dicionário gramsciano

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Vocabulário gramsciano Complexo e fragmentado como é, nem por isso o pensamento de Gramsci está destituído de vínculos e relações internas construídas ao longo dos anos em que foi elaborado, entre revisões e aprofundamentos admitidamente provisórios, em meio ao constrangimento representado pela circunstância da prisão. Este vocabulário significa, apesar disso, uma tentativa de fornecer alguns parâmetros e pontos de referência, sem a pretensão de estabelecer sentidos univocamente dados de uma vez por todas. Autores italianos e brasileiros aqui estão presentes, algumas vezes escrevendo sobre os mesmos conceitos ou sobre conceitos que se entrelaçam intimamente e só podem aparecer separados de um ponto de vista didático. No caso dos autores italianos, utilizaremos como fontes principais, mas não exclusivas: Umberto Cerroni. Lessico gramsciano. Roma: Riuniti, 1978; VV. AA. Antonio Gramsci : le sue idee nel nostro tempo. Roma: L´Unità, 1987. As contribuições brasileiras são redigidas especialmente para esta página. Serão citadas, nestes pequenos textos, duas edições dos Cadernos do cárcere: ora a edição Gerratana (Turim: Einaudi, 1975, indicada por QC), ora a edição brasileira (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999-2002, indicada por CC). Outras obras serão mencionadas por extenso. Americanismo Americanismo e fordismo Ateísmo Autocrítica Bloco histórico Brescianismo Cadernos do cárcere Cadornismo Católicos Consenso Cultura “popular” Democracia política Destruição Econômico-corporativo Elites Estética Fascismo (fase pré- carcerária) Filosofia da práxis Frases incendiárias Guerra de posição e de movimento Hegemonia História ético-política Ideologia e fanatismo Ignorância Indivíduo Intelectuais Intelectuais (2) Jacobinismo Jornalismo Lenin Machismo Método experimental Nacional-popular Otimismo e pessimismo Partido como “moderno Príncipe” Reforma intelectual e moral Religião Revolução Revolução passiva Risorgimento Sociedade civil Teoria e prática Totalidade Tradução e tradutibilidade Transformismo Vaidade de partido Weber

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Page 1: Dicionário gramsciano

Vocabulário gramsciano

Complexo e fragmentado como é, nem por isso o pensamento de Gramsci está destituído de vínculos e relações internas construídas ao longo dos anos em que foi elaborado, entre revisões e aprofundamentos admitidamente provisórios, em meio ao constrangimento representado pela circunstância da prisão.

Este vocabulário significa, apesar disso, uma tentativa de fornecer alguns parâmetros e pontos de referência, sem a pretensão de estabelecer sentidos univocamente dados de uma vez por todas.

Autores italianos e brasileiros aqui estão presentes, algumas vezes escrevendo sobre os mesmos conceitos ou sobre conceitos que se entrelaçam intimamente e só podem aparecer separados de um ponto de vista didático.

No caso dos autores italianos, utilizaremos como fontes principais, mas não exclusivas: Umberto Cerroni. Lessico gramsciano. Roma: Riuniti, 1978; VV. AA.Antonio Gramsci: le sue idee nel nostro tempo. Roma: L´Unità, 1987. As contribuições brasileiras são redigidas especialmente para esta página.

Serão citadas, nestes pequenos textos, duas edições dos Cadernos do cárcere: ora a edição Gerratana (Turim: Einaudi, 1975, indicada por QC), ora a edição brasileira (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999-2002, indicada por CC). Outras obras serão mencionadas por extenso.

AmericanismoAmericanismo e fordismoAteísmoAutocríticaBloco históricoBrescianismoCadernos do cárcereCadornismoCatólicosConsensoCultura “popular”Democracia políticaDestruiçãoEconômico-corporativoElitesEstética

Fascismo (fase pré-carcerária)Filosofia da práxisFrases incendiáriasGuerra de posição e de movimentoHegemoniaHistória ético-políticaIdeologia e fanatismoIgnorânciaIndivíduoIntelectuaisIntelectuais (2)JacobinismoJornalismoLeninMachismoMétodo experimental

Nacional-popularOtimismo e pessimismoPartido como “moderno Príncipe”Reforma intelectual e moralReligiãoRevoluçãoRevolução passivaRisorgimentoSociedade civilTeoria e práticaTotalidadeTradução e tradutibilidadeTransformismoVaidade de partidoWeber

Americanismo

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Gramsci sigue con atención la configuración en los Estados Unidos ( y su incipiente proyección sobre Europa) de un modo de organización de la producción que constituye a la vez todo un modelo de construcción de control y ‘autoridad’ sobre los trabajadores industriales de parte de las patronales, que desarrollan un impulso ‘reglamentarista’ en dirección no sólo al proceso de trabajo sino a la vida cotidiana e incluso íntima de los trabajadores. En la fábrica de tipo ‘fordista’ el patrón controla al trabajador, momento a momento, durante toda la jornada de trabajo. Y extiende ese control a la ‘moral’ del trabajador, premiando mediante diferenciales salariales su ‘buen comportamiento’. Ese proceso de organización fordista tiene repercusiones sobre el conjunto de la organización social, y en vinculación con otros factores da lugar a una formación cultural que en la época se denominaba ‘americanismo’.

G. destaca que Norteamérica tiene una estructura social diferente a la europea, sin estratos sociales ‘parásitos’ que constituyen supervivencias de modos de organización social anteriores, que en mayor o menor medida están presentes en Europa, y no en la Unión, nacida como sociedad capitalista desde la época colonial, y volcada desde el comienzo a una cultura donde el trabajo productivo y el comercio ocuparon un lugar central desde sus orígenes (junto, y apoyados por, los valores éticos emanados del puritanismo religioso).

EE.UU. cuenta como presupuesto con una ‘racionalización’ de la población, que en Europa requeriría toda una batalla histórica, y eso facilita el desarrollo acelerado de un tipo de organización social más moderno, y la construcción de un tipo distinto de ‘dirección intelectual y moral’, que se origina en el mismo plano ‘estructural’, más precisamente en la propia planta fabril.

En realidad, el americanismo, en su forma más lograda, exige esa ‘racionalización’ de la población para imponer su dominio:

Esta ‘racionalización’ preliminar de las condiciones generales de la población, ya existente o facilitada por la historia, ha permitido racionalizar la producción, combinando la fuerza (-destrucción del sindicalismo-) con la persuasión (-salarios altos y otros beneficios-), para colocar toda la vida del país sobre la base de la industria. La hegemonía nace de la fábrica y no tiene necesidad de tantos intermediarios políticos e ideológicos. Las ‘masas’ de Romier son la expresión de este nuevo tipo de sociedad, en donde la ‘estructura’ domina más inmediatamente las superestructuras y éstas son racionalizadas (simplificadas y disminuidas en número).

Homogeneización y simplificación resultan así la ‘palabra de orden’ del modelo americano, constituyendo pautas que se extienden a los productos que se libran al mercado (bienes estandarizados de consumo masivo) al proceso de producción (cinta de producción y otros mecanismos de aceleración del trabajo en el marco de la instauración de la ‘subsunción real’) e incluso a los comportamientos privados e individuales. La ‘hegemonía nace en la fábrica’ en el fordismo, en el que la organización del proceso productivo ya lleva contenida una carga ideológica de alta eficacia. Al día de hoy, es la desintegración de ese modelo la que marca interrogantes sobre sus efectos en la conciencia de unas clases subalternas que sufren la ‘reorganización’ profunda del sistema de explotación por parte de los capitalistas.

Americanismo e fordismo

Um dos dados consolidados da historiografia sobre a III Internacional é, certamente, o da carência de análises sobre os Estados Unidos e a evolução da sociedade americana. Entre outras coisas, é a esta insuficiência de análises que se devem alguns erros cometidos pela então União Soviética e

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pelo movimento comunista no campo das relações internacionais logo em seguida à II Guerra Mundial, quando os Estados Unidos surgiram como potência hegemônica em nível planetário.

Torna-se, pois, ainda mais surpreendente e excepcional que Gramsci, na sua elaboração solitária de recluso, tenha tido a sensibilidade de captar, como elemento de interesse da documentação que conseguia mandar buscar, as observações sobre a sociedade americana. O ângulo visual a partir do qual Gramsci se coloca é o da organização de trabalho na grande fábrica, dele bem conhecido por causa da experiência turinense. E o primeiro dado que ressalta na série de notas sobre os Estados Unidos — escritas em anos variados e reagrupadas tematicamente em 1934 — é a intuição da enorme força do capitalismo americano, o único que não se vê diante dos limites representados pelos resíduos socioculturais de modos de produção anteriores. Já uma adequada avaliação desta intuição poderia ter evitado, inclusive em anos bem mais próximos, certas subestimações macroscópicas da força do capitalismo estadunidense.

O segundo dado relevante é a compreensão da modernidade do modelo americano de organização do trabalho, que, longe de tornar o operário um “gorila amestrado”, cria, antes, as premissas para uma maior consciência de classe, que, por parte dos capitalistas, se tenta combater seja com os altos salários, seja com instrumentos “pedagógicos”. Gramsci reconhecia que “... o método de Ford é ‘racional’, isto é, deve se generalizar; mas, para isso, é necessário um longo processo, no qual ocorra uma mudança das condições sociais”.

Portanto, à diferença de grande parte dos grupos dirigentes e, mais ainda, de amplos estratos intelectuais da Itália fascista, Gramsci reconhece a superioridade da organização produtiva americana, embora considere que ela não poderá continuar a desfrutar da posição de privilégio com a generalização do método, que excluirá a possibilidade de manter os altos salários. Neste sentido, também a Gramsci escapa a capacidade de auto-regulação que o capitalismo estava desenvolvendo por meio da intervenção estatal, capacidade que, apesar de dificuldades crescentes, permite ainda hoje ao capitalismo americano manter a própria hegemonia em nível mundial. Por outro lado, não se deve esquecer que as notas gramscianas são extremamente precoces e não podem levar em conta os desdobramentos ligados à “grande depressão” e aos instrumentos utilizados para superá-la.

Mas a agudeza gramsciana não se limita à indicação dos aspectos essenciais da nova sociedade que está se desenvolvendo: estende-se também ao reconhecimento de relevantes aspectos culturais e de costume, que vão da incidência da nova ordem produtiva sobre os hábitos sexuais às características do associativismo de classe, passando pela profunda diferenciação entre a cultura dos intelectuais americanos e a dos europeus.

Mas, além das intuições mais ou menos profundas, o que surpreende na reflexão gramsciana é sua absoluta originalidade, prova de uma profunda capacidade de compreensão da realidade social que nem mesmo as horríveis condições da detenção e do isolamento conseguem atenuar.

Ateísmo

“O ateísmo é uma forma puramente negativa e infecunda” (QC, p. 1.827), porque é ainda uma forma subalterna ou apenas polêmica.

Marx já observara isto, ao dizer: “O ateísmo [...] não tem mais sentido, porque ele é uma negação de Deus e põe a existência do homem mediante esta negação. Mas o socialismo, como

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tal, não mais precisa desta mediação: ele parte da consciência sensível teórica e prática do homem e da natureza como o essencial” (Manuscritos econômico-filosóficos de 1844).

Autocrítica

Não se deve nunca esquecer que também existe uma “autocrítica hipócrita” (QC, p. 1.742). Portanto, é bem melhor garantir a crítica do que tornar obrigatória a autocrítica.

Bloco histórico

Confunde-se freqüentemente o conceito gramsciano de bloco histórico, que é um conceito histórico e analítico, com o de alianças sociais, ou de bloco social. Gramsci formulara com grande clareza, em sua ação como dirigente do Partido Comunista, o problema das alianças da classe operária, particularmente nos anos imediatamente anteriores à prisão. Nas teses do Congresso de Lyon (janeiro de 1926), afirma-se a necessidade de pôr em primeiro plano, entre os aliados do proletariado industrial e agrícola, os camponeses do Sul e das Ilhas. No escrito sobre a Questão meridional (novembro de 1926), Gramsci indica “o consenso das amplas massas camponesas” como a condição para mobilizar contra o capitalismo a maioria da população trabalhadora. Os intelectuais, na concreta situação italiana, têm um papel decisivo na formação das alianças. Com efeito, eles contribuem, no Mezzogiorno, para vincular os camponeses aos grandes proprietários rurais. É necessário quebrar este vínculo através da formação, na massa dos intelectuais, de uma tendência de esquerda, “no significado moderno do termo, ou seja, orientada para o proletariado revolucionário”.

Coloca-se em outro plano, como dissemos, o conceito de bloco histórico, que se refere à questão teórica central do marxismo: a relação entre estrutura e superstrutura, entre teoria e prática, entre forças materiais e ideologia. Gramsci rejeita toda visão determinista e mecanicista desta relação. Não existe uma estrutura que mova de modo unilateral o mundo superestrutural das idéias, não há uma simples conexão de causa e efeito, mas um conjunto de relações e reações recíprocas, que devem ser estudadas em seu concreto desenvolvimento histórico.

É fundamental quanto a isso a pesquisa empreendida nos Cadernos do cárcere. Gramsci tende a considerar abstrata a distinção entre estrutura (as relações sociais de produção) e superestrutura (as idéias, os costumes, os comportamentos morais, a vontade humana). Na concretude histórica, há convergência entre os dois níveis, uma convergência que conhece a distinção e a dialética, mas que se resolve numa “unidade real”.

A pretensão (apresentada como postulado essencial do materialismo histórico) - escreve Gramsci - de apresentar e expor toda flutuação da política e da ideologia como uma expressão imediata da estrutura deve ser combatida, no plano teórico, como um infantilismo primitivo, ou, no plano prático, valendo-se do testemunho autêntico de Marx, escritor de obras políticas e históricas concretas.

Com efeito, existe uma dificuldade para identificar estaticamente, em cada momento concreto, a estrutura. Na realidade, a estrutura entendida em si, separadamente do processo histórico, não existe: e, ainda que ela seja objetivamente identificável, trata-se de um movimento no interior da

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história, não de uma realidade externa à história e situada abaixo dela. Por isso, a política deve levar em conta as tendências de desenvolvimento da estrutura, mas isso não significa que todas elas devam necessariamente se realizar. Disso decorre a possibilidade do erro político, que o materialismo histórico mecânico não admite, considerando que todo ato político é rigidamente determinado pela estrutura. Trata-se, ao contrário, de captar um movimento e suas contradições.

O mesmo critério vale para o exame das relações entre teoria e prática. Gramsci observa que, até mesmo nos novos desenvolvimentos do materialismo histórico (referindo-se provavelmente à experiência soviética), “o aprofundamento do conceito de unidade da teoria e da prática está apenas numa fase inicial: ainda existem resíduos de mecanicismo. Fala-se ainda da teoria como ´complemento` da prática, quase como um ´acessório`”.

Toda a polêmica de Gramsci dirige-se contra o economicismo e o pragmatismo dos intérpretes do marxismo da Segunda e da Terceira Internacionais, e, ao mesmo tempo, contra toda concepção idealista, especulativa, que anula ou subordina os fatos práticos e materiais. Existe, ao contrário, uma “reciprocidade necessária” entre estruturas e superestruturas, “reciprocidade que é precisamente o processo dialético real”.

Sublinhar o valor dos elementos de cultura e de pensamento não tem um significado apenas teórico e de método histórico. Remete-nos ao problema das alianças e dos intelectuais: o consenso, a direção política e cultural, são “forma necessária do bloco histórico concreto”. Nenhuma formação histórica dotada de consistência e de futuro pode prescindir de uma expressão intelectual e moral, de um cimento de idéias e de valores.

Brescianismo

Termo cunhado por Gramsci a partir do sobrenome do escritor Antonio Bresciani (1798-1862), jesuíta, adversário extremado do liberalismorisorgimentale e do romantismo, autor, entre outros, de romances históricos, um dos quais (L’ebreo di Verona), reeditado em 1851, foi objeto de uma diatribe feroz de Francesco De Sanctis, cuja crítica era, para Gramsci, a mais próxima daquela “própria à filosofia da práxis”.

No seu ensaio (em revista, 1855; em seguida, nos Saggi critici), De Sanctis, ao mesmo tempo que punha em relevo as teses iliberais do livro, mostrava que a pobreza artística de Bresciani se identificava com suas carências de homem: debilidade intelectual, falta de fé, “jesuitismo”, fraqueza moral, os defeitos históricos do “velho literato italiano”.

Gramsci retoma de De Sanctis a categoria (simultaneamente psicológica, moral e literária) de “brescianismo” e a usa amplamente, pelo menos para dois fins. Com efeito, ela lhe serve, no seu propósito de escrever uma história dos intelectuais italianos, para identificar as características assumidas pelo intelectual reacionário na época do Risorgimento e do romantismo: individualismo, iliberalismo, oposição ao nacional-popular, beatice, aristocratismo inato, paternalismo jesuíta. É característico que, num trecho muito famoso e interpretado de diferentes maneiras, Gramsci identifique “notáveis traços de brescianismo” até em Os noivos.

Por outra parte, ela lhe permite descobrir e denunciar os mesmos vícios nos escritores do seu tempo, desmascarando assim os traços reacionários e conformistas de homens e de obras então celebrados,

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numa polêmica dura mas necessária, premissa indispensável para a conquista da própria “hegemonia” por parte da “filosofia da práxis”.

Portanto, Gramsci dá o título de “filhotes de padre Bresciani” a um amplo conjunto das suas notas literárias, recolhendo sob aquele denominador comum “uma parcela substantiva da literatura narrativa italiana”, mas também dos textos de história, de filosofia, de política; e demolindo, com alegre e genial ferocidade, a fina flor dos intelectuais em voga (de Croce e Gentile a Papini, de Ungaretti a Panzini, de Corradini a Bellonci), acusados, em graus e modos diversos, de “covardia moral e civil”, de “baixeza moral”, de bufonaria, conformismo, etc.

O valor desta operação é esclarecido por Gramsci num trecho que ainda deve ser retomado e repensado:

Trata-se de uma pesquisa de história da cultura, não de crítica artística em sentido estrito: pretende-se demonstrar que são os autores examinados que introduzem um conteúdo moral extrínseco, ou seja, que fazem propaganda e não arte, e que a concepção de mundo implícita em suas obras é estreita e mesquinha, não nacional-popular, mas sim de casta fechada (CC, v. 6, p. 121).

Um esclarecimento que permite a Gramsci (na trilha de De Sanctis, mas também de Marx e Engels) não cair na vala do “conteudismo”, da “literatura de partido”, do “jdanovismo”, mas, ao mesmo tempo, permite-lhe desmascarar o ideologismo de ampla parte da cultura do tempo, estabelecendo entre juízo ideológico e juízo estético uma relação difícil e complexa, ainda que nem sempre desvendada com segurança.

Cadernos do cárcere

Gramsci inicia a redação de seus cadernos no cárcere de Turi, em 8 de fevereiro de 1929, dois anos e três meses depois da detenção. Pensa longamente nas diretrizes de seus estudos, com os quais tentará derrotar o tédio do cárcere e as esperanças dos encarceradores. Lê muito: “Mais de um volume por dia, além dos jornais”, e todavia está “atormentado por esta [...] idéia: seria preciso fazer alguma coisa für ewig”, tal como escreve nas Cartas do cárcere.

Depois da morte de Gramsci, os manuscritos dos 33 cadernos são expedidos por Tania Schucht, a conselho de Sraffa, para Moscou, onde ficam sob a guarda de Vincenzo Bianco, representante italiano no Komintern. Depois da libertação da Itália, Felice Platone lhes dá uma primeira descrição detalhada em Rinascita (abril de 1946). Em 1948, tem início a publicação dos seis volumes temáticos da Ed. Einaudi: Il materialismo storico e la filosofia de Benedetto Croce; Gli intellettuali e l’organizzazione della cultura; Il Risorgimento; Note sul Machiavelli, sulla politica e sullo Stato moderno; Letteratura e vita nazionale;Passato e presente. A edição crítica aparece em 1975, na Ed. Einaudi, organizada por Valentino Gerratana.

[Nos anos 1960, a Ed. Civilização Brasileira publicou quatro dos seis volumes “temáticos” da edição Felice Platone/Palmiro Togliatti, além de uma edição bastante resumida das Cartas do cárcere. Entre 1999 e 2002, a mesma Ed. Civilização Brasileira publicou uma nova edição dos Cadernos do cárcere, que reordena o material simultaneamente segundo os critérios da edição temática e os da edição Gerratana, tomando como eixo os chamados “cadernos especiais”, ou seja,

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aqueles em que o próprio Gramsci sistematizou minimamente o material, de acordo com os grandes temas de sua pesquisa. Em 2005, saiu a primeira edição integral em português das Cartas do cárcere, em dois volumes.]

Cadornismo

Do general Luigi Cadorna, chefe de estado-maior na Primeira Guerra Mundial até o desastre de Caporetto, Gramsci se ocupara com atenção particular por ocasião das duras polêmicas surgidas em torno da sua responsabilidade por aquela catastrófica derrota militar. Mas Cadorna e Caporetto logo se tornam na reflexão gramsciana sobretudo metáforas de um pensamento político. Muito freqüentemente, de resto, na linguagem dosCadernos, a estratégia militar se transforma de forma aparente de modelo em metáfora eloqüente da reflexão política (veja-se o caso mais conhecido do cotejo entre “guerra de movimento” e “guerra de posição”). Cadorna é visto por Gramsci como um burocrata da estratégia: aquele que sacrifica a realidade ao esquema e que, depois de ter construído seu plano estratégico com hipóteses “lógicas”, não hesita em dizer “tanto pior para a realidade” e se recusa a levá-la em consideração. Neste tipo de estratégia, só cabe aos indivíduos o destino de ser sacrificados e, portanto, não tem sentido falar de sacrifícios inúteis.

Gramsci começa por duvidar que esta lógica seja válida mesmo no terreno da estratégia militar. Mas o que lhe importa mais é o discurso polêmico contra aqueles que define como “os estrategistas do cadornismo político” (Marx chamava-os de “os alquimistas da revolução”). É difícil – sublinha Gramsci – extirpar dos “dirigentes” o “cadornismo”:

[...] isto é, a persuasão de que uma coisa será feita porque o dirigente considera justo e racional que seja feita; se não é feita, ‘a culpa’ é lançada sobre quem ‘deveria ter feito’, etc. Desse modo, é difícil extirpar o hábito criminoso de negligenciar os meios de evitar os sacrifícios inúteis. Entretanto, o senso comum mostra que a maior parte dos desastres coletivos (políticos) ocorrem porque não se procurou evitar o sacrifício inútil, ou se mostrou não levar em conta o sacrifício dos outros e se brincou com a pele dos outros (CC, v. 3, p. 325-6).

Extirpar os maus hábitos da política se tornara a obsessão de Gramsci. Convencera-se de que estes maus hábitos se enraízaram numa concepção da política baseada na separação de tarefas dos governantes e dos governados, dos dirigentes, por um lado, e dos dirigidos, por outro: aos primeiros só cabe decidir, aos segundos só executar. O vício cadornista de brincar com a pele dos outros encontra aqui seu alimento mais substancioso. Por isso, os erros mais graves também são os mais difíceis de consertar.

Com uma outra imagem, mudando a metáfora, Gramsci voltava a insistir:

[...] formou-se na verdade uma mentalidade esportiva, que fez da liberdade uma bola para jogar futebol. Todo aquele que chega para jogar imagina a si mesmo um ditador, e o mister do ditador parece fácil: dar ordens imperiosas, assinar papéis, etc., pois se imagina que, “pela graça de Deus”, todos obedecerão e as ordens verbais ou escritas tornar-se-ão ações: o verbo se fará carne. Se não se fizer, isto quer dizer que se deverá ainda esperar até que a “graça” (ou seja, as chamadas “condições objetivas”) o permita (CC, v. 1, p. 409).

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A partir deste texto dos Cadernos do cárcere resta confirmada a impressão de que a polêmica gramsciana contra o “cadornismo político” também fosse uma polêmica interna de partido. De fato, como se sabe, Gramsci desaprovara a política da “virada” com a qual os estrategistas do Komintern decidiram, entre 1929 e 1930, o retorno à Itália de centenas de militantes comunistas, aos quais se atribuíra no papel a tarefa de guiar uma então improvável insurreição popular, mas que, na realidade, estavam fadados a apodrecer nas prisões fascistas. Também nisso devia pensar escrevendo com dureza sobre “o hábito criminoso de negligenciar os meios de evitar os sacrifícios inúteis”.

Católicos

As posições de Gramsci sobre a “questão católica” na Itália tendem desde o princípio a superar o velho anticlericalismo com o qual ela continuou por muito tempo a ser enfrentada mesmo depois da Primeira Guerra Mundial. Já em 1919, qualifica o Partido Popular como um fruto da laicização e do renovamento operados na Itália com o Risorgimento e com a unidade, e como um partido de massas que exprime o progressivo amadurecimento social do proletariado italiano na direção do seu necessário desfecho comunista. Nesta base, Gramsci afirma, sem dúvida, que o futuro “Estado operário também deverá encontrar um sistema de equilíbrio” com o catolicismo na Itália. Por outra parte, as massas que os populares organizam são, em particular, as “dos camponeses e das categorias que se encontram na sua mesma situação política”; mas se trata de massas heterogêneas, cujos vários elementos estão fadados a tomar, cada um deles, o próprio caminho à medida que “adquirem consciência de si e dos seus interesses reais”: no seu próprio sucesso o Partido Popular tem as razões da sua fatal dissolução, permanecendo enquanto isso, inevitavelmente, como “partido do programa democrático e da aliança com os conservadores”. Nisso Gramsci vê uma analogia dos católicos com os socialistas, que, por um lado, também levam grandes massas a se inserirem no Estado produzido pelo Risorgimento e, por outro, não são capazes de mudar a lógica deste Estado. “Dom Sturzo e Turati – então escrevia Gramsci – começam estranhamente a parecer com o velho Giolitti.” Trata-se, em ambos os casos, de uma realidade “fundamentalmente conservadora e reacionária”, que, no entanto, não pode deixar de ser considerada, uma vez que nela se efetiva “um complexo enquadramento de forças reais”, bem como o esforço de realizar “um sistema mais ágil, mais adequado à nova necessidade de manter com as massas um contato contínuo” e de superar a separação tradicional entre o Estado italiano e as massas.

Mas no curto período de alguns anos a perspectiva muda rapidamente. Diante da progressiva afirmação do fascismo, Gramsci quer apreender todos os sinais que podem induzir a enquadrar a questão católica naquela mais geral que, já em 1921, define como o problema de “levar ao terreno de classe a resistência e a oposição da população trabalhadora ao fascismo”. Na nova situação, com as cisões que reduzem sua força eleitoral e sua organização de modo bastante grave, o Partido Popular parece a Gramsci ter entrado numa crise gravíssima, que o faz distanciar-se até do Vaticano e que é preciso levar a termo. É neste momento que ele elabora uma nítida distinção entre política vaticana e catolicismo político italiano. Em nenhum caso – afirma –, deve-se procurar “favorecer as tentativas, que podem surgir, de movimentos ideológicos de natureza estritamente religiosa”. Se os católicos têm um papel de esquerda, isso não acontece porque se contrapõem à Igreja em termos de posições religiosas de um certo tipo, mas porque assumem determinadas orientações em matéria social. Estas é que devem interessar à esquerda, não as questões de ortodoxia ou de princípio religioso. Assim, as imagens de um catolicismo político italiano ora em retirada diante da penetração e da absorção por parte do fascismo, ora expressão de interesses claramente

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conservadores, ora substancialmente instrumento da ação vaticana, ora fortemente autônomo e reativo no terreno de classe, e suscetível de grandes desdobramentos neste sentido – tais imagens se sobrepõem em Gramsci até 1926 e produzem variadas e significativas oscilações do seu pensamento. Mas as oscilações não decorrem somente de vaivéns teóricos do próprio Gramsci. Também são o efeito das vicissitudes através das quais se estabeleceu na Itália o regime fascista entre 1922 e 1926, e portanto decorrem, por outro lado, da estreita relação que, neste como em outros casos, observa-se em Gramsci entre reflexão e experiência, no esforço constante de controlar plenamente, de um ponto de vista tanto histórico quanto político, todos os termos da questão católica.

No período do cárcere e, portanto, nos Cadernos, observa-se antes de tudo uma ampliação do discurso gramsciano desde o catolicismo político italiano àquele de toda a Europa. Neste quadro, a Concordata de 1929 lhe parece particularmente grave porque assinala, entre outras coisas, um recuo do Estado no terreno educativo, do curso primário até a universidade e, portanto, na formação tanto popular quanto da classe dirigente; e porque a Concordata está ligada ao Tratado de Latrão, mas é um acordo entre duas soberanias no interior do mesmo Estado, com a limitação objetiva do governo italiano para representar sozinho o Estado italiano, enquanto a Igreja representa tanto o Vaticano como sujeito de direito internacional quanto a si mesma na Itália. Neste caso, Gramsci ironizava os que “descobriram, com grande espanto e sentimento de escândalo, que catolicismo é igual a ‘papismo’”; e, ao mesmo tempo, “os grandes políticos do Vaticano”, que não haviam considerado plenamente todas as implicações do acordo com o governo fascista. Agora, ele demonstrava maior interesse pelas contestações religiosas ao Vaticano, falando do modernismo de modo bastante positivo e afirmando que, no seio da Igreja, não se pode “deixar de pôr de forma religiosa problemas que muitas vezes são puramente mundanos, de ‘domínio’”. Ao mesmo tempo, torna-se dominante a atenção pela Ação Católica como braço secular da política pontifícia. Mas Gramsci sublinha que, no mundo contemporâneo, a Igreja não é mais uma força mundial dirigente e inspiradora de forças e valores, mas, antes, é subalterna em relação às forças e aos valores de tal mundo; e que, por sua vez, a Ação Católica, subalterna em relação à Igreja, não pode satisfazer plenamente as necessidades que afloram do seu desenvolvimento intrínseco. E ao mesmo tempo distingue, no mundo católico, as três correntes em luta pela hegemonia: integristas, jesuítas e modernistas (grosso modo, direita, centro e esquerda).

Certamente, o problema se impunha à sua reflexão com força crescente. Na segunda metade da sua reclusão, as notas sobre a questão católica se intensificam. Com Pio XI – não casualmente definido como “papa dos jesuítas” – tem-se um grande esforço para fazer prevalecer uma linha de mediação e de compromisso com as forças no poder na Itália e na Europa, com um procedimento que Gramsci também considera “incerto, tímido, titubeante”. Isto confirma para Gramsci que a questão católica se põe como questão aberta sobretudo no tocante ao problema da relação entre a Igreja e o partido político do qual ela já não pode prescindir na sociedade contemporânea. Naquele momento, este partido era na Itália a Ação Católica; e, com a inspiração dos jesuítas, buscava-se “constituir uma ampla base popular para o movimento católico-democrático”. Mas a situação poderia mudar e obrigar a reconsiderar o problema, tal como já acontecera depois de 1926 em relação aos anos anteriores e nos últimos anos do cárcere em relação aos primeiros.

Consenso

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Para compreender o alcance e o limite do pensamento de Gramsci em torno dos problemas do consenso e da democracia política, é preciso, antes de mais nada, considerar a tradição histórica na qual se move. Ele depara com uma Itália na qual o voto ampliado só fora introduzido a partir de 1919 e já tivera a terrível resposta do fascismo. Por outro lado, reflete sobre a experiência da ruptura revolucionária de Outubro, que fora bloqueada pelo stalinismo principalmente por falta de tradições e instituições democráticas. 

Entre as duas guerras mundiais, a democracia está em declínio por todo o continente europeu e, no plano teórico, sofre contestações de variada natureza: Weber morre sonhando com uma democracia plebiscitária que ligasse carismaticamente os chefes às massas, Lukács e Schmitt — seus alunos — pedem regimes “novos” inspirados no mito da classe operária e do seu partido ou no mito da eficiência de um líder-ditador. Também na esquerda penetrara profundamente a cultura de um ativismo “revolucionário” substancialmente niilista e contestador, a que corresponde a aceitação do “mal menor”. Por uma parte, pensa-se que a máquina do Estado é somente força, a que se deve opor a violência “revolucionária”; por outra, subentende-se que não há substancialmente nada a fazer senão se deixar arrastar pelas “forças dirigentes”.

Neste quadro, adquire um forte significado renovador a idéia gramsciana da hegemonia. Segundo Gramsci, a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos: como domínio (coação) e como “direção intelectual e moral” (consenso). O Estado, pois, nunca é pura força nem a transformação pode ser pura violência. Logo, um grupo dominante não é, só por isso, dirigente e um grupo dominado não está fadado à subalternidade.

A possibilidade de desvincular força e consenso é atribuída ao elemento criativo e móvel de uma política capaz de superar os interesses restritos (corporativos) de uma classe, para realizar uma agregação mais ampla de consensos em torno de um núcleo de interesses mais gerais, enraizados na comunidade nacional. Esta possibilidade está ligada tanto à capacidade de apreender os interesses duradouros da classe trabalhadora e sua convergência com os interesses da sociedade nacional, quanto àdignidade cultural de uma política que se sente responsável pela direção de um povo e de uma nação. A capacidade requer a análise das tendências fundamentais que suportam os processos sociais em curso, enquanto a dignidade cultural leva a política a tornar-se herdeira e continuadora da história nacional: “Política-história”. Daí a confluência, em Gramsci, de um antidogmático espírito de investigação das perspectivas com uma pesquisa sobre a história da nação e sua cultura.

Nesta linha, Gramsci reage seja contra o elitismo de quem teoriza a cisão inevitável e permanente entre representantes e representados, seja contra o denegrimento da democracia representativa como regime dominado pelo “número”. Na realidade — raciocina Gramsci —, uma coerente democracia política “tende a fazer coincidir governantes e governados” e, portanto, tem como modelo um autogoverno geral, o crescimento cultural de todos. Por outro lado, “o número dos ‘votos’ é a manifestação terminal de um longo processo”, no qual se testam capacidades e propostas da elite para resolver os problemas gerais. Não se trata, em absoluto, de substituir a elite eleita por uma “elite por decreto”. Trata-se, em vez disso, de inserir na elite eleita uma cultura feita de responsabilidade nacional e humana em relação ao próprio povo e aos eleitores-pessoas. Assim se ampliará o consenso em torno de quem for capaz de propor soluções mais razoáveis e mais humanas.

Enquanto, na Europa e no mundo, adensavam-se as nuvens da Segunda Guerra Mundial, no cárcere de Turi Gramsci não perfilava as críticas céticas dirigidas à democracia representativa e, em vez disso, tentava orientá-la para modelos mais capazes de enraizá-la nas grandes massas emergentes. Ele contribuía, assim, para gerar o renascimento democrático da luta antifascista, que de certo modo

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culminaria — na Itália — com a conquista do sufrágio universal e da República democrática baseada no trabalho.

Cultura “popular”

A análise da cultura “popular” (ou seja, daquela própria das classes subalternas) é um momento essencial do pensamento de Gramsci. No centro dos Cadernos do cárcere, existe a convicção de que, naquela fase de derrota do movimento operário e, portanto, de “guerra de posição”, era necessária uma batalha cultural que constituísse um bloco histórico capaz de obter a hegemonia: o momento do consenso indispensável para chegar ao do domínio.

Nesta perspectiva, tornava-se central o estudo não só do papel desempenhado historicamente pelos grupos intelectuais, mas também da mentalidade e da cultura das classes populares até então mantidas distantes do poder e da cultura.

Para Gramsci, aquela cultura (no sentido amplo: concepção do mundo) é essencialmente “folclore”: um conceito e um termo pelos quais ele não sente a complacência generosa, mas interessada, dos românticos, muito menos a mistura de desprezo substancial e de mitificação estetizante dos decadentes.

Gramsci, apesar do que já se afirmou com fatuidade arrogante, não era “populista”, e “folclore” é, para ele, um conceito negativo. O folclore, constituído como é, em grau máximo, pelos resíduos da cultura hegemônica, é sempre “contraditório e fragmentário”; aproxima-se do “provinciano” por ser particularista e anacrônico; representa “uma fase relativamente enrijecida dos conhecimentos populares de uma certa época e lugar” (CC, v. 2, p. 209); corresponde àquilo que é, em filosofia, o senso comum, isto é, “uma concepção [...] desagregada, incoerente, inconseqüente, conforme à posição social e cultural das multidões das quais ele é a filosofia” (Ib., v. 1, p. 114). Portanto, não é nem pode ser “nacional”, se nacional for apenas uma cultura contemporânea e de nível mundial ou pelo menos europeu (Ib., v. 6, p. 231-2). E tarefa da filosofia da práxis, como “expressão” das “classes subalternas” (Ib., v. 1, p. 388), é precisamente “educar as massas”, libertando-as da sua cultura atrasada e levando-as a uma visão do mundo moderna e universal.

Portanto, duas teses só aparentemente divergentes; desvalorização da cultura popular devido ao seu atraso, mas também reconhecimento da sua seriedade (Ib., v. 6, p. 136) e da necessidade de estudá-la, se se quiser realizar “um cálculo mais cauteloso e exato das forças agentes na sociedade”. E, por isso, Gramsci, mesmo com os instrumentos limitados à sua disposição, formula as premissas para um estudo da cultura popular, novo no método, na escolha e na análise do material, nas conclusões. Elabora critérios metodológicos que levem em conta as características peculiares das classes subalternas e das suas estruturas sociais e mentais (Ib., v. 2, 206-7; v. 5, p. 135), bem como diferenciem as suas exigências em relação àquelas das classes cultas e hegemônicas: o que é um ferro-velho na cidade - escreve de modo fiel à realidade - pode ser um utensílio útil na província. E empreende uma análise, inteiramente nova na nossa cultura, da literatura popular, estudando tanto os seus gêneros (o melodrama, o folhetim, o romance policial, o romance de suspense), quanto os instrumentos de produção e difusão (os editores populares), autores particulares (Guerrazzi, Mastriani, Invernizio, etc.), algumas obras e a sua circulação.

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Os limites destas investigações residem, como é natural, tanto na sua própria novidade e, por isso, na falta de modelos, quanto nas condições em que Gramsci trabalhava. E, por isso, se muitas das suas análises ainda hoje são de penetrante atualidade, outras parecem imprecisas, destituídas de demonstração, não convincentes. Mas restam a novidade genial das teses básicas, o pressuposto da necessidade de um sistema literário orgânico, no qual todos os níveis tenham um lugar e sejam vistos nas suas implicações recíprocas, o início de um tipo de investigações e de estudos que já deu muitos frutos e ainda está em pleno desenvolvimento.

Democracia política

“A ´democracia política` tende a fazer coincidir governantes e governados” (QC, p. 501). Nesta tendência deita raízes a possibilidade de que ela abra a perspectiva do socialismo.

Destruição

Muitas vezes, “a destruição é concebida mecanicamente, não como destruição-reconstrução” (QC, p. 1.612). Mas, em geral, uma destruição assim concebida é um fracasso histórico: “Não é verdade que basta querer para ‘destruir’” (QC, p. 708). Freqüentemente, em política, quem só quer destruir e mais nada termina destruído: “Muitos dos chamados destruidores não passam de ‘promotores de abortos fracassados’, passíveis de sanção do código penal da história” (Ib.). O único modo de destruir, verdadeiramente, é criar: “Destrói-se na medida em que se cria” (Ib.). É inteiramente falso o mito soreliano de uma violência-fim, isto é, de uma destruição que seja, como destruição, uma regeneração moral. Um tal mito só pode satisfazer o niilista ou o esteta. Por outra parte, a necessidade de destruir construindo aumenta na proporção da dimensão e da validade histórica da construção que se quer destruir.

Econômico-corporativo

O conceito de econômico-corporativo tem, em Gramsci, uma posição estratégica. Ele aparece em vários pontos dos Cadernos para representar e descrever situações bastante diferentes entre si: aparece como obstáculo à constituição de uma vontade nacional-popular na história italiana, como sinal de uma agregação restrita de interesses imediatos a serem superados na unidade política de um partido, e, em geral, como indicativo de uma situação na qual à escassez dos elementos superestruturais (de consciência, de cultura, de política, de hegemonia) corresponde o domínio imediato de uma situação estrutural, elementar, restrita, incapaz de expansão.

À parte os usos diferentes, os diferentes campos de aplicação em que surge, ele parece se mostrar como o oposto exato do conceito de hegemonia. Uma força (um Estado, um partido, uma filosofia) atravessa e vive uma fase econômico-corporativa enquanto ainda não atingiu a fase hegemônica ou de expansão ativa. Se Estado ou partido, enquanto reflexo de um primitivismo econômico que impede a libertação e a expansão de uma consciência geral; se idéia ou filosofia, o caráter “corporativo”, que, por metáfora, se pode aplicar a ela, consiste no caráter mecânico da interpretação que ela dá de si, ao se ver como um reflexo mecânico e imediato das coisas em

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sua fatal evolução e não naqueles elementos de vontade e de devir que constroem sua possível relação ativa e histórica com a realidade.

Toda agregação histórico-humana parece ter de atravessar necessariamente uma fase econômico-corporativa, ou seja, uma fase na qual a estrutura econômica só se reproduz a si mesma e a forma de consciência relativa é extremamente elementar: um comerciante, escreve Gramsci para exemplificar este momento, “[...] sente que deve ser solidário com outro comerciante, um fabricante com outro fabricante, etc., mas o comerciante não se sente ainda solidário com o fabricante; isto é, sente-se a unidade homogênea do grupo profissional e o dever de organizá-la, mas não ainda a unidade do grupo social mais amplo”.

Pode-se dizer que a fase econômico-corporativa não chega ainda à esfera claramente política. Esta esfera assinala, com efeito, a passagem da estrutura à esfera das superestruturas complexas, nas quais o nível de unificação dos grupos e da sociedade é bem mais alto e universal. Um verdadeiro projeto estatal não pode deixar de ser, por exemplo, um projeto hegemônico; uma filosofia que realize um terreno de unificação histórica geral não pode deixar de se desvincular do mecanicismo que constitui sua fase primitiva, para se propor também a tarefa de uma luta pela hegemonia. Estado e filosofia são os momentos essenciais daquelas superestruturas complexas, que emergem e se tornam ato histórico concreto quando os grupos sociais corporativos (e também as classes em Gramsci atravessam esta fase) chegam à luta política e se estabelecem num terreno que é, em alguma medida, universal. Nenhum Estado venceria se não tivesse em si esta dimensão.

Mas como ocorre esta desvinculação do terreno do econômico-corporativo? Como uma força se insere na dimensão política geral? Como uma filosofia (e, em particular, como a filosofia da práxis) vence o fatalismo e se torna ato histórico ativo, devir, unidade histórica de teoria e prática? Aqui, o tema da superação do econômico-corporativo encontra a questão dos intelectuais e da constituição daquela força jacobina eficiente que suscita e organiza a vontade coletiva nacional-popular e fundou os Estados modernos. Esta é uma passagem necessária para atingir a dimensão hegemônica: toda a reflexão dos Cadernos pode ser resumida a esta passagem, com atenção particular e apaixonada pelas tarefas domoderno Príncipe e pela fundação do Estado operário, daquele Estado operário que, em sua primeira forma histórica, soviética, tem dificuldades em ir além do primitivismo econômico-corporativo: é o juízo iluminador de Gramsci sobre os resultados da Revolução de Outubro.

A partir daqui, uma vez alcançado o ponto da hegemonia, a própria e restrita base econômico-corporativa se modifica e amplia. A hegemonia implica, antes de tudo, fortes atos estruturais e, numa só expressão, a fundação de uma economia historicamente adequada ao sentido histórico da hegemonia, que, caso contrário, corre o risco de permanecer nas nuvens. Mas esta economia que deriva de, e se liga a, uma situação hegemônica já é coisa diferente daquele restrito terreno que deu vida à idéia do econômico-corporativo. E o terreno de análise se abre para outros horizontes.

Elites

Gramsci é o mais fino crítico da teoria das elites políticas estabelecida especialmente por Gaetano Mosca e por Vilfredo Pareto, mas que já estava na base na moderna teoria do Estado representativo liberal (Locke, Kant, Humboldt, Constant). Colocando em questão o caráter necessariamente permanente e teoricamente indiscutível da divisão entre governantes e governados, e, em vez disso, redescobrindo seu caráter provisório, porquanto funcional à moderna estrutura atomística da

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sociedade burguesa capitalista, Gramsci reabre o discurso sobre a possibilidade de uma “reabsorção” da vida política na vida social. Por isto, sua atenção se dirige constantemente seja à formação de elites como vanguardas ligadas a todo um bloco histórico, seja ao desenvolvimento autônomo das massas. Escreve: “Trata-se, na verdade, de trabalhar para a elaboração de uma elite, mas esse trabalho não pode ser separado do trabalho de educação das grandes massas; as duas atividades, aliás, são na verdade uma só atividade, e é precisamente isso o que torna o problema difícil” (CC, v. 1, p. 247). Trata-se, com efeito, de elaborar uma elite que não se sinta elite e, ao contrário, dirija as massas para a autodireção e, portanto, para a criação de uma situação histórica em que caia a distinção-separação entre elite e massa.

Estética

Não há melhor crítica da estética conteudista do que esta lapidar expressão de Gramsci: “Dois escritores representam o mesmo momento social, mas um é artista, o outro não” (Q, p. 425-6). 

Fascismo (fase pré-carcerária)

A análise gramsciana do fascismo é filha do seu tempo. Sua originalidade e seus limites encontram-se devidamente inseridos na história dos primeiros passos da experiência fascista na aurora dos anos vinte. Assim, se, por um lado, há um grande avanço na visualização da base de massa pequeno-burguesa do movimento fascista, por outro lado, não há a percepção completa do aberto caráter ditatorial assumido pelo regime fascista. Caberia a Palmiro Togliatti (nas Lições sobre o fascismo) o trabalho singular de sistematizar uma reflexão sobre o fascismo, reunindo os elementos movimento e regime e definindo-o como “regime reacionário de massa”.

Na verdade, o pensamento gramsciano sobre o fascismo vai se tornando cada vez mais complexo, vai progressivamente se concretizando (no sentido marxiano de ir se saturando de determinações) pari passu ao seu desenvolvimento histórico, entre 1920 e 1926. Assim, em 24 de novembro de 1920, nas páginas do jornal socialista Avanti!, o intelectual sardo aponta o fascismo como um fenômeno não somente italiano, que representa a ilegalidade da violência capitalista; em 11 de março de 1921, no periódico L´Ordine Nuovo, afirma que o fascismo nada mais é que a tentativa de resolver os problemas de produção e de troca capitalistas com as armas; em 12 de julho do mesmo ano, ainda em L´Ordine Nuovo, fala da massa dos membros pequeno-burgueses do Partido Socialista que poderão aderir ao fascismo; em um relatório ao Comitê Central do Partido Comunista Italiano, datado de 13-14 de agosto de 1924, indica que o fato característico do fascismo consiste em ter conseguido constituir uma organização de massa da pequena burguesia, fato ocorrido pela primeira vez na história; em 1º de novembro do mesmo ano, outra vez mais em L´Ordine Nuovo, reflete acerca da alternância pendular da burguesia entre democracia e ditadura fascista; em 25 de maio de 1925, em Stato Operaio, percebe a ocupação do Estado italiano (da burocracia do Estado) com indivíduos trazidos das fileiras da pequena-burguesia fascista.

Em outras palavras, o desenvolvimento da percepção gramsciana da “diversidade do fascismo em relação aos tradicionais partidos democráticos” - que fugia a muitos dirigentes comunistas italianos - dá saltos de qualidade após a “marcha sobre Roma”, em 28 de outubro de 1922, e o “delito Matteotti”, em 10 de junho de 1924. No entanto, é interrompido bruscamente pela sua prisão, em 8 de novembro de 1926, uma semana após o acontecimento que levaria o fascismo a enterrar

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definitivamente a democracia na Itália, a saber, o atentado contra Benito Mussolini, em 31 de outubro.

Não seria exagerado afirmar que a discordância gramsciana das teorias do “socialfascismo” e da “classe contra classe” (mais enfática em relação à segunda do que à primeira), na passagem dos anos vinte para os anos trinta, explicitada na sua proposta de “luta por um período intermediário democrático fundado num bloco antifascista”, é fruto de uma rica análise sobre a natureza em desenvolvimento do fenômeno fascista. Tal análise já se encontra esboçada nos seus escritos “pós-crise Matteotti”, onde se diz que “a situação política é democrática” e não de “luta direta pelo poder”.

Este ato de extrema maturidade política não representou um bloqueio da esperança de Gramsci em relação a uma futura revolução proletária na Itália. Para ele, “a crise geral do sistema capitalista não foi interrompida pelo regime fascista [...]. O fascismo apenas retardou a revolução proletária na Itália, não a tornou impossível: pelo contrário, ele contribuiu para alargar e aprofundar o terreno da revolução proletária, que depois do experimento fascista será verdadeiramente popular” (“La crisi italiana”. In: A. Gramsci. La costruzione del Partito comunista).

Filosofia da práxis

O conceito de “práxis”, como agir individual e social, está no centro de toda a filosofia inaugurada por Karl Marx e pelo seu modo de abordar os problemas da produção e da ciência. Nos chamados Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, que Gramsci não teve a possibilidade de conhecer, Marx escrevia: “Assim como a sociedade produz o homem enquanto homem, ela é produzida por ele”. Essa idéia de que a “produção” ou “práxis humana” engloba não apenas o trabalho, mas também todas as atividades que se objetivam em relações sociais, instituições, carecimentos, ciência, arte, etc., atravessa todo o pensamento de Marx e constitui o seu princípio fundamental.

Antonio Labriola desenvolveu este aspecto, afirmando — num de seus ensaios sobre A concepção materialista da história — que o materialismo histórico “parte da práxis, ou seja, do desenvolvimento da operosidade; e, como é teoria do homem que trabalha, considera a própria ciência como um trabalho”. Para Labriola, “todo ato de pensamento é um esforço, ou seja, um novo trabalho”, ao passo que “o trabalho realizado, ou seja, o pensamento produzido, facilita os novos esforços voltados para a produção de um novo pensamento”.

Esta premissa serve para demonstrar que o termo “filosofia da práxis”, do qual fala Gramsci, não é um expediente lingüístico, mas uma concepção que ele assimila como unidade entre teoria e prática. Discutindo sobre a undécima tese de Marx, que propõe mudar o mundo e não mais interpretá-lo, Gramsci escreve nos Cadernos que essa tese “não pode ser interpretada como um gesto de repúdio a qualquer espécie de filosofia”, mas como “enérgica afirmação de uma unidade entre teoria e prática. [...] Deduz-se daí, também, que o caráter da filosofia da práxis é sobretudo o de ser uma concepção de massa”. E, em outro local, repete: “Para a filosofia da práxis, o ser não pode ser separado do pensamento, o homem da natureza, a atividade da matéria, o sujeito do objeto; se essa separação for feita, cai-se numa das muitas formas de religião ou na abstração sem sentido”.

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A unidade de teoria e de prática serve a Gramsci para delinear uma série de conceitos científicos capazes de interpretar o mundo que lhe era contemporâneo (hegemonia, bloco histórico, novo senso comum, conformismo de massa em sua ligação com novas formas de liberdade individuais e coletivas, revolução passiva, etc.).

Aqui, numa formulação geral, iremos nos limitar às seguintes considerações sobre a filosofia da práxis:

1) Nem a filosofia da práxis nem nenhuma ciência a ela ligada nos permitem fazer previsões que tenham caráter determinista. Há um único modo possível de prever: aquele que vê a previsão como um ato prático que implica a formação e a organização de uma vontade coletiva. Desta tese, Gramsci deduz sua crítica a Croce, na medida em que a religião crociana da liberdade não contribui para a criação de resultados previsíveis, já que evita formular um projeto de transformação e uma vontade política correspondente a tal projeto. Essa mesma teoria da “previsão” põe em crise as concepções deterministas típicas do cientificismo da Segunda Internacional, que são também fonte de passividade.

2) A vontade de que fala Gramsci (e, portanto, a práxis) não é algo em estado puro, mas contém os elementos materiais que o próprio homem objetivou. Isso significa, em primeiro lugar, que a filosofia da práxis é, para Gramsci, a consciência plena das contradições da sociedade que lhe era contemporânea, de modo que — como ele diz nos Cadernos — “o próprio filósofo, entendido individualmente ou como todo um grupo social, não só compreende as contradições, mas põe a si mesmo como elemento da contradição, eleva este elemento a princípio de conhecimento e, portanto, de ação”.

Ciências do homem (distintas entre si) e também ciências da natureza, para além da sua independência recíproca, encontram um momento de unidade, ao se tornarem política. Gramsci sintetiza isso nos seguintes termos: “A filosofia da práxis é o ´historicismo absoluto`, a mundanização e terrenalidade absoluta do pensamento, um humanismo absoluto da história”. Para entender esta última afirmação, o leitor deverá recordar a tese acima mencionada sobre a verdade como correspondência a uma realidade objetivada pelo próprio homem.

3) Gramsci define “o homem como uma série de relações ativas (um processo)”, de modo que ele “não entra em relação com a natureza simplesmente pelo fato de ser ele mesmo natureza, mas ativamente, por meio do trabalho e da técnica”. Em outras palavras, todo indivíduo “não só é a síntese das relações existentes, mas também da história dessas relações, ou seja, é o resumo de todo o passado”. Como é possível mudar o mundo se o indivíduo depende de tal modo do seu passado? A resposta de Gramsci é que “o indivíduo pode se associar com todos os que querem a mesma mudança; e, se essa mudança for racional, o indivíduo [...] pode obter uma mudança bem mais radical do que aquela que, à primeira vista, pode parecer possível”.

Concluindo, a filosofia da práxis é, para Gramsci, construção de vontades coletivas correspondentes às necessidades que emergem das forças produtivas objetivadas ou em processo de objetivação, bem como da contradição entre estas forças e o grau de cultura e de civilização expresso pelas relações sociais. Está implícita nela, que aparece como uma concepção filosófica, uma série de ciências da natureza e do homem. Tomadas isoladamente, tais ciências podem ser consideradas como independentes; consideradas como expressão da possível contradição entre atividades criativas e relações comunicativas de tipo social, passam a fazer parte da filosofia da práxis e, desse modo, podem influir sobre a política, isto é, sobre aquelas mudanças que nos fazem entrever um novo modo de viver e níveis superiores de civilização. 

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Frases incendiárias

“Todo comunista deve abominar as poses revolucionárias e as frases superficialmente incendiárias, isto é, deve ser não só um revolucionário mas também um político realista” (Costruzione del partido comunista, p. 67). E, como o irrealismo político conduz à derrota, a frase superficialmente incendiária pode fazer parte de discursos anti-revolucionários.

Guerra de posição e de movimento

O conceito de “guerra de posição” faz parte da teoria da hegemonia e responde à exigência de definição das características históricas novas da luta política no mundo depois da Grande Guerra e da Revolução de Outubro. “A passagem da guerra manobrada à guerra de posição”, afirma Gramsci, surge “como a questão de teoria política mais importante colocada pe o período do pós-guerra e a mais difícil de ser resolvida corretamente.” A “revolução em dois tempos”, ele havia afirmado no final dos anos vinte num célebre artigo do Ordine Nuovo (“Due rivoluzioni”), isto é, a conquista do Estado numa batalha campal definitiva e o empenho da máquina estatal para transformar coercitivamente a sociedade, não pode se constituir no arquétipo da revolução proletária. A Revolução de Outubro, portanto, era considerada a última revolução do século XIX.

A passagem na qual o conceito de “guerra de posição no terreno político” é formulado da maneira mais expressiva faz referência — da mesma forma quando Gramsci enuncia a concepção de hegemonia — à disputa que havia contraposto Lenin (tática da “frente única”) a Trotski (teoria da “revolução permanente”), a respeito dos modos de desenvolver a luta revolucionária depois do “grande ato metafísico” de Outubro.

Parece-me que Ilitch havia compreendido — afirma Gramsci no caderno 7 — que havia ocorrido uma mudança da guerra manobrada, vitoriosamente aplicada no Oriente em 1917, para a guerra de posição, que era a única possível no Ocidente. [...] No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia uma justa relação entre Estado e sociedade civil e, diante dos abalos do Estado, podia-se divisar imediatamente uma robusta estrutura de sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas; isso se podia ver, mais ou menos, de Estado para Estado, mas esta observação exigia um acurado reconhecimento de caráter nacional.

A passagem é densa de referências históricas e de reminiscências teóricas nas quais se pode captar as palavras “hegemonia”, “revolução passiva”, “americanismo”, “intelectuais”. Aqui gostaria de chamar a atenção apenas sobre um ponto.

A distinção entre Oriente e Ocidente retoma um tema que já havia estado no centro da elaboração alcançada nas Teses de Lyon. Ela enfatiza as características da relação entre produção e política na sociedade capitalista desenvolvida e esclarece sobre a impossibilidade de conceber a revolução socialista no Ocidente como um processo “puramente político”. “Nos países de capitalismo avançado — afirmou Gramsci no seu relatório de agosto de 1926 ao Comitê Central —, a classe dominante possui reservas políticas e organizativas que não possuía, por exemplo, na Rússia. Isto significa que também as crises econômicas gravíssimas não têm imediata repercussão no campo político. A política está sempre atrasada e bastante atrasada em relação à economia. O aparelho de

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Estado é muito mais resistente do que se pode imaginar e, com êxito, é capaz de organizar, nos momentos de crise, forças fiéis ao regime muito além do que a profundidade da crise deixaria supor”.

Desenvolvendo a distinção entre Oriente e Ocidente, no caderno 13 (“Breves notas sobre a política de Maquiavel”), Gramsci chega a um enunciado teórico de valor geral a respeito das relações entre política e economia. No célebre § 17, “Relações de força: análise das situações”, à pergunta “se as crises históricas fundamentais são determinadas imediatamente pelas crises econômicas”, ele responde: “Pode-se excluir que, por si mesmas, as crises econômicas imediatas produzam eventos fundamentais; podem apenas criar um terreno mais favorável à difusão de determinados modos de pensar, de pôr e de resolver as questões que envolvem todo o curso subseqüente da vida estatal”.

A importância do conceito de “guerra de posição” se afirma, então, como o ponto de chegada e de máxima generalização do raciocínio. Este modo de desmontar teoricamente o economicismo pode ser considerado o aspecto de maior originalidade da tradição comunista italiana e também a diferença mais evidente em relação às outras correntes do movimento comunista e socialista internacional.  

Hegemonia

O conceito gramsciano de hegemonia se contrapõe, nos Cadernos do cárcere, à idéia de “dominação”. Somente numa fase tosca e primitiva é que se pode pensar numa nova formação econômica e social como dominação de uma parte da sociedade sobre outra. Na realidade, o que uma hegemonia estabelece é um complexo sistema de relações e de mediações, ou seja, uma completa capacidade de direção. Gramsci fornece uma série de exemplos históricos, em particular o da hegemonia dos moderados na França do século XIX ou na Itália. Não haveria organização do poder moderado somente com o uso da força. É um conjunto de atividades culturais e ideológicas — de que são protagonistas os intelectuais — que organiza o consenso e permite o desenvolvimento da direção moderada.

Essa acepção do conceito de hegemonia provém de uma interpretação bem precisa do pensamento de Marx. Gramsci sublinha, em várias ocasiões, que somente uma leitura esquemática pode levar a crer que aquilo que Marx define como superestruturas tenha uma relação de dependência mecânica com as estruturas. Portanto, o fato de que Marx fale das superestruturas como “aparências” deve ser visto como conseqüência da necessidade de divulgação, como uma forma de discurso “metafórico” feito em função de um diálogo e de uma compreensão de massa da nova análise da sociedade. Com a palavra “aparência”, Marx quer indicar — diz Gramsci — a “historicidade” das “superestruturas” ético-políticas, culturais e ideológicas, em oposição às concepções dogmáticas que tendem a considerá-las como absolutas.

Por isso, Gramsci não rejeita a visão proposta por Benedetto Croce sobre a exigência de um estudo da história do ponto de vista ético-político. Mas — e aqui temos o momento da polêmica com Croce — não se pode interpretar a história somente deste ponto de vista: o aspecto ético-político pode explicar, sem dúvida, o processo de afirmação da hegemonia desta ou daquela formação econômico-social, mas não dá conta do conjunto do processo histórico.

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Para Gramsci, o grande mérito de Lenin é precisamente o de ter compreendido, contra as degenerescências e simplificações economicistas e deterministas, o extraordinário e decisivo valor da luta cultural e ideológica para a afirmação das classes subalternas e de um novo sistema econômico-social.

Contudo, a idéia da hegemonia em Lenin — segundo a interpretação de Gramsci — não deve ser entendida como afirmação de uma dominação, mas como afirmação de uma capacidade superior de interpretação da história e de solução dos problemas que ela coloca.

É precisamente a idéia de hegemonia assim entendida que distingue radicalmente Gramsci de toda forma de mecanicismo na interpretação do decurso histórico e de qualquer visão redutiva ou autoritária da função das velhas ou novas classes dirigentes. Se estas perdem a hegemonia cultural, ideológica ou moral, deixam de ser dirigentes e passam a exercer uma dominação destinada à decadência e ao colapso. Deste modo, Gramsci afasta-se de qualquer concepção de tipo tirânico da expressão “ditadura do proletariado”.

O conceito de hegemonia em Gramsci — e a peculiar leitura de Marx e de Lenin que tal conceito implica — distinguem-se radicalmente das interpretações destes autores que então se afirmavam na Terceira Internacional. Tem sido freqüentemente apresentada uma leitura distorcida do conceito de hegemonia, com finalidades de polêmica política. O conceito de hegemonia foi freqüentemente combatido como se pretendesse expressar a idéia de uma ditadura de partido. Mas essa visão não corresponde de nenhum modo à tese gramsciana: ao contrário, nega e contradiz esta tese.

História ético-política

A história ético-política “é uma hipóstase arbitrária e mecânica do momento da ‘hegemonia’” (Q, p. 1.222.). Mas isto não significa que não exista uma história ético-política. Portanto: a história ético-política existe não como hipóstase, mas como função histórica das relações materiais. Pode-se também dizer que a história econômico-social eleva-se necessariamente até o nível ético-político e que o materialismo histórico é, precisamente, a tentativa de explicar a necessidade histórica da passagem dos níveis econômico-sociais para os ético-políticos.

Ideologia e fanatismo

Gramsci conhece bem todas as acepções negativas do conceito de “ideologia”: falsa consciência, construção mental arbitrária, puro reflexo da estrutura econômica, etc. Mas, numa curta nota de um dos primeirosCadernos, uma vez analisado “o sentido pejorativo da palavra”, lembra que, “mais ou menos” – ele não dispõe do texto para conferir – Marx usara expressões do tipo: “quando esta maneira de conceber tiver a força das crenças populares, etc.” A força das crenças populares.

Gramsci é um estudioso da “crença” fundamental dotada de “força”: a religião. Ele escreve: “A força das religiões, e notadamente da Igreja Católica, consistiu e consiste no seguinte: elas sentem intensamente a necessidade de união doutrinária de toda a massa ‘religiosa’ e lutam para que os estratos intelectualmente superiores não se destaquem dos inferiores”. A ideologia, pois, é um aspecto de massa das concepções filosóficas. A filosofia tem uma dimensão orgânica, mostra-se com características de universalidade, expressa a visão “alta” de uma classe, de um bloco histórico,

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de uma hegemonia. A ideologia é a forma pela qual ela se torna ação concreta, transformação da realidade, força real. Aliás, é uma autêntica “fase intermediária entre a filosofia e a prática cotidiana”.

Gramsci é um marxista inimigo do economicismo. Rechaça a vulgata segundo a qual é a “estrutura” que “determina” diretamente. Estuda a complexidade da sociedade, a articulação das funções, os elementos que interagem e as diversas combinações em que se apresentam, a sobrevivência de uma fase histórica em outra ou o “jogo” dos deslocamentos ideológicos de uma classe para outra, de uma área para outra, de uma nação para outra. Num trecho dos Cadernos, dá o exemplo do “direito natural”, que, “se está morto para as classes cultas, é conservado pela religião católica e está mais vivo entre povo do que se supõe”.

Estruturas materiais e estruturas ideais se interpenetram. E cada uma delas se dispõe em camadas diversas. Existem os “grandes sistemas” (e, na Itália, antes de tudo Gramsci se via diante daquele de Benedetto Croce) e as idéias difusas que vão compor o “senso comum”. A batalha hegemônica, pois, obriga a um esforço tanto no nível da filosofia quanto no nível da ideologia. Isto implica a construção de um “sistema” mais “alto”, mais compreensivo de realidade e de ciência, e, ao mesmo tempo, a penetração de massa, dado que uma “nova maneira de conceber” pode assumir “força material”.

Mas, na batalha hegemônica, o que é dominante: a política, a economiaou a filosofia? 

Se estas três atividades são os elementos constitutivos de uma mesma concepção do mundo, deve existir necessariamente, em seus princípios teóricos, convertibilidade de uma na outra, tradução recíproca na linguagem específica própria de cada elemento constitutivo: um está implícito no outro e todos, em conjunto, formam um círculo homogêneo.

Gramsci introduz aqui um tema que lhe é muito caro: o tema datradutibilidade das linguagens. Veremos mais adiante que relação mantém com a questão do “fanatismo”.

Nos anos 1920, Gramsci não subestimara a função do utopismo, da crença religiosa e mitológica, do fanatismo. Tanto na continuidade histórica das ideologias, quanto – do ponto de vista das classes subalternas em combate – nos períodos de recuo e derrota política (e este era o momento em que lhe cabia viver: o fascismo). De todo modo, o “fanatismo” lhe aparece como um elemento de subalternidade:

Mas, para as grandes massas da população governada e dirigida, a filosofia ou religião do grupo dirigente e dos seus intelectuais apresenta-se sempre como fanatismo e superstição, como motivo ideológico próprio de uma massa servil.

Assim, se estas massas querem se libertar do seu estado servil, devem se libertar do fanatismo. Como?

Compreender e valorizar com realismo a posição e as razões do adversário (e o adversário é, em alguns casos, todo o pensamento passado) significa justamente estar liberto da prisão das ideologias (no sentido pejorativo, de cego fanatismo ideológico), isto é, significa colocar-se em um ponto de vista “crítico”, o único fecundo na pesquisa científica.

Mas é o único fecundo também na luta política, social, de classe. Para Gramsci, a questão aqui se torna candente. Na URSS, a revolução socialista tomara a forma do stalinismo. O marxismo

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europeu corrente e dominante no movimento operário é um marxismo dogmático, ou seja, carregado de peso religioso e atitudes fanáticas. Ele percebe que o o “filósofo da práxis” (o marxista), que vive no terreno das contradições históricas e vê em perspectiva um mundo sem contradições, corre imediatamente o risco de criar uma utopia. Percebe também o risco de uma outra contradição: uma concepção historicista, que mostra as origens práticas de toda “verdade” que se crê eterna, bem como seu valor provisório, não pode negar que isso seja válido também para si mesma. Mas, deste modo, não se abalam “aquelas convicções que são necessárias para a ação”?

Mas, definitivamente, Gramsci vê o perigo maior neste fato:

[...] que a própria filosofia da práxis tende a se transformar numa ideologia no sentido pejorativo, isto é, num sistema dogmático de verdades absolutas e eternas.

É um juízo nítido, uma previsão clara. O dogmatismo (“traduzido”, naturalmente, num sistema político e econômico) marcou toda uma época histórica do marxismo. Gramsci começou a combatê-lo do fundo de um cárcere fascista. Só muitas décadas depois é que tal crítica poderia se refletir num movimento político de alcance mundial.

Ignorância

“Os burgueses podem ser até ignorantes na grande maioria: o mundo burguês vai adiante, apesar disso. Ele está estruturado de tal modo, que basta haver uma minoria de intelectuais, de cientistas, de estudiosos, para que os negócios sigam em frente. A ignorância também é um privilégio da burguesia, tal como o é o dolce far niente e a preguiça mental [...]. Os burgueses também podem ser ignorantes. Os proletários, não. Para os proletários, não ser ignorante é um dever” (A. Gramsci. Scritti giovanili. Turim: Einaudi, 1958, p. 72-3).

Indivíduo

O indivíduo “é também o conjunto das suas condições de vida” (CC, v. 1, p. 406). Também, não apenas. Porque o indivíduo, ainda que socialmente determinado, é, precisamente, o indivíduo. Deve-se ser bastante firme neste ponto!

Intelectuais

Karl Mannheim, no seu clássico Ideologia e utopia, restringe o conceito de intelectual aos pensadores e profissionais da ideologia, acreditando que a intelectualidade constitui uma camada social independente. Outro sociólogo eminente e não menos radical, Wright Mills, incorpora os intelectuais à nova classe média. Mills insere os intelectuais na nova classe média, ou seja, o conjunto dos colarinhos brancos: gerentes, profissionais liberais assalariados, comerciários, bancários, empregados de escritório, supervisores da produção, etc. Os intelectuais formam o grupo mais heterogêneo dessa classe média, como pessoas que produzem símbolos e formas de consciência: os professores, os argumentistas de Hollywood, os jornalistas, os escritores de novelas de rádio e TV, o ghost writer, o acadêmico, etc.

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Apesar de o conceito de intelectual de Wright Mills ser diferente do gramsciano, bem como seu conceito de classe média ser estranho à abordagem especificamente marxista, sua teoria serve para iluminar outra região do espaço social: o status, o prestígio e a alienação do intelectual diante da opinião pública (Wright Mills, C. A nova classe média. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 86).

Para Gramsci, intelectual é todo homem, mas só alguns assumem a função intelectual. O intelectual, no sentido gramsciano, é todo aquele que cumpre uma função organizadora na sociedade e é elaborado por uma classe em seu desenvolvimento histórico (desde um tecnólogo ou um administrador de empresas até um dirigente sindical ou partidário), sem esquecer os intelectuais tradicionais, como os membros do clero e da academia (instituições que precedem o modo capitalista de produção).

Por intelectuais se deve entender não só as camadas comumente entendidas com esta denominação, mas em geral toda a massa social que exerce funções organizativas em sentido lato, seja no campo da produção, seja no campo da cultura, seja no campo administrativo-político (QC, p. 37).

Os intelectuais tradicionais, por seu turno, podem tanto se vincular às classes dominadas quanto às dominantes, adquirindo uma autonomia em relação aos interesses imediatos das classes sociais. Assim, o intelectual é tanto o acadêmico, o jornalista, o padre, o cineasta, o ator, o locutor de rádio, o escritor profissional, quanto o intelectual coletivo (o partido e o sindicato, cujos documentos e resoluções são produzidos por dirigentes profissionalizados na política, geralmente a várias mãos, depois discutidos em grupos menores, debatidos em grandes plenárias, aprovados com inúmeras emendas, até ser uma elaboração inteiramente coletiva).

Intelectuais (2)

A questão dos intelectuais tem um destaque fundamental tanto na teoria política de Gramsci quanto na sua análise da história da Itália. Para ele, o intelectual não é só o produtor de cultura, isto é, o artista, o escritor, o cientista, o filósofo, etc. Gramsci, de fato, é um dos primeiros estudiosos da sociedade contemporânea que tem uma visão bem mais ampla das funções e do trabalho intelectual: enquanto observa com interesse o papel que, particularmente numa realidade como a italiana, exerceram também no passado as categorias intelectuais (por exemplo, o clero), concentra sua atenção no fato de que, com o desenvolvimento do capitalismo moderno, com o advento da sociedade de massas, com o entrelaçamento crescente entre Estado e sociedade civil, estão fadadas a crescer enormemente a importância e a extensão das atividades que podem ser ligadas a uma profissão intelectual.

Numa passagem do célebre ensaio sobre A questão meridional, Gramsci sublinha de modo muito nítido a mudança na posição e na função dos intelectuais, que acontece com o crescimento do capitalismo e o desenvolvimento de uma sociedade industrializada:

Em todos os países, o estrato dos intelectuais foi radicalmente modificado pelo desenvolvimento do capitalismo.  O velho tipo de intelectual era o elemento organizador de uma sociedade de base predominantemente camponesa e artesã; para organizar o Estado e o comércio, a classe dominante treinava um tipo específico de intelectual. A indústria introduziu um novo tipo de intelectual: o organizador técnico, o especialista da ciência aplicada. Nas sociedades em que as forças econômicas se desenvolveram em sentido capitalista, até absorver a maior parte da atividade

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nacional, predominou este segundo tipo de intelectual, com todas as suas características de ordem e disciplina intelectual. Ao contrário, nos países em que a agricultura exerce ainda um papel muito importante ou mesmo predominante, continua a prevalecer o velho tipo, que fornece a maior parte dos funcionários estatais; mesmo na esfera local, na vila e na cidadezinha rural, este tipo exerce a função de intermediário entre o camponês e a administração em geral (Escritos políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, v. 2, p. 424).

Mas, tanto num quanto noutro caso, quer se trate dos intelectuais técnicos e científicos diretamente inseridos na produção ou daqueles mais ligados às atividades tradicionais ou às funções administrativas do Estado, para Gramsci a função destes estratos é decisiva na relação entre as classes fundamentais, isto é, a burguesia, o proletariado, os camponeses. A questão dos intelectuais se relaciona assim estreitamente, na sua teoria política, com a da hegemonia e do consenso.

Várias vezes, nas Cartas e nos Cadernos, Gramsci sublinha, com efeito, a distinção entre uma sociedade política (ou um partido, uma classe) que exerça o domínio somente através do aparelho coercivo do Estado, e uma sociedade política que, agregando os intelectuais e as organizações da sociedade civil, seja capaz de exercer o poder através do consenso. Só se demonstrar capacidade de conquistar a adesão não só dos seus “intelectuais orgânicos” (ou seja, aqueles que são a expressão direta de uma determinada classe e dos seus interesses), mas de camadas muito mais amplas de trabalhadores intelectuais, é que uma classe de governo demonstra ser não só “dominante” mas “dirigente”; isto é, desempenha um papel “realmente progressista, que faz avançar realmente toda a sociedade”.

É evidente a importância desta análise da questão dos intelectuais, seja com o fim de lançar as bases de uma específica reflexão sobre os problemas autônomos relativos à vida e à organização da cultura (problemas aos quais a obra de Gramsci, de fato, dedica o máximo relevo), seja com o fim de sublinhar a necessidade de buscar e promover (ainda mais em sociedades complexas como as do Ocidente) um esquema de alianças muito mais amplo e articulado do que aquele que se realizou, no Outubro soviético, em torno dos sovietes de operários, camponeses e soldados.

Não casualmente, este é um dos aspectos da reflexão de Gramsci que teve o mais amplo desenvolvimento não só na subseqüente elaboração dos comunistas italianos mas no debate e na investigação de toda a esquerda ocidental, tanto na Europa como nas Américas.

Jacobinismo

Em vários contextos dos escritos gramscianos, “jacobino” é sinônimo de político sectário e elitista em sentido negativo. Mas, nos Cadernos, existe também, de fato, um “resgate” do jacobinismo, na medida em que tende, embora autoritariamente, a uma ampla mobilização nacional e popular.

Para entender este “jacobinismo”, devemos nos referir ao conceito de “hegemonia”, que, por sua vez, não pode ser compreendido se for restringido ao seu significado político (deixando de lado o “filosófico”) e, sobretudo, se lhe for atribuído um significado político uniforme em toda a reflexão de Gramsci. Nas notas sobre a Questão meridional, a hegemonia era, essencialmente, uma tarefa político-estratégica do proletariado em luta pelo poder e interessado em se apoiar na aliança com as camadas camponesas. Nos primeiros cadernos do cárcere, a hegemonia política e cultural é tarefa histórica das classes dirigentes ou potencialmente dirigentes, em geral. Por fim, nos cadernos 8 e 9,

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ela se enquadra em “toda uma concepção específica das superestruturas” e comporta “uma ampliação do conceito de Estado” (Buci-Glucksmann), da qual se torna uma função típica. A hegemonia de uma classe ou de um grupo social, como função dirigente sustentada pelo consenso, que ao mesmo tempo integra e elimina a simples função de domínio, é substituída gradualmente pela hegemonia como dominação da forma superestrutural superior, “ético-política”, sobre a “econômico-corporativa”.

Assim, o jacobinismo próprio da concepção e da ação leninianas, que atribuíam uma função-guia aos revolucionários de vanguarda, é reinterpretado e deslocado por Gramsci para um outro lugar, ou seja, para o âmbito mais geral e impessoal das formas ou das categorias analíticas da práxis histórica: para o âmbito no qual se instauram as tarefas hegemônicas da nova filosofia, ao mudar o senso comum (reforma intelectual), e, mais ainda, do novo Estado, ao renovar a sociedade civil (reforma moral).

Por causa do caráter “sistemático” que ele entrevê no nível estatal, em comparação com os impulsos particularistas dos interesses econômico-corporativos, Gramsci atribui um significado positivo até ao termo “totalitário”, considerando-o sinônimo de “autônomo” e “coerente”. Mas, a seu juízo, o Estado “totalitário” deve ser capaz de envolver as massas populares num amplo esforço reformador. Por isso, o uso gramsciano daquele termo se distancia nitidamente do uso atualista-gentiliano ou ativista-reacionário e, em vez disso, liga-se aos valores progressistas da tradição democrático-jacobina.

Para concluir: na versão integrada, pós-leniniana, do “jacobinismo” proposta por Gramsci, é cada vez menos relevante indicar o sujeito social (a classe ou o partido) que exerce a hegemonia ou a coerção, bem como aquele que sofre uma ou outra, e é cada vez mais significativo localizar olugar histórico-categorial em que elas são exercidas ou sofridas. Quando Estado e sociedade civil, que são precisamente os lugares da hegemonia e/ou da coerção, se diferenciam e ao mesmo tempo se encadeiam mutuamente, tal como acontece no Ocidente europeu mais evoluído, intervém uma visível troca de papéis: a sociedade civil, de arena dos interesses econômico-corporativos e, portanto, das relações de forçaentre as classes, se transforma em terreno no qual a disputa da hegemonia é travada pelo Estado. O Estado, por sua vez, precisamente porque promotor e fiador da função de hegemonia, chama para si (subtraindo-o à esfera conflituosa, econômico-corporativa, das partes contrapostas na sociedade civil) o “monopólio” da força, que por isso se torna, afirmava Weber, “força legítima”.

Em termos gramscianos, diremos: “o jacobinismo (no significado integral que esta noção teve historicamente e deve ter conceitualmente)” contribui para definir “a vontade coletiva e a vontade política em geral, no sentido moderno” (QC, p. 1.559).

Jornalismo

Ao longo de todos os Cadernos do cárcere, a partir das primeiras notas (que remontam a 1929), desenrola-se o fio da reflexão de Antonio Gramsci sobre o jornalismo. Não é um capítulo de sociologia das profissões, embora o relevo sociológico da análise gramsciana seja bastante evidente.

Gramsci vê-se diante de uma sociedade na qual começam a prevalecer, entre crises e mutações no decorrer dos cruciais anos 1930, fatores de coesão e, ainda que parcialmente, impulsos para a

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modernização. O objetivo da reforma intelectual e moral se desloca para um terreno mais avançado, numa perspectiva hegemônica que se torna progressivamente mais complexa por causa da intensificação dos processos de formação dos aparelhos industriais, de lenta expansão dos mercados, de sensível modificação demográfica, de codificação autoritária das instituições de uma sociedade de massas.

Este é o contexto no qual toma forma a reflexão sobre o jornalismo. O que, sobretudo, interessa a Antonio Gramsci? Não só definir os instrumentos (jornais e revistas) mais adequados à conquista de um consenso, à difusão de idéias entre as grandes massas, a uma espécie de educação da “nova Itália”, mas trazer à consciência difusa (fazendo disso o evento gerador de uma nova opinião pública) a novidade de que está em curso uma grande transformação histórica e cultural, de que a história nacional está prestes a ter novos protagonistas.

O quesito fundamental a que é preciso responder diz respeito, então, à natureza, ao papel, às características e à eficácia dos processos de comunicação que devem ser mobilizados; em suma, a definição de uma estratégia de comunicação. Isto equivale, desde logo, ao reconhecimento e à aceitação de que o terreno da comunicação, em primeiro lugar na figura histórica do jornal, será um terreno nevrálgico do conflito moderno e também uma dimensão original da democracia, muito além da percepção própria da velha cultura socialista. Portanto, não se trata apenas de reconhecer a dimensão estratégica dos processos comunicativos (o jornalismo, na reflexão gramsciana), da sua organização, da sua interação com o conjunto dos poderes, mas de projetar as formas de uma nova cultura, de um novo espírito público, no quadro do grande processo histórico que anuncia, no Ocidente, a inversão da relação governantes-governados.

Eis por que Gramsci, quando reorganiza as notas sobre jornalismo disseminadas nos Cadernos e que, na edição temática preferida por Togliatti estão reunidas no volume Os intelectuais e a organização da cultura (veja-se, em particular, o caderno 24, de 1934, em CC, v. 2, p. 197-213; e vale a pena observar que do mesmo ano é a reelaboração das notas sobre Americanismo e fordismo contidas no caderno 22, em CC, v. 4, p. 241-82), o faz nos termos de um verdadeiro programa político-editorial. Este é o sentido da fórmula que adota, ou seja, a fórmula do “jornalismo integral”.

Em síntese, o que quer dizer jornalismo integral? É um jornalismo — responde Gramsci — “que não somente pretende satisfazer todas as necessidades (de uma certa categoria) do seu público, mas pretende também criar e desenvolver estas necessidades e, conseqüentemente, em certo sentido, gerar seu público e ampliar progressivamente sua área”.

Por um lado, pois, ele produz, organiza e difunde consciência e cultura, concorre para a formação de uma sociedade civil mais intensa e dinâmica, maleável à transformação; por outro lado, parte com realismo e rigor de um perfil do próprio público submetido ao escrutínio da experiência.

A Gramsci interessa o leitor em toda a sua concretude e densidade de determinações histórico-políticas e culturais, de motivações éticas, como indivíduo e como expoente de uma associação humana, como depositário de recursos intelectuais latentes e como “elemento econômico”, ou seja, precisamente como adquirente de uma mercadoria, de um produto.

Mas vejamos o “jornalismo integral” em ação:

É dever da atividade jornalística (em suas várias manifestações) seguir e controlar todos os novos movimentos e centros intelectuais que existem e se formam no país.Todos.

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É uma indicação peremptória e exemplar. Ela permite delinear ainda mais completamente as características do empreendimento gramsciano: um programa de pesquisa que visa a definir a dimensão específica e as forças motoras de uma reforma intelectual e moral, de uma passagem complexa, mas já entrevista, na direção da “sociedade regulada”.

Modernidade e utopia se entrelaçam nesta formulação que tende a se propor como base ou premissa de uma autêntica constelação (ou sistema) de iniciativas editoriais. Daí nasce uma série de indicações sobre os tipos de revista, sobre as orientações das redações, sobre os “gêneros” jornalísticos, sobre as características do trabalho intelectual necessário para promover os diferentes modelos que, por um lado, constituem um exercício de rigoroso contraponto ao diletantismo e ao transformismo de grande parte das revistas, do jornalismo, do costume intelectual da primeira terça parte do século XX, inclusive uma boa dose da tradição socialista; e que, por outro, propõem um nexo — feito de contínuas remissões recíprocas — entre empreendimento político e empreendimento jornalístico, duas ordens distintas e entrelaçadas de organização do intelecto coletivo próprio das forças emancipadoras.

Na base desta proposta, existe uma extraordinária experiência que vai da estréia gramsciana no Grido del Popolo até aquele paradigma do grande jornalismo político, que é L’Ordine Nuovo, e a fundação de L’Unità. Como pano de fundo, há o objetivo da “elaboração nacional unitária de uma consciência coletiva”, ou seja, a formação de uma consciência política nacional e moderna, tarefa que se propôs o movimento operário. Fora destes processos históricos — adverte Gramsci —, os grupos intelectuais “tendem ou a se tornarem igrejinhas de ‘profetas desarmados’, ou a se cindirem de acordo com os movimentos inorgânicos e caóticos que se verificam entre os diversos grupos e camadas de leitores”.

Lenin

Grande é a admiração de Gramsci por Lenin. Em Lenin, ele vê o marxista herético que faz “a revolução contra O capital”. Poderíamos dizer que Gramsci é o leninista herético, que faz a revolução contra O Estado e a revolução? 

Machismo

Afirmando que “o ´machismo` só num certo sentido pode ser comparado a um domínio de classe” (QC, p. 302), Gramsci corrigiu o conhecido juízo de Engels, segundo o qual, ao contrário, o homem domina a mulher como o capitalista domina o proletário.

Método experimental

“A afirmação do método experimental [...] separa verdadeiramente dois mundos da história e inicia a dissolução da teologia e da metafísica e o nascimento do pensamento moderno” (Q, 475). Por isso, pouco ou nada se compreende da polêmica de certos pensadores laicos e de certos marxistas que, ao método da ciência experimental, preferem o método especulativo, às vezes apresentado sob roupagem dialética.

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Nacional-popular

Literatura nacional-popular é, para Gramsci, a que consegue satisfazer o gosto estético não só de elites restritas mas do maior número de leitores, operando uma mediação ativa entre as exigências de leitura mais qualificada e as demandas, mais elementares mas não menos autênticas, das camadas subalternas. O escritor, como membro da categoria dos intelectuais, promove uma unificação do público, entendida como ampliação da área de consenso usufruída pela concepção da arte e, portanto, da vida, cujo portador histórico é a classe no poder.

Nesta capacidade de interpretar pessoalmente, com suas criações expressivas, um sistema de valores destinado a expandir-se por todos os níveis da coletividade, o literato dá a medida da sua relação orgânica com uma classe dirigente, por sua vez capaz de se tornar intérprete de estados de espírito e expectativas difundidas em toda a coletividade: isto é, de exercer não um “domínio”, baseado apenas na força repressiva dos aparelhos de governo, mas uma “hegemonia” que se explicite numa influência geral indireta sobre as várias manifestações da sociedade civil.

A definição deste modelo é sustentada por exemplos históricos elevadíssimos: os trágicos gregos, Shakespeare, os grandes romancistas do século XIX, como Tolstoi e Dostoievski. Projetado num horizonte tão amplo, o conceito de nacional-popular serve a Gramsci, antes de tudo, para submeter a uma revisão geral a tradição cultural italiana, ressaltando seus dois vícios opostos e complementares: o provincianismo estreito, típico daquele a quem chama de “italiano mesquinho”, com sua tacanhez de pontos de vista e falta de rigor mental; e o cosmopolitismo, ou seja, a atitude do literato que se sente alheio às contingências práticas da sua gente e do seu país e que, embora se proclame sacerdote desinteressado do Belo, está sempre disposto a colocar sua arte a serviço de qualquer senhor.

Ambos os vícios remetem a um dado de fundo na história da Itália moderna: a não formação de uma burguesia digna do nome, capaz de criar uma camada intelectual dotada do dinamismo necessário para ligar-se à mentalidade e às expectativas da população e, ao mesmo tempo, ressignificá-las, levando-as àquele nível de universalidade que, para Gramsci, é o nível nacional. Aqui, com efeito, uma determinada coletividade toma consciência de si e das próprias contradições, alimentando um cotejo com as outras experiências de civilização presentes na cena internacional.

Aplicada às vicissitudes da cultura italiana, no entanto, esta formulação conduz, concretamente, a resultados sempre iluminadores mas um tanto unilaterais, quando não anti-históricos: vale a pena destacar isso, em contraste com as freqüentes acusações de relativismo historicista dirigidas ao gramscismo. Os literatos italianos passados e presentes parecem quase submetidos a um processo, que lhes imputa como culpa o que não foram nem souberam fazer. A questão é que, para Gramsci, o conceito de nacional-popular interessava sobretudo como instrumento operativo para suscitar uma renovação profunda da nossa literatura, ampliando seus recursos e fortalecendo seu fôlego através de uma imersão saudável na realidade social do mundo moderno. Nesta linha, ele podia indicar como precursor um expoente genial da burguesia iluminada oitocentista, Francesco De Sanctis. Mas a premissa decisiva era constituída por uma mudança das forças históricas protagonistas: o proletariado daria prova da sua maturidade revolucionária ao promover, também, um renascimento literário, capaz de derrubar a barreira secular entre o corporativismo dos doutos e o atraso da plebe, afastada da estufa em que a classe dirigente cultivava seus ideais estéticos.

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Naturalmente, Gramsci sabia bem que uma nova arte não nasce por decreto: o que era preciso realizar eram as condições culturais oportunas para que assomasse à cena uma fornada de escritores nutridos de uma consciência nova do fato artístico. Por outra parte, para Gramsci cada escritor tende a entrar em diálogo com um público social e culturalmente determinado. Isto implica a necessidade de acertar as contas com o condicionamento objetivo representado pela configuração particular do gosto, das atitudes críticas, das pulsões fantásticas a que aqueles leitores se ligam. O processo de elaboração artística consiste em inverter tal condicionamento numa autodisciplina responsavelmente assumida pelo escritor e justamente por isto capaz de um efeito libertador sobre seus interlocutores, oferecendo-lhes certamente experiências inéditas mas cuja sugestão estejam em condições de compreender.

Este é o ponto mais avançado do pensamento gramsciano sobre os problemas literários. Com efeito, o tema da relação entre arte e público, literatura e leitura assumiu um destaque cada vez maior no horizonte cultural europeu dos últimos decênios, de Sartre a Mukarovski, de Auerbach a Jauss. No plano histórico, é naturalmente discutível a utilidade atual do conceito de nacional-popular para fins de esforço militante na literatura de hoje, num contexto de época tão mudado. Mas, no plano teórico e institucional, as indicações de método fornecidas por Gramsci mantêm uma vitalidade que o tempo transcorrido permite apreciar hoje melhor do que antes.

Otimismo e pessimismo

A primeira metade do século XX está repleta de ativismo, tanto na teoria quanto na prática: pensa-se difusamente que agir signifique conhecer e mesmo que a ação deva substituir o conhecimento: por isso, todos se dizem “revolucionários”, dos anarquistas aos fascistas. Este primado da ação derivava de duas matrizes: o mito do progresso alimentado pelo positivismo e a carga negativa acumulada nos povos europeus contra os velhos regimes oligárquicos. Daí resultava uma mistura singular, feita de irracionalismo e de entusiasmo, de niilismo agressivo em relação ao passado e de autoprojeção irrefletida para o futuro. Os mitos tecnicistas do positivismo se misturavam com a última vaga do romantismo. Só as terríveis experiências de duas guerras mundiais encaminhariam a cura. A mudança exigirá um projeto.

Gramsci condensa sua proposta na célebre frase: “pessimismo da inteligência, otimismo da vontade”. Ela, mais do que um aforismo, é a tentativa de conjugar de modo novo razão e vontade, criticismo coerente e capacidade de incidir nos processos reais do mundo. Em primeiro lugar, Gramsci busca concentrar a atenção no elo que reúne passado e futuro, isto é, no presente. Rejeita, tanto na teoria quanto na prática, o estilo de “sonhar de olhos abertos e de fantasiar”, que é um estilo altamente consolatório. Para tal estilo, “tudo é fácil. Pode-se tudo aquilo que se quer e se quer toda uma série de coisas que não se possui no presente. No fundo, é o presente invertido que se projeta no futuro. Tudo o que é reprimido se desencadeia. É preciso, ao contrário, dirigir violentamente a atenção para o presente assim como é, se se quer transformá-lo”. Mas o presente também é, precisamente, o passado tal como se cristalizou seja nas relações e nas instituições sociais, seja na psicologia dos indivíduos. Daí a necessidade, para quem quer que queira mudar o presente, de estudar o passado. 

Este estudo ilumina as raízes do presente, sua complexidade e sua “resistência”, e assinala, por isso, a dificuldade da tarefa de transformá-lo. De certo modo, a vontade de mudar escapa ao indivíduo e, por assim dizer, objetiva-se e racionaliza-se identificando os processos históricos que devem ser

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mudados para que o presente mude e para que os indivíduos mudem. Este é o momento do “pessimismo da razão”, a qual não simplifica, mas, pelo contrário, complica a ação, mostrando a espessura do problema a ser resolvido.

No entanto, precisamente esta reflexão crítica acentua – deve-se presumir – a necessidade da mudança e multiplica assim não só as motivações teóricas mas também os impulsos morais e o interesse na mudança. Equivoca-se a ciência política – diz Gramsci – quando abstrai o elemento vontade do fim a que se aplica uma vontade determinada. Enquanto a exortação abstrata do general ao soldado redunda em retórica, a percepção racional do fim a ser alcançado reforça e tensiona a vontade. Daí a aversão de Gramsci ao “cadornismo” e, em geral, a toda técnica pura de comando, e daí a importância que atribui à cultura como capacidade de compreender os fins e, assim, de concentrar as energias sobre os meios capazes de obtê-los. Neste quadro, o otimismo muitas vezes se revela apenas “um modo de defender a preguiça, as próprias irresponsabilidades, a vontade não fazer nada”. Compreende-se que “é também uma forma de fatalismo, de mecanicismo”. O pessimismo, ao contrário, responsabiliza.

Contra os modelos retóricos, tardo-românticos do herói-aventureiro, do chefe onisciente, da ação como desafio entusiástico, imprudente e bizarro, Gramsci propõe um ideal bastante diferente: “É necessário criar homens sóbrios, pacientes, que não se desesperem diante dos piores horrores e não se exaltem em face de qualquer tolice”. Isto também preveniria, em política, o perigo oposto do moralismo isolacionista: “Os moralizadores – escreve Gramsci – caem no mais tolo pessimismo, já que suas prédicas deixam as coisas como estão”. Só a explicação racional dos processos pode produzir uma ação incisiva, uma vontade inflexível. Isto vale tanto para a política quanto para a ética de cada um. E vale, em geral, para o próprio destino da civilização. Escreve Gramsci: “Devemos salvar o Ocidente integral; todo o conhecimento e toda a ação”. A cultura, de fato, é mediação articulada de conhecimento e de ação.

Nos anos 1930, pois, Gramsci submete a um atento controle crítico dois temas essenciais da civilização moderna: o racionalismo herdado do iluminismo e o voluntarismo herdado do romantismo. Do primeiro, elimina o elemento cético e implicitamente dogmático, aristocrático, estetizante. Do segundo, elimina o elemento irrefletido, individualista, desordenado. Assim, Gramsci formula problemas novos, relativos à fundação de uma ciência política que se identifique com a ciência da sociedade, bem como de uma ética da responsabilidade socialmente enraizada. Estamos, de fato, na véspera da sociedade de massas, na qual a razão é chamada a explicar complexas conexões humanas e na qual grandes sentimentos só podem nascer da profundidade de interesses vitais e difusos. Estamos numa época de grandes movimentos de massas e do sufrágio universal: é preciso estimular tanto um crescimento geral do conhecimento social quanto da nossa responsabilidade política comum.

Partido como “moderno Príncipe”

O Príncipe de Maquiavel não é visto por Gramsci apenas como primeira expressão completa da ciência da política. Ele sublinha, naturalmente, a função original de Maquiavel: aquele que, em primeiro lugar, separa a análise da política daquela da religião e da moral e se esforça por especificar as leis universais e gerais da obra de todos os grandes personagens que fizeram política. Mas Gramsci também sublinha que oPríncipe deve ser lido não só como um tratado de ciência da política (ainda que como o tratado fundador), mas também como um texto político historicamente

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concreto, voltado — segundo a intenção do autor — para um objetivo concreto: ou seja, o de interpelar a “classe revolucionária da época, o ‘povo’ e a ‘nação’ italiana, a democracia urbana que gera a partir de si os Savonarola e os Pier Soderini [...]” (CC, v. 3, p. 58). Um texto, pois, de “caráter essencialmente revolucionário”, tal como a “filosofia da práxis”, também destinada a falar à nova classe surgida no interior das novas relações de produção para orientar e guiar seus esforços.

Estes esforços não poderiam ser coroados por nenhum resultado se um “moderno Príncipe” (como nova teoria da política) não fosse escrito, e um “moderno Príncipe” (como ator da história) não fosse constituído nem tomasse seu lugar na realidade concreta do tempo presente: um “moderno Príncipe”, que só pode ser o novo sujeito coletivo já historicamente afirmado, ou seja, o partido político.

A teoria a ser escrita deve tratar do próprio nascimento e da possibilidade, a partir de um reexame histórico que vá às raízes das vicissitudes nacionais, da constituição de uma “vontade coletiva” (a vontade entendida como “consciência operosa da necessidade histórica, como protagonista de um drama histórico real e efetivo”), bem como das razões dos seus fracassos, das condições da sua possível afirmação no embate concreto entre as classes. E, desta teoria do “moderno Príncipe”, a segunda parte deverá tratar da “questão de uma reforma intelectual e moral”, de que o novo protagonista da história deve se tornar o protagonista (CC, v. 3, p. 18).

Assim, o partido cujo perfil Gramsci delineia tem uma tarefa altíssima, política e moralmente. Daí deriva uma concepção que tende a fazer do “moderno Príncipe” um sujeito que pode propor-se como absoluto: “O moderno Príncipe, desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, uma vez que seu desenvolvimento significa de fato que todo ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, somente na medida em que tem como ponto de referência o próprio moderno Príncipe e serve ou para aumentar seu poder ou para opor-se a ele” (CC, v. 3, p. 19).

Esta posição de Gramsci não pode ser separada do contexto histórico em que ele vive e luta, estando no fundo de um cárcere, depois de uma dramática derrota do movimento operário e da democracia. Sua reflexão se desenvolve em oposição a uma força totalitária, que totalitariamente expressa uma dura e impiedosa tirania de classe recoberta de ideologia: o novo e “moderno Príncipe” — ou seja, o partido da transformação socialista — não podia se apresentar na arena daquela terrível luta com certezas menores. Ainda mais que falava unicamente em nome de uma esperança.

Mas, para uma avaliação correta desta ênfase totalizante, também se deve recordar que, em Gramsci, esta visão do partido não é a de uma organização burocrática ou de um instrumento de poder, mas a de uma força ideal destinada a realizar aquela “reforma intelectual e moral”, que tem na reforma econômica da sociedade apenas o “modo concreto de se manifestar”. O “moderno Príncipe”, antes, justamente porque realiza aquela reforma intelectual e moral, historicizando a realidade e os valores — e historicizando também a si mesmo —, “torna-se a base de um laicismo moderno e de uma completa laicização de toda a vida e de todas as relações de costume” (Ib.).

Portanto, esta concepção do partido em Gramsci não pode ser reduzida e banalizada — como se fez —, como se constituísse a imitação ou o eco daquilo que simultaneamente ocorria na URSS e do papel que nela conquistava o partido. No entanto, era uma concepção que devia ser superada; o que já acontece em Togliatti, com a idéia do “partido novo”, ao qual se adere em base programática. O laicismo moderno e a laicização integral, que Gramsci considerava como finalidade essencial, terá necessidade de um partido comunista que, sem nada perder do próprio esforço ideal e moral, saiba

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considerar-se como um sujeito entre os demais: capaz de lutar pelas próprias convicções e pelos próprios programas sem ignorar as razões dos outros.

Reforma intelectual e moral

Para captar corretamente o sentido da expressão gramsciana “reforma intelectual e moral”, cabe preliminarmente afastar um possível equívoco. De fato, a referência de Gramsci não deve ser buscada no “reformismo”, categoria integrante da história do movimento operário, mas na “Reforma” protestante do século XVI e nas suas conseqüências sobre o que Gramsci define “espírito público”, o modo de sentir e de pensar das grandes massas; e à Reforma ele associa a análoga função desempenhada, na França, pela revolução democrático-burguesa do século XVIII.

“Reforma luterana — calvinismo inglês — na França, racionalismo setecentista e pensamento político concreto (ação de massa). Na Itália, nunca houve uma reforma intelectual e moral que envolvesse as massas populares. [...] O materialismo histórico, por isto, terá ou poderá ter esta função não só totalitária como concepção do mundo, mas totalitária na medida em que atingirá toda a sociedade a partir de suas raízes mais profundas” (CC, v. 1, p. 232). (Será preciso lembrar que, em Gramsci, aqui e em outros lugares, o termo “totalitário” não pode ser lido segundo a conotação negativa que passou a ser usada?)

De resto, trata-se de uma temática que Gramsci extrai das discussões críticas sobre as modalidades do Risorgimento italiano (ele mesmo cita Gobetti, Missiroli, Dorso e outros) e que, portanto, é inerente às investigações gramscianas mais amplas sobre o próprio Risorgimento, sobre o conceito de revolução passiva; e, ainda mais geralmente, sobre a relação intelectuais-massas. Em Gramsci, de fato, está inteiramente pressuposta a consciência de que uma tal reforma não pode ser imposta de cima para baixo, mas só pode surgir no contexto de uma profunda transformação das consciências: uma transformação que ele, comunista, identifica com o “materialismo histórico”, no duplo significado de sistema de idéias e de práxis revolucionária.

Daí a função que atribui ao “moderno Príncipe”, o partido, o qual “deve e não pode deixar de ser o anunciador e o organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa, de resto, criar o terreno para um novo desenvolvimento da vontade coletiva nacional-popular no sentido da realização de uma forma superior e total de civilização moderna” (CC, v. 3, p. 15).

“Pode haver reforma cultural, ou seja, elevação civil das camadas mais baixas da sociedade, sem uma anterior reforma econômica e uma modificação na posição social e no mundo econômico? É por isso que uma reforma intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um programa de reforma econômica; mais precisamente, o programa de reforma econômica é exatamente o modo concreto através do qual se apresenta toda reforma intelectual e moral” (Id., ib.).

Assim, pois, nestas notas gramscianas parecem nítidos o componente “político” de um “programa” de reforma intelectual e moral e seu nexo estreitíssimo com um programa de reforma econômica; isto é, em substância, com uma mudança nas relações entre as classes e nas relações entre as classes e o poder político.

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Por isso, mais uma vez o pensamento do Gramsci maduro, nos Cadernos do cárcere, mostra-se rigorosamente ancorado no marxismo, isto é, atento aos nexos fundamentais entre estrutura das relações de classe e formação da consciência, entre “economia”, “política” e “cultura”.

Religião

É típica de Gramsci a atenção dispensada à cultura popular, ao costume difuso, ao folclore. Ao mesmo tempo, era grande sua atenção — como é natural no caso de um político — às instituições do Estado e da sociedade, e, portanto, à Igreja Católica.

Diante do fenômeno religioso, Gramsci coloca-se segundo sua concepção marxista, segundo uma visão imanentista. A religião é um fenômeno histórico e cultural, profundamente motivado, rico de significado, mas não é nem pode ser a expressão de uma transcendência, que se nega. “A filosofia é a crítica e a superação da religião e do senso comum e, nesse sentido, coincide com o ‘bom senso’”, com uma visão crítica do mundo (QC, p. 1.378). A religião é uma tentativa de conciliar “sob forma mitológica” as contradições reais da vida histórica (QC, 1.488).

Posto isso, interessa muito mais a Gramsci ver a vida concreta das instituições e da fé religiosa. Na vida cultural italiana — ele observa —, existe uma distância entre os intelectuais e os “simples”. Nossa cultura não adquiriu um caráter nacional-popular. Em vez disso, como realizar uma efetiva unidade entre intelectuais e simples? Não o pode fazer a filosofia idealista (de Croce e de Gentile), que propõe uma concepção do mundo no plano dos intelectuais, mas não do povo. Tampouco o fez ou pode fazê-lo a Igreja Católica, a qual se preocupou em evitar fraturas entre a fé religiosa dos “simples” e a dos intelectuais, mas sempre agiu em dois planos, de modo a manter os “simples” no seu próprio plano. Só o partido da classe operária pode, dirigindo e organizando os trabalhadores, promover uma reforma intelectual e moral, que tenha condições de reunir intelectuais e simples na formação de uma nova cultura.

Compreende-se, então, a distância de Gramsci em relação ao anticlericalismo superficial dos socialistas do seu tempo. Assim como o Estado liberal soube encontrar um equilíbrio na sua relação com a Igreja Católica, também deve encontrá-lo o Estado socialista.

Significativa é a atenção que Gramsci dirige imediatamente ao Partido Popular. Este partido, que nasce em 1919 sob a direção de Dom Luigi Sturzo, foi por ele saudado como um evento de grande alcance histórico. Ele assinalava a entrada das massas populares católicas, sobretudo os camponeses, na vida política; representava uma ampliação substancial da democracia.

A atenção dirigida às forças populares católicas é um traço essencial do modo como Gramsci formula o problema da aliança da classe operária com os camponeses. Na Itália, a questão camponesa apresenta-se — ele diz — como questão meridional e como questão vaticana. Ou seja, não só como necessidade de uma relação correta com a Igreja Católica, mas de uma relação com as massas camponesas, que vivem sob a influência da Igreja; uma relação que leve em conta sua cultura, o modo como elas vivem suas reivindicações e a própria ligação com o movimento operário.

Inicia-se com Gramsci a atenção dos comunistas voltada para a relação com o mundo e com as forças populares católicas, que assinala toda a história do PCI.

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Revolução

“A revolução não é um ato taumatúrgico, é um processo dialético de desenvolvimento histórico” (L’Ordine Nuovo 1919-1920. Turim: Einaudi, 1954, p. 30). Talvez esta não seja a definição analítica mais completa de revolução, mas é certamente a mais sábia.

Revolução passiva

O conceito de revolução passiva permite captar, de maneira exemplar, tanto o método de trabalho quanto a relação entre paradigma interpretativo e exemplificações históricas em Gramsci. Ele nasce, antes de tudo, do exame de um período preciso: o Risorgimento italiano. No primeiro caderno, datado de 1929-1930, Gramsci observa que a análise da política dos moderados permite definir o Risorgimento como um caso específico de “revolução sem revolução” ou de “revolução passiva”, como ele precisa melhor num acréscimo posterior (QC, p. 41). Em seguida, este critério histórico-político foi testado e ampliado como possível interpretação da chamada Era da Restauração, mas com a advertência de que se trata de uma questão historicamente complexa, não resolvível “com base em esquemas sociológicos abstratos” (QC, p. 134).

Nesta fase, o conceito de revolução passiva se delineia mais analiticamente, tendo como base os seguintes momentos: 1) Revolução Francesa e transformação violenta das relações sociais e políticas na França; 2) oposição européia; 3) guerra da França contra a Europa; 4) despertar nacional e formação dos Estados modernos europeus por meio de pequenas ondas reformistas, caracterizadas pela combinação de lutas sociais, intervenções “do alto” e guerras nacionais. É este último momento que estabelece a Era da Restauração como era da revolução passiva, isto é, daquela “forma política na qual as lutas sociais encontram cenários bastante elásticos, de forma a permitir que a burguesia ascenda ao poder sem rupturas clamorosas” (QC, p. 134).

Entre 1930 e 1933, a hipótese de trabalho revela potencialidades explicativas adicionais, em relação ao problema de existirem analogias entre o período histórico posterior à queda de Napoleão e aquele que sucede a guerra de 1914-1918; em outras palavras, trata-se de saber se a idéia de revolução passiva pode ter também um significado “atual” e, por exemplo, ser um possível critério de interpretação histórica do fascismo (QC, p. 1.209). Em 1933, o conceito de revolução passiva é hipoteticamente indicado como chave interpretativa de “toda época complexa de transformações históricas” (QC, p. 1.827).

Os momentos internos do raciocínio seguido por Gramsci, bem como a cautela expositiva que privilegia hipóteses interpretativas no lugar de esquemas generalizantes induzem a caracterizar um procedimento circular: a partir de um fenômeno definido até um paradigma interpretativo mais geral, que, por sua vez, deve ser verificado concretamente à luz de específicas exemplificações históricas. Este método de trabalho comporta uma progressiva articulação da própria hipótese inicial.

Dado que o caso exemplar de revolução passiva é aquele no qual se dá “uma combinação de forças progressistas escassas e insuficientes por si mesmas [...] com uma situação internacional favorável à sua expansão e vitória” (QC, p. 1.360), derivam daí algumas conseqüências relevantes. Assim, a complexa realidade política que está contida na “expressão metafórica” de Restauração não pode

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ser lida como puro processo de conservação, uma vez que, sob o aparente imobilismo de um “invólucro político”, ocorre, na realidade, uma transformação molecular das “relações sociais fundamentais” (QC, p. 1.818). São evidentes as implicações de uma análise desse tipo no que se refere às interpretações do fascismo, e não apenas dele.

Além disso — e como conseqüência —, Gramsci sublinha o perigo de transformar a revolução passiva em programa, “porque a formulação geral do problema pode levar a crer num fatalismo” (QC, p. 1.827): a dialética conservação-inovação, que “na linguagem moderna se chama reformismo” (QC, p. 1.325), uma vez assumida como programa, pode também gerar uma espécie de “derrotismo histórico” e, portanto, “o desaparecimento de uma antítese vigorosa” (QC, p. 1.827). Fórmulas como aquelas usadas, por exemplo, por Croce — “o mundo caminha para...” — contribuem, precisamente, para gerar convicção sobre a inelutabilidade de um processo histórico, agregar em torno dele um consenso passivo, produzir uma espécie de renúncia fatalista à luta.

Risorgimento

O Risorgimento italiano se apresenta, para Gramsci, como aspecto italiano de um desenvolvimento europeu mais geral, primeiro na época da Reforma, em seguida da Revolução Francesa e, por fim, do liberalismo. Como tal, seu arco cronológico se estende a todo o século XVIII, para captar desde o início “o processo de formação das condições e das relações internacionais que permitirão à Itália unir-se em nação e às forças internas nacionais desenvolverem-se e expandirem-se” com o mesmo fim. Além disso, ele deve ser percebido, no âmbito nacional, por um lado “como retomada de vida italiana, como formação de uma nova burguesia, como consciência crescente de problemas não só municipais e regionais mas nacionais, como sensibilidade a certas exigências ideais”; por outro lado, “como transformação da tradição cultural italiana”, seja segundo o movimento da cultura européia, seja segundo os impulsos para a formação de uma nova consciência histórica e a reconstrução e projeção no presente do passado italiano a partir de Roma.

Também para Gramsci, só a partir da Revolução Francesa, oRisorgimento, assim entendido, adquire efetiva concretude, porque é só a partir de então que ele não é mais apenas uma tendência geral da sociedade e da cultura italianas em sintonia com as tendências européias, mas se transforma em ação “consciente em grupos de cidadãos dispostos à luta e ao sacrifício”, tornando-se assim um impulso histórico efetivo que opera através de forças específicas e consistentes. E é justamente o discurso sobre a natureza e o comportamento destas forças no momento decisivo do Risorgimento, quando a unidade italiana é realizada, que constitui o objeto dominante das reflexões históricas de Gramsci.

Deste ponto de vista, seu juízo é muito claro: o processo risorgimentalefoi caracterizado por uma nítida hegemonia das forças moderadas sobre as democráticas. Mas, contrariamente a uma opinião muito difundida, isto não significa de modo algum que Gramsci tenha uma concepção negativa doRisorgimento e condene seus resultados. Ele, ao contrário, polemiza contra aqueles que demonstram não valorizar adequadamente “o esforço realizado pelos homens do Risorgimento, diminuindo sua figura e originalidade, esforço que não foi só dirigido contra os inimigos externos, mas especialmente contra as forças internas conservadoras que se opunham à unificação”.

Lembra, além disso, que “as forças tendentes à unidade eram escassíssimas” na Itália e pouco coordenadas entre si até 1848, enquanto as forças contrárias eram “poderosíssimas, coesas, e,

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especialmente como Igreja, absorviam a maior parte das capacidades e energias individuais”. E, por fim, Gramsci reconhece no “poder de atração” dos moderados sobre os democratas um caso de atração “espontânea” de uma força social sobre outras, ou seja, a atração de um “grupo social realmente progressista”, porque “faz avançar realmente toda a sociedade, satisfazendo não só suas exigências vitais mas ampliando continuamente os próprios quadros”; logo, e sempre em termos gramscianos, um caso de “hegemonia”, não de “domínio”, e tão forte e eficiente que conseguiu até “suscitar a força católico-liberal” e fazer com que, embora brevemente, até mesmo um papa (Pio IX) se conformasse com o movimento liberal, realizando assim “a obra-prima do Risorgimento” e superando um dos maiores obstáculos ao movimento nacional.

A condição básica para a hegemonia dos moderados reside no fato de que “representavam um grupo social relativamente homogêneo, [...] ao passo que o chamado Partido de Ação não se apoiava especificamente em nenhuma classe histórica”, não dispunha nem mesmo de “um programa concreto de governo” e buscava inspiração - em face dos moderados -, no caso de muitos dos seus homens, em razões “mais de ‘temperamento’ do que de caráter organicamente político”. Isto confirma como é simplista ver em Gramsci o autor de um “processo contra o Risorgimento”, quando, ao contrário, ele parte de uma avaliação sem dúvida positiva da unificação italiana; aquilo que critica é o resultado social daquele processo, mas isto do ponto de vista da consistência histórica e social dos democratas italianos do Risorgimento e da sua ação, bem como do ponto de vista da política do Estado italiano unitário.

Quanto ao Partido de Ação, lançando mão de uma categoria histórica pela qual demonstrou vivo interesse, ou seja, a de “jacobinismo”, Gramsci afirma sobre ele não ter sabido opor à homogeneidade espontânea dos moderados a organização de um grande movimento popular de massas. Nas condições da Itália de então, isto teria significado, em substância, guiar os camponeses para uma luta pela terra, especialmente no Sul. Isto fez com que se resumissem, não erradamente, as opiniões de Gramsci a este respeito com a fórmula do Risorgimento como “revolução agrária frustrada” (a qual, porém, jamais aparece nele). E, com efeito, ainda que considere que talvez não se pudesse ir além de uma certa democratização, “dadas as premissas fundamentais do movimento” risorgimentale no seu todo, a seu ver o fracasso do Partido de Ação impediu que se inserisse “o povo no quadro estatal” da Itália unificada e facilitou a conduta corporativa de classe da burguesia moderada que sustentou o Estado unitário.

Esta linha de julgamento não está imune a oscilações e até mesmo contradições, sobretudo por causa da repetida insistência de Gramsci sobre as condições não só “subjetivas” (programa, homogeneidade social com os moderados, etc.), mas também “objetivas” (situação internacional do tempo, particularidades italianas, etc.), que explicam a sorte da esquerda risorgimentale, em última análise (como ele via em 1860) ligada e subalterna aos moderados. No entanto, a perspectiva que delineia sobre a “possível” ação histórica – que, a seu ver, o Partido de Ação (com Mazzini, Garibaldi, Pisacane, etc.) não conseguira efetivar – ilustra a fundo o projeto não mais histórico, mas atual e político, que Gramsci sentia como problema de democratização da Itália do seu tempo. E, não casualmente, seja aquela ação histórica frustrada, seja este projeto e problema giram amplamente em torno do Sul e dos seus camponeses como sujeito histórico, que, mobilizado em torno do problema da reforma agrária, Gramsci julga destinado, no passado e no presente, a deslocar o equilíbrio político-social da Itália: de fato, aos seus olhos, a questão meridional é uma das conseqüências mais diretas do caráter limitado e classista assumido pela direção moderada do Estado unitário.

No que diz respeito a este último, porém, o juízo de Gramsci é ainda mais complexo. A crítica da natureza burguesa do seu ordenamento e da sua política, que Gramsci desenvolve amplamente, nem

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mesmo neste caso ignora ou desconhece a positividade e a modernidade da soluçãorisorgimentale. Numa ocasião solene, como o discurso contra o nascente regime fascista, pronunciado na Câmara dos Deputados em 1925, ele iria declarar precisamente que os comunistas se propunham agir como a minoria burguesa do Risorgimento, a qual, mesmo sendo uma minoria, “uma vez que representava os interesses da maioria, ainda que esta não a seguisse, pôde assim manter-se no poder”. Por outro lado, o juízo de Gramsci sobre a Itália unificada é bastante duro sobre problemas essenciais e sobre momentos e homens dos mais relevantes.

Do ponto de vista da sua ótica risorgimentale, a questão mais importante é a do transformismo. Neste, Gramsci vê não só um prosseguimento mas também uma deterioração da “ação hegemônica intelectual, moral e política” exercida pelos moderados sobre os democratas no período que havia levado à unificação. Mas, no Risorgimento, a absorção dos democratas por parte dos moderados tinha um alto conteúdo histórico, porque - como se viu - a burguesia moderada se fizera portadora dos interesses de toda a nação; na Itália unificada, torna-se instrumento da versão mais restrita e mais classista que os governos do período unitário oferecem da sua tarefa nacional. Assim, a hegemonia dos moderados doRisorgimento torna-se seu domínio na Itália unificada, seu “cru 'domínio' ditatorial”. Gramsci distingue, aliás, entre um transformismo “molecular” até 1900 (ou seja, a absorção individual dos elementos melhores e mais ativos da oposição democrática por parte da “classe política” conservador-moderada) e um “transformismo de grupos radicais inteiros, que passam ao campo moderado”, nos anos posteriores a 1900. O resultado do transformismo é a “decapitação” dos grupos progressistas e “seu aniquilamento por um período freqüentemente muito longo”.

O Risorgimento se confirma, pois, para Gramsci, inclusive nos seus efeitos sobre a vida da Itália unificada, tal como ele o define, como “um desenvolvimento histórico complexo e contraditório, que se torna um todo a partir de todos os seus elementos antitéticos”. A solução unitária realizou uma promoção e modernização do país e correspondeu aos interesses relevantes da nação, mas as classes que, primeiro, dirigiram o movimento nacional e, depois, governaram o Estado unitário agiram numa base essencialmente conservadora e moderada, que limitou a positividade do processo e se acentuou com o tempo: pode-se resumir assim o juízo de conjunto, o juízo gramsciano sobre o Risorgimento, no qual, por isso, cabem numa síntese muito complexa as noções de “jacobinismo”, “hegemonia”, “domínio”, “questão meridional”, “transformismo”, “relação entre cidade e campo”, “questão agrária”, que figuram entre as noções centrais do pensamento de Gramsci.

Sociedade civil

O termo não é usado por Gramsci na mesma acepção de Marx (para o qual a sociedade civil é a sociedade privatista burguesa considerada negativamente: na sua atomização e despolitização), mas sim numa acepção mais ampla que inclui as articulações não imediatamente políticas da organização social moderna. É assim possível um emprego positivo do termo: por exemplo, quando Gramsci fala da “reabsorção” da sociedade política na sociedade civil, a sociedade civil já está próxima, pelas suas características econômicas mas também culturais, da “sociedade regulada”.

Teoria e prática

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A celebrada “unidade de teoria e prática” de certo marxismo tradicional não tinha outro significado tradicional a não ser o de condicionar a teoria à prática. Raramente significou o contrário. Daí o enrijecimento dogmático da teoria e, também, a ineficácia da prática. Gramsci assim resume este conceito: “nos novos desenvolvimentos do materialismo histórico, o aprofundamento do conceito de unidade da teoria e da prática ainda está numa fase inicial: ainda existem resíduos de mecanicismo. Fala-se ainda de teoria como ‘complemento’ da prática, quase como acessório, etc.” (QC, p. 1.042). Para sair desta fase de menoridade, só resta desenvolver “o aspecto teórico do nexo teoria-prática” (QC, p. 1.386). E o desenvolvimento da teoria em relação à prática significa desenvolvimento de hipóteses novas para as quais a prática servirá como controle.

Totalidade

A todos aqueles que têm enfatizado, na tradição marxista, uma filosofia da totalidade, deve-se observar, com Gramsci, que “a filosofia da parte precede sempre a filosofia do todo” (CC, v. 1, p. 107). Isto deve sublinhar a necessidade de recuperar, verificando-o, o instrumental analítico do pensamento de Marx, ou seja, sua capacidade de explicar a sociedade moderna (e a história), sem interpolações especulativas. 

Tradução e tradutibilidade

As interessantes notações sobre tradução e tradutibilidade em Gramsci (CC, v.1, p. 185-90) estão imersas em uma preocupação de renovar o conceito de ideologia vigente na tradição do chamado marxismo da Terceira Internacional, herdeiro da Segunda Internacional. Esta tradição considerava a ideologia como ciência positiva de classe, turvando assim as relações complexas entre teoria do proletariado e filosofia (concepção de mundo), história e política, povo e intelectuais. O problema da universalidade da ideologia incidia, mais que uma mera tertúlia diletante, sobre uma questão dramática de estratégia revolucionária no período entreguerras (1919-1939): a ideologia bolchevique, vitoriosa na Revolução Soviética — depois simplificada no exemplo pervertido do Manual de Bukharin (emblemático do marxismo praticado pela Terceira Internacional) —, tinha conteúdo universal, passível de encontrar uma reverberação e uma evolução orgânica no Ocidente capitalista, ou respondia apenas às particularidades atrasadas da formação social russa e dos povos do Oriente?

Para o pensador italiano, existe a possibilidade de as experiências históricas importantes — pelo seu grau latente de universalidade — encontrarem similares em outros ambientes culturais, desde que devidamente traduzidas. Dessa maneira, em Gramsci, há sempre a possibilidade de uma determinada linguagem vocabular e cultural encontrar uma tradução em outra — “a linguagem da política francesa [...] corresponde e pode ser traduzida na linguagem da filosofia clássica alemã” (CC, v. 1, p. 185-8). Ou seja, a revolução filosófica de Kant e Hegel tinha uma reverberação na política prática dos revolucionários franceses. Citando um verso de Giosuè Carducci, assim expressa Gramsci essatradução (Revolução Francesa-filosofia clássica alemã): “Emmanuel Kant decapitou Deus; Maximilien Robespierre, o rei”.

Vale observar que da possibilidade da tradução advém o problema — de difícil resolução — da tradutibilidade de uma linguagem política, filosófica, estética ou científica em outra. O problema da tradutibilidade surge em Gramsci (CC, v. 1, p. 185) através de uma sentença de Lenin a propósito

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do fracasso da revolução no Ocidente após a Revolução Soviética — “Vilitch [Lenin] escreveu ou disse [...] o seguinte: não soubemos ‘traduzir’ nas línguas européias a nossa língua”.

Traduzir não significa, portanto, repetir, mas recriar. Em Gramsci, freqüentemente deparamos com traduções e problemas da tradutibilidade histórica: o Renascimento foi um antecedente elitista da Reforma protestante (Erasmo e Lutero), a Reforma protestante foi o ancestral rude da filosofia clássica alemã (Lutero e Hegel), o proletariado da Alemanha unificada foi o portador da filosofia clássica nacional antecedente (Hegel e filosofia da práxis), os jacobinos foram Kant e Hegel, e vice-versa. 

Transformismo

Gramsci se ocupou bastante da questão do transformismo, nas suas reflexões, em relação ao Risorgimento, à questão meridional, aos intelectuais, etc. Pode-se dizer que ele considerava o transformismo como uma das características básicas da história política italiana, desde oRisorgimento até o fascismo.

Deve-se notar que Gramsci trata esta questão sem tons ou juízos moralistas (que, ao contrário, às vezes constituem a parte essencial das reflexões de outros estudiosos italianos e, sobretudo, de alguns meridionalistas). Para Gramsci, o transformismo é a expressão (muitas vezes, negativa) de um fato que continua a ser político: ou seja, da hegemonia que conseguiram conquistar e exercer, no terreno concreto dos acontecimentos da política risorgimentale, e mesmo depois, os grupos “moderados” e até conservadores.

Escreve Gramsci: “Aliás, pode-se dizer que toda a vida estatal italiana, a partir de 1848, é caracterizada pelo transformismo, ou seja, pela elaboração de uma classe dirigente cada vez mais ampla, nos quadros fixados pelos moderados depois de 1848 e o colapso das utopias neoguelfas e federalistas, com a absorção gradual mas contínua, e obtida com métodos de variada eficácia, dos elementos ativos surgidos dos grupos aliados e mesmo dos adversários e que pareciam irreconciliavelmente inimigos. Neste sentido, a direção política se tornou um aspecto da função de domínio, uma vez que a absorção das elites dos grupos inimigos leva à decapitação destes e a sua aniquilação por um período freqüentemente muito longo”.

Gramsci assim conclui esta reflexão (e é evidente que ele pensa, independentemente da questão do transformismo, nos problemas do avanço e da conquista do poder por parte das novas forças renovadoras: “A partir da política dos moderados, torna-se claro que pode e deve haver uma atividade hegemônica mesmo antes da ida ao poder e que não se deve contar apenas com a força material que o poder confere para exercer uma direção eficaz”.

Para produzir o transformismo nas suas várias expressões contribuíram diversos fatores, segundo a análise de Gramsci. O mais importante foi aquele ligado à fragilidade histórica dos partidos na Itália, desde oRisorgimento até o fascismo. Foi o governo - segundo Gramsci - que operou “como um ‘partido’, colocou-se acima dos partidos não para harmonizar seus interesses e atividades no quadro permanente da vida e dos interesses estatais nacionais, mas para desagregá-los, para separá-los das grandes massas e ter ‘uma força de sem-partido ligada ao Governo por vínculos paternalistas de tipo bonapartista-cesarista’: assim, é preciso analisar as chamadas ditaduras de Depretis, Crispi, Giolitti, bem como o fenômeno parlamentar do transformismo”.

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A análise também abrange a situação da intelectualidade e da cultura italiana depois do Risorgimento. E é uma análise impiedosa, mas com a clássica marca da inventividade de Gramsci: “Miséria da vida cultural e estreiteza mesquinha da alta cultura: em lugar da história política, a erudição descarnada; em lugar da religião, a superstição; em lugar dos livros e das grandes revistas, o jornal e o panfleto. O dia-a-dia, com seus facciosismos e seus choques personalistas, em lugar da política séria. As universidades, todas as instituições que elaboravam as capacidades intelectuais e técnicas, não permeadas pela vida dos partidos, pelo realismo vivo da vida nacional, formavam quadros nacionais apolíticos, com formação mental puramente retórica, não nacional.”

Gramsci distingue diferentes períodos na trajetória do transformismo.

A primeira é a fase risorgimentale: “A passagem para o cavourismo, depois de 1848, de sempre novos elementos do Partido de Ação modificou progressivamente a composição das forças moderadas, liquidando o neoguelfismo, por um lado, e, por outro, empobrecendo o movimento mazziniano (pertencem a este processo até mesmo as oscilações de Garibaldi)”. Esta (segundo Gramsci) é a “fase originária” do transformismo.

Gramsci descreve assim as outras fases. De 1860 até 1900, há o “transformismo molecular”: “As personalidades políticas elaboradas pelos partidos democráticos de oposição se incorporam individualmente à ‘classe política’ conservadora e moderada (caracterizada pela hostilidade a toda intervenção das massas populares na vida estatal, a toda reforma orgânica que substituísse o rígido ‘domínio’ ditatorial por uma ‘hegemonia’)”.

A partir de 1900, há “o transformismo de grupos radicais inteiros, que passam ao campo moderado (o primeiro episódio é a formação do Partido Nacionalista, com os grupos ex-sindicalistas e anarquistas, que culmina na guerra líbia, num primeiro momento, e no intervencionismo, num segundo)”.

Mas, para Gramsci, há um período intermediário (1890-1900), no qual “uma massa de intelectuais passa para os partidos de esquerda”. Gramsci dedicou uma grande atenção à relação entre transformismo e movimento operário. O trecho mais significativo nos parece o seguinte: “A causa do fenômeno italiano, ao que me parece, deve ser buscada na escassa aderência das classes altas ao povo: na luta das gerações, os jovens se aproximam do povo; nas crises de mudança, tais jovens retornam à sua classe (foi o que ocorreu com os sindicalistas-nacionalistas e com os fascistas). No fundo, trata-se do mesmo fenômeno geral do transformismo, em condições diversas. O transformismo ‘clássico’ foi o fenômeno pelo qual se unificaram os partidos do Risorgimento; este transformismo traz à luz o contraste entre civilização, ideologia, etc., e a força de classe. A burguesia não consegue educar os seus jovens (luta de geração): os jovens deixam-se atrair culturalmente pelos operários, e chegam mesmo a se tornar - ou buscam fazê-lo - seus líderes (desejo ‘inconsciente’ de realizarem a hegemonia de sua própria classe sobre o povo), mas, nas crises históricas, retornam às origens”. 

Vaidade de partido

A expressão “vaidade de partido” entrou na nossa linguagem política, como tantas outras de Gramsci, sem que muitas vezes lembrássemos em que sentido o termo fosse empregado. Numa nota

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dos Cadernos, Gramsci raciocina em torno do processo de desenvolvimento de um partido político, do momento em que ele alcançou sua “missão precisa e permanente”. Quando este momento chega é algo que provoca muitas discussões e, muitas vezes, “infelizmente, uma forma de vaidade que não é menos ridícula e perigosa do que a ‘vaidade das nações’ de que fala Vico”. E, na mesma nota, mais adiante, o autor volta ao termo: “É preciso desprezar a ‘vaidade’ de partido e substituí-la por fatos concretos” (CC, v. 3, 315-19).

A quais partidos se referem, precisamente, o juízo e a advertência gramsciana? Seu discurso é de caráter geral e, para compreender seu âmbito histórico e a complexidade do raciocínio, convém levar em conta todas as notas que tratam do tema do partido político, do cesarismo, do parlamentarismo, e que têm, efetivamente, um andamento circular. A referência mais precisa neste caso talvez seja aos partidos democráticos e socialdemocratas, para os quais o Gramsci dirigente, num documento de agosto de 1926, já indicara “três estratos”: o estrato restrito de dirigentes e intelectuais, a massa influenciada pelo partido e aquele estrato, diríamos hoje, de militantes, que liga, põe em contato “o grupo de capitães” e a massa.

Na nota dos Cadernos, apesar da linguagem fortemente críptica, o discurso de Gramsci, no entanto, também abrange a natureza do partido operário, revolucionário. Com uma alusão não só à disciplina e à fidelidade necessárias, mas às soluções que o partido deve saber indicar para os vários problemas em tela; em outros termos, à função dirigente, nacional, que o partido pode desempenhar. Só neste caso é que se pode dizer que ele “está formado”.

E aqui, se se abarca o conjunto das observações, a constante da inspiração de Gramsci, percebe-se que ele parte de uma concepção terceiro-internacionalista de partido, que sublinha o primado do grupo dirigente, mas tende a superá-la seja com o relevo que dá à questão da hegemonia, da influência cultural que deve ser exercida, seja com a advertência sobre o distanciamento em relação à massa social que o partido quer representar, sob pena de se transformar num “corpo solidário que tem vida própria”. O partido, pois, deve “reagir contra o espírito do costume, contra as tendências a se mumificar e a se tornar anacrônico”. De outro modo, a burocracia interna ameaça se tornar “uma força conservadora perigosa”.

Voltamos a encontrar a concepção de um partido de massas, de um partido aberto à sociedade, que sabe mover-se nela, numa outra importantíssima nota, aquela na qual Gramsci precisa que “na política de massa, dizer a verdade é uma necessidade política”. Isto é, não se trata somente de um princípio moral, mas de uma condição para manter a relação com as próprias raízes, para conduzir uma ação na sociedade. Gramsci não aprecia os mitos como tecido conectivo, o carisma deste ou daquele chefe, nem considera “eterno” um partido. Uma sociedade sem classes será uma sociedade sem partidos. Logo, ele não estabelece a hipótese do partido único como expressão desta nova sociedade. Ao mesmo tempo, a vida política e a vida parlamentar são estudadas como reflexo das mudanças acontecidas, das crises que incidem “em momentos historicamente vitais”.

Não há, em Gramsci, nenhuma subestimação do valor das instituições representativas. E nisto, deve-se acrescentar, usa um critério de juízo não diferente daquele que Lenin empregava quando analisava, num escrito de 1912, os partidos políticos existentes na Rússia czarista. Lenin polemizava contra aqueles que consideravam “as instituições representativas, os parlamentos, as assembléias de representantes do povo como inúteis e até nocivas”. “Não - escrevia Lenin -, onde não existem instituições representativas, as mistificações, as mentiras políticas e os abusos de todo tipo são ainda mais difusos e o povo tem muito menos meios para desmascarar o engano e descobrir a verdade”. Para Gramsci, “destruir o parlamentarismo não é tão fácil como parece”, e o

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parlamentarismo “implícito” é muito mais perigoso do que o “explícito”, pois “tem todas as suas deficiências, sem ter seus valores positivos”.

Isto não significa, naturalmente, que modernos partidos de esquerda não tenham ido além de Gramsci ou de Lenin na concepção do partido ou da democracia política. Significa, no entanto, que aqueles dois grandes teóricos fugiam do esquematismo ao investigarem a relação entre representantes e representados.

Weber

Assim como Max Weber, Gramsci amplia a noção de Estado. Portanto, para ambos o poder ultrapassa a mera coerção. Gramsci aceita os tipos ideais de Weber como  um ponto de partida, ainda que procure lhes dar corpo histórico e empírico. O tipo carismático, por exemplo, apareceu entre os socialistas (lassallianos, broussistas, marxistas, guesdistas, jauresistas, blanquistas, etc.). Gramsci chega a se perguntar se não “exista analogia entre os partidos políticos e as seitas religiosas e as ordens monásticas” (CC, v. 3, p. 161).

Gramsci não só conhecia a obra de Weber, como a citou diversas vezes nos seus Cadernos. A crítica que faz da debilidade dos partidos na Itália compara-se à crítica que Weber faz no seu ensaio “Parlamentarismo e governo”, pois Gramsci acentua a ausência da elaboração intelectual de dirigentes políticos, a escassez de homens de governo, a miséria da vida parlamentar, a contínua cooptação pelo aparelho de Estado e a cultura mesquinha. Essas características do regime parlamentar italiano conduzem a burocracia a se forjar enquanto um “verdadeiro partido político”, substituindo a hierarquia intelectual por burocratas “apolíticos” com “formação mental puramente retórica, não-nacional” (Ib., p. 202).

Gramsci e Weber aproximam-se, portanto, na crítica de uma sociedade burocrática, particularmente quanto à necessidade de uma ação genuinamente política sobre esta burocracia (vista por Weber como inevitável). Gramsci chega a admitir a possibilidade de um bonapartismo progressista, quando o chefe carismático (ou a força política “carismática”) se coloca a favor das forças sociais historicamente progressistas, contra um equilíbrio estático de partidos dominantes, cristalizados em posições burocráticas, pois a burocracia pode se tornar, na vida moderna, o pior dos partidos (Ib.).

Gramsci afirma que o capo charismatico corresponde ao período de formação dos partidos de massa. O chefe carismático pode pertencer tanto a um partido autoritário quanto a um partido socialista ou um movimento anarquista e antiautoritário; essas combinações devem ser estudadas na história concreta, assim como o papel desses partidos na luta política. No que tange, entretanto, à burocratização dos partidos operários, Gramsci identifica um problema grave para o movimento socialista:

Os partidos socialistas, graças aos numerosos postos remunerados e honoríficos de que dispõem, oferecem aos operários (a certo número de operários, naturalmente!) uma possibilidade de fazer carreira, o que exerce sobre eles uma força considerável de atração (esta força se exerce, porém, mais sobre os intelectuais).

Complexidade progressiva da atividade política, em virtude da qual os líderes do partido se tornam cada vez mais profissionais e devem ter noções cada vez mais amplas, um tato, uma prática

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burocrática e, freqüentemente, uma esperteza cada vez mais ampla. Assim, os dirigentes se afastam cada vez mais da massa, dando margem à flagrante contradição que se manifesta nos partidos avançados entre as declarações e as intenções democráticas e a realidade oligárquica (Ib., p. 166).

Mas a solução para esta burocratização do movimento socialista não reside, para Gramsci, na simples afirmação literária da necessidade de um chefe carismático, e sim na formação de um estrato médio de intelectuais orgânicos que façam a ligação entre os líderes e as massas, impedindo os líderes de se desviarem nos momentos de crise e, simultaneamente, elevando o nível político das massas. Além disso, o chefe carismático não é uma forma de governo, mas uma função, que pode até surgir em governos parlamentares de coalizão que assumam a função cesarista.Cesarismo não é um apenas um conceito sociológico ou de ciência política nem um cânone de interpretação histórica – diz Gramsci – mas uma fórmula política que deve ser identificada concretamente em cada contexto histórico (Ib., p. 76-7).