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Departamento de Direito 1 O DIREITO AO MEIO AMBIENTE SADIO COMO UM DIREITO HUMANO: UMA ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DOS SISTEMAS REGIONAIS DE PROTEÇÃO DE DIREITOS HUMANOS Aluno: Luiza Athayde de Araujo Orientador: Danielle de Andrade Moreira Introdução Nas últimas décadas, o direito ao meio ambiente sadio[1] vem sendo consolidado na jurisprudência dos tribunais internacionais de direitos humanos como um direito fundamental que deve ser respeitado e garantido pelos Estados membros de tratados internacionais de direitos humanos. Neste sentido, os três sistemas regionais de direitos humanos atualmente existentes (Sistema europeu de proteção de direitos humanos, Sistema interamericano de proteção de direitos humanos, e sistema africano de proteção de direitos humanos) desenvolveram nos últimos anos – e, especialmente, na última década – valiosa jurisprudência sobre questões envolvendo o meio ambiente, seja este como um direito fundamental autônomo, seja como um direito sem o qual outros direitos humanos não podem ser garantidos. Com base neste paradigma, visamos com presente estudo apresentar o marco jurídico desenvolvido pelos tribunais regionais de direitos humanos sobre o direito ao meio ambiente sadio, assim como fazer uma análise crítica e comparativa entre a forma como os três sistemas vem alcançando a garantia deste direito. Em um primeiro momento, buscou-se estudar os fundamentos teóricos da conexão entre o direito ao meio ambiente sadio e os direitos humanos e a forma como alguns direitos fundamentais – em especial, os direitos à vida digna, à integridade pessoal, à saúde, e ao acesso à justiça – podem ser interpretados de forma abrangente para incluir o direito ao meio ambiente sadio. Em um segundo momento, foi realizada pesquisa da jurisprudência dos três sistema regionais de proteção de direitos humanos, com um foco especial nos órgãos jurisdicionais. No sistema europeu de proteção de direitos humanos a pesquisa se deu sobre a jurisprudência desenvolvida pela Corte Européia de Direitos Humanos. Por conta do número expressivo de julgados decididos pelo Tribunal Europeu, não se pretendeu fazer uma análise exaustiva de todos os casos envolvendo questões ambientais decididos pela Corte, mas sim o estudo de algumas importantes decisões exemplificativas da jurisprudência européia sobre o tema. No sistema interamericano de direitos humanos foram analisadas não apenas decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos como também relatórios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na medida de sua relevância para o tema e para demonstrar tendências futuras de avanços do sistema interamericano. Buscou-se fazer um estudo substancial das sentenças da Corte Interamericana que envolvem questões ambientais e apresentar a jurisprudência do sistema com casos exemplificativos. Finalmente, foi feito um estudo das medidas cautelares concedidas pela Comissão Interamericana sobre a usina de Belo Monte, por sua relevância para o contexto brasileiro. Com relação ao sistema africano de proteção dos direitos humanos foram apenas analisadas as decisões tomadas pela Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos,

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    O DIREITO AO MEIO AMBIENTE SADIO COMO UM DIREITO HUMANO:

    UMA ANLISE DA JURISPRUDNCIA DOS SISTEMAS REGIONAIS DE PROTEO DE DIREITOS HUMANOS

    Aluno: Luiza Athayde de Araujo Orientador: Danielle de Andrade Moreira

    Introduo Nas ltimas dcadas, o direito ao meio ambiente sadio[1] vem sendo consolidado na

    jurisprudncia dos tribunais internacionais de direitos humanos como um direito fundamental que deve ser respeitado e garantido pelos Estados membros de tratados internacionais de direitos humanos. Neste sentido, os trs sistemas regionais de direitos humanos atualmente existentes (Sistema europeu de proteo de direitos humanos, Sistema interamericano de proteo de direitos humanos, e sistema africano de proteo de direitos humanos) desenvolveram nos ltimos anos e, especialmente, na ltima dcada valiosa jurisprudncia sobre questes envolvendo o meio ambiente, seja este como um direito fundamental autnomo, seja como um direito sem o qual outros direitos humanos no podem ser garantidos. Com base neste paradigma, visamos com presente estudo apresentar o marco jurdico desenvolvido pelos tribunais regionais de direitos humanos sobre o direito ao meio ambiente sadio, assim como fazer uma anlise crtica e comparativa entre a forma como os trs sistemas vem alcanando a garantia deste direito.

    Em um primeiro momento, buscou-se estudar os fundamentos tericos da conexo entre o direito ao meio ambiente sadio e os direitos humanos e a forma como alguns direitos fundamentais em especial, os direitos vida digna, integridade pessoal, sade, e ao acesso justia podem ser interpretados de forma abrangente para incluir o direito ao meio ambiente sadio.

    Em um segundo momento, foi realizada pesquisa da jurisprudncia dos trs sistema regionais de proteo de direitos humanos, com um foco especial nos rgos jurisdicionais.

    No sistema europeu de proteo de direitos humanos a pesquisa se deu sobre a jurisprudncia desenvolvida pela Corte Europia de Direitos Humanos. Por conta do nmero expressivo de julgados decididos pelo Tribunal Europeu, no se pretendeu fazer uma anlise exaustiva de todos os casos envolvendo questes ambientais decididos pela Corte, mas sim o estudo de algumas importantes decises exemplificativas da jurisprudncia europia sobre o tema.

    No sistema interamericano de direitos humanos foram analisadas no apenas decises da Corte Interamericana de Direitos Humanos como tambm relatrios da Comisso Interamericana de Direitos Humanos, na medida de sua relevncia para o tema e para demonstrar tendncias futuras de avanos do sistema interamericano. Buscou-se fazer um estudo substancial das sentenas da Corte Interamericana que envolvem questes ambientais e apresentar a jurisprudncia do sistema com casos exemplificativos. Finalmente, foi feito um estudo das medidas cautelares concedidas pela Comisso Interamericana sobre a usina de Belo Monte, por sua relevncia para o contexto brasileiro.

    Com relao ao sistema africano de proteo dos direitos humanos foram apenas analisadas as decises tomadas pela Comisso Africana dos Direitos Humanos e dos Povos,

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    uma vez que o tardio estabelecimento da Corte Africana, em 2006, fez com que no houvesse qualquer jurisprudncia desenvolvida por esta Corte sobre o direito ao meio ambiente sadio. Ademais, pela pouca quantidade de decises emitidas pela prpria Comisso Africana, foi aprofundada pesquisa doutrinria especfica sobre o sistema africano, de modo a melhor entender suas principais crticas e avano logrados.

    Direito ao meio ambiente sadio e direitos humanos O direito ao meio ambiente sadio considerado um direito fundamental de terceira

    gerao, parte dos chamados direitos de solidariedade ou fraternidade. Estes direitos so considerados como direitos da coletividade, possuindo um carter difuso, e constituindo um direito-dever de todos. Aponta Tiago Fensterseifer que os direitos de terceira gerao acarretam em implicaes de escala global e universal, exigindo esforos e responsabilidades (...) em escala at mesmo mundial para a sua efetivao[2]. Neste sentido, os direitos difusos possuem uma natureza transindividual, com titularidade muitas vezes indefinida e indeterminvel, o que se revela especialmente no direito ao ambiente, reclamando novas tcnicas de garantia e proteo[3]. Sem embargo, importante ressaltar que o direito ao meio ambiente sadio tambm possui uma ntima relao com chamados direitos de primeira e de segunda gerao, como os direitos vida, sade e informao, conforme desenvolveremos adiante[4].

    A idia do meio ambiente como um direito humano foi pela primeira vez consagrada no Princpio 1 da Declarao de Estocolmo de 1972 da Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente Humano[5], o qual prev:

    O homem tem o direito fundamental liberdade, igualdade e ao desfrute de condies de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigao de proteger e melhorar o meio ambiente para as geraes presentes e futuras (...). Por sua importncia e pioneirismo, o Princpio 1 da Declarao de Estocolmo tido

    como um marco histrico-normativo inicial da proteo ambiental[6], que traz pela primeira vez a idia em todo de um direito fundamental ao ambiente, tomando a qualidade do ambiente como elemento essencial para uma vida humana com dignidade e bem-estar[7]. Conforme leciona Dinah Shelton, apesar da Declarao de Estocolmo no ter explicitamente consagrado o direito ao meio ambiente sadio como um direito fundamental, esta implicitamente ligou a proteo ao meio ambiente garantia de direitos civis, polticos e econmicos[8]. Neste sentido, Shelton argumenta que o enfoque dado pela Declarao de Estocolmo entende a proteo do meio ambiente como uma condio prvia para o desfrute de uma srie de direitos humanos que gozam de garantias internacionais. Consequentemente, a proteo do meio ambiente constitui um instrumento essencial que se encontra subsumido no esforo para garantir efetivamente o desfrute dos direitos humanos[9][10].

    com base na ideia de que o direito meio ambiente sadio uma pr-condio para o desfrute de outros direitos humanos que os tribunais regionais de direitos humanos (principalmente a Corte Europia de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos) ampliaram a definio de diversos direitos fundamentais como o direito vida, o direito integridade fsica, o direito sade, o direito vida familiar e privacidade para determinar que apenas possvel sua total garantia se os seres humanos tambm gozam de um direito ao meio ambiente sadio. Portanto, atravs de uma interpretao progressiva e pro homine do direito internacional, e com fundamento na indivisibilidade, interrelao, interconectividade, e interdependncia dos direitos humanos, os tribunais regionais vm superando a inexistncia uma normativa internacional que protege explicitamente o direito ao meio ambiente sadio.

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    Em 1993, Canado Trindade j apontava os paralelos e conexes existentes entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito ao meio ambiente. Em seu pioneiro livro Direitos Humanos e Meio Ambiente, o doutrinador identificou o incio do desenvolvimento de bases jurisprudenciais sobre o tema, que comeavam a ser desenvolvidas na poca pelas cortes internacionais de direitos humanos[11]. Nesta importante obra, Canado Trindade tambm analisou a relao do direito ao meio ambiente sadio com outros direitos fundamentais, ligando-o intrinsecamente ao direito a uma vida digna, ou, em suas palavras, ao direito de viver[12]. No livro, o autor constatou a mudana jurisprudencial que comeava a ocorrer em tribunais de direitos humanos, que ampliavam o conceito do direito vida, abarcando este no apenas o direito de uma pessoal de no ser privada de sua vida arbitrariamente, mas tambm como o direito de ter sua vida protegida e salvaguardada em um sentido amplo[13]. Ao comentar ambas as dimenses do direito vida, Canado Trindade afirma:

    Tomado em sua dimenso ampla e prpria, o direito fundamental vida compreende o direito de todo ser humano de no ser privado de sua vida (direito vida) e o direito de todo ser humano de dispor dos meios apropriados de subsistncia e de um padro de vida decente (preservao da vida, direito de viver). (...) O direito fundamental vida, assim propriamente entendido, fornece uma ilustrao eloqente da interrelao e indivisibilidade de todos os direitos humanos[14].

    Neste sentido, o doutrinador argumenta que, a partir da idia de um direito de viver, o direito ao meio ambiente sadio se configura como uma extenso do direito vida, criando uma conexo inerente entre estes:

    [O] direito a um meio ambiente sadio salvaguarda a prpria vida humana sob dois aspectos, a saber, a existncia fsica e sade dos seres humanos, e a dignidade desta existncia, a qualidade de vida que faz com que valha a pena viver. O direito ao meio ambiente, desse modo, compreende e amplia o direito sade e o direito a um padro de vida adequado ou suficiente (...)[15]. Dezessete anos depois da publicao da obra de Canado Trindade, Dinah Shelton ir

    constatar o significativo crescimento no direito internacional dos direitos humanos de casos envolvendo aspectos do direito ao meio ambiente sadio, afirmando que [n]as quatro dcadas que transcorreram desde que a Organizao das Naes Unidas convocou a primeira conferncia ambiental em Estocolmo, quase todos os organismos mundiais e regionais de direitos humanos analisaram os vnculos entre a degradao do meio ambiente e os direitos humanos protegidos por garantias internacionais[16][17]. Neste sentido, a doutrinadora aponta que, dentre os casos trazidos aos sistemas internacionais de proteo de direitos humanos, esto aqueles envolvendo o direito vida, assim como outros direitos fundamentais previstos em tratados internacionais[18].

    Ademais, Shelton argumenta que o direito ao meio ambiente sadio vem sendo analisado pelas cortes internacionais de direitos humanos tambm atravs de seu aspecto processual, ou instrumental[19]. Este enfoque processual tem como sua principal base normativa a Declarao do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), que, em seu Princpio 10, prev:

    A melhor maneira de tratar questes ambientais assegurar a participao, no nvel apropriado, de todos os cidados interessados. No nvel nacional, cada indivduo deve Ter acesso adequado a informaes relativas ao meio ambiente de que disponham autoridades pblicas, inclusive informaes sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar em processos de tomada de decises. Os Estados devem facilitar e estimular a conscientizao e a participao pblica, colocando a informao disposio de todos. Deve ser propiciado acesso

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    efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que diz respeito compensao e reparao de danos.

    Atravs desta perspectiva processual, os direitos ao acesso informao, participao pblica, e ao acesso efetivo justia so partes integrais do direito ao meio ambiente sadio, visto que, sem os primeiros, o ltimo no possui efetividade. dizer: os Estados devem garantir os direitos participao, informao, e justia a todas as pessoas sob sua jurisdio em questes ambientais. Conforme veremos adiante, em diversos casos nos ltimos anos envolvendo o direito ao meio ambiente sadio, Estados foram condenados por no garantir os aspectos processuais deste direito, como, por exemplo, o acesso a documentos sobre contratos ambientais entre empresas e Estados, ou a consulta prvia a grupos tradicionais afetados por atividades poluidoras. A partir das noes introdutrias expostas acima, podemos concluir que o direito ao meio ambiente sadio um direito difuso, e que se encontra intrinsecamente relacionado com diversos outros direitos humanos previstos em tratados internacionais, formando, inclusive, parte efetiva destes direitos, como o direito vida digna. Com base nestas noes tericas, passaremos a analisar de que maneira os sistemas regionais de proteo dos direitos humanos vem decidindo casos envolvendo o direito ao meio ambiente sadio em seus diversos aspectos. Finalmente, apontaremos importantes avanos alcanados e limitaes encontradas por tais rgos internacionais ao lidar com questes ambientais atravs da lente do direito internacional dos direitos humanos.

    O Sistema Europeu de Direitos Humanos Em 1950 foi aprovada a Conveno para a Proteo dos Direitos Humanos e

    Liberdades Fundamentais (doravante Conveno Europia ou CEDH) sob o mbito do Conselho da Europa, constituindo o primeiro tratado internacional de direitos humanos[20]. Adotada no mesmo perodo da criao da Organizao das Naes Unidas e da Declarao Universal de Direitos Humanos, a CEDH foi redigida como uma resposta s atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra mundial[21]. Neste sentido, o prembulo da Conveno Europia alude adoo do tratado como um primeiro passo para a possibilidade de garantir coletivamente a proteo de certos direitos previstos na Declarao Universal[22][23]. Neste sentido, o Sistema Europeu de Proteo de Direitos Humanos pioneiro em ser o primeiro sistema regional a criar um rgo jurisdicional capaz de responsabilizar Estados membros por violaes de direitos fundamentais ocorridas em seu territrio.

    Contrariamente aos sistemas interamericano e africano de direitos humanos (os quais sero analisados adiante), o sistema europeu conta apenas com um rgo de superviso da Conveno Europia: a Corte Europia de Direitos Humanos (doravante Corte EDH, Corte Europia ou Tribunal Europeu). Enquanto os outros dois sistemas regionais possuem, alm de suas respectivas cortes, uma comisso de direitos humanos, os Estados parte do sistema europeu optaram por abolir a comisso europia de direitos humanos de modo a garantir o acesso direto das vtimas Corte Europia[24]. A quantidade de casos atualmente sob anlise perante a Corte Europia expressiva, com mais 120.000 casos pendentes[25]. A Corte EDH composta de quarenta e sete juzes[26], e dividida em cmaras compostas de sete juzes[27]. Ademais, alguns casos podem ser referidos a uma cmara especial (Tribunal Pleno ou Grand Chamber, composto de dezessete juzes) quando estes levantam uma questo grave quanto interpretao ou aplicao da Conveno ou dos seus protocolos ou ainda se levantar uma questo grave de carter geral[28]. As decises da Corte Europia so obrigatrias para todos os Estados parte da CEDH[29].

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    A Conveno Europia prev um rol de quatorze direitos fundamentais, sendo todos de natureza civil e poltica. At o momento, apenas o Protocolo 1 Conveno Europia possui previses quanto a direitos de carter econmico, social e cultural[30], e, mesmo este, apenas diz respeito aos direito propriedade (artigo 1)[31] e instruo (artigo 2)[32]. Deste modo, a CEDH no inclui explicitamente o direito ao meio ambiente sadioo qual no ir ingressar no mbito do direito internacional at o incio dos anos 70, aps a realizao da Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente Humano, da qual resultou a Declarao de Estocolmo (1972). Ademais, nenhum dos Protocolos subseqentemente firmados por pases do Conselho da Europa os quais passaram a compor a base normativa do Sistema Europeu tratam da proteo ao meio ambiente pelos Estados europeus, ou mesmo da proteo de qualquer direito de carter difuso.

    Apesar do direito ao meio ambiente sadio no estar explicitamente protegido pela Conveno Europia, a Corte EDH vem analisando casos de violaes de direitos humanos causadas por danos ambientais no mbito de outros direitos previstos na CEDH. No presente estudo, foram analisadas onze decises da Corte EDH envolvendo aspectos do direito ao meio ambiente sadio[33] com base nos seguintes direitos previstos na Conveno Europia[34]: direito vida (artigo 2)[35]; direito a um processo equitativo (artigo 6)[36]; direito ao respeito pela vida privada e familiar (artigo 8)[37], direito liberdade de expresso (artigo 10)[38], e direito propriedade (artigo 1 do Protocolo 1)[39].

    Apesar do amplo rol de direitos citados acima, oito dos onze casos estudados foram decididos com base no direito ao respeito vida privada e familiar (artigo 8 da Conveno Europia)[40], a comear pelo primeiros casos decididos pela Corte EDH envolvendo poluio sonora e poluio do ar, e que iro desenvolver os fundamentos do sistema europeu com relao ao direito ao meio ambiente sadio[41]. De modo a exemplificar o tratamento dado pela Corte EDH a violaes envolvendo degradaes ambientais com base no artigo 8, passaremos agora a analisar o caso Lpez Ostra v. Espanha.

    O caso Lpez Ostra v. Espanha diz respeito degradao ambiental ocorrida na cidade de Lorca, onde uma usina de tratamento de resduos slidos, operando sem licena do Estado, provocou o vazamento de diversos gases, cheiros e contaminaes, aps um problema em suas operaes, afetando a vida da populao local[42]. Diante da falta de ao das autoridades estatais diante do problema, a Sra. Lpez Ostra recorreu Corte Europia argumentando que o cheiro, o barulho e os gases poluidores emitidos pela fbrica teriam afetado seu direito vida privada e familiar, assim como seu direito a no ser submetida a tratamento cruel e degradante (previsto no artigo 3 da Conveno Europia[43])[44].

    Ao iniciar suas consideraes sobre o artigo 8, a Corte EDH entendeu que naturalmente, severa poluio ambiental pode afetar o bem-estar de indivduos e prevenir que gozem de seus lares de tal maneira que afete adversamente sua vida privada e familiar, sem que, no entanto, coloque sua sade em srio perigo[45][46]. Neste sentido, a Corte Europia determinou que o caso deveria ser analisado a partir da obrigao do Estado de agir no caso concreto para garantir o direito privacidade e vida familiar. Para tal, o Tribunal desenvolve um teste de proporcionalidade, atravs do qual procura alcanar um equilbrio entre os interesses em conflito do indivduo e da comunidade como um todo, e de qualquer modo o Estado conta com uma certa margem de apreciao[47][48][49].

    A Corte EDH considerou que as autoridades estatais, embora no fossem diretamente responsveis pelo dano ambiental em questo, permitiram a construo da fbrica em seu territrio, assim como subsidiaram a construo das instalaes[50]. Ademais, a Corte entendeu que mesmo que as leis e regulamentos internos tivessem sido cumpridos pelo Estado, o que deve ser determinado se o Estado tomou todas as medidas necessrias para garantir o direito da vtima sua vida domstica e familiar[51]. Ao analisar os fatos do caso, o Tribunal Europeu concluiu que o Estado no havia reparado a Sra. Lpez Ostra pelos danos

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    causados durante os trs anos em que ela e sua famlia viveram na regio da fbrica, e que, no obstante a margem de apreciao outorgada ao Estado, este no conseguiu encontrar um equilbrio entre o bem-estar econmico da cidade e o respeito ao direito da vtima ao seu lar, sua vida privada e familiar[52].

    Quanto violao do direito a no ser submetido a tratamento cruel ou degradante a Corte entendeu que, no obstante a situao difcil vivida pela vtima e sua famlia, esta no era equiparvel a tratamento degradante no sentido do artigo 3 da Conveno Europia[53]. Finalmente, quanto s reparaes, a Corte outorgou Sra. Lpez Ostra, a ttulo de indenizao, 4.000.000 pesos espanhis[54].

    Sete outros casos envolvendo o direito vida familiar e privada foram analisados, todos contendo uma ponderao semelhante apresentada no caso Lpez Ostra[55]. Neste sentido, preciso atentar que, em cinco dos oito casos analisados, a Corte EDH deixou ao Estado uma ampla margem de apreciao para tratar de questes ambientais[56].A ponderao feita pelo Tribunal Europeu ao analisar casos que tratam do artigo 8 coloca, de um lado, o direito de um indivduo privacidade e vida familiar, e de viver esta vida em um meio ambiente sadio, e do outro lado o fim legtimo buscado pelo Estado: a salvaguarda da economia do pas. Sendo assim, apenas na medida em que a degradao ambiental causa um impacto significativo na vida privada ou familiar de uma pessoa, pode se considerar que h uma violao do artigo 8 da Conveno Europia.

    Deste modo, possvel concluir que a Corte EDH no inclui em suas decises uma perspectiva do direito ao meio ambiente sadio como direito difuso (um direito-dever de todos), mas sim como um direito individual da vtima, o qual colocado pela Corte EDH contra o direito do Estado de nutrir sua economia, criando portanto uma dicotomia falsa entre o direito ao meio ambiente sadio e o avano econmico. Esta perspectiva individualista bem exemplificada no caso Kyrtatos v. Grcia, no qual o Tribunal Europeu explicitou que a proteo outorgada ao meio ambiente pelo artigo 8 da CEDH apenas existe com relao ao impacto da degradao ambiental na vida de uma determinada pessoa. Nas palavras da Corte EDH:

    No entanto, a existncia de um efeito prejudicial na esfera privada ou familiar de uma pessoa o elemento crucial que deve estar presente ao determinar se, nas circunstncias de um caso, a poluio ambiental afetou adversamente os direitos protegidos pelo pargrafo 1 do artigo 8, e no apenas a degradao geral do meio ambiente. Nem o artigo 8 ou qualquer outro artigo da Conveno so especificamente designados para proteger o meio ambiente de forma geral; para tal, outros instrumentos internacionais e legislao domstica so mais pertinentes ao lidar com este aspecto especfico[57].[58] O Tribunal Europeu concluiu que as vtimas no haviam provado a ligao direta da

    degradao do meio ambiente no caso concreto com o seus direitos privacidade e vida privada, acrescentando que poderia ocorrer de forma diferente se, por exemplo, a degradao ambiental tivesse consistido na destruio de rea florestal nas proximidades da casa do autor, uma situao que teria afetado mais diretamente o bem-estar do autor. Para concluir, a Corte no pode aceitar que a interferncia com as condies da vida animal no pntano constitua um ataque vida privada ou familiar dos autores[59].[60]

    Em apenas um dos casos analisados a Corte Europia determina a violao do direito vida, garantido pelo artigo 2 da CEDH. O caso neryildiz v. Turquia diz respeito a uma exploso de metano ocorrida em um aterro sanitrio, a qual matou trinta e nove pessoas que haviam se assentado no local[61]. Ao analisar as obrigaes do Estado no caso concreto, o Tribunal Europeu leva em considerao diversas resolues e convenes adotadas no mbito do Conselho da Europa sobre desastres ambientais[62]. Atravs da interpretao destes documentos, a Corte EDH conclui que a manuteno de um local de depsito de resduos

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    slidos por autoridades pblicas uma atividade perigosa, e que a perda da vida de pessoas por conta desta atividade pode ser imputada s autoridades pblicas[63].

    Ao iniciar a aplicao do artigo 2 da Conveno Europia ao caso concreto, a Corte EDH entendeu que o direito vida no pode apenas ser violado de forma direta por agentes estatais, mas tambm indiretamente, atravs da obrigao do Estado de tomar as medidas necessrias para proteger a vida de todos sob sua jurisdio[64]. Esta obrigao deve ser analisada levando em considerao o contexto de cada caso, e possui uma nfase especial no caso de atividades industriais como a do caso concreto, que por sua prpria natureza constituem atividades de risco. Segundo a Corte Europia, de modo a cumprir com o dever de prevenir e proteger a vida, os Estados possuem a obrigao positiva de desenvolver um marco legal e administrativo para proteger efetivamente ameaas ao direito vida[65]. Sobre a aplicao deste dever estatal a atividades perigosas, a Corte EDH enfatizou:

    Esta obrigao indiscutivelmente se aplica no contexto particular de atividades perigosas, onde, alm disto, especial nfase deve ser colocada em normas direcionadas para as caractersticas especiais da atividade em questo, particularmente quanto ao nvel de potencial risco para vidas humanas. As normas devem regular o licenciamento, a instalao, a operao, segurana e superviso da atividade, e deve obrigar todos os interessados a tomar medidas prticas para garantir a proteo efetiva dos cidados cujas vidas possam estar em perigo pelos riscos inerentes[66].[67]

    O Tribunal Europeu acrescentou a especial nfase que deve ser dada em situaes como esta obrigao dos Estados de garantir o direito do pblico informao como parte de seu dever de garantir o direito vida[68]. Ademais, a Corte EDH determinou que os princpios desenvolvidos pelo tribunal em casos de violaes indiretas pelo Estado do direito vida devem tambm ser aplicados a casos envolvendo atividades perigosas. Neste sentido, os Estados possuem a obrigao de investigar e sancionar mortes ocorridas nestes tipos de acidentes, especialmente levando em considerao que atividades perigosas devem estar sob o monitoramento e responsabilidade de autoridades pblicas, as quais tem a obrigao de evitar os riscos inerentes a estas atividades[69].

    Ao analisar os fatos do caso concreto, a Corte EDH entendeu que as autoridades turcas conheciam ou tinham o dever de conhecer o risco real e imediato vida das pessoas que moravam no depsito de resduos slidos, e, logo, possuam a obrigao positiva de tomar todas as medidas preventivas necessrias e suficientes para proteger as vtimas, especialmente considerando que o Estado foi responsvel por criar o risco ao autorizar a atividade a se desenvolver naquela rea[70].

    Por outro lado, a Corte EDH enfatizou a ampla margem de apreciao que dada ao Estado em questes ambientais, e relembrou que no se deve colocar um nus impossvel ou desproporcional nas autoridades estatais. Sem embargo, o Tribunal concluiu que as autoridades estatais no tomaram as medidas necessrias mnimas no caso em apreo para evitar o risco fatal criado pelas condies do aterro sanitrio[71]. O Tribunal Europeu ainda determinou que o Estado no tomou quaisquer medidas para informar os habitantes da rea sobre os riscos de se estabelecer naquele local[72], e tampouco investigou os fatos e sancionou os responsveis. Finalmente, a Corte EDH concluiu pela violao do direito vida das trinta e nova pessoas mortas na exploso[73].

    No obstante a importncia da deciso da Corte EDH no caso neryildiz v. Turquia, visto acima, no podemos deixar de ressaltar que a viso do Tribunal Europeu quanto ao direito vida ainda nos parece limitada. No h que se negar que a Corte EDH avanou com o entendimento de que o Estado pode ser responsabilizado por mortes resultantes de acidentes ocorridos em atividades perigosas e danosas ao meio ambiente. Sem embargo, no foram encontradas nas decises europias consideraes sobre o direito a uma vida digna, dizer, o direito a viver uma vida com dignidade, e no apenas o direito a no ser

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    arbitrariamente privado de sua vida biolgica. Neste sentido, a Corte EDH perdeu uma importante oportunidade no caso em apreo para fazer consideraes com relao forma como aquelas trinta e nova pessoas estavam vivendo no aterro de resduos slidos, assim como as obrigaes estatais de garantir-las uma qualidade mnima de vida.

    Finalmente, importante ressaltar que no obstante o Tribunal Europeu ter mencionado o direito de acesso informao como parte das medidas necessrias que deveriam ter sido tomadas pelo Estado para garantir o direito vida no caso neryildiz, a Corte EDH no fez qualquer considerao quanto a uma possvel violao do direito liberdade de expresso (do qual o direito ao acesso informao faz parte). Por sua vez, no caso Guerra v. Itlia, o Tribunal Europeu decidiu contra as alegaes das vtimas de que o Estado possuiria uma obrigao de informar a populao local de uma rea na qual o meio ambiente estivesse em risco sobre as ameaas sofridas. Sendo assim, no obstante a Corte Europia ter entendido que o direito informao uma parte integral do direito liberdade de expresso, concluiu que este direito basicamente probe que um governo restrinja uma pessoa de receber informao que outros queiram ou estariam dispostos a prover a ela[74][75].

    Conseqentemente, o direito ao acesso informao no pode ser interpretado de modo a obrigar o Estado a coletar e disseminar informaes em casos envolvendo o direito ao meio ambiente[76]. Com base neste entendimento, o Tribunal Europeu concluiu que o artigo 10 da CEDH (direito liberdade de expresso) no era aplicvel ao caso concreto[77]. Deste modo, a Corte EDH deixou de se manifestar quanto a uma possvel violao de um dos aspectos processuais do direito ao meio ambiente sadio, previstos no Princpio 10 da Declarao do Rio de 1992: o direito a ter acesso adequado informao sobre o ambiente.

    Quatro casos analisados no presente estudo versam principalmente sobre violao do artigo 6 da CEDH, o qual prev o direito a um processo equitativo. O artigo 6 diz respeito a violaes dos direitos processuais de um indivduo, dizer: da falta de acesso justia, seja pelo devido processo legal no existir no mbito interno para fazer cumprir uma lei, seja pela falta de cumprimento pelo Estado de uma resoluo judicial. Neste sentido, o artigo 6 prev o direito a uma Corte, dizer: o direito de todos a reclamar seus direitos civis ante um tribunal, assim como o direito eficcia da respectiva deciso judicial[78]. A Corte Europia, interpretando de forma mais branda o termo direito civil, passou a se utilizar do artigo 6 para determinar a violao da Conveno quando os Estados no cumprem com sua prpria legislao ambiental, causando assim danos a indivduos. Nestes casos, a Corte possui maior elasticidade para determinar as obrigaes estatais, uma vez que a legislao nacional dos Estados j prev tais obrigaes, e, sendo assim, no h uma aplicao da teoria da margem de apreciao como no caso do artigo 8.

    Os casos estudados relacionados ao artigo 6 versam sobre disputas internas a respeito da regularidade de instalaes e manuteno de atividades poluidoras ou danosas ao meio ambiente, e, conseqentemente, s vtimas dos casos concretos. Neste sentido, a Corte Europia utilizada na prtica como uma quarta instncia na medida em que vtimas recorrem Corte para que o processo judicial interno seja efetivo, e que as decises sejam cumpridas. De modo a melhor ilustrar a aplicao deste direito ao caso concreto, passaremos agora a analisar o caso Taskin and others v. Turquia.

    O caso Taskin and others diz respeito concesso pelo Estado de licenas de operao a uma mineradora na regio de Bergama, Turquia[79]. As vtimas (residentes da regio) alegaram que sofreram os efeitos do dano ambiental gerado pela poluio sonora causada pelas operaes da empresa, especificamente pelo uso de explosivos e mquinas[80]. Ademais, as vtimas ajuizaram uma ao nas corte turcas contra a deciso pelo Ministrio do Meio Ambiente de emitir uma licena, com base nos riscos inerentes causados pelas operaes da mineradora com cianeto, que poderiam contaminar os lenis freticos e

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    destruir a fauna e a flora local, alm de trazer ameaas sade e segurana humana[81]. No obstante as vtimas terem obtido ordem judicial para que as licenas no fossem emitidas, esta no foi cumprida pelas autoridades estatais, e a mineradora seguiu operando[82].

    Antes de avaliar a violao concreta dos artigos da Conveno Europia em questo, a Corte EDH realizou um apanhado de toda a legislao turca sobre o direito ao meio ambiente sadio, assim como do marco normativo internacional existente sobre os aspectos processuais do direito ao meio ambiente. Neste sentido, a Corte citou o artigo 10 a Declarao do Rio de 1992, a Conveno de Aarhus (Conveno sobre o acesso informao, a participao do pblico no processo de tomada de deciso e acesso justia em matria de ambiente, adotada no mbito da Comisso Econmica das Naes Unidas para a Europa), assim como uma recomendao da Assemblia Parlamentar do Conselho da Europa sobre meio ambiente e direitos humanos[83].

    O Estado turco argumentou perante a Corte Europia que o artigo 6 no deveria ser aplicvel ao caso, vez que as alegaes das vtimas se baseavam apenas em um risco hipottico e no iminente, e, portanto, no versavam sobre seus direitos civis[84]. O Tribunal Europeu, no entanto, decidiu que o direito que as vtimas buscavam era a proteo de sua integridade fsica contra o risco criado pela atividade da mineradora, direito este que era reconhecido pela legislao turca atravs do direito a um meio ambiente sadio[85]. A Corte EDH ento concluiu que as autoridades locais falharam em no cumprir a ordem judicial em um tempo adequado, e, conseqentemente, violaram o artigo 6 da Conveno Europia[86].

    Ainda sobre o caso Taskin e outros, importante ressaltar que a Corte Europia, durante sua anlise da violao do artigo 8 da CEDH (direito vida privada e familiar), fez consideraes importantes quanto possibilidade de alegar uma violao da Conveno com base apenas no risco desta ocorrer. Com fundamento em diversos relatrios realizados a nvel nacional sobre os riscos causados pelas operaes mineradoras[87], o Tribunal Europeu determinou que o artigo 8 da Conveno aplicvel a situaes em que os efeitos perigosos de uma atividade aos quais os indivduos interessados possivelmente sero expostos foram determinados como parte de um processo de estudo de impacto ambiental de tal forma que se constatou uma conexo suficientemente prxima com a vida privada e familiar para os propsitos do artigo 8 da Conveno[88][89]. A Corte Europia acrescentou que este vis preventivo necessrio, vez que as obrigaes dos Estados em garantir o artigo 8 seriam inteis se este tambm no tivesse o dever de prevenir sua violao (par. 113). No obstante o Tribunal Europeu no ter expressamente invocado o princpio da preveno em sua anlise do caso concreto, a deciso demonstra um importante passo na proteo do direito ao meio ambiente sadio na medida que considera que o prprio risco do dano ambiental suficiente para que o artigo 8 da Conveno Europia seja violado.

    Finalmente, um ltimo ponto que deve ser mencionado diz respeito s reparaes. O Sistema europeu, contrariamente ao Sistema interamericano (como veremos adiante), no desenvolveu sua jurisprudncia de maneira a outorgar formas diferentes de reparaes que no o pagamento em pecnia. Neste sentido, por mais que o Tribunal Europeu entenda na fundamentao da sentena que determinada prtica estatal violou certo direito garantido na Conveno, nos pontos resolutivos da sentena a Corte EDH apenas ordena que seja paga indenizao em pecnia pelos danos materiais e morais[90]. Ademais, a indenizao, pelo carter individualista do Sistema Europeu, ir necessariamente diretamente para a vtima que acionou o sistema, e no para um fundo coletivo. Neste sentido, a sentena no garante que o Estado ir reparar o dano ambiental em si, mas apenas indenizar a vtima especfica do caso. Por sua vez, no caso Giacomelli v. Itlia, a Corte EDH negou a solicitao da vtima de que fosse ordenada a paralisao das atividades de uma empresa. O Tribunal Europeu baseou sua deciso no entendimento de que seus julgados tem natureza essencialmente declaratria, e,

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    em geral, primariamente o Estado interessado quem deve escolher (sujeito a superviso pelo Comit de Ministros) os meios a serem usados em seu ordenamento jurdico interno para cumprir suas obrigaes sob o artigo 46 da Conveno[91][92].

    Em concluso, o Sistema Europeu possui diversas limitaes, a principal delas sendo o seu carter individualista, o qual se mostra inadequado para lidar com a proteo de um direito difuso como o direito ao meio ambiente sadio. Apesar disto, o Sistema efetivo entre os pases europeus, e pode ser utilizado para aplicar a legislao ambiental nacional destes Estados, quando estas so desrespeitadas no mbito interno. Mesmo assim, pensamos ser necessrio que o Sistema Europeu busque na jurisprudncia de outros tribunais de direitos humanos maneiras diferentes de melhor garantir o direito ao meio ambiente sadio, mesmo que dentro de suas prprias limitaes.

    O Sistema Interamericano de Direitos Humanos O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) o sistema regional de

    proteo dos direitos humanos das Amricas, constitudo sob a gide da Organizao dos Estados Americanos (OEA). O Sistema Interamericano tem como principais bases legais a Conveno Americana sobre Direitos Humanos (de 1959, doravante CADH ou Conveno Americana), assim como a Declarao Americana dos Direitos e Deveres do Homem (de 1948, doravante DADDH ou Declarao Americana). Ademais, o Sistema Interamericano conta com outros tratados de direitos humanos regionais adotados sob os auspcios da OEA que formam o seu marco legal, como o Protocolo Conveno Americana Referente Abolio da Pena de Morte, o Protocolo Adicional Conveno Americana sobre Direitos Humanos em Matria de Direitos Econmicos, Sociais, e Culturais (Protocolo de San Salvador), a Conveno Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, a Conveno Interamericana sobre o Desaparecimento Forado de Pessoas, a Conveno Interamericana para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violncia Contra a Mulher (Conveno Belm do Par) e a Conveno Interamericana para a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra as Pessoas Portadoras de Deficincia.

    Os principais rgos que formam o Sistema Interamericano so a Comisso Interamericana de Direitos Humanos (doravante CIDH ou Comisso Interamericana) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante Corte IDH, Corte Interamericana, ou Tribunal Interamericano). A Conveno Americana outorga CIDH a funo prioritria de promover a observncia e a defesa dos direitos humanos nos Estados-membros da OEA, e lista, dentre suas atribuies, o preparo de estudos e relatrios o poder de solicitar informaes dos Estados, assim como o dever de atuar no sistema litigioso de casos e peties individuais no mbito da Conveno Americana[93]. Ademais, o Estatuto da Comisso Interamericana, assim como seu Regulamento, determinam em maiores detalhes suas funes[94]. Por sua vez, a Corte Interamericana de Direitos Humanos o rgo judicial do sistema interamericano, e tem como funo principal o julgamento de casos contenciosos trazidos perante o Tribunal Interamericano.

    O sistema de casos individuais no mbito do SIDH est regulado pela Conveno Americana. Os casos podem ser apresentados por qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade no-governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados membros da Organizao[95], e so inicialmente conhecidos pela Comisso Interamericana. A CIDH analisa os requisitos de admissibilidade da petio, assim como o mrito, emite sua deciso final sobre o caso em um relatrio, e faz recomendaes[96]. Caso a CIDH considere que um Estado violou direitos humanos e aps trs meses da deciso a Comisso entender que o Estado no est cumprindo com suas recomendaes, esta poder remeter o caso Corte IDH. O processo litigioso ante a Corte Interamericana tem carter estritamente judicial, e as sentenas emitidas pela Corte so obrigatrias, definitivas, e inapelveis[97]. importante

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    ressaltar que, contrariamente ao que ocorre no Sistema Europeu, a Corte IDH no est autorizada pela Conveno Americana a julgar um caso apresentado diretamente por uma vtima ou seu representante antes que este caso tenha sido analisado pela CIDH. As decises tomadas pela CIDH, embora tenham um carter quase-judicial, tambm constituem obrigaes que devem ser cumpridas pelos Estados sob a Conveno Americana, bom base no princpio da pacta sunt servanda[98].

    No mbito do Sistema Interamericano, o direito ao meio ambiente sadio expressamente previsto no artigo 11 do Protocolo Adicional Conveno Americana sobre Direitos Humanos em Matria de Direitos Econmicos, Sociais, e Culturais (Protocolo de San Salvador), nos seguintes termos:

    Direito a um meio ambiente sadio: 1. Toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente sadio e a contar com os servios pblicos bsicos. 2. Os Estados Partes promovero a proteo, preservao e melhoramento do meio ambiente. No obstante, o artigo 19 do mesmo Protocolo determina que apenas podero ser

    imputadas diretamente a um Estado, perante a CIDH e a Corte IDH, violaes dos direitos sindicais e do direito educao, no sendo includo neste rol o direito ao meio ambiente sadio[99]. Neste sentido, por mais que explicitamente garantido por um tratado interamericano de direitos humanos, o direito ao meio ambiente sadio no diretamente justicializvel no mbito do Sistema Interamericano. O Protocolo, no entanto, tem sido utilizado pela Corte Interamericana como fonte interpretativa da Conveno Americana para delimitar os direitos nela garantidos, inclusive com relao especificamente ao direito ao meio ambiente sadio[100].

    Tanto a Corte como a Comisso Interamericana de Direitos Humanos j tiveram a oportunidade de analisar casos envolvendo danos ambientais, violaes ao direito ao meio ambiente sadio, ou outras questes procedimentais ambientais, como o direito de acesso informao, participao e reparao. No entanto, levando em considerao o marco legal apresentado acima, os dois rgos de direitos humanos do Sistema Interamericano no puderam declarar a violao expressa do artigo 11 do Procolo de San Salvador. Desta forma, em semelhana ao sistema europeu, os rgos interamericanos tem abordado ao longo de sua jurisprudncia violaes ao direito ao meio ambiente atravs da anlise da violao de outros direitos previstos na Conveno Americana e da Declarao Americana. Estes direitos so, principalmente: direito vida (artigo 4 da CADH e artigo I da DADDH)[101], direito integridade pessoal (art. 5 da CADH)[102], direito liberdade de expresso (artigo 13 da CADH) [103], direito sade (artigo XI da DADDH)[104], direito propriedade (artigo 21 da CADH e artigo XXIII da DADDH)[105], e direitos s garantias judiciais e proteo judicial (artigos 8 e 25 da CADH e artigo XVIII da DADDH)[106], assim como as obrigaes estatais de respeitar os direitos (artigo 1.1)[107] e de adotar disposies de direito interno (artigo 2)[108].

    Esta pesquisa teve como base sete casos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos[109], dois Relatrios de Admissibilidade emitidos pela CIDH[110], um relatrio temtico elaborado pela CIDH[111], assim como as medidas cautelares concedidas pela CIDH no caso da Usina Hidroeltrica Belo Monte[112], com relao ao Estado brasileiro. No obstante as decises e relatrios da Comisso Interamericana possurem carter quase-judicial (uma vez que a CIDH no um rgo estritamente judicial, contrariamente Corte IDH), os dois relatrios de admissibilidade apontados possuem grande relevncia para o tema tratado, por serem os primeiros casos contenciosos admitidos no sistema interamericano envolvendo o direito ao meio ambiente sadio em que as vtimas afetadas no so membros de comunidades indgenas[113]. Deste modo, os relatrios sero levados em considerao na presente anlise na medida em que constituem importantes casos que podem vir a ser decididos pela Corte IDH. O relatrio temtico Derechos de los pueblos

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    indgenas y tribales sobre sus tierras ancestrales y recursos naturales da CIDH, publicado em maro de 2011, tambm ser cosiderado nesta anlise por sua importncia histrica como um documento de sntese da jurisprudncia interamericana sobre o tema, assim como um documento demonstrativo de possveis futuros avanos sobre o tema. Finalmente, o caso concreto das medidas cautelares concedidas pela CIDH sobre a usina hidroeltrica de Belo Monte ser avaliado ao final do captulo, de modo a viabilizar uma anlise crtica do Sistema Interamericano e suas verdadeiras possibilidades de proteo ao direito ao meio ambiente sadio.

    Conforme apontado, o sistema interamericano tem desenvolvido importantes padres internacionais no marco do direito internacional dos direitos humanos com relao proteo e garantia do direito ao meio-ambiente sadio, atravs de uma interpretao ampla de outros direitos fundamentais garantidos nos principais instrumentos interamericanos, como direito vida digna e o direito sade[114]. No entanto, importante ressaltar que, at o momento, a jurisprudncia interamericana tem tratado em grande parte da proteo do meio ambiente atravs da perspectiva da garantia dos direitos de comunidades indgenas e afrodescentes a suas terras ancestrais. Dos setes casos estudados decididos pela Corte IDH, seis deles dizem respeito aos direitos destas comunidades, sendo decididos principalmente sob o prisma do direito propriedade e vida digna[115]. Neste sentido, ainda no est claro de que forma os padres desenvolvidos pela Corte neste marco sero aplicados a casos no relacionados a grupos tribais e indgenas, os quais, como determinado pelo Tribunal, merecem especial proteo[116].

    Em seu relatrio Derechos de los pueblos indgenas y tribales sobre sus tierras ancestrales y recursos naturales, a CIDH enfatizou a interrelao e interdependncia dos direitos fundamentais garantidos na Conveno e Declarao Americanas e o direito ao meio ambiente sadio. Neste sentido, a CIDH declarou que, no obstante estes instrumentos interamericanos no fazerem direta referncia proteo do meio ambiente, vrios direitos fundamentais requerem, como uma pr-condio necessria para seu exerccio, uma qualidade ambiental mnima, e se vem afetados de maneira profunda pela degradao de recursos naturais[117][118]. A Comisso acrescentou que tanto a Declarao como a Conveno Americana, refletem uma preocupao prioritria pela preservao da sade e bem estar do indivduo, bens jurdicos protegidos pela interrelao entre os direitos vida, segurana pessoal, integridade fsica, psquica e moral, e sade, e nessa medida se referem ao meio ambiente sadio[119][120].

    Desde o incio de sua jurisprudncia, a Corte IDH vem desenvolvendo o direito vida no apenas como o direito de todas as pessoas de no serem arbitrariamente privados desta, mas tambm do direito de todos os seres humanos a uma vida digna. dizer: os Estados possuem a obrigao de garantir as condies mnimas a todas as pessoas em seu territrio para que estas possam viver uma existncia digna e desenvolver suas mximas potencialidades[121]. No obstante esta doutrina ter sido desenvolvida no marco de um caso envolvendo o direito de especial proteo criana, a Corte IDH estendeu este entendimento a casos envolvendo a degradao ambiental de terras de comunidades indgenas e tribais, por entender que as condies de vida em que passaram a viver estas comunidades violava o seu direito vida em seu sentido mais amplo, o seu direito a uma vida digna[122]. Para ilustrar esta importante construo jurisprudencial, passaremos a analisar, a ttulo de exemplo, o caso Comunidad Indgena Yakye Axa vs. Paraguai.

    O caso Yakye Axa vs. Paraguai diz respeito a uma srie de violaes de direitos fundamentais cometidas pelo Estado contra os membros da comunidade Yakye Axa aps estes terem sido expulsos de suas terras tradicionais, as quais haviam sido arrendadas a uma empresa madeireira. Como forma de protesto em sua luta por reivindicao das terras, os membros da comunidade passaram a se alojar na beira de uma estrada em frente ao seu

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    territrio ancestral, o que os colocou em uma situao precria de extrema vulnerabilidade, sem que o Estado tomasse medidas para garantir seus direitos bsicos. Foi proibido o acesso de membros da comunidade a suas terras e, conseqentemente, no foi possvel que estes realizassem as atividades necessrias para sua subsistncia, ficando sem fonte de trabalho e de alimentao. A Corte Interamericana, ademais, verificou que estas pessoas no tinham acesso gua limpa, saneamento bsico, ou a atendimento mdico adequado. Estas circunstncias foram especialmente observadas quanto s crianas[123].

    Em sua anlise do direito aplicvel ao caso, a Corte IDH em primeiro lugar enfatizou que sua interpretao dos instrumentos interamericanos deveria se dar com base nas caractersticas especiais dos povos indgenas, que os diferenciam da populao geral[124]. Ao interpretar o alcance do direito vida, o Tribunal relembrou sua jurisprudncia anterior, originalmente desenvolvida com base nos direitos das crianas, a qual prev que este direito compreende no apenas o direito de todo ser humano no ser privado da vida arbitrariamente, mas tambm o direito a que no se generem condies que impeam ou dificultem o acesso a uma existncia digna[125][126]. Subseqentemente, o Tribunal Interamericano definiu em que consistem as obrigaes estatais de garantir este direito. Nas palavras da Corte IDH:

    Uma das obrigaes que inevitavelmente deve assumir o Estado em sua posio de garante, com o objetivo de proteger e garantir o direito vida, gerar as condies de vida mnimas compatveis com a dignidade da pessoa humana e no produzir condies que a dificultem ou impeam. Neste sentido, o Estado tem o dever de adotar medidas positivas, concretas e orientadas satisfao do direito a uma vida digna, em especial quando se trata de pessoas em situao de vulnerabilidade e risco, cuja ateno se torna prioritria[127][128]. Ao voltar-se para o caso concreto, o Tribunal determinou que o art. 4 da CADH, que

    prev o direito vida, deve ser interpretado levando em considerao o corpus iuris internacional existente sobre a proteo de comunidades indgenas, e expressamente utilizou os artigos 10 (direito sade) e 11 (direito ao meio ambiente sadio) do Protocolo de San Salvador, assim como a Conveno 169 da OIT[129] como fonte interpretativa do direito vida digna[130]. Com base neste entendimento, a Corte IDH entendeu que o deslocamento dos membros desta comunidade indgena fez com que seus membros tivessem especial dificuldade para obter alimentos, assim como os colocou em uma situao altamente precria, sem acesso gua e medicamentos e privados de praticar suas atividades tradicionais. A Corte ainda enfatizou a especial vulnerabilidade das crianas da comunidade[131]. O Tribunal Interamericano ento traou a especial conexo entre o direito sade e o direito vida digna:

    Os impactos especiais ao direito sade, e intimamente vinculadas com ele, ao direito alimentao e ao acesso gua limpa, afetam de maneira aguda o direito a uma existncia digna e as condies bsicas para o exerccio de outros direitos humanos, como o direito educao ou o direito identidade cultural (...). [N]o caso dos povos indgenas, o acesso a suas terras ancestrais e ao uso e usufruto dos recursos naturais que nelas se encontram esto diretamente vinculados obteno de alimento e ao acesso gua limpa[132][133].

    Com base na situao de extrema vulnerabilidade em que se encontravam os membros da comunidade Yakye Axa, a Corte IDH concluiu que lhes foi vulnerado o direito vida digna, no obstante diversas destas vtimas no terem sido arbitrariamente privadas de sua vida no sentido estrito. A Corte analisou outros casos similares ao caso Yakye Axa, chegando a concluses parecidas no que diz respeito violao do direito vida digna[134].

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    importante ressaltar que, no obstante as consideraes expostas acima, a Corte IDH no considerou a violao do direito integridade fsica com base neste caso concreto. Em deciso mais recente, no caso Comunidad Indgena Xkmok Ksek vs. Paraguai, o Tribunal expressamente determinou que no deveria se falar em violao do direito integridade pessoal com base em fatos similares, uma vez que a falta de alimentao, acesso gua limpa, e atendimento mdico adequado dizia respeito ao direito vida digna, e no ao direito integridade pessoal[135]. No obstante, na ocasio a Corte IDH determinou a violao do direito integridade pessoal no que diz respeito ao sofrimento gerado aos membros da comunidade pela falta de restituio de suas terras tradicionais, a perda paulatina de sua cultura, e a longa espera que tiveram que agentar no transcurso do ineficiente processo administrativo[136][137], acrescentando que as condio de vida miserveis que sofrem os membros da Comunidade, a morte de vrios de seus membros e o estado geral de abandono no qual se encontram geraram sofrimentos que necessariamente afetam a integridade psquica e moral de todos os membros da Comunidade[138][139].

    O outro principal ngulo atravs do qual a Corte IDH vem protegendo o direito ao meio ambiente sadio no contexto das violaes dos direitos de comunidades indgenas e afro descendes atravs da garantia do direito propriedade. Diversos casos de violao envolvendo estes povos tem como principal causa a concesso de territrios ancestrais de comunidades a grandes empresas multinacionais para extrao de recursos naturais e outras atividades industriais. Estas concesses com frequncia se do sem a garantia dos direitos de informao e participao dos povos indgenas, e tampouco com reparao outorgada a estes ou com o seu consentimento, naqueles casos em que este devido[140]. De modo a melhor ilustrar os entendimentos da Corte sobre o direito de propriedade aplicado a povos indgenas e afrodescendentes e sua relao com o direito destas comunidades a ter suas terras protegidas e ambientalmente equilibradas, passamos a analisar o caso exemplificativo Comunidad Saramaka vs. Suriname. O Caso Comunidad Saramaka vs. Suriname diz respeito aos membros da comunidade tribal Saramaka, os quais tiveram seu direito a suas terras tradicionais violado pela concesso de uso de suas terras a empresas madeireiras e mineradoras, sem que o Estado tenha provido informao adequada aos povo Saramaka sobre o processo de concesso, como a apresentao de um Estudo de Impacto Social e Ambiental, ou sem que tenha sido feito um adequado processo de consulta prvia aos membros da comunidade[141]. Ao analisar o caso concreto, a Corte IDH em primeiro lugar reconheceu o carter de povo tribal comunidade Saramaka, enfatizando que sua cultura muito parecida com aquela dos povos tribais na medida em que os integrantes do povo Saramaka mantm uma forte relao espiritual com o territrio ancestral que tem usado e ocupado tradicionalmente[142][143], uma vez que a [a] terra significa mais que meramente uma fonte de subsistncias para eles; tambm uma fonte necessria para a continuidade da vida e da identidade cultural dos membros do povo Saramaka[144][145]. A Corte Interamericana portanto determinou que o povo Saramaka possui caractersticas sociais, culturais, e econmicas diferentes da populao geral, especialmente considerando sua especial relao com seu territrio ancestral. O Tribunal Interamericano entendeu que as mesmas regras e padres internacionais relativos aos povos indgenas devem portanto ser aplicados aos povos tribais, como a comunidade Saramaka[146]. A Corte passou ento a relembrar sua jurisprudncia desenvolvida sobre o direito propriedade, sob a tica dos povos indgenas e tribais, frisando as caractersticas especiais que este direito adquire no contexto destas comunidades e levando em considerao a estreita relao que estes povos tem com suas terras. Neste sentido, o Tribunal Interamericano declarou que [p]ara as comunidades indgenas a relao com a terra no meramente uma questo de possesso e produo sem um elemento material e espiritual do qual devem gozar

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    plenamente (...) para preservar seu legado cultural e transmitir-lo s geraes futuras[147][148], sendo seus territrios ancestrais fundamentais para sua sobrevivncia como comunidade social, cultural e econmica. Deste modo, os Estados tm a obrigao de adotar medidas especiais para reconhecer, respeitar, proteger e garantir aos povos indgenas e tribais o exerccio do direito a estas terras, em todas a suas dimenses, para o garantir o seu desenvolvimento como comunidade em sentido amplo. Aplicando sua jurisprudncia anteriormente desenvolvida em casos como o caso Comunidad Yakye Axa, analisado acima, a Corte IDH entendeu que os povos tribais e indgenas tem o direito de serem titulares dos recursos naturais que utilizaram tradicionalmente dentro de seu territrio pelas mesmas razes pelas quais tm o direito de serem titulares da terra que usaram e ocuparam durante sculos. Do contrrio, a sobrevivncia econmica, social e cultural destes povos est em risco[149][150]. Ao tratar especificamente das concesses feitas pelo Estado para o exerccio de atividades de explorao e extrao realizadas em territrios tradicionais, a Corte adverte que, no obstante estas sempre afetarem o direito de propriedade destas comunidades, no possvel interpretar este direito de maneira que o Estado esteja impedido a outorgar qualquer tipo de concesso para a explorao ou extrao de recursos naturais. Neste sentido, o Tribunal Interamericano desenvolve parmetros para que uma restrio pelo Estado do direito de propriedade se d de acordo com a Conveno Americana. Segundo a Corte IDH, as restries devem ser: a) previamente estabelecidas em lei; b) necessrias; c) proporcionais; e d) ter como fim um objetivo legtimo em uma sociedade democrtica[151]. Neste sentido, a Corte Interamericana determinou que, de modo a garantir que as restries impostas no caso concreto aos membros da comunidade Saramaka no configurassem uma denegao do direito dos Saramakas sua subsistncia como povo tribal, necessrio que o Estado cumpra trs garantias: i) assegurar a participao efetiva dos membros do povo Saramaka em todos os planos de desenvolvimento, inverso, explorao ou extrao que ocorre dentro de seu territrio; ii) garantir que os membros do povo Saramaka se beneficiem de forma razovel deste plano; iii) garantir que nenhuma concesso seja emitida sem a realizao de um Estudo Prvio de Impacto Social e Ambiental por entidades independentes e tecnicamente capazes[152]. Quanto obrigao de garantir o direito de participao das comunidades, a Corte determinou que esta deve ser efetiva, em um processo de consulta culturalmente adequado, segundo suas tradies, com o objetivo de chegar a um acordo, e com o prvio aporte de informaes por parte do Estado, implicando um processo de constante comunicao entre as partes[153]. A Corte, ademais, esclareceu que a comunicao deve ocorrer desde as primeiras fases do plano de desenvolvimento, e no apenas quando surgir a necessidade de obter a autorizao formal da comunidade. Neste sentido, o Estado tambm deve assegurar que os membros do povo Saramaka tenham o conhecimento dos possveis riscos, incluindo os riscos ambientais e de salubridade, a fim de que aceitem o plano de desenvolvimento proposto com conhecimento e de forma voluntria[154][155]. Finalmente, a Corte entendeu que, no casos de planos de desenvolvimento grande escala que possam ter um maior impacto no territrio das comunidades indgenas e tribais, o Estado deve no apenas consultar os membros destas, mas tambm obter o seu consentimento de forma livre e informada. Deste modo, o Tribunal frisou que a consulta sempre necessria quando h um plano de desenvolvimento envolvendo o territrio destas comunidades, sendo, alm desta, tambm necessrio o consentimento da comunidade quando o desenvolvimento possa ter um impacto profundo no uso e gozo de seu direito de propriedade[156].

    Aplicando as consideraes anteriores ao caso concreto, a Corte IDH concluiu, com base nos fatos provados do caso, que a consulta feita pelo Estado comunidade Saramaka no foi suficiente pra garantir o direito de participao efetiva de seus membros. Ademais, o

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    Estado no realizou ou supervisou a realizao de um Estudo de Impacto Social e Ambiental antes de outorgar as concesses s empresas madeireiras e mineradoras. O Tribunal Interamericano concluiu que as atividades das empresas madeireiras eram altamente destrutivas e produziram um dano massivo em uma rea substancial do bosque do povo Saramaka e nas funes ecolgicas e culturais que este proporcionava[157][158] e que o Estado deixou um legado de destruio ambiental, privou os Saramaka de seus recursos naturais, lhes causou problemas espirituais e sociais e no lhes outorgou qualquer benefcio pelas atividades empresariais realizadas. Deste modo, a Corte entendeu pela violao do artigo 21 da Conveno Americana (direito de propriedade), combinado com o artigo 1.1 (obrigao geral de respeitar e garantir direitos)[159].

    Conforme se observa das duas exposies de casos concretos realizadas acima, possvel concluir que a Corte IDH vem protegendo o direito dos membros de comunidades indgenas e tribais ao meio ambiente sadio principalmente atravs de uma anlise ampla dos artigos 21 (direito de propriedade) e 4 (direito vida) da Conveno Americana.

    Finalmente, preciso fazer breve referncia ao caso Claude Reyes y otros v. Chile, nico caso julgado pela Corte IDH at o momento envolvendo uma questo ambiental que no tem como vtimas membros de comunidades indgenas ou tribais. O caso, no obstante, apenas faz referncia ao chamado aspecto processual do direito ao meio ambiente sadio, dizer, aqueles direitos garantidos no pelo princpio 10 da Declarao do Rio: i) informao, ii) participao, e iii) acesso justia[160].

    No caso especfico, Claude Reyes, ativista ambiental, buscou acesso informao em poder do Estado sobre um contrato celebrado entre o Estado e duas empresas para o desenvolvimento de um projeto de industrializao de produtos madeireiros que havia gerado grande controvrsia pblica por seu impacto ambiental. A informao foi negada por um rgo governamental chileno, sob a base de que se configurava matria de sigilo comercial da empresa[161]. O caso Claude Reyes configurou o primeiro caso em que a Corte IDH decidiu sobre o direito ao acesso informao em geral, e no apenas de carter ambiental. O Tribunal Interamericano utilizou diretamente tanto o Princpio 10 da Declarao do Rio como a Conveno sobre o acesso informao, a participao do pblico na tomada de decises, e o acesso justia em assuntos ambientais (Conveno de Aarhus, adotada no mbito do Conselho da Europa) para interpretar amplamente o direito de acesso informao, incluindo as informaes que dizem respeito matria ambiental no rol de matrias de interesse pblico[162]. Neste sentido, a Corte IDH ligou de forma direta o acesso informao como uma forma de garantia do direito de participao em sistema democrtico, acrescentando:

    O atuar do Estado deve estar regido pelos princpios da publicidade e transparncia na gesto pblica, o que torna possvel que as pessoas que se encontram sob sua jurisdio exeram o controle democrtico das gestes estatais, de forma tal que possa questionar, indagar e considerar se se est dando um adequado cumprimento das funes pblicas. O acesso informao sob o controle do Estado, que seja de interesse pblico, pode permitir a participao na gesto pblica, atravs do controle social que se possa exercer com tal acesso[163][164]. A Corte Interamericana concluiu pela violao pelo Estado chileno do direito ao

    acesso informao, o qual abarcado pelo artigo 13 da Conveno Americana (direito de liberdade de expresso), com relao tanto ao artigo 1.1 da CADH, quanto ao artigo 2 da Conveno, pela falta de uma normativa interna que regulasse o acesso informao em poder do Estado de acordo com os parmetros convencionais[165].

    As reparaes outorgadas pela Corte IDH em casos contenciosos se diferem substancialmente das indenizaes individuais concedidas pela Corte Europia. De fato, o sistema de reparaes interamericano tem se desenvolvido de forma a criar um sistema de reparaes que abrange no apenas indenizaes em dinheiro por dano material e moral, mas

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    tambm medidas de no-repetio e de satisfao a serem tomadas pelo Estado, como mudanas legislativas, reconhecimento pblico de responsabilidade estatal, entre outros. Nos casos envolvendo o direito ao meio ambiente sadio analisados acima, a Corte IDH determinou uma srie de medidas de reparao que transcendem a indenizao, adquirindo carter verdadeiramente tutelar.

    A ttulo de exemplo, elencamos a seguir uma srie de reparaes concedidas pela Corte a serem cumpridas pelo Estado nos casos analisados anteriormente[166]: i) delimitar, demarcar, e outorgar ttulo coletivo do territrio aos membros das comunidades indgenas e tribais, segundo seu direito costumeiro e atravs de consultas prvias, efetivas, e informadas (at que ocorra a demarcao do territrio, o Estado deve se abster e impedir que terceiros possam afetar a existncia, valor, uso e gozo das terras pelas comunidades, ao menos que haja o consentimento destas); ii) outorgar o reconhecimento de capacidade jurdica coletiva comunidade; iii) adotar medidas legislativas, em consulta prvia com os povos afetados, para garantir o direito das comunidades de forma coletiva sobre seu territrio tradicionalmente ocupado e os recursos naturais utilizados; iv) garantir o direito dos povos indgenas e tribais a serem consultados efetivamente e de prover conforme o caso concreto o seu consentimento prvio, livre, e informado sobre quais planos de desenvolvimento realizados em seu territrio tradicionalmente ocupado; v) assegurar que sejam realizados previamente outorga de concesses e licenas relacionadas a projetos de desenvolvimento e inverso, Estudos de Impacto Social e Ambiental elaborados por entidades independentes e tecnicamente capazes; vi) implementar medidas e mecanismos adequados para minimizar o impacto destes projetos na capacidade de sobrevivncia social, econmica e cultural das comunidades indgenas e tribais da regio afetada; vii) assegurar que enquanto os membros da comunidade se encontram impedidos de utilizar seus territrios tradicionais, o Estado lhes suministre os bens e servios bsicos para sua existncia digna; viii) entregar a informao com relao aos contratos de inverso realizados pelo Estado; ix) adotar disposies de direito interno para efetivamente garantir o direito de acesso informao[167].

    Neste sentido, mesmo a prpria indenizao por danos materiais e morais concedida nos casos concretos tem adquirindo um carter coletivo no mbito das violaes a direitos de comunidades indgenas e afrodescentes. Em suas decises, nos casos mencionados sobre a questo, a Corte IDH determinou que o pagamento de indenizao feito pelo Estado em carter de dano imaterial (ou moral) deveria se dar de maneira coletiva, em nome das comunidades afetadas, e encaminhadas para um fundo de desenvolvimento comunitrio, implementado com finalidades diversas, como a implementao de projetos educacionais, de sade, habitacionais, agrcolas, entre outros. Os elementos do projeto, assim como a gesto do fundo, devem ser definidos por um comit de implementao, formado por um membro indicado pelas vtimas, outro pelo Estado e um terceiro de comum acordo entre as partes. Alm do fundo, a Corte j determinou em alguns casos a instalao de um programa de desenvolvimento com uma finalidade especfica, como, por exemplo, prover gua potvel e infraestrutura sanitria comunidade. Eventualmente, a quantia outorgada a ttulo de dano material encaminhada comunidade para que esta possa decidir, segundo seus costumes, a melhor forma de geri-la e utiliz-la para suas necessidades.

    No obstante o carter coletivo das indenizaes, o Sistema Interamericano demonstra limitaes para garantir o direito ao meio ambiente sadio como um direito difuso. Tanto o Regulamento quanto a jurisprudncia da Corte IDH definem que as vtimas de casos devem ser determinadas, ou, em casos excepcionais, determinveis, no havendo espao para determinar a violao de um direito com relao a vtimas indeterminveis[168]. Neste sentido, conforme aponta Dinah Shelton, no ano 2004, a Comisso declarou inadmissvel a petio apresentada por um cidado panamenho a respeito do Parque Natural Metropolitano no Panam, uma vez que a petio no individualizava vtimas concretas e era

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    excessivamente ampla[169][170]. Neste caso citado pela atual Presidente da CIDH, a Comisso igualou a demanda apresentada pelo peticionrio como equivalente a uma ao popular, por sua amplitude e por no haver identificado vtimas especficas. Shelton lamenta este entendimento da CIDH sugere que quanto mais amplas e generalizadas sejam as violaes o que pode ocorrer em muitos contextos em que o dano ambiental constitui a base da denncia menor a probabilidade de que a denncia seja considerada admissvel[171][172]. Conclui-se que o sistema interamericano no logra garantir o direito ao meio ambiente sadio em todos os seus aspectos, visto que no lhe confere as caractersticas de um direito-dever de todos, mas sim de um direito individual ou coletivo. Ademais, a jurisprudncia da Corte Interamericana no d conta de considerar em sua integralidade o dano ambiental, o qual complexo e afeta a um nmero indeterminvel de pessoas, dizer, a coletividade.

    Conforme j apontado, at o momento, a Corte IDH ainda no teve a oportunidade de analisar um caso envolvendo degradao ambiental e a garantia do direito ao meio ambiente sadio em seu aspecto material que no diga respeito a comunidades indgenas e tribais. Sem embargo, a Comisso Interamericana expediu relatrios de admissibilidade em dois casos relacionados a danos ambientais envolvendo contaminaes que afetaram reas de pequenas cidades e vilarejos, nas quais os residentes no fazem parte de comunidades tradicionais (casos La Oroya[173] e Comunidad San Mateo[174]). No obstante a CIDH haver delimitado as potenciais vtimas como apenas aquelas apontadas pelos peticionrios na demanda, estes dois casos j se configuram em uma valiosa oportunidade para que tanto a CIDH quanto a Corte IDH possam aplicar sua importante jurisprudncia construda sob a base da garantia dos direitos de comunidades indgenas e afrodescentes para garantir os direitos de todos ao meio ambiente sadio. Neste sentido, os julgamentos dos casos La Oroya e, em parte, Comunidad San Mateo, determinaro at que ponto o marco jurdico desenvolvido sobre garantia do direito ao meio ambiente sadio ser igualmente aplicvel a pessoas que no necessariamente fazem parte de um grupo especialmente protegido (como o so as comunidades indgenas e afrodescentes)[175].

    Em vista das consideraes feitas acima sobre o marco jurdico interamericano a respeito do direito ao meio ambiente sadio, passaremos agora a analisar as medidas cautelares concedidas pela CIDH no caso da construo da Usina Hidroeltrica de Belo Monte, no Brasil[176]. Deste modo, realizaremos um breve estudo para ilustrar a atuao do sistema interamericano em um caso de grande relevncia para o contexto brasileiro, assim como as limitaes e o impacto do sistema com relao ao Brasil.

    A construo da Usina Hidroeltrica de Belo Monte um megaprojeto do Estado brasileiro visando criao da terceira maior usina hidroeltrica do mundo, na regio do Rio Xingu, estado do Par. O projeto vem sendo discutido e criticado h mais de trs dcadas por conta do grande impacto ambiental que este geraria na regio do Rio Xingu, assim como pela degradao que atingiria os povos indgenas e ribeirinhos que vivem na regio. Neste sentido, at junho de 2011, onze aes judiciais j haviam sido ajuizadas pelo Ministrio Pblico brasileiro denunciando irregularidades no processo de licenciamento ambiental da hidroeltrica[177]. Algumas destas aes apontaram diversas ilegalidades na realizao de estudos de impacto ambiental, como a falta de superviso do rgo ambiental estatal e a falta de oitiva adequada das comunidades afetadas pela atividade, e solicitaram a no concesso das licenas prvia e de instalao com base, entre outras, nas irregularidades mencionadas [178]. No entanto, no obstante as aes ajuizadas pelo Ministrio Pblico, em 2010 o rgo ambiental estatal concedeu a licena prvia [179], a qual foi posteriormente suspensa pelo Poder Judicirio, por estar baseada em um Estudo Prvio de Impacto Ambiental inconcluso a respeito dos riscos da atividade para a regio [180].

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    Com base neste marco ftico, em 2011, organizaes da sociedade civil solicitaram CIDH a concesso de medidas cautelares em nome das comunidades indgenas da Bacia do Rio Xingu[181].

    As medidas cautelares esto previstas no artigo 25 do Regulamento da Comisso Interamericana nos seguintes termos: [e]m situaes de gravidade e urgncia a Comisso poder, por iniciativa prpria ou a pedido da parte, solicitar que um Estado adote medidas cautelares para prevenir danos irreparveis a pessoas que se encontrem sob sua jurisdio, independentemente de qualquer petio ou caso pendente. Neste sentido, as medidas cautelares so uma medida de carter liminar, preventivo, e tutelar de direitos, visando proteo de potenciais vtimas de violaes de direitos humanos que se encontrem em uma situao de risco de danos irreparveis a seus direitos fundamentais. Conforme dita o artigo 25.2, supracitado, as medidas cautelares podem ser concedidas independentemente de um caso contencioso existente no sistema interamericano, e formam assim um instrumento inestimvel de proteo de pessoas em situao de risco em todo o continente americano.

    No dia 1 de abril de 2011, a CIDH, entendendo que estavam presentes os requisitos de gravidade e urgncia e riscos de danos irreparveis s comunidades do Rio Xingu, decretou medidas cautelares em favor de todos os membros destas comunidades[182]. A Comisso Interamericana ordenou ao Estado brasileiro a adoo de uma srie de medidas urgentes a serem tomadas para proteger a vida e a integridade pessoal dos membros das comunidades indgenas do Rio Xingu, dentre elas: i) cumprir a obrigao do processo de consulta, de acordo com a Conveno Americana (...)[183], devendo esta ser prvia, livre, informada, de boa-f, culturalmente adequada, com o objetivo de chegar a um acordo[184]; ii) garantir que anteriormente s consultas as comunidades beneficirias das medidas cautelares tenham acesso a um Estudo de Impacto Social e Ambiental do projeto, num formato acessvel (...)[185]; iii) adotar medidas para proteger a vida e a integridade pessoal dos membros dos povos indgenas em isolamento voluntrio da bacia do Xingu[186] assim como para prevenir a disseminao de doenas e epidemias entre as comunidades indgenas beneficirias das medidas cautelares como conseqncia da construo da hidroeltrica[187]. Finalmente, a CIDH ordenou ao Estado que suspenda imediatamente o processo de licenciamento do projeto da UHE de Belo Monte e impea a realizao de qualquer obra material de execuo at que fossem tomadas as medidas ordenadas[188]. importante ressaltar que as medidas cautelares foram outorgadas aps a CIDH solicitar informaes do Estado sobre a questo, segundo o seu regulamento interno, e garantindo o contraditrio[189].

    Aps as concesses das medidas cautelares, o Estado brasileiro criticou amplamente a outorga destas. Atravs de um comunicado de imprensa, o Ministrio de Relaes Exteriores, representando o Estado, considerou a outorga das medidas precipitadas e injustificveis, argumentando que o sistema interamericano deve ser utilizado apenas de forma subsidiria, e que os recursos internos no haveriam sido esgotados [190]. Posteriormente, o governo reiterou seus argumentos em uma comunicao enviada Comisso Interamericana, no qual acrescentou que as consultas prvias haviam sido realizadas com as comunidades indgenas da forma adequada, assim como as medidas de proteo haviam sido tomadas[191]. Ademais, aps a outorga das medidas cautelares, o Estado brasileiro retirou seu candidato ao cargo de Comissionado Interamericano (as eleies iriam ocorrer na Assemblia Geral da OEA, em junho de 2011), assim como suspendeu o repasse de verba CIDH 800 mil reais[192]. Apesar de o governo no ter explicitamente afirmado que as medidas foram tomadas como retaliao deciso da Comisso, meios de comunicao e organizaes da sociedade civil afirmaram que estas medidas seriam uma tentativa de deslegitimar a CIDH e pressionar o rgo[193]. Ademais, o Secretrio Geral da OEA, Jos Miguel Insulza, publicamente criticou a CIDH pela adoo das medidas cautelares no presente caso, afirmando que as decises da

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    Comisso Interamericana no possuem carter obrigatrio, e que a CIDH no deveria tratar questes ambientas da mesma forma como tratava de temas da ditadura. O Secretrio Geral concluiu que a Comisso apenas deve assessorar os governos em temas como Belo Monte, mas no emitir decises semi-judiciais, devendo ter cautela ao tratar da proteo do meio ambiente [194].

    Deste a adoo das medidas cautelares, o Estado brasileiro concedeu a licena de instalao para a Usina Hidroeltrica de Belo Monte[195]. Sem embargo, o Ministrio Pblico ajuizou nova ao contra a usina solicitando a suspenso da licena, por considerar que a empresa no cumpriu as condies elencadas na licena prvia para a outorga da licena de instalao[196]. Por sua vez, durante a Assemblia Geral da OEA em junho de 2011, um coletivo de organizaes da sociedade civil repudiaram a concesso da licena da instalao e instaram ao Estado brasileiro a cumprir com as recomendaes das medidas cautelares[197]. A reao do Estado brasileiro outorga das medidas cautelares de Belo Monte demonstrou a falta de eficcia do sistema interamericano para proteger o meio ambiente em casos nos quais o Estado no deseja colaborar ou acatar as decises dos rgos do sistema. Neste sentido, a resistncia demonstrada pelo Brasil a se submeter anlise de um rgo internacional em questes de grande importncia poltica para o Estado demonstra um dos verdadeiros limites do direito internacional de direitos humanos para garantir o direito ao meio ambiente sadio.

    Ademais, importante ressaltar que as medidas cautelares foram concedidas apenas com relao aos grupos indgenas, novamente frisando o foco da jurisprudncia do sistema interamericano sobre estas comunidades, assim como a necessidade do estabelecimento de vtimas determinadas ou determinveis para o acesso ao sistema. Neste sentido, ser necessrio esperar uma eventual deciso de mrito da CIDH em eventual caso contencioso a ser enviado ao sistema sobre Belo Monte para que seja possvel realizar uma anlise mais profunda de como a CIDH aplicar ao caso concreto os j existentes padres interamericanos sobre a matria, assim como quais avanos jurisprudenciais e fticos sero finalmente alcanados.

    O Sistema Africano de Direitos Humanos O Sistema Africano de Direitos Humanos tem como marco de sua criao a adoo da

    Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (CADHP ou Carta Africana) pelos Estados parte da Organizao da Unidade Africana (hoje Unio Africana), em 1981. Em contraste com a Conveno Europia e a Conveno Americana, a Carta Africana possui diversas peculiaridades, as quais lhe podem ser atribudas pelas particularidades dos pases africanos, assim como por sua relativa tardia adoo.

    De modo a tornar possvel a adoo da Carta Africana, os pases da OUA optaram por no estabelecer no tratado a criao de uma Corte Africana, por considerarem a idia de uma soluo de conflitos litigiosa contra a cultura do continente[198]. A Carta Africana, portanto, prev apenas a existncia da Comisso Africana de Direitos Humanos e dos Povos, a qual, de forma similar Comisso Interamericana, emite decises em casos individuais de carter quase-judicial [199]. Neste sentido, a criao e o estabelecimento de uma Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos apenas se deu anos depois, em 2004, com a entrada em vigor do Protocolo no Estabelecimento da Corte Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos.

    A Carta Africana abertamente prev a proteo no apenas dos direitos civis e polticos, mas tambm dos direitos econmicos, sociais e culturais, assim como de direitos difusos, sem qualquer tipo de distino quanto a sua importncia[200]. Neste sentido, a Carta Africana demonstra a indivisibilidade, interdependncia e inter-relao de todos os direitos humanos, distinguindo-se substancialmente tanto da Conveno Americana quanto da

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    Conveno Europia. Esta particularidade, ademais, fez com que a Carta seja o primeiro tratado de direitos humanos a explicitamente prever a proteo do direito ao meio ambiente sadio, nos seguintes termos:

    Todos os povos tm direito a um meio ambiente geral satisfatrio, propcio ao seu desenvolvimento. Ademais, contrariamente ao j analisado Protocolo de San Salvador (adotado no

    mbito do Sistema Interamericano), o direito ao meio ambiente sadio previsto na Carta Africana passvel de justicializao; dizer, os rgos de direitos humanos africanos podem condenar um Estado parte da Carta Africana diretamente pela violao do direito ao meio ambiente sadio.

    Levando em conta as caractersticas apontadas acima, preciso ressaltar que at o momento a Corte Africana de Direitos Humanos no teve a oportunidade de emitir decises de mrito em casos contenciosos, devido ao seu recente estabelecimento, em 2006. Deste modo, o presente estudo tratar apenas das decises emitidas pela Comisso Africana, as quais, no obstante possurem carter quase-judicial, devem ser seguidas pelos Estados com base no princpio da pacta sunt servanda [201].

    Antes de iniciar anlise da jurisprudncia estabelecida pela Comisso Africana sobre o tema, importante fazer algumas consideraes quanto a caractersticas particulares de suas decises. A Carta Africana prev a criao da Comisso com o objetivo de promover os direitos humanos e dos povos e de assegurar a respectiva proteo na frica, e lhe d como atribuio a anlise de casos contenciosos[202]. No obstante, a Carta no clara quanto ao carter jurdico das decises da Comisso, ou tampouco quanto a possibilidade da Comisso fazer recomendaes aos Estados ao emitir tais decises[203]. Por conta destas circunstncias especiais, a Comisso inicialmente emitiu decises sem grande fundamentao jurdica, se limitando a determinar os fatos de um caso e listar os direitos violados por um determinado Estado, e sem fazer qualquer recomendao[204]. Esta prtica jurdica, no entanto, evoluiu com o passar dos anos, fazendo com que atualmente as decises da Comisso Africana de certa forma se assemelhem mais a decises de outros rgos quase-judiciais internacionais, como o so o Comit de Direitos Humanos da ONU e a Comisso Interamericana [205].

    At o momento, a Comisso Africana emitiu duas decises envolvendo alguns aspectos do direito ao meio ambiente sadio. O segundo e mais importante julgado foi o adotado no caso Social and Economic Rights Action Center (SERAC) v. Nigria, no qual a Comisso Africana pela primeira vez condenou um Estado pela violao direta do direito ao meio ambiente sadio, assim como de outros direitos econmicos, sociais e culturais. Desde modo, pela importncia da deciso, o caso ser analisado com maiores detalhes adiante. No obstante, mencionaremos brevemente a outra deciso adotada, que apesar de no tratar diretamente do artigo 24 da Carta Africana, versa sobre o direito sade.

    O caso World Organisation Against Torture, Lawyers Committee for Human Rights, Jehovah Witnesses, Inter-African Union for Human Rights vs. Zaire diz respeito, principalmente, violao de direitos civis e polticos pelas foras armadas do Estado de Zaire por conta de diversas detenes arbitrrias, torturas e persecuo de grupos de pessoas durante um perodo de grande instabilidade no Zaire. A Comisso, ao analisar a questo, no entanto, fez breves consideraes com relao obrigao do Estado em proteger a sade de seu povo e de prover servios bsicos necessrios para um padro mnimo de sade, como gua potvel e eletricidade[206][207], e, com base neste entendimento, condenou o Estado pela violao do direito sade[208]. Neste sentido, van der Linde e Louw argumentam que, no caso, a Comisso Africana poderia ter ligado o artigo 24 com o artigo 16 (sade) em suas consideraes sobre a obrigao do governo do Zaire de prover servios bsicos, como gua potvel limpa[209][210]. No obstante, a Comisso no analisou o direito ao meio ambiente sadio no caso concreto.

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    Por sua vez, o caso SERAC v. Nigria considerado uma das decises mais importantes j emitidas pela Comisso Africana de Direitos Humanos e dos Povos, uma vez que atravs deste caso a Comisso concretiza a possibilidade de justiciabilidade dos direitos difusos e dos direitos econmicos, sociais e culturais tornando real o ideal da igual proteo dos direitos humanos sem qualquer hierarquia entre eles[211]. O caso tambm o primeiro no qual foi atribuda diretamente a um Estado a violao do direito ao meio ambiente sadio, como j apontado acima[212].

    O caso SERAC v. Nigria trata das diversas violaes de direitos humanos ocorridas no mbito das operaes de explorao de petrleo levadas a cabo pela empresa Shell no delta do Rio Nger e pelo exrcito nigeriano. Segundo as alegaes dos peticionrios consideradas provadas pela Comisso o governo militar da Nigria estava diretamente envolvido com a produo de petrleo atravs de uma empresa estatal acionista majoritria em um consrcio com a Shell, produo esta que gerou diversos danos ambientais, contaminao do meio ambiente, e danos sade do povo Ogoni, que habita o territrio explorado[213]. Neste sentido, os peticionrios alegaram que as empresas exploraram petrleo na regio sem qualquer considerao sade ou ao meio ambiente sadio dos povos que habitam a regio, contaminando as guas do territrio em um nvel acima dos padres permitidos internacionalmente. Ademais, pela falta de manuteno nas instalaes das empresas, diversas contaminaes evitveis acabaram por ocorrer. Os danos ambientais geraram srios problemas de sade a longo e curto prazo para a populao local[214]. Alm de seu envolvimento direto com a produo do petrleo, o governo nigeriano tambm disponibilizou suas foras de segurana para proteger as operaes petrolferas, reprimir protestos e atacar as comunidades locais[215]. Ademais, o governo nigeriano no informou a comunidade dos riscos associados atividade, no promoveu possibilidade de participao ou consulta aos membros da comunidade na tomada de decises com relao instalao da atividade e ignorou e reprimiu os protestos do povo Ogoni quanto a esta[216]. Finalmente, os peticionrios alegam que no foi realizado um estudo prvio de impacto ambiental antes da concesso da licena ao consrcio, assim como a recusa do governo a que profissionais independentes tivessem acesso ao territrio afetado para fazer tais estudos[217].

    Ao decidir o mrito do caso, a Comisso primeiramente reiterou as obrigaes dos Estados de respeitar, proteger, promover e garantir todos os direitos humanos incluindo os direitos econmicos, sociais e culturais as quais so cumpridas atravs de aes positivas e negativas, como a obrigao do estado de respeitar o uso livre de recursos individuais por indivduos para garantir seus direitos, a obrigao de tomar medidas para proteger pessoas contra interferncias polticas, sociais, e culturais, a obrigao promover tolerncia e visibilidade e a obrigao de mover os recursos estatais de forma a garantir direitos fundamentais bsicos[218].

    A Comisso Africana ento passou a analisar a violao dos artigos especficos alegados no caso concreto, comeando pelos artigos 16 (direito sade) e 24 (direito ao meio ambiente sadio). Sobre estes direitos, a Comisso afirma a conexo entre um meio ambiente limpo e sadio e os direitos econmicos e sociais na medida em que contribuem para a qualidade de vida das pessoas[219]. Especificamente sobre o direito ao meio ambiente sadio, a Comisso determina: o direito a um meio ambiente sadio (...) impe uma obrigao clara a um governo. Este requer que o Estado toma medidas razoveis e outras medidas para prevenir a poluio e degradao, para promover a conservao, e para garantir um desenvolvimento e uso de recursos naturais de maneira sustentvel[220][221]. Ademais, a Comisso determina que o Estado deve se abster de adotar qualquer tipo de medida que ameace o meio ambiente ou a sade de seus cidados. Neste sentido, a Comisso determina que de modo a garantir os direitos sade e ao meio ambiente sadio, os Estados devem realizar e publicar estudos prvios de impacto ambiental, cientificamente monitorar reas

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    ameaadas (ou permitir que outros o faam), assim como prover informaes s comunidades afetadas por atividades poluidoras e permitir sua participao na tomada de decises que lhes afetam[222].

    Especificamente quanto ao caso concreto, a Comisso Africana determinou que o governo africano, no obstante ter o direito de explorar o petrleo existente em seu territrio, as medidas necessrias para adequadamente garantir um meio ambiente sadio devem ser tomadas, o que no ocorreu no caso concretoviolao que foi exacerbada pela atuao do exrcito nigeriano[223].

    Alm das violaes dos direitos ao meio ambiente e sade, a Comisso tambm abordou a questo da contaminao dos recursos naturais sob o mbito do artigo 21 da Carta Africana, o qual prev o direito dos povos de livremente se utilizar de seus recursos naturais[224]. Ao determinar o contedo do artigo, a Comisso reafirma a obrigao dos Estados de proteger todos os indivduos contra violaes de direitos humanos cometidas por terceiros, e no necessariamente apenas contra aquelas cometidas por agentes estatais. Analisando o caso concreto, a Comisso observa que o governo nigeriano no apenas no preveniu que a empresa de petrleo violasse os dir