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Page 1: Dimensões materiais da ancestralidade entre judeus do Suriname

DIMENSÕES MATERIAIS DA ANCESTRALIDADE ENTRE JUDEUS DO

SURINAME1

Thiago de Niemeyer Matheus Loureiro – UFJF/MG2

Resumo: Entre os judeus do Suriname - a grande maioria residente da capital

Paramaribo - a prática da pesquisa genealógica em arquivos (públicos ou domésticos) é

bastante difundida. O principal objetivo é a ligação do ego e sua família a ancestrais

famosos e o descobrimento de novos laços de parentesco entre famílias. O trabalho

buscará analisar as “Stambomen“ - literalmente “árvores genealógicas”- como ponto de

partida para uma reflexão acerca da materialidade da ancestralidade e do parentesco

nesse contexto etnográfico. Buscarei contemplar desde o processo de pesquisa

(onderzoek) em arquivos ou com pessoas mais velhas, até processos de elaboração,

"rascunho" e a forma final desses artefatos. Além disso, os próprios judeus guardam

objetos e produzem distinções entre o que são ou não "arquivos", de acordo com a

natureza dos objetos e a forma como são organizados. De todo modo, os "documentos"

e os "arquivos" (ambos artefatos específicos que buscarei definir no trabalho) que os

contêm devem ser protegidos, dada a capacidade de determinadas informações de

autorizarem ou desautorizarem parentelas ou contestas a judaicidade dos sujeitos.

Como e por que determinados artefatos incorporam formas específicas de

conhecimento? Quais são as práticas que dotam esses objetos de uma agência capaz de

determinar o passado, testemunhar sobre famílias e explicar comportamentos de

pessoas? Por que as listas genealógicas são tão centrais? De que forma se intervém nos

arquivos para que deles se extraiam genealogias? Por que os nomes têm uma

importância tão destacada? Qual é a relação entre pessoa, família e nome? Essas são

algumas das perguntas que se impõem, e buscarei abordar em minha apresentação.

Palavras-chave: Suriname; Caribe; Parentesco

MATERIALITY OF ANCESTRY AMONG SURINAMESE JEWS

título em inglês centralizado? (fiquei em dúvida)

Abstract: Among the Surinamese Jews - most of them residents of Paramaribo - the

genealogical research in archives (public or domestic) is very usual. The primary goal is

to link the ego and his/her family to famous ancestors and the discovery of new kinship

ties between the families. This paper will investigate the "stambomen" - literally

"genealogical trees" in Dutch - and how it constitutes the materiality of ancestry and

kinship in this specific case. These artifacts will be examine from the process of

research (onderzoek) in archives or with older members of the community, to their

1 “Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e

06 de agosto de 2014, Natal/RN.”

2 Para a realização deste trabalho, o autor recebeu apoio da FAPEMIG.

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elaboration, drafting and final form, as stambomen. Besides that, Jews keep old objects

and make distinctions on what is and is not an "archive", according to the organization

and nature of its contents. Documents and archives, in this context, must be protected

since they have a huge amount of genealogical information, some of which are believed

to be capable of dispel claims of jewishness and ties with famous ancestors or families.

Why and how some artifacts incorporate specific forms of knowledge? Which practices

allow these objects to determine the past, testify about families and kinship ties and

explain people's behaviors? Why are genealogical lists so central? How genealogical

information is extracted from the archives? Why family names have such an important

role? What's the connection between personhood, family and name? These are some of

the question to be examined in the following paper.

Keywords: Suriname; Caribbean; Kinship

Introdução:

O Suriname é o menor país da América do Sul. Com uma população de

aproximadamente 500.000 habitantes, é também o menos populoso. O que do ponto de

vista censitário pode ser chamado de "diversidade étnica", no entanto, é impressionante.

Um país de maioria indo-caribenha (descendentes de indianos trazidos para trabalhar

nas lavouras após o fim da escravidão, em condições análogas às da escravidão, no que

convencionou-se chamar indentured labour), seguida de perto por afro-caribenhos,

conta também com números expressivos de Javanases (também trazidos como

indentured labourers da ilha de Java, antiga colônia holandesa), Maroons (descendentes

de escravos fugidos que vivem, em geral, no interior) e, mais recentemente, chineses e

brasileiros (a maioria atraídos pelo garimpo, com o fechamento das minas no Brasil).

Com relação aos judeus, a história que me era contada, durante os nove meses e

meio de trabalho de campo entre as famílias judaicas do país entre os anos de 2010 e

2012, é a de que estes foram o primeiro grupo não autóctone a colonizar o Suriname.

Sua chegada data do século XVII, quando, expulsos do Recife, um grupo de judeus,

liderados por David Nassy, migrou para Caiena (na atual Guiana Francesa), depois para

Barbados e, finalmente, se estabeleceu em Jodensavanne (literalmente "savana

judaica"), território autônomo concedido pelos então governantes ingleses. Lá, distantes

da perseguição inquisitorial, alguns desses judeus, de origem sefardita3 portuguesa (e,

em menor escala, espanhola), se converteriam em plantocratas e senhores de escravos.

Foi durante o século XVIII, também, que começaram a chegar judeus de origem

3 A palavra tem origem no termo hebraico Sepharad, que designa a península ibérica.

Page 3: Dimensões materiais da ancestralidade entre judeus do Suriname

asquenazita4 alto-germânica, falantes do iídiche, que fundaram sua própria comunidade,

separada - e de relação diversas vezes conflituosas - da comunidade sefardita.

Os judeus do país se consideram remanescentes desses primeiros colonos - ou

descendentes de famílias asquenazitas chegadas nos séculos seguintes - e congregam

hoje na sinagoga de Neve Shalom, no centro histórico de Paramaribo. Atualmente, a

população judaica no país é estimada entre 200 e 300 habitantes, e, em 2004, as duas

comunidades se uniram sob a rubrica de Surinaamse Joodse Gemeente ("Comunidade

Judaica Surinamesa"), de denominação oficialmente liberal. A antiga sinagoga

portuguesa foi alugada e, hoje, abriga uma lan house e loja de computadores, sendo o

aluguel utilizado na manutenção do outro templo. Rivalidades permanecem, contudo:

egressos da comunidade portuguesa, de tendências mais "liberais", e da alto-germânica,

mais "ortodoxa", divergem constantemente em torno de seus entendimentos sobre a

judaicidade (jodendom) dos sujeitos e procedimentos litúrgicos. Durante os serviços do

shabbat, há a regra tácita, que opera como solução intermediária, de que metade dos

assentos é mista - à maneira liberal - e a outra metade é exclusivamente masculina - ao

modo ortodoxo (Loureiro, 2013).

Stambomen e Onderzoek: Artefatos genealógicos e modos nativos de pesquisar

Em 2009, em uma tentativa de reavivar o judaísmo no país, um rabino

reformista, que passava uma temporada no Suriname, tentou fazer uma pesquisa nos

arquivos da sinagoga, oferecendo àqueles com ascendência judaica a chance de se

converterem ao judaísmo. Essa atitude escandalizou muitos membros da comunidade,

não só os de inclinação mais ortodoxa. Embora a Sra. A5 tenha sido forte entusiasta da

iniciativa do Rabino, orgulhando-se de ter sido “a primeira pessoa a levá-lo

à Jodensavanne”, muitos outros judeus temiam que, no limite, todo o Suriname fosse

elegível à conversão pelos critérios reformistas. Alguns judeus consideravam a medida

“muito extrema”, temendo que ocorresse uma conversão maciça à religião. Um senhor

4 Ashkenaz era a denominação do hebraico medieval para a atual Alemanha.

5 Para preservar a identidade de meus interlocutores, devido ao ambiente de animosidade e

rivalidade entre famílias, os sobrenomes judaicos foram substituídos por letras (A, B, C, G,

S, etc.) e os que aparecem por extenso são fictícios, o mesmo ocorrendo com os prenomes.

A exceção é a família Nassy, pelo fato de ser a família considerada mais importante no

passado judaico surinamês.

Page 4: Dimensões materiais da ancestralidade entre judeus do Suriname

que se considera liberal disse temer que a “sinagoga ficasse como as igrejas

pentecostais, cheia de gente desesperada”.

A maior parte das pessoas, no entanto, entende que grande parte dos surinameses

descenda de judeus. Já ouvi de um interlocutor que, "embora hoje ninguém nos dê

importância, todo mundo tem algum sangue judeu... todo mundo é um pouco judeu

neste país". Esse tipo de afirmação, que pretende mostrar o quão importantes são os

judeus no Suriname e admite o compartilhamento de substância, não implica em dizer

que todos podem reclamar 'judaicidade'. Ser um "pouco judeu" e ter "algum sangue

judeu" não equivalem a ser judeu. Se os critérios da Hallakha não são sempre usados

como parâmetro para declarar quem é ou não judeu, o acesso e produção de

"documentos" e "arquivos" para sustentar alegações de ancestralidade são

absolutamente fundamentais. Se todos têm sangue judeu, nem todos dispõem dos meios

ou interesse em sublinhar suas ligações a "ancestrais" tidos como mais ou menos

importantes6.

No caso de meus interlocutores, os documentos que eles consultam e produzem

autorizam ou desautorizam determinadas ancestralidades, firmam parentelas e tornam

determinadas pessoas possíveis "judeus". Os papéis fazem parentesco, a partir da

ligação a um ancestral comum associada a afinidades pessoais e nomes de família.

Algumas, no entanto, se impõem: qual é o caráter desses objetos que aproximam ou

afastam pessoas (física ou idealmente), agregam diferentes temporalidades e ligam a

pessoa ao passado fundante do país? Como são feitos? A feitura desses 'artefatos

documentais', seu arranjo em "arquivos" e "coleções" e a forma como estes produzem

relações é o tema deste artigo.

Creio que acompanhar o percurso e a forma como esses objetos são feitos é

fundamental. O fato de a senhora que me hospedou, durante minhas viagens ao país, ter

um gosto especial pelo passado judaico foi de grande valia. Além de frequentar

regularmente os eventos da comunidade, não raro passava horas produzindo rascunhos

de listas genealógicas e digitalizando documentos. Em diversas ocasiões, pude ajudá-la

a traduzir as inscrições em português presentes nas lápides dos cemitérios de

Jodensavanne ou no cemitério sefardita da cidade. Sua principal ocupação é a de guia

6 Parece haver, aqui, uma reverberação interessante com os "parentes famosos" de Schneider.

Muitas vezes, a relação entre o ego e esse parente é "distante e obscura", mas a ela se dá muito

importância maior do que a parentes mais "próximos" que podem ser "ignorados ou

desconhecidos" (Schneider, 1965, p. 290).

Page 5: Dimensões materiais da ancestralidade entre judeus do Suriname

turística, organizando passeios às ruínas judaicas e à sinagoga do centro histórico. Ela

está constantemente produzindo textos e anotações relativas aos "monumentos" e,

quando eu cheguei pela primeira vez em sua casa, pediu que eu a ajudasse com alguns

textos em português sobre os judeus no Recife, para que ela pudesse elaborar melhor

suas visitas guiadas.

Annemarie Mol (1999) sugere que instrumentos e práticas “determinam”7 a

existência de objetos. Em uma rede8, nos deparamos com uma multiplicidade de

“determinações” e traduções ontológicas. Toda realidade tomada como “dada” ou

“natural” pode ser rastreada até sua produção, formada por uma cadeia de processos de

“hibridização” e “tradução”. Trata-se, assim, de admitir que as formas instituídas sejam

antes “determinadas” do que já dadas, e buscar descrever a materialidade concreta de

sua composição. O uso do termo “determinar” [to enact] não é contingente. Em “o

Corpo Múltiplo”, Annemarie Mol opta por abandonar o termo “performance”, em favor

de “um termo comprometido com um menor número de agendas”. Para ela, a solução

era buscar uma palavra nova, que ressoasse com menos questões exploradas no passado.

Falar de “determinação é um afastamento de outra forma de falar sobre os objetos,

aquela em que a ideia de ‘construção’ tem lugar proeminente”. (Mol, 2002, p. 41)

Escapar do “construtivismo” é importante, pois, segundo ela, é preciso dotar os objetos

não só de um passado “contestado e acidental”, mas de “um presente complexo, onde

suas identidades são frágeis e podem variar de acordo com o lugar”. (Mol, 2002, p. 43)

7 A noção de “declaração”[enacting, to enact] sugere “uma realidade que é feita e determinada,

e não observada. Em lugar de ser vista por uma diversidade de olhos (...) a realidade é

manipulada por meio de vários instrumentos, o curso de uma série de diferentes práticas. Aqui é

cortada a bisturi; ali está a ser bombardeada por ultra-sons; acolá será colocada numa balança e

pesada. Mas enquanto parte de actividades tão diferentes, o objeto em causa varia de um estádio

para o outro”. (MOL, 1999, p. 6).

8 É importante problematizar a noção de rede. Quando falo em redes refiro-me ao expediente

metodológico de "tratar de forma simétrica os fenômenos sociais e os ditos 'técnico-científicos'

Acompanhar e descrever as tramas de uma rede é seguir o movimento que produz a realidade a

partir de inúmeras “hibridizações” e “traduções”. Essas “mediações” implicam em múltiplos

deslocamentos, ocasionados pela criação constante de “híbridos” (mistos de natureza e

sociedade) e do esforço em decantá-los. “Sendo assim, [toda rede é] um processo de ‘engenharia

heterogênea’, no qual elementos do social, do técnico, do conceitual e do textual são acoplados

e, então, convertidos (ou “traduzidos”) em um conjunto de produtos científicos igualmente

também heterogêneo. Isto acontece na ciência. Mas eu também já afirmei que a ciência não é

muito especial. Logo, o que é verdadeiro para a ciência, também pode sê-lo para outras

instituições. Assim, a família, a organização, os sistemas computacionais, a economia e as

tecnologias – toda a vida social – podem ser delineadas de modo similar. Todos são redes

organizadas de materiais heterogêneos cuja resistência foi superada. Este é o movimento crucial

feito pelos autores da teoria ator-rede: a sugestão de que o social não é nada mais do que redes

de materiais heterogêneos”. (LAW, 1992, p. 2)

Page 6: Dimensões materiais da ancestralidade entre judeus do Suriname

Como e por que determinados artefatos incorporam formas específicas de

conhecimento? Quais são as práticas que dotam esses objetos de uma agência capaz de

determinar o passado, testemunhar sobre famílias e explicar comportamentos de

pessoas? Por que as listas genealógicas são tão centrais? De que forma se intervém nos

arquivos para que deles se extraiam genealogias? Por que os nomes têm uma

importância tão destacada? Qual é a relação entre pessoa, família e nome? Essas são

algumas das perguntas que se impõem aqui.

Ao construir uma árvore (stamboom), o procedimento é bastante parecido; os

primeiros ancestrais estão memorizados (commited to memory) enquanto os próximos

necessitam do uso de árvores já feitas por seus avôs ou bisavôs. Supõe-se, contudo, que

há uma série de ingenuidades a serem corrigidas nas antigas árvores, de modo que estas

funcionam, via de regra, como pontos de partida (algumas famílias, menos interessadas

no “onderzoek” [pesquisa] genealógico, simplesmente atualizam as antigas árvores). Os

arquivos da sinagoga são considerados particularmente importantes, por poderem

revelar possíveis laços de parentesco. A pouca disponibilidade em pesquisá-los,

entretanto, faz com que se busque informação no “Arquivo Nacional do Suriname” e no

“Arquivo Judaico de Haia” (na Holanda), entre outros.

Interessa, primordialmente, quem foi seu pai, o pai de seu pai, e assim por

diante. Embora as mulheres apareçam nas genealogias, as ancestrais têm importância

bastante reduzida se comparadas aos homens. Uma das razões, segundo alguns de meus

interlocutores, é que “as mulheres não passam o nome”. Nesse sentido, não só sua

ancestral não é exatamente 'da sua família', como seria absolutamente improdutivo

buscar por pessoas que não deixam evidências para a geração seguinte. Os ancestrais

homens são mais valorizados, ademais, por protagonizarem histórias, terem sido os

donos de plantações, figuras importantes, etc.

Há um trabalho constante em fazer e refazer a árvore, consertando detalhes e

adicionando, eventualmente, parentes colaterais ou mulheres; muitas delas são

rascunhadas em cartolina ou grandes folhas de papel (em geral a lápis) e depois

digitalizadas. Esse processo de digitalização é, obviamente, novo. Os arquivos da mãe

de minha anfitriã dispunham de diversas genealogias datilografadas. Parece-me,

contudo, que uma vez feito um esboço, o documento deve ser, de alguma maneira,

formalizado. O importante é que a genealogia impressa e não a manuscrita é aquela que

vai ser apresentada a estranhos, caso necessário.

Page 7: Dimensões materiais da ancestralidade entre judeus do Suriname

Nessas genealogias digitalizadas, assim como nas datilografadas que encontrei

nos arquivos da mãe de minha anfitriã, dados utilizados somente como referências

tendem a ser removidos. Refiro-me a todo tipo de inscrição que não se faça visível no

desenho final da árvore: parentes que são utilizados apenas como referência para

facilitar a localização de outros ancestrais, troncos de parentesco colateral que acabam

em linhas indefinidas, rasuras, datas duvidosas, etc. Esses dados, contudo, integram o

conjunto de "complexidades" excluídas desses artefatos. Não se trata de uma

irrelevância em princípio, mas do fato de que um texto "não pode fazer tudo ao mesmo

tempo ou dizer tudo". (Mol e Law, 2002, p. 6)

Há também a possibilidade de criar versões resumidas do Stembom. A mais

comum é aquela em que o nome do seu ancestral mais antigo é colocado no começo e é

traçada uma linha que leva até você. Essa é a mais resumida das formas genealógicas,

em que não há espaço para irmãos, irmãs, tios, tias ou mesmo mães e avós. Apenas uma

pessoa é relacionada por geração e só é possível que esta seja uma mulher caso seja a

última (no caso, a mais recente). Minha anfitriã utilizava essa forma resumida em sua

vista guiada à Jodensavanne, no intuito de mostrar aos turistas o túmulo de alguns de

seus ancestrais. Para ela, seria mais fácil visualizar a ascendência, já que olhos menos

treinados tendem a se perder em meio a árvores um pouco maiores. Nesse caso, esse

formato tinha caráter, sobretudo, didático.

Há listas disponíveis de homens que chegaram, o longo dos séculos, para

construir o hospital, trabalhar na milícia judaica ou simplesmente buscar uma vida de

maior liberdade religiosa e oportunidades em Jodensavanne ou já em Paramaribo.

Muitos destes, por vezes, possuem o mesmo sobrenome dessa ou daquela pessoa e não é

incomum que haja certo esforço em ligá-lo a você. Ainda que alguns não tenham

chegado para fazer trabalhos considerados prestigiosos, eles atestam antiguidade, e essa

relação de tocar de alguma forma o passado, fazê-lo visível e vivenciá-lo parece ser

sempre prazerosa. É possível, muitas vezes, encontrar a partir deles pistas que levem aos

seus ancestrais mais antigos, já que nem todos descendem dos primeiros moradores de

Jodensavanne. Com o advento da internet, a troca de dados genealógicos tornou-se mais

intensa. A “Sociedade Genealógica do Suriname” temporariamente envia um newsletter

contendo informações sobre atividades e dúvidas de usuários, que em geral dizem

respeito a seus antepassados9.

9 Embora muitos judeus sejam associados à organização, ela não é exclusivamente judaica.

Page 8: Dimensões materiais da ancestralidade entre judeus do Suriname

A precisão é uma qualidade sempre aventada como necessária na produção de

uma genealogia. Muitas não são levadas a sério, já que, para montar uma boa

genealogia, é necessário ser um bom “onderzoeker”. Este se assemelha, em alguns

aspectos, ao bom historiador, exceto pelo fato de que, via de regra, já sabe o que

procura. Deve ser "minucioso, não se deixar levar por falsas pistas, ter paciência para

encontrar informações valiosas perdidas em meio a centenas de informações

irrelevantes [worthless] e, saber onde estão os dados relevantes na montagem de uma

genealogia." Posteriormente, há todo o trabalho de conectar essas informações, de modo

a dotá-las de sentido. É preciso que se tenha paciência, já que, como me explicaria

minha anfitriã: "muitas vezes se encontra um lapso de 40 ou 50 anos e este, dada a

pouca expectativa de vida das mulheres e o hábito dos viúvos em se casarem de novo,

não representa um número definido de gerações". Preencher esses espaços é essencial;

se não há nada entre eles, a quantidade de homônimos pode criar um ponto

“questionável” na genealogia que está sendo feita. Enfim, muitas vezes, a criação e

manutenção de material genealógico é o trabalho de uma vida. Além disso, muito

poucos conseguem, de fato, preencher as genealogias de tal forma que não haja espaços

entre esse ou aquele ancestral. É, de fato, como me diria um interlocutor, um “craft”, já

que, "ao invés de ourivesaria ou carpintaria (...) trata-se de buscar dados em arquivos".

A confecção desses objetos procura condensar todo tipo de evidência que possa

ligar a pessoa ao ancestral. Estes são, em geral, produzidos a partir de papéis, consultas

aos mais velhos, intervenções em arquivos, etc. São na maior parte das vezes feitas pela

própria pessoa, para seu uso e de seus descendentes diretos (filhos e netos) que, quando

mais velhos, podem vir a enriquecer, corrigir ou adicionar informações ao Stamboom.

Embora a noção de reencarnação seja estranha aos judeus, a ideia de que as famílias têm

características mais ou menos definidas ao longo dos séculos é bastante difundida. Estas

características, atribuídas tanto ao sangue quanto ao processo de socialização, derivam

dos primeiros ancestrais, que em geral são quase arquétipos dos tipos de comportamento

atribuídos às famílias. Menciona-se, ocasionalmente, o fato de o espírito viver "através

das gerações". Qualquer tentativa de comparação com reencarnação, no entanto, é

imediatamente rechaçada e a maior parte das explicações tendem a equiparar espírito e

sangue: ele passa de geração para geração. O espírito de um ancestral sobrevive seu

corpo físico e está presente em todos (e não apenas um) de seus descendentes.

Page 9: Dimensões materiais da ancestralidade entre judeus do Suriname

A importância dos ancestrais reafirma a importância desses objetos. Ainda que

tenha havido, recentemente, um alargamento no entendimento de quem é ou não judeu,

não é qualquer um que pode, de fato, "ser judeu". A judaicidade é transmitida pelo

"sangue", mas não só: o medo de que se abra os arquivos é justamente uma primeira

precaução a um possível interesse de membros indesejados na vida judaica local.

Segundo um senhor que conheci "não é o sangue, sangue todo mundo tem (...) é saber

as coisas, conhecer as pessoas". As árvores e a preocupação em manter o controle sobre

o acesso aos arquivos não atestam somente o 'poder' do "sangue" como vetor de

judaicidade, mas demonstram que a substância em si não torna os sujeitos judeus. Em

outras palavras, o sangue judaico só passa a existir quando passíveis de serem inscritos

em artefatos genealógicos que liguem o ego a algum ancestral judeu (ou quando a

ascendência judaica é dada como certa e não questionada). Não basta, do ponto de vista

biológico, ter sangue judeu: é preciso que este seja reconhecido, e passível de ser

documentado.

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