didÁtica e interculturalidade na formaÇÃo de … · a faced, desde 2007, oferece o curso de...

32
DIDÁTICA E INTERCULTURALIDADE NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS O painel apresenta reflexões sobre a formação de professores indígenas e das práticas interculturais no fazer do percurso formativo. A discussão é elaborada a partir da análise do trabalho de duas instituições formadoras, Universidade do Estado do Amazonas/UEA e Universidade Federal do Amazonas/UFAM. O primeiro artigo analisa os resultados de uma pesquisa documental em materiais produzidos na disciplina Didática, cujo objeto de estudo são os subsídios elaborados pelas professoras e as sequências didáticas e projetos de trabalhos produzidos pelos professores indígenas em formação. A pesquisa objetivou compreender como se organiza a articulação de saberes indígenas e não indígenas nos conteúdos trabalhados. O segundo artigo analisa o processo didático nas formações inicial e continuada de docentes indígenas, alunos da graduação ou do Curso de Aperfeiçoamento, nos quais se preconiza a relação dos saberes pedagógicos, conceituais e metodológicos, articulados aos saberes próprios dos grupos étnicos dos professores, na perspectiva de promover a interculturalidade. Também se constitui como uma pesquisa documental centrando olhar no planejamento das disciplinas e oficinas, assim como no produto das atividades orientadas pelos formadores para alcançar os objetivos estabelecidos nas propostas curriculares do curso. Por fim, o terceiro artigo apresenta uma reflexão sobre a proposta e a prática intercultural no Curso de Licenciatura Formação de Professores Indígenas - FPI da Faculdade de Educação - FACED da Universidade Federal do Amazonas - UFAM, analisando o conceito de interculturalidade presente nos fundamentos legais e nos princípios que norteiam a educação escolar indígena e que embasam a proposta do curso. Os resultados apontam para a importância da interculturalidade nos cursos e revelam quão necessária se faz a reflexão dos agentes envolvidos neste processo. Palavras-chave: Interculturalidade. Professores Indígenas. Saberes. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 10726 ISSN 2177-336X

Upload: danganh

Post on 09-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

DIDÁTICA E INTERCULTURALIDADE NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

INDÍGENAS

O painel apresenta reflexões sobre a formação de professores indígenas e das práticas

interculturais no fazer do percurso formativo. A discussão é elaborada a partir da análise

do trabalho de duas instituições formadoras, Universidade do Estado do

Amazonas/UEA e Universidade Federal do Amazonas/UFAM. O primeiro artigo

analisa os resultados de uma pesquisa documental em materiais produzidos na disciplina

Didática, cujo objeto de estudo são os subsídios elaborados pelas professoras e as

sequências didáticas e projetos de trabalhos produzidos pelos professores indígenas em

formação. A pesquisa objetivou compreender como se organiza a articulação de saberes

indígenas e não indígenas nos conteúdos trabalhados. O segundo artigo analisa o

processo didático nas formações inicial e continuada de docentes indígenas, alunos da

graduação ou do Curso de Aperfeiçoamento, nos quais se preconiza a relação dos

saberes pedagógicos, conceituais e metodológicos, articulados aos saberes próprios dos

grupos étnicos dos professores, na perspectiva de promover a interculturalidade.

Também se constitui como uma pesquisa documental centrando olhar no planejamento

das disciplinas e oficinas, assim como no produto das atividades orientadas pelos

formadores para alcançar os objetivos estabelecidos nas propostas curriculares do curso.

Por fim, o terceiro artigo apresenta uma reflexão sobre a proposta e a prática

intercultural no Curso de Licenciatura Formação de Professores Indígenas - FPI da

Faculdade de Educação - FACED da Universidade Federal do Amazonas - UFAM,

analisando o conceito de interculturalidade presente nos fundamentos legais e nos

princípios que norteiam a educação escolar indígena e que embasam a proposta do

curso. Os resultados apontam para a importância da interculturalidade nos cursos e

revelam quão necessária se faz a reflexão dos agentes envolvidos neste processo.

Palavras-chave: Interculturalidade. Professores Indígenas. Saberes.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10726ISSN 2177-336X

2

DIIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

INDÍGENAS

Jonise Nunes Santos – Universidade Federal do Amazonas

Nataliana de Souza Paiva – UNINORTE

Resumo

O texto aborda a prática pedagógica desenvolvida nas disciplinas da área de Linguagens

do Curso de Licenciatura em Formação de Professores Indígenas - FPI e nos módulos

de Alfabetização e Letramento do Curso de Aperfeiçoamento da Ação Saberes

Indígenas na Escola - SIE, da Faculdade de Educação – FACED, da Universidade

Federal do Amazonas, que tem se fundamentado na Pedagogia de Projetos (DEWEY,

1979; HERNANDEZ, 1998), nas propostas metodológicas de Freinet (1969, 1973,

1979) e na Sequência didática para ensino de línguas (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004). O

objetivo do texto é apresentar o processo didático nas formações inicial e continuada de

docentes indígenas, alunos da graduação ou do Curso de Aperfeiçoamento, nos quais se

preconiza a relação dos saberes pedagógicos, conceituais e metodológicos, articulados

aos saberes próprios dos grupos étnicos dos professores, na perspectiva de promover a

interculturalidade, um dos princípios da Escola Indígena, definido nas Diretrizes para a

Política Nacional de Educação Escolar Indígena (1993). Os procedimentos

metodológicos do texto voltam-se a abordagem qualitativa, ao atribuir significados ao

processo e ensino-aprendizagem de professores indígenas, centrando-se na pesquisa

documental, tendo como foco a relação estabelecida, na formação, entre os

conhecimentos étnicos e prévios dos alunos com a Pedagogia de Projetos,

complementada com as técnicas de Freinet e a sequência didática de ensino de línguas.

No que se refere à formação, teoricamente, são apresentadas outras propostas

metodológicas que possam contribuir com a ressignificação das atividades pedagógicas.

Nas considerações, reafirma-se a preocupação em formar professores para o trabalho

pedagógico diferenciado e significativo, enfocando a necessidade de procedimentos

metodológicos para desenvolvimento de práticas de leitura e escrita, que cumpram os

princípios da educação escolar indígena no processo educacional. Reafirma-se ainda

que todo trabalho desenvolvido na formação de professores indígenas dependerá da

intencionalidade docente, do que e de que como se propõe.

Palavras-chave: Professores Indígenas. Formação Específica. Licenciatura e

Aperfeiçoamento.

INTRODUÇÃO

O processo educacional destinado aos povos indígenas, nas últimas décadas,

vem buscando construir uma Educação Escolar Indígena pautada nos princípios

comunitária, diferenciada, específica, multilíngue e intercultural. Nessa mesma

perspectiva, conceitos como cultura, alteridade, diferença, identidade, memória e

direitos indígenas vêm sendo retomados para compreensão e interpretação do contexto,

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10727ISSN 2177-336X

3

que tende a formar uma lacuna entre o que se compreende e traduz como exigência dos

povos indígenas e a forma como pensam os agentes públicos e executam as políticas.

Esse olhar contraditório para escola indígena pode ser observado desde o início

da colonização do Brasil. Conforme Xavier; Ribeiro; Noronha (1994, p. 42), os dados

históricos, referentes ao ensino destinado aos povos indígenas no processo de

colonização, demonstram a utilização de “métodos autoritários e controladores com o

propósito de dominar os povos indígenas, considerados selvagens e ingênuos, com a

finalidade de integrá-los à civilização, a serviço da fé e do império”.

A prática de ensino jesuítica utilizava ações e métodos que alteravam valores

indígenas, pois estes “não aprendiam apenas uma nova língua, uma nova interpretação

da vida e da morte”, pelo contrário, a didática possibilitava “um renascer que alterava

pela base a vida cotidiana daquela população nativa e a sua própria compreensão do

significado da existência” (XAVIER; RIBEIRO; NORONHA, 1994, p.42).

Esse processo pedagógico oferecido aos indígenas se valia de conteúdos e

métodos que atendiam apenas às classes dominantes, logo não atendiam às

peculiaridades das centenas de povos. Ressalta-se que essa prática atravessou séculos e

ainda é dominante nas escolas indígenas, apesar de já ser garantido em legislação

específica o direito a uma escola que atenda aos projetos societários de cada aldeia.

Dentre os direitos específicos, destaca-se a Formação Específica de Professores

Indígenas, considerando que a escola indígena deve ser conduzida, segundo a Resolução

n˚ 05/2012, por professores indígenas, como docentes e como gestores, pertencentes às

suas respectivas comunidades, mas, para isso, precisa-se que tenham uma boa formação.

A Resolução n˚ 05/2012 destaca que os cursos de formação de professores

indígenas, em nível médio ou supeior, devem enfatizar a constituição de competências

referenciadas em conhecimentos, saberes, valores, pautados nos princípios da Educação

Escolar Indígena; assim como devem estar voltados ao desenvolvimento e à avaliação

de currículos e programas próprios, bem como à produção de materiais didáticos e à

utilização ensino e pesquisa na escola (BRASIL, 2012).

Daí a prioridade por formação que dê subsídios teóricos e práticos aos

professores indígenas, que na Faculdade de Educação – FACED da Universidade

Federal do Amazonas – UFAM vem sendo realizada pelo Curso de Licenciatura em

Formação de Professores Indígenas – FPI e pela Ação Saberes indígenas na Escola, no

âmbito da Diretoria de Ações Afirmativas.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10728ISSN 2177-336X

4

Ressalta-se que, parte, do êxito da formação perpassa pela didática dos

formadores dos Cursos, que devem refletir sobre suas práticas para ressignificarem a

atuação dos professores indígenas junto de suas aldeias. Nesse sentido, os formadores

do Departamento de Educação Escolar Indígena vêm aperfeiçoando suas práticas

voltadas à formação indígena, ao mesmo tempo, identificando outras demandas.

Assim, o presente texto partirá da apresentação dos cursos voltados à formação

de professores indígenas ofertados no âmbito da FACED/UFAM, para abordar sobre a

didática e a prática de ensino dos formadores da área de linguagens, que foram se

adequando às demandas indígenas, mediante aos desafios linguísticos e culturais

próprios da diversidade étnica do estado do Amazonas.

1 LICENCIATURA EM FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS E

AÇÃO SABERES INDÍGENAS NA ESCOLA: CONTEXTUALIZANDO

A Universidade Federal do Amazonas - UFAM tem atendido a demanda dos

povos indígenas por educação com os Cursos de Licenciatura em Formação de

Professores Indígenas - FPI da Faculdade de Educação – FACED e de Aperfeiçoamento

em Numeramento, Letramento e Alfabetização Monolíngue e Bilíngue/Multilíngue, no

âmbito da Ação Saberes Indígenas na Escola.

Os Cursos de Licenciatura e Aperfeiçoamento se justificam no sentido de suprir

a carência por formação de profissionais da Educação Básica que atuam na escola

indígena, função primordial para a conquista de uma escola autônoma e específica,

enquanto um direito, porém ainda não efetivada. Acredita-se que a partir da formação se

contribuirá para que a escola indígena tenha, de fato, uma educação diferenciada.

A FACED, desde 2007, oferece o Curso de Formação de Professores Indígenas,

com apoio técnico e financeiro do Ministério da Educação, por meio do Programa de

Licenciaturas Interculturais Indígenas - PROLIND. A primeira turma foi finalizada em

novembro de 2013. Atualmente, são sete turmas - Munduruku, Sateré Mawé, Médio

Solimões, Alto Rio Negro, Alto Solimões, Manicoré, Lábrea -, que estão em formação.

O Curso de Licenciatura em Formação de Professores Indígenas objetiva formar,

em nível superior, numa perspectiva intercultural e interdisciplinar, professores

indígenas para atuar na 2ª etapa do ensino fundamental e no ensino médio, nas escolas

indígenas, com habilitação plena nas áreas de Ciências Humanas e Sociais; Ciências

Exatas e Biológicas; Letras e Artes.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10729ISSN 2177-336X

5

Os objetivos específicos do curso se voltam a contribuir para o avanço do

projeto político-pedagógico das escolas indígenas; oferecer condições para que as

escolas indígenas possam promover o acesso aos saberes científicos historicamente

construídos pela humanidade, bem como a valorização do patrimônio indígena,

propiciando um diálogo intercultural, a partir de suas lógicas e valores; possibilitar aos

professores indígenas um processo de formação que contribua para a promoção de ações

que permitam a indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão.

A Licenciatura em Formação de Professores Indígenas caracteriza-se por

princípios, considerados fundamentais, dentre os quais se destacam: a interculturalidade

– do diálogo entre as diferentes histórias e os diferentes saberes; a interdisciplinaridade;

a possibilidade de seleção / escolha conjunta (Universidade e organizações indígenas)

das disciplinas e conteúdos que vão compor o currículo do curso.

Conforme Santos e Santos (2014, p. 2875), a duraçãodo curso é cinco anos.

Nesse período, em dois anos ocorre a formação geral, para estudo de fundamentos

pedagógicos e de noções básicas introdutórias às três grandes áreas. Nessa etapa, todos

os alunos indígenas estudam juntos. Posteriormente, inicia-se a formação específica,

quando os alunos se dividem em três turmas, destinadas ao aprofundamento em uma das

áreas: Ciências Humanas e Sociais – História, Geografia, Antropologia, Sociologia e

Filosofia; Ciências Exatas e Biológicas – Matemática, Química, Física e Biologia; e

Letras e Artes – Língua Portuguesa, Língua Indígena, Expressão Cultural e Práticas

Corporais. Na última etapa ocorre a integração das áreas, quando os alunos voltam a

formar uma única turma para discutirem os resultados das pesquisas, do estágio e outras

questões que surgiram ao longo do Curso e na etapa anterior.

A “Ação Saberes Indígenas na Escola” instituída pela Secretaria de Educação

Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – SECADI, Ministério da Educação,

por meio das Resoluções n˚ 54 e 57/2013 do Fundo Nacional de Desenvolvimento da

Educação - FNDE. A Ação Saberes Indígenas na Escola integra a política nacional dos

Territórios Etnoeducacionais, conforme Decreto n˚ 6.861/2009.

O curso está referenciado nas concepções e orientações teóricas e metodológicas

da Ação Saberes Indígenas na Escola, objeto da Portaria MEC n˚ 1.062/2013. O curso

pretende atender professores indígenas alfabetizadores. Toda a rede de profissionais e os

cursistas selecionados, assim como o plano de trabalho e o respectivo Termo de

Referência são cadastrados no SIMEC com a identificação específica SISINDÍGENA.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10730ISSN 2177-336X

6

A oferta do curso é organizada pelas coordenações específicas. Os calendários

de atividades seguem os tempos e espaços locais para facilitar os processos de

mobilização e diminuir os altos custos de deslocamento, considerando o imenso espaço

geográfico coberto pelo projeto e pelas turmas. Deste modo, as equipes de

coordenações, estabelecem seus calendários e organizam seus espaços próprios.

A Ação Saberes Indígenas na Escola objetiva promover aperfeiçoamento de

professores indígenas no que tange a Metodologias da Alfabetização e Oficina de

construção de material didático, no sentido de articular conhecimentos e experiências

como suporte à prática pedagógica indígena através do aprimoramento das atividades

didáticas e definição de metodologias específicas para o fortalecimento de

conhecimentos e saberes nas escolas.

O curso é organizado em três módulos teórico-práticos compostos de oficinas,

aulas expositivas e dinâmicas de trabalhos em equipes. A integração teoria-prática é

proposta a partir de problemas em situações reais, reflexão-ação-reflexão da prática

vivenciada, estudos de caso, realização de oficinas.

Os Cursos de licenciatura e aperfeiçoamento voltados aos povos indígenas,

conforme Santos e Santos (2014, p. 2875), é resposta institucional da UFAM “às

demandas dos movimentos indígenas por formação específica de professores indígenas

para atuarem nas escolas das aldeias”, materializado em um processo de protagonismo

compartilhado, “tendo como principais sujeitos os próprios professores e lideranças

indígenas, representados por suas organizações, e os professores da UFAM/FACED”.

2 DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

INDÍGENAS

Os Cursos de Licenciatura e de Aperfeiçoamento da FACED destinado aos

povos indígenas adota a modalidade de ensino/formação por módulos e oficinas

pedagógicas, investindo na formação de professores indígenas para que subsidiem seus

currículos escolares, possibilitem a melhoria do trabalho pedagógico nas escolas

indígenas e equacionem as problemáticas vivenciadas nas aldeias e comunidades.

Nesse contexto, a ação do formador deve se pautar no cuidado em dar conta do

que foi planejado, assim como acompanhar o processo educacional, voltado para um

ensino multicultural, desafiador de preconceitos e valorizador da pluralidade cultural.

Destaca-se a ressignificação de metodologias (práticas) de ensino e pesquisa em escolas

indígenas, fundamentado metodologicamente no desenvolvimento de um “per-curso” de

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10731ISSN 2177-336X

7

ensino-aprendizagem, que se inicia com diagnóstico da realidade do cursista; seguido de

aprofundamento teórico-conceitual das temáticas planejadas até a realização de

exercícios, por meio da materialização do que foi apreendido.

No entanto, esse processo é um desafio, considerando o contexto linguístico no

qual os cursos são desenvolvidos, a carga horária disponível para realização dos

módulos, o cumprimento das orientações nacionais específicas para educação escolar

indígena e os objetivos dos programas, que provocam a experimentação de uma prática

docente que responda às demandas apresentadas no decorrer da formação.

Partindo de observações, realização de oficinas, leituras, dos conhecimentos

prévios dos alunos e dos saberes próprios de cada povo, foi-se estruturando uma

proposta para contribuir com o processo de ensino-aprendizagem na formação dos

professores indígenas, na qual sejam respeitados os princípios básicos da escola

indígena: Interculturalidade, Comunitarismo, Especificidade, Diferenciação e

Multilinguísmo. Assim, optou-se primeiramente pela Pedagogia de Projetos, que foi

complementada pela ideias de Freinet e pela Sequência Didática de Ensino de Línguas.

Similar ao que se propõe para a escola indígena, Jonh Dewey (1979, p.16)

descreve que a escola deve estar conectada com a vida social em geral, com o trabalho

de todas as demais instituições que envolvem o contexto do aluno, pois a educação é um

processo de vida e não uma preparação para a vida futura, logo a escola deve

representar a vida presente tão real e vital para o aluno como ele vive no cotidiano.

Essa concepção se materializa na pedagogia de projetos, que tende a

ressignificar a escola e colabora para mudanças no ensino e na formação. O método por

projetos objetiva que os saberes escolares sejam integrados com os saberes sociais,

possibilitando um processo intercultural, quando o aluno estiver aprendendo, por meio

de elementos da vida pessoal, sobre outros conhecimentos de outras sociedades.

Hernandez (1998, p. 61) destaca que trabalhar com projetos aproxima a

“identidade dos alunos e favorece a construção da subjetividade, longe de um prisma

paternalista, gerencial ou psicologista, o que implica considerar que a função da escola

não é apenas ensinar conteúdos, nem vincular a instrução com a aprendizagem”.

No que se refere ao trabalho docente, a Pedagogia de Projetos possibilita a

revisão da “organização do currículo por disciplinas” e sua localização “no tempo e no

espaço escolar”, desencadeando na “proposta de um currículo que não fragmenta” o

conhecimento, distante “dos problemas que os alunos vivem e necessitam responder em

suas vidas, mas, sim, solução de continuidade” (HERNANDEZ, 1998, p.61).

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10732ISSN 2177-336X

8

Nesse sentido, na formação dos professores indígenas, orienta-se a realização do

processo educacional por meio da Pedagogia de Projetos, partindo de um tema gerador

sobre a cultura do povo, para então serem abordados outros temas referentes aos

conteúdos das disciplinas e trabalhar as atividades das turmas multisséries. Ressalta-se

que os temas escolhidos se referem sempre aos conhecimentos tradicionais indígenas

que estão deixando de ser considerados na aldeia.

Esse método oportuniza, ainda, que se considere o que acontece “fora da escola,

a produção de informação da sociedade, para dialogar com todos esses fenômenos”,

rompendo “com as limitações do cotidiano, com a postura do professor tradicional”,

possibilitando a circulação de informações na escola em “referência a realidade do

educando”, valorizando “os temas geradores e não mais seguir a risca os livros

didáticos, alunos parados, dentre outros fatores que contribuem para a inovação

educacional” (HERNANDEZ, 1998, p. 61).

A inserção da Pedagogia de Projetos no contexto da escola indígena deve-se ao

fato de que esse método supõe um “enfoque do ensino que trata de ressituar a

concepção e as práticas educativas na escola, para dar resposta às mudanças sociais, que

se produz” na educação, envolvendo “as questões reais para favorecer o

desenvolvimento do aluno” (HERNANDEZ, 1998, p.61).

Nesse sentido, a pedagogia de projetos na escola indígena visa à ressignificação

do espaço escolar, transformando-o em um espaço de interações, tendo o professor

como mediador do processo de construção do trabalho, baseado em atividade de

pesquisa, por meio da qual tanto o professor quanto o aluno tendem a descobrir coisas

novas. É possível ainda fortalecer ou revitalizar conhecimentos que estão sendo

suprimidos pela relação de contato entre os povos indígenas e outras culturas.

A utilização do conhecimento prévio que o aluno traz de casa ajuda na

participação e na valorização dos pais, que pensam não ter conhecimentos para ajudar

os filhos na escola, além de contribuir para a participação da comunidade, na troca de

conhecimento, transformando-se em um círculo contínuo e produtivo à educação e ao

desenvolvimento da aprendizagem. Nesse sentido, a construção de projetos dentro da

proposta pedagógica dos cursos de formação de professores indígenas permite que o

aluno possa vivenciar os conhecimentos de seu povo ao mesmo tempo em que se abre a

múltiplas relações com outros conhecimentos.

Ao desenvolvimento do projeto proposto, no âmbito da Pedagogia de Projetos,

para serem realizados pelos professores indígenas em formação em suas escolas,

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10733ISSN 2177-336X

9

utilizamo-nos das contribuições significativas de Freinet (1969, 1973, 1979) para

repensar as práticas pedagógicas, o papel do professor e do próprio aluno, conduzindo-

os a mudanças nas atitudes frente à experiência que propicia outra forma de se pensar o

processo da apropriação do conhecimento.

As propostas de Freinet se encaixam a escola indígena ao se perceber que ambas

consideram que o trabalho na escola não é só didático, mas também prática ligada ao

contexto histórico-social dos alunos, pautada na cooperação e na atividade, em que o

discente é sujeito das suas aprendizagens e o professor é mediador, renovando-se a cada

dia, em um movimento pedagógico por meio da troca das experiências.

A proposição pedagógica de Freinet (1998, p. 354-355) divide-se em três

momentos que se interpenetram, completando-se: experimentação - observa, compara

por meio de material escolar, de problemas, de leis, suposições; criação - parte do real,

dos conhecimentos formais ou gerados pela experimentação, imaginação para descobrir

a utilidade de determinado conhecimento; e documentação - completa, apoia e reforça a

informação desejada em diferentes fontes.

A pedagogia Freinet se estrutura em um conjunto de técnicas indissociáveis por

meio de organização cooperativa na sala de aula - espaço de diálogo, escolhas e

compartilhamento de conhecimentos -, na qual se pode realizar o jornal escolar, o jornal

mural, a roda da conversa, a correspondência inter/escolar, o livro da vida, o fichário, o

álbum da turma e a aula-passeio, dentre outras técnicas.

As técnicas de Freinet permitem a utilização dos diferentes tipos de linguagens,

para que os discentes expressem seus conhecimentos, valendo-se do desenho, da

música, da escrita, da pintura, da dança. Com a escrita e a leitura das cartas, desafia-se à

realização de investigações sobre o tema proposto no Projeto. O registro e a divulgação

dos conhecimentos construídos são organizados nos álbuns, na correspondência, por

meio de troca de informações não só com os alunos, mas também com a comunidade.

Essas técnicas contribuem para a apropriação da linguagem escrita e oral pelos

alunos, ao elaborarem as cartas, que se transformam em materiais de consulta, uma vez

que devem ficar expostas. Por sua vez, o álbum da turma configura-se em uma

coletânea de materiais elaborados pelos discentes sobre o tema gerador do Projeto, que

desenvolvido, organiza o máximo de informações possíveis sobre o tema pesquisado.

No processo de realização da pesquisa, orienta-se a realização de aula-passeio -

saídas ao ar livre que oportunizam maior contato com o próprio meio -, para ampliar o

conhecimento sobre a aldeia. Dessa maneira, a Pedagogia Freinet, filosoficamente,

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10734ISSN 2177-336X

10

considera o conhecimento do povo e possibilita que o aluno e o professor sejam agentes

no processo de ensino e aprendizagem na escola indígena.

As técnicas de Freinet contribuem para a presença dos conhecimentos indígenas

na escola, porque partem de situações do cotidiano em direção a um processo de ensino

e de aprendizagem que promove a apropriação da cultura, construída ao longo da

história, possibilitando, ainda, um trabalho promotor de aprendizagem, por meio de

situações reais de leitura, de escrita, de pesquisa, de atividades de expressão, das

interações sociais, reafirmando que “[...] não deve haver separação entre as

aprendizagens do meio escolar e da realidade” (ELIAS, 1997, p. 74).

As experiências com as técnicas de Freinet na formação e na escola indígena

cooperam com o processo escolar, garantindo o direito à apropriação da cultura, aos

bens culturais historicamente construídos pelo homem, ao longo da história, oferecendo

acesso e apropriação de conhecimentos sobre seu respectivo povo e de outros.

O registro proposto por Freinet possibilita reflexão e reestruturação das práticas

pedagógicas, tornando-se peças de um processo de formação do educador diante do seu

próprio trabalho, que contribuirá para a apropriação do conhecimento. Ressalta-se que,

quanto mais a produção demonstrar a identidade do povo, maior será o desejo em

partilhar com os outros, de mostrar o que fez, de apresentar suas experiências.

Às técnicas de Freinet no processo de formação de professores indígenas pela

UFAM são acrescidas as sequências didáticas de ensino de línguas, considerando que o

processo de escrita desenvolvido nas atividades propostas por Freinet reafirmam que

não cabe mais o ensino de língua sem a teoria dos gêneros discursivos, que ganham

corpo em textos escritos e orais, aos quais falantes, leitores e escritores empregam

recursos linguísticos e textuais em situações de uso da língua.

A partir dos gêneros ou por meio deles são estabelecidos eixos que direcionam o

ensino da língua materna: “oralidade, leitura, produção de texto escrito e análise

linguística” (BRASIL, 1997, p. 40). Segundo Schneuwly & Dolz (2004, p. 144) “os

gêneros constituem um ponto de referência concreto para os alunos”, implicando na

utilização de uma metodologia centrada em atividades interligadas e planejadas que

possibilitem a apropriação gradual de um gênero.

Essa metodologia denomina-se sequência didática, que permite integrar as

práticas sociais de linguagem – escrita, leitura e oralidade -, guiando as intervenções do

professor. Ressalta-se que apesar das sequências didáticas estarem vinculadas ao estudo

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10735ISSN 2177-336X

11

do gênero textual, é um procedimento que pode ser utilizado por diferentes áreas do

conhecimento.

A estrutura básica de uma sequência didática segue a apresentação da situação -

visa compartilhar com o aluno a proposta de trabalho a ser desenvolvida; elaboração de

uma primeira produção oral ou escrita - o professor verificará o conhecimento prévio do

aluno a respeito do estudo proposto e quais atividades deverão ser elaboradas; módulos

- atividades a serem desenvolvidas de modo organizado e sistematizado para que o

aluno se aproprie do gênero; e produção final - os alunos demonstrarão os

conhecimentos adquiridos e o professor avaliará os progressos alcançados por eles.

Para Barros-Mendes, Cunha & Teles (2012, p. 22), dessa estrutura desprendem-

se três modalidades de atividades que possibilitam ações didáticas que culminam na

aprendizagem significativa: atividades exploratórias - possibilitam novas aprendizagens

através do levantamento dos conhecimentos prévios; sistematização - aprofundamento

dos conhecimentos a serem adquiridos; e avaliativas - mobilização de vários saberes

construídos em diferentes atividades no decorrer e no final da sequência didática.

Os referidos autores (2012, p. 21) acrescentam que na sequência didática, o

professor poderá incluir várias atividades: “leitura, pesquisa individual ou coletiva, aula

dialogada, produções textuais, aulas práticas”, pois a sequência “visa trabalhar um

conteúdo específico, um tema ou um gênero textual da exploração inicial até a formação

de um conceito, uma elaboração prática, uma produção escrita”, conforme vem se

propondo nas atividades de formação de professores indígenas.

Soma-se a essas atividades o estudo contextualizado de conceitos gramaticais,

objetivando auxiliar na compreensão dos gêneros em estudo. O trabalho com a

gramática é de análise e reflexão sobre os usos da língua oral e escrita, para que os

alunos reflitam sobre a fala e percebam sua organização na propagação dos discursos,

considerando que os alunos já chegam à escola falando, mas “o desempenho de práticas

orais formais pode ser desenvolvido na escola, via apresentação de seminário,

realização de debates, entrevistas” (CAVALCANTE & MELO, 2003. p. 181).

As sequências didáticas promovem a integração de saberes, proporcionando uma

aprendizagem significativa e contextualizada, aproximando os alunos de situações reais

de usos da língua. As sequências conseguem sistematizar conteúdos e temáticas

estabelecidas no currículo escolar, e como proposta sequenciada, um conhecimento

dependerá do outro e se articulará em torno do produto final, oferecendo oportunidades

constantes de mediação e intervenção por parte do professor.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10736ISSN 2177-336X

12

CONSIDERAÇÕES

Os cursos de Licenciatura e Aperfeiçoamento para formação de professores

indígenas da FACED/UFAM corroboram para o entendimento de que novas e diferentes

iniciativas de acesso indígena à formação específica poderão contribuir para a

construção de relações sociais intercultural, constituindo-se como importantes espaços

que fundamentam os projetos educativos das comunidades indígenas.

Para tanto, na área de linguagem do curso, tem-se valido da Pedagogia de

Projetos, inspirada nos princípios de racionalidade, eficiência e produtividade, para

promover a reordenação do processo educativo de maneira a torná-lo objetivo e

operacional, possibilitando aos professores indígenas participarem no reajustamento da

escola indígena, valorizando o conhecimento e a participação dos alunos.

Paralelamente à Pedagogia de Projetos, às técnicas de Freinet e à Sequência

didática de ensino de língua permitem que a formação e escola indígena trabalhem com

os conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, vinculados aos conteúdos do

currículo escolar, favorecendo melhor compreensão da realidade do contexto do social,

educacional, político e econômico.

No entanto, essas metodologias ainda não se tornaram procedimentos

metodológicos constantes no espaço escolar, talvez pelas condições de muitas escolas,

mas principalmente, pelas lacunas na formação de muitos professores, pois desenvolver

uma atividade que envolva esses conhecimentos demanda um olhar interdisciplinar para

os conteúdos e habilidades diversas, bem como para realizar a transposição didática.

Diante dessa demanda, reafirma-se a preocupação em formar professores para o

trabalho pedagógico diferenciado e significativo, enfocando a necessidade de

procedimentos metodológicos, como pedagogia de projetos, de Freinet e sequências

didáticas, no desenvolvimento de práticas de leitura e escrita, assim como no

cumprimento dos princípios da educação escolar indígena no processo educacional.

Reafirma-se que todo trabalho desenvolvido na formação de professores

indígenas e na escola dependerá da intencionalidade docente, do que e de que como se

propõe. Se desejam-se que os alunos se apropriem da cultura e fortaleçam a identidade

étnica, precisa-se reorganizar a formação e a escola de maneira que atenda às

especificidades dos povos indígenas .

REFERÊNCIA

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10737ISSN 2177-336X

13

BARROS-MENDES, A.; CUNHA, D. A.; TELES, R. Organização do trabalho e

sequências didáticas. PNAIC: alfabetização em foco. Brasília: MEC, SEB, 2012.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa/Secretaria de

Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.

BRASIL. Resolução n° 05/2012. Brasília: 2012.

_____. Resolução n° 54/2013. Brasília: 2013.

_____. Resolução n° 57/2013. Brasília: 2013.

_____. Decreto n° 6.861/2009. Brasília: 2009.

_____. Portaria n° 1.062/2013. Brasília: 2013.

CAVALCANTE, M.; MELLO, C. Oralidade e Ensino Médio. BUNZEN, C.;

MENDONÇA, M. Português e formação do professor. SP: Parábola, 2003.

DEWEY, J. Democracia e educação: introdução à filosofia da educação. Tradução de

Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. 4. ed. São Paulo: Nacional, 1979.

ELIAS, M. D. C. Célestin Freinet. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

FREINET, C. As técnicas Freinet da Escola Moderna. Lisboa: Estampa, 1973.

______. O itinerário de Célestin Freinet. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.

______. Pedagogia do Bom Senso. Tradução: J. Baptista. Martins Fontes. SP, 1998.

______. Nascimento de uma Pedagogia Popular. Lisboa: Estampa, 1969.

HERNANDEZ, F. Transgressão e Mudança na Educação: Os Projetos de Trabalho.

Tradução Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1998.

PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO e REGULAMENTAÇÃO. Licenciatura

Formação de Professores Indígenas. Faculdade de Educação. Manaus, 2012.

PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO e REGULAMENTAÇÃO. Ação Saberes

Indígenas na Escola. Faculdade de Educação. Manaus, 2015.

SANTOS, J. N.; SANTOS, R. F. M. dos. Currículo, Didática e Formação Específica

para Professores Indígenas. Atas do XI CQC/VII CLBQC. Braga: Portugal, 2014.

SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e org.: Roxane

Rojo e Glais Sales Cordeiro. 3. ed. Campinas: Mercado de Letras, 2004.

XAVIER, M. E.; RIBEIRO, M. L.; NORONHA, O. M. Historia da Educação: A

escola no Brasil. São Paulo: FTB, 1994.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10738ISSN 2177-336X

14

A PROPOSTA INTERCULTURAL NO CURSO DE FORMAÇÃO DE

PROFESSORES INDÍGENAS/FACED/UFAM

Rita Floramar F. dos Santos – Universidade Federal do Amazonas

Helenice Aparecida Ricardo – Universidade Federal do Amazonas

Resumo

O texto traz uma reflexão sobre a proposta e a prática intercultural no Curso de

Licenciatura Formação de Professores Indígenas - FPI da Faculdade de Educação -

FACED da Universidade Federal do Amazonas - UFAM, analisando o conceito de

interculturalidade presente nos fundamentos legais e nos princípios que norteiam a

educação escolar indígena e que embasam a proposta do curso. Para tanto, retoma-se a

discussão sobre a proposta pedagógica do curso, como ela se materializa nas disciplinas

e na prática docente e as dificuldades enfrentadas para a efetivação da proposta. Ao

longo dos oito anos de existência do curso, desenvolveu-se uma postura intercultural na

prática dos docentes mais envolvidos com o curso e nas propostas implementadas pela

coordenação pedagógica, no entanto, entraves burocráticos e institucionais dificultam a

vivência da interculturalidade em sua plenitude. Assim, o objetivo do texto é apresentar

a proposta idealizada no projeto do curso, o seu desenvolvimento ao longo dos anos e os

desafios enfrentados na materialização da proposta, pensando as inquietações

concernentes a esse processo e as condições necessárias para seu avanço. Procuramos

elencar aquelas que de forma mais contundentes exemplificam e/ou dificultam a

concretização das práticas interculturais no Curso de Formação de Professores

Indígenas, e, trazendo reflexões sobre. Também, mostrar que é necessário envolver as

identidades dos diversos sujeitos inseridos no curso, as práticas sociais e culturais

desses sujeitos fora desse mesmo contexto. No entanto, pequenos e sucessivos entraves

institucionais dificultam a concretização desse ideal. Constatamos, indiscutivelmente,

uma firme proposta de interculturalidade no projeto do curso e uma postura

intercultural, às vezes individual, às vezes coletiva em docentes e acadêmicos.

Palavras-chave: Interculturalidade. Prática de ensino. Licenciatura em Formação de

Professores Indígenas.

Introdução

Concretizar a proposta de interculturalidade no Curso de Formação de

Professores Indígenas da FACED/UFAM tem sido uma experiência gratificante, mas

bastante desafiadora. Trata-se, primeiramente, de compreender o conceito e, tarefa mais

difícil, cotidianamente, colocá-lo em prática.

Em seus oito anos de trajetória, o curso tem vivenciado de maneira singular os

desafios da interculturalidade.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10739ISSN 2177-336X

15

É no cotidiano - institucional, da sala de aula, das relações interpessoais, nas

interações entre docentes e discentes e desses entre si - que a proposta adquire

concreticidade.

Dessa forma, refletir sobre a interculturalidade no universo institucional, na

política da educação escolar indígena, nas diretrizes traçadas no projeto político-

pedagógico do curso e sobre sua concreticidade em nossa prática de ensino é a proposta

do texto que apresentamos a seguir.

1 A interculturalidade nos princípios da Educação Escolar Indígena

Segundo Cecchetti e Pozzer (2014, p.9) a interculturalidade é um dos

paradigmas emergentes que tem como proposta novas formas de relacionamento entre

grupos socioculturais diferentes, abrindo caminho para concepções teóricas e

metodológicas que respaldem práticas de ensino inovadoras cuja característica essencial

seja a abertura ao diálogo de saberes entre a cultura ocidental e os saberes tradicionais

dos povos indígenas.

É sabido que no advento da modernidade, a cultura ocidental fundamentou-se na

crença na superioridade do saber científico e racional para a compreensão do mundo e a

intervenção nos fenômenos que nele se manifestam. Porém, nas últimas décadas, grupos

excluídos e historicamente subjugados e inferiorizados nesse processo, têm reivindicado

o respeito às suas identidades, suas culturas e seus saberes tradicionais.

Dessa forma, a ação dos movimentos indígenas, sobretudo a partir da década de

1980, obteve importantes conquistas no campo político que culminaram na

institucionalização do direito indígena à educação escolar específica e diferenciada que

respeite e reforce suas especificidades culturais, subsidiada pelo § 2º. do artigo 210 da

Constituição Federal de 1988 que assegura que:

Artigo 210 – Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de

maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais

e artísticos, nacionais e regionais.

2. O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa,

assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas

maternas e processos próprios de aprendizagem. (PDE, 2007, p. 37).

Além disso, a Portaria Interministerial MJ e MEC nº 559 (16/04/1991)

reconheceu o histórico processo de aculturação e destruição das diversas etnias e a

reivindicação de todos os povos indígenas brasileiros por uma escolarização formal com

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10740ISSN 2177-336X

16

características próprias e diferenciadas, respeitadas e reforçadas suas especificidades

culturais.

Com tais conquistas, procura-se transformar a escola indígena, tradicionalmente

um instrumento de imposição de valores e normas culturais da sociedade envolvente,

em novo espaço de ensino-aprendizagem onde possam aflorar metodologias e práticas

de ensino que visem articular os conhecimentos tradicionais de cada povo indígena, em

suas diferenças e especificidades, com os conhecimentos entendidos como dos outros

povos e com os conhecimentos científicos.

As Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena, assim

define a interculturalidade:

A interculturalidade, isto é, o intercâmbio positivo e mutuamente

enriquecedor entre as culturas das diversas sociedades, deve ser característica

básica da escola indígena. Isso significa passar da visão estática da educação

para uma concepção dinâmica. Não se pode ficar satisfeito só em “valorizar”

ou mesmo ressuscitar “conteúdos” de culturas antigas. Deve-se, pelo

contrário, ter em vista o diálogo constante entre culturas, que possa

desvendar seus mecanismos, suas funções, sua dinâmica. Esse diálogo

pressupõe que a interrelação entre as culturas, o intercâmbio entre as mesmas

e as contribuições recíprocas são processos aos quais todas as sociedades são

e foram submetidas ao longo de sua história. (MEC/SEF/DPEF, 1994, p.11).

O princípio da interculturalidade pretende o intercâmbio de conhecimentos entre

povos diferentes, através de uma relação de ensino-aprendizagem dialógica, como

proposto por Paulo Freire (1982). A efetivação dessa proposta pressupõe o respeito a

visões de mundo diferentes da ocidental e prevê a construção coletiva de conhecimentos

através de uma relação de respeito à diversidade étnica e cultural dos povos, o que

constitui um desafio de grandes proporções.

2 A Interculturalidade no Curso de Formação de Professores Indígenas

O Curso de Formação de Professores Indígenas foi criado em 2008, na

Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas, atendendo à demanda

do povo Mura por formação específica para professores indígenas. Nos anos posteriores

sete novas turmas foram iniciadas, em resposta à demanda dos povos Munduruku,

Sateré-Mawé, Médio Solimões (8 etnias), Alto Solimões (3 etnias), Alto Rio Negro (12

etnias) e ainda por iniciar, Madeira - Manicoré (4 etnias) e Lábrea – Purus (5 etnias).

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10741ISSN 2177-336X

17

A construção dos projetos político - pedagógicos de cada turma envolveu um

processo de elaboração participativa das propostas, cujo princípio se fundamentou em

ouvir as comunidades, indo às aldeias, reunindo a população indígena para debater e

construir o projeto que lhes interessava através dos fóruns de consulta às comunidades:

Esses fóruns se constituem em significativos espaços de participação das

comunidades, possibilitando o diálogo entre suas necessidades, aspirações

frente à escolarização, o projeto de escola que os povos indígenas

desejam/almejam e a formação de seus professores. (DEEI/FACED/UFAM,

2008, p.04).

Esse processo de diálogo na elaboração do projeto político-pedagógico já

pressupõe uma postura intercultural na medida em que são debatidas ideias de grupos

étnica e culturalmente diferenciados, sendo respeitadas as opiniões dos povos indígenas

e das lideranças que demandam sua formação através do curso. Entre debates acirrados,

as propostas vão sendo elaboradas e os compromissos de lado a lado vão sendo

assumidos. Tal processo não se dá sem conflito, no entanto, concordamos com Morin

(2000) quando afirma que o conflito também é fonte de aprendizagem.

Dentre os objetivos do curso destaca-se o reconhecimento de que através do

trabalho educativo nas escolas, com o apoio da comunidade, pode-se promover o acesso

dos povos indígenas aos saberes científicos, bem como a valorização do patrimônio

territorial, cultural e ambiental indígena, propiciando um diálogo intercultural, que

inclua suas visões de mundo e valores tradicionais.

A construção de identidades sociais e o reconhecimento das diferenças culturais

tem papel fundamental e, ao mesmo tempo, procura-se sustentar a relação crítica e

solidária entre as diversas etnias e a sociedade envolvente.

A elaboração das ementas das disciplinas do currículo e dos seminários

temáticos que deverão atender as especificidades de cada turma embasa-se também no

princípio da interculturalidade. Respalda-se a prática de ensino dos professores em um

conjunto de propostas que tem na interculturalidade seu ponto chave.

Dessa forma, um grande desafio se impõe aos professores da UFAM que fazem

parte do quadro ou que colaboram com o curso de Formação de Professores Indígenas

da UFAM: como tornar a postura intercultural inerente à proposta do curso uma prática

de ensino realmente intercultural?

Se formos sinceros em nossas reflexões, temos de nos defrontar com a

dificuldade, quase que inerente a nossa condição humana, de assumir uma postura de

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10742ISSN 2177-336X

18

alteridade, de aceitar visões de mundo diferentes daquelas de nossa própria cultura

confrontando nossa própria identidade.

Assim, o cotidiano dos professores, e acredito dos acadêmicos do curso, tem

sido um exercício constante de estranhamento, de predisposição ao reconhecimento de

nossas diferenças e de vivência da diversidade em suas mais diversas manifestações.

Consideramos que as mais bem sucedidas práticas de ensino interculturais

vivenciadas no curso, só se tornaram possíveis através da tolerância, do respeito mútuo

e da união em torno do objetivo comum de construção de um conhecimento mais

diverso, complementar e menos excludente.

3 Os entraves burocráticos e institucionais que dificultam a vivência da

interculturalidade no Curso de Formação de Professores Indígenas

A Universidade Federal do Amazonas, embora localizada em pleno coração da

Amazônia brasileira, se esforça para escrever uma nova história de política afirmativa

em prol dos povos indígenas, no entendimento de que essa política combata a

discriminação racial e corrija os efeitos presentes da discriminação praticada no

passado, tendo por objetivos a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso dos

povos indígenas a bens fundamentais como a educação. (GOMES, 2003).

Descrevemos, pois, neste texto, um pouco da realidade vivenciada na Faculdade

de Educação, no Departamento de Educação Escolar indígena, a partir do entendimento

de que qualquer percurso traçado dentro da perspectiva da interculturalidade, aqui

abordada nos impulsiona a não esquecer que as diferenças estão aí, para serem

devidamente trabalhadas; que, a cada nova reflexão, caem por terra pré-conceitos e o

chão de nossas verdades costuma ruir; enfim, que as inquietações se tornam uma

constante em nosso viver.

A educação que se faz nessa opção de trabalho, de luta, de autonomia e

emancipação não quer perder de vista o valor do humano, da dignidade. Estamos, pois,

diante do desafio intercultural, que nos oferece a possibilidade de interação mesmo em

meios a conflitos, a dissensos e consensos (MELO, 2008).

Tal desafio, nos remete à problematização do consenso e dissenso na política de

acesso e permanência dos indígenas na Universidade. Talvez por isso, as universidades

encontrem-se invadidas por discursos que empobrecem, culpabilizam e aprisionam o

outro, estabelecendo entre eles e nós uma fronteira densa que não facilita compreendê-

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10743ISSN 2177-336X

19

lo ou reconhecê-lo. A presença dos acadêmicos indígenas, ainda, é reduzida e não

permite uma aproximação maior - para “olhar” seu rosto, “ouvir” sua voz e nos “ver”

em seu olhar. (ATHAYDE e BRAND, 2016).

Pontuamos nesse cenário, dentre tantos outros, os seguintes desafios em relação

à educação escolar indígena na Universidade Federal do Amazonas:

1 – Acolher os povos indígenas.

O financiamento para mantê-los está assegurado pelo PROLIND (Programa de

Apoio às Licenciaturas Indígenas). O Programa é uma ação de apoio à formação de

professores indígenas em nível superior para docência nos anos finais do Ensino

Fundamental e Ensino Médio. Essa formação ocorre em cursos específicos – as

Licenciaturas Interculturais – de acordo com a realidade sociocultural, sociolinguística e

os projetos societários do(s) povo(s) envolvido(s). No entanto, a presença dos indígenas

nos corredores da UFAM, no restaurante universitário e demais espaços institucionais

ainda causa estranheza, desentendimentos e conflitos de interesses. A invisibilidade

desses sujeitos é uma luta que travamos diariamente no entendimento da

interculturalidade, uma vez que não se respeita o que não se conhece. Uma vez não

conhecendo, o entrelaçamento cultural se torna um discurso paradoxal para quem quer

efetivar a interculturalidade.

2 - Travar diariamente um diálogo de indianidade nos muitos setores da

Universidade.

A expressão indianidade a que nos referimos faz alusão à dificuldade em

conciliar a demanda indígena às possibilidades de atendimento da Universidade lutando

para assegurar o direito indígena, reconhecendo as limitações da Universidade e ao

mesmo tempo tentando exceder os limites impostos pela burocracia, pela dificuldade em

simplesmente fazer diferente aquilo que pode ser feito, abrindo espaço para novos

posicionamentos da Universidade, sem ônus à ordem ou à legislação, que pelo

contrário, assegura o direito e o respeito à diversidade em relação aos povos indígenas.

É uma demanda específica, o acesso é diferenciado, a atenção desdobra-se em garantir o

novo que se constrói paulatinamente pela diversidade cultural e regional onde a

Universidade através do curso está presente. Essa indianidade no aspecto institucional e

pedagógico.

3 - O entendimento da interculturalidade no campo formativo – que currículo

oferecer?

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10744ISSN 2177-336X

20

Na definição do currículo, o curso oferece uma base comum baseada no

princípio de disseminação do saber científico pela Universidade, mas aberto à

construção de novos conhecimentos. Assegurando o princípio da interculturalidade na

construção do currículo, os saberes tradicionais dos povos indígenas se tornam

constituintes do projeto, com o objetivo de resguardar e fortalecer suas culturas e gerar

mecanismos de afirmação de suas identidades.

Na prática, a concretização da interculturalidade na formação, depende de

diversos fatores, como a disponibilidade financeira do curso, a formação dos

professores e suas trajetórias individuais, as possibilidades de reflexão e reformulação

coletiva das práticas de ensino, das demandas apresentadas pela academia e pelos

acadêmicos (nem sempre somente ligadas aos assuntos acadêmicos, mas também,

culturais, políticos e sociais) e da qualidade do diálogo entre os diversos agentes

envolvidos. É importante frisar que, os requisitos acima referem-se tanto aos

representantes da academia quanto aos acadêmicos indígenas, suas lideranças e suas

comunidades.

Trabalhar em nós o entendimento de novas lógicas, no que diz respeito à questão

linguística e a cosmológica das etnias com quem vivenciamos dessa formação, faz com

que seja difícil chegar de imediato nos princípios da interculturalidade. Para

exemplificar, outro dia, em uma das programações de Seminário Parcial de Avaliação

(ponto chave para a definição de quem vai para a área específica do curso e de como

avaliam o curso até então) a equipe que iria trabalhar com a etnia Sateré-Mawé,

elaborou determinada dinâmica de grupo, com intuito de que a priori, todos tivessem

que usar o crachá (fixados com uma espécie de grampos) para serem identificados pelos

novos professores e convidados que estavam presente no Seminário. Logo ao distribuí-

los a professora encarregada percebeu certa estranheza na medida que fixava os crachás

que deveria ser usado nos três dias de trabalho , contudo, nada disseram. Ao final da

tarde, quase todos já haviam retirado o mesmo. Apenas percebemos que isso não foi

bem aceito e não entendemos o porquê. Ao final das atividades, tentamos conseguir

respostas da razão em não terem usado os crachás como programado. Alguns disseram

que não era legal serem furados, mesmo que na roupa. Furar não era um sinal bom.

Trazia coisas não positivas. Aprendemos envergonhados essa lição...

Acima discorremos apenas um exemplo, todavia, no enfrentamento das lutas

cotidianas, muitas vezes constatamos a seriedade do compromisso com a causa indígena

e a boa-vontade dos envolvidos em assumir uma postura flexível e aberta, com medo da

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10745ISSN 2177-336X

21

possibilidade de errar ao romper paradigmas mas com coragem de assumir práticas mais

coerentes com a proposta de educação intercultural do curso. Em outras, constatamos a

dureza dos posicionamentos pré-estabelecidos, dos preconceitos arraigados ou o descaso

dos que simplesmente deixaram de acreditar.

4 - A região Amazônica: uma logística de acesso a ser conhecida.

A questão geográfica da Amazônia tem se mostrado outro desafio nesse

encontro com o outro. A cidade versus a aldeia; o que nós sabemos versus o que eles

sabem; a lógica de como lidamos com o tempo cronológico versus a lógica de como

lidam com o tempo, e assim por diante.

A grandeza do território amazônico não se traduz apenas em sua extensão, sua

rede hidrográfica, diversidade das paisagens e complexidade de seus ecossistemas.

Traduz-se, também, na diversidade dos povos que a habitam e que vivenciam sua

realidade.

Assim, vencer as dificuldades logísticas para a realização do curso só é possível

com a ajuda dos nossos acadêmicos e das lideranças locais, indígenas e não indígenas,

que nos apoiam nas localidades em que oferecemos o curso, após muito diálogo e

conhecimento mínimo do que vivenciaremos. Sem as parcerias com as prefeituras,

instituições federais e estaduais, autoridades locais, FUNAI (Fundação Nacional do

Índio), lideranças indígenas Sateré-Mawé, Munduruku, do Alto Rio Negro, Alto

Solimões, Médio Solimões, Madeira-Manicoré e Lábrea-Purus e os movimentos

indígenas que representam os povos da Amazônia, realizar o curso seria impossível.

Nossa experiência diária nos faz reconhecer a veracidade do conceito de

geograficidade em Eric Dardel (2015) que constata a capacidade de compreensão

geográfica do espaço por aqueles que o vivenciam e sua superioridade na interpretação

dos fenômenos e na vivência dos desafios geográficos de cada lugar. Assim, contamos

com os parceiros para nos guiar por esses caminhos, conscientes da nossa inaptidão em

certos lugares.

Diversas outras dificuldades poderiam ser apontadas, no entanto procuramos

elencar aquelas que de forma mais contundente, dificultam a concretização das práticas

interculturais no Curso de Formação de Professores Indígenas. É necessário envolver as

identidades dos diversos sujeitos inseridos no curso, as práticas sociais e culturais

desses sujeitos fora desse mesmo contexto, enfim, pensar os sujeitos e suas relações

além dos processos sociais.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10746ISSN 2177-336X

22

Considerações

Vivenciar a experiência do curso tem despertado diversos questionamentos

acerca das condições necessárias para que a interculturalidade realmente aconteça.

Constatamos, indiscutivelmente, uma firme proposta de interculturalidade no

projeto do curso e uma postura intercultural, às vezes individual, às vezes coletiva em

docentes e acadêmicos. No entanto, pequenos e sucessivos entraves institucionais

dificultam a concretização desse ideal. Em outras palavras, nosso curso tem a

responsabilidade de compreender, pelo menos minimamente, as diversas identidades

que surgem nesse contexto e modos de estar no mundo que afetam as relações entre

formandos e formadores, entre curso e a burocracia institucional, afirmando que a

interculturalidade envolve outras dimensões para além do cotidiano universitário.

Referências

ATHAYDE, Fernando Luís O; BRAND, Antônio Jacó. A Inserção de Indígenas no

Ensino Superior Público: que dizem esses sujeitos? Disponível em

flacso.redelivre.org.br. Consultado em 01 de Março de 2016.

BRASIL. Portaria Interministerial MJ e MEC No. 559, de 16 de Abril de 1991. Dispõe

Sobre a Educação Escolar para as Populações Indígenas. Diário Oficial da União,

Brasília, DF, 16/04/1991.

_____. Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar/Elaborado pelo

comitê de Educação Escolar Indígena. Brasília: MEC/SEF/DPEF, 1994. (Cadernos de

Educação Básica. Série Institucional; 2).

CECCHETTI, Elcio. POZZER, Adecir. Educação e Interculturalidade:

conhecimentos, saberes e práticas descoloniais. Blumenau: Edifurb, 2014.

DARDEL, Eric. O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo:

Perspectiva, 2015.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

GOMES, J. B. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: SANTOS, R. E.;

LOBATO, F. (Org.). Ações Afirmativas: políticas públicas contra desigualdades

raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

MELO, Rita Floramar Fernandes dos Santos. Desafios da Construção de uma Política

Institucional. Dissertação de Mestrado. Manaus: UFAM, 2008.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10747ISSN 2177-336X

23

MORIN. Edgar. Os Sete Saberes Necessários para a Educação do Futuro. Brasília:

UNESCO/Cortez, 2000.

Universidade Federal do Amazonas. Projeto Político Pedagógico do Curso de

Formação de Professores Indígenas. Manaus: DEEI/FACED/UFAM, 2008.

SABERES ESCOLARES E SABERES INDÍGENAS: A DIDÁTICA E AS

PRÁTICAS INTERCULTURAIS

Célia Aparecida Bettioli - Universidade do Estado do Amazonas; Universidade Estadual

Paulista, Câmpus de Presidente Prudente

Adria Simone Duarte de Souzaii - Universidade do Estado do Amazonas

Resumo: O texto apresenta os resultados e reflexões de uma pesquisa documental cujo

objetivo foi compreender a relação entre os saberes na formação de professores

indígenas. O estudo orientou-se pelas seguintes questões norteadas: Como se articula a

organização dos saberes na formação de professores indígenas? Quais os elementos

possibilitadores e dificultadores neste processo? A metodologia empregada para a

pesquisa foi a análise documental e o objeto de estudo foi os subsídios produzidos na

disciplina Didática e os trabalhos produzidos pelos acadêmicos, no caso, professores

indígenas do curso de Pedagogia Intercultural ofertado pela Universidade do Estado do

Amazonas/UEA. O curso atendeu diferentes sujeitos amazônicos, sendo feito um

recorte na especificidade de professores indígenas para esta pesquisa. Os trabalhos

produzidos referem-se às sequências didáticas e projetos de trabalho construídos pelos

acadêmicos durante a referida disciplina. A análise dos resultados do trabalho realizado

identificou que há certa fragilidade de práticas interculturais no tocante a organização e

articulação dos saberes, embora se evidencie um esforço nessa direção, no sentido de

compreender a escola indígena como espaço e lugar de formação desses diferentes

saberes. Dentre os elementos possibilitadores destacou-se a organização dos conteúdos

por projetos de trabalho como uma proposta mais capaz de atender à

interdisciplinaridade e interculturalidade, imprescindíveis no trabalho das escolas

indígenas, lócus de atuação dos cursistas em questão. No tocante às dificuldades

verificaram-se reproduções do modelo não indígena nos trabalhos organizados

(sequências didáticas) pelos cursistas, reflexos do colonialismo a que fomos

submetidos. A pesquisa nos provoca a pensar que precisamos avançar em práticas

interculturais e essa tarefa deve ser de todos.

Palavras-chave: Articulação de Saberes. Didática. Interculturalidade.

Introdução

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10748ISSN 2177-336X

24

O componente curricular Didática no curso de Pedagogia Intercultural

insere-se no quarto período e propõe o estudo e reflexão da didática enquanto área de

estudos da Pedagogia e a análise de suas formas no contexto escolar. Muitas questões

apresentam-se neste processo, entretanto neste trabalho nos deteremos na discussão

sobre a articulação de saberes na formação de professores indígenas.

As análises e discussões presentes neste texto são resultado de uma

pesquisa de abordagem qualitativa que objetivou compreender a relação entre esses

saberes na formação desses professores. O estudo foi organizado a partir da seguinte

problemática: como se articula a organização dos saberes na formação de professores

indígenas? Quais os elementos possibilitadores e dificultadores neste processo? A

metodologia empregada para a pesquisa foi a análise documental dos subsídios

produzidos na disciplina e dos trabalhos produzidos pelos acadêmicos, sendo aqui as

sequências didáticas e os projetos de trabalho.

O curso de Pedagogia Intercultural/PROIND (Programa de Formação do

Magistério Indígena)

O Curso de Licenciatura em Pedagogia com formação em Interculturalidade

é o resultado do redimensionamento do projeto original do curso Pedagogia –

Licenciatura Intercultural Indígena criado pela Resolução nº 010/2010 – CONSUNIV/

UEA, de 11 de maio de 2010.

Os pressupostos epistemológicos que nortearam a proposta deste curso se

fundamentam a partir do conceito de interculturalidade, entendido a partir da

diversidade de sujeitos que compõem os chamados povos e comunidades tradicionais

presentes na Amazônia nos diversos contextos sociais, tais como, aldeias, comunidades,

pequenos e grandes centros urbanos.

Segundo Candau (2010, p.764) “[...] a perspectiva intercultural procura

estimular o diálogo entre os diferentes saberes e conhecimentos, e trabalha a tensão

entre universalismo e relativismo no plano epistemológico, assumindo os conflitos que

emergem deste debate”.

O curso constituiu-se como oferta especial na modalidade presencial,

mediado por tecnologia e o perfil dos egressos do referido curso, enfatiza que os

cursistas “serão capazes de investigar, diagnosticar, avaliar e atuar no magistério e nos

serviços de gestão pedagógicas das Escolas da rede educacional que ofertem as

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10749ISSN 2177-336X

25

modalidades de Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental (1º ao 5º

ano).” (UEA, 2014).

De modo geral, a proposta curricular do Curso apontou para uma pedagogia

que valorizou a problematização da realidade das comunidades e povos tradicionais

existentes no Estado do Amazonas (indígenas, não indígenas, ribeirinhos, quilombolas,

pescadores, dentre outros), bem como a análise e a capacidade de indicar alternativas

para a própria práxis educativa, priorizando a pesquisa como base do processo

formativo (UEA, 2014).

O recorte deste trabalho foca-se no grupo de acadêmicos indígenas e,

portanto, é nesta especificidade que as análises foram realizadas.

Articulações no currículo e a ressignificação da Didática

O campo de trabalho de estudo situa-se nas discussões estabelecidas pela

disciplina Didática. Segundo Pimenta (et al 2013, p. 143) “A didática, como área da

pedagogia, estuda o fenômeno ensino”. Os autores, se referindo ao ensino como prática

social salientam que:

Considerá-lo como uma prática educacional em situações

historicamente situadas significa examiná-lo nos contextos sociais nos

quais se efetiva – nas aulas e demais situações de ensino das diferentes

áreas do conhecimento, nas escolas, nos sistemas de ensino, nas

culturas, nas sociedades –, estabelecendo-se os nexos entre tais

contextos. [...] Reafirmar que o ensino, como prática social, constitui o

seu campo de estudo significa também a interpretação desse objeto

como fenômeno complexo que requer uma abordagem dialética e

multirreferencial. O ensino como prática social vai tomando formas,

transformando seus contextos e sendo transformado por eles; assim,

ao continuar buscando a compreensão desse objeto em suas múltiplas

formas e configurações, e fiel à sua perspectiva epistemológica, vai

tomando feições cada vez mais perfiladas a esse processo de contínua

transformação. Nesse diálogo, há compassos e descompassos, há

ritmos afiados e ruídos dissonantes, há acertos e desacertos. (2013, p.

144).

A afirmação dos autores nos questiona a respeito de uma necessária

ressignificação da didática, pensada para o contexto das escolas indígenas e para a

formação de seus professores, pautando-se num diálogo que busca estabelecer os nexos

entre os diferentes saberes e, consequentemente, desloca-se para o sentido que as

comunidades indígenas vão atribuindo à escola e aos conteúdos nela ensinados. Desta

feita, entendemos que a articulação dos saberes indígenas e não indígenas deve ser

preocupação do currículo que forma esses professores.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10750ISSN 2177-336X

26

Situar esta escola nos seus diferentes contextos, como lócus onde se ensina e

se aprende, onde somos ensinantes e aprendentes como diz Freire (1997) deve ser um

imperativo neste processo. Consequentemente, pensar a escola como algo real, concreto,

situada num tempo e espaço histórico, com sujeitos reais que, por sua vez, trazem para

esse contexto seus saberes e suas experiências é urgente e necessário.

Entendemos que só nessa situação é que podemos entender e vivenciar o

ensino como prática social. Dessa forma, afirmamos que ao adentrar as diferentes

feições de escola assumidas por diferentes sujeitos, cabe aos docentes abrir-se às

transformações necessárias à organização do modo de ensinar e aprender.

Neste sentido, o material analisado, objeto de estudo desta pesquisa, traz no

seu interior as tensões próprias de um diálogo que pretende ser intercultural e, portanto,

vai articulando saberes e transformando-se durante o caminho percorrido. Neste trajeto

originaram-se registros de diferentes naturezas: os que orientaram o trabalho das

professoras e os feitos pelos acadêmicos. Os resultados foram agrupados em duas

categorias sendo a articulação e a organização dos saberes na formação de professores

indígenas e os elementos possibilitadores e dificultadores neste processo, cujas análises

e discussões apresentamos a seguir.

Resultados e discussão

O material elaborado para subsidiar o trabalho docente traz no seu conteúdo

quatro eixos a serem trabalhados durante as aulas, sendo eles: ensino-aprendizagem; a

escola e seus contextos, o ensino pela pesquisa e a mediação do professor nesse

processo enquanto intelectual que intervém numa realidade específica.

A análise do mesmo mostrou que a organização das sequências didáticas

utilizadas em aula foram replanejadas conforme o andamento dos trabalhos. Houve

inserção de questões importantes como o uso da língua indígena na escola e um intenso

trabalho de produção própria dos cursistas.

Os registros dos trabalhos dos acadêmicos em forma de sequências didáticas

mostrou grande ênfase em temas transversais como o meio ambiente da comunidade,

práticas culturais comunitárias, alguns destacaram o uso de grafismos e arte indígenas e

um número considerável abordou a leitura e a produção de textos.

A seguir, destacamos como as duas questões foram trabalhadas a partir da

análise desses materiais.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10751ISSN 2177-336X

27

A articulação e a organização dos saberes na formação de professores indígenas

Entendemos que a escola é um espaço formativo onde diferentes conteúdos

são trabalhados numa relação que envolve o professor, o educando e o currículo que se

organiza para formar um sujeito a partir de objetivos estabelecidos por ela em

consonância com a sociedade em que está inserida.

Segundo Grupioni (2006) a escola enquanto instituição surge para os povos

indígenas a partir do contato com os europeus. Nesse percurso ela assumiu diferentes

modelos e formas. Maher (2006) apresenta a trajetória da escola indígena a partir de

dois paradigmas: assimilacionista (abrigando o modelo de submersão e o de transição) e

emancipatório (modelo de enriquecimento cultural e linguístico).

Segundo o documento Parâmetros em Ação – Educação Escolar Indígena

(2001, p. 5) a escola diferenciada

acontece pelo acesso aos conhecimentos universais, pelo uso da língua

materna e pela valorização dos conhecimentos e práticas tradicionais

dos povos indígenas, que se materializa com calendários escolares

adaptados às atividades do povo, no uso de materiais didáticos

próprios e na docência de professores indígenas, membros de suas

respectivas comunidades.

Assim, é função do professor indígena mediar essa articulação de saberes

em vistas de preparar seus sujeitos para os desafios da relação inevitável com a

sociedade envolvente sem, contudo, desvalorizar suas próprias culturas. Neste sentido,

estabelecer as relações entre os conteúdos aprendidos na sua formação universitária e

aqueles de seus povos sem submetê-los a hierarquização no lugar ocupado no currículo,

é uma tarefa que exige comprometimento dos cursistas e dos professores.

A análise do material utilizado na disciplina e as atividades propostas

indicam um esforço conjunto nessa direção. No entanto, percebemos que “falar de um

lugar para tantos lugares diferentes” é trabalho árduo e que deixa a desejar nos

resultados.

Uma das unidades de trabalho da disciplina abordou a organização dos

conteúdos trazendo para a discussão os tipos de conteúdos enfatizando a importância de

cada um deles na formação dos educandos. Nos roteiros produzidos foi possível

identificar a presença de saberes indígenas e não indígenas.

Os trabalhos dos cursistas por sua vez apresentam o esforço de

problematizar os conteúdos a partir do contexto de cada realidade presente.

Identificamos nas sequências didáticas elaboradas por eles proposições de atividades de

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10752ISSN 2177-336X

28

campo para uma imersão na realidade objetivando imprimir sentido aos conteúdos

ministrados. Em outros casos, propõe a mediação de um conhecimento a partir de falas

dos mais velhos para contação da história e das tradições de seus povos, buscando uma

valorização da cultura na escola.

A análise dos trabalhos mostra uma busca por práticas interculturais a partir

da didática como forma de mediação do processo ensino aprendizagem. Nesse caso é

importante salientar que carregamos ainda o peso de séculos de silenciamento das

diferentes culturas na escola e, consequentemente, no currículo de formação de

professores.

Romper com a imposição de uma cultura homogênea e de um saber como o

único possível e aceitável, exige abrir-se a uma relação intercultural entre os diferentes

elementos que compõe a didática no seu objeto de estudo, pois o ensino implica em algo

a ensinar e uma relação entre os sujeitos envolvidos nesse processo.

Conforme Souza e Fleuri (2003, p. 63),

Assim, as relações interculturais, em certa medida, perturbam a visão

hierarquizada e purificada das culturas, do poder e do conhecimento.

Possibilitam o questionamento da ordem institucional educacional

estabelecida sob a óptica do poder hegemônico de educadores e

educadoras sobre os(as) alunos(as). Ensejam a possibilidade de

problematizar a pretensa procedência universalizante e

homogeneizante do conhecimento.

Entender o conhecimento na perspectiva da interculturalidade, portanto, é

um desafio tanto para formadores como para os professores indígenas em formação e

exige avaliação contínua. O estudo demonstrou constante replanejamento das

atividades, retomadas diárias e reflexões oriundas das discussões com os cursistas e seus

contextos bem como a inserção de novos elementos que a principio não faziam parte do

material pré-elaborado para a disciplina.

Os elementos possibilitadores e dificultadores neste processo

Nesta categoria analisamos elementos que a nosso ver possibilitam a

articulação de saberes indígenas e não indígenas e outros que dificultam esse mesmo

processo. Destaca-se tanto no material das docentes quanto no dos acadêmicos a

propositura do trabalho por projetos como uma forma de articular diferentes saberes,

desencadeados por uma problematização de algo significativo no contexto da escola

onde o mesmo se desenvolve.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10753ISSN 2177-336X

29

O trabalho por projetos organiza-se numa perspectiva interdisciplinar/e ou

transdisciplinar onde se destaca a participação intensa dos alunos e a vinculação ao

contexto escolar e comunitário. Tais proposições vão ao encontro do que dispõe a

Resolução 05/2012 que define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

Escolar Indígena na Educação Básica.

§ 4º O currículo na Educação Escolar Indígena pode ser organizado

por eixos temáticos, projetos de pesquisa, eixos geradores ou matrizes

conceituais, em que os conteúdos das diversas disciplinas podem ser

trabalhados numa perspectiva interdisciplinar. (BRASIL, 2012, p. 8).

As sequências elaboradas pelos professores indígenas em formação

evidenciaram as questões culturais, havendo também outras que se focaram em

conteúdos da língua portuguesa, como a leitura e a produção de textos.

Entretanto, em alguns casos, os projetos pouco diferiram dos de alunos não

indígenas demonstrando a dificuldade de dar organicidade aos saberes trabalhados na

escola, revelando que a imposição secular do modelo didático tem raízes fortemente

instaladas mesmo nas escolas indígenas.

Esses dificultadores são, sem dúvida, reflexos do colonialismo presentes nas

práticas escolares e organização de conteúdos reproduzida das escolas não indígenas. O

Documento Base da I Conferência Nacional de Políticas Indigenistas esclarece que “o

colonialismo ocorre quando uma parcela dominante da sociedade se legitima numa

posição superior por meio da subjugação ou invisibilização de outras formas de

organização social e valores societários existentes” (BRASIL, 2015, p. 4).

É importante salientar que a dificuldade se apresenta tanto para os

acadêmicos, quanto para os docentes e, ousamos dizer, para a instituição formadora.

Souza e Fleuri (2003, p. 57) chamam a atenção para o fato de que,

Na maioria das vezes, as relações entre culturas diferentes são

consideradas a partir de uma lógica binária (índio x branco, centro x

periferia, dominador x dominado, sul x norte, homem x mulher,

normal x anormal) que não permite compreender a complexidade dos

agentes e das relações subtendidas em cada polo, nem a reciprocidade

das inter-relações, nem a pluralidade e a variabilidade dos significados

produzidas nessas relações.

Essas relações também se fazem presentes na organização dos saberes

trabalhados nos cursos de formação de professores indígenas, pois durante muito tempo

o currículo priorizou somente conhecimentos não indígenas e o impôs às escolas

indígenas.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10754ISSN 2177-336X

30

Não obstante as dificuldades, o estudo permite-nos afirmar que há uma

reflexão sobre o tema e importantes passos vão sendo dados neste processo.

Considerações finais

As discussões oriundas do estudo aqui apresentado nos possibilita

considerar que a atividade de ser professor em um contexto plural deve estar permeada

pela necessidade de se desfazer de algumas certezas e a abrir-se ao novo, ao diferente.

Somente a partir disso poderemos começar a pensar em práticas interculturais.

A análise dos materiais construídos pelas docentes e pelos acadêmicos

demonstra o prenúncio de uma perspectiva intercultural no tratamento dos conteúdos e

objetivos didáticos.

Buscar a articulação dos saberes indígenas e não indígenas é um desafio

presente nos cursos de formação desses professores e, nesse sentido, o texto aqui

apresentado é um convite á reflexão a todos. Entendemos que o assunto não se esgota

nesse estudo e nos provoca a outras pesquisas e caminhos neste percurso que pretende

ser formativo aos professores indígenas, aos professores da universidade e à instituição

formadora.

REFERÊNCIAS

BRASIL. As leis e a educação escolar indígena: Programa Parâmetros em Ação de

Educação Escolar Indígena/Organização Luís Donisete Benzi Grupioni. Brasília:

Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental, 2001.

______. Resolução CNE/CEB 5/2012. Diário Oficial da União, Brasília, 25 de junho

de 2012, Seção 1, p. 7.

______. Documento Base da I Conferência Nacional de Politica Indigenista.

Brasilia, DF. 2015.

CANDAU, Vera Maria. As diferenças fazem a diferença? Cotidiano escolar,

interculturalidade e educação em direitos humanos. In.: SOARES, Leôncio [et. al].

Convergências e Tensões no Campo da Formação e do Trabalho Docente. Belo

Horizonte: Autêntica, 2010.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10755ISSN 2177-336X

31

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 2.

ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

GRUPIONI, Luis Donizete Benzi. Contextualizando o campo da formação de

professores indígenas no Brasil. In: GRUPIONI, Luis Donizete Benzi. Formação de

professores indígenas: repensando trajetórias. Brasília: Ministério da Educação,

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2006.

MAHER, Terezinha Machado. Formação de professores indígenas: uma discussão

introdutória. In: GRUPIONI, Luis Donizete Benzi. Formação de professores

indígenas: repensando trajetórias. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de

Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2006.

PIMENTA, Selma Garrido et al . A construção da didática no GT Didática – análise de

seus referenciais. Revista Brasileira de Educação v. 18 n. 52. jan.-mar. 2013.

Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v18n52/09.pdf>. Acesso em 14 mar.

2016.

SOUZA, Maria Izabel Porto de; FLEURI, Reinaldo Matias. Entre limites e limiares de

culturas: educação na perspectiva intercultural. In: FLEURI, Reinaldo Matias (org.).

Educação Intercultural. Mediações necessárias. DP&A, 2003. P. 53-84.

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS. Projeto Pedagógico do Curso de

Licenciatura em Pedagogia (Formação em Educação Infantil, Anos Iniciais ao

Ensino Fundamental e Interculturalidade– oferta especial). Manaus, 2014.

______. Resolução nº 010/2010 – CONSUNIV/ UEA, de 11 de maio de 2010.

i Pedagoga, Doutoranda em Educação pela FCT/UNESP Campus de Presidente Prudente,

docente da Universidade do Estado do Amazonas, bolsista da FAPEAM. Atuou como

professora e coordenadora Geral do PROIND/UEA. ii Pedagoga, Mestre em Educação, docente da Universidade do Estado do Amazonas,

coordenadora Geral do PROIND/UEA.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10756ISSN 2177-336X

32

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

10757ISSN 2177-336X