diferentes visões sobre o bebê-medicamento -...

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Diferentes Visões sobre o bebê-medicamento: O ‘bebê-medicamento’, uma estranheza 1 Bispo Pierre d‟ORNELLAS 2 Tradução: Marcelle Coelho do Rosario 3 Não escapou a ninguém que o anúncio do nascimento do primeiro “bebê-medicamento4 francês coincidiu com o debate parlamentar sobre a lei de bioética e esta coincidência assinala duplamente a curiosidade deste nascimento. Este nascimento já é estranho pela "instrumentalização" da criança, lembra a Comissão Nacional Consultiva dos Direitos do Homem (CNCDH). A legalização da instrumentalização da criança por nascer é contrária ao respeito mais elementar devido a qualquer ser humano, em especial ao de uma criança, infringindo seus direitos primordiais, estipulados pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Este nascimento também é estranho porque ele é usado para pesar, influenciar, incidir, sobre o debate parlamentar que ora se apresenta. Esta instrumentalização é indigna. No entanto, não se pode deixar de considerar que, por trás deste ato, há o sofrimento dos pais que têm outra criança, outro filho gravemente doente. Mas, mesmo assim, continua indigno “instrumentalizar” um ser humano, impingindo-lhe sofrimento, para impor uma opinião. “O bebê-medicamento” é uma saída enganosa. Suprimir esta possibilidade legal manteria nossa tradição jurídica, sua consistência em relação ao respeito à dignidade humana, que postula que nenhum ser humano possa servir de meio, de instrumento, pois ele é (sempre) um fim em si mesmo; cada criança tem o direito inalienável de nascer pelo que ela mesma representa: ser amada pelo o que ela é em si mesma e a ser acolhida em função de uma existência própria. 1 Original disponível em http://www.portstnicolas.org/Le-bebe-medicament-une-etrangete.html 2 Arcebispo de Rennes, França. 3 Pesquisadora do E.R.A. Ética e Realidade Atual, Advogada, membro da Comissão de Bioética da CNBB, membro do CEP/INCA- RJ. 4 Nota do tradutor: é chamado “bebê-medicamento” a criança que é gerada com a finalidade precípua de salvar a vida de outra pessoa. Posição que atualmente dá margem a inúmeras discussões, de ordens diversas, inclusive dentro da própria medicina, vez que a nova vida gerada pode apresentar deficiências que impossibilitem a realização do pretendido (nota do tradutor).

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Diferentes Visões sobre o bebê-medicamento:

O ‘bebê-medicamento’, uma estranheza1

Bispo Pierre d‟ORNELLAS2

Tradução: Marcelle Coelho do Rosario3

Não escapou a ninguém que o anúncio do nascimento do primeiro “bebê-medicamento”4 francês

coincidiu com o debate parlamentar sobre a lei de bioética e esta coincidência assinala

duplamente a curiosidade deste nascimento.

Este nascimento já é estranho pela "instrumentalização" da criança, lembra a Comissão Nacional

Consultiva dos Direitos do Homem (CNCDH). A legalização da instrumentalização da criança

por nascer é contrária ao respeito mais elementar devido a qualquer ser humano, em especial ao

de uma criança, infringindo seus direitos primordiais, estipulados pela Convenção Internacional

dos Direitos da Criança.

Este nascimento também é estranho porque ele é usado para pesar, influenciar, incidir, sobre o

debate parlamentar que ora se apresenta. Esta instrumentalização é indigna. No entanto, não se

pode deixar de considerar que, por trás deste ato, há o sofrimento dos pais que têm outra criança,

outro filho gravemente doente. Mas, mesmo assim, continua indigno “instrumentalizar” um ser

humano, impingindo-lhe sofrimento, para impor uma opinião.

“O bebê-medicamento” é uma saída enganosa. Suprimir esta possibilidade legal manteria nossa

tradição jurídica, sua consistência em relação ao respeito à dignidade humana, que postula que

nenhum ser humano possa servir de meio, de instrumento, pois ele é (sempre) um fim em si

mesmo; cada criança tem o direito inalienável de nascer pelo que ela mesma representa: ser

amada pelo o que ela é em si mesma e a ser acolhida em função de uma existência própria.

1 Original disponível em http://www.portstnicolas.org/Le-bebe-medicament-une-etrangete.html

2 Arcebispo de Rennes, França.

3 Pesquisadora do E.R.A. – Ética e Realidade Atual, Advogada, membro da Comissão de Bioética da CNBB,

membro do CEP/INCA- RJ. 4 Nota do tradutor: é chamado “bebê-medicamento” a criança que é gerada com a finalidade precípua de salvar a

vida de outra pessoa. Posição que atualmente dá margem a inúmeras discussões, de ordens diversas, inclusive dentro

da própria medicina, vez que a nova vida gerada pode apresentar deficiências que impossibilitem a realização do

pretendido (nota do tradutor).

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O cuidado a partir das células do sangue do cordão umbilical, sim, é uma boa saída para casos

em que a compatibilidde genética é fundamental para o sucesso clínico. Ainda é necessário que a

França recupere o seu atraso nesta matéria e escolha concentrar seus esforços para a construção

de bancos de cordão umbilical, para que os transplantes sejam capazes de trazer a cura para estas

crianças doentes. É por esta via que o sofrimento dos pais poderá ser aliviado.

De fato, o nascimento do primeiro “bebê medicamento” põe em destaque um grande desafio para

humanidade, que se esconde por trás da revisão das leis de bioética. Trata-se de encontrar um

caminho que combine, que harmonize, o respeito incondicional da dignidade humana, de

qualquer ser humano, em especial o mais vulnerável, e a utilização das técnicas biomédicas, ora

permitidas pelos avanços científicos, e é por este caminho que se encontrará o verdadeiro

progresso da humanidade.

Através do seu corpus jurídico em Bioética, a França pode demonstrar a via do progresso na

utilização audaciosa de técnicas biomédicas que curam, respeitando ao mesmo tempo a

dignidade humana da pessoa, desde a sua concepção, conforme estabelecido, com precisão, no

nosso Código Civil.

O que foi sublinhado é que a França está se adiantando5 na proibição da gestação para outro fim,

senão o do desejo de filho por ele mesmo. Podem continuar as terapêuticas a partir do sangue do

cordão umbilical e do sangue periférico. Podem continuar as investigações que curam o embrião

humano dentro do útero. Podem continuar no que diz respeito às informações e ao

acompanhamento digno da gestante e a sua liberdade, porém, de modo que a gravidez, primeiro,

seja considerada como uma boa notícia e não como uma fonte de angústias.

Estamos em uma encruzilhada. Trata-se de refletir sobre as novas despesas, sobre a técnica e sua

utilização, trata-se de resguardar as técnicas, na medida em que as dominamos, de uma utilização

imprudente. Isto nos seria cobrado pela geração futura: é tecnicamente possível, mas não é

necessariamente razoável, em si, nem para o interesse geral.

A técnica que quisesse suprimir qualquer vulnerabilidade desta aplicação seria um falso

caminho, porque a vulnerabilidade pertence à condição humana. É por isso que nenhuma

sociedade pode viver sem amor, que ao lado do respeito à dignidade da pessoa são os

fundamentos do nosso convívio.

O desafio da humanidade está em medir qualquer técnica relacionada ao mais vulnerável,

avaliando a investigação científica com a „liberdade responsável‟, que escolhe o respeito como

via de progresso.

5 Frente outras legislações (nota do tradutor).

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É necessário previdência para avaliar a questão do respeito em relação ao interesse geral da

sociedade e para o seu futuro. Porque as pessoas vulneráveis fazem emergir recursos,

indispensáveis à nossa sociedade cada vez mais pressionada e técnica, insuspeita de humanidade.

É preciso coragem para não ceder à tentação das inovações técnicas a despeito do respeito à

dignidade humana. A coragem de fazer boas escolhas em relação às pesquisas cujos resultados

possam, realmente, curar a enfermidade existente, pois as gerações futuras irão agradecer-nos

por essa coragem. Conciliar o respeito pela ética e a vulnerabilidade com o uso das técnicas

biomédicas, é trabalho de sabedoria para o homem, para a mulher, bem como para os seus filhos.

Abrir este caminho de sabedoria incumbe à nossa responsabilidade conjunta para as gerações

vindouras. Isso não pode ser exclusivamente trabalho para especialistas que decidem para os

outros. Recordemo-nos que as conclusões do Estado Geral da Bioética6 provavelmente não eram

esperadas por alguns especialistas, isto por que o diálogo é a condição do verdadeiro progresso.

A Igreja Católica está muito interessada nos debates relativos à revisão das leis de bioética,

todavia muitos católicos são confrontados pela sua profissão (ou pelo seu compromisso

voluntário) com perguntas levantadas pelo progresso das técnicas biomédicas. Eles participaram

da discussão sobre o Estado Geral da Bioética trazendo suas contribuições, frutos de

intercâmbios numerosos e de experiências variadas, mas fizeram-no como cidadãos entre outros

cidadãos e é desta forma, que eles estão envolvidos no diálogo.

Por sua vez, a Conferência dos Bispos da França participou de cada etapa do diálogo

preparatório para a revisão atual da lei de bioética. Trabalhou muito e ouviu muitas perguntas

que foram postas para um justo discernimento em relação à dignidade e a vulnerabilidade do ser

humano e para incentivar a investigação científica, cujos resultados estão disponíveis em quatro

publicações e no blog “Bioética Católica”7.

Este diálogo apoia-se não somente em convicções espirituais, mas consiste, sobretudo, num

processo racional que permita a convergência, a unidade com aqueles que não são cristãos, e

6 Fórum criado pelo governo Francês, no ano de 2009, com o objetivo de reavaliar a Lei de Bioética, promulgada em

2004. 7 Bioéthique, Propos pour un dialogue, Lethielleux/DDB, février, 2009

Bioéthique, questions pour un discernement , Lethielleux/DDB, décembre, 2009

Dignité et vulnérabilité au cœur du débat éthique , Documents Episcopat N° 6, juin, 2010

Bioéthique, un enjeu d’humanité , CEF, décembre ,2011

Blog http://www.bioethique.catholique.fr/

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com os que não creem: é muito importante que todas as posições éticas da Igreja Católica sejam

compartilhadas igualmente por todos8.

O diálogo exige muito trabalho e muita escuta. Suscita convergências racionais para o bem de

todos, recusa-se aos “mais ou menos” e ao obscurantismo, alarga os horizontes individuais para

além dos interesses específicos, permite encontrar o caminho do progresso, favorece a coragem,

que pede, ao mesmo tempo, o respeito à ética e a vulnerabilidade. Esperamos que os deputados

deixem-se guiar por suas consciências, num debate sereno e aprofundado.

8 Além da posição da CNCDH sobre “bebê-medicamento", por exemplo, esta é também a posição do UNAF (Union

Nationale des Associations Familiales) pedindo para que se interrompa qualquer investigação em embriões

humanos.