diplomacia conjugal: a polÍtica rioplatense em … · constituiu-se, ao longo de sua atuação...

11
1089 DIPLOMACIA CONJUGAL: A POLÍTICA RIOPLATENSE EM 1815 PELAS CARTAS DE NICOLAS HERRERA À SUA ESPOSA CONSOLACIÓN OBES Fernando Comiran Universidade Federal do Rio Grande (FURG) [email protected] Resumo Nicolas Herrera foi nome de destaque na política platina na primeira metade do século XIX. Enviado a Europa para dar notícias acerca das invasões inglesas no Prata fora eleito deputado para as cortes de Bayona, mantendo posição fiel a Napoleão. De volta à América do Sul, em maio de 1810 tomou partido pelos revolucionários. Unido ao grupo anti-artiguista, apoiou a invasão portuguesa da Banda Oriental em 1816 e assinou, em dezembro de 1817, a cessão de Montevidéu às ordens de Carlos Federico Lecor. Assumiu papel de destaque na administração portuguesa da Banda Oriental sendo, em seguida, senador junto ao Império do Brasil. Foi chefe de governo da Cisplatina e defendeu os interesses brasileiros diante da tentativa de conquista argentina. Por fim, estudar as cartas de Herrera à sua esposa, que davam conta da situação política e diplomática do período de 1815, é o objetivo deste trabalho. Palavras-chave: História Platina; Nicolas Herrera, História do Uruguai. 1. Introdução: o político e o diplomata Nascido uma década após José Gervásio Artigas – que viria a ser alçado no maior dos heróis nacionais uruguaios – Nicolas de Herrera ou, tão somente, Nicolas Herrera, constituiu-se, ao longo de sua atuação política e diplomática, como figura de relevo e importância diante dos diversos, constantes e, não menos tumultuados episódios do processo político platino, que veio a culminar com as independências das repúblicas na região: especificamente, a Argentina, em 1816 e, sobretudo, o Uruguai, em 1828. Se o Uruguai de 1764, por um lado, viu nascer Artigas, o “prócer” da Independência uruguaia, a “personificação” historicizada de “los pueblos libres” e de “los orientales”, por outro, em 1775, assistiu a chegada de quem viria a ser, muito mais do que um diplomata ou jurista, um dos principais opositores de Artigas e, sobretudo, de sua política republicana e federalista. Nicolas de Herrera ordenou-se sacerdote ao estudar na Universidade de Chuquisaca, atual departamento de Sucre, na Bolívia. Não desejoso de seguir carreira eclesiástica abandonou a vida religiosa e deu seguimento a seus estudos na Espanha, aonde graduou-se em Direito. De certo, a Espanha e, sobretudo, suas Universidades, ao longo e ao fim do século XVIII, tornaram-se redutos do pensamento liberal que germinava naqueles territórios e

Upload: hadieu

Post on 10-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: DIPLOMACIA CONJUGAL: A POLÍTICA RIOPLATENSE EM … · constituiu-se, ao longo de sua atuação política e diplomática, como figura de relevo e importância diante dos diversos,

1089

DIPLOMACIA CONJUGAL: A POLÍTICA RIOPLATENSE EM 1815 PELAS CARTAS DE NICOLAS HERRERA À SUA ESPOSA CONSOLACIÓN OBES

Fernando ComiranUniversidade Federal do Rio Grande (FURG)

[email protected]

Resumo

Nicolas Herrera foi nome de destaque na política platina na primeira metade do século XIX. Enviado a Europa para dar notícias acerca das invasões inglesas no Prata fora eleito deputado para as cortes de Bayona, mantendo posição fiel a Napoleão. De volta à América do Sul, em maio de 1810 tomou partido pelos revolucionários. Unido ao grupo anti-artiguista, apoiou a invasão portuguesa da Banda Oriental em 1816 e assinou, em dezembro de 1817, a cessão de Montevidéu às ordens de Carlos Federico Lecor. Assumiu papel de destaque na administração portuguesa da Banda Oriental sendo, em seguida, senador junto ao Império do Brasil. Foi chefe de governo da Cisplatina e defendeu os interesses brasileiros diante da tentativa de conquista argentina. Por fim, estudar as cartas de Herrera à sua esposa, que davam conta da situação política e diplomática do período de 1815, é o objetivo deste trabalho.

Palavras-chave: História Platina; Nicolas Herrera, História do Uruguai.

1. Introdução: o político e o diplomataNascido uma década após José Gervásio Artigas – que viria a ser alçado no maior

dos heróis nacionais uruguaios – Nicolas de Herrera ou, tão somente, Nicolas Herrera, constituiu-se, ao longo de sua atuação política e diplomática, como figura de relevo e importância diante dos diversos, constantes e, não menos tumultuados episódios do processo político platino, que veio a culminar com as independências das repúblicas na região: especificamente, a Argentina, em 1816 e, sobretudo, o Uruguai, em 1828.

Se o Uruguai de 1764, por um lado, viu nascer Artigas, o “prócer” da Independência uruguaia, a “personificação” historicizada de “los pueblos libres” e de “los orientales”, por outro, em 1775, assistiu a chegada de quem viria a ser, muito mais do que um diplomata ou jurista, um dos principais opositores de Artigas e, sobretudo, de sua política republicana e federalista.

Nicolas de Herrera ordenou-se sacerdote ao estudar na Universidade de Chuquisaca, atual departamento de Sucre, na Bolívia. Não desejoso de seguir carreira eclesiástica abandonou a vida religiosa e deu seguimento a seus estudos na Espanha, aonde graduou-se em Direito.

De certo, a Espanha e, sobretudo, suas Universidades, ao longo e ao fim do século XVIII, tornaram-se redutos do pensamento liberal que germinava naqueles territórios e

Page 2: DIPLOMACIA CONJUGAL: A POLÍTICA RIOPLATENSE EM … · constituiu-se, ao longo de sua atuação política e diplomática, como figura de relevo e importância diante dos diversos,

1090

que, décadas depois, alvoroçariam as dinastias européias. A Espanha, desde a sua Guerra de Sucessão, que levou os Bourbons ao trono definitivamente em 1714, com Felipe D’Anjou ou Felipe V, teve seus espaços políticos, institucionais e intelectuais tomados por pensadores de corrente de pensamento liberal e, que viriam a ser denominados de afrancesados.

Levar em consideração este período e experiência de vida de Herrera, sem dúvida alguma, é peça fundamental na compreensão de suas tomadas de posição, política e diplomática, a partir de seu regresso, em 1801, para o Rio da Prata como, também, ao longo de sua jornada nos episódios constituintes das independências da região.

Diga-se isso, pois, desde sua chegada ao Prata, suas posturas políticas sempre foram pautadas pelo alinhamento às teses liberais que se avolumavam no cenário político internacional. Como primeiro exemplo de tal questão, Herrera prestou serviços, quando de seu retorno, ao Cabildo de Montevidéu. No ano de 1806, diante das invasões britânicas à Montevidéu e Buenos Aires – em 1805 e 1806 – foi enviado à Espanha com a função de levar informações ao governo metropolitano acerca dos procedimentos militares britânicos no Prata.

Porém, sua tarefa diplomática em nome dos interesses platinos ganhou contornos que, certamente, mudaram seu relevo político e, também, abriram espaço para os primeiros julgamentos acerca de sua conduta política. Nicolas de Herrera estava como representante platino, na corte espanhola, no mesmo período em que Napoleão Bonaparte aprisionava a família real espanhola, em Baiona tomando o trono e cedendo-o a seu irmão José Bonaparte.

No intuito de legitimar o governo de José Bonaparte, Napoleão convocou a formação de um congresso, o qual ficou conhecido com as “Cortes de Baiona”. Neste, Nicolas Herrera tomou assento como representante das províncias espanholas do Prata e, por ser o único destes nascido no continente colonial, acabou assumindo posição estratégica. Não obstante, a bibliografia aponta que Herrera manteve posições de fidelidade política a causa dos Bonaparte – de certo, o afrancesamento de sua formação política contribuiu para seu alinhamento com o Imperador.

Porém, com a Guerra de Independência Espanhola, alavancado pelo movimento Juntista, as “Cortes de Baiona” foram dissolvidas e Herrera regressou à América. Após breve passagem pelo Perú, retornou à Montevidéu, sua cidade natal, de onde acompanhou A Revolução de Maio, em 1810, pela qual tomou partido. Tal fato valeu a sua expulsão da cidade, determinada pelo vice-rei Francisco Javier Elío, que adotou postura de fidelidade, não apenas a Fernando VII mas, sobretudo, ás instituições que vigoravam na Espanha.

Atravessando o Rio da Prata, Herrera se estabeleceu em Buenos Aires, aonde tomou partido do grupo político de Mariano Moreno, participando dos movimentos que

Page 3: DIPLOMACIA CONJUGAL: A POLÍTICA RIOPLATENSE EM … · constituiu-se, ao longo de sua atuação política e diplomática, como figura de relevo e importância diante dos diversos,

1090 1091

derrubaram a chamada “Junta Grande” e, assim, logo em seguida, assumiu o cargo de Secretário da Fazenda do Primeiro Triunvirato. Seria neste momento que Herrera se vincularia diretamente aos projetos políticos de caráter emancipacionista, embora, suas vindouras posturas o afastariam radicalmente das bandeiras federalistas que ousaram tomar conta da campanha oriental.

É crível notar que, aliado ou partidário político de Bernardino Rivadavia, Nicolas de Herrera, se somou ao projeto de formação do que se chamaria de “a grande Argentina”. O que reforça tal questão foi o fato de que, logo após a queda do Primeiro Triunvirato, Herrera tentou, infrutiferamente, por meios diplomáticos – ofício que desempenharia ao longo dos anos seguintes – a incorporação dos territórios paraguaios as Províncias Unidas do Rio da Prata.

Ainda no Primeiro Triunvirato bonaerense, Herrera foi o responsável por negociar com Juan Rademacker, em 1812, o Tratado de Paz que pôs fim a primeira intervenção portuguesa à Banda Oriental, naquela primeira metade do século XIX – ocorrida em 1811, em meio às disputas entre a Junta de Buenos Aires com o Vice-rei Franciso Elío e as pretensões de Carlota Joaquina pela regência espanhola.

Com a dissolução do Segundo Triunvirato e a posterior formação do “Diretório Supremo de Governo” – com grande influência da “Logia Lautaro” – Herrera ganhou maior densidade política, assumindo ministérios e chefiando as ações políticas contra José Artigas. Sem dúvida alguma, seu pensamento liberal, afrancesado, o aproximou do movimento maçônico platino, de fundamental relevância nos processos emancipatórios da região e que exerceu grande interferência, sobretudo, no Diretório Supremo das Províncias Unidas do Rio da Prata.

Em 18 de abril de 1815, com a queda de Carlos Maria de Alvear como Diretor Supremo das Províncias Unidas, Nicolas Herrera foi exilado, juntamente com outros tantos partidários daquele governo, ao Rio de Janeiro. Este período representou uma grande mudança em suas posições políticas. Suas práticas, sempre aliadas ao movimento de formação de um governo centralizado em Buenos Aires, deram espaço a escolhas políticas muito articuladas com o Império Português, fatos que podem ser vistos em sua correspondência diplomática e familiar. Mas, sobretudo, em suas escolhas políticas nos anos seguintes.

Seu tempo de exílio no Rio de Janeiro não foi apenas tempo de espera. Foi também, tempo de política. Articulando-se aos grupos anti-artiguistas, Herrera aproximou-se diplomaticamente do governo português e se tornou partidário e negociador da invasão portuguesa da Banda Oriental ao fim do ano de 1816 – a qual foi responsável pela tomada da capital Montevidéu em 1817.

Após o exílio, seu retorno à Banda Oriental foi coroado com poder e, sobretudo,

Page 4: DIPLOMACIA CONJUGAL: A POLÍTICA RIOPLATENSE EM … · constituiu-se, ao longo de sua atuação política e diplomática, como figura de relevo e importância diante dos diversos,

1092

para a história oficial uruguaia, com polêmica. Se não bastasse sua conduta articulando a invasão portuguesa, Herrera tornou-se responsável, em dezembro de 1817, pelo tratado que reconheceu o poder de Carlos Federico Lecor sobre Montevidéu e, assumiu como secretário particular daquele governante português da Banda Oriental.

Após a Independência do Brasil, em 1822, Nicolas Herrera assumiu o cargo de chefe civil da Província Cisplatina, cumprindo importante papel na defesa daqueles territórios contra as pretensões argentinas.

Com a guerra entre Brasil e Argentina, a partir de 1825, Herrera voltou ao Rio de Janeiro, agora como Senador, de onde assistiu o processo que culminou com a independência, por vias republicanas, da Banda Oriental do Uruguai.

Após apresentar a redação da primeira constituição Uruguaia, Herrera assumiu poderes no governo de Fructuoso Rivera, sendo um dos conselheiros políticos do presidente que, sempre muito ausente, deixou a administração do país nas mãos de uma junta, formada por José Ellauri, Lucas Obes, Juan André Gelly, Julian Alvarez e, por fim, Nicolas de Herrera.

2. As cartas de Nicolás à Consolación ObesComo visto até o presente momento, a trajetória política de Nicolás de Herrera

apresenta variações ao longo de aproximadamente três décadas. Desde sua formação política e intelectual, de perfil “afrancesado”, aos seus serviços ao Cabildo de Montevidéu, passando por sua adesão política aos Bonaparte, quando de missão diplomática na Espanha, seu nome ganhou maior relevo quando da constituição da Direção Suprema de Governo das Províncias Unidas do Prata. Porém, foi em seu exílio, no Rio de Janeiro, que se desenhou a mais relevante de suas manobras ou arquiteturas diplomáticas: liderou o movimento político que contribuiu no convencimento do governo português em empreender uma segunda intervenção militar na Banda Oriental do Uruguai, naquela segunda década do século XIX.

Este exílio, que se estendeu entre os anos de 1815 e 1816, foi período de política, tanto com os portugueses como, também, com seus partidários que haviam permanecido em Montevidéu e Buenos Aires.

Desta forma, Nicolas Herrera manteve correspondência assídua com lideres políticos platinos e, também, com sua esposa, Consolación Obes, que se encontrava em território bonaerense. Estas missivas, entre o diplomata platino e sua consorte, tornaram-se o objeto de motivação para a construção deste apontamento introdutório de estudo.

As cartas de Herrera para Consolación, embora em pequeno número, transmitem um esboço daqueles quase dois anos de exílio forçado no Rio de Janeiro, além, de suas preocupações políticas, familiares e traços de planos de ação. Ademais, trazem consigo

Page 5: DIPLOMACIA CONJUGAL: A POLÍTICA RIOPLATENSE EM … · constituiu-se, ao longo de sua atuação política e diplomática, como figura de relevo e importância diante dos diversos,

1092 1093

uma característica, no mínimo, curiosa: o envio de informações e a solicitação de notícias políticas com sua esposa, com uma mulher. Certamente, além de Herrera, Consolación também mereceria um breve estudo.

Em geral, as cartas de Nicolás para Consolacion, apresentavam muito mais do que doces canduras, testemunhos de preocupação ou, como de fato ocorreu, simples informações sobre os valores de “cafeteras” e outros utensílios do lar.

Na correspondência, foram reiterados os pedidos de Herrera para que Consolación realizasse uma série de tarefas de ordem burocrática e, até mesmo, política, afinal, seu exílio no Rio de Janeiro o deixava distante das manipulações diárias da política rio-platense. Em carta de 21 de agosto de 1815, manifestava preocupação sobre supostas cartas suas ao governo português ou a algum chefe militar, solicitando que Consolacion “las heches al fuego, aunq.e Yo te encargue q.e la entregues/ algun dia sabrás el motivo de esta prevension, q.e reservarás de todos sin excepecion(...)”. (Archivo Artigas, Tomo Trigésimo, p. 20)

Dias antes, em outra correspondência, Nicolas Herrera, solicitava que Consolacion Obes o mantivesse informado da situação política do Prata – pedido que se repetia constantemente em suas cartas. Também, pedia que, com prudência, sua esposa o informasse sobre a segurança que ele e outros exilados teriam caso voltassem à Banda Oriental. (Archivo Artigas, Tomo Trigésimo, p. 18)

A respeito de sua situação jurídica e política junto ao governo de Buenos Aires, em carta de 14 de setembro de 1815, Herrera demostrava preocupação e orientava Consolación Obes que nas “reclamac.s q.e hagas á ese Gov.no no trates de elogiar ni vindicar mi conducta: p.r q.e nada resulta contra mi del proceso, y (especialm.te) en q.e si hé sido expatriado p.r exigirlo el orden y la Seguridad publica como dice la Sent.a (...)”. Assim, pedia prudência e cuidado na condução de seus negócios – sejam políticos ou jurídicos – junto ao governo platino. (Archivo Artigas, Tomo Trigésimo, p. 30)

Como não poderia deixar de ser, as temáticas políticas europeias eram constantes nas cartas. Herrera informava a todo o momento as notícias que chegavam do velho continente. Procurava manter sua esposa e, consequentemente, seus partidários, informados sobre as transformações que se processavam na política internacional, sobretudo, após a derrota final de Bonaparte.

Nesta perspectiva, Herrera informava, em carta de 3 de setembro de 1815 que “yá se acabó la guerra de Europa: Napoleon fue derrotado”. E atento com as consequências que tais notícias poderiam trazer ao Prata, lembrava que “con este vuelbe la España á quedar Sin atenciones, y convierte Sus cuidados á la pacificacion de America”. (Archivo Artigas, Tomo Trigésimo, p. 26-27)

O fim das guerras napoleônicas e, em especial o retorno de Fernando VII ao

Page 6: DIPLOMACIA CONJUGAL: A POLÍTICA RIOPLATENSE EM … · constituiu-se, ao longo de sua atuação política e diplomática, como figura de relevo e importância diante dos diversos,

1094

trono espanhol, foi tema de destaque nos informes europeus repassados de Herrera à Consolación. Isso por que, os olhares espanhóis retornariam à América na tentativa de frear o processo emancipatório. Esse tema, de relevância central nas aspirações de Nicolás, ficou evidente quando comentava, em carta de 16 de agosto de 1815 que “Mucho se asegura la venida de una exped.a formidable p.a esas costas p.r el mes de Oct.e ó Nov.e (...) todos convienen en q.e serán auxiliados p.r ocho mil Portugueses. (Archivo Artigas, Tomo Trigésimo, p. 17-18)

Na mesma missiva, apontava a possibilidade da vinda de 4 mil soldados portugueses para cooperar com a retomada do Prata e, por fim, dava vistas das negociações para o matrimônio de Fernando VII com sua sobrinha, a Infanta Dona Isabel, filha de D. João VI – fato este que assinalava uma nova aliança hispano-lusitana.

Ainda no conteúdo das cartas, Nicolás de Herrera procurou manter sua consorte e familiares tranquilizados em relação a seu estado e segurança. Inclusive, aproveitou este tema para frisar, reiteradas vezes, a proteção qualificada dada pelo governo português a ele e os demais refugiados platinos. Em carta de 14 de setembro de 1815, o político rio-platense informava que “este Principe (q.e es bueno sin limites) nos protege mientras estémos en su territorio, y si llega el caso de ser necesaria nuestra salida, jamas nos entregará, Sino q.e nos señalara tiempo p.a partir de Sus Estados.” (Archivo Artigas, Tomo Trigésimo, p. 29)

É evidente que, o bom tratamento acusado por Herrera e ofertado por Dom João VI não acontecia por acaso, afinal, no exílio, o diplomata montevideano articulava permanentemente uma aliança política com o governo português – o que de fato se materializou no ano seguinte. E os elogios à Dom João, informados a Consolación Obes, se repetiam a cada carta, a cada comentário sobre seu cotidiano no calor da cidade do Rio de Janeiro. Nos informes, mesmo sem novidades, dizia que “ahora podemos vivir tranquilos bajo la proteccion gral. q.e franquea este Gov.no álos Extrangeros”. Governo este, nas palavras de Herrera, “generoso y liberal”. (Archivo Artigas, Tomo Trigésimo, p. 34)

3. Nicolás Herrera e sua atuação política durante o exílioFoi durante seu exílio no Rio de Janeiro, após a destituição de Carlos María de

Alvear como chefe do Diretório Supremo das Províncias Unidas do Rio Prata, que Nicolás de Herrerra remeteu à sua esposa as cartas que são o foco de observação deste trabalho. Assim, para compreender as ações políticas de Herrera é de fundamental importância a contextualização do período que vai, desde a crise em Buenos Aires, que culminou com sua retirada ao Brasil, passando pelo fortalecimento do federalismo artiguista, seu exílio e, por fim, a articulação feita por ele, Herrera, em torno da intervenção lusitana de 1816

Page 7: DIPLOMACIA CONJUGAL: A POLÍTICA RIOPLATENSE EM … · constituiu-se, ao longo de sua atuação política e diplomática, como figura de relevo e importância diante dos diversos,

1094 1095

na Banda Oriental do Uruguai.Em meados do ano de 1814, diante das dificuldades encontradas pelo Governo

bonaerense, em seu Segundo Triunvirato, em conter o avanço federalista, Carlos Maria de Alvear, apoiado pela Logia Lautario – de inspiração maçônica – deu vistas em destituir o Triunvirato e, em seu lugar, instalar um governo unipessoal, que pudesse centralizar as ações políticas e de combate ao movimento de Artigas. O sucesso deste evento político resultou na eleição de um Diretor Supremo, o qual foi Gervasio Antonio de Posadas.

Porém, mesmo com a instalação de uma nova instituição política no Rio da Prata, agora de características mais centralizadoras, o avanço federalista na Banda Oriental, Entre Ríos e Corrientes e, por outro lado, as dificuldades militares encontradas pelas tropas bonaerenses em avançar no Norte e no Alto Perú promoveu grande instabilidade entre a elite política bonaerense. Assim, viu-se o crescimento das oposições e a multiplicação de divisões políticas que isolaram politicamente a Posadas, o qual renunciou em 9 de janeiro de 1815.

Em seu lugar, assumiu Carlos María de Alvear, personagem de características autoritárias e centralizadoras e, que ficaria marcado negativamente no discurso historiográfico platino. Este, além de enfrentar o crescimento do movimento artiguista que se desenhava desde os anos anteriores, também, precisou considerar uma importante transformação no cenário político internacional: o retorno de Fernando VI ao poder. Diante de tal questão, Alvear polemizou ao oferecer as Províncias do Prata como protetorado britânico, isso diante do cada vez maior movimento de Artigas e das negativas platinas de frear o movimento emancipacionista.

Por sua vez, Bernardino Rivadavia e, também, Manuel Belgrano, representantes externos da Províncias do Prata, desaprovaram radicalmente a proposta política de Alvear, que inclusive foi apresentada as lideranças diplomáticas britânicas. Belgrano e Rivadavia, representantes da elite portenha – e, até mesmo de uma elite mais intelectualizada – temendo a tomada federalista da região, inclusive cogitaram a “entronização” de Francisco de Paula, irmão de Fernando VII, como Rei das Províncias Unidas do Rio da Prata. Era uma resposta a proposta de Alvear e uma forma de encontrar uma saída para o avanço artiguista.

Neste período, Nicolás de Herrera, foi partidário de Alvear, o segundo Diretor Supremo, assumindo funções centrais no Governo. A historiografia platina, ao fazer seus julgamentos históricos, inclusive, condena Herrera como controverso, afinal, além de ter feito parte da “camarilla” de Alvear, em seguida, aliou-se ao português Carlos Federico Lecor, o qual efetuou a ocupação da Banda Oriental para, em seguida, administrá-la.

Porém, apesar de seu caráter centralista e unificado, o Diretório Supremo, na liderança de Alvear, não conseguiu dar respostas ao avanço federalista, inclusive

Page 8: DIPLOMACIA CONJUGAL: A POLÍTICA RIOPLATENSE EM … · constituiu-se, ao longo de sua atuação política e diplomática, como figura de relevo e importância diante dos diversos,

1096

fracassando nas tentativas de negociação com Artigas. Em 3 de abril de 1815, ao ordenar uma ofensiva contra as tropas do líder federalista, Ignácio Álvarez Thomas, comandante da operação, se declarou em rebeldia, exigindo a destituição da Assembleia e a renúncia do Diretor Supremo. Tal ato, que ficou conhecido como o “Motim de Fontezuelas”, encontrou terreno fértil em Buenos Aires, fracionada em grupos políticos que se multiplicavam no processo emancipatório da região.

Assim, em 17 de abril de 1815, Alvear se asilou em uma fragata britânica e, seus principais conselheiros de governo, Francisco Javier de Viana e Nicolás Herrera foram presos e julgados pelo novo governo que assumiria o comando político das Províncias Unidas do Rio da Prata. Sobre isso, Lincoln Casas, aponta que ao ser julgado, Herrera foi condenado a pagar uma grande indenização, a qual obrigou Concolación Obes, esposa de Herrera, a vender joias, objetos pessoais e, ficar a beira da mendicância. (CASAS, 2010, p.122)

Este fato foi alvo de comentários e contestações por parte de Herrera em algumas de suas cartas a sua esposa, durante seu exílio no Rio de Janeiro. Em carta de 14 de setembro de 1815, questiona a sentença, argumentando que suas ações não justificariam “el robo de 3000 p.s ganados com mil fatigas, y el único patrim.o de mis hijos, á q.nes seles pone á mendigar”. Nas linhas seguintes, orienta Consolación a questionar tal indenização e, com cautela, exigir imparcialidade no julgamento da Assembleia. (Archivo Artigas, Tomo Trigésimo, p.29-31).

Coube a Nicolás de Herrera e Carlos María de Alvear, juntamente com outras antigas lideranças do Diretório Supremo, se retirarem ao exílio, estabelecendo-se no Rio de Janeiro, sobre proteção do governo português ali instalado. Estes exilados, sobretudo Alvear e Herrera assumiriam, a partir do exílio, grande protagonismo político no processo que ali se inauguraria. Foram eles fundamentais na promoção e colaboração da invasão portuguesa na Banda Oriental, a qual inauguraria a ocupação portuguesa e, posteriormente, brasileira da região – a qual apenas seria finalizada em 1828, com a criação do Uruguai.

Ambos, tanto Alvear quanto Herrera, sediados no Rio de Janeiro, passaram a contribuir de maneira prática ou no convencimento político em torno da invasão lusitana no Prata. Segundo Ana Ribeiro, estes pormenorizaram a situação política das provinciais platinas, seus partidos e tendências, o estado, características e situação das forças militares artiguistas e bonaerenses, enfim, constituíram um mapa acerca do cenário no qual desejavam ver o avanço português. (RIBEIRO,2009 ,p.149)

Certamente, ao promover e entusiasmar o governo português para a invasão da Banda Oriental, os exilados platinos deixavam claro seu novo posicionamento político: a necessidade de um Rei para conter o federalismo, o que julgavam ser uma “anarquia” e, por fim, frear o processo de autogoverno americano, pois, para eles, a América não estava

Page 9: DIPLOMACIA CONJUGAL: A POLÍTICA RIOPLATENSE EM … · constituiu-se, ao longo de sua atuação política e diplomática, como figura de relevo e importância diante dos diversos,

1096 1097

preparada para tal estágio político. Inclusive em carta, durante o exílio, à José Rondeau, Nicolás de Herrera afirmava “q.e la America no puede gobernarse p.r Si misma, le falta edad, y madurez; y jamas estará tranquila mientras no tenga al frente uma persona q.e imponha á los Pueblos p.r la Magestad del Trono.” (Archivo Artigas, Tomo Trigésimo, p. 21-26)

Segundo Ribeiro, para Alvear, muito mais que um projeto político, a interferência junto ao governo português significava uma revanche, um ressentimento trazido consigo para o exílio. Para Herrera, por sua vez, tratava-se de uma convicção ideológica. A historiadora uruguaia, inclusive, discute apontamentos de Herrera os quais possuem forte embasamento em torno da tentativa de convencimento do governo português para tal ação. (RIBEIRO, p.150)

Nicolás Herrera apontava a necessidade de pacificar as Provínciais do Rio da Prata, pois elas, a serem limítrofes ao Brasil, representariam um ameaça aos súditos de Dom João VI. Argumentava que a América espanhola era dividida em castas – brancos, índios, mulatos e negros – e que a força dos costumes, das leis e da religião fazia com que a casta dos brancos ocupassem o mesmo lugar na sociedade que a Nobreza, na Europa.

Seguia Herrera argumentando que o processo emancipatório no Prata ganhou proporções equivocadas, pois, os “crioulos”, lideranças do processo emancipatório, perseguiam os espanhóis, acusando-os de tirania. Já o Partido Espanhol, por sua vez, teria acostumado as castas inferiores a não respeitar seus senhores ou superiores. Herrera, assim, finalizava seu discurso para o governo português mostrando que a convulsão política no Prata não se tratava de uma mera mudança de governo ou dinastia mas, sim, de “um pais limítrofe em Anarquia; de uma poblacion numerosa en Armas (...)” (Archivo Artigas, Tomo Trigésimo, p. 6)

Ana Ribeiro (RIBEIRO, p.152) também aponta que Herrera, em sua tarefa de convencer o governo português em invadir a Banda Oriental, tornou minuciosas as informações militares e políticas da região, além de sugerir qual deveria ser o discurso português dirigido para a Espanha e para Buenos Aires. Este deveria ser no sentido de oferecer uma ação para pacificar a região ao combater um homem, no caso, Artigas, que não oferecia segurança para acordos políticos.

No mesmo sentido, Herrera, em correspondência ao governo português, destacava que o exército lusitano seria recebido positivamente, pois, “marchara entre aclamaciones hasta las murallas de Montevideo”, afinal, se “hablará como Pacificador, q.e no tiene mas objeto q.e libertar al pais de la anarquia (..)” após “cinco años de misérias de devastación, y ruinas”. (Archivo Artigas, Tomo Trigésimo, p. 10-16)

De fato, o trabalho político de Herrera deu resultados. Ele, antigamente republicano, após viver as experiências daquele processo político que apenas se avolumava sem

Page 10: DIPLOMACIA CONJUGAL: A POLÍTICA RIOPLATENSE EM … · constituiu-se, ao longo de sua atuação política e diplomática, como figura de relevo e importância diante dos diversos,

1098

encontrar uma solução, agora adotava um tom crítico ao republicanismo, aderindo a saída Monárquica. Neste sentido em correspondência ao governo português, salientava “q.e las ideas republicanas son absolutamente contrarias a la prosperidade de um Pais inmenso, y educado baxo las formas Monarquicas.”

Assim, após o trabalho de convencimento político empreendido por Nicolás de Herrera e, diante das situações da política internacional que eram constituídas durante e após o Congresso de Viena, o governo português enviou Carlos Federico Lecor à Banda Oriental, dando início a uma ocupação que, somada ao período do Brasil independente, duraria praticamente doze anos.

Por sua vez, Nicolás Herrera, retornaria à Banda Oriental em 1816, ao lado de Lecor, como secretário pessoal e braço direito do comandante português. Herrera assumiria funções estratégicas na construção da rede política que sustentou a administração portuguesa, inclusive, ao promover o acordo em que o Cabildo de Montevidéu aderiu formalmente ao Império português.

4. Considerações FinaisO processo político no qual se definiu a intervenção portuguesa na Banda Oriental

do Rio da Prata, além dos importantes e decisivos condicionantes internacionais, também teve a interferência direta do político montevideano, Nicolás de Herrera. Este, em exílio, processou forte campanha política e diplomática no convencimento e, sobretudo, na formatação da estratégia e do discurso português para justificar tal empreendimento.

Nicolás Herrera, que de certa forma, é esquecido pela historiografia platina – em recente estudo, Ana Ribeiro, reserva em torno de 5 páginas sobre sua atuação – e, em geral, quando mencionado, sempre vem precedido ou sucedido por algum adjetivo negativado. É claro, que sua postura política de aliança e cooperação com a causa portuguesa, na intervenção de 1816, sua colaboração com Carlos María de Alvear, durante os anos do Governo Supremo das Provinciais do Prata e, sua intensa participação na condução do governo português na Banda Oriental, colaboram para que a historiografia oficial o condene ou o ignore.

Porém, revisitar a política platina, na segunda década do século XIX requer olhar para este personagem, afinal, esteve presente nos bastidores e na condução de importantes processos políticos, os quais, por exemplo, o combate ao federalismo de Artigas, o processo das independências no Prata, as intervenções portuguesas, a própria independência do Uruguai e, por fim, seus últimos atos, antes de seu falecimento em 1833, a condução do governo de Fructuoso Rivera.

Por fim, é necessário destacar sua correspondência familiar, no caso, com sua esposa Consolación Obes. Esta assumiu papel importante no intermédio político de Nicolás,

Page 11: DIPLOMACIA CONJUGAL: A POLÍTICA RIOPLATENSE EM … · constituiu-se, ao longo de sua atuação política e diplomática, como figura de relevo e importância diante dos diversos,

1098 1099

exilado no Rio de Janeiro, com seus partidários nas terras platinas. Consolación, sem dúvida, representou um elo entre o a região platina e, indiretamente, a corte portuguesa, justamente quando esta última planejava colocar em prática a ocupação do território da Banda Oriental.

5. BibliografiaABADIE, Washington Reyes. Artigas e el Federalismo em el Rio de la Plata. Tomo 2, V.2. Montevidéu: Ediciones Banda Oriental La República, 1998.ABADIE, Washington Reyes. Artigas e el Federalismo em el Rio de la Plata. Tomo 2, V.1. Montevidéu: Ediciones Banda Oriental La CAMARGO, Fernando. Nova Hipótese sobre a decisão de invasão da banda Oriental do uruguai em 1811: O “fator Torres Vedras”. Anais do XXV Encontro da ANPUH. No Prelo.CASAS, Lincoln R. Maiztegui. Orientales: una historia política del Uruguai – 1.De los Orígenes a 1865. 1° Ed.Buenos Aires: Planeta, 2004.

PIMENTA, João Paulo G. Estado e Nação no Fim dos Impérios Ibéricos no Prata: 1808-1828. São Paulo: Hucitec/FAPESP, 2002.República, 1998.RIBEIRO, Ana. Los Tiempos de Artigas – Tomo I. Montevidéu: Planeta, 2009.RIBEIRO, Ana. Los Tiempos de Artigas – Tomo II. Montevidéu: Planeta, 2009.

6. Fontes ConsultadasARCHIVO ARTIGAS, TOMO TRIGÉSIMO.