diniz filho - ideologias geograficas no estado novo

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 LUIS LOPES DINIZ FILHO TERRITÓRIO E DESTINO NACIONAL AS IDEOLOGIAS GEOGRÁFICAS NO ESTADO NOVO (1937-1945) Editora do Autor 2002

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LUIS LOPES DINIZ FILHO

TERRITRIO E DESTINO NACIONALAS IDEOLOGIAS GEOGRFICAS NO ESTADO NOVO (1937-1945)

Editora do Autor 2002

O Brasil a prova de que geografia no destino Millr Fernandes

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SumrioPrefcio......................................................................................................................4 Introduo..................................................................................................................6 O Estado Novo: modernizao e centralizao.......................................................13 A poltica cultural do Estado Novo: seus aparelhos de propaganda, a funo dos intelectuais e os fundamentos ideolgicos do regime.............................................37 Integrao nacional e centralismo autoritrio.........................................................47 A consolidao da unidade nacional: o intervencionismo do Estado na economia e na cultura.................................................................................................................66 Sociedade e espao: um territrio dual e a conquistar............................................87 Entre o determinismo e o possibilismo: sociedade e espao na construo do destino nacional.....................................................................................................109 Concluso: as relaes entre os discursos do Estado Novo e a formao territorial do Brasil................................................................................................................131 Bibliografia............................................................................................................140

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PrefcioEste livro uma verso atualizada da dissertao de mestrado que defendi junto ao Departamento de Geografia da Universidade de So Paulo, em abril de 1994 1. Desde sua concepo at a redao final, o objetivo almejado foi tentar contribuir com os estudos acerca da sociedade brasileira em duas frentes. No mbito da Geografia, sinalizando uma perspectiva analtica pouco explorada pelos gegrafos, qual seja, a do estudo sobre as ideologias e o papel destas na produo material do espao. No campo mais largo das cincias sociais em geral, chamando a ateno para um aspecto importantssimo de nossa histria (muitas vezes esquecido) que a influncia da formao territorial e dos discursos sobre o territrio dentro das transformaes econmicas, polticas e culturais do pas. Tomando como referncia o regime do Estado Novo, essa temtica foi desenvolvida atravs de quatro eixos bsicos de discusso: a) como o Estado compreendia o problema da unidade nacional do ponto de vista poltico o federalismo, a centralizao do poder e a questo do separatismo; b) as vises do regime sobre o regionalismo em seus aspectos econmicos e culturais, bem como a correlao dessas vises com a questo do federalismo; c) as leituras do regime acerca do territrio nacional, nas quais se destaca uma forma de raciocnio eminentemente dicotmica (rural versus urbano, interior versus litoral) e um forte desiderato de conquista territorial; d) como o regime relacionava os atributos fsicos do territrio com a ideologia do destino nacional. O texto finaliza com uma sntese dessas discusses, na qual se procura avaliar o papel dos discursos sobre o espao no projeto nacional do Estado Novo. Como se v por este breve resumo, tentou-se explorar ao mximo as possibilidades abertas pelo tema, sempre com vistas a alargar os horizontes da anlise geogrfica e evidenciar a importncia dos problemas ligados formao territorial na definio dos rumos do pas. Desse duplo objetivo resulta um trabalho de carter interdisciplinar, que trafega nos limites em que a Geografia toca a Histria, a Sociologia e a Cincia Poltica, sendo que o prprio intuito de indicar caminhos pouco trilhados pela Geografia acadmica contribuiu para acentuar a interdisciplinaridade da abordagem utilizada. Assim, ao invs de privilegiar as obras comummente visitadas pela Geografia, tais como os textos geopolticos ou a prpria produo geogrfica da poca, optou-se por1

DINIZ FILHO, Luis Lopes. Territrio e destino nacional: ideologias geogrficas e polticas territoriais no Estado Novo (1937-1945). So Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, 1994 (dissertao, mestrado em Geografia: Geografia Humana)..

5enfatizar os discursos sobre o territrio produzidos por personagens de outras origens e caractersticas, mas que tiveram influncia central dentro do Estado Novo. Essa escolha permite abarcar um maior nmero de discursos que, direta ou indiretamente, procuraram intervir na produo material do espao e nas formas de valorizao subjetiva dos lugares. Permite tambm oferecer subsdios para o melhor enquadramento das teorias geopolticas e do discurso geogrfico dentro do universo poltico e cultural em que se desenvolveram, tarefa ainda a ser realizada. At chegar sua forma final, o presente trabalho recebeu a contribuio de vrias pessoas. Agradeo assim ao professor Antonio Carlos Robert de Moraes, pela sua criteriosa orientao para o desenvolvimento deste estudo. Aos professores Wanderley Messias da Costa e Maria Tereza Sadek, pelas crticas e sugestes expressas por ocasio do exame de qualificao. Agradeo igualmente s professoras Maria Adlia Aparecida de Souza e Angela Maria de Castro Gomes pelas argies que fizeram quando da realizao da defesa. Gostaria ainda de agradecer ao professor Shiguenoli Myiamoto e ao gegrafo Vagner de Carvalho Bessa pelas discusses que mantivemos sobre o tema das ideologias geogrficas no Brasil. Cabe ainda uma nota de agradecimento ao CNPq, entidade financiadora da pesquisa. Finalmente, cabe notar que este trabalho partiu de uma proposta terica e metodolgica marxista para o estudo das ideologias - mais especificamente, a concepo gramsciana de ideologia como viso de mundo. No momento em que elaborei esta nova verso, porm, eu j havia abandonado o marxismo. Ainda assim, como o uso que fiz do mtodo marxista na dissertao foi muito limitado, e como a desconstruo dos discursos do Estado Novo foi realizada tendo a democracia representativa como modelo, posso dizer que mantenho quase todas as concluses da verso entregue banca de defesa. As poucas passagens que eu mudaria pertencem, na maior parte, ao captulo sobre as polticas territoriais da ditadura Vargas, o qual no consta da presente verso. So Paulo, 02 de Maro de 2002.

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IntroduoA Geografia Cultural provavelmente o ramo de nossa disciplina que mais tem se desenvolvido nas ltimas dcadas, aps um longo perodo de relativo desinteresse. Abstraindo-se as particularidades da Geografia em cada pas, possvel periodizar a histria dos estudos em Geografia Cultural em trs grandes fases. A primeira delas se estendeu aproximadamente de 1890 at 1940, e se caracterizou por uma abordagem centrada nos aspectos materiais da cultura, privilegiando assim o estudo das paisagens culturais e dos gneros de vida. A segunda fase constitui um perodo de relativo desinteresse dos gegrafos por esse ramo da disciplina, estendendo-se de 1940 at 1970. Desse ltimo ano at os dias atuais, assiste-se a uma considervel revalorizao da temtica das relaes entre espao e cultura, ocorrida no bojo de uma importante expanso dos seus horizontes tericos e metodolgicos: a chamada nova Geografia Cultural passa a incluir tambm entre seus objetivos o estudo dos aspectos imateriais da cultura, tais como as variadas formas de percepo espacial, de elaborao de discursos sobre o espao e at de relacionamento afetivo dos homens com seus lugares de vivncia 2. Especificamente sobre o meio acadmico brasileiro, nota-se uma ausncia de tradio no estudo da Geografia Cultural, que s comea a conhecer um desenvolvimento significativo no pas entre o final dos anos 80 e incio dos anos 90. Mas por que os gegrafos brasileiros, aps tantas dcadas de desinteresse, comearam a se lanar ao estudo da Geografia Cultural? Muitas hipteses poderiam ser levantadas para explicar esse tardio despertar da preocupao com a temtica das relaes entre espao e cultura. Um fator que certamente contribuiu para tanto foi a constatao da necessidade de rever as discusses sobre a questo dos determinantes do processo de produo do espao travadas no mbito da Geografia Crtica brasileira, sob a influncia do marxismo 3. Com efeito, j2

Maiores detalhes sobre essa periodizao e os debates tericos e metodolgicos suscitados pelas diversas propostas de anlise em Geografia Cultural podem ser encontrados nos trabalhos da seguinte coletnea: CORRA, Roberto Lobato e ROSENDAHL, Zeny (org.). Manifestaes da cultura no espao. Rio de Janeiro, EdUERJ, 1999. 3 fato notrio que a Geografia Crtica no se resume a uma Geografia Marxista, j que aquela denominao sempre comportou um conjunto de obras metodologicamente ecltico. Mas no h dvida de que, especialmente no Brasil, o marxismo foi a corrente de pensamento majoritria na Geografia Crtica, pois teve grande influncia tambm sobre muitos gegrafos que no procuravam trabalhar com uma Geografia Marxista propriamente dita. DINIZ FILHO, Luis Lopes. Certa M Herana Marxista: Elementos para Repensar a Geografia Crtica. Trabalho Apresentado no I Colquio Nacional de Ps-Graduao em Geografia. Curitiba, 26 a 27 de novembro de 2001. Ver tambm: MOREIRA, Ruy Assim se Passaram Dez Anos (a Renovao da Geografia no Brasil no Perodo 1978-1988). Geografia, Ano II, n. 3, p. 10-25, jun. de 2000, p. 15; CORRA DA SILVA, Armando. A Renovao Geogrfica no Brasil 1976/1983. Boletim Paulista de Geografia, n. 60,

7parece haver certo consenso quanto ao fato de que a forma inicial de equacionamento dessa questo foi muito simplificadora, na medida em que tomou por base uma determinada vertente de anlise marxista caracterizada por ter elaborado uma leitura da obra marxiana profundamente eivada de elementos positivistas. A influncia dessa vertente, cuja origem remonta ao perodo do chamado marxismo da II Internacional, foi bastante abrangente nas cincias sociais e tambm na Geografia, tendo sido responsvel pelo desenvolvimento de uma concepo economicista da histria e dos processos sociais, incluindo o processo de produo do espao4. Contudo, preciso ter o cuidado de no fazer generalizaes indevidas, atribuindo o equvoco do economicismo a um vis analtico inerente a toda tradio do pensamento marxista. Com efeito, o emprego do materialismo histrico dialtico por parte de inmeros pesquisadores no conforma um campo de pensamento homogneo, pois abrange um conjunto de propostas tericas e metodolgicas bastante variadas e freqentemente antagnicas, que coexistem apenas enquanto concordantes com alguns poucos pressupostos bsicos e por uma referncia s obras de Marx e nem mesmo quanto interpretao dessas obras existe acordo entre as vrias correntes marxistas 5. Nesse sentido, cabe chamar ateno para a proposta de anlise em Geografia Cultural apresentada por Antonio Carlos Robert de Moraes, j em meados dos anos 80. Em tal proposta, parte-se de uma leitura da obra marxiana que passa pelas formulaes de autores como Georg Lukcs e Antonio Gramsci, leitura essa que valoriza a historicidade ao se debruar sobre o real e, de certa maneira, a poltica, ao avaliar a sociedade 6. Essa viso enfatiza a capacidade teleolgica do homem, atributo atravs do qual este se afirma como ente singular frente natureza e que constitui a essncia da ontologia do ser social 7. Isso significa que o modo de produo no constitui uma realidade externa prtica dos homens e, em conseqncia disso, que a histria humana no possui qualquer finalidadep. 57-72, 2o Sem. 1983/1o Sem. 1984. 4 O reconhecimento desse vis economicista na Geografia e sua larga influncia nos anos 70 e 80 j se faz notar at mesmo em algumas avaliaes autocrticas. Ver, por exemplo: SLATER, David. Entrevista a Mnica Arroyo. Experimental, Ano III, n. 6, p. 137-144, mar. de 1999. Discusses recentes sobre as influncias do marxismo sobre a Geografia podem ser encontradas em: DINIZ FILHO, L. L. op. cit.; GOMES, Paulo Csar da Costa. Geografia e modernidade. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1996. 5 VRIOS AUTORES. Adeus ao Socialismo?. Novos Estudos, n. 30, p. 7-42, jul. de 1991; HELLER, Agnes. Para mudar a vida. Felicidade, liberdade e democracia. So Paulo, Brasiliense, 1982. 6 MORAES, Antonio Carlos Robert. Historicidade, Conscincia e Construo do Espao: Notas para um Debate. In: VRIOS AUTORES. A construo do espao. So Paulo, Nobel, 1986, p. 14. 7 LUKCS, Georg. As Bases Ontolgicas do Pensamento e da Atividade do Homem. Temas de Cincias Humanas, n. 4, 1978.

8intrnseca, ao contrrio do que sugerem as vertentes economicistas e evolucionistas do marxismo. Significa tambm que a conscincia um atributo do indivduo, inexistindo portanto qualquer tipo de conscincia coletiva, mas to-somente valores sociais que mobilizam os homens em torno de determinados objetivos comuns. Nesse contexto, a subjetividade emerge como fator importante a ser considerado na explicao dos fenmenos sociais, mas as tomadas de deciso individuais no so plenamente indeterminadas, j que sofrem a influncia marcante do universo scio-cultural em que os indivduos se socializam diferentemente do que propem algumas correntes metodolgicas ligadas fenomenologia e ao humanismo. Em suma, as decises individuais so tomadas no bojo de uma relao complexa entre os condicionantes do universo scio-cultural e a liberdade do indivduo, relao essa que no pode ser pensada de forma mecanicista, como no binmio causa-efeito, e nem atravs de uma tica subjetivista extremada, na qual essas decises aparecem como sendo absolutamente independentes de qualquer condicionante material objetivo. Verifica-se assim que essa proposta vai ao encontro de algumas formulaes bastante atuais dentro do debate epistemolgico das cincias humanas e sociais, que nos ltimos anos vm buscando caminhos para superar tanto o cientificismo presente na perspectiva materialista ortodoxa quanto o subjetivismo de determinadas vertentes de anlise ligadas perspectiva humanista. Conforme analisa Paulo Csar da Costa Gomes:(...) o materialismo histrico e o humanismo moderno partem de uma mesma crtica, a recusa da cincia positivista, e podem, sob alguns aspectos, ser considerados como perspectivas complementares. O materialismo histrico redescobriu a reflexividade de toda ao social e, por conseguinte, a importncia de uma anlise que leve em conta o valor e o antropocentrismo da vida social. Ao mesmo tempo, o humanismo se desembaraou do idealismo e do subjetivismo, que caracterizaram as primeiras anlises, e recolocou a importncia da existncia material no centro das interpretaes. Segundo Sayer, por exemplo, as possibilidades de dilogo entre estes dois pontos de vista j eram concebidas h muito tempo pela teoria crtica (Habermas, Giddens). Para realizar este debate, basta superar a subjetividade que confunde dois nveis de interpretao, o social com o individual, e afastar o excesso de cientificismo do materialismo histrico, pois a explicao cientfica, por princpio, no se ope busca do sentido8.

Com esse objetivo em mira, o estudo das ideologias, isto , dos discursos que procuram orientar os valores sociais e os posicionamentos polticos dos indivduos, emerge como uma questo de grande importncia para desvendar os processos histricos concretos. E evidente que, luz dos pressupostos acima delineados, tal estudo deve8

GOMES, Paulo Csar da Costa. Geografia e modernidade. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1996, p. 301-302. Ressalve-se, porm, que essa aproximao entre as duas perspectivas nem sempre tem rendido bons frutos quando se analisa a trajetria recente da Geografia, pois, quando realizada sem uma reviso crtica profunda dos equvocos tericos e metodolgicos do chamado marxismo vulgar, acaba por produzir uma espcie de ecletismo mal conduzido, que mantm intactos alguns dogmas desse tipo de viso marxista sob um discurso que incorpora superficialmente o jargo humanista. DINIZ FILHO, L. L. op. cit.

9partir necessariamente de um conceito de ideologia diferente daquele usualmente trabalhado pelas vertentes marxistas ortodoxas, que pensam a ideologia como uma forma de falsa conscinciada realidade. Esse tipo de concepo pressupe que o sujeito da crtica portador de um ponto de vista cientfico e por isso mesmo inquestionvel da realidade social, sendo portanto capaz de dissolver as formas ilusrias de conhecimento, que seriam justamente as ideologias. Mas, na medida em que se limita a tentar demonstrar o carter ilusrio de certas representaes da realidade, tal crtica termina por no esclarecer os motivos de ter sido produzida, especificamente, esta ou aquela ideologia num dado momento histrico. Parte-se do princpio de que as ideologias existem devido ao desconhecimento da realidade por parte de certas pessoas, que desse modo so suscetveis iluso. Perde-se assim a historicidade das ideologias e incorre-se no equvoco de supor que certas idias so mistificadoras em si mesmas, quando muito mais o contexto histrico em que esto inseridas o que determina seu carter mistificador ou no, ainda que em abstrato possam efetivamente ter esse carter. Diante das limitaes da concepo de ideologia como falsa conscincia, faz-se necessrio tomar como ponto de partida o conceito de ideologia como viso de mundo 9, isto , como substncia histrica, dotada de positividade, mas no a positividade de uma mentalidade apenas, e sim como inscrita na praxis. Tal concepo coloca como objetivo central da crtica o de compreender a fora histrica das diferentes ideologias, sua necessidade, sua permanncia e as condies de sua transformao 10. Em conseqncia, a anlise deixa de situar-se exclusivamente no contexto discursivo que veicula a ideologia estudada como ocorre no conceito de ideologia como falsa conscincia , e se volta para a esfera da luta ideolgica, ou seja, para o universo das relaes entre ideologia, poltica e cultura. Nesse contexto, o objetivo deste estudo , seguindo a perspectiva de anlise das ideologias como vises de mundo, demonstrar o importante papel que certas interpretaes sobre o territrio brasileiro e sua diversidade regional exerceram na definio dos discursos nacionalistas e regionalistas difundidos pelo regime do Estado Novo. Nesse sentido, o objeto de estudo proposto o espao enquanto dado cultural, ou

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Segundo Jos Carlos Bruni, possvel, ainda que incorrendo nos riscos inerentes a todos os esforos de classificao de vertentes tericas muito variadas, agrupar as muitas concepes de ideologia existentes em dois grandes conjuntos, quais sejam: o dos trabalhos que definem a ideologia como produo de discursos ilusrios e o daqueles que a concebem como uma viso de mundo. BRUNI, Jos Carlos. Ideologia e Cultura. Universidade de So Paulo, nov. de 1980, mimeo. 10 Ibidem, p. 14.

10seja, as representaes do espao, tanto fsico quanto humano, bem como da relao sociedade/espao. Todavia, preciso ressalvar que a elaborao de representaes sobre o espao, bem como a veiculao destas atravs de discursos, no monoplio da Geografia acadmica. Todas as sociedades e grupos sociais produzem seus discursos sobre o espao, em qualquer poca e em todos os campos da cultura. Assim, a Geografia nada mais do que um discurso constitudo historicamente, institucionalizado e caracterizado por um determinado tipo de sistematizao e coerncia. Alis, o prprio contedo atribudo ao rtulo Geografia varia ao longo do tempo, bem como entre autores de uma mesma poca e lugar. Desse modo, fica claro que considerar como geogrficos somente os discursos que se rotulam como tais impede que se abranja todo o imenso campo cultural em que estes discursos aparecem, constituindo um formalismo estreito. Para evitar tal problema, torna-se til recorrer ao conceito de pensamento geogrfico, o qual, partindo de uma concepo contempornea da Geografia e do temrio geogrfico, permite rastrear e unificar estes discursos dispersos no campo cultural. Desse modo, resguarda-se a fidelidade ao real, pois o pensamento geogrfico se refere ao conjunto de seres e processos sob os quais se exercitam os saberes sobre o espao, contrapondo-se assim ao formalismo, que se refere apenas tradio 11. E note-se que esses saberes sobre o espao, manifestando-se em todos os campos da cultura, esto constantemente gestando e difundindo certas vises e valores sobre o espao produzido e apropriado por uma sociedade ou grupo social num dado momento histrico. Dentro desse processo, algumas vises e valores tendem a se sedimentar, se tornar hegemnicas, entrando assim para o reino das representaes e valores coletivos. E, levando-se em conta que as imagens, representaes e projetos a respeito do espao so, alm de elementos culturais, veculos de poder12, conclui-se que esse processo se realiza sempre no mbito das relaes entre poltica e cultura. Assim, os discursos que procuram orientar a construo do espao e os valores coletivos acerca dos lugares devem ser priorizados na anlise, de tal maneira que a estes discursos mais orgnicos (no sentido Gramsciano) poder-se-ia denominar de ideologias geogrficas13. Ao delimitar aquele campo do pensamento geogrfico em que os discursos abordam mais diretamente o espao e as relaes sociedade/espao, o conceito de11

MORAES, Antonio Carlos Robert. Ideologias geogrficas: espao, cultura e poltica no Brasil. So Paulo, Hucitec, 1988. 12 Como se pode verificar pelas formulaes do pensamento geopoltico ou pela obra de Michel Foucault, por exemplo. 13 MORAES, A. C. R. Ideologias geogrficas (...). op. cit., p. 16 (grifo do autor).

11ideologias geogrficas permite avaliar o modo como esses discursos legitimam as formas de interveno do Estado sobre o territrio mediante a formulao e execuo de suas polticas territoriais14 , bem como diferentes projetos polticos, veiculando assim interesses e favorecendo o estabelecimento de alianas entre classes sociais e/ou foras polticas diversas. Isso aponta para as contribuies que a anlise crtica das ideologias geogrficas pode trazer para a compreenso do processo de desenvolvimento de uma dada formao nacional. Tal perspectiva permite compreender como as concepes do espao atuam na construo material do espao num dado pas, e como atuam na prpria representao do pas15. Abre-se assim um importante campo de estudo, at agora no muito explorado. Tal perspectiva tem importncia mpar para pases de capitalismo tardio, sobretudo no caso brasileiro. A histria do Brasil, sendo este um pas que se constituiu no e pelo processo de mundializao do capitalismo, foi e ainda um contnuo processo de expanso territorial. Frente a esse fato, verifica-se que a formao econmico-social brasileira foi profundamente marcada pelos atributos do espao que ia sendo ocupado. A abundncia de terras disponveis para o cultivo dificultou em muito o estabelecimento de um modelo de acumulao baseado num regime de trabalho livre, levando os colonizadores instituio do trabalho escravo como alternativa ao assalariamento. A ampliao constante do territrio, associada ao carter violento assumido pelas relaes sociais num pas marcado pelo escravismo, tornam a idia de territrio a conquistar uma das mais caractersticas do perfil ideolgico das elites e da prpria ao do Estado brasileiro. Mencione-se ainda o regionalismo, tipo de ideologia geogrfica bastante forte no Brasil em funo de estar associada ao clientelismo, forma de sociabilidade fundadora da identidade entre os homens livres que operava dentro de uma lgica eminentemente provinciana. Isto especialmente significativo se for levado em conta que o regionalismo guardou sua eficcia mesmo aps o fim do perodo escravista, em grande parte graas sobrevivncia do clientelismo16. O sucesso dessas ideologias geogrficas na histria do pas ainda favorecido pela problematicidade da chamada identidade nacional brasileira. Um autor que alerta14

Por polticas territoriais pode-se entender (...) uma ao estatal que comporte um programa ou plano de governo bem definido, de forma a alcanar um maior controle da realidade scio-espacial do pas. E qualquer atividade estatal que implique, simultaneamente, numa dada concepo de espaos nacionais, uma estratgia de interveno ao nvel da estrutura territorial e mecanismos concretos que viabilizem estas polticas. PENHA, Eli Alves. A criao do IBGE no contexto de centralizao poltica do Estado Novo. Dissertao de Mestrado, UFRJ, 1992, p. 9. 15 MORAES, A. C. R. Ideologias geogrficas (...). op. cit., p. 33. 16 Ibidem, p. 93-108.

12para essa questo, Darcy Ribeiro, indica o Brasil como exemplo de Povos Novos, isto , de povos resultantes de processos de conjuno, deculturao e caldeamento de matrizes tnicas muito dspares, como a indgena, a africana e a europia, representando assim naes desprovidas de tradies culturais. Por seu turno, Marlyse Meyer destaca que a questo da identidade brasileira sempre foi problemtica, aparecendo recorrentemente em perodos de ruptura poltica e transformao da base econmica. Finalmente, Lcia Lippi de Oliveira destaca que o desconforto das elites brasileiras em relao ao seu passado favorece a construo de certas imagens de nao referenciadas natureza local, e no histria do pas17. Sendo difcil constituir uma identidade nacional assentada em aspectos culturais e histricos, as vrias formas de identidade pelo espao (expressas na idia de conquista territorial, no regionalismo ou na contemplao da natureza) procuram suprir essa lacuna, veiculando interesses e almejando formar uma base consensual para diferentes projetos polticos. Em vista disso, verifica-se que o trabalho de avaliar a eficcia poltica das ideologias geogrficas, bem como o papel que desempenharam dentro do processo de construo do espao brasileiro, exige um estudo cuidadoso do contexto histrico no qual elas so geradas e difundidas. O prximo passo deve ser, portanto, apresentar um quadro geral dos processos histricos que marcaram o perodo do Estado Novo.

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Ver: RIBEIRO, Darcy. Teoria do Brasil. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1975, Livro 1; MEYER, Marlyse. A descoberta do Brasil: o eterno retorno. Cadernos CERU, n. 13, 1980; OLIVEIRA, Lcia Lippi de. Modernidade e Questo Nacional Lua Nova, n. 20, p. 41-68, 1990.

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O Estado Novo: modernizao e centralizaoO perodo 1937-1945, conhecido como Estado Novo, dotado de certas singularidades que lhe conferem identidade prpria dentro da histria do pas. Ao mesmo tempo, porm, esse perodo se insere num conjunto de transformaes que vinham ocorrendo desde o final do sculo passado, e que delinearam algumas das caractersticas bsicas da sociedade brasileira contempornea. O ponto inicial desta exposio deve se situar, portanto, no processo de desenvolvimento e complexizao por que passou a economia brasileira a partir das ltimas dcadas do sculo XIX. Embora o padro de acumulao vigente nessa poca estivesse assentado na economia agro-exportadora, ainda assim havia margem para a implantao de algumas indstrias (em sua maioria, de bens no-durveis) nas diversas regies do pas. Contudo, foi a partir da diversificao do capital cafeeiro que se deu incio, no Brasil, a um processo de plena implantao do capitalismo, que terminou por constituir uma sociedade urbana de massas e um modelo de acumulao nucleado pelo capital industrial. Dentre os vrios plos agro-exportadores, o do caf foi o nico que logrou constituir um esquema de reproduo ampliada do capital, que consistiu na diviso do capital cafeeiro em diversos segmentos, correspondentes, cada um deles, a uma frao especfica da burguesia paulista, dotadas de interesses tambm especficos. Assim, enquanto no segmento produtivo predominava a concorrncia entre pequenos e mdios capitais, nos segmentos mercantil e financeiro predominava o chamado grande capital cafeeiro. Isto, somado capacidade daqueles segmentos de ditar as condies de financiamento e os preos ao produtor (atravs do controle de estoques), conferiam a eles uma posio de dominncia em relao ao capital produtivo e s demais formas de capital que ento surgiram. Assistiu-se, pois, conformao simultnea de um setor de prestao de servios, de transportes, um setor agrcola voltado para a produo de alimentos e, finalmente, um setor industrial igualmente voltado para as demandas de consumo popular. O setor industrial se articulava ento economia cafeeira na medida em que representava uma alternativa de investimentos e ajudava a garantir a reproduo da fora de trabalho, no conseguindo, porm, atingir uma diferenciao interna e uma escala que lhe permitissem dominar o processo de reproduo ampliada do capital. Esse setor permanecia, juntamente com os demais, numa relao de dependncia para com o setor mercantil-exportador18.18

MELLO, Joo Manuel Cardoso de. O Capitalismo Tardio. So Paulo, Brasiliense, 1982.

14Se de 1888 at o final da dcada de 1920 assistimos ao nascimento e consolidao do capital industrial, a partir da o Brasil ingressa na segunda etapa de seu processo de transio capitalista19, a etapa da industrializao restringida. Esta se caracteriza pela vigncia de um novo padro de acumulao, cuja dinmica se assenta na expanso industrial e que consiste de amplo desenvolvimento em determinados setores da indstria, j que no atinge o setor de bens de capital (a no ser quanto a alguns produtos), permanecendo restrito faixa dos bens de consumo corrente e alguns bens de consumo durveis leves. Segundo Joo Manuel Cardoso de Mello, o carter restrito assumido pela industrializao brasileira nessa etapa (entre 1933 e 1955) teve como causa a insuficincia de bases tcnicas e financeiras de acumulao frente ao desafio de se implantar de um golpe o ncleo da indstria de bens de produo, atravs do qual seria possvel uma industrializao rpida e auto-sustentada, ou seja, no subordinada demanda20. Mas, se mesmo assim houve industrializao, porque foi possvel manter as taxas de lucratividade do capital industrial em nveis elevados, o que resultou, fundamentalmente, de dois fatores: da natureza pouco competitiva do sistema industrial, em condies de alto grau de proteo, e do comportamento dos custos real e monetrio da fora de trabalho, que deveriam se manter abaixo dos ganhos de produtividade decorrentes da modernizao tcnica21. Alm disso, seria necessrio um desenvolvimento significativo dos equipamentos de infra-estrutura existentes, sobretudo no que diz respeito aos setores de energia e transportes. O desenvolvimento da malha viria, em particular, possua importncia vital para a expanso da indstria, na medida em que a produo industrial se dirigia para o19

bom deixar claro que ao falar em transio capitalista no estamos nos referindo passagem de um modo de produo pr-capitalista ou feudal para um modo de produo capitalista. Uma vez que trabalhamos com o conceito de capitalismo tardio, aquele termo est sendo utilizado apenas para indicar a passagem de uma economia capitalista de tipo primrio-exportador para outra de tipo industrial-urbano, assinalando, assim, o momento decisivo da constituio, no Brasil, das bases materiais sobre as quais se assentam as sociedades capitalistas por excelncia. Sobre o conceito de capitalismo tardio e a discusso sobre a possibilidade de um perodo feudal na histria brasileira, ver: MELLO, J. M. C. As Razes do Capitalismo Retardatrio. In: Mesmo Autor, O capitalismo tardio. op. cit., principalmente, p. 30-45. 20 Ibidem, p. 108-110. 21 Ibidem, p. 113. preciso frisar que existe uma diferena entre industrializao e crescimento industrial. Crescimento industrial significa um simples aumento do nmero de unidades produtivas, que por isso no leva substituio de um modelo de acumulao por outro. Industrializao, por sua vez, significa um processo de redefinio das condies de acumulao que termina por fazer da empresa industrial a unidade mais rentvel do sistema econmico. Trata-se, pois, da passagem para um novo modelo de acumulao, de tipo industrial-urbano. essa diferena que justifica pensar o perodo posterior crise dos anos 1929-33 como uma nova fase dentro do processo de industrializao brasileira. Ibidem, p. 91.

15mercado interno, cujo alargamento dependia da interligao dos mercados locais e regionais. Conforme demonstrou Wilson Cano, a crise de 1929 e sua recuperao, ao provocar um processo de industrializao concentrado principalmente no estado de So Paulo, efetivou a constituio de um mercado nacional, graas complementaridade econmica que estabeleceu entre esse estado (o centro dinmico da economia nacional) e as demais regies do pas (a periferia nacional), e da a necessidade de um sistema de transportes capaz de interligar todas as regies 22. Nestas condies, o processo de industrializao restringida no poderia realizarse sem uma profunda interveno do Estado na economia, orientada no sentido de: a) implementar uma poltica protecionista capaz de livrar a indstria nacional da concorrncia estrangeira; b) exercer forte controle dos salrios e da classe trabalhadora, impedindo assim o fortalecimento do seu poder de barganha; c) realizar investimentos na infra-estrutura de energia e transportes. A importncia que o Estado assume nesta etapa decisiva da constituio do capitalismo brasileiro revela uma das especificidades da forma pela qual este processo se d no Brasil: aqui, ao contrrio do que ocorreu em outros pases, o Estado foi um dos principais agentes da industrializao, tendo se constitudo efetivamente como um Estado capitalista e burgus no decorrer desse processo. Concretamente falando, isso se traduziu num movimento de expanso, centralizao e racionalizao do arcabouo institucional do Estado, o qual j se esboava durante a Primeira Repblica, mas que se efetivou realmente a partir de 1930. Em seu aspecto centralizador, tal movimento consistiu da concentrao progressiva dos comandos sobre as polticas econmica e social, bem como da disposio sobre os meios repressivos e coercitivos, na esfera do Executivo federal. Ao mesmo tempo, a ampliao e racionalizao do aparato estatal consubstanciou a estruturao do Estado enquanto aparelho burocrtico e de planejamento, capacitando-o a exercer funes de interveno e regulao econmicas 23.22

A crise de 1929 e sua recuperao provocariam o deslocamento do eixo dinmico da acumulao, do setor agro-exportador para o industrial. Desarticulado o comrcio exterior, isto causaria forte reverso no abastecimento interno: as restries s importaes forariam a periferia nacional a importar, agora, produtos manufaturados de So Paulo; este, por sua vez, deveria, crescentemente, importar mais matrias-primas e alimentos de outros estados. Passava-se, portanto, a integrar o mercado nacional sob o predomnio de So Paulo. CANO, Wilson. Desequilbrio regionais e concentrao industrial no Brasil: 1930-1970. So Paulo, Global; Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 1985, p. 62. 23 DRAIBE, Snia Mriam. Rumos e Metamorfoses: um estudo sobre a constituio do Estado e as alternativas de industrializao no Brasil, 1930-1960. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985, p. 60 e 72. Note-se que, embora essa autora fixe em 1930 o momento em que se inicia verdadeiramente o processo de estruturao do Estado brasileiro, alguns autores afirmam que a centralizao do poder era uma tendncia j em curso na Repblica Velha. Ver: FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formao do patronato poltico brasileiro. 2a ed. rev. e aum. Porto Alegre, Globo; So Paulo,

16Mas, se a constituio de uma economia de tipo urbano-industrial e de um Estado capitalista burgus so componentes fundamentais da consolidao do capitalismo, h tambm que destacar um terceiro processo de importncia central aqui: o de formao e expresso das classes fundamentais do capitalismo, ocorrido na esteira da prpria modernizao e diversificao da economia brasileira. Ainda durante a Primeira Repblica, o pas assistiu a significativa complexizao de sua estrutura social, com a emergncia e fortalecimento de setores sociais at ento pouco expressivos: o proletariado (em sua maioria composto por imigrantes), as chamadas classes mdias urbanas e, finalmente, a burguesia industrial. Essas transformaes na estrutura scio-econmica serviram ainda como fermento para a elaborao de novas formas de pensar a realidade nacional, levando assim a maior diversificao ideolgica. A emergncia dessas novas classes, num ambiente cultural tencionado por diferentes projetos nacionais, cedo produziu uma redefinio do quadro poltico da poca. Os setores da alta classe mdia, composta por membros da antiga aristocracia em processo de destituio, bem como pelas categorias profissionais ligadas direta ou indiretamente economia cafeeira, mantiveram-se numa postura elitista e consonante com a das oligarquias rurais. J os setores da baixa classe mdia comearam a contestar o domnio poltico dessas oligarquias, reivindicando maiores liberdades polticas, mas sem estabelecer alianas significativas com o operariado e nem formas organizatrias expressivas. O proletariado, entrando em contato com as idias anarquistas e socialistas trazidas pelos imigrantes europeus, tornou-se progressivamente mais reivindicador, mas tambm no foi capaz de constituir um movimento poltico organizado, que pudesse atrair a colaborao da baixa classe mdia, ou lograsse ameaar efetivamente a dominao e o poder burgus 24. Por fim, a burguesia industrial, como nova frao da classe dominante brasileira, passou a exigir maior participao junto aos centros de deciso poltica, a fim de fazer valer seus interesses econmicos de forma mais eficaz. Mais complexa, a sociedade do perodo assistiu ainda ecloso de demandas no diretamente ligadas aos interesses das classes sociais, bem como gestao de novas formas de pensar a realidade nacional. A revolta dos escales intermedirios do exrcito contra as oligarquias tradicionais, aliado a suas exigncias de reestruturao das Foras Armadas, levou formao do chamado tenentismo. Embora o perfil ideolgico do movimento fosse marcado pelo elitismo e por um ideal salvacionista (o que impedia umEDUSP, 1975, v. 2, p. 603-614; OLIVEIRA, Maria Lucia de. A Tendncia Centralizao e o Fenmeno do Autoritarismo no Brasil. Dados, n. 13, 1977. 24 FAUSTO, Bris. Pequenos ensaios de histria da Repblica: 1889-1945. So Paulo, CEBRAP, 1972 (Coleo Cadernos, 10).

17vnculo significativo entre ele e as lideranas civis) seus ataques contra as elites agrrias garantiram-lhe a simpatia popular, bem como um apoio difuso por parte da classe mdia e do operariado. A par de suas reivindicaes corporativas, as principais bandeiras do tenentismo incluam a centralizao do poder do Estado, a uniformizao legislativa de acordo com o modelo federal e algumas reformas sociais brandas, como a implantao do salrio mnimo e do salrio famlia, entre outras 25. No que diz respeito cultura, nota-se que ainda na passagem do sculo a imagem do Brasil como pas essencialmente agrcola (at ento hegemnica) comeou a ser contraposta a um discurso que valorizava o dinamismo urbano em detrimento de uma sociedade agrria atrasada material e espiritualmente. Esse dualismo na maneira de representar as relaes entre campo e cidade expressava o desejo de alguns intelectuais em ver a sociedade patriarcal do Imprio ser totalmente substituda por um mundo burgus e liberal que comeava a emergir no ambiente cosmopolita das grandes cidades, sobretudo no Rio de Janeiro. So eles intelectuais engajados, que enxergam a literatura como instrumento de luta por um projeto nacional voltado para a atualizao do pas frente ao mundo desenvolvido26. Mais tarde, sob o influxo das influncias estticas estrangeiras, assistiu-se ainda a um vigoroso surto de inovaes artsticas e culturais, expresso no movimento modernista. Caracterstico do meio urbano, e particularmente forte na cidade de So Paulo, o modernismo fazia o elogio da tcnica e do progresso, expressos na massificao do rdio, do automvel e de outras invenes. Mas esse elogio teria um carter at certo ponto artificial, j que a fragilidade do impulso industrializante levaria os intelectuais a vivenciar um modernismo sem modernizao. Em vista disso:No por acaso que o modernismo, j a partir de 1924, se identifica com a questo nacional (em suas diferentes vertentes, claro), pois se tratava de construir uma nao, que de fato pudesse ser contraposta a um passado agrrio e tradicional27.25

Ibidem, p. 22-33. A origem social dos tenentes era bastante heterognea, mas contava com grande participao de indivduos provenientes da pequena burguesia. Apesar disso, o tenentismo no deve ser apontado como um representante das classes mdias, j que seu elitismo o afastava das lideranas civis. Alm disso, deve-se considerar que o exrcito uma instituio que ressocializa seus membros, ganhando certa autonomia em relao sociedade. FAUSTO, Bris. A revoluo de 1930: historiografia e histria. 11a ed. So Paulo, Brasiliense, 1987, p. 57-63. 26 (...) mais que nunca, agora se abusaria da oposio cidade industriosa-campo indolente, como se pode verificar facilmente nas obras de Euclides da Cunha, Graa Aranha e na figura smbolo do Jeca Tatu de Monteiro Lobato. nesse momento que se registra na conscincia intelectual a idia do desmembramento da comunidade brasileira em duas sociedades antagnicas e dessintonizadas, devendo uma inevitavelmente prevalecer sobre a outra, ou encontrarem um ponto de ajustamento. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Misso: tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica. So Paulo, Brasiliense, 1983, p. 32. 27 ORTIZ, Renato. Advento da Modernidade ?. Lua Nova, n. 20, maio de 1990, p. 20.

18Isso, porm, no significa que todos os integrantes do movimento fossem liberais e industrialistas. Os intelectuais dos anos 20, modernistas ou no, engajaram-se numa srie de movimentos estticos e polticos, que vieram defender diversos e antagnicos projetos de construo nacional: alguns arraigados viso da economia agro-exportadora como fator de progresso, outros influenciados pelo liberalismo e por uma identificao com o mundo urbano-industrial, e outros, ainda, preconizadores de um caminho autoritrio para a industrializao. Embora as novas foras sociais e polticas em cena, alimentadas por diferentes projetos nacionais, no representassem uma ameaa de ruptura da ordem capitalista, as presses geradas a partir das mudanas em curso foram suficientes para pr em xeque a forma de relacionamento entre Estado e sociedade vigente at 1930. fato notrio que o sistema eleitoral montado durante a Repblica Velha produzia uma representatividade fictcia das camadas populares junto ao Estado, tal era a estreiteza do universo de votantes e a eficincia das estratgias de cooptao do eleitorado e manipulao dos resultados dos pleitos. Na base desse sistema estavam os lderes locais, ou coronis, a exercer influncia decisiva sobre o eleitorado rural, que era amplamente majoritrio. Essa fora eleitoral dos coronis residia na distribuio de favores entre os colonos, parceiros e pequenos sitiantes, tais como: arranjar empregos pblicos, emprestar dinheiro, avalizar ttulos, contratar advogado, batizar filho, apadrinhar casamentos, entre muitos outros 28. Num nvel mais alto, estavam os grupos oligrquicos com controle direto sobre os governos dos estados, mediante os quais subordinavam as prefeituras dos municpios e, conseqentemente, tambm os detentores do poder local. Esse domnio tambm se fazia atravs de uma teia de influncias e trocas de favores, da qual participavam todos os nveis do poder do Estado. Como coloca Victor Nunes Leal:(...) aspecto importantssimo do coronelismo era a reciprocidade: de um lado, os chefes municipais e os coronis, que conduzem magotes de eleitores (...); de outro lado, a situao poltica dominante no Estado, que dispe do errio, dos empregos, dos favores e da fora policial (...)29.

28

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo enxada e voto (o municpio e o regime representativo no Brasil). So Paulo, Alfa-mega, 1975, p. 38. Embora as relaes de favor sejam unanimemente reconhecidas como a base do poder coronelista, existem controvrsias sobre a natureza desse fenmeno. Para Leal, o coronelismo representava uma forma de privatizao da esfera pblica, j que os fazendeiros buscariam contrabalanar a decadncia de sua atividade econmica inserindo-se no aparelho de Estado. Ibidem, p. 20. J Raimundo Faoro defende que os coronis expressavam uma forma peculiar de delegao do poder pblico no campo privado, a qual corporifica aspecto de domnio no burocrtico da sociedade. FAORO, R. Os donos do poder: formao do patronato poltico brasileiro, op. cit., v. 2, p. 631. 29 LEAL, V. N. op. cit., p. 38.

19Tambm o poder federal participava desse jogo, pois mantinha uma poltica de compromisso com o poder estadual, estendendo aos chefes municipais o direito de nomear pessoas para cargos federais que atuavam no municpio 30. A base desse compromisso era a fragilidade da Unio em face da ampla descentralizao do poder do Estado e do controle dos chefes regionais e locais sobre o eleitorado 31. O poder central tornava-se assim alvo de acirradas disputas entre as vrias oligarquias estaduais, que se valiam de expedientes os mais diversos (na maioria fraudulentos), para resolver a questo sucessria em proveito de seus respectivos candidatos. Lentamente, porm, a expanso do contingente populacional urbano, trazendo a ascenso do operariado e das classes mdias, comeou a colocar faixas cada vez maiores do eleitorado fora do alcance da poltica coronelista, despertando a reao daqueles setores contra sua excluso do poder32. Ao mesmo tempo, movimentos grevistas expressivos, como os ocorridos entre os anos de 1917 e 1920, criaram uma ordem de problemas at ento jamais enfrentados. Todas essas mudanas acarretaram a potencializao e complexizao das disputas polticas, tradicionalmente instveis em funo das lutas entre as oligarquias regionais. no bojo desse processo de reestruturao da sociedade e conseqente acirramento das lutas polticas que ocorre a chamada Revoluo de 30, que constituiu um grande marco dentro do processo de enfraquecimento do poder oligrquico, no qual um amplo e heterogneo conjunto de foras assumiu o comando do Estado, garantindo o atendimento de algumas demandas das classes emergentes, sem contudo alijar as elites30

Ibidem, p. 43-44. Ressalve-se que existem divergncias a esse respeito. Maria I. P. de Queiroz, invertendo a tese de Leal, sustenta que as lutas travadas pelo domnio do municpio tinham como resultado o apoio do governo estadual ao vencedor e conseqentemente ocupao de cargos pblicos por seus amigos. Somente atravs desse apoio a situao estadual se mantinha, dado o controle dos coronis sobre o eleitorado. QUEIROZ, Maria I. P. O mandonismo local na vida poltica brasileira e outros ensaios. So Paulo, Alfa-mega, 1976 (Srie Sociologia, 5), p. 121. Mas Queiroz confere pouca importncia ao fato de que os chefes locais esforavam-se quase sempre para manter posio favorvel situao estadual, e isso mesmo durante as campanhas eleitorais. Leal e Faoro, por sua vez, enfatizam esse governismo dos coronis como prova da dependncia destes em relao ao governo estadual. Ademais, a maioria dos exemplos citados por Queiroz so relativos ao Cear, onde a autonomia dos coronis superava a dos outros estados. Talvez seja mais correto dizer, como Raimundo Faoro, que as oligarquias estaduais dominavam o poder local, mas que este domnio variava regionalmente. No caso gacho, a autonomia dos coronis era quase nula, dando-se o inverso no caso cearense. FAORO, R. Os donos do poder: formao do patronato poltico brasileiro, op. cit., p. 630 e 646. 31 A tese de que o Estado pr-30 se caracterizou por ampla descentralizao do poder bastante tradicional no mbito da historiografia brasileira e continua amplamente dominante dentro da bibliografia recente sobre o perodo. Ver: FAUSTO, Bris. Estado e Burguesia Agroexportadora na Primeira Repblica: uma Reviso Historiogrfica. Novos Estudos, n. 27, 1990, p. 124. 32 QUEIROZ, M. I. P. O mandonismo local na vida poltica brasileira e outros ensaios, op. cit., p. 201-205.

20tradicionais do poder. Com efeito, encontraram-se na Aliana Liberal (faco vitoriosa liderada por Getulio Vargas) um espectro de foras polticas que englobava os Partidos Republicanos da Paraba e do Rio Grande do Sul, representando o descontentamento das oligarquias desses estados com a poltica econmica at ento praticada; o Partido Republicano de Minas Gerais, expressando a reao da oligarquia mineira frente intransigncia dos republicanos paulistas em manter a candidatura de Jlio Prestes sucesso de Washington Lus; o Partido Democrtico, que se compunha de uma aliana entre as classes mdias e alguns setores da oligarquia de So Paulo que faziam oposio ao Partido Republicano Paulista; os tenentes, com suas propostas de reforma institucional; e, finalmente, parte da cpula militar, a qual s aderiu quando a luta j estava se definindo em favor da Aliana Liberal e com o ntido propsito de funcionar como poder substitutivo e moderador33. Um dos efeitos mais notveis da Revoluo de 1930, com profundas conseqncias para a cultura e a poltica nos anos que se seguiram, foi um expressivo movimento de unificao cultural, projetando na escala da nao fatos que antes ocorriam no limitado mbito das regies. A isso somou-se tambm o surgimento de condies para a generalizao das experincias e inovaes culturais que, desde os anos 20, agitavam o cenrio artstico e intelectual 34. Isso quer dizer que, embora a produo e o consumo de bens culturais tenham continuado muito restritos naqueles anos, verificou-se um alargamento sensvel das oportunidades de criao e acesso cultura, bem como do nmero de pessoas que participavam desse novo campo de oportunidades. Isso visvel em vrias esferas da cultura na poca, a saber: Na educao, as tentativas regionalizadas de reforma do ensino foram substitudas pelo esforo do Ministrio da Educao e Sade para modernizar os mtodos pedaggicos e constituir um sistema nacional de ensino. Embora esse sistema no tenha sido efetivamente implantado nesses anos, houve aumento considervel do nmero de escolas mdias e de ensino tcnico, bem como a fundao das primeiras universidades do pas; No mbito das artes e da literatura pode-se destacar o alargamento das literaturas regionais escala nacional, ao lado da polarizao ideolgica da33

FAUSTO, B. A revoluo de 1930: historiografia e histria. op. cit.; FARIA, Antnio Augusto e BARROS, Edgard Luiz de. Getulio Vargas e sua poca. So Paulo, Global, 1983 (Coleo Histria Popular, 8). 34 MELO e SOUZA, Antnio Cndido de. A Revoluo de 1930 e a Cultura. Novos Estudos, v. 2, n. 4, 1984. As consideraes feitas a seguir sobre a cultura no perodo 1930-37 so baseadas nesse mesmo estudo.

21produo cultural. A literatura regional passa a difundir a imagem do Brasil como um conjunto de unidades diferenciadas, mas solidrias entre si, com destaque para a forma como o Brasil toma conscincia do nordeste. Por outro lado, a produo literria se faz veculo de difuso para mltiplas vertentes polticas e religiosas, como o marxismo, o fascismo ou o espiritualismo cristo (muitas vezes simptico direita catlica). O modernismo se politiza ainda mais, e o engajamento da arte e dos intelectuais a marca da produo artstica do perodo; Houve tambm aumento de interesse pelos estudos sobre a realidade brasileira, bem como a busca de uma perspectiva mais crtica e radical na forma de analisar as questes nacionais. O livro de Gilberto Freyre Casa Grande e Senzala, em que pese sua nostalgia em relao ao passado aristocrtico, serviu para suscitar uma viso mais crtica sobre a questo dos negros. J Razes do Brasil, escrito por Srgio Buarque de Holanda, fez a crtica do passado autoritrio do pas e de suas prprias elites; Por fim, todas essas mudanas no mbito da cultura serviram de estmulo para a indstria livreira, que agora aliava sua preocupao com as inovaes estticas e de contedo (mais voltado para questes sociais) ao propsito de nacionalizar o livro. Diversas editoras passaram a fazer tentativas no sentido de lanar edies mais baratas sem perda da qualidade; Toda essa efervescncia cultural e engajamento poltico foram estimuladas pela prpria conjuntura do pas, caracterizada por uma espcie de nacionalizao dos conflitos e pela radicalizao crescente. Apesar das foras conservadoras terem assumido papel preponderante nas hostes da Aliana Liberal, significativo notar que a Revoluo de 30 trouxe consigo o atendimento de algumas reivindicaes da classe trabalhadora e das classes mdias. Em virtude da natureza casustica das legislaes eleitorais da Repblica Velha, um dos principais slogans da campanha que levou revoluo de 1930 era a moralizao do processo eleitoral, promessa que at certo ponto foi cumprida, visto que a eleio de 1933 foi a mais limpa ocorrida at ento. No campo trabalhista, assistiu-se implantao de uma srie de leis que vinham ao encontro das reivindicaes do operariado, tais como o direito a frias remuneradas, e, principalmente, a lei que fixava a jornada de oito horas dirias. Apesar disso, o regime que se instalou aps a revoluo no conseguiu pacificar a arena poltica. O que animou o movimento e cimentou, ainda que precariamente, a aliana das foras polticas que o concretizaram foi muito mais o desejo de conquistar maior

22influncia junto ao centro do poder do que um programa de governo capaz de hierarquizar os interesses em conflito de forma razoavelmente consensual. Nos anos que se seguiram, pode-se identificar pelo menos trs linhas de conflito que viriam a ter influncia decisiva na instaurao e no perfil poltico da ditadura do Estado Novo. Primeiramente, cabe destacar as disputas que envolveram o processo de estruturao do Estado que, como visto, acelerou-se depois de 1930 , sobretudo no que diz respeito centralizao do poder. Segundo Aspsia Camargo, a centralizao constitui o tema dominante na correspondncia privada dos principais lderes da Revoluo de 1930, o que indica ser este o fio condutor que cinde, ordena e unifica, afinal, o campo poltico no tumultuado perodo ps-30. As dissenses regionais que acompanharam o primeiro perodo republicano e o processo revolucionrio continuaram sendo fonte de conflitos, s que agora mais visveis para o pblico e voltados para a conquista dos favores do Poder Central (como demonstram, por exemplo, os episdios de 1932). Dessa maneira:A centralizao, que gradualmente esvazia uma parcela do poder oligrquico, destruindo suas manifestaes de autonomia, opera-se com a ajuda desse mesmo poder oligrquico, graas s sises que dividem internamente as elites regionais e que as leva a competir pelos favores do Estado35.

A essas disputas de interesses entre os grupos regionais passaram a se sobrepor lutas de corte mais ideolgico, que extrapolavam o mbito regional. Surgem ento, pela primeira vez na histria brasileira, movimentos polticos de alcance nacional, como a Ao Integralista Brasileira (movimento de ultradireita que apresentava certa similitude com o fascismo europeu) e a Aliana Nacional Libertadora (amplo e heterogneo conjunto de foras nacionalistas e de esquerda que se opunha ao Governo Provisrio) 36. A ecloso desses movimentos estava intimamente ligada ao carter antiliberal que possuam e ao esvaziamento do grupo tenentista. Embora muito diferentes, tanto a AIB quanto a ANL atraam as parcelas da pequena burguesia no seduzidas pelo liberalismo das elites, inclusive diversos elementos sados do tenentismo. A insero dos tenentes no Estado ps30 (muitos na qualidade de Interventores federais) fez com que seu movimento deixasse de dar o tom da crtica ao liberalismo, levando-o a perder muitos de seus quadros para aquelas agremiaes37. As agitaes promovidas por aqueles grupos (principalmente a35

CAMARGO, Aspsia. A Revoluo das Elites: Conflitos Regionais e Centralizao Poltica. In: Vrios Autores. A Revoluo de 1930: seminrio internacional. Braslia, UNB, 1983 (Coleo Temas Brasileiros, 54), p. 14. 36 FAUSTO, B. Pequenos ensaios de histria da Repblica: 1889-1945. op. cit., p. 71-73. Embora a Aliana Nacional Libertadora estivesse longe de ser uma organizao revolucionria de esquerda, preciso notar que sua formao era produto da estratgia do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, seguindo as decises da Internacional Comunista, esforou-se por organizar essa frente popular anti-fascista. Ibidem. 37 FAUSTO, B. A Revoluo de 1930: historiografia e histria. op. cit., p. 72 e 75.

23Intentona Comunista, em 1935) contriburam em grande medida para acirrar o carter coercitivo do regime e para fortalecer o papel poltico do Exrcito. Um segundo foco de conflitos foram as disputas que envolveram a redefinio das Foras Armadas ocorrida nesse perodo, em termos estruturais e ideolgicos. Aps a revoluo, o Exrcito se achava clivado pelos conflitos entre praas e oficiais e em pelo menos duas correntes discordantes quanto ao perfil ideolgico que a instituio deveria assumir, sobretudo no que diz respeito s relaes desta com a poltica: havia os neutralistas e os defensores de um intervencionismo reformista (que chegaram a desenvolver uma faco de esquerda, minoritria, que propunha a criao de um exrcito popular). Todavia, a incapacidade desses grupos de se tornarem hegemnicos dentro da corporao levou muitos de seus integrantes a se aliarem mais tarde numa terceira corrente, propugnadora de um projeto de intervencionismo controlador. Foi esta ltima vertente que logrou se tornar hegemnica na instituio, ganhando fora com os embates ocorridos em 1932 e 1935 e se consolidando plenamente em 1937 e na represso ao golpe integralista de 193838. Getulio Vargas e o grupo que o apoiava passaram ento a se aproveitar da radicalizao desses vrios conflitos, superdimensionando-os como meio para aumentar seu poder e satisfazer seu intento continusta. Como marcos dessa escalada rumo a um Estado autoritrio, destacam-se: a decretao do estado de stio em novembro de 1935 (vrias vezes prorrogado depois); a criao do Tribunal de Segurana Nacional em setembro de 1936; a aprovao, em setembro de 1937, do estado de guerra (atravs do qual houve a suspenso dos direitos constitucionais); finalmente, as retaliaes da cpula dirigente aos governadores dissidentes, consubstanciadas nas intervenes feitas no Mato Grosso, Distrito Federal e Rio Grande do Sul ao longo desse mesmo ano. Como resultado desse quadro, implanta-se a ditadura do Estado Novo a 10 de novembro de 1937, quando se d o fechamento do Congresso e a outorga de nova Carta Constitucional. O golpe j vinha sendo esperado desde vrios meses, e contou com a aquiescncia das lideranas polticas, de altos chefes militares, como os generais Eurico Gaspar Dutra e Ges Monteiro, e da grande maioria dos governadores no Rio Grande do Sul, Flores da Cunha j havia sido derrubado em outubro, e somente os governadores da Bahia e de Pernambuco foram substitudos por se negarem a apoiar o novo regime. Essa pequena resistncia dos principais lderes polticos ao golpe se deveu, de um lado, ao fato de que o Exrcito j no era encarado como causa de desordens (como na dcada de 20 e38

CARVALHO, Jos Murilo de. Foras Armadas e Poltica, 1930-1945. CPDOC, mimeo., 1980.

24durante a revoluo), e, de outro lado, porque o uso da violncia por parte de integralistas, comunistas e oligarquias criavam o fantasma da convulso social. De forma semelhante ao que ocorrera em 1930, o golpe de 1937 contou com a participao e apoio de foras heterogneas, encampando uma parcela das oligarquias estaduais, os integralistas, a igreja e grande parte da cpula militar. Inaugura-se assim, sob o autoritarismo, um perodo de relativa estabilidade poltica, que expressava um novo rearranjo da estrutura de poder entre as classes dominantes 39. Tambm para as Foras Armadas o golpe de 1937 representou um momento de acomodao dos dissensos, graas consolidao do projeto intervencionista controlador. Foi ainda o momento em que, num perfeito acordo com os cnones desse projeto hegemnico, a influncia da instituio junto ao centro do poder atingiu o pice. No seu relacionamento com as camadas populares, o regime agiu no sentido de exacerbar a represso e o controle sobre os trabalhadores, ao mesmo tempo em que se valia do populismo como segundo (e no menos importante) pilar de sustentao. Este consistia de um conjunto de estratgias polticas que englobava o atendimento de algumas demandas populares, a subordinao dos canais de representao da classe trabalhadora s estruturas estatais e a incorporao das massas populares dentro de uma poltica cultural de Estado, que se pautava por uma personalizao do poder reforada por uma construo verbal de natureza paternalista40. certo que o populismo no foi inveno da ditadura, pois j vinha fazendo parte das relaes entre Estado e classes trabalhadoras desde 1930. Contudo, no Estado Novo que essas estratgias so aplicadas de forma mais intensa e eficaz. O atendimento de certas demandas populares continuou atravs da consolidao de alguns direitos adquiridos, como demonstra a aprovao da CLT, em 1943. O atrelamento das representaes sindicais ao aparelho estatal agora uma exigncia mais premente, pois o Estado Novo passa a perseguir qualquer sindicato ou associao no filiados ao Ministrio do Trabalho. Como complemento, as perseguies e atos de violncia contra trabalhadores e membros do extinto Partido Comunista tornam-se mais sistemticos. Simultaneamente, o processo de elaborao e implementao da poltica cultural do Estado torna-se muito mais eficiente, graas melhor estruturao dos seus aparelhos de propaganda ideolgica.39

Segundo Aspsia Camargo, o Estado Novo constituiu a ltima fase da Revoluo de 1930, aquela em que finalmente se atingiu um consenso (ainda que precrio) entre as elites. Seria portanto um perodo de acomodao e estabilidade sob o rgido controle e tutela do Estado. CAMARGO, A. A Revoluo das Elites: Conflitos Regionais e Centralizao Poltica op. cit., p. 16-17. 40 WEFFORT, Francisco Corra. O Populismo na Poltica Brasileira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.

25Nesse sentido, vale tambm ressaltar que foi durante o Estado Novo que finalmente se constituiu um sistema nacional de ensino no pas41. Mas no foram apenas os aparelhos de propaganda que ganharam em termos de organizao, recursos materiais e eficincia. O Estado Novo tambm procurou acelerar a estruturao de vrios aparelhos voltados para o desempenho de funes reguladoras, como a Comisso de Mobilizao Econmica, em 1942, o Conselho Nacional de Poltica Industrial e Comercial, em 1944, e a Comisso de Planejamento Econmico, nesse mesmo ano. O mesmo se diga quanto s medidas voltadas para a racionalizao da estrutura administrativa estatal e para a centralizao do poder, entre as quais se destaca a criao do Departamento de Administrao do Servio Pblico (DASP), em 1938. Esse rgo estabeleceu a obrigatoriedade do concurso pblico como critrio de contratao de funcionrios e, mediante suas agncias estaduais, os daspinhos, possua autoridade para alterar e vetar decretos dos interventores federais. Essas divises estaduais cumpriram ainda importante papel na subordinao do poder municipal aos interventores e s diretrizes poltico-administrativas estabelecidas pela direo central do DASP 42. Na rea econmica, o perodo do Estado Novo deu seguimento s tendncias delineadas desde 1930, verificando-se alguns avanos significativos no processo de industrializao. Os investimentos diretos do Estado tiveram papel importante para a montagem do parque industrial, como testemunham a fundao da Companhia Siderrgica Nacional e da usina de Volta Redonda. Deve-se salientar tambm que principalmente a partir de 1937 que se amplia o nmero de medidas econmicas que, embora no fazendo parte de uma poltica industrial propriamente dita, atuaram de maneira direta ou indiretamente favorvel industrializao43. Entretanto, convm lembrar que tais medidas no foram capazes de superar o padro restringido de industrializao inaugurado aps a crise dos anos 1929-33.

41

CARONE, Edgard. O Estado Novo (1937-1945). So Paulo, Difel, 1977 (Corpo e Alma do Brasil, 51). A poltica de propaganda do regime ser discutida em detalhes no prximo Captulo. 42 O ncleo do sistema centralizador montado pelo Estado Novo para subordinar os poderes estaduais e locais era justamente a associao entre as interventorias e os rgos burocrticos vinculados ao DASP. PENHA, Eli Alves. A criao do IBGE no contexto de centralizao poltica do Estado Novo. Dissertao de Mestrado apresentada ao Instituto de Geocincias da UFRJ: 1992, p. 148-149. 43 Sem entrar no mrito das exaustivas discusses que j se realizaram sobre o carter intencional ou no da poltica econmica da poca quanto industrializao, pode-se dizer que (...) fora de discusso que vrias medidas especficas vo sendo tomadas desde os primeiros anos da dcada de 1930, e, no decorrer do tempo principalmente aps 1937 nota-se um conjunto bastante numeroso de decises que, direta ou indiretamente, atuam sobre a industrializao. CANO, W. Desequilbrio regionais e concentrao industrial no Brasil: 1930-1970. op. cit., p. 185.

26Apesar dos avanos no sentido da industrializao e do crescimento econmico, as dificuldades vividas por diversos setores e a intransigncia do regime com relao aos movimentos trabalhistas levaram ecloso de diversas aes contestatrias, que foram crescendo ao longo dos anos 40. Em que pesem as vantagens oferecidas como parte da poltica populista, os trabalhadores sofriam com a crise de diversos segmentos produtivos e com o desemprego rural e urbano. Alm disso, vale lembrar que a concesso de certas garantias trabalhistas atingia apenas os trabalhadores das cidades, permanecendo o meio rural praticamente margem desses benefcios. Em resposta, diversas categorias profissionais mobilizaram-se por exigncias de todo tipo, como aumentos salariais, o cumprimento da lei das oito horas, o respeito aos acordos trabalhistas, etc. Para tanto, utilizavam-se de estratgias que iam da organizao de Congressos Operrios at a realizao de greves (apesar da proibio) 44. Foi essa mobilizao crescente dos trabalhadores, aliada luta contra o autoritarismo do regime, que terminaram por minar suas bases de sustentao. Embora a cultura do perodo no tenha demonstrado a efervescncia e esprito de inovao que se viram ao longo dos anos 20 e 30, preciso considerar que a ao da censura e da propaganda ideolgica do regime no impediram certo avano do pensamento crtico. Com efeito, no Estado Novo os conflitos so acirrados e o menos que se poder dizer que, dos conflitos, tambm sociais, brota uma viso mais urbana e empenhada do processo histrico-cultural45. O lanamento do livro de Caio Prado Jnior Formao do Brasil Contemporneo, no ano de 1942, talvez o melhor exemplo para essa assertiva. A trajetria da luta pela democratizao do pas, que ganhou fora sobretudo a partir de 1944, manteve estreita relao com o acirramento do confronto entre os pases desenvolvidos durante a II Guerra. Isso porque o Estado sustentava, no mbito externo, uma poltica pendular, valendo-se da importncia do Brasil como aliado para barganhar seu apoio em termos de vantagens econmicas. Entretanto, com a radicalizao do conflito foi se tornando cada vez mais difcil permanecer eqidistante, o que causou uma primeira grande ciso no bloco dirigente, entre simpatizantes e no simpatizantes do nazifascismo. Antes que esse conflito interno se resolvesse com a deciso do governo em apoiar as foras aliadas (para o que em muito contribuiu a presso das oposies), gerouse um movimento de luta contra o possvel apoio do Brasil Alemanha, que foi crescendo e incorporando tambm a crtica ao regime.44 45

CARONE, E. op. cit., p. 122-126. MOTA, Carlos Nelson. Cultura e Poltica no Estado Novo. Universidade de So Paulo, mimeo., s.d.

27Dividido internamente e j no suportando as presses, o governo comea a afrouxar a ao dos aparelhos coercitivos e a tentar postergar a realizao de eleies gerais, exigidas pelos movimentos oposicionistas. A partir de maro de 1945, sob o efeito desse recuo, cresce expressivamente o nmero de greves e movimentos trabalhistas, e isso em diversos estados. Pouco antes, no final de fevereiro, o governo j havia confirmado oficialmente a realizao de eleies, dando incio a uma campanha eleitoral que viria a ter oficializadas as candidaturas de Eduardo Gomes pela oposio e do General Eurico Gaspar Dutra pelo governo. Em abril, aps muitas protelaes do presidente, concedida a anistia, trazendo de volta do exlio um variado grupo de oposicionistas: comunistas, integralistas, liberais e membros das oligarquias dissidentes. A fim de se manter no cargo, Getulio Vargas valia-se de uma manobra diversionista, que consistia em declarar-se publicamente favorvel realizao de eleies, ao mesmo tempo em que procurava mobilizar elementos de sua confiana junto ao Exrcito e aos grupos oligrquicos para evit-las. Tambm atravs do insuflamento das massas populares Vargas logrou obter um apoio considervel, expresso nas manifestaes queremistas ocorridas em diversas capitais na segunda metade daquele mesmo ano. Nada disso, porm, foi capaz de impedir a queda da ditadura. A insistncia do presidente em nomear seu irmo, o Coronel Benjamim Vargas, para o cargo de Chefe do Departamento de Segurana Pblica levou ao rompimento da cpula do Exrcito com o regime. O resultado foi a renncia de Getulio Vargas em 29 de outubro de 1945, sendo substitudo interinamente no cargo por Jos Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal. O afastamento de Vargas removeu o principal obstculo para a democratizao do pas, encerrando-se definitivamente a ditadura do Estado Novo a 2 de dezembro desse mesmo ano, quando o general Dutra foi eleito o novo presidente da Repblica. Aps esta breve reconstituio das origens do Estado Novo e dos traos fundamentais do perodo em que ele se insere, faz-se necessrio discutir as inter-relaes entre os processos de modernizao poltico-institucional, econmica e social, passando por algumas das inmeras obras que trataram dessa problemtica. Mesmo sem abarcar todo o material bibliogrfico existente sobre o tema deixando de lado, inclusive, correntes de expresso significativa dentro desse debate buscar-se- destacar as principais polmicas em torno da anlise de certos processos caractersticos do perodo que so de relevncia especial para os objetivos deste estudo. Embora haja consenso entre os autores que analisaram o perodo que vai de 1930 a 1945 quanto ao carter heterogneo das foras polticas que conferiam sustentao ao Estado, preciso ressalvar que as interpretaes variam bastante quando se trata de

28estabelecer a forma de relacionamento entre os interesses sociais em jogo, bem como a natureza e o alcance que a ao estatal adquire em relao a essa base de interesses. Tal variedade de interpretaes encontra sua origem no fato de que, ao enfrentar teoricamente um movimento de modernizao caracterizado pela justaposio de novos padres de organizao social e econmica e novas relaes de poder s condies anteriores, tendese a enfatizar ou o aspecto conservador desse processo ou seu aspecto transformador. possvel, ento, e ainda que incorrendo em provveis imprecises e simplificaes, dividir as muitas perspectivas existentes entre aquelas que afirmam a hegemonia poltica das oligarquias rurais antes e depois de 1930 e aquelas que qualificam a Revoluo de Outubro como momento de crise do Estado oligrquico, enfatizando o equilbrio de foras entre os diversos setores sociais a partir da. Como representante do primeiro grupo, pode-se destacar inicialmente Edgard Carone, que em seu livro O Estado Novo afirma que as oligarquias mantiveram-se dominantes no ps-30, apesar de j se acharem divididas e subdivididas internamente e de se verem obrigadas a aceitar a presena de outras classes na esfera de poder. Apoiando suas afirmaes em farta descrio factual, esse autor delineia os conflitos entre o poder central e alguns grupos oligrquicos, concluindo a partir da que a poltica coronelista permaneceu intacta durante o Estado Novo, com a nica diferena de que as disputas de poder exigiam agora a articulao de uma rede de relaes capaz de abranger no apenas o mbito local, mas tambm a esfera do poder federal 46. Florestan Fernandes outro dos autores que afirmam a manuteno de uma posio hegemnica por parte das oligarquias rurais no ps-30, chegando mesmo a classificar como de extrema impropriedade falar numa crise do poder oligrquico ento. O que teria ocorrido seria apenas a recomposio da estrutura de poder, na qual o setor mais moderno, vinculado ao capital comercial e financeiro, mas tambm industrial, teria atrado para si o poder poltico que antes pertencia oligarquia tradicional. Ao longo desse processo, os interesses da oligarquia, tomada como um todo, tornam-se menos identificveis e adquirem maior flexibilidade, mas ainda assim esse setor se mantm hegemnico, pois foi capaz no s de preservar seus interesses econmicos como tambm de plasmar a viso de mundo e as prticas polticas dos demais setores da classe dominante segundo seus prprios padres47.

46 47

CARONE, E. op. cit., p. 143-144. FERNANDES, Florestan. A Revoluo Burguesa no Brasil: ensaio de interpretao Sociolgica. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 208-209.

29Essa persistncia da hegemonia oligrquica ao longo do processo de modernizao econmica evidencia, segundo Fernandes, a ocorrncia de um modelo especfico de revoluo burguesa no pas, na qual, diferentemente do que ocorre dentro do modelo clssico, a dominao e o poder burgus no se configuram historicamente a partir da superao de um modo de produo antagnico ao capitalismo, mas sim atravs de lenta e gradual modernizao da economia primrio-exportadora capitalista 48. Nesse sentido, a burguesia brasileira como um todo, incluindo-se a a oligarquia, consegue tirar proveito tanto das estruturas econmicas e sociais arcaicas quanto das estruturas modernas, o que, em ltima anlise, no s explica a fragilidade do impulso industrializante no pas, como tambm esclarece o modo pelo qual a oligarquia pde enfrentar a transio: modernizando-se onde fosse inevitvel e irradiando-se pelo desdobramento das oportunidades novas, onde isso fosse possvel 49. Passando agora aos trabalhos que enfatizam o antagonismo e o equilbrio de foras como fatores determinantes das transformaes ocorridas entre 1930 e 1945, podese citar O Colapso do Populismo no Brasil. Nessa obra, Otvio Ianni se vale da noo de substituio de importaes para afirmar que a industrializao no Brasil ocorreu ao acaso das flutuaes das relaes externas e que, em virtude disso, as fases pelas quais se deu a industrializao so, na realidade, modos especficos de relacionamento da economia brasileira com os sistemas econmicos externos 50. Dentro dessa trajetria, o perodo que vai de 1930 at a fase da democracia populista, no ps-1945, se caracteriza pela vigncia de um padro de desenvolvimento que Ianni denomina modelo getuliano. Este consistia de uma recomposio dos interesses das classes sociais cuja finalidade era favorecer a industrializao e o setor de prestao de servios. Segundo esse autor, tal recomposio era absolutamente necessria, pois uma vez que o setor agrrio possua ligaes muito fortes com o modelo exportador, no conseguia se modernizar no ritmo exigido pelo setor industrial. Isso implicou, de um lado, o estabelecimento de contradies estruturais - que so, por isso mesmo, histricas entre esses dois setores, a tal ponto que todos os eventos polticos de relevo ocorridos48

importante dizer que, segundo Florestan Fernandes, Revoluo Burguesa no a tomada brusca do poder poltico por parte da burguesia, mas um processo global de transformao da sociedade. Em suas palavras, (...) Revoluo Burguesa denota um conjunto de transformaes econmicas, tecnolgicas, sociais, psicoculturais e polticas que s se realizam quando o desenvolvimento capitalista atinge o clmax de sua evoluo industrial. Ibidem, p. 203. 49 Ibidem, p. 204. 50 Segundo esse autor, a idia de substituio de importaes permite explicar a industrializao como resultado de sucessivos estrangulamentos da oferta de produtos industrializados no mercado externo, por ocasio de guerras e crises econmicas. IANNI, Otvio. O Colapso do Populismo no Brasil. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1968, p. 25.

30entre 1930 e 1945 vincularam-se explicitamente necessidade de reduzir o poder poltico dos setores agrrio-exportadores 51. De outro lado, implicou a necessidade de embutir as medidas destinadas a favorecer o setor industrial num projeto de desenvolvimento econmico global e autnomo. Como conseqncia, o modelo getuliano de desenvolvimento teve que se sustentar atravs da montagem de uma poltica de massas (cujo ncleo ideolgico era o nacionalismo desenvolvimentista) e da ampliao da capacidade de interveno econmica do Estado, pois somente a partir desses dois fatores que seria possvel o estabelecimento de uma gradao nas rupturas com as estruturas internas e externas do modelo exportador. Embora dentro de uma perspectiva diferente, na qual a anlise se realiza a partir da crtica idia de industrializao por substituio de importaes, Francisco de Oliveira outro autor que pode ser includo no grupo que reala a ruptura ocorrida em 193052. Segundo ele, a industrializao s poderia se realizar a partir da constituio de um padro de acumulao que substitusse o acesso externo da economia primrioexportadora, o que implicava uma redefinio das relaes de produo com vistas a adequ-las s exigncias desse novo padro. Nesse sentido, a industrializao passa a ser vista, aqui, como o prprio processo de constituio desse modelo, que encontra na dialtica da luta de classes que se desenvolve internamente, muito mais que nas condies internacionais que, alis, seriam adversas industrializao brasileira - sua real possibilidade de concretizao. , portanto, no espao constitudo pelas tenses entre essa possibilidade de industrializao e a possibilidade de um refluxo em direo economia primrioexportadora que se configura a revoluo burguesa no Brasil. Isso, em termos concretos, significou o surgimento do populismo como estratgia poltica atravs da qual foi possvel adequar as relaes de produo s exigncias do novo modelo de acumulao e, simultaneamente, estabelecer um pacto entre a burguesia industrial e as classes

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Ibidem, p. 16. Entre as crticas levantadas por Oliveira, h duas que parecem ser mais significativas. A primeira delas consiste na negao de que a passagem para uma economia de tipo urbano-industrial possa se dar em funo das demandas de consumo popular, j que o capitalismo (tendo como cerne a reproduo ampliada de capital) encontra na prpria produo, e no no consumo, sua finalidade primordial. A segunda crtica repousa no combate ao economicismo implcito na idia de industrializao reflexa, pois o colapso das relaes com o mercado externo, se provoca a crise da economia primrio-exportadora, nem por isso desencadeia mecanismos automticos de substituio de importaes. OLIVEIRA, Francisco de. A Economia Brasileira: Crtica Razo Dualista. Estudos, n. 2, 1977.

31trabalhadoras urbanas, com vistas a liquidar politicamente as antigas classes proprietrias rurais53. Mas isso no significa que tenha havido a excluso completa dos setores agrrios da estrutura de poder e, muito menos, dos ganhos provenientes da expanso do sistema. A persistncia das condies de reproduo das atividades agrcolas, responsvel por esse alijamento apenas parcial dos setores agrrios da estrutura de poder, , por paradoxal que parea, um dos requisitos estruturais da revoluo burguesa no Brasil, j que a industrializao s poderia se concretizar se fosse possvel manter a capacidade de importao do sistema, imprescindvel para a obteno de maquinaria 54. Ainda no mbito das perspectivas que afirmam a ocorrncia de uma crise do poder oligrquico no ps-30, possvel identificar um certo nmero de autores que realizam suas anlises com base no conceito de Estado de compromisso. Tal conceito tem como cerne a idia de que as dificuldades econmicas geradas pela crise de 29 conferiram ao Estado a propriedade de concentrar em si mesmo todas as possibilidades de definir os rumos da economia e, portanto, de provocar transformaes estruturais na sociedade. Concomitantemente, essa crise determinou o ocaso do Estado oligrquico, o que, somado incipincia e fragmentariedade da estrutura de classes naquele momento, produziu um equilbrio de foras a partir do qual o Estado adquiria certa independncia para agir, mas precisava, ao mesmo tempo, repartir benefcios para manter sua prpria estabilidade 55. Disso decorre a impossibilidade do Estado se sustentar unicamente com base num consenso restrito, isto , limitado s classes dominantes, sendo impelido a fazer das massas urbanas sua fonte de legitimidade (e da o advento da poltica populista). Vale notar que, na perspectiva do Estado de compromisso, a afirmao de uma crise do poder oligrquico no ps-30 no implica o estabelecimento de uma hegemonia poltica da burguesia industrial, e nem uma luta acirrada e inconcilivel entre os vrios setores da classe dominante. Pelo contrrio, enfatiza-se a existncia de um equilbrio tenso entre essas foras, que confere certa autonomia ao Estado. O intuito de caracterizar o perodo que se inaugura em 1930 como uma situao de crise de hegemonia, no qual o Estado adquire certa liberdade de ao, mas sem se descolar dos interesses concretos das vrias classes, aparece no s na perspectiva do Estado de compromisso, mas tambm na obra Rumos e Metamorfoses, de Snia Draibe. Apesar disso, essa autora analisa o perodo ps-30 a partir de uma srie de crticas s53 54

Ibidem, p. 31. Ibidem, p. 21-32. 55 WEFFORT, Francisco Corra. O Populismo na Poltica Brasileira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, p. 69.

32teorias mais tradicionais, como aquelas que se estruturam com base nessa perspectiva. Ela se prope buscar instrumentos conceituais que permitam fazer uma anlise mais historicizante, que no pretenda assumir foros de uma teoria geral para explicar as relaes entre Estado e industrializao em pases de capitalismo tardio (como aconteceria nos estudos apoiados no conceito de Estado de compromisso) 56. Trata-se, pelo contrrio, de identificar a direo poltica tomada pela constituio do capitalismo brasileiro, enfocando a (...) simultaneidade e especificidade dos processos de constituio das bases materiais do capitalismo, da formao e expresso de suas classes fundamentais e da construo do Estado capitalista e burgus no Brasil 57. Mais especificamente, trata-se de dizer que os desdobramentos do processo de revoluo burguesa envolvem um amplo conjunto de transformaes sociais em permanente modificao (tais como a questo agrria, a questo do Estado, etc.) e que por isso seus contedos, sempre em expanso, colocam s classes sociais e foras polticas do momento diferentes alternativas para a resoluo dessas questes. Muito mais do que uma simultaneidade de transformaes impostas pelo desenvolvimento econmico, o que se tem aqui um todo orgnico e complexo de problemas, cuja forma de solucionamento no pode ser vista de antemo. Numa palavra,A articulao deste conjunto de questes, as formas de hierarquiz-las, assim como o modo de resolv-las, no se fazem segundo modelos nicos, conforme solues impostas inexoravelmente por alguma determinao objetiva. No apenas comportam, cada uma, formas distintas de encaminhamento, como a sua articulao orgnica, isto , o conjunto de solues que podem receber, conformam alternativas diversas no processo de constituio do capitalismo58.

Partindo dessa idia, Draibe conclui que a forma como so enfrentadas aquelas questes se define ao nvel da luta poltica, e que, sendo corolrio dessa luta a constituio de blocos histricos para a concretizao de determinados projetos polticos, a implementao das vrias solues pressupe a mobilizao de amplos setores da sociedade para esse fim.56

Segundo ela, tal conceito tem o mrito de particularizar a questo do Estado, enfatizando a autonomia deste em relao aos interesses dominantes e o esforo de legitimao das polticas do Estado junto s massas populares (apresentando-as como polticas de interesse nacional), entre outros aspectos da atuao estatal. Por outro lado, afirma que a idia de um Estado que se sustenta num compromisso de classes supe a existncia de uma situao de equilbrio entre os diversos setores sociais. Argumenta ainda que o conceito de Estado de compromisso tende a ser usado com o sentido de coalizo quando a anlise se situa no mbito da poltica concreta, o que, aliado quele suposto equilbrio, confere s alianas polticas firmadas uma aparncia por demais estvel. Isso acabaria elidindo o carter fugaz e instvel que essas alianas adquirem no contexto de uma situao de crise de hegemonia, para cuja delimitao o conceito de Estado de compromisso foi cunhado. DRAIBE, S. M. Rumos e Metamorfoses: um estudo sobre a constituio do Estado e as alternativas de industrializao no Brasil, 1930-1960. op. cit., p. 23. 57 Ibidem, p. 27 (grifo da autora). 58 Ibidem, p. 17.

33Dessa maneira, entre as vrias classes e segmentos de classe existentes, somente aqueles dotados de interesses estratgicos (isto , de interesses com potencial para se generalizarem por diversos outros setores), que logram tornar-se base do Estado, para, atravs dele, criar uma nova organizao social. A essas classes ou fraes de classe Draibe denomina setores histrico-fundamentais, e os identifica burguesia mercantilexportadora ligada ao capital cafeeiro, burguesia industrial e ao proletariado. a partir dos interesses estratgicos desses trs setores que se constituem as vias de desenvolvimento, j que so esses interesses que possibilitam certas formas de articulao orgnica das questes postas pela constituio do capitalismo que permitem atender, em certa medida, aos interesses dos demais setores, angariando assim o apoio indispensvel para a realizao de qualquer transformao significativa 59. Em correspondncia aos interesses da burguesia mercantil-exportadora, constituise o que Draibe denomina via conservadora de desenvolvimento. Entre outras caractersticas, essa via se define por uma industrializao lenta e subsumida dinmica do setor agro-exportador; por uma expanso e centralizao mnimas do aparelho de Estado e de suas funes de regulao econmica; pela manuteno do padro concentracionista de propriedade fundiria e das formas atrasadas das relaes de produo vigentes no campo. J a via moderada, correlata aos interesses estratgicos da burguesia industrial, se caracteriza por uma industrializao mais rpida e autnoma em relao dinmica agro-exportadora; por uma expanso e centralizao mais expressivas do aparelho de Estado e de suas funes regulatrias; pela manuteno, como na via anterior, da situao vigente no campo. Por fim, a via nacional-popular, ligada aos interesses do proletariado, seria marcada por uma industrializao realmente acelerada; por uma estruturao vigorosa do aparelho estatal e das suas funes econmicas (ampliando tambm sua capacidade de investimento em polticas sociais); e pela liquidao do carter concentracionista e excludente da estrutura fundiria e dos mecanismos tradicionais de subordinao da fora de trabalho no meio rural 60. Isso no quer dizer, porm, que Draibe atribua ao choque de interesses no interior da luta poltica um carter transparente, ou seja, que ela os encare como um conflito entre interesses facilmente identificveis em relao estrutura de classes existentes. Com efeito, a constituio desses interesses se d sempre pari passu com as transformaes que ocorrem na estrutura de classes, que, no momento da constituio do capitalismo,59 60

Ibidem, p. 28 e seguintes. Ibidem. Devemos ressaltar que, ao resumir as idias de Snia Draibe a respeito dessas vias de desenvolvimento, destacamos apenas aquelas questes (ou transformaes sociais) que afetam mais diretamente a organizao do territrio, como ser explicado mais adiante.

34conferem a esses interesses uma ausncia de hierarquizao, isto , uma heterogeneidade tpica dos pases de industrializao tardia. Dessa forma, os interesses econmicos, sociais e polticos em conflito s adquirem contornos e expresso mais determinados no momento mesmo de seu entrechoque no interior da luta poltica, (...) envolvendo a prpria unificao dos setores fundamentais e a manifestao politicamente transformada de seus interesses em alternativas visveis de ordenar a sociedade e seu futuro, nos limites da constituio do capitalismo 61. Mas, se apenas atravs da poltica que os interesses adquirem maior nitidez, nem por isso pode-se dizer que exista uma associao precisa entre essas alternativas e as foras polticas atuantes (partidos, sindicatos, movimentos organizados, etc.). Segundo Draibe, o processo de constituio do capitalismo, em seu desenrolar, promove a transformao (ou reatualizao) permanente das questes por ele mesmo colocadas, de tal modo que os interesses estratgicos e as alternativas de organizao social terminam por assumir um carter igualmente mutante, impedindo assim que o conjunto das foras polticas se estruture segundo vinculaes orgnicas entre tais alternativas e os projetos polticos especficos dessas foras. Nesse sentido, Draibe afirma que os interesses estratgicos e as vias de desenvolvimento existem apenas enquanto tendncias que delimitam o espao no interior do qual possvel definir uma direo poltica para as transformaes sociais nos marcos do processo de consolidao capitalista. isso que, em ltima anlise, explica a natureza instvel da luta poltica que se trava nesse momento, onde diferentes tendncias de direo poltica se entrechocam, num movimento que envolve a redefinio permanente de alianas polticas que se articulam, sempre, em torno de questes pontuais e imediatas. a partir dessa caracterizao das condies sobre as quais se desenvolve a poltica do perodo que Snia Draibe busca definir a natureza e o alcance que a ao estatal assume nessa ltima etapa da constituio do capitalismo brasileiro e na situao peculiar de crise de hegemonia que, segundo ela, marcou o perodo. A resposta para tal questo a de que, justamente pelo fato da ao do Estado se delinear a partir dessa situao de instabilidade poltico-ideolgica que ela ganha certos foros de autonomia frente aos setores sociais em conflito. Mas, ela ressalva que essa autonomia do Estado (...) no era nem plena nem absoluta: enr