dinheiro já é tudo. - universidade de coimbra · 2019. 4. 24. · na procura de autonomia no...

3
16-03-2019 MILHÕES. Segundo os números do Pordata, existem cerca de 1,8 milhões de millennials em Portugal. Correspondem a 27% da população ativa. Dinheiro já Itã° é tudo. O que proairam os millennials? São jovens, qualificados proativos, tecnológicos, curiosos e têm uma enorme vontade de aprender e evoluir. Querem trabalhar em empresas ambientalmente sustentáveis, socialmente responsáveis, alinhadas com os seus valores. E estão sempre à procura de novas experiências.

Upload: others

Post on 16-Aug-2021

3 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Dinheiro já é tudo. - Universidade de Coimbra · 2019. 4. 24. · Na procura de autonomia no mundo labo-rai, muitos optam pela criação do próprio negócio. Foi o que fez Marta

16-03-2019

MILHÕES. Segundo os números do Pordata, existem cerca de 1,8 milhões de millennials em Portugal. Correspondem a 27% da população ativa.

Dinheiro já Itã° é tudo. O que proairam os millennials?

São jovens, qualificados proativos, tecnológicos, curiosos e têm uma enorme vontade de aprender e evoluir. Querem trabalhar em empresas ambientalmente sustentáveis, socialmente responsáveis, alinhadas com os seus valores. E estão sempre à procura de novas experiências.

Page 2: Dinheiro já é tudo. - Universidade de Coimbra · 2019. 4. 24. · Na procura de autonomia no mundo labo-rai, muitos optam pela criação do próprio negócio. Foi o que fez Marta

JOANA CAPUCHO

Aq

os 31 anos, Joana Fitas soma no cur-rículo quatro mudanças de empre-go. Sempre por iniciativa própria. Sempre à procura de novos desa-fios. "As primeiras coisas que anali-so são o projeto que posso vir a abraçar, a empresa em si, as funções

ue vou desempenhar, as oportuni-dades de progressão e, claro, o salário", diz a jovem, mestre em Línguas e Relações Em-presariais pela Universidade deAveiro. Não esconde que o dinheiro é importante, mas não é tudo. "Considero, por exemplo, que o ambiente da empresa e o equilibrio entre a vida profissional e a pessoal são aspetos igualmente importantes."

Começou a carreira no departamento de exportação de tuna empresa de materiais de construção, onde permaneceu dois anos. Fez uma formação em Marketing Digital e esteve dois anos no departamento de markedngde uma empresa do ramo tecnológico. Segui-ram-se quatro anos numa empresa do mes-mo setor, mas chegou novamente a altura de mudar. Em janeiro, assumiu funções como gestora de projeto digital na Prio Energy. "É muito difícil hoje pensar em empregos para a vida, sobretudo na nossa geração. Quero acreditar que há bons projetos, boas empre-sas que promovem o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, o que influencia a pro-dutividade dos colaboradores", afirma.

Joana faz parte da geração millennial, ou seja, dos jovens que nasceram entre a década de 1980 e meados da década de 1990. Para eles, deixou de ser tuna prioridade o que para as gerações anteriores era o mais importante —um emprego para a vida. Têm necessidade demudar, de ser permanentemente desafia-dos. De acordo com um estudo da Deloitte, que envolveu mais de dez mil millennials de 36 países, os níveis de lealdade destes jovens às empresas recuaram em 2018 para os níveis registados dois anos antes.

Segundo a investigação, 43% dos millen-nials tencionam deixar o seu local de traba-lho dentro de dois anos (contra 38% em 2017) e apenas 28% esperavam ficar mais de cinco anos (31% em 2017). A remuneração e a cultura empresarial são fatores que os atraem nas organizações, conclui o estudo, mas "estas devem focar-se na diversidade, na inclusão e na flexibilidade, que podem ser a chave para a sua retenção".

O que os motiva Importa esclarecer de que jovens falamos. Mário Ceitil, presidente da Associação Portu-guesa de Gestão das Pessoas (APG), diz que grande parte das pesquisas focam-se num segmento: "Jovens altamente qualificados, com mindsetdigital, com grande literaciatec-nológica, capacidade de lidar com problemas, com proatividade, enorme curiosidade, gran-de vontade de aprender e empreendedoris-mo." São estes que, na opinião do professor universitário, encarnam "uma verdadeira re-volução ao nível da conceção do trabalho", que fez cair por terraalógica da sobrevivência herdada da II Revolução Industrial

A autonomia é uma das principais moti-vações desta geração: "Um millenrdal não aceita autoridade que imponha regras, quer ter a capacidade de ser criativo, de dispor de si próprio." Tal como a mestria: querem aprender e evoluir. "Têm vontade de ser sempre melhores numa determinada área. Há um gozo emocional da excelência, de fa-zer melhor as coisas", sublinha o presidente daAPG. Para estes jovens, a integração da vida pessoal e profissional, o bem-estar e a

43, MUDANÇA. De acordo com um estudo da Deloitte, 43% dos millennials tencionam deixar o local de trabalho dentro de dois'anos (38% em 2017) e só 28% esperam ficar mais de cinco anos.

flexibilidade de horários são também bas-tante valorizados. Não abdicam da vida so-cial e familiar. "É importante permitir que a pessoa faça uma gestão mais flexível e per-sonalizada dos seus próprios recursos. Se trabalhar melhor a determinadas horas do dia ou em casa, pode fazê-lo. O horário pode ser contraprodutivo", indica Mário Ceitil.

Além de já não estarem disponíveis para fi-car no escritório pela noite dentro, os millen-nials procuram bom ambiente dentro das or-ganizações. "Isto é positivo, porque impulsio-na as condições de trabalho para ambientes mais amigáveis, onde não há uma concor-rência sem limites, uma luta titânica de todos contra todos, mas o reconhecimento de que o bom ambiente de trabalho, a coesão das equipas, com bons níveis de satisfação, ob-têm-se não apenas com salários mais eleva-dos ou perspetivas de subida, mas com o re-conhecimento por parte dos outros", diz o so-ciólogo Elisio Estanque.

São também aqueles que preferem ga-nhar menos em troca de sustentabilidade. No âmbito de um estudo recente, citado pela Fast Company, três quartos dos mdlen-nkdsentrevistados disseram estar dispostos a aceitar um salário mais baixo para traba-lhar em empresas ambientalmente susten-táveis. E 40% admitiram já ter optado por trabalhar em organizações mais amigas do

ambiente em detrimento de outras, uma percentagem que nos baby boomers (nasci-dos entre 1946 e 1964) ficou pelos 17%. Em 2016, um outro estudo revelou que 64% dos jovens desta geração não aceitariam um emprego numa organização que não fosse socialmente responsável. Para estes novos funcionários das empresas, o sítio onde tra-balham deve estar alinhado com os valores que defendem e com os seus estilos de vida.

"Os resultados de alguns estudos eviden-ciam uma juventude mais qualificada, mais informada, mais atenta a aspetos relaciona-dos coma ameaça de esgotamento de recur-sos naturais, preocupada com o ambiente, com uma sensibilidade diferente da geração yuppie, que pensava apenas no trabalho, no dinheiro e na carreira", explica Elísio Estan-que, investigador do Centro de Estudos So-ciais da Universidade de Coimbra. Quando as necessidades básicas já estão satisfeitas, esclarece, os indivíduos motivam-se por ou-tro tipo de valores ou objetivos, de natureza ambiental ou social.

Para se sentirem bem, precisam também de se sentir incluídos. "É valorizado o senti-do de pertença a um grupo, a um coletivo, a um contexto amigável, de reconhecimento. Porque o individualismo exacerbado que te-mos passado em alguns momentos da histó-ria contemporânea já não é tão aceitável", fri-sa o sociólogo.

Uma geração de empreendedores Na procura de autonomia no mundo labo-rai, muitos optam pela criação do próprio negócio. Foi o que fez Marta Candeias, de 29 anos, licenciada em Gestão e mestre em Es-tratégia e Empreendedorismo. Depois de ter passado pelo ramo das auditorias, da hote-laria e do turismo, esteve três anos e quatro meses a trabalhar no departamento de data & analytics da multinacional L'Oréal. "Fui sempre procurando de forma ativa trabalhos que me desafiavam mais a nível intelectual", conta ao DN.Ao mesmo tempo, amadurecia a ideia de criar o seu próprio negócio.

continua na página seguinte »

RIA

JO

ÃO

GA

LA/G

L013

,

Sem medo de arriscar, Joana Fitas já mudou quatro vezes de emprego. Aos 31 anos, agarrou mais um desafio como gestora de projeto digital na Prío Energy. Além da remuneração, valoriza o ambiente em que vai estar inserida e o equilíbrio entre vida pessoal e trabalho.

18% ROTAÇÃO. No setor dos serviços, há áreas em que a taxa de rotação se situa nos 18%. Segundo as empresas, o normal seria no máximo 8%. Há um problema de atração e retenção de talento.

Page 3: Dinheiro já é tudo. - Universidade de Coimbra · 2019. 4. 24. · Na procura de autonomia no mundo labo-rai, muitos optam pela criação do próprio negócio. Foi o que fez Marta

Depois de um mês em Bali a aprender a cozinhar comida vegana, Marta Candeias, de 29 anos, veio para Portugal com planos para abrir uma academia de comida saudável.

Os millennials precisam de ser constantemente desafiados e de ver as organizações a crescer. Valorizam empresas socialmente ativas.

» continuação da página anterior

Recentemente, Marta despediu-se para avançar com um projeto na área da alimen-tação saudável— uma paixão antiga. "Quan-do estamos em grandes empresas, temos al-guma segurança a nível de trabalho, estabi-lidade, mas também seguros de saúde, telemóvel... São coisas que nos prendem. Mas como não tinha equilíbrio entre vida pessoal e profissional, pensei que se desse o mesmo de mim a uma coisa que era minha teria de resultar." Sente que "muitos millen-nialstêm vontade de avançar com negócios, mas por vezes falta-lhes a ideia".

Ser empreendedor não implica, no entan-to, abrir uma empresa. "Hoje, o conceito está associado a uma atitude em que a pessoa se considera sede da sua própria empregabil dade", diz Mário Ceitil. Segundo o presiden-te da APG, isto constitui "um desafio para empresas e lideranças", porque os millen-nials "não aceitam atitudes não éticas, um lí-der que não ascenda pelo valor do exemplo. Gostam de ter líderes mais inspiracionais, desafiantes".

Dificuldade em reter talentos Há muitas vantagens na integração destes jovens no mundo laborai, mas, tal como o DN noticiou recentemente, está a ser difícil para as empresas segurar estes talentos. "É um problema. No setor dos serviços há áreas em que a taxa de rotação está nos 18%", quando o "normal e saudável é um máximo de 8%", adiantou Diogo Alarcão, CEO da Mercer Portugal, subsidiária do grupo inter-nacional de consultoria de recursos huma-nos. E Mário Ceitil confirma: "O maior pro-blema que as empresas têm é a escassez ou a gestão de talentos."

Atrair e fixar os millennials é um dos gran-des desafios que as empresas enfrentam atualmente. Inês Pina Pereira, diretora de peo-ple, performance & culture da KPMG, reco-nhece que "os m illennials são uma geração que veio revolucionar o mercado de trabalho, e não é de todo cliché afirmar que as empre-sas precisam de se preparar para a mudança e o impacto que vão trazer às suas estruturas". Ciente das alterações que o mercado sofreu, a empresa criou uma campanha"What's your thing?" para atrair talento. "Cada um de nós tem características e paixões únicas, que vão muito para além da vida profissional. São es-sas características que pretendemos identifi-car desde cedo nos processos de recrutamen-to", explica a responsável. De forma "muito transparente", a empresa dá a conhecer os seus colaboradores e promove o contacto dos profissionais com estudantes.

De acordo com um estudo feito em 2018 pela KPMG junto de CEO de todo o mundo, quase 40% das organizações pretendem re-posicionar o negócio para responder às ne-cessidades dos millennials (em Portugal esse número anda perto dos 30%). "As novas ge-rações não querem trabalhar num local onde não acontecem coisas novas regularmente. Querem experiências, novidades e aprendi-zagens constantes. Isto acontece porque fa-lamos de uma geração altamente qualifica-da, com muito mais mundo do que as ante-riores, habituada a ter voz ativa sobre os temas que lhes interessam", afirma Inês Pe-reira. Estão, portanto, em constante movi-mento, o que tem impactos significativos nas empresas e nas economias.

Mas a KPMG encara os desafios como oportunidades. "Temos a preocupação de garantir que o nosso enquadramento sala-rial e o pacote de beneficios que oferecemos às nossas pessoas são sem dúvida competi-

tivos, mas estamos conscientes de que esse nunca será o fator determinante para as pes-soas permanecerem na empresa", reconhe-ce a responsável. Além disso, oferece "desa-fios estimulantes e recorrentes, bem como planos de carreira ajustáveis às ambições e ao ritmo de cada um".

Sílvia Nunes, diretora da empresa de re-crutamento Michael Page, considera que "cabe às organizações pensar que o modelo de motivação e retenção desta nova geração tem outras exigências". São jovens que "pre-cisam de ser desafiados, motivados, saber o caminho a percorrer, ver a organização a crescer". Gostam de pertencer a uma orga-nização "socialmente ativa", que promove ações associadas ao bem-estar e ao exercí-cio físico. Habituados à linguagem digital, esperam que as suas "expectativas do ponto de vista tecnológico" sejam satisfeitas.

Os efeitos perversos A geração millennialé muitas vezes acusada de ser narcisista, arrogante e impaciente.

Habituada a processos de seleção, Sílvia Nu-nes avisa que "em todas as gerações há pes-soas assim". "Estão mais bem informados e podem, eventualmente, passar essa imagem em algum momento. Da minha experiência, não posso dizer isso. Podem aparecer pon-tualmente, mas não é correto generalizar."

Mário Ceitil admite, no entanto, que a ideia de arrogância pode ser um efeito per-verso da transformação a que se assiste no mundo laborai. "Neste momento, há o risco de se endeusar os millennials, a ponto de considerar que millennialé sinónimo de ta-lento e talento é sinónimo de millennial", alerta, destacando que existem algumas ins-tituições de ensino superior onde se cria "uma atitude de arrogância".

A insatisfação permanente também pode constituir um problema. Segundo o presi-dente da APG, "o facto de estarem muito sensíveis a querer entrar em novos projetos pode levar as pessoas a entrar num certo in-finito de utopia, ou seja, acharem que pode acontecer tudo, que podem chegar a tudo e, ao mesmo tempo, um certo infinito do de-sejo". No limite, "isso pode levar a que te-nham dificuldade em fixar-se, o que terá consequências ao nível das relações". Há quem esteja numa empresa, mas sempre a pensar no que está a perder. "É como a can-ção I can't get no satisfàction [Não consigo fi-car satisfeito] dos Rolling Stones." No entan-to, frisa, "este é um fenómeno social com componentes e características muito inte-ressantes. É uma nova geração de pèssoas para quem a excelência é um objetivo natu-ral, que dá gozo, é objetivo de vida".

Como o paradigma mudou Nos últimos 15 anos, os modelos de trabalho alteraram-se significativamente. "A velha matriz que vigorou durante algumas déca-das no mundo ocidental, e em particular na Europa, a ideia da estabilidade, carreira, se-gurança no emprego e emprego ao longo da vida caiu há algum tempo, à medida que a globalização se foi acentuando, com a aber-tura de fronteiras, maior flexibilidade, maior competitividade entre as empresas, com o impacto das novas tecnologias", conta Elísio Estanque. E com a crise socioeconómica, a situação agravou-se.

"Muitos jovens que estavam a acabar os estudos, na expectativa de enveredar por uma carreira profissional como quadros qualificados, foram-se adaptando e aceitan-do a ideia de que o mundo do trabalho se tornou mais flexível, instável e inseguro", re-fere o investigador. Por outro lado, prosse-gue, "também foram aceitando a ideia de que quem tem mais iniciativa e competên-cias vai conseguindo, apesar das dificulda-des, encontrar alguma solução". E "como os empregos que foram aparecendo já não ofe-reciam as condições de estabilidade, prote-ção, segurança e carreira do outro modelo, esta nova situação tornou-se aceitável".

Agora, é preciso que as empresas deixem de estar "demasiado agarradas a modelos que já não conseguem ser competitivos nem agradáveis, do ponto de vista da atividade profissional". Que abandonem lógicas "mui-to burocratizadas, muito de não mexer no que já foi feito, fazer mais do mesmo, sempre em rotinas".

Esta ainda é, no entanto, uma fase de tran-sição. "O mundo das pequenas e médias em-presas está numa convulsão permanente. Muitas centenas ou milhares morrem, en-quanto outras nascem. As que têm uma mentalidade mais retrógrada, mais conver-sadora, têm mais dificuldade em adaptar-se", conclui o sociólogo.