de serviço a cargo do magistrado, as condições de trabalho e, quanto aos magistrados com menos de cinco anos de exercício, a circunstância de o serviço inspeccionado ter sido prestado em lugar de acesso, acrescentando que o magistrado deve ser obrigatoriamente

337 Artigo 35º.338 Artigo 37º.

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ouvido sobre o relatório da inspecção e pode fornecer os elementos que entender convenientes.

Em termos de provimentos, em face do movimento judicial efectuado em Julho após publicitação das vagas previsíveis, os juizes que pretendam, por nomeação, transferência, promoção, termo de comissão ou regresso à efectividade, ser providos em qualquer cargo, devem enviar um requerimento ao Conselho Superior da Magistratura.

Além de deverem satisfazer em geral os requisitos estabelecidos na lei para a nomeação de funcionários do Estado, ficam sujeitos a disposições específicas do Estatuto dos Magistrados Judiciais.

No que diz respeito à primeira nomeação, o artigo 42.º impõe que tal se processe segundo a graduação obtida nos cursos e estágios de formação, que decorrem no CEJ.

No plano dos provimentos pelo Conselho Superior da Magistratura, tem uma grande importância a questão da

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fixação da antiguidade na carreira. A antiguidade dos magistrados na

categoria conta-se desde a data da publicação do provimento no Diário da República, devendo a publicação dos provimentos respeitar, na sua ordem, a graduação feita pelo Conselho Superior da Magistratura (artigo 72.º).

E as reclamações dos juizes que se considerem lesados pela graduação constante da lista de antiguidade é feita para o Conselho Superior da Magistratura no prazo de 60 dias após a sua publicação. o qual delibera no prazo de 30 dias depois de aos contra-interessados ser dado 15 dias para responderem. Isto sem prejuízo da possibilidade de o próprio Conselho Superior da Magistratura ordenar a todo o tempo a correcção oficiosa, quando verificar qualquer erro material na referida graduação339.

No que diz respeito à posse340, ela deve ser tomada pessoalmente e no lugar onde o magistrado judicial vai exercer funções.

339 Artigos 77º e 79º.340 Artigo 59º.

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Quando não se fixe prazo especial, o prazo para tomar posse é de trinta dias e começa a correr no dia imediato ao da publicação da nomeação no Diário da República. Em casos justificados, o Conselho Superior da Magistratura pode prorrogar o prazo para a posse e autorizar que ela se processe em local diverso do legalmente previsto.

Quanto à competência para conferir a posse, os magistrados judiciais tomam posse perante entidades judiciais341: perante o plenário do mesmo tribunal, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, em acto público342; perante o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, no caso dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça e dos presidentes das Relações; perante os presidentes das Relações, os juízes destas; perante o respectivo substituto, ou perante o presidente da Relação, na sede do distrito judicial, tratando-se de juízes em exercício de funções, no caso dos juízes de direito.

Diga-se, ainda, sobre a matéria das comissões de serviço, que os magistrados judiciais que sejam promovidos ou

341 Artigo 61º.342 Artigo 62º.

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nomeados enquanto em comissão ordinária de serviço, ingressam na nova categoria, independentemente de posse, a partir da publicação da respectiva nomeação343.

Em casos justificados, o Conselho Superior da Magistratura pode autorizar que a posse seja tomada perante outro magistrado judicial344.

Quanto à aposentação, cessação e suspensão de funções, também o Conselho Superior da Magistratura toma as decisões pertinentes345.

A aposentação voluntária depende de requerimento enviado ao Conselho Superior da Magistratura, que o remete à Administração da Caixa Geral de Aposentações. No caso de se tratar de aposentação por incapacidade, dispõe o artigo 65.º que são aposentados por incapacidade os magistrados judiciais que, por debilidade ou entorpecimento das faculdades físicas ou intelectuais, manifestados no exercício da função, não possam continuar nesta sem grave

343 Artigo 63º.344 Nº2 do artigo 61º, na versão da Lei 10/94 de 5 de Maio.345 Nos termos do artigo 64º.

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transtorno da justiça ou dos respectivos serviços.

Os magistrados que se encontrem nesta situação são notificados para, no prazo de trinta dias, requererem a aposentação ou produzirem, por escrito, as observações que tiverem por convenientes.

O Conselho Superior da Magistratura pode determinar a imediata suspensão do exercício de funções do magistrado cuja incapacidade especialmente a justifique.

Em termos de direitos e obrigações dos juízes jubilados, aos magistrados judiciais jubilados é aplicável o disposto no estatuto compatível com a situação346, mas o estatuto de jubilado pode ser retirado por via de procedimento disciplinar.

Em tudo o que não estiver regulado no Estatuto, aplica-se à aposentação de magistrados judiciais do regime estabelecido pata a função pública347.

Quanto à cessação e suspensão de funções, há que referir que os magistrados judiciais cessam funções, entre outras causas, no dia em que for publicado o

346 Nºs 1 e 3 do artigo 17º, nº 2 do artigo 23º e nº 2 do artigo 29º.

347 Regime supletivo e subsidiário consagrado no artigo 69º.857

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despacho da sua desligação de serviço348.

Quanto à suspensão de funções349, entre outras razões, no dia em que forem notificados do despacho de suspensão preventiva por motivo dc procedimento disciplinar ou por aplicação de pena que importe afastamento do serviço e no dia em que Ihes for notificada suspensão determinada pelo Conselho Superior da Magistratura, por incapacidade.

O Conselho Superior da Magistratura tem competência para fazer inquéritos e sindicâncias e instaurar processos disciplinares350. Podendo, ainda, o Conselho Superior da Magistratura deliberar que o processo em que o arguido tenha sido ouvido, se se apurar a existência de infracção, venha a constituir a parte instrutória do futuro processo disciplinar351.

348 Artigo 70 do Estatuto dos Magistrados Judiciais.349 Artigo 71º.350 Dispondo o artigo 132º quanto aos inquéritos e

sindicâncias, como é normal na organização administrativa, que os inquéritos têm por finalidade a averiguação de factos determinados, enquanto as sindicâncias têm lugar quando haja alguma notícia de factos que exijam uma averiguação geral acerca do funcionamento dos serviços, sendo-lhes aplicáveis as regras do processo disciplinar.

351 Nº1 do artigo 135º. Quanto ao procedimento disciplinar, são-lhe aplicáveis, nos termos do artigo 131º, subsidiariamente as

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E constitui uma infracção disciplinar o facto, ainda que meramente culposo, praticado por magistrado judicial com violação dos deveres profissionais e os actos ou omissões da sua vida pública ou que nela se repercutam, incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções.

Consagra-se a autonomia da jurisdição disciplinar352, referindo-se que o procedimento disciplinar é independente do procedimento criminal, de modo que, quando em processo disciplinar se apure a existência de infracção criminal, se deve dar imediato conhecimento disso ao Conselho Superior da Magistratura353.

O processo disciplinar conta com normas procedimentais específicas no Estatuto dos Magistrados Judiciais354.

normas do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, do Código Penal, bem como do Código de Processo Penal e diplomas complementares. O artigo 81º diz que os magistrados judiciais são disciplinarmente responsáveis quando cometam infracções disciplinares.

352 Artigo 83º.353 A exoneração ou a mudança de situação não impedem a

punição por infracções cometidas no exercício da função. Em caso de exoneração, o magistrado cumpre a pena se voltar à actividade.

354 Designadamente o artigo 110º, que estabelece que o processo disciplinar.

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É o único meio de efectivar a responsabilidade disciplinar dos juízes.

É sumário, sem formalidades especiais, salvo o respeito do direito de defesa procedimental, que exige a audiência prévia à decisão, aliás formalidade essencial hoje de qualquer procedimento administrativo, mesmo não sancionatório, no direito português, sob pena de nulidade insanável.

No que diz respeito à competência para a instauração do processo355, compete ao Conselho Superior da Magistratura a instauração de procedimento disciplinar contra os magistrados judiciais, devendo a instrução ser ultimada no prazo de trinta dias, que só pode ser excedido em caso justificado356.

Se o arguido estiver impossibilitado de elaborar a defesa, por motivo de ausência, doença, anomalia mental ou incapacidade física, o Conselho Superior da Magistratura deve nomear-lhe um lhe defensor oficiosamente357.

355 Artigo 111º.356 Pelo que o instrutor deve dar conhecimento ao Conselho

Superior da Magistratura e ao arguido da data em que iniciar a instrução do processo.

357 Nos termos do artigo 119º.860

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E quando o defensor for nomeado em data posterior à da notificação da acusação, reabre-se o prazo para a defesa com a sua notificação358.

Há nulidade insuprível359 do procedimento e da decisão não só na falta de audiência do arguido com possibilidade de defesa, mas também na omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade, que ainda possam utilmente realizar-se, enquanto as restantes nulidades e irregularidades se consideram sanadas se não forem arguidas na defesa ou, a ocorrerem posteriormente, no prazo de cinco dias contados da data do seu conhecimento.

O processo disciplinar é de natureza confidencial até decisão final360.

Quanto à revisão das decisões disciplinares que as decisões condenatórias proferidas em processo disciplinar podem ser revistas a todo o tempo, quando se verifiquem circunstâncias ou meios de prova

358 O prazo para apresentação da defesa é em geral marcado entre dez e vinte dias.

359 Nos termos do artigo 124º.360 Artigo 113º, nº 1; devendo depois ficar arquivado no

Conselho Superior da Magistratura.861

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susceptíveis de demonstrar a inexistência dos factos que determinaram a punição e que não puderam ser oportunamente utilizados pelo arguido361.

A revisão é requerida pelo interessado ao Conselho Superior da Magistratura362, que decide, no prazo de trinta dias, se se verificam os seus pressupostos legais, caso em que nomeia novo instrutor para o processo363.

361 Sem que a reapreciação possa, em nenhum aso, determinar o agravamento da pena: Artigo 127º~.

362 Artigo 128º.363 Nº2 do artigo 129º.

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5.O REGIME DAS IMPUGNAÇÕES DAS DECISÕES DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

Em termos de princípios gerais sobre reclamações e recursos, dispõe o artigo 164.º que pode reclamar ou recorrer quem tiver interesse directo, pessoal e legítimo na anulação da deliberação ou da decisão.

E, nos termos gerais do procedimento administrativo, não pode recorrer quem tiver aceitado, expressa ou tacitamente, a deliberação ou a decisão364. As pessoas a quem a procedência da reclamação ou do recurso possa directamente prejudicar têm de ser citadas como contra-interessados.

O procedimento administrativo derivado365 e o processo jurisdicional são regulados nos artigos 164.º a 178.º do Estatuto.

Das deliberações do Conselho Permanente do Conselho Superior da

364 Transcrito no nº2 do artigo 165º do Estatuto dos Magistrados Judiciais.

365 Designação que tenho utilizado para significar o procedimento de reapreciação de acto administrativo anterior, e que a doutrina portuguesa costuma designar como procedimento de segundo grau: Noções Fundamentais de Direito Administrativo, Fernando Condesso, Lições policopiadas, 2ºano de Direito, Universidade Moderna, Lisboa, 1993.

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Magistratura reclama-se para o plenário do Conselho. Das decisões do presidente ou do vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura reclama-se para o Plenário do Conselho.

Quanto aos prazos da reclamação, não havendo norma especial fixando um outro prazo, é de trinta dias.

Quanto ao prazo para a decisão da reclamação é de três meses366. Se a decisão não for proferida neste prazo, presume-se indeferida para efeito do «reclamante» poder interpor o recurso facultado pelo Estatuto, permitido pelo silêncio do Conselho, sem prejuízo de a não interposição ou admissão do recurso não dispensar o Conselho de proferir decisão expressa, da qual pode depois ser apresentado recurso jurisdicional nos termos normais do contencioso administrativo.

Quanto a recursos, dispõe o artigo 168.º que das deliberações do Conselho Superior da Magistratura se pode recorrer

366 Não se suspendendo durante as férias judiciais.864

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para o tribunal367. E constituem fundamentos do recurso

os mesmos fundamentos previstos na legislação processual contenciosa para os recursos a interpor dos actos do Governo.

Para efeitos da apreciação destes recursos, o Supremo Tribunal de Justiça funciona através de uma secção constituída pelo seu vice-presidente e quatro juizes, um de cada secção, anual e sucessivamente designados, tendo em conta a respectiva antiguidade. Os recursos são distribuídos pelos juízes da secção, cabendo ao presidente o exercício de voto de qualidade.

No que diz respeito ao prazo para a interposição do recurso, ele é de trinta, sessenta ou noventa dias, conforme o interessado preste serviço no continente, nas regiões autónomas ou no território de Macau.

Este prazo é contado desde a data da publicação da deliberação, quando seja obrigatória, do fim do prazo que o Conselho

367 Como já foi referido, o Supremo Tribunal de Justiça e não o Supremo Tribunal Administrativo, embora, nos termos do artigo 178º, sejam subsidiariamente aplicáveis as normas que regem os trâmites processuais dos recursos de contencioso administrativo, interpostos para o Supremo Tribunal Administrativo.

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tinha para apreciar a reclamação (quatro meses), quando não se tiver pronunciado, ou da notificação, conhecimento ou início da execução da deliberação, nos outros casos.

Se a decisão tiver sido proferida extemporaneamente, o interessado pode requerer ao Conselho Superior da Magistratura a notificação dessa deliberação que não tenha sido efectuada no prazo normal.

Quanto aos efeitos do recurso, ele tem em regra efeito meramente devolutivo.

Só têm efeito suspensivo quando é interposto de decisão, proferida em processo disciplinar, que aplique uma pena que não seja de aposentação compulsiva ou demissão.

Ou se da execução do acto puder resultar prejuízo irreparável ou de difícil reparação, desde que não se trate de sanção de suspensão preventiva do exercício de funções.

Este regime, como já dissemos também a propósito da «reclamação», é mais favorável do que o previsto para os cidadãos em geral para a suspensão dos

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actos administrativos impugnados368.

O recurso é interposto por meio de requerimento apresentado na secretaria do Conselho, e não no Supremo Tribunal de Justiça, devendo estar naturalmente assinado pelo recorrente ou pelo seu mandatário.

E é esta apresentação no Conselho Superior da Magistratura que fixa a data da interposição do recurso.

Quanto aos requisitos do requerimento, ele deve conter a identificação do acto recorrido, os fundamentos de facto ou de direito, a indicação e o pedido de citação dos contra-interessados, que possam ser directamente prejudicados pela procedência do recurso, com a menção das suas moradas, se forem conhecidas, e a formulação clara e precisa

368 Em que a regra, de duvidosa constitucionalidade, da não suspensão em geral dos actos contestados, consagrada antes no artigo 76.º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que dava especial e hegemónico relevo ao possível prejuízo para o interesse público dessa suspensão e que, embora quando novo enquadramento foi mantida no CPTA, entrado em vigor em 1 de jAneira de 2004. Em Estado de Direito, a não ser alterada a regra, como devia, e não podendo as compensações financeiras repor as situações ilegalmente alteradas, devia, no mínimo, avançar-se com uma solução geral, quer no procedimento impugnatório administrativo quer no contencioso, deste teor.

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do pedido.

O requerimento deve ser instruído com o Diário da República em que tiver sido publicado o acto recorrido ou, na falta de publicação, com documento comprovativo do referido acto e demais documentos probatórios.

Quando o recurso for interposto de actos de indeferimento tácito, o requerimento é instruído com cópia da pretensão e certidão comprovativa de a mesma não ter sido objecto de deliberação ou decisão.

Se, por motivo justificado, não tiver sido possível obter os documentos dentro do prazo legal, pode ser requerido prazo para a sua ulterior apresentação.

O requerimento do recurso deve ser acompanhado dos duplicados destinados à entidade recorrida e aos contra-interessados.

Após a distribuição devem ser sanadas as questões prévias relativas ao requerimento, pelo que os autos vão com

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vista ao Ministério Público, por cinco dias, e depois são logo conclusos ao relator, que pode convidar o recorrente a corrigir as suas deficiências.

Quando o relator entender que se verifica extemporaneidade, ilegitimidade das partes ou manifesta ilegalidade do recurso, apresentará uma exposição fundamentada embora breve, levando o processo à apreciação na primeira sessão, sem necessidade de vistos.

Se o recurso dever prosseguir, o relator ordena o envio de cópias ao Conselho Superior da Magistratura, a fim de responder no prazo de dez dias.

Com a resposta ou no prazo dela, o Conselho Superior da Magistratura remete o processo administrativo de onde consta a deliberação impugnada ao Supremo Tribunal de Justiça, o qual é devolvido após o julgamento do recurso.

Recebida a resposta do Conselho Superior da Magistratura ou decorrido o prazo a ela destinado, o relator ordena então a citação dos contra-interessados para

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responder no prazo já referido.Esta é processada através de carta

registada, com aviso de recepção.Os interessados ausentes em parte

incerta são citados editalmente. Juntas as respostas ou decorridos os

respectivos prazos, o relator ordena a vista do processo por vinte dias, primeiro ao recorrente e depois ao recorrido, para alegarem e, em seguida, ao Ministério Público, por igual prazo e para o mesmo fim. Findo o que, o processo fica pronto para o julgamento.

Com efeito, decorridos os prazos legais de alegações, o processo é concluso ao relator, que pode requisitar os documentos que considere necessários ou notificar as partes para os apresentarem.

E os autos correm em seguida, pelo prazo de quarenta e oito horas, os vistos de todos os juizes da secção, começando pelo imediato ao relator, sendo depois conclusos ao relator por oito dias.

No que diz respeito a custas, o recurso é isento de preparos e o regime de custas é o que vigora para os recursos interpostos

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pelos funcionários públicos para o Supremo Tribunal Administrativo.

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ÍNDICE

I-Introdução ao direito administrativo………………………… 9§1.Necessidades colectivas a satisfazer e Administração Pública. Origem dos vocábulos Administração Pública e Direito Administrativo. Fundamentos conceptuais……….. 9§2. História e a importância do ensino do direito administrativo… 39

§3.Fundamentos conceptuais e constitucionais da administração pública e do direito administrativo…………………………. 39§4. Funções e poderes do estado 61

§5. Administração pública e funções e poderes do estado……….

§6. Teoria dos actos políticos do governo

§7. Constituição e controlo das funções política, executiva, legislativa e jurisdicional

§8. Enquadramento constitucional da administração pública

§9. Ciência da administração, política administrativa e direito administrativo

§10. Segmentação e pluralização da administração pública

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§11. Funções, poderes do estado e o conceito de administração pública

§12. Actos das administrações instrumentais dos diferentes órgãos de soberania, os actos de entidades privadas no exercício de uma tarefa da função administrativa e a aplicação do direito adminstrativo

§13. Ramos do direito e o direito administrativo como ramo do direito público. macrodistinção entre direito público e direito privado

§14. Noção de direito administrativo

§15. Ciência do direito administrativo geral

§16. Ramos do direito administrativo e ramos ecléticos

§17. Importância condicionante do direito constitucional 17.1. Direito constitucional e o direito administrativo 17.1.1. Noção de direito constitucional 17.1.2. Relações entre o direito constitucional e o direito administrativo 17.1.3. Direito administrativo e a cadeira de direito político

§18. Direito judiciário e o direito processual. O processo contencioso administrativo

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18.1. Direito judiciário 18.2. Direito judiciário administrativo e o processo contencioso administrativo

§19. Direito penal e direito administrativo sancionatório 19.1. Direito penal 19.2. Direito das contra-ordenações sociais

§20. Características do direito administrativo 20.1. Sistematização da ciência do direito administrativo 20.2. Codificação do direito administrativo

§21. Crise e evolução do direito administrativo como repto permanente sobre a doutrina e o ensino 21.1. Evolução do direito administrativo ao longo de dois séculos 21.2. Evolução e crise permanente 21.3. Evolução para o direito privado administrativizado. Caso do emprego públicoII - NOMOGÉNESE DO DIREITO POSITIVO 208§22. Fontes e fundamentos internacionalistas e unionistas do direito administrativo: nomologia, pluralidade das fontes de criação do direito administrativo 22.1. Considerações gerais 22.2. Teoria geral das fontes de direito administrativo 22.2.1. Considerações prévias sobre as fontes do direito administrativo 22.2. 2.Teoria das fontes de direito em geral A)- Teoria clássica e neoclássica B)- Teoria geral adoptada e posição sobre a questão das fontes

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de direito administrativo, sua hierarquização e aplicação pela administração pública 22. 3.Fontes de direito administrativo

§23. Direito da União Europeia e suas fontes

§24. Hierarquia das normas jurídicas

§25. Fontes de direito e sua aplicação. Principio da supremacia das normas internacionais e unionistas. Princípios da legalidade e da constitucionalidade e Administração pública

III – sistemas de regime administartivo e regime judicial 313

IV-DIREITO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 363

V- PRINCIOPIOLOGIA§ .Principiologia……

§27. Sistemas de regime administrativo: pluralidade de direitos autónomos e pluralidade de jurisdições 27.1. Autonomia do direito e regime administrativo 27.2. Sistema de administração judiciária 27.3. Comparação dos sistemas modelares jurídicos europeus

VI – direito judicuiário e processual nos tribunais administrativos§28. Princípio da tutela judicial efectiva e direito processual nos tribunais administrativos 28.1.Considerações gerais 28.2.Princípio constitucional da tutela judicial

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efectiva e da interdição de indefesa28.3.Procedimento de suspensão jurisdicional de actos da administração §29. §29. Noções fundamentais sobre a justiça administrativa.Direito judiciário e processual administrativo

VII – O auto-governo dos tribunais administrativos§30. Estatuto dos magistrados judiciais

30.1.Introdução..........................................................

30.2.A governação nomocrática............................. 30.3.O auto-governo dos Tribunais.........................30.4.O poder regulamentar do Conselho Superior

da Magistratura……………………….30.5.O estatuto dos

juízes............................................ 30.6.O regime das impugnações das decisões do

Conselho Superior da Magistratura………..

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