diferenciaÇÃo curricular e pedagÓgica e … · uma estrela a iluminar cada palavra que aqui digo...

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EDUARDO JORGE DE ALMEIDA GONÇALVES DIFERENCIAÇÃO CURRICULAR E PEDAGÓGICA E DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM NO 1.º CEB Tese apresentada para obtenção do Grau de Doutor em Educação no Curso de Doutoramento em Educação conferido pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Orientador: Prof. Doutor Rui Trindade Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Instituto de Educação Lisboa 2013

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EDUARDO JORGE DE ALMEIDA GONALVES

DIFERENCIAO CURRICULAR E PEDAGGICA E

DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM NO 1. CEB

Tese apresentada para obteno do Grau de Doutor em

Educao no Curso de Doutoramento em Educao conferido

pela Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias

Orientador: Prof. Doutor Rui Trindade

Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias

Instituto de Educao

Lisboa

2013

Dedicatria

O maior registo que guardo na memria o amor da minha av Glria que tinha sempre

algo para nos dar a mim e s minhas irms o seu sorriso, as suas anedotas, o seu doce de

tomate. Era tanto o barulho das panelas com a azfama de colocar a quantidade certa, o triturar

da varinha mgica Por isso dedico-lhe em primeiro lugar este trabalho.

Agora aos meus pais, que guardo na minha memria os sacrifcios para nos darem tudo

o que necessitvamos. minha me, que tanto a sua sade sacrificou e padeceu, e sofreu A

ela dedico-lhe cada linha deste trabalho, esteja onde ela estiver (penso que ao meu lado como

uma estrela a iluminar cada palavra que aqui digo e defendo), como forma de lhe mostrar o

quanto a amo. Muitas horas extras, o meu pai agente da PSP fazia. Chegava a casa, via-nos

ainda a dormir e tirava-nos a roupa de cima, uma das suas maiores brincadeiras que nos irritava,

claro, mas agora como eu gostaria que voltasse a faz-lo. E os passeios, naquela vespa

vermelha ao longo do Rio Douro. E s minhas duas irms, que sempre me defenderam,

protegeram, e ainda me protegem.

Dedico ainda este trabalho minha maior riqueza, a minha filha Mariana, e um muito

obrigado ao Marco, pelo companheirismo demonstrado at ao dia de hoje.

ii

Agradecimentos

Teria tanto que dizer, agradecer a imensas pessoas que, comigo, partilharam os bons e

maus momentos da vida, quer pessoais quer profissionais.

Ao meu orientador Professor Doutor Rui Trindade que, por acaso, tambm se chama

Eduardo. Se me permitido, acho que sim, dizer: um muito obrigado meu amigo Professor,

pela ajuda e confiana principalmente que depositou em mim. Vi no meu amigo dedicao

total ao meu trabalho. Graas a ele, aprendi a confiar cada vez mais em mim. Ele que to bem

e de forma apaixonante semeou em mim o desejo de ir sempre mais alm. Ele fez-me acreditar

que possvel.

A minha memria repleta de inmeros episdios na Escola da Biquinha. Agradeo

Maria Cndida, Isabel Espanhol, Ana Zita, Otelina e tantos outros que comigo aprenderam

a importncia de Ser Professor.

E aos alunos a quem ensinei e encontro na rua, sempre que me falam e lembram dos

melhores momentos e at dos menos bons. Com eles, aprendi a dizer em romani (lngua

cigana) calas, pantalon ou em linguagem gestual: Posso fazer xixi?

E aos colegas professores, que comigo conviveram mais pessoalmente, particularmente

a Teresa Botelho que me disse um dia: Na minha casa, quem manda sou eu., quando na

altura era eu que dinamizava a biblioteca escolar, da escola que ela coordenava. Tinha deixado

fugir uma boa verba em dinheiro para aquisio de livros

Agradeo Elisabete Pinto da Costa, colega e amiga do doutoramento em educao,

com quem convivi, partilhei conhecimentos, segredos uma verdadeira amizade.

E por fim, porque no agradecer ao universo por permitir estar aqui hoje a fechar um de

entre muitos episdios importante para a minha vida futura?

iii

Resumo

Esta uma tese que ter que ser compreendida num tempo em que nas escolas o

reconhecimento da diversidade dos alunos se tornou uma necessidade formativa e pedaggica.

Pode afirmar-se que esta a principal razo que justifica o facto de este trabalho abordar a

diferenciao curricular e pedaggica como a sua problemtica de referncia, ainda que seja

necessrio evidenciar a articulao que se estabelece entre esta problemtica e as dificuldades

de aprendizagem dos alunos.

No sendo uma tese sobre dificuldades de aprendizagem, uma tese que parte destas

mesmas dificuldades para promover a reflexo sobre as concees e prticas de diferenciao

nas escolas e desenvolver um projeto de investigao em turmas do 1 Ciclo do Ensino Bsico.

Isto no significa, contudo, que circunscrevemos a diferenciao curricular e pedaggica s

dificuldades de aprendizagem dos alunos, mas apenas que defendemos que a partir destas

dificuldades se torna possvel analisar de forma credvel e sustentada a temtica da

diferenciao em contextos educativos formais.

Realizado o estudo num agrupamento de escolas do norte litoral de Portugal, o qual

envolveu 21 turmas de todas as escolas do 1 Ciclo do Ensino Bsico deste agrupamento,

constatou-se, em termos globais, que h uma tenso estruturante, nos contextos que foram

objeto de pesquisa, entre condies e propostas de diferenciao curricular e pedaggica que

parecem constituir-se como fatores de incluso escolar e as condies e propostas que parecem

subordinar-se, pelo contrrio, lgica das pedagogias compensatrias e remediativas.

No sendo possvel extrapolar dados ou enunciar generalizaes abusivas a partir do

estudo que produzimos, pode-se, no entanto, considerar que o mesmo nos fornece indicaes

teis acerca dos obstculos, das dificuldades e, igualmente, das potencialidades dos projetos de

interveno educativa que as escolas de hoje se confrontam com alunos, cujas singularidades

obrigam realizao de um trabalho de natureza curricular e pedaggica mais inclusivo e

culturalmente mais significativo.

Palavras-chave: diferenciao curricular e pedaggica, dificuldades de aprendizagem

iv

Abstract

This thesis should be understood within a context where the recognition of student

diversity in schools has become an educational and training need. It can be said that this is the

main reason justifying the fact that this research addresses curricular and pedagogical

differentiation as its main issue, although it is necessary to highlight the link between this

problem and the students' learning difficulties.

Although this thesis does not address learning difficulties, it uses some of them to

promote a reflection on the differentiation concepts and practices implemented in schools and

to develop a research project with students of the 1st Cycle of Basic Education. This does not

mean, however, that we limit pedagogical differentiation to the student's learning difficulties.

We merely argue that, based on these difficulties, we can analyse the issue of differentiation in

formal educational contexts in a credible and sustainable manner.

The results of the study, conducted in a school cluster of the northern coast of Portugal,

which involved 21 classes from all the schools of the 1st Cycle of Basic Education of this cluster,

generally show that, in the contexts studied, there is a structuring tension between

differentiation conditions and proposals that seem to constitute factors for school inclusion and

conditions and proposals that, on the contrary, seem to be subject to the logic of compensatory

and remedial pedagogy.

We can not extrapolate data or outline unfair generalisations from the study we have

conducted but we can, however, conclude that it provides useful indications on the obstacles,

difficulties and also the potential of the current educational intervention programmes directed

at students whose singularity requires the implementation of a more inclusive and culturally

more significant curricular and pedagogical work.

Keywords: curriculum and pedagogical differentiation, learning difficulties

v

Lista de siglas

1. CEB 1. ciclo do Ensino Bsico

DA Dificuldades de aprendizagem

DAE Dificuldades especficas de aprendizagem

MEM Movimento da Escola Moderna Portuguesa

NEE Necessidades educativas especiais

PAP Plano de acompanhamento pedaggico

PAT Plano de atividades da turma

PCT Projetos curriculares de turma

PR Plano de recuperao

TIC Tecnologias de informao e comunicao

vi

ndice

Dedicatria ................................................................................................................................ ii

Agradecimentos ....................................................................................................................... iii

Resumo ..................................................................................................................................... iv

Abstract ..................................................................................................................................... v

Lista de siglas ........................................................................................................................... vi

ndice ......................................................................................................................................... 7

Introduo ............................................................................................................................... 14

Parte I Enquadramento e Reflexo Terica...................................................................... 23

Captulo I Escola, Democracia e Sociedade do Conhecimento ....................................... 24

Introduo ................................................................................................................................. 25

1. A Escola do Futuro: prova de um novo paradigma ................................................................ 27

1.1 A Escola Democrtica como exigncia e desafio ............................................................ 27

1.2 Alguns dos desafios da sociedade do conhecimento ....................................................... 29

Captulo II As escolas portuguesas contemporneas como espaos de formao:

contributo para o debate ........................................................................................................ 34

Introduo ................................................................................................................................. 35

1. A Escola forma, organizao e instituio: em tempos de certezas, tempos de promessas

e tempos de incertezas .................................................................................................................... 41

2. Do paradigma da instruo ao paradigma da comunicao: os sentidos e as possibilidades de

afirmao da Escola no mundo contemporneo ............................................................................. 43

3. Insucesso escolar: esclarecimentos sobre os termos de um debate recorrente ....................... 48

Captulo III Dificuldades de Aprendizagem: delimitao de um campo de reflexo e de

interveno educativa ............................................................................................................. 55

Introduo ................................................................................................................................. 56

1. O contributo da pedagogia da diferenciao educativa e da reflexo da diferenciao

curricular na delimitao do conceito de dificuldades de aprendizagem .................................... 61

2. Organizao e gesto diferenciada do trabalho pedaggico: contributo para um debate ..... 70

3. Diferenciao curricular e pedaggica: o contributo da avaliao ...............................................80

4. Diferenciao curricular e pedaggica: das respostas desejveis s respostas possveis .......90

7

5. Dificuldades de aprendizagem: quais os passos e os espaos na/de reflexo? .........................95

5.1 O Plano de Recuperao: Finalidades e possibilidades ...................................................99

Parte II Projeto de Investigao ....................................................................................... 102

Captulo I Opes Metodolgicas ..................................................................................... 103

Introduo ............................................................................................................................... 103

1. Objetivos do estudo ...................................................................................................................... 104

2. Enquadramento epistemolgico da pesquisa ............................................................................ 105

3. Estudo de caso como estratgia de investigao ...................................................................... 108

4. Tcnicas de recolha e produo de dados ................................................................................. 110

4.1 Anlise Documental ...................................................................................................... 111

4.1.1 Projetos Curriculares de Turma................................................................... 113

4.1.2 Atas das reunies de ano e departamento do 1. CEB .............................. 114

4.1.3 Planos de Recuperao ................................................................................. 115

4.2 As Entrevistas ................................................................................................................ 117

4.2.1 Guio da entrevista ....................................................................................... 118

4.3 Observao das aulas .................................................................................................... 120

5. Mtodos de anlise e interpretao de dados ............................................................................ 121

6. Sujeitos da investigao .............................................................................................................. 122

6.1 Amostra .......................................................................................................................... 122

6.1.1 Definio da amostra .................................................................................... 123

6.1.2 Professores do 1. CEB................................................................................. 123

6.1.3 Docncia no 1. CEB ................................................................................... 125

6.1.4 Experincia com Dificuldades de Aprendizagem ..................................... 127

6.1.4.1 Fatores condicionantes ao sucesso escolar do aluno ................ 128

6.1.4.2 Identificao das Dificuldades de aprendizagem dos alunos .. 129

6.1.4.3 Medidas de resoluo das Dificuldades de Aprendizagem ..... 130

6.1.4.4 Atividades/Estratgias na/fora (da) sala de aula ....................... 131

6.1.5 Caracterizao das Turmas .......................................................................... 131

6.1.5.1 Frequncia do jardim-de-infncia ............................................... 132

6.1.5.2 Motivaes e Interesses ................................................................ 133

6.1.5.3 Ocupao dos tempos livres ....................................................... 133

6.1.5.4 Aspiraes/Expectativas face ao futuro ..................................... 134

6.1.5.5 Agregado familiar ......................................................................... 136

8

6.1.5.6 Comportamento dos alunos ......................................................... 137

6.1.5.7 Desempenho escolar ..................................................................... 139

6.1.6 Sntese dos dados obtidos ......................................................................................... 144

Captulo II Anlise e Discusso dos resultados ............................................................... 146

Introduo ............................................................................................................................... 147

1. Anlise dos Projetos Curriculares de Turma ............................................................................ 148

1.1 Finalidades do Projeto Curricular de Turma .................................................................. 149

1.2 Estratgias educativas a desenvolver .............................................................................. 149

1.3 Estratgias para casos particulares com alunos com Dificuldades de Aprendizagem

..................................................................................................................................................... 150

1.4 Dificuldades de Aprendizagem de alunos com e sem planos de recuperao ........... 151

1.5 Outras situaes ................................................................................................................. 153

1.5.1 Dificuldades de aprendizagem .................................................................... 153

1.5.2 Execuo da tarefa ........................................................................................ 154

1.5.3 Comportamentos ........................................................................................... 155

2. Atas ................................................................................................................................................ 157

2.1 1. Perodo ........................................................................................................................... 157

2.1.1 Problemas ao nvel do desempenho escolar .............................................. 158

2.1.2 Autonomia dos alunos .................................................................................. 158

2.1.3 Acompanhamento Psicolgico .................................................................... 159

2.1.4 Motivao dos alunos ................................................................................... 159

2.1.5. Problemas de Socializao e Responsabilizao ..................................... 159

2.1.6 Sntese ............................................................................................................. 159

2.2 2. Perodo ........................................................................................................................... 160

2.2.1 Medidas de reforo de aprendizagem ......................................................... 162

22.2.2 Apoio da Psicloga ..................................................................................... 163

2.2.3 Maturidade ..................................................................................................... 163

2.2.4 Comportamento ............................................................................................. 164

2.2.5 Limitaes na autonomia ............................................................................. 164

2.2.6 Necessidade de brincar ................................................................................. 164

2.2.7 Necessidade de concentrao/ateno na resoluo dos trabalhos propostos

................................................................................................................................... 164

2.2.8 Incumprimento de regras.............................................................................. 165

9

2.2.9 Ritmo de trabalho .......................................................................................... 165

2.2.10 Assiduidade/Pontualidade .......................................................................... 166

2.2.11 Problemas de Socializao e Responsabilizao .................................... 166

2.2.12 Interveno ao nvel da terapia da fala ..................................................... 167

2.2.13 Sntese .......................................................................................................... 167

2.3 3. Perodo ........................................................................................................................... 167

2.3.1 Turmas do 1. ano de escolaridade ............................................................. 167

2.3.2 Turmas do 2. ano de escolaridade ............................................................. 169

2.3.3 Turma do 3. ano de escolaridade ............................................................... 170

2.3.4 Turmas do 2./3./4. ano .............................................................................. 171

2.3.5 Turmas (M e N) do 2./3. ano e (S) 3./4. ano de escolaridade ............ 171

2.3.6 Turmas do 4. ano de escolaridade ............................................................. 172

2.4 Concluses .......................................................................................................................... 173

3. Planos de Recuperao ................................................................................................................ 173

3.1 Dificuldades diagnosticadas pelo professor ................................................................... 174

3.2 Responsabilidade pela implementao das medidas educativas.................................. 176

3.3 Diagnstico das dificuldades dos alunos nos Planos de Recuperao ........................ 182

3.3.1 Atitudes .......................................................................................................... 182

3.3.2 Relaes com as tarefas escolares ............................................................... 183

3.3.3 Comportamentos relacionais ....................................................................... 185

3.3.4 Desempenho escolar ..................................................................................... 185

3.4 Medidas pedaggicas propostas pelos professores nos Planos de Recuperao ....... 187

3.4.1 Atitudes .......................................................................................................... 187

3.4.2 Relaes com as tarefas escolares ............................................................... 188

3.4.3 Comportamentos relacionais ....................................................................... 188

3.4.4 Desempenho escolar ..................................................................................... 189

3.5 Sntese.................................................................................................................................. 189

4. Observao de aulas ..................................................................................................................... 191

5. Entrevistas ..................................................................................................................................... 199

5.1 Gesto do processo de ensino-aprendizagem ................................................................. 200

5.1.1 Gesto curricular ........................................................................................... 200

5.1.1.1 Diferenciao curricular ............................................................... 203

5.1.2 Gesto e organizao das atividades letivas .............................................. 206

10

5.1.2.1 Estratgias docentes ...................................................................... 206

5.1.2.2 Gesto dos recursos e dos materiais pedaggicos .................... 212

5.1.3 Gesto do processo de avaliao ................................................................. 217

5.1.3.1 Instrumentos e procedimentos de avaliao .............................. 217

5.1.3.2 Adequao dos instrumentos e processos de avaliao ........... 221

5.1.4 Sntese ............................................................................................................. 224

5.2 Representaes sobre a diferenciao pedaggica ........................................................ 225

a) Concees sobre o sucesso/insucesso escolar ................................................ 225

b) Representaes dos professores acerca da noo bom/mau aluno .............. 229

5.2.1 Sntese ................................................................................................ 232

c) Heterogeneidade das turmas ............................................................................. 233

d) Perspetivas sobre pedagogia diferenciada ...................................................... 236

5.2.2 Sntese ................................................................................................ 238

5.3 A interveno com crianas que manifestam Dificuldades de Aprendizagem .......... 240

5.3.1 Dificuldades de Aprendizagem: concees e implicaes praxeolgicas

................................................................................................................................... 240

5.3.2 Planos de Recuperao ................................................................................. 246

5.4 Concluses do estudo ........................................................................................................ 250

Concluso ......................................................................................................................................... 254

Bibliografia ...................................................................................................................................... 263

Anexos ............................................................................................................................................... 274

Anexos I Protocolo/Pedido de autorizao ao Agrupamento de Escolas para

implementao do Projeto de Investigao ........................................................................... 275

Anexos II Modelo do Projeto Curricular de Turma .......................................................... 277

Anexos III Anlise dos Projetos Curricular de Turma ..................................................... 285

Anexos IV Modelo/Formulrio do Plano de Recuperao .............................................. 301

Anexos V Anlise dos Planos de Recuperao ................................................................. 307

Anexos VI Guio de observao de situao de sala de aula .......................................... 315

Anexos VII Grelha de registo de dados de observao de situao de sala de aula ..... 317

Anexos VIII Guio de entrevista semiestruturada ............................................................ 319

Apndices .......................................................................................................................................... 325

Apndice I Transcrio das observaes das aulas .......................................................... 326

Apndice II Tabela de categorizao e codificao das aulas observadas .................... 413

11

Apndice III Transcrio das entrevistas ........................................................................... 449

Apndice IV Entrevistas: gesto do processo ensino-aprendizagem ............................. 644

Apndice V Entrevistas: discursos sobre a diferenciao pedaggica ........................... 654

Apndice VI Entrevistas: interveno com crianas com dificuldades de aprendizagem

..................................................................................................................................................... 662

ndice de Quadros

Quadro 1 Contextualizao jurdica do tempo em que decorreu o projeto de pesquisa ........ 96

Quadro 2 Diferenas entre o ano de realizao do estudo e da atualidade ............................ 103

Quadro 3 Plano de operacionalizao de recolha de dados ..................................................... 110

Quadro 4 Alunos com Planos de Recuperao.......................................................................... 116

Quadro 5 Classificao das questes do guio da entrevista ................................................... 119

Quadro 6 Relao das tipologias de questes do guio da entrevista .................................... 119

ndice de Figuras

Figura 1 Aliana Paradigmtica .................................................................................................... 30

Figura 2 Perspetiva Transacional .................................................................................................. 57

ndice de Tabelas

Tabela 1 Definio da amostra de professores do 1. CEB ..................................................... 124

Tabela 2 Docncia no 1. ano de escolaridade .......................................................................... 125

Tabela 3 Docncia no 2. ano de escolaridade .......................................................................... 126

Tabela 4 Docncia no 3. ano de escolaridade .......................................................................... 126

Tabela 5 Docncia no 2./3. ano de escolaridade..................................................................... 126

Tabela 6 Docncia no 2./3./4. ano de escolaridade ............................................................... 127

Tabela 7 Experincia dos docentes com dificuldades de aprendizagem ............................... 127

Tabela 8 Frequncia do jardim-de-infncia ............................................................................... 132

Tabela 9 Ocupao dos tempos livres ........................................................................................ 134

Tabela 10 O que os alunos gostariam mais de aprender .......................................................... 135

Tabela 11 O que aspiram vir a ser mais tarde ............................................................................ 136

Tabela 12 Caracterizao sociocultural dos agregados familiares ......................................... 137

Tabela 13 Corpus de anlise dos Projetos Curriculares de Turma ......................................... 148

Tabela 14 Alunos com Planos de Recuperao ......................................................................... 173

12

Tabela 15 Dificuldades diagnosticadas pelo professor nos Planos de Recuperao ............ 174

Tabela 16 Dificuldades mais vezes diagnosticadas pelos professores ................................... 175

Tabela 17 Responsabilidades dos Encarregados de Educao ................................................ 176

Tabela 18 Responsabilidade dos Alunos .................................................................................... 177

Tabela 19 Responsabilidade da Escola....................................................................................... 179

Tabela 20 Responsabilidade do Professor ................................................................................. 180

Tabela 21 Dificuldades ao nvel das atitudes ............................................................................ 182

Tabela 22 Dificuldade ao nvel das relaes com as tarefas escolares .................................. 183

Tabela 23 Dificuldades ao nvel dos comportamentos relacionais ......................................... 185

Tabela 24 Dificuldades ao nvel do desempenho escolar ........................................................ 185

Tabela 25 Medidas pedaggicas ao nvel das atitudes ............................................................. 187

Tabela 26 Medidas pedaggicas ao nvel das relaes com as tarefas escolares ................. 188

Tabela 27 Medidas pedaggicas ao nvel do desempenho escolar ......................................... 189

Tabela 28 Plano de observao ................................................................................................... 191

Tabela 29 Resultados da observao das aulas das turmas do 1. ano de escolaridade ....... 192

Tabela 30 Resultados da observao das aulas das turmas do 2. ano de escolaridade ...... 194

Tabela 31 Resultados da observao das aulas das turmas do 2./3. e 3. ano de escolaridade

............................................................................................................................................................. 195

Tabela 32 Resultados da observao das aulas das turmas do 2./3./4. e 3./4. ano de

escolaridade ...................................................................................................................................... 196

Tabela 33 Resultados da observao das aulas das turmas do 4. ano de escolaridade ...... 196

Tabela 34 Utilizao e gesto dos recursos ............................................................................... 213

Tabela 35 O mesmo material que o professor gere e utiliza.................................................... 214

Tabela 36 Materiais mais utilizados pelos professores ........................................................... 215

Tabela 37 Instrumentos de avaliao .......................................................................................... 217

Tabela 38 Procedimentos de avaliao....................................................................................... 219

Tabela 39 Adequao dos instrumentos e processos de avaliao ......................................... 221

13

Introduo

Este um trabalho onde, a pretexto da reflexo sobre as dificuldades de aprendizagem

dos alunos, se visa discutir as possibilidades, as dificuldades, os obstculos e as oportunidades

relacionadas com a problemtica da diferenciao curricular e pedaggica, entendida como uma

problemtica nuclear dos projetos de educao escolar que tm lugar nas escolas

contemporneas. Escolas estas que so, hoje, chamadas a assumir um conjunto de desafios

sobre os quais teremos de continuar a refletir, nomeadamente quando tais desafios se prendem

com o desenvolvimento de projetos mais inclusivos e democrticos. Que exigncias

curriculares e pedaggicas que se colocam aos professores nos contextos escolares

contemporneos? Quais as exigncias incontornveis e aquelas que correspondem ao que

Nvoa (2005) designa por transbordamento das funes da escola? At que ponto que estas

exigncias so congruentes com uma Escola que continua a funcionar segundo os pressupostos

do paradigma da instruo (Trindade & Cosme, 2010)? Quais as implicaes decorrentes da

assuno de uma postura curricular e pedaggica que assume as diferenas no como

problemas, mas como propriedades da vida nas escolas contemporneas? At que ponto que

as dificuldades de aprendizagem dos alunos decorrem das exigncias escolares a que estes se

encontram sujeitos nas escolas ou do modo como o funcionamento destas mesmas escolas

contribui para que tais dificuldades sejam expresso da disfuncionalidade destes contextos?

Com que desafios educativos nos deparamos quando somos confrontados com as dificuldades

de aprendizagem dos alunos? Que respostas curriculares e pedaggicas que se produzem neste

domnio? Quais os sentidos das mesmas?

Diremos que estas so algumas das questes sobre as quais pretendemos refletir quando

decidimos optar pelo tema que justifica a produo desta tese, o que poder ser explicado tanto

por razes de carter pessoal, como por razes relacionados com a agenda de investigaes da

comunidade das Cincias da Educao.

Havendo um conjunto de motivaes pessoais que explicam o nosso interesse por uma

tal problemtica, dado que, sendo professor do 1 CEB h 16 anos, lido diariamente quer com

as dificuldades de aprendizagem dos alunos quer com os desafios e os dilemas com que essas

dificuldades nos confrontam, h tambm o reconhecimento de que a problemtica das

dificuldades de aprendizagem uma porta de entrada para a reflexo sobre os sentidos e as

implicaes dos projetos de diferenciao curricular e pedaggica.

14

Numa abordagem panormica sobre a agenda de projetos de investigao que tm vindo

a ser desenvolvidos nos ltimos anos neste domnio, chamamos a ateno para o conjunto de

projetos que passamos a caraterizar de forma necessariamente breve.

O primeiro desses projetos designa-se por A legitimao psicolgica do insucesso

escolar e a (des) responsabilizao dos professores (Martins & Parcho, s/d.). Este estudo

abrangeu os quatro anos de escolaridade do 1. CEB. A questo central era dar conta da forma

como o sistema educativo e, em especial, os professores se desresponsabilizam pelo fracasso

escolar dos seus alunos e pretendem legitimar o processo recorrendo psicologia. O estudo

abarcou as seguintes dimenses: i) as taxas de reteno da dita reprovao; ii) a (co) relao

entre o processo da no aprendizagem e a origem social e cultural dos alunos; iii) as prticas de

gesto do pessoal docente; iv) a imputao do fracasso aos alunos e sua famlia e a consequente

desresponsabilizao dos professores; v) a pretensa resoluo/legitimao do fracasso atravs

da psicologia.

Outro projeto em linha de conta foi o Insucesso Escolar e Abandono Escolar (Leal,

2004). Segundo a autora, o insucesso escolar poderia resultar de uma estratgia incorreta de

encadeamento de atividades acadmicas a que so submetidas crianas de seis a oito anos de

idade que frequentam a primeira fase do 1. Ciclo do ensino obrigatrio, em que a pedagogia

ativa (centrada na descodificao de experincias correntes e/ou programadas, assim como o

seu registo em desenho e narrativa que estimulam o desenvolvimento lingustico) substituda

por um ensino sistemtico de letras e de nmeros, desinserido do que a autora designa por

atividades naturais da infncia. Este estudo veio legitimar a situao de que a entrada no

primeiro ciclo da escola de ensino obrigatrio pode produzir nas crianas, em geral, uma

evidente estagnao de funcionamento cognitivo-social, supostamente em consequncia da

aplicao de um modelo de interveno pedaggica desadequado para estimular a progresso

desejada.

Um terceiro projeto intitula-se Alunos em situao de Insucesso Escolar Percees,

estratgias e opinies do professor (Sil, 2004). Trata-se de um estudo de natureza exploratria

que abarcou todos os anos da escolaridade obrigatria e se focalizou na relao entre o percurso

escolar dos alunos, os cdigos lingusticos e o posicionamento familiar relativamente

escolarizao. O posicionamento dos alunos na escola e na sociedade: influncia dos contextos

sociais da escola e da famlia (Miranda & Morais, 1996) e Aprendizagem cientfica e

contextos de socializao familiar: um estudo com crianas dos estratos sociais mais baixos

(Pires & Morais, 1997) so outros dois estudos que se baseiam na teoria do discurso pedaggico

15

de Bernstein (1990) e nos fatores sociolgicos do contexto pedaggico familiar, quer da classe

trabalhadora, quer urbana quer rural.

Para alm dos projetos acabados de referir, poderemos identificar, ainda, O

posicionamento da criana na famlia/comunidade: influncia no aproveitamento escolar

(Neves, 1992). O objeto de estudo desta investigao resultado da conjugao entre duas

variveis, o grupo social e o posicionamento da criana na famlia/comunidade. As concluses

apoiam-se em grande parte no interacionismo simblico e na perspetiva antropolgica.

A relao entre estilos pedaggicos e desempenho escolar em Portugal (Sousa &

Santos, 1999) um estudo exploratrio que deteta os diferentes estilos pedaggicos em

professores do Ensino Bsico, de escolas do ensino oficial portuguesas, identificando o

rendimento escolar dos respetivos alunos. Este estudo pretendia estabelecer relao entre certos

estilos de professores e resultados diferenciados dos alunos, em diferentes nveis

socioeconmicos.

O insucesso escolar: Polticas educativas e prticas sociais (Mendona, 2009) um

estudo de caso sobre o Arquiplago da Madeira. A autora procurou estudar a evoluo da

poltica educativa em Portugal e, ao mesmo tempo, a poltica educativa na Madeira. O objetivo

central do seu trabalho era conhecer os fatores que pudessem explicar as desigualdades face ao

insucesso escolar, a saber: a) o enquadramento social do aluno; b) a estrutura e organizao

escolar; c) o gnero, considerando que a Escola no adequou as aspiraes dos indivduos s

necessidades dos sistemas envolventes, nem foi capaz de articular saberes, capazes de dar

resposta s necessidades individuais e sociais dos alunos.

Para alm dos projetos de investigao que acabmos de referir, os quais constituem

apenas um exemplo do investimento que no campo da investigao se tem vindo a produzir em

torno da problemtica das DA, do (in) sucesso escolar e da diferenciao curricular e

pedaggica possvel constituir um inventrio das dissertaes de mestrado e teses de

doutoramento a que tivemos acesso atravs de um levantamento bibliogrfico que produzimos

a partir da consulta Biblioteca Virtual, ao Repositrio Cientfico Aberto de Portugal (RCAAP)

e aos Servios de Documentao e Repositrios de algumas universidades portuguesas, um

levantamento que corresponde ao propsito de mapear e discutir a produo cientfica e

acadmica no campo das dificuldades e problemas de aprendizagem, de forma a conhecer quais

as leituras propostas e a dos investigadores portugueses no domnio em causa. Por isso que

construmos um inventrio bibliogrfico de resumos de teses de doutoramento e de dissertaes

16

de mestrado, entre 2007 e 2011, um perodo que corresponde s fases da conceo e de

implementao do nosso projeto.

Assim, no ano de 2007 foram encontradas trs publicaes cientficas, duas dissertaes

de mestrado e uma tese de doutoramento. Na primeira dissertao de mestrado intitulada A

interveno psicopedaggica nas dificuldades de aprendizagem: da recuperao preveno

(Esteves, 2007), as DA so estudadas numa lgica multidisciplinar, mediante a interveno

especializada da psicopedagogia. A segunda, Quem sou quando no sei?, um estudo de

caso no domnio das dificuldades de aprendizagem (Marinho, 2007), atravs do qual se estuda

o impacto destas dificuldades ao nvel da formao da identidade, personalidade e da autoestima

das crianas. A tese de doutoramento em Educao, intitulada Percursos desenvolvimentais

de leitura e escrita: estudo longitudinal com alunos do 1. ciclo do Ensino Bsico (Velasquez,

2007), foi construda na rea da psicologia da educao, no domnio da aprendizagem da leitura

e da escrita, procurando compreender os processos inerentes a esta problemtica e visando a

adequao do ensino e a preveno das dificuldades de aprendizagem na interveno precoce,

em crianas e jovens, com necessidades educativas especiais.

No ano de 2008, encontrmos uma dissertao de mestrado intitulada Dificuldades de

aprendizagem: repercusses afetivas, comportamentais e na progresso escolar (Peixoto,

2008). O autor preocupa-se em estudar as repercusses das DA, a nvel afetivo, comportamental

e da progresso escolar. Aqui o autor estuda a criana no seu todo, numa lgica sistmica. A

criana tem noo das suas DA e necessita de ajuda especializada para prevenir e colmatar

lacunas que mais tarde possam ter repercusses no comportamento, a nvel afetivo e no seu

percurso escolar.

Os prximos trabalhos datam do ano 2009. Apresentamos quatro dissertaes de

mestrado e uma tese de doutoramento. Os estudos que se seguem foram elaborados numa lgica

de procura de solues incisivas no combate das DA, visando sempre a promoo do sucesso

escolar, afirmao bem patente ao longo das cinco investigaes. O primeiro estudo intitula-se

A Autoestima em alunos com dificuldades de aprendizagem (Gouveia, 2009). Este estudo

estabelece uma relao causal entre os estmulos afetivos recebidos durante a atividade fsica e

motora e as D.A. O segundo, Dificuldades de aprendizagem especficas e desordem por dfice

de ateno e hiperatividade: um estudo single subjet sobre monitorizao da ateno (Lopes,

2009), apela para o facto de que as DA podero ser resultado de desordens por dfice de ateno

e hiperatividade com o objetivo de monitorizao da ateno. O terceiro trabalho, O papel do

professor do ensino regular no processo de encaminhamento de alunos com dificuldades de

17

aprendizagem especficas para os servios de educao especial (Santos, 2009), procura

explorar e compreender o papel do professor do ensino regular, relativamente ao

encaminhamento do aluno com DA para os servios de educao especial. Este estudo pretende

sublinhar a importncia de estudar a problemtica das DA dos alunos como um todo, de forma

a encontrarem-se respostas capazes de responder aos problemas graves de desenvolvimento

psicolgico e emocional que podero acabar por condicionar o percurso escolar desses alunos.

O quarto trabalho, intitulado Dificuldades Especficas de Aprendizagem: a Dislexia

(Pinheiro, 2009) explora as concees dos professores do 1. CEB acerca da dislexia e compara-

as com o que a investigao tem dado a conhecer nesta matria. Ao mesmo tempo, apresentada

a discusso acerca da dificuldade observada na escola em lidar com questes patolgicas da

linguagem alertando para o facto desta instituio ainda no responder, eficazmente, ao desafio

de trabalhar com necessidades educativas relacionadas com as dificuldades de linguagem no

que se refere leitura e escrita. Por ltimo, a tese de doutoramento intitulada Diferenas psico-

cognitivas e comportamentais nas aprendizagens: 1 ciclo Ensino Bsico (Ribeiro, 2009)

debrua-se sobre os casos de dfices na aprendizagem dos alunos, atravs da

interao/mediatizao na sala de aula e da aplicao das tcnicas Brain-Gym. Programao

Neurolingustica, Inteligncia Emocional, Gentle Teaching, Psicodrama com crianas, entre

outras.

Do ano 2010, registam-se duas dissertaes de mestrado e duas teses de doutoramento,

uma no domnio da formao contnua em matemtica de professores do 1. CEB:

conhecimento didtico dos professores, e outra, no domnio da gesto flexvel do currculo

(diferenciao e incluso). A primeira dissertao de mestrado, intitulada A importncia da

Interveno Psicomotora em crianas com Dificuldades de Aprendizagem Especficas da

Leitura (Codeo, 2010), focaliza a sua ateno na psicomotricidade enquanto forma de

combate das DA em crianas com dificuldades especficas no domnio da leitura, relacionando

a psicomotricidade e as DAEL e percebendo a sua interao, bem como a importncia da

interveno psicomotora como mtodo para tornar o indivduo um melhor leitor. J a segunda

dissertao de mestrado Currculo, prticas educativas e diferenciao pedaggica no pr-

escolar e no 1 ciclo (Melo, 2011) pretendeu verificar as aprendizagens que as crianas

conseguiram fazer no mbito de desenvolvimento de competncias, tendo por base a

metodologia de ensino diferenciado e, ao mesmo tempo, se essa metodologia facilitava, por sua

vez, a aprendizagem. A primeira tese de doutoramento Cardoso (2010) construiu-se a partir do

programa de formao contnua em Matemtica para professores do 1. CEB lanado em

18

Portugal a partir de 2005 e pretendia investigar o seu impacto sob o conhecimento matemtico

e o pensamento algbrico, baseado nas perspetivas sobre a matemtica, o seu ensino e

aprendizagem, e nas atitudes e aprendizagens dos alunos envolvidos. Este estudo revela boas

prticas educativas a partir das necessidades e preocupaes dos professores, quanto a um

ensino e uma aprendizagem mais eficaz e eficiente, respondendo de forma mais imediata s

necessidades urgentes dos alunos com D.A. A segunda tese de doutoramento analisada, Barata

(2010), procurou debater duas questes cruciais do sistema educativo portugus da atualidade,

a incluso educativa e a diferenciao curricular, colocando-as em p de igualdade. Aqui, a

diversidade considerada uma realidade cada vez mais comum no interior das salas de aulas,

considerando-a no como um obstculo, mas como uma fonte enriquecedora do processo

educativo e fonte de equidade. A autora considerou ser importante compreender se os

professores concretizavam a flexibilizao e diferenciao curriculares nas escolas ou se, pelo

contrrio, continuavam entrincheirados entre rotinas securizantes, adiando a possibilidade de

edificar uma verdadeira escola inclusiva.

Face ao ano 2011, registam-se seis dissertaes de mestrado (Anfilquio, 2011; Cunha,

2011; Faria, 2011; Mouro, 2011; Pereira, 2011; Silva, 2011) e uma tese de doutoramento

(Silva, 2011). As seis dissertaes de mestrado preocupam-se em estudar as DA no domnio da

matemtica, da leitura (monitorizao com base no currculo, no contexto da primeira fase do

Modelo de Atendimento Diversidade), a aprendizagem dos alunos em apoio educativo, as

prticas de aprendizagem a partir de mnemnicas, a gesto do currculo, as estratgias de

diferenciao centradas no currculo e as formas de cooperao entre professores, a formao

de professores, e ainda, no domnio da psicologia da educao, a autoestima. Alguns destes

estudos tiveram pontos de partida diferentes, uns mais numa tica avaliao/diagnstico e

monitorizao com base no currculo, mediante provas em reas especficas da aprendizagem,

como a matemtica (Anfilquio, 2011), para depois sugerir medidas e respostas fceis de

aplicar; e outros, mais numa lgica de soluo/combate das D.A, com enfoque na ao

educativa imediata e nas polticas educativas, como o caso do estudo de Mouro (2011).

Ser no mbito desta agenda diversa, quanto aos pressupostos, concees e resultados,

em que as DA constituem um pretexto para refletir sobre a diferenciao curricular e

pedaggica como eixo dos projetos de interveno nas escolas, que nos situamos com este

trabalho. que a diferenciao tanto pode constituir uma resposta congruente com os

pressupostos e os valores das sociedades democrticas e os desafios de sociedades

epistemologicamente plurais bem como, pelo contrrio, pode constituir uma estratgia de

19

camuflagem de um processo de segregao que, por esta via, adquire credibilidade e

legitimidade.

Sendo esta uma problemtica bastante complexa, no deixa de ser uma problemtica

suficientemente pertinente e atual, nomeadamente quando consideramos que os sentidos da

diferenciao curricular e pedaggica constituem a problemtica nuclear desta tese, aferidos

pelo impacto das medidas que se concretizam nas salas de aula e nas escolas. Esta uma

problemtica que, em confronto com os projetos, as dissertaes e as teses atrs referidas, se

caracteriza por ser objeto de uma abordagem que privilegia as dimenses curriculares e

pedaggicas da ao dos professores como o objeto maior da ateno do investigador que,

assim, deixa de a abordar por via das leituras mais circunscritas relacionadas, sobretudo, com

o domnio das intervenes especializadas. Da a organizao do trabalho em duas partes: (i)

uma primeira, intitulada Enquadramento e reflexo terica, e uma segunda que,

simplesmente, designada por Projeto de Investigao.

Ser, ento, na parte referente ao Enquadramento e reflexo terica que iremos

aprofundar, no seu primeiro captulo, Escola, Democracia e Sociedade do Conhecimento, os

desafios e exigncias de que as escolas no se podero furtar. Trata-se de um captulo que

permite introduzir a reflexo do segundo captulo, As escolas portuguesas como espaos de

formao: Contributos para o debate, onde so abordados alguns dos constrangimentos

histricos e polticos da afirmao da Escola como instituio educativa de massas em Portugal,

de forma a tratar criticamente as vicissitudes desse processo, as quais no podero ser

desvalorizadas como fatores que, entre outras coisas, afetam o modo como se concebe e se lida

com as diferenas pessoais, sociais e culturais dos alunos nas escolas contemporneas e, em

particular, no 1. CEB que o nvel de escolaridade que privilegiamos neste trabalho. Sendo

necessrio ter em conta a dimenso histrica e poltica da abordagem das diferenas como

questo educativa primordial na sociedade em que vivemos, importa, como o fazemos ainda no

mbito do segundo captulo, refletir sobre os pressupostos e implicaes pedaggicas de tal

questo. Por isso que este um tema com que se encerra o captulo, discutindo-se a

problemtica a partir do quadro concetual que Trindade e Cosme (2010) propem atravs do

debate que estabelecem entre o paradigma da instruo, o paradigma da aprendizagem e o

paradigma da comunicao. Foi, deste modo, a partir de um campo configurado desta maneira

que avanmos na reflexo sobre o modo como a diferenciao curricular e pedaggica pode

assumir mltiplas formas e significados, uma reflexo que permitiu abrir as portas temtica

20

do terceiro captulo, Dificuldades de Aprendizagem: delimitao de um campo de reflexo e

de interveno educativas.

Este um captulo em que se discute algumas das abordagens meta tericas que

permitem configurar as vrias perspetivas em funo das quais se delimita o conceito de DA,

ainda que seja a partir da reflexo proposta por Maria do Cu Roldo (2003) e por Perrenoud

(2000, 2001) que se constri uma reflexo para valorizar o contributo de Bruner (2000), de

Cosme e Trindade (2013) ou do MEM (Niza, 1992; 1992b; 1998; Santana, 2000; Serralha,

2001) que, nesta tese, se constituem como expoentes de um projeto de educao democrtico e

inclusivo. Defendendo-se que este projeto pressupe um compromisso com o paradigma

pedaggico da comunicao (Trindade & Cosme, 2010), sustenta-se igualmente que estamos

perante um desafio bastante exigente, quer do ponto de vista epistemolgico, quer do ponto de

vista pedaggico, o qual importa discutir quanto aos seus pressupostos, obstculos e

vicissitudes.

A segunda parte, onde se apresenta, discute e se justifica o projeto de investigao,

refletindo-se sobre os dados obtidos, encontra-se organizada em funo do seguinte conjunto

de subcaptulos:

a) Opes Metodolgicas;

a. Objetivos de estudo;

b. Enquadramento epistemolgico;

c. O Estudo de Caso como estratgia de investigao;

d. Tcnicas de recolha e de produo de dados;

i. Anlise documental;

ii. Entrevistas;

e. Mtodos de anlise e interpretao de dados;

f. Sujeitos da investigao;

b) Anlise e Discusso dos resultados.

Trata-se de um projeto atravs do qual se pretende estudar o modo como num

agrupamento de escolas do norte litoral de Portugal se responde s DA dos alunos do 1. CEB,

de forma a compreender-se e a refletir-se sobre as prticas de diferenciao curricular e

pedaggica que tinham lugar naquele agrupamento. De forma a poder concretizar-se um tal

projeto, criaram-se as condies para averiguar quais as estratgias utilizadas pelos professores

do 1. CEB daquele agrupamento, no domnio da identificao das DA dos alunos, no domnio

da conceo e implementao dos planos de interveno dirigidos para esses alunos e, ainda,

21

no domnio da monitorizao e avaliao dos planos, bem como da atividade e desempenho dos

estudantes.

De um modo geral, os resultados evidenciaram algumas potencialidades ao nvel da ao

dos professores, mas foram sobretudo as dificuldades sentidas por estes e as tenses ao nvel

do dizer, mas tambm entre o dizer e o fazer dos professores, que constituiro os dados mais

promissores dos resultados obtidos.

Em suma, podendo considerar-se a possibilidade de compreender que as respostas s

DA dos alunos nos obrigam a um confronto irrevogvel dos professores com a problemtica da

diferenciao curricular e pedaggica no mbito das escolas, esta problemtica est longe de

constituir, apenas, uma problemtica tcnica. Torna-se possvel compreender, tambm, que

aquelas respostas e aquela problemtica podero ser entendidas como expresso, por um lado,

das dificuldades de nas escolas se lidar com a heterogeneidade cultural dos alunos e, por outro,

das dificuldades de transio de uma organizao do trabalho pedaggico para uma outra que

deixe de funcionar em funo do princpio em que se apregoa a possibilidade de ensinar tudo a

todos como se todos fossem apenas um s (Barroso, 1995). Trata-se de dificuldades que so

expectveis, atento o conjunto de ruturas que as mesmas pressupem mas tambm a

necessidade de compreendermos que tal transformao depende, e muito, dos professores, e

no se confina, somente, a estes, dado que tais ruturas implicam obrigatoriamente mudanas

estruturantes tanto ao nvel do investimento e das polticas educativas do pas, como ao nvel

da gesto e administrao das escolas.

22

PARTE I ENQUADRAMENTO E REFLEXO TERICA

23

CAPTULO I Escola, Democracia e Sociedade do Conhecimento

24

Introduo

um dever capital da educao armar cada um para o combate vital pela lucidez

(Morin, 2002, p. 38)

Nas sociedades e no mundo em que vivemos, a reflexo sobre a Escola adquiriu uma

importncia e uma visibilidade extraordinrias fruto, por um lado, dos compromissos polticos

de natureza demogrfica que justificam uma tal reflexo e, por outro, enquanto expresso do

desenvolvimento tecnolgico de sociedades que, hoje, se caracterizam como sociedades do

conhecimento.

No de estranhar, por isso, que Tedesco (2008, p. 26), imbudo deste esprito,

questiona-se em saber se a escola ser a instituio socializadora do futuro e se a formao das

futuras geraes exigir esta mesma estrutura institucional. O autor afirma que a escola um

produto do processo de modernizao e que sempre esteve submetida tenso entre as

necessidades de integrao social e as exigncias do desenvolvimento pessoal (p. 13).

Um desafio que, atualmente, adquire novos contornos e que confronta as escolas com

novos reptos que esto longe de serem consensuais, ainda que se possa afirmar que a Escola

tem que se assumir como um espao de educao/formao que o prepare para poder integrar-

se numa realidade que continuamente se torna cada vez mais complexa (Morgado & Ferreira,

2006, p. 61).

Certamente que esta afirmao continua a ficar aqum de revelar as exigncias de um

tal projeto, quantas vezes contraditrias e at excessivas. Seja como for, cremos que, tal como

defende Alarco (2001), as escolas so contextos de trabalho para alunos e para professores que

os obrigam a envolver-se em atividades mltiplas e pluridimensionais.

Se, no passado, esta era uma problemtica inexistente, importa reconhecer que, nos dias

que correm, a equao mais difcil de resolver, quer porque h diferentes interpretaes sobre

o papel da escola, dos alunos e dos professores, quer porque estas diferentes perspetivas tm

consequncias no modo de conhecer as finalidades dos projetos de educao escolar e as

estratgias a implementar para as caracterizar.

25

que a Escola no uma instituio insular face ao mundo onde se insere, mas tambm

no pode ser considerada uma instituio sem uma identidade matricial, que permite configur-

la como um espao singular de socializao e de formao.

Segundo Trindade e Cosme (2010),

o modelo de educao que se inaugura atravs da emergncia da Escola nas sociedades ocidentais, no sculo XVIII, inaugura, tambm, uma rutura com os modelos de socializao vigentes ao definir que a socializao das geraes mais jovens passa a ser partilhada, pela primeira vez na histria da humanidade, com uma instituio que legitima a sua existncia pela assuno de uma tarefa educativa dessa grandeza (p. 20).

Apesar de sabermos que a configurao do trabalho educativo das escolas tem vindo a

assumir diferentes formatos, importa compreender que o ncleo identitrio da instituio

escolar, independentemente das opes dos projetos que a tm lugar, se configura em funo

do seguinte conjunto de fatores invariantes:

a) a existncia de intenes educativas prvias, atravs das quais se define o que se

espera que os alunos aprendam (Trindade & Cosme, 2010, p. 23);

b) a existncia de estratgias que permitam que aquelas intenes se concretizem

(ibidem);

c) a necessidade de se promover a avaliao dos resultados obtidos (ibidem);

d) a existncia de agentes sociais mandatados para o efeito, os professores, cujo papel

nas escolas se justifica em funo da exigncia de um mundo que passa a confrontar

os indivduos com outras e novos desafios (idem).

Um dos maiores problemas educativos do sculo XXI o de saber como que uma

instituio desta natureza pode ser congruente do ponto de vista do projeto de formao que

promove, com os valores e os compromissos de uma sociedade democrtica e a sofisticao

intelectual e cultural de uma sociedade do conhecimento.

No estamos, como se sabe, perante um desafio fcil, na medida em que as exigncias

acabadas de referir implicam uma rutura com uma Escola preocupada, por um lado, com a

reproduo das desigualdades e mantendo uma relao conflitual com as comunidades onde se

inserem e, por outro, como um espao de domesticao cultural. Existindo razes de carter

histrico e poltico que permitem explicar uma tal opo, h que reconhecer, no entanto, que as

26

finalidades e os sentidos da mesma so to contraditrias como incongruentes com os

pressupostos e as dinmicas da vida no mundo contemporneo.

1. Escola do Futuro: procura de um novo paradigma

1.1 A Escola Democrtica como exigncia e desafio

A Escola do sculo XX foi obrigada abrir as suas portas a novos pblicos,

universalizao da educao e escolarizao obrigatria. A Escola foi massivamente ocupada

por uma grande diversidade de pblicos, alguns dos quais lhe eram de certo modo estranhos,

ou seja, foi confrontada com a massificao do ensino, com um acrscimo elevado de alunos

de diversas origens sociais e culturais. Uma Escola com uma longa histria, habituada prtica

de um currculo nacional igual para todos, tem vindo a sentir inmeras dificuldades de

adaptao a uma nova realidade, e a um novo projeto, politicamente mais equitativo e

culturalmente mais desafiante. Neste sentido, pode considerar-se que a Escola do sculo XXI

tem que ser interpretada como espao de vrias vises do mundo, ou de vrios referenciais de

ao pblica, e, por conseguinte, de definies diferenciadas de bem comum e de princpios de

justia (Estvo, 2004, p. 51). Palavras, estas, que nos conduzem discusso sobre o conceito

de educao democrtica e s respostas questo: Como se educam os alunos

democraticamente?

A democracia no sentido amplo e social, como regime poltico, entre adultos, pressupe

a igualdade entre os agentes sociais. Ningum, nem nenhum grupo, pode ter privilgios. A

democracia desafia, estimula, orienta e recusa a arbitrariedade.

H limites vontade individual decorrentes da valorizao do bem comum. H

constrangimentos mas no pode haver opresso, uma vez que nestas propostas a inteno do

limite o crescimento do grupo e no o seu domnio.

Importa compreender, segundo Dewey, que

Uma democracia mais que uma forma de governo; primariamente uma forma de viver associada, de experincia comunicada juntamente. A extenso no espao do nmero de indivduos que participam num interesse comum, de modo a que cada um possa referir a sua prpria ao aos demais e considerar a ao dos demais na direo sua prpria conduta, equivale a superao daquelas barreiras de classe, raa e territrio nacional que impedem que o homem perceba a plena significao da sua atividade. () Uma sociedade que seja mvel, que est cheia de canais para a distribuio de uma mudana que ocorra em qualquer parte tem que procurar

27

membros que sejam educados para a iniciativa e a adaptabilidade pessoais (Dewey, 2004, p. 82)

Para Dewey, segundo Apple e Beane (1997), o livre fluxo de ideias que permite s

pessoas estarem to bem informadas quanto possvel e o uso da reflexo crtica para avaliar

problemas, ideias e polticas que caracteriza uma educao democrtica. Educao esta que tem

que ser confrontada com o ritmo acelerado das mudanas, de carter diverso, que tm lugar nas

sociedades em que vivemos, as quais esto na origem de projetos de educao/formao que

preparem os estudantes para se poderem integrar numa realidade que muda continuamente e se

torna cada vez mais complexa (Morgado & Ferreira, 2006).

Por isso, Tedesco (2008, p. 119) afirma que a Escola dever atender formao da

personalidade, ou seja, em fixar os pontos de referncia que permitam a cada um escolher e

construir a sua ou as suas mltiplas identidades. O autor defende que a escola a responsvel

por estas duas situaes, por um lado, como promover o desejo face sobreposio circulante

e, por outro, como construir os quadros de referncia para o processamento da informao

disponvel.

Pierre Levy (1994) defende que a Escola do sculo XXI dever olhar para o ensinar e o

aprender numa perspetiva de construo de ecologias cognitivas (p. 81) que remetem para o

que Delors (2005), no seu Relatrio intitulado Educao, um Tesouro a descobrir define

pelos quatro pilares do conhecimento.

O primeiro pilar intitula-se de aprender a conhecer. Considera que o indivduo adquire

os instrumentos da compreenso, segundo (Romo, s/d.), atravs da participao da pesquisa

e do processo de construo do conhecimento.

No segundo, o aprender a fazer, o indivduo serve-se do conhecimento adquirido para

poder agir sobre o meio envolvente e vai para alm do aprender como feito e do aprender a

construir os modos e os instrumentos da feitura (Romo, s/d., p. 7).

O terceiro, o aprender a viver juntos, tem como objetivo a participao e cooperao

com os outros em todas as atividades humanas. Este no se pode reduzir ao conhecimento dos

tipos de convivncia existentes () marcados pela competio e pelos conflitos (ibidem), mas

estende-se tambm procura do conhecimento das diferenas tnicas, econmicas, polticas,

sociais, religiosas, culturais de gnero, com vista participao na reconstruo da estratgias

da convivncia na diversidade () (idem, p. 8).

28

O ltimo, o aprender a ser, integra os trs precedentes. Como afirma Romo (s/d.),

atravs dele o indivduo procura a sua realizao plena, em toda a sua riqueza e complexidade:

esprito e corpo, inteligncia, sensibilidade, sentido esttico, responsabilidade pessoal e

espiritualidade (Delors, 2005, p. 99).

Como se constata, estamos perante um referencial que anuncia algo que necessitamos

de operacionalizar, do ponto de vista educativo, e, subsequentemente, do ponto de vista

epistemolgico e pedaggico. Um desafio que obriga a que os professores repensem qual o seu

papel e estatuto, bem como qual o papel e o estatuto dos seus alunos. Um desafio que obriga a

recusar o paradigma de instruo (Trindade & Cosme, 2010, p. 30) como o paradigma

pedaggico de referncia. Um desafio que constitui, de algum modo e simultaneamente, uma

referncia desta tese e um dos objetos da sua interpretao.

1.2 Alguns dos desafios da sociedade do conhecimento

Uma verdadeira cultura da coabitao no ciberespao parece ser o desafio do prximo milnio () sero suporte da informao e mediadores da aprendizagem, intensificaro os processos de produo do conhecimento e implicaro uma nova ordem tica. (Moreira, 2000, pp. 34-35).

Atravs das palavras de Moreira, confrontamo-nos com os desafios das sociedades do

conhecimento.

A Escola do sculo XXI confrontada com um novo paradigma, novas posies ticas

e axiolgicas na (re) interpretao da sociedade. Uma sociedade transformada com base na

multiplicidade do conhecimento, na revoluo digital, com a instalao, como refere Alves

(2002, p. 48), da democracia virtual, onde o analfabetismo digital se sobrepe ao

analfabetismo tradicional. O mesmo autor alerta-nos para os sentidos que essa revoluo

digital poder tomar, questionando, At que ponto a sociedade beneficia dessas inovaes e

criaes inteligentes? Ou, At que ponto uma sociedade pode ser manipulada pelos

detentores do conhecimento?

Tais questes orientam a nossa reflexo sobre o novo paradigma deste sculo, conhecido

por muitos como tecnolgico ou digital (Alves (2002); ou ainda, conhecido como paradigma

do processamento da informao ou sociedade da informao (Livro Verde, 1997).

Capra (1996, cit. por Behrens, 2009, p. 53) caracteriza o paradigma emergente deste

novo sculo como uma viso holstica do mundo concebendo-o como um todo integrado, e

29

no como uma coleo de partes dissociadas, que pode ser ainda denominado como viso

ecolgica. Moreira (2001) partilha desta viso afirmando que o sujeito deve repensar na

formao das geraes, confiada Escola (p. 22). O autor d uma nfase ao todo, de forma

holstica e orgnica. Apesar deste jogo semntico de palavras para caracterizar o novo

paradigma, no deixa qualquer dvida que inovador, pois leva a Escola a repensar com

conscincia de que nada est estabelecido como certo e tudo novo e inconstante. Levantamos

outra questo: qual o papel da cincia na produo do conhecimento? Uma questo bastante

desafiadora para o pensamento humano, onde o Homem pode ser visto como um ser indiviso,

em que haja o reconhecimento da uni-dualidade crebro-esprito levando reintegrao sujeito-

objeto (Behrens, 2009, p. 54).

Um bom exemplo a utilizao das novas tecnologias nas escolas. A este respeito Lanna

(1997, cit. por Moreira, 2001, p. 21) defende a orientao dos recursos nas atividades

pedaggicas [sendo] crucial para o desenvolvimento das novas modalidades de educao que

visam otimizar e aumentar a motivao dos alunos, no processo de aprendizagem. Este autor

pretende que o sujeito (aluno) cognoscente valorize a reflexo, a ao, a curiosidade, o esprito

crtico, a incerteza, o questionamento, [reconstruindo] a prtica educativa proposta em sala de

aula (Behrens, 2009, p. 55).

O professor ter de deixar o seu papel de mero difusor, transmissor de conhecimentos,

para se transformar num parceiro que gere o conhecimento coletivo a que os alunos tm acesso.

Durante todo o processo de mediao-aprendizagem, o professor questiona as suas prticas

pedaggicas e rev a sua linha de ao. Baseado em alicerces de uma prtica pedaggica

compatvel com as mudanas paradigmticas da cincia (Behrens, 2009, p. 56), o professor

dever caminhar para uma aliana paradigmtica, forma de uma verdadeira teia, com uma viso

sistmica, com abordagem progressista e com o ensino com pesquisa. O esquema que se segue

ilustra bem esta aliana paradigmtica.

Figura 1 Aliana paradigmtica

30

Esta aliana paradigmtica justifica-se em funo das caractersticas de cada abordagem

(Behrens, 2009, p. 56):

i) A viso sistmica ou holstica procura a superao da fragmentao do

conhecimento, a recuperao do ser humano na sua totalidade, considerando o

homem com as suas inteligncias mltiplas, levando formao de um

profissional humano, tico e sensvel;

ii) A abordagem progressista tem como pressuposto central a transformao

social. Instiga o dilogo e a discusso coletiva como foras propulsoras de uma

aprendizagem significativa e contempla os trabalhos coletivos, as parcerias e a

participao crtica e reflexiva dos alunos e dos professores;

iii) O ensino com pesquisa pode provocar a superao da reproduo para a

produo do conhecimento, com autonomia, esprito crtico e investigativo.

Considera o aluno e o professor como investigadores e produtores dos seus

prprios conhecimentos.

Subjacente a este novo paradigma est a uma nova viso sobre a modernidade, voltada

mudana de formas, intitulada de sociedade fluida ou lquida (Bauman, 2001).

Com estes dois novos conceitos, Bauman (2001) quis dar conta da precariedade dos

vnculos humanos numa sociedade individualista e privatizada, marcada pelo carter transitrio

e voltil das suas relaes. Entretanto questionamos: em que medida a fluidez da sociedade

poder interferir no conhecimento apreendido na escola e fora dela? Conhecimento, responsvel

pela formao de identidade com referncias ao seu grupo de pertena, social e cultural.

Quando refletimos sobre a formao da identidade, a primeira situao que nos ocorre

pensarmos nas nossas origens, na forma como comunicamos e no grupo social de pertena.

No fundo, ns prprios, enquanto mediadores responsveis pela formao de identidades de

crianas, ao longo do seu percurso escolar, perguntamos sempre o nome, onde que mora, o

que faz o teu pai e a tua me (sem conhecermos bem o ceio familiar de cada aluno/criana).

Acabamos por fazer, como refere Vieira (2009, p. 11), uma busca da identidade do outro, uma

vontade de saber quem ele , qual a sua provenincia e modo de habitar a vida para arrumarmos

as prateleiras cognitivas e relacionais.

Olhando desta forma to dinmica para a identidade implica, como refere Vieira (2009),

pens-la como um projeto que se constri no presente enquanto se antecipa um futuro

31

inevitavelmente ancorado no passado (p. 14). O eu constri-se com a ajuda do outro, sendo

este a matriz cultural, com capacidade de pensar e de dar valor s coisas.

Vieira (2009, p.1) destaca desta relao dialtica o seguinte,

A identidade e a alteridade constroem-se ento neste processo de interao onde o indivduo percorre o caminho entre o ns e o outro que vai descobrindo no dia-a-dia. O indivduo acede conscincia de si por diferenciao dos outros e assimilando partes da identidade do grupo que designa e identifica como seu.

Como podemos verificar, a construo da identidade constante e est em trnsito,

da a ideia de liquidez e fluidez (Bauman, 2001). Ambos os conceitos esto voltados parar a

mudana de formas, para a acomodao nos mais diversos encaixes, ao ponto de Vieira (2009)

interpretar a construo de identidade como uma forma de dar significado consistente e

coerente prpria existncia, integrando as suas experincias passadas e presentes, com o fim

de dar um sentido ao futuro (idem, p.37).

Perante o que foi dito, curioso questionarmos: j que a modernidade lquida uma

figura de mudana e transitoriedade, como que a Escola poder acompanhar a fluidez das

relaes sociais? Transformando-se ela prpria num local de trabalho em srie, como se de uma

fbrica se tratasse, ser que ela transfigura todo o trabalho do aluno em ofcio com uma

cultura laboral flexvel? Ou, querer na mesma acompanhar essa fluidez de relaes, mas

promovendo competncias transversais, onde todo conhecimento veiculado dado como uma

via, uma proposta de transformao do mundo?

Estas questes contribuem para uma reflexo mais profunda sobre a formao da

identidade do aluno em contexto escolar. Uma reflexo que ajuda a compreender como que

a escola v essa fluidez social, como a reinterpreta e depois a leva para dentro da escola, para

dentro de cada uma das suas salas de aula. importante olharmos para dentro das nossas escolas

e pensarmos na formao das identidades das nossas crianas como um processo complexo e

dialtico, uma reconstruo permanente, flexvel e dinmica, [uma] constante metamorfose

para um novo todo (Vieira, 1999, p. 40).

Subjacente proposta de Vieira (1999), poder estar uma escola vista como uma

sociedade mltipla, onde coexistem culturas diferentes e todos convivem com a diferena de

forma tolerante, donde surgem aprendizagens enriquecedoras que enformam a identidade de

cada aluno, onde as ideias se tornam mais fluidas e as diferenas iniciais entre os alunos deixam

32

de existir sou eu e o outro, eu fao parte do outro e o outro faz parte de mim, como forma de

combate ao individualismo.

Para terminarmos, Behrens (2009, p. 111) chama ateno para esse mesmo combate,

sugerindo que o novo paradigma procure

uma prtica pedaggica que ultrapasse a viso uniforme e que desencadeie a viso de rede, de teia, de interdependncia, procurando interconectar vrios obstculos que levem o aluno a uma aprendizagem significativa, com autonomia, de maneira contnua, como um processo de aprender a aprender para toda a vida.

no mbito do conjunto de preocupaes e pressupostos que acabamos por enunciar

que se ter que compreender a reflexo sobre a Escola em Portugal e, principalmente, a reflexo

sobre as suas finalidades, modos de operacionalizao dos projetos e impacto formativo, o que

poder ser entendido, genericamente, como o cenrio concetual subjacente a esta tese.

Um cenrio que, j por si, no suficiente para responder s questes que norteiam esta

tese, ainda que seja necessrio para nos indicar algumas possibilidades e desafios que no

poderemos ignorar.

33

CAPTULO II As escolas portuguesas contemporneas como espaos de

formao: contributo para o debate

34

Introduo

No possvel refletir sobre as finalidades, as estratgias e o impacto formativo das

escolas portuguesas sem abordarmos alguns dos constrangimentos histricos relacionados com

a sua afirmao como instituio educativa de massas.

Um processo que se iniciou graas s reformas educacionais do Marqus de Pombal,

em 1759 e 1772 (Teodoro, 2003, p. 130), o que faz de Portugal um exemplo de pioneirismo

educativo na Europa desse tempo. essa vocao pioneira que se volta a fazer sentir quando

Portugal se torna, provavelmente, o quarto pas do mundo a publicar, em 1835, uma lei

estabelecendo o princpio da escolaridade obrigatria (ibidem). Uma deciso que reforada

em 1844 quando uma nova reforma associar o princpio da escolaridade obrigatria a

penalizaes aos pais e aos estudantes que no frequentassem a escola (ibidem). O problema,

contudo, residiu no fosso enorme existente entre a produo legislativa e o seu impacto concreto

no pas. Segundo A. Nvoa, apesar daquela produo, o que se pode constatar que no

princpio do sculo XX, a taxa de inscries no ensino primrio era de 22,1% e, trinta anos mais

tarde, em 1930, era ainda de apenas 37,7% (Teodoro, 2003, pp. 130-131), uma afirmao que

se v corroborada por Candeias e Simes (1999), quando estes investigadores defendem que o

processo de afirmao da Escola em Portugal foi um processo extremamente lento, tal como se

pode comprovar quer pelos nmeros do analfabetismo na dcada de 50, do sculo passado,

40,4% (Campos, 2011), quer pela data em que a escolaridade obrigatria universal passa a estar

consignada na lei, 19601.

a partir destes dados que adquire plausibilidade a perspetiva de Teodoro que considera

a expanso da escolarizao de massas em Portugal a expresso tpica da construo retrica

da educao, a qual caracteriza como uma significativa precocidade no plano legislativo, e

no discurso poltico sobre o papel da escola na modernidade, e uma continuada denegao de

recursos para o incremento da escolarizao (Teodoro, 2003, p. 131).

Havendo razes de carcter diverso que podero explicar esta tendncia, interessa-nos

neste momento conferir-lhe apenas visibilidade neste trabalho e acrescentar outros dados

relevantes acerca da afirmao da escola de massas no nosso pas que constituem a expresso

de uma segunda tendncia: a do carcter circunscrito dessa escola, que se afirma atravs dos

1 com o Decreto-Lei n. 42994 que o, ento, designado Ensino Primrio se torna obrigatrio tambm para as meninas, visto que desde 1956 j era obrigatrio para os meninos.

35

nmeros recolhidos nos diferentes censos. Assim, constata-se que em 1970, de acordo com a

base de dados PORDATA, existiam 33,6% de portugueses que eram analfabetos, 45% que

sabiam ler e escrever sem terem concludo o Ensino primrio e 49,6% de portugueses que

conseguiram obter este grau de ensino.

Tendo em conta estes dados, verifica-se que, nesse ano, s 12,3% dos portugueses que

prosseguiram estudos aps a concluso do 4. ano de escolaridade. Mesmo que se tenha que

reconhecer a importncia e o impacto do processo de democratizao da sociedade portuguesa,

iniciado em 1974, importa realar que s com a aprovao da primeira Lei de Bases do Sistema

Educativo (LBSE) Portugus, em 1986 (Decreto-Lei n. 46/86, de 14 de outubro) que ocorreu

o alargamento da escolaridade obrigatria de 6 para 9 anos, sendo depois, em 2010, que se

verificou um novo alargamento da escolaridade obrigatria, agora do 9. para o 12. ano2.

Mesmo assim, importa compreender que, segundo os dados constantes na PORDATA,

s em 1990 que Portugal atingiu os 100% de alunos inscritos no 1. CEB, enquanto no 2.

Ciclo s em 2008 se atingiu, pela primeira vez e se manteve at hoje, percentagens de frequncia

acima dos 90%. No 3. Ciclo, s no ano de 2012 que nos aproximmos do limiar desta

percentagem.

Finalmente, h uma terceira tendncia do processo de afirmao e expresso da

escolarizao de massas, que gostaramos de referir e que tem a ver com o facto do sistema

educativo portugus iniciar o processo de mudana mais substantiva da sua histria em 1974,

com o incio do processo de democratizao do pas. Uma situao que, segundo Manuel J.

Sarmento (1999), ocorre em contraciclo quando, devido aos efeitos da recesso econmica

gerada pela 1. crise do petrleo em 1973, se inicia tambm a crise poltica e social dos Estados-

Providncia e das polticas de democratizao escolar vividas pelos pases da Europa Ocidental3

desde o fim da 2. Guerra Mundial.

Em suma, face aos dados apresentados, possvel concluir que, em comparao com os

pases do norte e do centro da Europa, temos, enquanto pas:

a) Uma relao mais tardia com a Escola e os projetos de educao especficos que a

tm lugar;

b) Uma experincia mais recente, nos nveis de escolaridade Ps-Ensino Primrio, com

uma populao escolar socialmente heterognea e culturalmente diversa4;

2 O alargamento da escolaridade obrigatria de 4 para 6 anos ocorreu, por sua vez, a partir do ano letivo de 1964/65. 3 Portugal, Espanha e Grcia, que foram governados de forma autocrtica at dcada de 70 do sculo XX, so exceo a esta situao. 4 Em rigor, continuamos a viver, ainda, o processo de consolidao do processo de expanso da escola de massas, como os nmeros de frequncia do 2. CEB, 3. CEB, sobretudo, os do Ensino Secundrio o comprovam.

36

c) Um processo de expanso da escola de massas mais conturbado e problemtico,

dada a situao histrica e poltica vivida pelo pas.

o reconhecimento destas especificidades que teremos que reconhecer para refletirmos

sobre as possibilidades de construirmos uma escola de massas congruente com os valores e os

compromissos da democracia. Um desafio que nos conduz a equacionar a relao escolaridade

obrigatria/diferenciao pedaggica, tendo em conta a necessidade de valorizar a possibilidade

de as escolas se afirmarem como um espao de socializao cultural que acolhe uma populao

estudantil cuja diversidade tem que ser entendida como uma propriedade e no como um

obstculo. Ou seja, a Escola deve

preocupar-se por estimar diferenciaes que no suponham desigualdades entre os estudantes, tem que conciliar o currculo comum e a escola, de igual forma, para todos, com a possibilidade de adquirir identidades singulares o que significa primar a liberdade dos sujeitos na aprendizagem (Sacristn, 2000, p. 74).

As palavras de Gimeno Sacristn vo de encontro ao que proferido na LBSE

Portugus, no art. 7., referente aos objetivos do ensino bsico. De todos, os que constam neste

diploma, achamos pertinente destacar: a) assegurar uma formao geral comum a todos os

portugueses que lhes garanta a descoberta e o desenvolvimento dos seus interesses e aptides,

capacidade de raciocnio, memria e esprito crtico, criatividade, sentido moral e sensibilidade

esttica, promovendo a realizao individual em harmonia com os valores da solidariedade

social; b) assegurar que nesta formao (formao geral) sejam equilibradamente inter-

relacionados o saber e o saber-fazer, a teoria e a prtica, a cultura escolar e a cultura do

quotidiano; c) fomentar a conscincia nacional aberta realidade concreta numa perspetiva de

humanismo universalista, de solidariedade e de cooperao internacional; d) proporcionar aos

alunos experincias que favoream a sua maturidade cvica e scio afetiva, criando neles

atitudes e hbitos positivos de relao e cooperao, quer no plano dos seus vnculos de famlia,

quer no da interveno consciente e responsvel na realidade circundante; e) assegurar s

crianas com necessidades educativas especficas, designadamente, a deficincias fsicas e

mentais, condies adequadas ao seu desenvolvimento e pleno aproveitamento das suas

capacidades5.

5 Para o 1. CEB, a Lei de Bases do Sistema Educativo enuncia algumas particularidades face aos objetivos especficos de ciclo, j integrados nos gerais de acordo com o desenvolvimento etrio correspondente. Sendo assim, no 1. ciclo privilegia-se o desenvolvimento da linguagem

37

Para tais objetivos para passarem do simples domnio das intenes para o domnio da

ao importante, como refere Gimeno Sacristn (idem, p. 12), ter o cuidado de olhar para a

escolaridade obrigatria como uma realidade na qual trabalham muitos professores,

considerada como referncia bsica para os mesmos, j que a sua profisso condicionada

por inmeras determinaes e valores, por exemplo, ideologia poltica, poder, cumprimento

do currculo nacional, entre outras situaes. O autor (ibidem) chama ainda ateno para o facto

de que a escolaridade obrigatria um fenmeno que, com a sua expanso [massificao do

ensino] a toda a populao e com o seu prolongamento at idades bem pequenas ()

desempenha uma importncia social de primeira ordem na vida dos sujeitos, da famlia e da

sociedade inteira.

Com estas palavras, Gimeno Sacristn (idem) apela sociedade que no fique

indiferente ao fenmeno, afirmando que a escolaridade obrigatria um projeto hu