digestão anaeróbia de rsu-processos, tecnologias e impactos

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DIGESTÃO ANAERÓBIA de RSU: PROCESSOS, TECNOLGIAS, E IMPACTOS F.J.M. Antunes Pereira Professor Catedrático Unoversidade de Aveiro, Portugal [email protected] O processo de conversão da fracção orgânica dos resíduos sólidos urbanos (RSU) em biogás (CH 4 +CO 2 ) segue em linhas gerais o esquema cinético convencional já conhecido para a anaerobiose das lamas primárias, dejectos animais, resíduos agrícolas, etc. O conteúdo em água dos resíduos condiciona muitas vezes o processo de fermentação da sua biomassa com vista á sua depuração e/ou conversão em energia. Como se verá mais adiante com detalhe, a digestão anaeróbia, ou biometanização, pode processar-se por via húmida ou por via seca. O primeiro é o processo clássico, enquanto que o segundo é mais recente. O que distingue os dois processos é fundamentalmente o teor em sólidos da alimentação do reactor: menor do que 8% na via húmida e maior que 22% na via seca. Claramente o termo via seca não é inteiramente correcto, mas põe em evidência o facto de que um resíduo com menos de 8% de sólidos suspensos é uma suspensão líquida facilmente bombável pelos processos convencionais, enquanto que acima de 22% de sólidos é uma pasta semi-sólida não bombável. O processo ocorre ou na zona mesófila (40ºC) ou termófila (60ºC); em qualquer dos casos é necessário fornecer calor ao digestor, e este consumo energético é naturalmente maior para os sistemas ed via húmida que processam grandes caudais de líquido; contudo, como se verá, o processo de biometanização é excedentária em energia, dado que consome apenas 30% da energia que produz (quando os gases biológicos, contendo CH 4 , são queimados). No entanto, mesmo no caso dos RSM em muitos casos haverá vantagem em utilizar os processos de biogasificação, visto que não só os requisitos energéticos para os pre-condicionar à temperatura óptima de fermentação (60ºC) são substancialmente atenuados como as potencialidades para a conversão de energia são evidentes, uma vez que a água necessária ao transporte da pasta pode ser reciclada minimizando-se assim a sua utilização e conservando calor e nutrientes.

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Monografia universitária contendo uma descrição descrição técnica dos processos, tecnologias e impactos ambientais da biometanização de resíduos orgânicos (digestão anaeróbia)

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Page 1: Digestão anaeróbia de RSU-Processos, tecnologias e impactos

DIGESTÃO ANAERÓBIA de RSU: PROCESSOS, TECNOLGIAS, E IMPACTOSF.J.M. Antunes PereiraProfessor Catedrático

Unoversidade de Aveiro, [email protected]

O processo de conversão da fracção orgânica dos resíduos sólidos urbanos (RSU) em biogás (CH4+CO2) segue em linhas gerais o esquema cinético convencional já conhecido para a anaerobiose das lamas primárias, dejectos animais, resíduos agrícolas, etc.

O conteúdo em água dos resíduos condiciona muitas vezes o processo de fermentação da sua biomassa com vista á sua depuração e/ou conversão em energia. Como se verá mais adiante com detalhe, a digestão anaeróbia, ou biometanização, pode processar-se por via húmida ou por via seca. O primeiro é o processo clássico, enquanto que o segundo é mais recente. O que distingue os dois processos é fundamentalmente o teor em sólidos da alimentação do reactor: menor do que 8% na via húmida e maior que 22% na via seca. Claramente o termo via seca não é inteiramente correcto, mas põe em evidência o facto de que um resíduo com menos de 8% de sólidos suspensos é uma suspensão líquida facilmente bombável pelos processos convencionais, enquanto que acima de 22% de sólidos é uma pasta semi-sólida não bombável.

O processo ocorre ou na zona mesófila (40ºC) ou termófila (60ºC); em qualquer dos casos é necessário fornecer calor ao digestor, e este consumo energético é naturalmente maior para os sistemas ed via húmida que processam grandes caudais de líquido; contudo, como se verá, o processo de biometanização é excedentária em energia, dado que consome apenas 30% da energia que produz (quando os gases biológicos, contendo CH4, são queimados).

No entanto, mesmo no caso dos RSM em muitos casos haverá vantagem em utilizar os processos de biogasificação, visto que não só os requisitos energéticos para os pre-condicionar à temperatura óptima de fermentação (60ºC) são substancialmente atenuados como as potencialidades para a conversão de energia são evidentes, uma vez que a água necessária ao transporte da pasta pode ser reciclada minimizando-se assim a sua utilização e conservando calor e nutrientes.

1-DESCRIÇÃO DO PROCESSO

A reacção global de metanização pode sintetizar-se na seguinte reacção química, formalmente análoga à da compostagem:

Sólidos Voláteis gases biológicos + biomassa celular + resíduo

[CH4, CO2, H2S, VOCs] [C5 H7 O2 N] [composto]

Ao contrário da compostagem, contudo, é a fracção de gases libertados que tem geralmente mais interesse, devido à presença do CH4 que é um gás combustível, constituindo assim uma fonte de energia renovável. O resíduo, após subseqüente estabilização por fermentação aeróbica (compostagem) dá origem a um composto.

Os principais produtos gasosos resultantes da digestão anaeróbia são, como referido, o CO2 e CH4

numa mistura denominada biogás. Esta mistura contém adicionalmente uma pequena concentração dum grande número de compostos orgânicos voláteis (COVs). A sua composição relativa varia um pouco, consoante a natureza do substrato digerido, mas é sensivelmente 50%:50%. No caso

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simplificado de conversão completa do substrato orgânico, as quantidades destes gases calculam-se a partir do conhecimento da reacção química global que é:

com:

; ;

A composição do biogás depende portanto da composição do substrato através dos coeficientes n, a, b e c, mas podem-se considerar como valores típicos (máximos, teóricos, estequiométricos) de rendimento em gás, para grande número de substratos envolvidos em tratamento de resíduos orgânicos, os seguintes:

1 ton S.V. T. (totais, secos) ~ 467 m3N (CH4+ CO2)

1 ton S.V. B. (biodegradáveis, secos) ~ 747 m3N (CH4+ CO2)

em que m3N

significa o volume medido em condições PTN. Mais adiante (Secção 4) explicar-se-á como estimar os valores para o caso de um RSU típico. Na prática os valores de rendimento em gás são bastante inferiores, visto que só uma parte dos SV é biodegradável nas condições reais de digestão; além disso, e como conseqüência da incompleta biodegradabilidade, o processo gera um resíduo sólido (ou lama) orgânico, parcialmente patogênico, e que tem de ser estabilizado aeróbicamente, originando-se assim como sub-produto um composto.

Tal como na compostagem o tamanho e complexidade duma instalação de biometanização depende do tipo e origem dos resíduos que processa (RSU, ou então bioresíduos). No caso de bioresíduos, como não há basicamente componentes inertes a separar, a instalação é mais simples, e as quantidades relativas dos produtos apenas dependem de se tratar dum processo por via húmida ou por via seca, como se mostra na tabela a seguir.

Balanços mássicos típicos em digestão anaeróbia (em Kg)Base: 1 ton de RSU (tal qual)

ENTRADAS SAÍDASRSU Biogás Composto Materiais

recicláveisResíduo

(para aterro)Águas residuais

Via húmida:

1000 150 (195 m3) 200 90 10 550

Via seca:

1000 120 (156 m3) 330 190 60 300

Tal como na compostagem, no caso dos RSU, exige-se um pré-processamento para eliminar a fracção inerte (metais, vidros, etc) e concentrar e segregar a matéria orgânica; no caso dos bioresíduos esse pré-processamento é mínimo (Fig. 1). Da matéria orgânica putrescível cerca de 67% do metano obtido por digestão provém da fracção de papel e 12% dos resíduos alimentares. Na cadeia global, a hidrólise da celulose insolúvel a celobiose parece ser o passo determinante da anaerobiose da celulose, a qual pode ser modelizada por uma cinética do tipo Michaelis-Menten. Em ensaios laboratoriais já foram determinados os parâmetros cinéticos do processo.

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Figura 1-Diagrama geral duma instalação de biometanização (digestão anaeróbia)de bioresíduos.

O processo de digestão anaeróbia é bastante sensível, entre outras coisas, à natureza do substrato orgânico, em particular à sua biodegradabilidade. O rendimento máximo (estequiométrico, ou seja, correspondendo à conversão completa) raramente é atingido, e diferentes substratos têm diferentes velocidades de transformação, como se pode ver por análise dos tempos de semitransformação dos três componentes mais abundantes (Tabela 1).

Tabela 1-Tempo de semi-transformação e biodegradabilidade (% da conversão máxima) de vários substratos

SUBSTRATO (ano) CONVERSÃO(%)

Facilmente biodegradáveis (papel, resíduos de alimentação, etc, essencialmente celulose)

1 a 5 ~100

Moderadamente biodegradáveis (vegetais, cartão, etc) 5 a 25 ~90

Dificilmente biodegradáveis (madeira, vegetação arbórea, etc, contendo mais de 30-40% de lenhina)

20 a 100 ~50

A dificuldade na biodegradação destes materiais é explicada pelo seu baixo teor em água, pelo grau de polimerização e cristalinidade da celulose e pelo grau de associação da celulose à lenhina. Esta é

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provavelmente o componente mais refractário na digestão, enquanto que a celulose e a hemicelulose puras são relativamente biodegradáveis.

Uma vez que a fermentação metanogénica é um processo em várias fases (ver a Fig. 2), desempenhado por uma grande variedade de bactérias (ver Tabelas 2 e 3) tem-se tentado separar as fases acetogénica (hidrólise e acidificação) da metanogénica própriamente dita. Nestas condições seria possível, em teoria, operar cada estádio, em condições óptimas para cada tipo de cultura. Contudo a experiência mostra que a hidrólise da celulose, mais do que a acetogénese ou metanogénese, é o passo determinante na fermentação de substratos complexos, e que os três processos ocorrem razoavelmente rapidamente na região termófila e de pH próximo de neutro (6,4-7,4).

Figura 2-Fases, ou passos duma digestão anaeróbia.

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Tabela 2- Bactéria não metanogénicas isoladas durante a digestão anaeróbia

Tabela 3-Bactérias metanogénicas observadas durante a digestão anaeróbia

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2-FACTORES AMBIENTAIS

Os parâmetros ambientais que mais influem no processo são: temperatura, pH, humidade, granulometria, densidade e qualidade dos resíduos, disponibilidade de nutrientes (N, P, S) e presença de xenobióticos.

A temperatura é um factor importante na eficiência do processo. A digestão e produção de gás podem ocorrer numa larga gama de temperaturas, mas tem valores máximos às temperaturas de 40 e 55ºC, respectivamente na zona mesófila (30- 45ºC) e na zona termófila (45- 60ºC), como se vê na Figura 3. O rendimento gasoso a partir dos RSU é maximizado na zona termófila, sendo portanto

Figura 3-Efeito da temperatura na velocidade de produção de gás na biometanização

este o tipo de fermentação mais vantajosa pois aumenta a biodegradabilidade dos sólidos voláteis. Considerando numa primeira aproximação a biometanização como uma reacção de 1ª ordem global, a concentração de substrato em qualquer instante (S) é dada por:

So / S = 1 + k τh

em que So é a fracção biodegradável dos SV. A Tabela 4 mostra o efeito da temperatura na % de conversão de SV (biodegradabilidade) e no valor da constante cinética k. Notar a inibição na zona de 40ºC.

Tabela 4- Biodegradabilidade e constante de velocidade em função da temperatura (substrato: fracção orgânica dos RSU)

Temp.(ºC)

Biodegradabilidade(% sólidos voláteis)

k(dia –1)

35 36 0,5340 44 0,5845 40 0,4750 49 0,6355 51 0,78

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60 55 0,95O valor de pH no processo resulta da interacção do sistema tampão bicarbonato-dióxido de carbono com os ácidos voláteis e a amónia formada. É importante que exista no digestor uma capacidade tampão para os ácidos produzidos, evitando que o pH baixe a um nível inibidor das sensíveis bactérias metanogénicas (fora da gama 6,4 a 7,4). As bactérias não metanogénicas são mais tolerantes, sendo capazes de funcionar numa gama de pH de 5 a 8,5. Quando o sistema não é auto-tamponizante é necessário adicionar um corrector de pH.

O conteúdo em humidade dos resíduos tem efeito na produção de gás. Variando o teor em humidade de 36 para 99 % aumenta a produção de gás de 670 %, sendo esse aumento mais notável na gama de 60- 78 % de teor em humidade.

O tamanho das partículas dos resíduos tem um efeito notável na produção de gás. Diminuindo o tamanho das partículas de um factor de 10 aumenta a velocidade de produção de gás de um factor de 4,4. No entanto, na maioria dos casos torna-se impossível reduzir os resíduos a partículas de pequenas dimensões, devido aos elevados custos monetários.

Um aumento da densidade dos resíduos decresce a velocidade de produção de gás, pois a compactação diminui a área superficial efectivamente exposta para a hidrólise enzimática.

As células dos microorganismos contêm uma razão de C:N:P:S aproximadamente de 100:10:1:1. Assim, para que ocorra a actividade e crescimentos microbiológicos estes elementos têm que estar presentes e disponíveis sem se tornarem limitantes, tendo sido sugerido como razões apropriadas de C:N e C:P, os valores de 25:1 e 20:1, respectivamente. Os resíduos sólidos municipais são deficientes em azoto e fósforo, sendo por isso necessário adicionar estes nutrientes, o que pode ser feito adicionando lamas de ETAR, dejectos animais, etc.

A qualidade dos resíduos afecta bastante a produção de gás. Assim, a idade dos resíduos é um factor a considerar; os resíduos devem ser processados o mais rapidamente possível, pois a armazenagem pode resultar numa redução na produção de gás devido á perda de orgânicos biodegradáveis por estabilização aeróbia.

Vários compostos orgânicos tóxicos, ou xenobióticos, podem inibir a digestão anaeróbia, dos quais se salientam os pesticidas. A maioria dos catiões em concentrações elevadas, principalmente os metais pesados, produzem efeitos tóxicos nos microorganismos.

3-EQUIPAMENTO

Tal como na compostagem, antes da fermentação propriamente dita, e dependendo da sua origem e composição, os resíduos são submetidos a um conjunto variável de operações mecânicas (triagem manual, crivagem, moagem, homogeneização) de modo a facilitar o processo de fermentação biológica.

Existem basicamente dois tipos de tecnologia, sendo a distinção feita em função da concentração de sólidos suspensos (SS) na matriz líquida: digestão “húmida” (conteúdo em SS até 8% em peso), e digestão “seca” (conteúdo em sólidos acima de 22%). Actualmente as mais desenvolvidas do ponto de vista comercial estão indicadas na Tabela 5.

Tabela 5 -Tecnologias actuais de digestão anaeróbia.

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DIGESTÃO “HÚMIDA(até 8% SS)

DIGESTÃO “SECA”(acima de 22% SS)

Reactor agitado: DBA-WASA; BTA Reactor tubular: KOMPOGAS; DRANCOReactor batch: HITACHI Reactor agitado: VALORGA

Reactor batch: BIOCEL

Os processos “diluídos” (de baixa concentração de SS) são os mais vulgarizados, e usam fundamentalmente o mesmo tipo de reactores que as ETARs convencionais para tratamento de águas residuais.. Os processos “secos” são mais recentes mas têm vindo a desenvolver-se rapidamente. A Figura 4 mostra esquematicamente os tipos de reactores usados na digestão “húmida”.

A hidrólise e acetogénese, como reacções enzimáticas são aproximadamente descritas por um mecanismo do tipo Michaelis-Menten, mas em que em condições perto do equilíbrio se verifica inibição pelos produtos formados na reacção reversível de decomposição do complexo enzima-substrato. Consequentemente um escoamento tubular será menos eficiente que um escoamento com mistura induzida. Num processo de reacções em série como o de digestão anaeróbia dos RSU será de prever que o melhor método de contacto dos reagentes, ou o esquema de contacto mais eficiente, seja aquele que permita os vários processos ocorrerem concorrentemente e de modo a levar rapidamente aos produtos finais CH4 e CO2. Como estes gases são relativamente insolúveis no meio reaccional, o seu efeito inibidor na cinética é substancialmente atenuado, quando eles abandonam o reactor.

Nestas condições um CSTR é o reactor mais indicado. Uma limitação intrínseca deste reactor é a impossibilidade de operar com um tempo de retenção das células (τc) maior que o tempo de retenção hidráulico (τh). Para substratos solúveis ou facilmente biodegradáveis, este inconveniente é facilmente obviado usando recirculação da biomassa celular formada. Contudo para substratos relativamente inertes seria inevitável uma acumulação de sólidos não degradáveis se usasse recirculação. A taxa de recirculação R definida como: R = τc / τh terá de ser portanto controlada para manter a eficiência do processo global. Por exemplo para τc =10 dias e τh=1 dia, é R=l0; para uma alimentação contendo 10g/l de sólidos a concentração de equilíbrio de sólidos acumuláveis seria de l00g/l (l0%).

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Figura 4-Tipos de reactores usados na digestão anaeróbia (processo por via “húmida” (Duarte et al., 1983).

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No digestor clássico (Fig. 4a) a digestão processa-se numa só etapa e o conteúdo do digestor geralmente não é misturado nem aquecido. Os tempos de retenção variam entre 30 a 60 dias e a carga é de 0,5 a 1,6 Kg SV/m3.dia. À medida que a decomposição decorre, desenvolvem-se três zonas distintas de estratificação sob uma crosta constituída por materiais fibrosos com uma grande carga de celulose. As três zonas são: um sobrenadante, uma zona de resíduos em digestão e uma zona de resíduos estabilizados na base do digestor. Os resíduos frescos são adicionados duas a três vezes por dia à zona de digestão, e o gás é libertado naturalmente. No digestor de alta carga (Fig. 4b) o conteúdo do digestor é aquecido e completamente misturado. O tempo de retenção e de 15 dias ou menos, sendo possível processar uma maior carga, 1,6 a 8,0 Kg SV/m3.dia. O gás é retirado por bombagem e a alimentação é contínua com ciclos de 30 min, ou 2 horas, causando a saída dos resíduos digeridos que vão para um tanque ou para um segundo digestor, onde se dá a separação do sobrenadante e extração de gás residual. Com este procedimento pode ocorrer uma segunda fase de digestão, dando origem ao processo de duas etapas. A carga aplicada não pode ser indefinidamente aumentada, devido á contínua remoção de microorganismos. No processo por contacto (Fig. 4c) a principal característica consiste em separar e concentrar os microorganismos dos resíduos digeridos, num tanque separado e devolvê-los ao digestor. Esta recirculação permite que o tempo de retenção das células seja de vários dias enquanto o tempo de retenção hidráulico é de poucas horas (6-12 h) com reactores de volume menor.

O filtro anaeróbio é um processo (Fig. 4d) de tratamento para resíduos de baixo teor em matéria orgânica que ocorre num reactor de fluxo ascendente onde os microorganismos são retidos á superfície de um material inerte durante mais tempo do que os resíduos.

Nos digestores de uma só fase o pH é mantido em 7, o qual embora seja próximo do pH óptimo para as bactérias metanogénicas e hidrolíticas é um pouco elevado para as bactérias acidogénicas. Foi assim sugerido que os dois passos da digestão anaeróbia, a acidogénese e a metanogénese, fossem separados em dois reactores, de forma a proporcionar um ambiente específico favorável a cada população bacteriana (Fig. 4e). O primeiro passo é operado com pequeno tempo de retenção hidráulico (algumas horas) e baixo pH (5,6-5,9), com produção de ácidos orgânicos; no entanto o pH baixo também poderá inibir as bactérias hidrolíticas. O segundo passo é a fermentação dos ácidos orgânicos a CH4 e CO2, num tempo de retenção hidráulico de 4 a 6 dias para permitir o lento crescimento das bactérias metanogénicas.

Destes tipos de reactores os mais vulgarizados na digestão anaeróbia de RSU são os digestores de alta carga em uma ou duas etapas. No entanto, nestes digestores, por vezes ainda surge o problema prático de agitação deficiente dos resíduos só1idos, o que causa a formação de uma crosta quando a concentração de sólidos voláteis é grande, provocando uma diminuição na produção de gás.

Os processos de baixa concentração de sólidos exigem uma eficiente (e dispendiosa) operação de separação sólido/líquido, para reciclar o máximo da fase líquida, evitando-se assim o consumo excessivo de água e conservando-se calor e nutrientes. As Figuras 5, 6 e 7 mostram esquematicamente três tipos recentes destas tecnologias. Conceptualmente os flow-sheets são semelhantes

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Fig

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8).

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Figura 6-Processo VALORGA para digestão anaeróbia de resíduos sólidos.

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Figura 7-Processo KOMPOGAS para digestão anaeróbia de resíduos sólidos.

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4-ANÁLISE DAS CARACTERÍSTICAS DE PRODUÇÃO DO BIOGÁS: RENDIMENTO MÁSSICO E POTENCIAL ENERGÉTICO

O tratamento de resíduos por digestão anaeróbia pode ser encarado como um processo de estabilização (antes de aterro) ou como um processo produtivo duma matéria prima para a indústria (biogás). De facto, o componente mais importante do biogás é o metano (CH4), também conhecido como gás natural, e que é um combustível importante na produção de energia e também uma matéria prima relevante na síntese de uma enorme gama de hidrocarbonetos. Interessa por isso analisar com certo detalhe o rendimento de transformação da matéria orgânica dos resíduos (SV-sólidos voláteis) em biogás e o respectivo conteúdo energético, para avaliar o seu significado económico.

4.1-RENDIMENTO MÁSSICO GASOSO DUMA FERMENTAÇÃO ANAERÓBIA

A maneira correcta de estimar o rendimento em gases duma fermentação é realizar esta em escala laboratorial nas mesmas condições operatórias que se prevêm para a escala real. Contudo nem sempre isso é possível; nesse caso recorre-se então a métodos previsivos desse rendimento. Descrevem-se a seguir os métodos mais frequentes usados para estimar o potencial em biogás dum substrato orgânico biodegradável.

1-Por estequiometria de reacções químicas(i) A biometanização pode representar-se por uma equação química global que resulta duma combinação adequada de três reacções parciais de oxidação (McCarty, 1962, 1972, 1975): uma para o dador de electrões (Rd), uma para o aceitador de electrões (Ra) e uma para a síntese biológica (Rc). A reacção global obtém-se pela combinação:

Rg=Rd - fe .Ra - fs .Rc (1)

em que Rd representa uma reacção parcial de oxidação por equivalente de dador de electrões. A fracção fe representa a porção do dador de electrões (ou de COD) que está acoplado ao aceitador de electrões (a fracção usada para conversão em gás metano, para energia); a fracção fs representa a fracção do dador de electrões (ou de COD) mobilizada na incorporação biológica (a fracção sintetizada, convertida em biomassa celular). Para a eq (1) obedecer à estequiometria terá naturalmente que verificar-se: fe + fs = 1.

Pode estimar-se o valor de fs através da seguinte equação:

f af b t

b ts ed s

s

.

. .

.1

1

(2)

Para sistemas anaeróbios b varia entre 0,01 e 0,04 dia-1, e ae entre 0,1 e 0,3; o valor de fd é aproximadamente igual a 0,8 para bactérias anaeróbias e aeróbias. Admitindo que para as condições típicas do lixo urbano se tem ae=0,2 e b=0,02, escolhendo um tempo de retenção ts suficientemente grande resulta para fs um valor de 0,04 e, consequentemente para fe o de 0,96.

A seguinte equação química pretende representar a decomposição dum substrato orgânico, tendo em consideração a produção de biomassa com a fórmula empírica típica de C5H7O2N:

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CnHaObNc + AH2O = B CH4 + C CO2 + D C5H7O2N +E NH4+ + F HCO3

- (3)sendo:

A n c bf d fs e 2

9

20 4.

. . (4)

Bf de

.

8

(5)

C n cf d f ds e

. .

5 8

(6)

Df ds

.

20

(7)

E cf ds

.

20

(8)

F cf ds

.

20

(9)

d n a b c 4 2 3. . . (10)

(ii) Uma estimativa mais rápida do rendimento em biogás consiste em desprezar, numa primeira aproximação, a formação de biomassa na eq (3), que se escreve então:

CnHaObNc + AH2O = B CH4 + C CO2 + D NH3 (11)

Nestas condições, as relações estequiométricas são:

An a b c

4 2 3

4

. . . (12)

Bn a b c

4 2 3

8

. . . (13)

Cn a b c

4 2 3

8

. . . (14)

D c (15)

Notar que neste caso há uma relação simples e directa entre o número de átomos de C e o de moles de biogás produzido; de facto notar que:

B Cn a b c

4 2 3

8

. . .

4 2 3

8

. . .n a b cn

(16)

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ou seja, produz-se uma mole de biogás (CH4+CO2) por átomo-grama de C biodegradado (ou por 1/n moles de composto orgânico biodegradado).

Notar que os cálculos anteriores pressupõem o conhecimento a priori da fórmula química empírica do substrato; se ela não for conhecida tem de ser determinada a partir do conhecimento duma análise elementar (C,H,N,O,S).

(iii) Finalmente é possível estimar o rendimento em biogás dum resíduo, conhecida a sua composição nos três grupos principais de compostos: glúcidos, prótidos e lípidos. Pela estequiometria é possível calcular os rendimentos individuais em CH4 e CO2 (ver Tabela 6).

Tabela 6-Estequiometria da produção de CH4 e CO2 durante a biometanização Base: 1 Kg de matéria orgânica pura efectivamente biodegradada

m3N

Componente j Xj Yj Bj

CH4 CO2 BiogásGlúcidos (C6H10O5) 0,415 0,415 0,830Prótidos (C16H24O5N4) 0,525 0,493 1,018Lípidos (C16H32O2) 1,006 0,394 1,400

(m3N m3 medidos a PTN). Os valores de Xj [m3

N(CH4)/Kg de j] e Yj [m3N(CH4)/Kg de j] são

propriedades aditivas, pelo que para um dado resíduo se pode escrever:

(17)

Y W Yj j .1

3

(18)

B X Y W Bj j .1

3 (19)

Outras referências indicam rendimentos ligeiramente diferentes dos da tabela anterior (ver p. ex. a Tabela 7).

Tabela 7-Estequiometria da produção de CH4 e CO2 durante a biometanização Base: 1 Kg de matéria orgânica pura efectivamente biodegradada

m3N

Componente j

Xj Yj Bj

CH4 CO2 BiogásGlúcidos (a) 0,414 0,414 0,829Prótidos (b) 0,509 0,479 0,988Lípidos (c) 1,021 0,409 1,430

Ref.ª: Ham and Barlaz, 1987.(a) (C6H10O5)(b) C(53%), H(6,9%), O(22%), N(16,5%), S(1,25%)(c) C55H106O6

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2-Pela composição em carbono(i) Verificou-se pela estequiometria da eq (11) que se produzia uma mole de biogás por cada átomo-grama de C; então em termos ponderais tem-se a relação:

0,02241 m3N, biogás / (12 .10-6 ton de C)

ou seja:

VB,max = 1868 m3N, biogás / ton de C

Para um resíduo que tenha uma fracção ponderal em carbono de WC, o rendimento em biogás será então:

VB,max = 1868. WC m3N bio/t(RSU)btq (20)

Isto corresponde ao valor máximo (potencial ou virtual) estequiométrico, supondo degradação completa; na prática apenas uma parte deste potencial é efectivamente recuperável em condições típicas de fermentação. Tabasaran (1982) propôs a seguinte correcção para a biodegradabilidade efectiva da fracção orgânica dum resíduo urbano típico:

VB,real = (0,014.T-3,542).VB,máx (21)

reconhecendo a temperatura como um factor determinante na biodegradabilidade. (nesta equação T é expresso em K).

A vantagem destas expressões reside no facto de que em vez duma análise elementar completa (CHNO) que é necessária para poder utilizar a eq (11), basta-nos uma simples análise em carbono; em alternativa poder-se-á usar a análise imediata (WZ, fracção de “cinza” obtida por incineração numa mufla a 500 ºC), já que é conhecida a seguinte relação empírica envolvendo as fracções de cinza e de carbono:

WW

CZ1

2 08, (22)

em que as fracções são em base seca. Esta relação implica que a matéria orgânica (seca) dum RSU tenha em média cerca de 48 % de carbono. (OBS. Em algumas referencias o termo apresentado em denominador é 1,78).

(ii) Outro processo consiste em calcular a fracção de carbono biodegradável dos principais componentes dos RSU. Então a fracção de carbono biodegradável do resíduo é dada pela equação:

W W W WC j Sj Cjj

. .

(23)

em que para componente j se tem:

Wj=fracção ponderal (btq)WSj=fracção ponderal de matéria seca (bs)WCj=fracção ponderal de carbono na matéria seca (bs)

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em que (btq) base tal qual e (bs) base seca. Considerando os componentes mais biodegradáveis como os putrescíveis e o papel tem-se, respectivamente:

WC,putr 0,45WC,pap 0,43

a eq (20) escreve-se:

WC 0,45.Wputr.WC,putr +0,43.Wpap.WC,pap (24)

3-Pela biodegradabilidade

(i) Algumas estimativas admitem uma produção de 351 l (CH4)/Kg(COD biodegradável), numa base de 1,5 Kg(COD biodegradável)/Kg (sólidos voláteis,SV); nestas condições produzir-se-iam 0,527 m3 (CH4)/ton (SV). Considerando então as biodegradabilidades dos vários componentes j dum RSU, ter-se-ia uma produção de biogás de:

V VB jj

(25)

V W W Wj j j Hj MOj 527 1. .( ).. m3N(bio)/ton (RSU)btq (26)

em que para cada componente j se tem :

Vj = volume geradoWj = fracção ponderal WHj = teor em humidade W’MO j= teor em SV (bs)j = fracção biodegradável dos SV

Valores típicos para alguns componentes dos RSU são:

Componente SV (bs) j

Putrescíveis 60 50Papel 85 20

Plástico 95 2Têxteis 94 5Madeira 85 5

(ii) Outro método utiliza a análise elementar (CHNOS) dum resíduo; a equação abaixo permite calcular a fracção biodegradável dum componente X (X=C,H,N,O,S) no componente macroscópico j dum resíduo (onde a sua biodegradabilidade é j):

W W WXb

j j Xjj

. . (27)

sendo o seguinte o significado dos símbolos, para cada elemento X (X=C, H, N, O, S) no componente macroscópico j:

WbX = fracção ponderal biodegradável de X no resíduo (btq)

j = fracção biodegradável do componente jWj = fracção ponderal do componente j

Page 19: Digestão anaeróbia de RSU-Processos, tecnologias e impactos

WXj = fracção ponderal do elemento X no componente j (btq)

Consideremos agora a aplicação do método estequiométrico, usando por exemplo os valores da Tabela 6, para estimar o rendimento em biogás dum RSU, com a composição típica indicada na Tabela 8. Obtêm-se os valores indicados na Tabela 9.

Tabela 8- Composição típica dum RSU (% em peso)

Humidade Glúcidos Prótidos Lípidos Outros org. Inertes

21 47 2 4 1 25

Tabela 9- Rendimento estequiométrico (conversão total) e composição do biogás resultante da digestão anaeróbia de um RSU com a composição indicada na Tabela 8

Base: 1 Kg de RSU, tal qual

COMPONENTE VOLUME DE GÁS (m3 PTN)CO2 CH4 Biogás

Glúcidos 0,220 0,220 0,440Prótidos 0,010 0,011 0,021Lípidos 0,018 0,019 0,037

TOTAIS: 0,248 0,250 0,498 Podemos assim considerar como valor típico para o rendimento mássico teórico (estequiométrico) da produção de biogás por biogasificação de RSU os valores indicados na Tabela 10; nesta tabela os sólidos voláteis totais (biodegradáveis e não biodegradáveis) são calculados com base na composição da Tabela 8.

Tabela 10-Rendimento estequiométrico dum RSU em biogás

Teoricamente poderia esperar-se uma proporção quase igual dos dois componentes; contudo num digestor o CO2 é parcialmente solúvel e está em equilíbrio com a fase líquida, originando-se assim uma composição ligeiramente enriquecida em CH4.

Na prática, uma vez que apenas uma parte dos SVT é biodegradável, o rendimento em gás é menor; de facto medições experimentais feitas nas actuais instalações de digestão anaeróbia de RSU apontam para rendimentos reais, ou efectivos, na gama indicada na Tabela 11. Geralmente toma-se como valor típico 100 m3 (biogás) / ton de RSU base tal qual (Tabela 12).

Tabela 11 – Rendimentos efectivos de biogás medidos em digestores anaeróbios de RSU (White et al., 1996)

Tabela 12 – Rendimento efectivo típico de biogás medido em digestores anaeróbios de RSU (White et al., 1996)

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4.2-EQUIVALENTE, OU POTENCIAL ENERGÉTICO DO BIOGÁS

O CH4 tem um poder calorífico superior de 37,75 MJ/m3N. Nestas condições um biogás com uma

composição típica de 55% de CH4 terá um poder calorífico de 20,76 MJ/m3N . Em termos de

equivalência ao petróleo, atendendo a que 1 TEP = 41 860 MJ (em que TEP=Tonelada Equivalente de Petróleo) teremos que 1 m3 (biogás) = 4,96E-4 TEP; para uma densidade de 0,9 do petróleo este valor (4,96E-4 TEP = 0,496 Kg equivalentes de petróleo) corresponde a um volume de 0,496/0,9=551 litros de petróleo. Em resumo, e em termos puramente energéticos, tem-se a seguinte equivalência (Tabela 13)

Tabela 13- Equivalentes energéticos do biogás (55% CH4)

Ou seja, podem poupar-se cerca de 0,5 litros de petróleo (recurso não renovável) por cada m3 de biogás (recurso renovável) produzido. A equivalência em termos energéticos será contudo mais útil se for referida à conversão em electricidade, já que é este o produto mais usual da utilização do biogás. A conversão do biogás em electricidade faz-se em grupos motogeradores em regime de co-geração (produção simultânea de electricidade e calor). A eficiência energética global dum motogerador é da ordem dos 87%, dos quais 30% correspondem á conversão em electricidade. Nestas condições, e tendo em atenção a Tabela 11, podem estabelecer-se os equivalentes energéticos da Tabela 14.

Tabela 14-Equivalentes energéticos do biogás e RSU em regime de co-geração.

Biogás (1 m3) Electricidade + Calor

[20,76 MJ] [6,23 MJ] [11,83 MJ](equivalentes a 1,73 KWh* )

RSUbtq (1 ton) 100 m3 Biogás 173 KWh* 1183 MJ

*Electricidade

Ou seja, o rendimento em energia eléctrica do processo de digestão anaeróbia é de cerca de 173 KWhe /ton RSU btq, valor este que é confirmado por medições em digestores à escala comercial. (White et al., 1996).

Para além dos RSU, outros resíduos orgânicos são usualmente valorizados por biometanização, nomeadamente os dejectos animais originados na agro-pecuária.. A Tabela 15 mostra o rendimento de produção de biogás de várias espécies animais, bem como o respectivo conteúdo energético potencial.

Tabela 15-Rendimento em biogás dos dejectos animais da agro-pecuária, e respectivos conteúdos energéticos (valores efectivamente medidos)

Espécie Estrume(ton)

Biogás(m3)

Energia(TEP)*

Base: 1 ano, 1 ton (vivo):

Bovino (550 Kg) 26 1206 0,7

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Suíno (70 Kg) 30 1440 0,8Avícola (2 Kg) 10 2070 1,6

Base: 1 ano, 1 cabeça:

Bovino (550 Kg) 13 603 (1,65 m3/dia) 0,28Suíno (70 Kg) 2,1 101 (0,28 m3/dia) 0,05Avícola (2 Kg) 0,02 4,1 (0,011 m3/dia) 0,01

*TEP = Tonelada Equivalente de Petróleo [1TEP = 41860 MJ = 11,628 MWh]

Para finalizar, e apenas a título de curiosidade mostram-se na Tabela 16 as dimensões típicas duma exploração para ter interesse económico.

Tabela 16-Provável dimensão aceitável com interesse para aproveitamento energético do biogás, duma exploração agro-pecuária (Digestor: 35ºC, 21 dias)

Animal Peso(por cabeça)

Número Produção de biogás

(m3/dia)Bovino 550 Kg 25 41Suíno 70 Kg 150 42

Avícola 2 Kg 3650 40

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5-IMPACTO AMBIENTAL

O impacto ambiental da biometanização será aqui analisado numa perspectiva de ACV-Avaliação de Ciclo de Vida do processo (White et al., 1996); aproveitar-se-á também para fazer uma análise comparativa com a compostagem. Os items de maior interesse para esta análise são: consumo (depleção) de energia, emissões gasosas, efluentes líquidos, e resíduos sólidos. Numa ACV há que definir a “fronteira” do sistema em estudo, o que se mostra na Figura 8 para os dois processos.

Figura 8-Definição da fronteira do sistema para a Avaliação do Ciclo de Vida dos processos de tratamento biológico de resíduos sólidos (compostagem, biometanização).

Na Tabela 17 resumem-se os dados de inventário referentes aos fluxos de materiais e energia e emissões para os dois sistemas.

Emissões gasosasA maior emissão (em volume) gasosa é a de CO2, que contribui fundamentalmente para a categoria de impacto de aquecimento global (efeito de estufa). Na compostagem o carbono orgânico é integralmente convertido em CO2, enquanto que na biometanização ele reparte-se entre CH4 e CO2. Contudo o efeito de aquecimento do CH4 é várias ordens de grandeza superior ao do CO2, pelo que a sua queima (conversão em CO2) é benéfica sob o ponto de vista ambiental (aquecimento global). O CH4 também contribui adicionalmente para as categorias de impacto de formação de agentes fotoquímicos (“smog”). Calculemos a quantidade total de gases libertados nos dois processos, assumindo que se parte dum RSU com tipicamente 50% de humidade.

Compostagem: durante a compostagem cerca de 40% do peso seco (SVT) é gasificado, produzindo-se cerca de 200 Kg de gases. Supondo que o que se decompõe é essencialmente celulose (que tem 44% de C), então a produção de CO2 é de 323 Kg(CO2)/ton RSUbtq

(44/12*200=332), ou seja, em termos volumétricos, é de 164 m3N (CO2)/ton RSUbtq. (Ver

Tabela 18)

Biometanização: neste caso a perda de peso por gasificação é comparativamente maior, 45-70%; assumindo um valor médio de 55% teremos 275 Kg de SVT gasificados por cada ton de RSU, o que corresponde a cerca de 440 Kg (CO2)/ton RSUbtq, ou, em termos volumétricos, 226 m3

N (CO2)/ton RSUbtq. (Tabela 19)

Page 23: Digestão anaeróbia de RSU-Processos, tecnologias e impactos

Tabela 17-Inventário de emissões na ACV dos dois processos de tratamento biológico de resíduos sólidos (compostagem, biometanização). Base: 1 ton resíduos (tal qual)

Tabela 18-Rendimento da compostagem em CO2

Tabela 19-Rendimento da biometanização em CO2

Para além do CO2, CH4 e H2O também se forma uma pequena quantidade de uma gama muito grande de outros gases e vapores (odores, COV), como já foi referido no capítulo da

Page 24: Digestão anaeróbia de RSU-Processos, tecnologias e impactos

COMPOSTAGEM. De entre esses vapores destacam-se, pelo seu significado ao nível de saúde pública e de efeitos globais os seguintes: NH3, H2S, e hidrocarbonetos (COV). Tanto o NH3 como o H2S contribuem essencialmente para a categoria de impacto de acidificação; adicionalmente, o NH3

contribui também para a categoria de eutrofização. Os COV contribuem essencialmente para as categorias de depleção da camada de ozono (estratosférico) e formação de agentes fotoquímicos. Os efeitos toxicológicos de H2S e NH3 estão detalhados na Tabela 20.

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Tabela 20-Efeitos dos principais componentes do biogás no ambiente e saúde pública.

Efluentes líquidos

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A sua quantidade depende muito da natureza do resíduo e do processo tecnológico. Na compostagem há uma evaporação significativa de vapor de água para a atmosfera; o pouco lixiviado que se forma é recirculado nas pilhas. Na biometanização o efluente líquido é produzido quando se faz a filtração ou prensagem do efluente do reactor, com simultânea separação dum resíduo sólido (lamas para compostagem). A quantidade de efluente é maior no caso da digestão húmida, embora uma parte substancial da fase líquida seja recirculada no reactor para conservar calor e nutrientes e poupar água; o restante é tratado numa ETAR. Na Tabela 21 resumem-se as características dos efluentes líquidos na compostagem e biometanização.

Tabela 21-Características físico-químicas dos lixiviados produzidos no tratamento biológico de resíduos sólidos (compostagem, biometanização) (White et al., 1996)

COMPOSTAGEM BIOMETANIZAÇÃOCaixa Tambor

rotativoTúnel Seca Húmida

Quantidade (l/ton) 300 - - 290-540 500Composição (mg/l):

CBO5 270-485 50-600 3300-7050 <65-740 60

CQO 458-808 150-7000 6200-15100 <250-1400 200

N total 0-1 6-36 0-3 - -

Resíduos sólidosO resíduo sólido mais importante produzido na compostagem é obviamente o produto final: composto. Dependendo do tipo de resíduos à entrada do processo, assim se originarão outros resíduos, consistindo essencialmente nos materiais inorgânicos e orgânicos não degradáveis separados no início do processo (ver Fig. 1), e que por qualquer motivo não são recicláveis ou incineráveis. Por exemplo se a instalação tratar bioresíduos (ou seja, fracção biodegradável dos RSU recolhida separativamente, lamas de esgoto, resíduos de alimentação e de jardins, etc), não se produzirão quantidades significativas de resíduos finais inertes para deposição em aterro.

Na biometanização o resíduo sólido mais importante continua a ser o resíduo orgânico que sai do digestor, mas este é geralmente estabilizado aeróbicamente para produzir também um composto; tal como na compostagem os restantes resíduos serão os materiais não recicláveis cujo destino final é geralmente aterro ou incineração.

Em qualquer dos casos a quantidade de resíduos finais inertes para aterro ou incineração é da ordem de 5% dos RSU tratados.

Consumo energéticoO consumo de energia nas instalações de compostagem depende do processo tecnológico usado e está relacionado com as seguintes actividades: operações mecânicas de manipulação de resíduos (transporte, moagem, crivagem), produção de vapor para aquecimento do reactor, transporte de fluidos, etc. Verificam-se valores na gama 20-50 KWhe (eléctricos), podendo considerar-se como valor típico o de 30 KWhe /ton RSUbtq. O consumo energético numa instalação de biometanização é maior, tipicamente 50 KWhe /ton RSUbtq. Contudo nestas instalações o gás é geralmente queimado em grupos motogeradores produzindo cerca 173 KWhe /ton RSUbtq (ver Tabela 14), pelo que a biometanização é excedentária em energia eléctrica: apenas consome cerca de 29% (50/173=0.29) do que produz. Esta poupança traduz-se numa poupança de combustíveis fósseis (não renováveis) e correspondente redução de emissões poluentes.

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