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A SÉRIE OS MUNDOS DE CRESTOMANCIÉ COMPOSTA DOS SEGUINTES TÍTULOS:

Vida EncantadaAs Vidas de Christopher Chant

Os Mágicos de CapronaA Semana dos BruxosA Mistura das Mágicas

Diana Wynne JonesIlustrações de Tim Stevens

Tradução deELIANA SABINO

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NOTA DA AUTORA

O mundo de Crestomanci não é o mesmo queo nosso. É um mundo paralelo a este, onde a magia étão normal quanto a matemática, e as coisas são, emgeral, mais antiquadas. No mundo de Crestomanci, aItália ainda é dividida em numerosos Estados peque-nos, cada um com o seu Duque e a sua capital; emnosso mundo, a Itália há muito tempo unificou-se,formando um só país.

Embora os dois mundos não sejam de modoalgum ligados, esta história chegou até nós, não sesabe como. Mas com algumas lacunas, que tive deajudar a preencher. Clare Davis, Gaynor Harvey, Eli-zabeth Carter e Graham Belsten descobriram paramim o que aconteceu durante o duelo entre os feiti-ceiros. E meu marido, J. A. Burrow, com alguns con-selhos de Basil Cottle, foi quem encontrou a verda-deira letra de “O Anjo de Caprona”. Gostaria de a-gradecer muito a todos eles.

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CAPÍTULO I

Os feitiços são a coisa mais difícil do mundo defazer direito: esta era uma das primeiras coisas que ascrianças da família Montana aprendiam. Qualquerpessoa pode usar um amuleto, mas na hora de fabricaresse amuleto, seja ele escrito, falado ou cantado, tudoprecisa sair certinho, senão acontecem as coisas maisincríveis.

Um exemplo disto é a jovem Angélica Petroc-chi, que deixou o pai verde-claro quando entoou umanota desafinada. Durante semanas, em Caprona —aliás, em toda a Itália — não se falou de outra coisa.

Os melhores feitiços ainda são feitos em Ca-prona, apesar dos problemas recentes. Na Casa Mon-tana ou na Casa Petrocchi. Se uma pessoa usa um fei-tiço que realmente funcione, seja para melhorar a re-cepção do aparelho de rádio ou para fazer os tomatescrescerem, então é bem provável que alguém da famí-lia dela tenha ido passar as férias em Caprona e trazi-

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do de lá o feitiço. Ao longo da Ponte Velha, em Ca-prona, vêem-se pequenos oratórios de pedra ondeenvelopes, tirinhas de feitiço e pergaminhos ficampendurados em barbantes, como flâmulas.

Em Caprona é possível encontrar feitiços vin-dos de todas as casas especializadas da Itália. Cadafeitiço tem a sua etiqueta com as instruções e o seloda casa que o fabricou; se uma pessoa quiser descobrirquem fez o feitiço que ela está usando, é só procurarnos documentos da família: se ela encontrar um do-cumento comprido, cor de cereja, carimbado com umleopardo negro, então ele veio da Casa Petrocchi; sefor um envelope verde-musgo carimbado com umcavalo alado, então foi a Casa Montana que o fez. Osfeitiços de ambas as Casas são tão bons que as pesso-as ignorantes pensam que até mesmo os envelopesconseguem fazer mágicas. Isto é bobagem, natural-mente. Pois, como foi dito muitas e muitas vezes aPaolo e Tonino Montana, um feitiço consiste em pa-lavras corretas usadas da maneira correta.

As grandes Casas Petrocchi e Montana remon-tam à fundação do Estado de Caprona, há mais de700 anos. E entre ambas existe uma rivalidade exa-cerbada: os membros de uma família nem sequer fa-lam com os da outra. Se um Petrocchi e um Montanase encontram em alguma das ruas estreitas e calçadasde paralelepípedos dourados de Caprona, desviam osolhos e se esquivam um do outro como se ambos es-tivessem passando por um chiqueiro. As crianças sãoenviadas para escolas diferentes e recebem ordens denunca, jamais, trocar uma só palavra com alguma cri-ança da outra Casa.

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Às vezes, no entanto, grupos de jovens rapazese moças dos Montana e dos Petrocchi encontram-secasualmente, à noitinha, quando estão a passear pelarua larga chamada Corso. Quando isto acontece, osoutros cidadãos imediatamente procuram abrigo. Se aluta for com punhos e pedras, é bastante ruim, mas sefor com feitiços pode ser apavorante.

Um exemplo disso foi quando o arrojado Ri-naldo Montana fez chover do céu esterco de vaca so-bre o Corso durante três dias. Aquilo produziu umagrande consternação entre os turistas.

— Um Petrocchi me insultou — Rinaldo ex-plicou depois, com seu sorriso mais simpático. — Epor acaso eu tinha no bolso um feitiço novinho.

Os Petrocchi, maldosamente, alegaram que, nocalor da batalha, Rinaldo tinha cometido um erro nofeitiço, pois todo o mundo sabia que todos os feitiçosde Rinaldo eram encantamentos de amor.

Os adultos de ambas as casas nunca explicaramàs crianças exatamente o motivo que fez com que osMontana e os Petrocchi se detestem tanto assim. Estaé uma tarefa tradicionalmente delegada aos irmãos,irmãs e primos mais velhos. Paolo e Tonino ouvirama história repetidamente, contada por suas irmãs Rosa,Corinna e Lucia, por seus primos Luigi, Cario, Do-menico e Anna, e novamente pelos primos em se-gundo grau Piero, Luca, Giovanni, Paula, Teresa, Bel-la, Angelo e Francesco. Eles próprios a contaram aseis primos mais jovens quando estes foram crescen-do. Os Montana são uma família grande.

Segundo a história, há 200 anos o velho Ricar-do Petrocchi enfiou na cabeça que o Duque de Ca-

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prona estava encomendando mais feitiços dos Mon-tana do que dos Petrocchi, e a respeito disso escreveuao velho Francesco Montana uma carta bastante o-fensiva. O velho Francesco ficou tão zangado queprontamente convidou todos os Petrocchi para umbanquete; explicou que tinha uma iguaria nova e que-ria que eles experimentassem. Então enrolou a cartade Ricardo Petrocchi, formando palitos compridos, elançou sobre ela um dos seus feitiços mais poderosos.E a carta transformou-se em espaguete. Os Petrocchidevoraram tudo gulosamente e todos ficaram doentes,especialmente o velho Ricardo — pois nada faz tãomal a uma pessoa quanto ser obrigada a engolir assuas próprias palavras. Ele nunca perdoou FrancescoMontana, e desde então as duas famílias eram inimi-gas.

— E foi assim que surgiu o espaguete — con-tava Lucia, que é quem conta a história com maisfreqüência, sendo apenas um ano mais velha que Pa-olo.

Foi Lucia quem lhes contou em cochichos to-dos os horríveis hábitos pagãos que os Petrocchi ti-nham: eles nunca iam à igreja ou se confessavam,nunca tomavam banho ou mudavam de roupa, ne-nhum deles jamais se casou mas — aqui ela sussurra-va ainda mais baixo — tinham filhos como se fossemgatos; eram capazes de afogar os filhos que não dese-javam criar, também como gatos, e dizia-se que co-miam os tios e tias indesejáveis; e eram tão sujos queda Via Sant’Angelo dava para sentir o fedor da casados Petrocchi e escutar o zumbido das moscas.

Havia muitas outras coisas, algumas delas bem

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piores que essas, pois Lucia tinha uma imaginaçãofértil. Paolo e Tonino acreditavam em todas elas, eodiavam os Petrocchi de todo o coração, emboramuitos anos tenham passado antes que eles pusessemos olhos num Petrocchi. Quando ainda eram bempequenos, eles fugiram certa manhã e desceram a ViaSant’Angelo, chegando quase à Ponte Nova, para o-lhar a casa dos Petrocchi. Mas não havia fedor nemmoscas para guiá-los, e a irmã deles, Rosa, encon-trou-os antes que eles achassem a casa. Rosa, que eraoito anos mais velha que Paolo e já estava bem cres-cida, riu quando eles explicaram sua dificuldade, e, debom humor, levou-os até a casa dos Petrocchi. Era naVia Cantello, não na Via Sant’Angelo.

Paolo e Tonino ficaram muito decepcionadoscom a casa. Era igualzinha à casa dos Montana. Eraampla, como a casa dos Montana, e construída com asmesmas pedras douradas de Caprona, e provavel-mente tinha a mesma idade. O grande portão da fren-te era de madeira antiga e cheia de nós, exatamentecomo o deles, e havia até a mesma figura dourada doAnjo acima do portão. Rosa contou-lhes que os doisAnjos eram em memória do Anjo que surgira para oprimeiro Duque de Caprona, trazendo consigo umpergaminho com uma música do Céu — mas os me-ninos já sabiam disso. Quando Paolo comentou que acasa dos Petrocchi não parecia cheirar mal, Rosamordeu o lábio e disse, com gravidade, que não haviamuitas janelas nas paredes externas, e que todas esta-vam fechadas.

— Imagino que tudo aconteça no pátio, exa-tamente como na nossa casa — ela explicou. — Pro-

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vavelmente o fedor fica por lá.Os meninos concordaram que provavelmente

era isso mesmo, e queriam esperar para ver um Pe-trocchi sair. Mas Rosa declarou que achava isso muitoimprudente e carregou-os de lá. Os meninos olhavampor cima do ombro enquanto eram arrastados por elae viram que a casa dos Petrocchi tinha quatro torresde pedras douradas, uma em cada canto, ao passo quea casa dos Montana só tinha uma, em cima do portão.

— É porque os Petrocchi são uns exibicionis-tas. Vamos embora — disse Rosa, puxando-os.

Já que as torres tinham como telhado um pe-queno chapéu de telhas vermelhas igualzinho aos te-lhados da casa dos Montana e de todas as casas deCaprona, Paolo e Tonino não as acharam particular-mente grandiosas, mas não gostavam de discutir comRosa. Sentindo-se muito decepcionados, deixaram queela os arrastasse de volta para a casa dos Montana e oslevasse através do seu próprio portão de madeiracheia de nós para o pátio movimentado. Ali, Rosadeixou-os e subiu correndo os degraus que levavam àvaranda, gritando:

— Lucia! Lucia! Onde é que você está? Queroter uma conversinha com você!

Em toda a volta do pátio abriam-se portas ejanelas; a varanda, no segundo andar, com sua balaus-trada de madeira e seu telhado de telhas, estendia-sepor três lados do pátio e levava aos aposentos desseandar. Tios, tias, primos grandes e pequenos, além degatos, atarefavam-se por toda parte, rindo, cozinhan-do, discutindo feitiços, lavando roupa, tomando solou brincando. Paolo soltou um suspiro de contenta-

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mento e pegou no colo o gato mais próximo.— Não acredito que a casa dos Petrocchi possa

ser parecida com a nossa por dentro — afirmou.Antes que Tonino pudesse concordar, ambos

foram carinhosamente abraçados pela Tia Maria, queera mais gorda do que a Tia Gina porém não tão gor-da quanto a Tia Anna.

— Onde é que vocês andavam, meus amores?Há mais de meia hora estou pronta para a aula de vo-cês!

Todos na Casa Montana trabalhavam muito.Paolo e Tonino já estavam aprendendo as primeirasregras para produzir feitiços. Quando Tia Maria estavaocupada, quem lhes ensinava era o pai deles, Antonio.Antonio era o primogênito do Velho Niccolo, e seriao chefe da Casa Montana quando o Velho Niccolomorresse. Paolo achava que esse fato pesava na mentedo pai; Antonio era um homem magro e preocupado,que ria com menos freqüência do que os outrosMontana. Ele era diferente. Uma das diferenças eraque, em vez de deixar o Velho Niccolo escolher crite-riosamente uma esposa para ele em uma Casa italiana,Antonio tinha ido fazer uma visita à Inglaterra e vol-tado de lá casado com Elizabeth. Elizabeth ensinavacanto aos meninos. Ela gostava de dizer:

— Se aquela tal de Angélica Petrocchi tivesseaprendido comigo a entoar feitiços, ela nunca deixariaalguém verde.

O Velho Niccolo dizia que Elizabeth era a me-lhor musicista de Caprona. E essa, segundo o que Lu-cia contou aos meninos, tinha sido a razão por queAntonio conseguira casar-se com ela. Mas Rosa disse

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a eles para não dar ouvidos a isso; ela tinha orgulho deser metade inglesa.

Era provável que Paolo e Tonino tivessem a-inda mais orgulho de serem da família Montana. Erauma coisa grandiosa saber que pertenciam a uma fa-mília conhecida mundialmente como a maior casa defeitiços da Europa (sem contar os Petrocchi). Haviaocasiões em que Paolo mal conseguia esperar crescerpara ser como seu primo, o arrojado Rinaldo. Tudoera fácil para Rinaldo; as meninas se apaixonavam porele, os feitiços jorravam de sua caneta. Ele compuserasete feitiços novos antes de terminar a escola. E, co-mo dizia o Velho Niccolo, naqueles tempos não erafácil fazer um feitiço novo, de tantos que já existiam.Paolo tinha uma admiração desesperada por Rinaldo.Declarou a Tonino que Rinaldo era um Montana deverdade.

Tonino concordou, porque era mais de um anomais novo que Paolo e acatava as opiniões do irmão,mas sempre lhe parecera que era Paolo o verdadeiroMontana. Paolo era tão esperto quanto Rinaldo; con-seguia aprender, sem se esforçar, feitiços que Toninolevava dias para dominar. Tonino era lento; só conse-guia decorar as coisas se as repetisse vezes sem conta.Parecia-lhe que Paolo havia nascido com um instintopara a magia que ele próprio não possuía.

Às vezes Tonino ficava bastante deprimido porcausa da sua lentidão. Ninguém mais se desesperavacom isso; todas as irmãs dele, até mesmo a estudiosaCorinna, passavam horas ajudando-o. Elizabeth asse-gurava-lhe que ele nunca cantava fora do tom, o pai orepreendia por estudar demais e Paolo afirmava que

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ele estaria muito à frente das outras crianças quandoentrasse para a escola. Paolo acabara de entrar para aescola e se mostrava tão inteligente para as aulas nor-mais quanto era para os feitiços.

Mas quando Tonino começou a ir à escola,mostrou-se tão lento lá quanto era em casa. A escola odeixava confuso, porque ele não conseguia entender oque os professores queriam que ele fizesse. Quandochegou o primeiro sábado, ele estava tão infeliz quesaiu escondido de casa e vagou por Caprona emprantos. Ficou desaparecido durante horas.

— Não tenho culpa de ser mais rápido que ele!— Paolo exclamou, quase chorando também.

Tia Maria correu para Paolo e abraçou-o.— Ora, ora, não vá você começar também!

Você é tão inteligente quanto o meu Rinaldo, e todosnós temos orgulho de você.

— Lucia, vá procurar Tonino — Elizabeth pe-diu. — Paolo, você não deve se preocupar tanto. To-nino está absorvendo os feitiços sem se dar contadisso. Aconteceu a mesma coisa comigo quando vimpara cá. Será que devo contar isso a Tonino? — elaperguntou a Antonio.

Antonio viera correndo da varanda. Na CasaMontana, quando alguém tinha problemas o resto dafamília sempre acorria. Antonio esfregou a testa.

— Talvez. Vamos lá perguntar ao Velho Nic-colo. Venha, Paolo. Paolo seguiu o pai magro e lépidoatravés dos desenhos que o sol fazia na varanda, até ofrescor azul do Scriptorium. Lá, suas outras duas ir-mãs, Rinaldo e outros cinco primos, além de dois dostios, estavam de pé junto a escrivaninhas altas, copi-

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ando feitiços de livros enormes, encadernados emcouro. Cada livro tinha uma fechadura de cobre, paraque os segredos da família não pudessem ser rouba-dos. Antonio e Paolo atravessaram a sala pé ante pé.Rinaldo sorriu para eles sem parar de copiar. En-quanto outras canetas arranhavam e estacavam, a deRinaldo disparava.

No aposento atrás do Scriptorium, Tio Loren-zo e o Primo Domenico estavam carimbando cavalosalados em envelopes verde-musgo. Quando eles pas-saram por ali, Tio Lorenzo lançou um olhar intensopara o rosto deles e concluiu que o problema não eragrande demais para o Velho Niccolo sozinho. Piscoupara Paolo e ameaçou carimbar um cavalo alado nele.

O Velho Niccolo estava no aposento seguinte— a biblioteca, quente e embolorada — com TiaFrancesca, consultando um livro num aparador. TiaFrancesca era irmã do Velho Niccolo, portanto, narealidade, uma tia-avó. Parecia um barril: era duas ve-zes mais gorda do que Tia Anna. E era ainda maiscarinhosa do que Tia Gina. Estava dizendo apaixona-damente:

— Mas os feitiços da Casa Montana têm sem-pre uma certa elegância. Isto está sem graça! Alémdisso, é...

Os dois rostos redondos voltaram-se na dire-ção de Antonio e Paolo. O rosto do Velho Niccolo, etambém os seus olhos, eram redondos e maravilha-dos, como os do bebê mais novinho. O rosto de TiaFrancesca era pequeno demais para seu corpo imenso,e os olhos eram miúdos e sagazes.

— Eu já estava indo — disse o Velho Niccolo.

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— Pensei que era Tonino quem estava com proble-mas, mas você me trouxe Paolo.

— Paolo não está com problemas — declarouTia Francesca. Os olhos redondos do Velho Niccolopiscaram para Paolo.

— Paolo, o que seu irmão sente não é culpasua — disse ele.

— Não. Acho que na verdade é a escola —respondeu o menino.

— Pensamos que talvez Elizabeth pudesse ex-plicar a Tonino que quem mora nesta casa aprendefeitiços quase que automaticamente — Antonio suge-riu.

— Mas Tonino tem ambição! — exclamou TiaFrancesca.

— Acho que não — retrucou Paolo.— Não, mas ele está infeliz — disse o avô. —

E precisamos pensar na melhor maneira de conso-lá-lo. Já sei! — Seu rosto infantil iluminou-se. —Benvenuto!

Embora o Velho Niccolo não tivesse dito issoem voz muito alta, alguém na varanda gritou de ime-diato:

— O Velho Niccolo está chamando Benvenu-to! Houve Correrias e chamados no pátio. Alguémdeu alguns golpes num barril de água com um pedaçode pau.

— Benvenuto! Onde foi parar esse gato? Ben-venuto!

Naturalmente, Benvenuto só apareceu quandosentiu vontade. Era o gato-chefe da Casa Montana.Cinco minutos se passaram até Paolo escutar suas

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passadas firmes ao longo das telhas do telhado da va-randa. Depois ouviu-se um baque surdo, quandoBenvenuto deu um salto difícil, por cima da balaus-trada, até o piso da varanda. Logo em seguida ele a-pareceu no peitoril da janela.

— Ah, finalmente! — exclamou o Velho Nic-colo. — Eu estava começando a ficar impaciente.

No mesmo instante Benvenuto ergueu umapata traseira negra e acomodou-se para lambê-la, co-mo se fosse para fazer isso que ele havia ido até lá.

— Ah, não, por favor — pediu o Velho Nic-colo. — Preciso da sua ajuda.

Os olhos grandes e amarelos de Benvenutovoltaram-se para o Velho Niccolo. Não era um gatobonito: a cabeça era incomumente grande e pesada,com marcas cinzentas deixadas por muitas e muitaslutas. As brigas haviam deixado suas orelhas caídassobre os olhos, de modo que Benvenuto dava a im-pressão de estar sempre usando um boné marrom erafrangalhos. Uma centena de mordidas havia deixadoas suas orelhas entalhadas como folhas de azevinho.Logo acima do focinho, dando-lhe uma expressãozombeteira e contorcida, havia três grandes manchasbrancas que nada tinham a ver com a posição deBenvenuto como gato-chefe numa casa de feitiços;eram o resultado de seu fraco por bifes. Ele enfiara-sesob os pés de Tia Gina quando ela estava cozinhando,e Tia Gina derramara gordura quente sobre a cabeçadele. Por este motivo, Benvenuto e Tia Gina semprefaziam questão de ignorar-se mutuamente.

— Tonino está infeliz — disse o Velho Nicco-lo.

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Benvenuto pareceu achar que aquilo era dignoda sua atenção: encolheu a perna estendida, saltoupara o piso da biblioteca e subiu para o topo do livrono aparador, tudo em um único movimento, pare-cendo não flexionar um só músculo. E ali ficou, ba-lançando educadamente a única coisa bela nele: acausa negra e peluda. O resto da pelagem desbotarapara um marrom manchado. A parte o rabo, a únicacoisa que mostrava que Benvenuto já fora um magní-fico gato persa negro era a penugem macia em suaspatas traseiras. E, como todos os gatos de Capronahaviam aprendido às próprias custas, aquela penugemescondia músculos iguais aos de um buldogue.

Paolo ficou olhando seu avô conversar cara acara com Benvenuto. Ele próprio sempre trataraBenvenuto com respeito, naturalmente. Era fato co-nhecido que Benvenuto não aceitava ficar no colo depessoa alguma, e arranhava quem tentasse erguê-lo dochão. Paolo sabia que todos os gatos ajudavam mara-vilhosamente os feitiços, mas até então não se deraconta de que os gatos compreendiam tanto. E tinhacerteza de que Benvenuto estava respondendo aoVelho Niccolo, por causa das pausas que o avô fazia,como se estivesse escutando as respostas. Paolo olhoupara o pai, para ver se aquilo era verdade. Antonioestava muito aflito. E Paolo compreendeu, pela ex-pressão angustiada do pai, que era muito importanteser capaz de entender o que os gatos diziam, e queAntonio jamais conseguiria. Muito preocupado, Paolopensou: estava na hora de começar a aprender a com-preender a linguagem de Benvenuto.

— Qual dos gatos você sugere? — perguntou o

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Velho Niccolo. Benvenuto ergueu a pata dianteiradireita e aplicou nela uma leve lambida. O rosto doVelho Niccolo abriu-se em um de seus sorrisos debebê.

— Que tal isso? Ele mesmo vai se encarregar!Benvenuto sacudiu para o lado a ponta da cau-

da. Então desapareceu, saltando de volta para a janelanum movimento tão fluido e rápido que dava a im-pressão de um pincel pintando uma linha escura noar. Deixou Tia Francesca e o Velho Niccolo com lar-gos sorrisos, e Antonio ainda com expressão infeliz.

— O caso de Tonino está resolvido — anun-ciou o Velho Niccolo. — Não precisamos nos preo-cupar mais, a não ser que ele nos preocupe.

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CAPÍTULO II

Tonino já estava se sentindo melhor: o burbu-rinho das ruas douradas de Caprona o acalmara. Nasmais estreitas ele caminhava pelo centro, sobre a faixade luz do sol, roupas a secar no varal sacudindo-seacima dele, e brincava: se pisasse numa sombra, mor-reria na mesma hora. Na verdade, ele morreu algumasvezes antes de chegar ao Corso. Primeiro, uma multi-dão de turistas empurrou-o para fora da faixa de sol;depois duas carroças e uma carruagem fizeram omesmo. E uma vez um automóvel comprido e bri-lhante aproximou-se lentamente, rosnando, e buzinoucom força para abrir caminho.

Quando estava perto do Corso, Tonino ouviuum turista dizer em inglês:

— Ah, veja só! Marionetes! A peça é Punch eJudy!

Orgulhoso por ter sido capaz de entender, To-

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nino esgueirou-se, deu empurrões e chegou a rastejar,até chegar à primeira fila da multidão e poder ver ofantoche Punch matar a boneca Judy a pancadas noalto do seu palquinho pintado. O menino bateu pal-mas e soltou vivas, e quando alguém também veioabrindo caminho pela multidão e o empurrou para olado, Tonino ficou tão indignado quanto os outros.Esquecera-se inteiramente de que estava infeliz.

— Não empurre! — gritou.— Tenha dó! Preciso ver o Punch enganar o

Carrasco! — protestou o homem.— Então cale a boca! — ordenaram as pessoas

em volta, inclusive Tonino.— Eu só disse que... — o homem começou.

Era uma pessoa corpulenta, de rosto úmido e modosestranhamente excitados.

— Cale a boca! — gritaram todos.O homem ofegava, sorria e contemplava, bo-

quiaberto, Punch atacar o Policial. Parecia o mais no-vinho dos meninos ali presentes. Tonino, irritado,lançou-lhe um olhar de soslaio e concluiu que o ho-mem era, provavelmente, um doido amigável. Soltavaenormes gargalhadas diante das piadas mais bobas, eestava vestido de maneira muito estranha: usava umterno de reluzente seda vermelha com botões doura-dos cintilantes e medalhas espalhafatosas. Em lugar dagravata costumeira ele tinha um pano branco dobradono pescoço, preso no lugar por um broche que cinti-lava como uma lágrima. Seus sapatos ostentavam pre-silhas brilhantes, e ele trazia rosetas douradas nas ligasà altura dos joelhos. Com o rosto suarento e os dentesbrancos e brilhantes à mostra quando ele ria, o ho-

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mem reluzia por inteiro.O boneco chamado Punch também o perce-

beu.— Ah, que sujeito esperto! — entoou, dando

pulinhos em sua pequena plataforma de madeira. —Vejo botões dourados. Será o Papa?

— Ah, não sou, não! — berrou o Sr. Cintilante,deliciado.

— Será o Duque? — grasnou o boneco.— Ah, não sou, não! — rugiu o Sr. Cintilante e

o resto da assistência.— Ah, é sim! — Punch insistiu.Enquanto todos gritavam “Ah, não é não!”,

dois homens de fisionomia preocupada abriram ca-minho por entre a multidão até chegarem ao Sr. Cin-tilante.

— Vossa Graça, o Bispo chegou à Catedral hámeia hora — disse um deles.

— Ah, que aborrecimento! — respondeu o Sr.Cintilante. — Por que vocês estão sempre me impor-tunando? Será que não posso ficar... só até terminar?Adoro esta história.

Os dois o encararam com reprovação.— Ora, muito bem. Vocês dois paguem ao ar-

tista. Dêem alguma coisa a cada pessoa aqui — disseo Sr. Cintilante. Ele virou-se e saiu apressado peloCorso, ofegando.

Por um instante Tonino perguntou-se se o Sr.Cintilante seria mesmo o Duque de Caprona. Mas osdois homens não fizeram menção de pagar ao artistaou a qualquer outra pessoa; simplesmente saíram tro-tando atrás do Sr. Cintilante, como se temessem per-

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dê-lo de vista. Por este fato Tonino concluiu que o Sr.Cintilante era mesmo um lunático — e rico — e queeles estavam tentando mantê-lo satisfeito.

— Gentinha pão-duro! — comentou o Sr.Punch, passando então a dedicar-se a enganar o Car-rasco para que este fosse enforcado em seu lugar.

Tonino ficou assistindo até o Sr. Punch fazeruma mesura e retirar-se em triunfo para a casinhapintada nos fundos do palco. Então o menino deu-lheas costas, lembrando-se da sua infelicidade.

Não sentia a menor vontade de voltar para acasa; não sentia vontade de fazer coisa alguma. Con-tinuou vagando na direção em que seguia antes, atéencontrar-se na Praça Nova, no alto da colina na ex-tremidade ocidental da cidade. Ali, sentou-se melan-colicamente no parapeito e ficou a contemplar a pai-sagem do outro lado do Rio Voltava, as ricas mansõese o Palácio Ducal, e os longos arcos da Ponte Nova,perguntando-se se iria passar o resto da vida dentro deuma névoa de burrice.

A Praça Nova tinha sido construída na mesmaépoca da Ponte Nova, cerca de uns 70 anos antes,para possibilitar a todos a grandiosa vista de Capronaque Tonino contemplava naquele momento. Era detirar o fôlego. Mas o problema era que tudo o queTonino enxergava tinha algo a ver com a Casa Mon-tana.

O Palácio Ducal, por exemplo, cujas torres depedra dourada desenhavam linhas nítidas no azul lím-pido do céu. Cada torre dourada era mais larga notopo, de modo que os soldados nas ameias, sob asbandeiras vermelhas e douradas que tremulavam ao

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vento, não poderiam ser alcançados por quem a esca-lasse. Tonino distinguia os escudos embutidos nasameias, dois de cada lado — um, vermelho-cereja, e ooutro, verde-musgo, mostrando que os Montana e osPetrocchi haviam colocado um feitiço para defendercada torre. E abaixo, a grande fachada de mármorebranco era incrustada de outros mármores de todas ascores do arco-íris; e entre essas cores estavam o ver-melho-cereja e o verde-musgo.

Cada uma das amplas mansões douradas naencosta do morro abaixo do Palácio tinha na paredeum disco verde-musgo ou vermelho-cereja. Algunsficavam semi-ocultos pelos ramos escuros dos ele-gantes arbustos plantados na frente deles, mas Toninosabia que estavam ali. E cada um dos arcos de pedra emetal da Ponte Nova que se afastavam dele na direçãodas mansões e do Palácio ostentava uma placa de es-malte, alternadamente verde e vermelha: a Ponte No-va havia sido fortalecida pelos mais poderosos feitiçosde sustentação que a Casa Montana e a Casa Petrocchitinham condições de produzir.

Naquela época do ano o rio era apenas um fiode água sobre o cascalho e dava a impressão de quenão havia necessidade de feitiços. Mas no inverno,quando a chuva caía nos Apeninos, o Voltava torna-va-se uma torrente furiosa. Os arcos da Ponte Novamal ficavam acima da água. A Ponte Velha — queTonino conseguia avistar esticando-se para a frente epara o lado — costumava ficar debaixo d’água, e osoratórios em forma de casinhas engraçadas que fica-vam ao longo dela não podiam ser utilizados. Só osfeitiços dos Montana e dos Petrocchi enterrados nas

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fundações da Ponte Velha impediam que a correntezaa carregasse.

Tonino ouvira o Velho Niccolo dizer que osfeitiços da Ponte Nova tinham exigido todos os es-forços da família Montana inteira. O Velho Niccoloajudara a produzi-los quando tinha a idade de Tonino.Tonino não teria conseguido fazer isso. Deprimido,ele baixou os olhos para as paredes douradas e as te-lhas vermelhas da cidade de Caprona lá embaixo. Ti-nha quase certeza de que cada telha escondia pelomenos uma tirinha de papel verde-musgo. E o máxi-mo que Tonino já fizera havia sido ajudar a carimbaro cavalo alado nos envelopes. Pior: tinha certeza deque isso era tudo o que ele faria.

Tonino teve a sensação de que alguém o cha-mava. Olhou em volta da Praça Nova: ninguém. A-pesar do panorama, a Praça ficava distante demaispara os turistas visitarem. Tudo o que Tonino conse-guia ver eram as maciças estátuas de ferro dos grifoscom cabeça de águia e garras de leão, que assomavama distâncias regulares em todo o parapeito, erguendopara o céu as patas de metal. Mais grifos amontoa-vam-se num grupo em luta no centro da praça, paraformar um chafariz. E mesmo ali Tonino não conse-guia fugir da sua família: havia uma plaquinha de me-tal embutida na pedra abaixo das garras de ferro dogrifo mais próximo a ele. Ela era verde-musgo. Toni-no deu-se conta de que estava chorando.

Por entre as lágrimas ele por um momento tevea impressão de que um dos grifos mais distantes haviaabandonado seu poleiro de pedra e viera trotando pe-lo parapeito em direção a ele. O grifo havia abando-

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nado as asas, ou as tinha fechado. Então a figura lhedisse, em tom bastante paternalista, que os gatos nãoprecisavam de asas. Era Benvenuto, que se sentou noparapeito ao lado dele e ficou a encará-lo com censu-ra.

Tonino, que sempre tivera um respeito enormepor Benvenuto, estendeu a mão para ele com timidez.

— Olá, Benvenuto.Benvenuto ignorou a mão estendida. Disse que

ela estava molhada de água dos olhos de Tonino e queisso fazia um gato perguntar-se por que Tonino estavasendo tão bobo.

— Os nossos feitiços estão por toda parte. Eeu jamais vou conseguir aprender a fazer... — Toninoexplicou. — Acha que é porque eu sou metade inglês?

Benvenuto respondeu que não tinha certeza dadiferença que aquilo poderia fazer. Tudo que aquelefato significava, pelo que ele compreendia, era quePaolo tinha olhos azuis como um siamês e Rosa tinhapelagem branca...

— Cabelos louros — Tonino corrigiu.Mas Benvenuto, imperturbável, prosseguiu,

sem se deixar interromper: ... e o próprio Tonino ti-nha cabelos de gato malhado, como as listras claras deum gato malhado. E eram todos gatos, não eram?

— Mas sou tão burro... — Tonino começou.Benvenuto interrompeu-o para dizer que na vésperaescutara

Tonino conversando com aqueles gatinhos, econsiderava Tonino muito mais inteligente do queeles. E antes que Tonino pudesse objetar que eramapenas filhotes, acrescentou: o próprio Tonino não

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era também só um filhote?Diante disso, Tonino riu e enxugou a mão na

calça. Quando tornou a estendê-la para Benvenuto, ogato ergueu-se nas quatro patas, muito alto, e aproxi-mou-se dele ronronando. Tonino aventurou-se a aca-riciá-lo. Benvenuto ficou andando em círculos, ron-ronando e arqueando o dorso, como o gatinho maisnovinho e mais carinhoso da Casa. Tonino encon-trou-se sorrindo de orgulho e prazer. Percebia, pelosmovimentos da cauda peluda de Benvenuto em es-pasmos majestosos e contrafeitos, que Benvenuto nofundo não gostava de ser acariciado — o que tornavaaquele momento uma honra ainda maior.

Assim está melhor, disse-lhe Benvenuto. O ga-to subiu para as pernas nuas de Tonino e acomo-dou-se em seu colo, como se fosse um tapete marrome musculoso. Tonino continuou fazendo-lhe carícias.De sob uma das pontas do tapete surgiram garras afi-adas, que picaram dolorosamente as coxas de Tonino.Benvenuto continuava a ronronar: será que Toninopodia ver as coisas de outra maneira, e perceber queambos, menino e gato, faziam parte da Casa mais fa-mosa de Caprona, que, por sua vez, fazia parte domais especial de todos os Ducados italianos?

— Sei disso. E é porque acho isso maravilhosoque eu... Somos mesmo tão especiais?

Naturalmente, ronronou Benvenuto. E se To-nino se inclinasse para fora e olhasse para a Catedral,veria a razão.

Obedientemente, Tonino inclinou-se e olhou.As enormes bolhas de mármore que eram os domosda Catedral erguiam-se por entre as casas no final do

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Corso. Ele sabia que nunca existira uma edificaçãocomo aquela. Branca, dourada e verde, a Catedral flu-tuava, altaneira. E no topo do domo mais elevado cin-tilava a grandiosa figura dourada do Anjo, ali pousadode asas abertas, segurando em uma das mãos um per-gaminho dourado. Ele dava a impressão de estar a-bençoando toda Caprona.

Aquele anjo, Benvenuto informou-lhe, estavaali como sinal de que Caprona estaria segura enquantotodos cantassem a canção “O Anjo de Caprona”. OAnjo trouxera a canção num pergaminho diretamentedo Céu para o Primeiro Duque de Caprona, e seupoder expulsara o Demônio Branco e tornara Capro-na grandiosa. O Demônio Branco desde então vagavapelas cercanias de Caprona, tentando voltar para den-tro da cidade, mas enquanto a canção fosse entoada,ele jamais conseguiria.

— Sei disso — disse Tonino. — Cantamos o“Anjo” todos os dias na escola. — Aquilo trouxe devolta a parte mais importante da sua infelicidade. —Eles insistem em me fazer aprender História... e todotipo de coisas... e eu não consigo, porque já sei, entãonão consigo aprender direito.

Benvenuto parou de ronronar. Ele estremeceu,porque os dedos de Tonino tinham encontrado umdos muitos nós da sua pelagem. Ainda estremecendo,ele perguntou, com certo azedume, por que não o-correra a Tonino contar a eles na escola que já sabiaaquelas coisas.

— Desculpe! — disse Tonino, afastando osdedos. E explicou: — Mas eles ficam dizendo quetenho que aprender do jeito deles, senão não vou

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conseguir aprender direito.Ainda irritado, Benvenuto disse que, bem, na-

turalmente dependia de Tonino, mas parecia não fazersentido aprender as coisas duas vezes. Um gato nãoaceitaria isso. E já era hora de começarem a voltarpara casa. Tonino suspirou.

— É, acho que sim. Devem estar preocupados.Ele pegou Benvenuto nos braços e levantou-se. Ben-venuto gostou daquilo. E ronronou: não era por causada preocupação dos Montana que eles deviam voltar;na verdade, era porque as tias estariam cozinhando oalmoço e seria mais fácil para Tonino do que paraBenvenuto roubar um belo pedaço de vitela.

Aquilo fez Tonino rir. Enquanto começava adescer os degraus para a Ponte Nova, ele disse:

— Sabe, Benvenuto, você ficaria muito maisconfortável se me deixasse tirar esses nós do seu pêloe penteá-lo um pouco.

Benvenuto declarou que qualquer pessoa quetentasse penteá-lo sairia arranhada por todas as garrasque ele possuía.

— E escovar?Benvenuto disse que pensaria sobre o assunto.Foi ali que Lucia os encontrou. A essa altura,

havia procurado Tonino em toda Caprona e estavapreparada para ficar extremamente zangada. Mas avisão da fisionomia feia e contorcida de Benvenutoencarando-a por entre os braços de Tonino deixou-acom pouquíssima coisa a dizer.

— Vamos nos atrasar para o almoço — decla-rou.

— Não vamos, não — disse Tonino. — Va-

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mos chegar bem a tempo para você vigiar enquantoroubo um pouco de vitela para Benvenuto.

— É bem típico de Benvenuto ter pensadonisso — Lucia comentou. — Então trata-se do iníciode um relacionamento lucrativo, afinal?

Benvenuto disse a Tonino que aquela era umaboa maneira de definir a situação.

— É uma boa maneira de definir a situação —Tonino disse a Lucia.

De qualquer maneira, Lucia ficou suficiente-mente impressionada para aceitar começar uma con-versa com Tia Gina e distraí-la enquanto Toninoconseguia a vitela para Benvenuto. E todos ficaramtão felizes por Tonino estar de volta são e salvo quenão se zangaram muito. No entanto, naquela tardeCorinna e Rosa zangaram-se muito, quando Corinnaperdeu a tesoura e Rosa, a sua escova. Ambas saíramfuriosas para a varanda. Paolo estava lá, observandoTonino cortar, com delicadeza e cautela, os nós dopêlo de Benvenuto. A escova estava ao lado do me-nino, cheia de pêlos marrons.

— E você consegue mesmo entender o que elediz? — Paolo estava perguntando.

— Consigo entender o que todos os gatos di-zem. Não se mexa, Benvenuto. Este está bem pertoda pele — disse Tonino.

O status de Benvenuto — portanto, o de To-nino também — ficou bem evidente pelo fato de quenem Rosa, nem Corinna ousaram dizer uma só pala-vra ao menino. Em vez disso, voltaram-se para Paolo.

— Que história é esta, Paolo, de você ficar pa-rado aí deixando seu irmão sujar a escova? Por que

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não o obrigou a usar a tesoura da cozinha?Paolo não se importou; estava aliviado demais

por não ter que aprender, ele também, a compreendero que os gatos diziam. Não saberia sequer como co-meçar.

Dessa ocasião em diante, Benvenuto passou aconsiderar-se o gato especial de Tonino. E isso fezdiferença para ambos. Benvenuto, com a escovaçãoconstante — pois Rosa comprou e deu a

Tonino uma escova especial para o animal — e,quase com a mesma constância, um suprimento decomida surrupiada debaixo do nariz da Tia Gina, logocomeçou a adquirir uma aparência mais jovem e maisbem-cuidada. Tonino, por sua vez, esqueceu-se deque alguma vez se sentira infeliz; ele era, agora, umapessoa especial e cheia de orgulho. Quando o VelhoNiccolo precisava de Benvenuto, tinha que pedir pri-meiro a Tonino. Benvenuto recusava-se terminante-mente a fazer qualquer coisa para qualquer pessoasem a permissão de Tonino. Paolo achava muita graçana irritação que isso provocava no Velho Niccolo.

— Esse gato se aproveita de mim! — queixa-va-se. — Peço a ele para me fazer um favor, e que éque recebo? Ingratidão!

No fim, Tonino foi obrigado a dizer a Benve-nuto para colocar-se à disposição do Velho Niccoloenquanto o menino estivesse na escola. Caso contrá-rio, Benvenuto simplesmente desaparecia o dia intei-ro. Mas, sempre, sem falhar, reaparecia por volta dastrês e meia e ia sentar-se no grande barril de água maisperto do portão, onde ficava a esperar por Tonino. Eassim que Tonino atravessava o portão Benvenuto

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saltava para os braços dele.Aquilo acontecia até mesmo nas ocasiões em

que Benvenuto não estava disponível para qualqueroutra pessoa — em geral, durante a lua cheia, quandoas gatas miavam tentadoramente nos telhados de Ca-prona.

Na segunda-feira Tonino foi para a escola, de-pois de meditar sobre o conselho de Benvenuto. Equando, em dado momento, deram-lhe a figura de umgato e ensinaram-lhe que as formas sob a figura for-mavam “ga-to”, Tonino reuniu coragem e sussurrou:

— Sim. É um G, um A, um T e um O. Eu seiler.

A professora, que era nova em Caprona, ficoucompletamente atônita, e chamou a Diretora.

— Ah, é outro Montana — esta explicou. —Eu devia ter lhe avisado. Todos eles sabem ler. Alémdisso, a maioria deles sabe latim, que usam com fre-qüência em seus feitiços, e alguns também falam in-glês. Mas você vai ver que na aritmética eles não ficamacima da média.

De modo que deram a Tonino um livro deverdade, enquanto os outros aprendiam o alfabeto. Olivro era fácil demais para ele; o menino terminou-oem dez minutos, e tiveram de lhe dar outro.

E foi assim que ele descobriu a leitura. ParaTonino, ler um livro logo se tornou um encantamentoacima de qualquer feitiço. Ele nunca se cansava. Vas-culhou toda a casa dos Montana e a Biblioteca Públi-ca, e gastava toda a sua mesada em livros. Logo tor-nou-se fato conhecido que o melhor presente que al-guém poderia dar a Tonino era um livro — e o me-

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lhor livro seria sobre uma situação inimaginável emque não existiam feitiços. Pois Tonino preferia a fan-tasia: nos seus livros favoritos, as pessoas viviam a-venturas incríveis sem a magia para ajudá-las ou pre-judicá-las.

Benvenuto aprovava plenamente. EnquantoTonino lia, se mantinha imóvel, e um gato podia ficarconfortável sentado no colo dele. Paolo implicava umpouco com Tonino, chamando-o de rato de bibliote-ca, mas no fundo não achava isso ruim. Sabia quesempre conseguiria convencer Tonino a largar o livro,se precisasse realmente dele.

Antonio estava preocupado. Preocupava-secom tudo. Tinha medo de que Tonino não estivessefazendo suficiente exercício. Mas todas as outras pes-soas da Casa diziam que isso era besteira. Elas tinhamorgulho de Tonino. Ele era tão estudioso quanto Co-rinna, diziam, e, sem dúvida, ambos terminariam naUniversidade de Caprona, como o tio-avô Umberto.Os Montana sempre tinham alguém da família naUniversidade. Isto significava que não estavam guar-dando egoisticamente a Teoria da Magia na família, eera também muito útil para terem acesso aos feitiçosna Biblioteca da Universidade.

Apesar das esperanças nele depositadas, Toni-no continuava a mostrar-se lento no aprendizado defeitiços e não particularmente esperto na escola. Paoloera duas vezes mais rápido nas duas coisas. A medidaque os anos passavam, porém, ambos vieram a aceitareste fato. Isto não os preocupava. O que os preocu-pava muito mais era a sua descoberta gradual de queas coisas não iam inteiramente bem na Casa Montana,

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nem em Caprona.

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CAPÍTULO III

Foi Benvenuto quem primeiro preocupou To-nino. Apesar dos cuidados que Tonino lhe dispensa-va, ele começou novamente a emagrecer e sua aparên-cia ficava cada vez pior. Ora, Benvenuto tinha maisou menos a mesma idade de Tonino. Tonino sabiaque aquela era uma idade avançada para um gato, e noprincípio imaginou que Benvenuto estava simples-mente ficando velho. Depois percebeu que o VelhoNiccolo começava a parecer tão preocupado quantoAntonio, e que o Tio Umberto telefonava para ele daUniversidade quase todos os dias. Cada vez que eleligava, o Velho Niccolo ou a Tia Francesca manda-vam chamar Benvenuto, que voltava exausto. Portan-to, ele perguntou a Benvenuto o que havia de errado.

A resposta de Benvenuto foi que eles bem po-deriam deixar um pobre gato ter alguma paz, mesmosendo o Duque um idiota. E que ele não ia deixar queainda por cima Tonino o amolasse.

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Tonino consultou Paolo e ficou sabendo quePaolo também estava preocupado. Paolo vinha repa-rando em sua mãe. Os cabelos dela, que eram louros,ultimamente vinham ficando bem mais claros, porcausa de todos os fios brancos, e ela parecia nervosa otempo todo. Quando Paolo perguntou a Elizabethqual era o problema, ela respondeu:

— Ah, não é nada, Paolo. Só que tudo istotorna muito difícil encontrar um marido para a Rosa.

Rosa tinha então 18 anos. A Casa inteira ocu-pava-se em discussões sobre um marido para ela, eparecia haver — como Paolo vinha reparando —muito mais aflição e ansiedade sobre esse assunto doque houvera a respeito da Prima Claudia, três anosantes. Os Montana precisavam ter cuidado na escolhada pessoa com quem se casariam. Era fácil entender:eles precisavam casar-se com alguém que tivesse ta-lento pelo menos para feitiços ou para o canto; e tinhade ser alguém com quem o resto da família simpati-zasse; e, acima de tudo, era preciso que fosse alguémsem qualquer espécie de ligação com os Petrocchi.Mas a Prima Claudia conhecera Arturo e se casaracom ele sem toda aquela confusão e discussão queestava havendo em relação a Rosa. Paolo só podiaimaginar que o motivo era “tudo isto”, fosse o quefosse que Elizabeth queria dizer com essa expressão.

Qualquer que fosse o motivo, as discussõeseram constantes. Antonio, ansioso, falava em ir à In-glaterra consultar alguém chamado Crestomanci sobreo assunto.

— Queremos para ela um produtor de feitiçosrealmente forte — disse.

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Elizabeth respondeu-lhe que Rosa era italiana edeveria casar-se com um italiano. O resto da famíliaconcordava com ela, embora afirmasse que o italianoprecisava ser de Caprona. De modo que a questão era:quem?

Paolo, Lucia e Tonino não tinham dúvidas:queriam que Rosa se casasse com seu primo Rinaldo.Parecia-lhes inteiramente apropriado. Rosa era linda,Rinaldo era bonitão, e no caso dele ninguém poderiafazer qualquer das objeções costumeiras.

Porém havia dois empecilhos. O primeiro eraque Rinaldo não se mostrava verdadeiramente inte-ressado em Rosa; no momento ele estava desespera-damente apaixonado por uma moça que era inglesa deverdade. O nome dela era Jane Smith, e Rinaldo tinhaalguma dificuldade era pronunciá-lo. Ela viera copiaralguns dos quadros na Galeria de Arte que havia noCorso. Era uma moça romântica e, para agradar-lhe,Rinaldo adquiriu o hábito de vestir-se de preto comum lenço vermelho no pescoço, como um bandoleiro.E comentou que andava pensando em deixar crescertambém um bigode de bandoleiro. Com tudo isso,não lhe sobrava tempo para uma prima com quem eleconvivera durante toda a vida.

O outro empecilho era a própria Rosa. Ela ja-mais se interessara por Rinaldo. E parecia ser a únicapessoa na Casa inteiramente despreocupada com re-lação à pessoa com quem se casaria. Quando as dis-cussões ficavam mais acaloradas, ela balançava os ca-belos louros que lhe chegavam aos ombros e sorria.

— Escutando vocês, qualquer pessoa pensariaque eu não tenho o direito de dar opinião neste as-

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sunto. É mesmo muito engraçado — dizia.Durante aquele outono, a preocupação cresceu

na Casa Montana. Paolo e Tonino perguntaram à TiaMaria qual era o problema; Tia Maria disse a princípioque eles eram jovens demais para compreender. De-pois, como em certos momentos ela ficava tão exal-tada quanto a Tia Gina ou até mesmo a Tia Francesca,ela lhes anunciou, repentina e fervorosamente, queCaprona estava a caminho do abismo.

— Tudo está saindo errado para nós — conti-nuou. — O dinheiro está curto, os turistas não vêmaqui, e a cada ano ficamos mais fracos. Aí estão Flo-rença, Pisa e Siena, todas nos cercando como urubus,e a cada ano uma delas ganha um pouco mais de qui-lômetros quadrados de Caprona. Se isso continuarassim, deixaremos de ser um Ducado. E, ainda porcima, este ano a colheita se perdeu. E tudo por culpadaqueles depravados dos Petrocchi, eu garanto! Osfeitiços deles não funcionam mais. Nós, Montana, nãoconseguimos segurar Caprona sozinhos! E os Pe-trocchi nem mesmo tentam! Ficam simplesmente fa-zendo as mesmas coisas da mesma maneira de anti-gamente, e indo de mal a pior. Isto a gente percebe,pois se não fosse assim, aquela criança não consegui-ria fazer o pai ficar verde!

Isso, por si só, já era bastante perturbador. Eparecia ser mesmo verdade. Durante todos os anosem que Paolo e Tonino foram à escola, tinham ficadoacostumados a escutar que houvera uma concessãopara Florença, que Pisa exigira um acordo sobre osdireitos de pescaria ou que Siena aumentara as taxasde importação dos produtos de Caprona. Estavam

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acostumados demais para perceber. Mas agora tudoaquilo parecia sinistro. E logo aconteceu uma coisaainda pior: chegaram notícias de que as enchentes doinverno haviam provocado graves rachaduras naPonte Velha.

Essa notícia causou grande consternação naCasa Montana, já que a ponte deveria ter resistido. Secedeu, isso significava que os encantamentos dosMontana nos alicerces também haviam cedido. TiaFrancesca saiu aos berros para o terraço.

— Aqueles Petrocchi degenerados! — gritava.— Já não conseguem manter nem mesmo um feitiçoantigo! Fomos atraiçoados!

Embora ninguém encarasse as coisas exata-mente assim, provavelmente Tia Francesca falara portoda a família.

E, como se isso não fosse suficiente, naquelanoite Rinaldo saiu para visitar sua namorada inglesa efoi levado de volta para casa jorrando sangue, carre-gado pelos primos Cario e Giovanni. Rinaldo, usandopalavrões que Paolo e Tonino nunca haviam escutado,disse que tinha encontrado alguns Petrocchi e oschamara de degenerados. E então foi a vez da TiaMaria sair correndo para o terraço aos berros, gritan-do coisas horrorosas sobre os Petrocchi. Rinaldo era amenina-dos-olhos da Tia Maria.

Rinaldo já havia sido medicado e colocado nacama quando Antonio e o Tio Lorenzo voltaram daPonte Velha, onde haviam ido verificar os estragos.Ambos tinham uma expressão muito grave no rosto.O velho Guido Petrocchi em pessoa estivera lá, como empreiteiro do Duque, o Sr. Andretti. Alguns en-

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cantamentos bastante profundos haviam cedido, epara consertá-los seriam necessárias pelo menos trêssemanas de trabalho de todos os membros de ambasas famílias, trabalhando em turnos.

— Seria muito bom se pudéssemos contar coma ajuda de Rinaldo — Antonio comentou.

Rinaldo jurou que no dia seguinte estaria emcondições de sair da cama e ajudar, mas Tia Maria nãoquis nem ouvir falar nisso. O médico também não.De modo que o resto da família foi dividido em tur-nos, e o trabalho continuou noite e dia. Todos os dias,Paolo, Lucia e Corinna iam diretamente da escola parao trabalho. Tonino não; ainda era muito pequeno paraser de grande utilidade. Porém, pelo que Paolo lhecontou, ele considerava que não estava perdendogrande coisa. Paolo simplesmente não conseguia a-companhar o ritmo furioso dos feitiços e recebeu afunção de levar e trazer recados, como o coitado doPrimo Domenico. Tonino sentia muita pena de Do-menico, que era o oposto de seu arrojado irmão Ri-naldo sob todos os aspectos e também não conseguiaacompanhar o ritmo das coisas.

O trabalho já prosseguia havia quase uma se-mana, muitas vezes debaixo de chuva forte, quando oDuque de Caprona convocou o Velho Niccolo parauma conversa.

O Velho Niccolo postou-se no pátio e arran-cou os cabelos que lhe restavam. Tonino pousou olivro (que se chamava “As máquinas da morte” e eramuito interessante) e foi ver se podia ajudar.

— Ah, Tonino, estou com problemas gigan-tescos — contou-lhe o Velho Niccolo, encarando-o

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com o rosto de um bebê triste. — Todos são necessá-rios na Ponte Velha, e aquele idiota do Rinaldo está decama, e tenho que aparecer diante do Duque com al-guém da minha família. Os Petrocchi também foramconvocados. Não podemos ter aparência pior do quea deles, afinal. Ah, por que Rinaldo escolheu justa-mente esta ocasião para gritar insultos tolos?

Tonino não tinha idéia do que dizer, portantoperguntou:

— Quer que eu chame Benvenuto?— Não, não — respondeu o Velho Niccolo,

mais contrafeito do que nunca. — A Duquesa nãosuporta gatos. Nisso Benvenuto não tem a menor uti-lidade. Serei obrigado a levar aqueles que não são úteisna ponte. Você irá, Tonino, e Paolo e Domenico, evou levar seu Tio Umberto para parecer sábio e depeso. Talvez assim não fiquemos parecendo tão ma-grelas.

Talvez aquele não fosse um convite dos maislisonjeiros, mas assim mesmo Tonino e Paolo ficaramdeliciados. Continuaram deliciados no dia seguinte,apesar de estar caindo uma chuva de inverno, forte epenetrante. Os integrantes do turno da madrugada,inteiramente molhados e frustrados, chegaram daPonte Velha debaixo de guarda-chuvas reluzentes degotas d’água. Em vez de descansarem, foram obriga-dos a aprontar o grupo para a visita ao Palácio.

A carruagem da família Montana foi puxada dacocheira até um local sob a varanda, onde passou poruma cuidadosa limpeza. Era um veículo grande e ne-gro, com janelas de vidro e enormes rodas negras. Ocavalo alado dos Montana estava pintado num escudo

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verde nas portas pesadas.A chuva continuava forte. Paolo, que odiava a

chuva tanto quanto os gatos odiavam, sentiu-se alivi-ado porque a carruagem era de verdade. Os cavalosnão eram; consistiam em quatro figuras de cavalo re-cortadas em papelão branco, que ficavam guardadasna cocheira, apoiadas à parede. Aquilo era uma idéiaeconômica do pai do Velho Niccolo. Como ele expli-cou, cavalos de verdade necessitavam de exercícios eocupariam um espaço que a família poderia muitobem utilizar para outra coisa. O cocheiro era tambémuma figura de papelão — pelas mesmas razões —mas ficava guardado dentro da carruagem.

Os meninos estavam ansiosos para ver as figu-ras de papelão adquirirem vida, mas foram arrastadospara dentro de casa pela mãe. Os cabelos de Elizabethestavam empapados, por causa do trabalho na ponte,e ela bocejava tanto a ponto de seu queixo chegar aestalar, mas aquilo não a impediu de submeter Paolo eTonino a uma cuidadosa sessão de esfregar, pentear evestir. Quando eles desceram para o pátio novamente,ambos com os cabelos molhados grudados ao crânioe usando incômodos colarinhos brancos e largos aci-ma dos pesados paletós ao estilo de Eton, o feitiço játinha sido realizado. As faixas de feitiços haviam sidocuidadosamente enroladas dentro dos arreios e o co-cheiro fora vestido com um paletó de papel cobertode feitiços pelo lado de dentro. Quatro lustrosos ca-valos brancos estavam sendo arreados, e o cocheiroestava sentado em seu banco, ajeitando o chapéu ver-de-musgo.

— Esplêndido! — proclamou o Velho Niccolo,

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saindo da casa de supetão. Ele olhou dos meninospara a carruagem com aprovação. — Entrem, meni-nos. Entre, Domenico. Ainda temos que pegar Um-berto na Universidade.

Tonino despediu-se de Benvenuto e entrou nacarruagem. Ela cheirava a mofo, apesar da limpeza.Ele gostou de ver o avô tão animado. A família soltouvivas quando a carruagem dirigiu-se para o portão, e oVelho Niccolo sorriu e acenou. Tonino ficou pen-sando que talvez alguma coisa boa resultasse daquelavisita ao Duque, e depois disso ninguém ficaria maistão preocupado.

A viagem na carruagem foi esplêndida. Toninonunca havia se sentido tão importante. A carruagemsacudia-se e fazia barulho. Os cascos dos cavalos res-soavam nas pedras do pavimento como se eles fossemde verdade, e as pessoas apressavam-se a abrir cami-nho respeitosamente. O cocheiro era o melhor queum feitiço poderia produzir. Apesar de haver poçasd’água em todas as ruas, a carruagem mal se molharaquando eles fizeram uma parada na Universidade, gri-tando bem alto “Ei!”.

Tio Umberto, usando sua beca vermelha edourada de Mestre, entrou no veículo, tão animadoquanto o Velho Niccolo.

— Bom dia, Tonino. Como vai o seu gato? —disse, dirigindo-se a Paolo. — Bom dia — disse aDomenico. — Ouvi dizer que você levou uma surrados Petrocchi.

Domenico, que preferia morrer a insultar atémesmo um Petrocchi, ficou mais vermelho do que abeca do Tio Umberto e engoliu em seco ruidosamen-

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te. Mas Tio Umberto nunca conseguia distinguir entreos Montana jovens. Ele sabia coisas demais. Olhoupara Tonino como se não soubesse quem ele era, evirou-se para o Velho Niccolo.

— Os Petrocchi certamente ajudarão — afir-mou. — Tive notícias de Crestomanci.

— Eu também — retrucou o Velho Niccolo,porém dando a impressão de que estava em dúvida.

A carruagem desceu o Corso sob a chuva e vi-rou para atravessar a Ponte Nova, ainda mais baru-lhentamente. Paolo e Tonino, excitados demais parafalar, contemplavam a chuva no lado de fora das ja-nelas. Deixando para trás o rio caudaloso, eles subi-ram a encosta onde os ciprestes sacudiam-se e curva-vam-se em frente às mansões ricas, e depois entre ve-lhos muros. Finalmente passaram sob um grande arcoe fizeram uma curva fechada para entrar no gigantes-co pátio do Palácio.

Na frente da carruagem deles, outra carruagem,que parecia ser de brinquedo sob a enorme fachada demármore do Palácio, estava justamente estacando di-ante do imenso pórtico de mármore. Aquela carrua-gem era negra também, e ostentava nas portas escu-dos vermelho-cereja com leopardos negros. Tinhamchegado tarde demais para ver as pessoas saltandodela, mas contemplaram com uma irritação invejosa acarruagem e os cavalos. Os animais eram negros, lin-dos e esguios, de pescoço arqueado.

— Acho que são de verdade — Paolo cochi-chou para Tonino. Tonino não teve tempo de res-ponder, porque dois lacaios e um soldado adianta-ram-se para abrir a porta da carruagem e ajudá-los a

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descer. Paolo saltou primeiro. Mas depois dele o Ve-lho Niccolo e Tio Umberto demoraram um pouco asair do veículo, e Tonino teve tempo de olhar pelaoutra janela a carruagem dos Petrocchi afastando-se.Quando ela fez a curva, o menino viu distintamenteuma pequena faixa de feitiço escarlate sob o arreio doanimal negro mais próximo.

Pronto, descobri!, pensou Tonino, sentindo-setriunfante. Mas tinha a impressão de que o cocheirodos Petrocchi era real.

Era um rapaz de cabelos ruivos que não com-binavam com a cor de cereja da libré, e apresentavauma fisionomia atenta e concentrada, como se nãoachasse fácil guiar aqueles cavalos de mentira. Seu o-lhar era humano demais para um homem de papelão.

Quando Tonino finalmente desceu, nos calca-nhares do nervoso Domenico, ele ergueu os olhospara o cocheiro da sua família, para fazer uma com-paração. Ele era competente e garboso. Fez uma sau-dação levando a mão estendida ao chapéu verde, emanteve os olhos fixos à frente. Não, o cocheiro dosPetrocchi era mesmo real, Tonino pensou com inveja.

Tonino esqueceu os dois cocheiros quando elee Paolo entraram no Palácio atrás dos outros. Era tãograndioso, tão imenso! Eles foram levados através delongos corredores de piso lustroso e teto dourado,que pareciam estender-se por muitos quilômetros.Nas paredes de ambos os lados havia estátuas, ousoldados, ou lacaios, em fileiras, aumentando a magni-ficência. Eles se sentiram tão oprimidos por toda a-quela grandiosidade que sentiram grande alívio quan-do foram levados para um aposento que tinha apenas

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as dimensões do pátio da casa dos Montana. Era ver-dade que o piso reluzia e o teto ostentava a pintura deum céu cheio de anjinhos lutando uns com os outros,mas nas paredes viam-se prosaicos panôs de tecidovermelho e ao longo de cada parede lateral havia umafileira de cadeiras douradas quase simples.

Outro grupo de pessoas foi introduzido na salaao mesmo tempo. Domenico deu uma olhada neles eimediatamente voltou os olhos para os anjos pintadosno teto. O Velho Niccolo e o Tio Umberto compor-tavam-se como se aquelas pessoas não estivessem ali,e Paolo e Tonino tentaram fazer a mesma coisa, masacharam impossível conseguir isso.

Lançando olhadelas de soslaio, eles pensavam:então aqueles eram os Petrocchi! Eram só quatro,contra os cinco da Casa

Montana: um ponto para os Montana. E doisdeles eram crianças! Era óbvio que os Petrocchi ha-viam experimentado tanta dificuldade quanto osMontana para se apresentarem diante do Duque comum grupo decente, e, na opinião de Paolo e Tonino,haviam cometido um grave erro ao deixar um mem-bro da família do lado de fora com a carruagem.

Não faziam uma boa figura. Seu representanteda Universidade era um frágil ancião que era muitomais idoso do que Tio Umberto e dava a impressãode estar quase perdido dentro de sua túnica vermelhae dourada. O mais impressionante deles era o chefedo grupo, que devia ser o próprio Velho Guido. Masnão era particularmente velho, como o Velho Nicco-lo, e, embora usasse a mesma espécie de fraque pretoque o Velho Niccolo e levasse o mesmo tipo de cha-

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péu lustroso, as vestes pareciam estranhas no VelhoGuido porque sua barba era de um vermelho intenso.Os cabelos eram semilongos, desgrenhados e negros.E embora ele mantivesse os olhos fixos à sua frentecom uma expressão fria e arrogante, era difícil esque-cer que certa vez sua filha sem querer o deixara verde.

As duas crianças eram meninas. Ambas tinhamcabelos ruivos. Ambas tinham o rosto pedante epontudo. Ambas usavam reluzentes meias brancas eseveros vestidos azuis, e eram obviamente muito an-tipáticas. A principal diferença entre elas era que amais nova — que parecia ter mais ou menos a idadede Tonino — tinha a testa ampla e proeminente, oque deixava seu rosto ainda mais pedante do que o dairmã. Era bem possível que uma delas fosse a famosaAngélica que fizera o Velho Guido ficar verde.

Os meninos olhavam fixamente para elas, ten-tando descobrir qual delas seria, até que encontraramo olhar pedante e zombeteiro da menina mais velha.Era óbvio que ela pensava que eles pareciam grotes-cos. Mas Paolo e Tonino sabiam que continuavamcom boa aparência — pois se sentiam muito descon-fortáveis — de modo que não deram importância aisso.

Depois de terem esperado algum tempo, osmembros de cada família puseram-se a conversar bai-xinho entre si, como se os outros não estivessem lá.Tonino cochichou para Paolo:

— Qual delas é a Angélica?— Não sei — Paolo cochichou de volta.— Então você não ficou conhecendo as meni-

nas na Ponte Velha?

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— Nenhuma delas. Estavam todos na outra...Um dos panôs vermelhos foi afastado e uma

dama entrou apressada.— Sinto muito. Meu marido precisou atrasar-se

— declarou ela.Todos na sala curvaram a cabeça e murmura-

ram “Vossa Graça”, pois aquela era a Duquesa. MasPaolo e Tonino mantiveram os olhos presos a ela en-quanto curvavam a cabeça, querendo saber como elaera. Ela usava um vestido acinzentado e rígido, quelembrou a eles a estátua de uma santa, e o rosto quasepodia fazer parte da mesma estátua. Era um rostocom a palidez de estátua, quase de cera, como se aDuquesa fosse entalhada num mármore levementeescorregadio. Mas Tonino não tinha tanta certeza deque a Duquesa fosse realmente como uma santa; assobrancelhas dela formavam um arco forte e sarcásti-co, e a boca era crispada com o que parecia ser impa-ciência. Por um segundo Tonino achou que sentiaaquela impaciência — e vários outros sentimentosnada santos — jorrando de dentro da máscara de cerada Duquesa para dentro do aposento como um cheiroforte e fedorento.

A Duquesa sorriu para o Velho Niccolo.— Signor Niccolo Montana?Não havia vestígio de impaciência, só de alti-

vez. Tonino pensou consigo mesmo: ando lendo li-vros demais. Um pouco envergonhado, ele observouo Velho Niccolo fazer uma reverência e apresentar osdemais. A Duquesa assentiu graciosamente e vol-tou-se para os Petrocchi.

— Signor Guido Petrocchi?

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O homem de barba ruiva fez uma mesura demodo brusco e rústico. Não tinha nem um pouco dafidalguia do Velho Niccolo.

— Vossa Graça. Comigo estão meu tio-bisavôDr. Luigi Petrocchi, minha filha mais velha Renata eminha filha caçula Angélica.

Paolo e Tonino ficaram a estudar a meninamais nova, desde a testa proeminente até as pernasfinas e brancas. Então aquela era Angélica! Ela nãoparecia capaz de fazer alguma coisa errada ou interes-sante.

A Duquesa começou:— Creio que compreendem por que...Mais uma vez as cortinas vermelhas foram a-

fastadas. Um homem corpulento, de ar entusiasmado,entrou correndo, de cabeça baixa, e pegou a Duquesapor um braço.

— Lucrezia, você tem que vir ver! O cenárioficou uma maravilha!

A Duquesa virou-se como uma estátua viraria— o corpo todo de uma vez. Tinha a testa franzida ea boca crispada.

— Senhor Duque! — ela exclamou em tom gé-lido.

Tonino estudou o homem corpulento. Ele a-gora estava usando veludo verde ligeiramente surrado,com grandes botões de cobre, mas, exceto isso, eraexatamente o mesmo grande e úmido Sr. Cintilanteque havia interrompido o espetáculo de marionetesnaquela ocasião. Então era mesmo, afinal, o Duque deCaprona! E não ficou nem um pouco desanimadocom o olhar gélido da Duquesa.

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— Você tem que vir ver! — insistiu, puxando obraço dela com o mesmo entusiasmo de antes. Vi-rou-se para os Montana e os Petrocchi como se espe-rasse que eles o ajudassem a levar a Duquesa da sala, eentão, ao que parecia, deu-se conta de que não se tra-tavam de cortesãos. — Quem são vocês?

A Duquesa, com as sobrancelhas ainda maiserguidas e a voz derramando paciência, respondeu:

— Estes são os Petrocchi e os Montana espe-rando a sua atenção, meu senhor.

O Duque bateu na testa brilhosa com a mãogrande e de aparência úmida.

— Ora, quem diria! As pessoas que fazem fei-tiços! Eu estava pensando em mandar chamá-los. Vi-eram por causa desse tal mago que cravou as suasgarras em Caprona? — perguntou ao Velho Niccolo.

— Meu Senhor! — a Duquesa exclamou.Mas o Duque afastou-se dela, sorrindo e cinti-

lando, e mergulhou na direção dos Petrocchi. Sacudiucom ímpeto a mão do Velho Guido, e depois a damenina Renata. Em seguida, deu meia-volta e fez amesma coisa com o Velho Niccolo e Paolo. Paoloprecisou esfregar a mão na calça às escondidas depoisque ele a soltou. Estava toda molhada.

— E dizem que os jovens são tão inteligentesquanto os velhos! Que famílias espantosas! — o Du-que comentou em tom alegre. — Exatamente as pes-soas de que necessito para a minha peça. A minhapantomima, vocês sabem. Vamos apresentá-la noNatal e preciso de alguns efeitos especiais.

A Duquesa soltou um suspiro. Paolo olhoupara o rosto rígido dela e achou que devia ser difícil

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lidar com uma pessoa como o Duque.O Duque lançou-se na direção de Domenico.— Consegue fazer uma revoada de cupidos

tocando trombetas? — perguntou-lhe ansiosamente.Domenico engoliu em seco e deu um jeito de

sussurrar a palavra “ilusão”.— Ah, muito bem! — o Duque exclamou, e

lançou-se na direção de Angélica Petrocchi. — E vocêvai adorar a minha coleção de marionetes. Tenhocentenas! — anunciou.

— Que bom — Angélica respondeu em tompedante.

— Meu senhor, esta boa gente não veio até a-qui para discutir o teatro — disse a Duquesa.

— Pode ser, pode ser — respondeu o Duque,com um gesto largo e impaciente da mão enorme. —Mas, enquanto estão aqui, posso muito bem pergun-tar-lhes sobre isto também. Não posso? — pergun-tou, lançando-se sobre o Velho Niccolo.

O Velho Niccolo, mostrando grande presençade espírito, disse, sorrindo:

— Naturalmente, Vossa Graça. Sem o menorproblema. Depois que tivermos discutido o assuntode Estado que nos trouxe até aqui, teremos imensoprazer em receber a encomenda de quaisquer efeitosespeciais que o senhor desejar.

— Nós também — interveio Guido Petrocchicom um olhar raivoso para o ar acima do Velho Nic-colo.

A Duquesa sorriu graciosamente para o VelhoNiccolo por ele tê-la apoiado, provocando no VelhoGuido uma expressão mais amargurada do que nunca,

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e lançou um olhar significativo para o Duque.Finalmente o Duque pareceu entender.— Sim, sim. É melhor tratarmos de negócios.

É o seguinte, entendem...A Duquesa interrompeu, com um suave sorriso

fixo.— Há um bufê na Saleta de Reuniões. Se o se-

nhor e os adultos quiserem conversar lá, vou provi-denciar alguma coisa para as crianças aqui mesmo.

Guido Petrocchi viu sua chance de vingar-se doVelho Niccolo.

— Vossa Graça, minhas filhas são tão leais aCaprona quanto o resto da minha Casa — declarouem tom pomposo. — Não tenho segredos para elas.

O Duque dirigiu-lhe um sorriso cintilante.— Isto mesmo! Mas elas não acharão tão mo-

nótono se ficarem aqui, não é mesmo?E de repente, todos, com exceção de Paolo,

Tonino e as duas meninas Petrocchi, retiraram-se poroutra porta atrás dos panôs vermelhos. O Duque fi-cou para trás, sorrindo.

— Já sei! — exclamou. — Vocês têm de vir àminha pantomima, todos vocês. Vão adorar. Vou lhesmandar os convites. Já vou, Lucrezia!

As quatro crianças foram deixadas de pé sob oteto cheio de anjinhos em luta.

Depois de um momento, as meninas Petrocchidirigiram-se para as cadeiras alinhadas ao longo deuma parede e sentaram-se. Paolo e Tonino entreolha-ram-se. Marcharam para as cadeiras do lado oposto dasala e sentaram-se ali. Parecia ser uma distância segu-ra. De onde estavam, as meninas Petrocchi eram bor-

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rões escuros de pernas finas e brancas e manchas cas-tanho-avermelhadas no lugar da cabeça.

— Queria ter trazido o meu livro — Toninocomentou. Eles ficaram sentados, com os calcanharesenganchados nas pernas das cadeiras, tentando man-ter-se pacientes.

— Acho que a Duquesa deve ser uma santa,para ter tanta paciência com o Duque — Paolo co-mentou.

Tonino surpreendeu-se com o que Paolo pen-sava. Ele sabia que o Duque não se comportava comoum duque, ao passo que a Duquesa era uma duquesados pés à cabeça. Mas ele não tinha tanta certeza deque fosse correto o modo como ela deixava que per-cebessem como estava sendo paciente.

— Mamãe também corre de um lado para ou-tro, e papai não se importa — respondeu. — Isso atéfaz com que ele pare de parecer preocupado.

— Papai não é uma Duquesa — Paolo retru-cou. Tonino não quis discutir, pois nesse momentoapareceram dois lacaios empurrando um carrinhomuito interessante. Tonino ficou boquiaberto. Emtoda a sua vida, jamais havia visto tantos doces juntos.Do outro lado da sala havia buracos escuros no rostodas meninas Petrocchi: evidentemente, também elasjamais haviam visto tantos doces. Tonino apressou-sea fechar a boca e tentar parecer que via aquelas coisastodos os dias.

Os lacaios serviram primeiro as meninas Pe-trocchi. Elas eram bastante refinadas e, pelo que pare-cia, levaram horas escolhendo. Quando o carrinho foifinalmente empurrado para o outro lado da sala, onde

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estavam Paolo e Tonino, os dois meninos acharamdifícil aparentar a mesma compostura. Havia vintetipos de doces diferentes, e cada um deles pegou dezcom uma velocidade gulosa, de modo que os doisjuntos teriam uma amostra de cada doce e poderiamfazer trocas se fosse necessário. Quando o carrinhofoi levado, Tonino conseguiu desgrudar os olhos doseu prato por um instante, para ver como as meninasPetrocchi estavam se saindo. As meninas tinham osjoelhos erguidos, para apoiar neles um prato suficien-temente grande para caber dez doces.

Eram doces consistentes. Quando chegou aodécimo, Paolo comia lentamente, perguntando-se serealmente gostava de merengue tanto quanto haviaimaginado, e Tonino ainda estava no sexto. QuandoPaolo colocou asseadamente o prato sob a sua cadeirae limpou-se com o lenço, Tonino, pegajoso de geléia,sujo de chocolate e creme e coberto de migalhas, ain-da saboreava teimosamente o seu oitavo doce. E foiesse momento que a Duquesa escolheu para sentar-se,sorridente, ao lado de Paolo.

— Não vou interromper o seu irmão — disse,rindo. — Fale-me sobre você, Paolo.

Paolo não soube o que responder. Não conse-guia pensar em outra coisa além do estado de imundí-cie em que Tonino se encontrava. A Duquesa per-guntou, para ajudá-lo:

— Por exemplo, você acha fácil aprender osfeitiços? Ou tem dificuldade para aprender?

— Ah, não, Vossa Graça. Tenho muita facili-dade para aprender — Paolo respondeu, cheio de or-gulho.

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Então imaginou que aquilo poderia deixar To-nino ofendido. Ergueu depressa os olhos para o rostosujo de doce de Tonino e viu que o irmão olhava fi-xamente para a Duquesa com expressão séria. Paolosentiu-se envergonhado e responsável. Queria que aDuquesa soubesse que Tonino não era apenas ummenininho sujo e mal-educado.

— Tonino aprende devagar, mas lê o tempotodo — acrescentou. — Já leu todos os livros da Bi-blioteca. É quase tão culto quanto o Tio Umberto.

— Que coisa notável — disse a Duquesa, sor-rindo. Havia um traço de descrença no arco das suassobrancelhas.

Tonino ficou tão embaraçado que deu umamordida enorme no seu nono doce. Era um grandemil-folhas; no instante em que fechou a boca era tor-no do doce, Tonino deu-se conta de que, se abrissenovamente a boca, mesmo que para respirar, a massairia jorrar para fora dela como uma tempestade degranizo, cobrindo Paolo e a Duquesa. Ele então aper-tou os lábios e pôs-se a mastigar valentemente.

E, para vergonha de Paolo, ele continuou deolhos fixos na Duquesa. Queria que Benvenuto esti-vesse ali para contar-lhe sobre a Duquesa. Ela o dei-xava confuso. Enquanto se inclinava, sorridente, paraPaolo, ela não parecia ser a dama arrogante e rígidaque havia demonstrado tanta paciência com o Duque.No entanto, talvez porque ela não estivesse sendopaciente, Tonino sentiu, mais forte do que nunca, opoder grosseiro dos pensamentos nada santos por trásdo sorriso fixo.

Paolo ordenou silenciosamente a Tonino que

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parasse de mastigar e de arregalar os olhos. Mas To-nino continuou fazendo as duas coisas, e a descrençanas sobrancelhas da Duquesa era tão óbvia que Paolodeixou escapar:

— E Tonino é o único que consegue conversarcom Benvenuto. É o nosso gato-chefe, Vossa... —Ele lembrou-se de que a Duquesa não gostava de ga-tos. — Hã... Vossa Graça não gosta de gatos.

A Duquesa riu.— Mas não me importo de escutar coisas sobre

eles. Que tal é o Benvenuto?Para alívio de Paolo, Tonino afastou os olhos

da Duquesa e voltou-os para ele. De modo que Paoloprosseguiu:

— Sabe, Vossa Graça, os feitiços funcionammuito melhor e com mais força se houver um gatopor perto, e particularmente se for Benvenuto. Alémdisso, Benvenuto sabe todo tipo de coisas...

Ele foi interrompido por um ruído grave vindode Tonino. Tonino estava tentando falar sem abrir aboca. Era evidente que a qualquer segundo haveriauma tempestade de massa folhada. Paolo pegou seulenço cheio de geléia e de creme, e segurou-o deprontidão.

A Duquesa ficou de pé, um tanto apressada.— Acho melhor ir ver como vão as outras

convidadas — declarou, e saiu deslizando rapidamen-te em direção às meninas Petrocchi.

Paolo percebeu, ressentido, que as meninas Pe-trocchi estavam preparadas para recebê-la. Seus lençoshaviam ficado ocupados enquanto a Duquesa con-versava com Paolo, e agora seus pratos também esta-

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vam asseadamente guardados debaixo das cadeiras.Cada uma delas deixara pelo menos três doces. Essefato encorajou bastante Tonino, que não estava sesentindo muito bem. Ele colocou o resto do nonodoce ao lado do décimo e colocou o prato com muitocuidado sobre a cadeira ao seu lado. A essa altura,conseguira engolir o que tinha na boca.

— Você não devia ter contado a ela sobreBenvenuto — disse, puxando seu lenço do bolso. —Ê um segredo de família.

— Então você devia ter dito alguma coisa, emvez de ficar olhando como um boneco — Paolo re-trucou.

Para sua mortificação, ambas as meninas Pe-trocchi estavam conversando alegremente com a Du-quesa. A de testa grande, Angélica, estava rindo. Issodeixou Paolo tão irritado que ele exclamou:

— Olha como estas meninas bajulam a Du-quesa!

— Eu não fiz isto — Tonino observou.Como a vontade de Paolo era de dizer que teria

preferido que Tonino tivesse feito, ele encontrou-sesem poder dizer coisa alguma. Ficou ali sentado, a-margurado, observando a Duquesa conversar com asmeninas no outro lado da sala, até que ela se levantoue retirou-se deslizando. Ela lembrou-se de sorrir e a-cenar para Paolo e Tonino antes de sair. Paolo achouque isso era simpático da parte dela, considerando opapel de tolos que ambos haviam feito.

Bem depressa, depois disso, as cortinas foramafastadas e o Velho Niccolo entrou de volta, cami-nhando devagar ao lado de Guido Petrocchi. Atrás

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dele entraram os dois tios-bisavôs de túnica, e Dome-nico entrou em seguida. Era como uma procissão.

Todos olhavam diretamente para a frente, e eraóbvio que tinham muitas coisas em que pensar. Todasas quatro crianças puseram-se de pé, limparam as mi-galhas e acompanharam a procissão. Paolo percebeuque estava caminhando ao lado da menina mais velha,mas teve o cuidado de não olhar para ela. Em totalsilêncio eles marcharam para a grande porta do Palá-cio, onde as carruagens se aproximavam para rece-bê-los.

A carruagem dos Petrocchi chegou primeiro,com seus cavalos negros pingando da chuva. Toninodeu outra olhada para o cocheiro, com certa esperan-ça de que ele houvesse cometido um engano. Aindaestava chovendo e as roupas do homem estavam en-sopadas. Seus cabelos debaixo do chapéu encharcado,ruivos como os dos Petrocchi, estavam marrons, detão molhados. Ele tremia ao inclinar-se para baixo ehavia um olhar interrogador no seu rosto pálido, co-mo se estivesse ansioso para que lhe contassem o queo Duque havia dito. Não, ele era mesmo de verdade.O cocheiro dos Montana, que vinha atrás, tinha osolhos fixos no espaço, ignorando tanto a chuvaquanto os seus passageiros. Tonino sentia que, defini-tivamente, os Petrocchi haviam feito melhor figura.

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CAPITULO IV

Quando a carruagem pôs-se em movimento, oVelho Niccolo recostou-se e disse:

— Bem, tenho que admitir que o Duque émuito simpático. Talvez não seja um tolo tão grandequanto parece ser.

Com a mais profunda melancolia Tio Umbertocomentou:

— Quando meu pai era criança, o pai dele ia aoPalácio uma vez por semana. E era recebido comoamigo.

Domenico disse timidamente:— Pelo menos vendemos alguns efeitos espe-

ciais. Tio Umberto retrucou em tom cortante:— É exatamente disto que estou reclamando!Tonino e Paolo olhavam de um para o outro,

tentando imaginar o que os havia deprimido tanto.O Velho Niccolo percebeu o olhar dos dois e

disse:

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— Guido Petrocchi queria que aquelas suas fi-lhas horrorosas estivessem presentes enquanto confe-renciávamos com o Duque. Não irei...

— Ah, Senhor! Não se presta atenção a umPetrocchi — resmungou Tio Umberto.

— Não, mas confia-se nos próprios netos —retrucou o Velho Niccolo. — Meninos, parece queCaprona está muito mal. Os Estados de Florença, Pisae Siena agora uniram-se contra ela. O Duque suspeitade que estão pagando a um mago para...

— Rá! — exclamou Tio Umberto. — Estãopagando é aos Petrocchi.

Domenico, que, por um motivo qualquer, tor-nara-se surpreendentemente ousado, interveio:

— Titio, eu vi que os Petrocchi são tão traido-res quanto nós! Os dois velhos voltaram-se para olharpara ele, e ele encolheu-se.

O Velho Niccolo continuou:— O fato é que Caprona já não é o grande Es-

tado que um dia foi. As razões para isto são muitas,sem dúvida. Mas nós sabemos, e o Duque sabe, e atéDomenico sabe, que todos os anos montamos os en-cantos de costume para a defesa de Caprona, e a cadaano nós os fazemos mais fortes, e a cada ano o efeitodeles é menor. Alguma coisa, ou alguém, está defini-tivamente minando o nosso poder. De modo que oDuque nos perguntou se havia alguma coisa mais quepudéssemos fazer. E...

Domenico interrompeu-o com uma risada.— E nós dissemos que encontraríamos a letra

de “O Anjo de Caprona”!Paolo e Tonino achavam que Domenico seria

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novamente esmagado com um olhar, mas os dois ve-lhos simplesmente mostraram-se melancólicos. Ba-lançavam tristemente a cabeça.

— Mas não compreendo — disse Tonino. —“O Anjo de Caprona” já tem uma letra. Nós canta-mos sempre, na escola.

— Sua mãe não lhe ensinou... — o Velho Nic-colo começou, com irritação, mas interrompeu a fra-se. — Ah, não. Esqueci. Sua mãe é inglesa.

— Mais um motivo para termos cautela no ca-samento — disse Tio Umberto desanimadamente.

A essa altura, com a chuva caindo sem cessar,ambos os meninos estavam totalmente deprimidos eassustados. Domenico soltou outra risada: parecia a-char graça neles.

— Fique quieto — zangou o Velho Niccolo.— Esta é a última vez que levo você aonde estiveremservindo conhaque. Não, meninos, “O Anjo” não temuma letra correta. A letra que vocês cantam é umaimprovisação. Algumas pessoas dizem que o gloriosoAnjo levou as palavras de volta para o Céu depois queo Demônio Branco foi derrotado, e deixou apenas amelodia. Ou então as palavras foram perdidas. Mastodo o mundo sabe que Caprona não poderá ser ver-dadeiramente grande até que essa letra seja encontra-da.

— Em outras palavras, “O Anjo de Caprona” éum feitiço como qualquer outro — disse Tio Umber-to em tom irritado. — E sem as palavras corretasqualquer feitiço só tem metade da sua força, mesmoque ele seja de origem divina. — Ele juntou a saia datúnica quando a carruagem parou com um solavanco

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em frente à Universidade. — E nós, como idiotas, noscomprometemos a completar aquilo que Deus deixouinacabado. Como é grande a presunção do homem!— Ele saltou da carruagem falando para o VelhoNiccolo: — Vou procurar em todos os manuscritosque me vierem à lembrança. Deve haver uma pista emalgum lugar. Ah, que chuva desgraçada!

A porta bateu e a carruagem tornou a pôr-seem movimento com um solavanco. Paolo perguntou:

— Os Petrocchi também disseram que vãoencontrar a letra? O Velho Niccolo franziu os lábioscom raiva.

— Disseram, sim. E eu morreria de vergonhase eles encontrassem antes de nós. Eu...

Ele se interrompeu quando a carruagem do-brou a esquina do Corso. Com os solavancos, borrifosde água voavam perto das janelas.

Domenico inclinou-se para a frente.— Ele não está dirigindo muito bem, não é

mesmo?— Fique quieto! — ordenou o Velho Niccolo.Paolo mordeu a língua durante uma sucessão

de solavancos. Havia alguma coisa errada: o ruído quea carruagem estava fazendo não era o costumeiro.

— Não estou escutando as patas dos cavalos— Tonino comentou, perplexo.

— Eu imaginei que fosse isso! — retrucou oVelho Niccolo. — É a chuva!

Ele baixou a janela com um forte ruído, dei-xando entrar uma lufada de vento úmido, e, sem ligarpara os rostos na rua que o encaravam sob guar-da-chuvas molhados, inclinou-se para fora e berrou as

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palavras de um feitiço. — E dirija a toda velocidade,cocheiro! Pronto — continuou, enquanto tornava alevantar a janela. — Com isto devemos chegar emcasa antes que os cavalos virem uma polpa. Que sorte,isto não ter acontecido antes de Umberto saltar!

O ruído das patas dos cavalos voltou, ressoan-do sobre as pedras do Corso; pelo jeito, o novo feitiçoestava funcionando. Porém, quando entraram na ViaCardinal o ruído mudou para um chomp-chomp espon-joso, e quando chegaram à Via Magica as patas dosanimais mal faziam qualquer som. E os trancos reco-meçaram, piores do que antes. Quando viraram paraentrar pelo portão da casa dos Montana houve o piorsolavanco de todos. A carruagem inclinou-se para afrente e ouviu-se um barulho forte quando as suastraves bateram nas pedras do pavimento. Paolo con-seguiu abrir a sua janela bem a tempo de ver a figurade papel flácido do cocheiro cair do banco dentro deuma poça de água. Mais à frente, dois cavalos de pa-pelão molhado estavam caídos sobre suas pegadas.

— Na época do meu avô, esse feitiço duravadias — disse o Velho Niccolo.

— Está dizendo que a culpa é do tal mago? —Paolo quis saber. — Ele está atrapalhando todos osnossos feitiços?

O Velho Niccolo encarou-o com os olhos ar-regalados, como um bebê prestes a cair no choro.

— Não, garoto. Imagino que não. A verdade éque a Casa Montana está tão mal quanto Caprona es-tá. A antiga virtude está se dissipando. Vem se dissi-pando de geração para geração, e agora está quase to-da desaparecida. Fico envergonhado por vocês a-

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prenderem as coisas desta maneira. Vamos saltar, me-ninos, e começar a puxar.

Foi uma infeliz humilhação. Como o resto dafamília estava dormindo ou trabalhando na PonteVelha, não havia alguém para ajudá-los a puxar a car-ruagem através do portão. E Domenico mostrou-seum inútil. Mais tarde ele confessou que não se lem-brava de haver chegado em casa. Deixaram-no dor-mindo dentro da carruagem e puxaram-na, os três.Nem mesmo Benvenuto, que chegou correndo pelachuva, conseguiu alegrar Tonino.

— É um consolo. A chuva — ofegou o avô. —Não há ninguém por perto para ver o Velho Niccolopuxando sua própria carruagem.

Paolo e Tonino não achavam que isso fosse umgrande consolo. Agora compreendiam a angústiacrescente na Casa, e isso não era agradável. Eles en-tendiam por que todos haviam ficado tão ansiosos emrelação à Ponte Velha, e tão felizes quando, poucoantes do Natal, ela foi finalmente consertada. Com-preendiam também a preocupação em arranjar ummarido para Rosa. Assim que a ponte foi consertada,todos voltaram a discutir esse assunto. E Paolo e To-nino sabiam por que todos concordavam que o rapazque Rosa deveria escolher precisava ter, no mínimo,um grande talento para fazer feitiços.

— Para melhorar a raça, é o que você quer di-zer? — Rosa perguntou. Ela se mostrava muito sar-cástica e independente em relação a esse assunto. —Muito bem, meu caro Tio Lorenzo, só me apaixonareipor homens que saibam fazer cavalos de papel à pro-va dágua.

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Tio Lorenzo enrubesceu de raiva. A família in-teira sentia-se humilhada por causa daqueles cavalos.Mas Elizabeth estava tentando não rir. Elizabeth cer-tamente incentivava a atitude independente que Rosamostrava. Benvenuto informou Tonino de que aquelaera a maneira inglesa. E acrescentou que os gatosgostavam do povo inglês.

— Nós perdemos mesmo a nossa virtude? —Tonino perguntou ansiosamente a Benvenuto. Eleachava que essa era, provavelmente, a explicação paraa sua lentidão.

Benvenuto respondeu que ele não sabia comoas coisas eram nos dias de antigamente, mas sabia queagora havia magia suficiente à solta para fazer sua pe-lagem soltar faíscas. Isso parecia ser muito. Mas ele àsvezes se perguntava se ela estava sendo bem empre-gada.

Por volta dessa época, o dobro da quantidadede jornais ia parar dentro da casa. Havia jornais deRoma e revistas de Gênova e de Milão, assim comoos costumeiros jornais de Caprona. Todos os liamansiosamente e conversavam em cochichos a respeitoda atitude de Florença, dos movimentos em Pisa e doendurecimento da opinião em Siena. Nesses murmú-rios preocupados, a palavra “Guerra” começou a apa-recer, com uma freqüência cada vez maior. Além dis-so, no lugar das costumeiras canções de Natal a únicamúsica que se ouvia na casa dos Montana, dia e noite,era “O Anjo de Caprona”.

Essa canção era cantada em baixo, tenor e so-prano. Era tocada lentamente pelas flautas, em segui-da as guitarras pegavam a melodia e então os violinos

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davam a cadência. Cada membro dos Montana viviana esperança de que ele ou ela fosse a pessoa a en-contrar as palavras corretas. Rinaldo teve uma idéianova; conseguiu um tambor e sentou-se na beirada dacama batendo o ritmo até Tia Francesca implorar-lhepara parar. E nem isso adiantou; nenhum dos Monta-na conseguiu colocar a letra correta na melodia. An-tonio dava a impressão de estar tão preocupado quePaolo mal conseguia olhar para ele.

Com tanta preocupação generalizada, não erade surpreender que todos os dias Paolo e Tonino es-perassem chegar os convites para a pantomima doDuque. Era a única coisa alegre. Mas Antonio e Ri-naldo foram ao Palácio — a pé — para entregar osefeitos especiais e voltaram sem uma única palavra deconvite. Chegou o Natal; a família Montana foi empeso à igreja, à linda Igreja de Sant’Angelo com suafachada de mármore, e comportou-se com grandedevoção. Geralmente, só Tia Anna e Tia Maria eramnotavelmente religiosas, mas agora todos sentiam quetinham algo para pedir em oração. Foi somentequando chegou a ocasião de cantar “O Anjo de Ca-prona” que a devoção dos Montana enfraqueceu. Orosto de cada um deles, do Velho Niccolo ao primomais novinho, foi tomado por uma expressão distraí-da. Eles cantavam:

“Com sua música soandoVejo o Anjo chegar cantando,Consolo e paz derramando

Na cidade gentil de Caprona.

Vitória que nunca falha,

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Amizade que nada atalha,A paz que vence a batalha,

Na cidade gentil de Caprona.

O Demônio fugiu em derrotaE em Caprona agora brotaA, a força e a virtude devota

Na cidade gentil de Caprona.”

Cada um deles se perguntava quais seriam aspalavras verdadeiras.

Eles se reuniram em casa para as comemora-ções familiares, ainda não havendo qualquer palavrada parte do Duque. Então o Natal passou, o AnoNovo chegou e passou também, e os meninos foramobrigados a compreender que afinal nenhum convitechegaria. Cada um disse a si mesmo que já sabia que oDuque era assim. Não falaram do assunto um com ooutro, mas ambos ficaram profundamente decepcio-nados.

Foram despertados de sua melancolia por Luci-a, que vinha em disparada pela varanda, gritando:

— Venham ver o namorado de Rosa!— Como assim? — disse Antonio, erguendo o

rosto preocupado do livro a respeito do Anjo de Ca-prona. — Que foi? Nada está decidido ainda!

Lucia pulava de um pé para o outro. Tinha orosto rosado de excitação.

— Rosa resolveu sozinha! Eu sabia que ela iafazer isso! Venham ver!

Levados por Lucia, Antonio, Paolo, Tonino eBenvenuto dispararam pela varanda e desceram os

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degraus de pedra que levavam ao pátio. Pessoas e ga-tos atravessavam o pátio vindo de todas as direções,dirigindo-se apressados para o aposento chamado Sa-lão, que ficava atrás da sala de jantar.

Rosa estava parada perto das janelas, parecendofeliz, porém desafiadora, com ambas as mãos no bra-ço de um rapaz de cabelos vermelhos e expressãoembaraçada. Um anel faiscava no dedo de Rosa. Eli-zabeth estava com eles, parecendo tão feliz quantoRosa e quase tão desafiadora. Quando o rapaz viu afamília entrando pela porta e vindo em sua direção,seu rosto ficou de um tom cor-de-rosa forte e ele er-gueu a mão para afrouxar a gravata elegante. Apesardisso, porém, era óbvio para todos que no fundo orapaz estava tão feliz quanto Rosa. E Rosa estava tãofeliz que parecia brilhar como o Anjo acima do por-tão. Aquilo fez com que todos a encarassem, maravi-lhados. O que, naturalmente, deixou o rapaz maisconstrangido do que nunca.

O Velho Niccolo pigarreou.— Agora escute aqui — começou, depois pa-

rou. Aquilo era assunto de Antonio. Ele olhou paraAntonio.

Paolo e Tonino perceberam que seu pai olhouprimeiro para a esposa. A expressão feliz de Elizabethpareceu tranqüilizá-lo um pouco.

— Bem, quem é você exatamente? — ele per-guntou ao rapaz. — Como foi que conheceu Rosa?

— Ele era um dos empreiteiros na Ponte Ve-lha, papai — disse Rosa.

— E tem um enorme talento natural, Antonio— Elizabeth interveio. — Ele canta com uma linda

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voz.— Está bem, está bem. Deixem que o rapaz

fale — pediu Antonio.O rapaz engoliu em seco, ajudando com uma

sacudidela na gravata. Seu rosto agora estava muitopálido.

— Meu nome é Marco Andretti — disse, numavoz agradável, embora um pouco rouca. — Eu... A-cho que o senhor conheceu meu irmão na ponte. Euestava no outro turno. Foi assim que fiquei conhe-cendo Rosa.

O modo como ele sorriu para Rosa fez comque todos tivessem a esperança de que ele serviria pa-ra tornar-se um Montana.

— Se papai não der permissão, vai partir o co-ração deles — Lucia cochichou com Paolo.

Paolo concordou. Ele também percebia isso.Antonio estava puxando o lábio inferior, que

era algo que fazia quando o seu rosto não conseguiaagüentar mais preocupações do que já estava agüen-tando.

— Sim, eu conheci Mario Andretti, é claro.Uma família muito respeitável. — Ele falou de ummodo que dava a impressão de que isso não era umacoisa muito boa. — Mas tenho certeza de que sabe,Signor Andretti, que a nossa família é especial. Temosque ter muito cuidado na hora de escolher com quemnos casamos. Primeiro: o que acha dos Petrocchi?

O rosto pálido de Marco tornou-se de umvermelho vivo. Ele respondeu, com uma violência quesurpreendeu os Montana:

— Odeio todos eles, Signor Montana!

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Parecia tão irritado que Rosa puxou-lhe o braçoe deu-lhe uns tapinhas tranqüilizadores.

— Marco tem razões pessoais, de família, papai— ela disse.

— Que eu preferia não mencionar — Marcocompletou.

— Nós... Bem, não vou insistir para que nosconte — disse Antonio, e continuou a puxar o lábio.— Mas, entenda, na nossa família precisamos despo-sar alguém que tenha pelo menos algum talento para amagia. Tem alguma aptidão nesse assunto, Signor An-dretti?

Ouvindo isto, Marco Andretti pareceu relaxar.Sorriu e carinhosamente tirou as mãos de Rosa da suamanga. Então cantou. Elizabeth tinha razão quanto àvoz dele: era um tenor de primeira qualidade. Tio Lo-renzo foi ouvido murmurando que não conseguia en-tender o que uma voz como aquela estava fazendofora da Ópera de Milão.

Marco cantou:

“Uma árvore dourada cresce aqui, uma árvoreCujos ramos dourados têm botões verdes... “

Enquanto ele cantava, a árvore começou a a-parecer, enraizada no tapete entre Rosa e Antonio,primeiro como uma leve sombra dourada, depoiscomo uma forma metálica que chocalhava, o douradocintilando aos raios de sol que vinham pelas janelas.Os Montana assentiram, demonstrando o seu agrado.O tronco e cada galho, até mesmo o menor raminho,eram mesmo de ouro puro.

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Mas Marco continuou a cantar e, enquanto elecantava, os galhos de ouro soltaram botões, a princí-pio claros e arredondados, depois cintilantes e ponti-agudos. Instantes depois, a árvore estava coberta defolhas. Ela movia-se e tilintava constantemente, aoritmo da canção de Marco. Então desabrocharam ca-chos de flores brancas e rosadas, que se abriam, cres-ciam e caíam com a rapidez das luzes coloridas dosfogos de artifício. O aposento estava tomado de per-fume, e, depois, de pétalas que caíam suavemente,como confetes. Marco ainda cantava, e a árvore aindase movimentava. Antes que a última pétala caísse,frutas verdes e pontudas inchavam onde antes haviaflores. As frutas ficaram marrons e cresceram, cresce-ram, e ficaram amarelas, até que a árvore pendeu sobo peso de uma enorme quantidade de grandes perasamarelas. Marco concluiu:

— “...com frutos dourados para todos.”Ele ergueu a mão, colheu uma das peras e es-

tendeu-a para Antonio com um gesto um pouco tí-mido.

Do resto da família vinham murmúrios de a-provação. Antonio pegou a pêra e cheirou-a. E sorriu,para alívio evidente de Marco.

— Fruta boa — disse. — Isto foi feito de ma-neira muito elegante, Signor Andretti. Mas há aindauma coisa que preciso lhe perguntar. Concordaria emmudar o seu nome para Montana? É o nosso costu-me, entende?

— Sim, Rosa me contou — disse Marco. —E... isto é uma dificuldade. Meu irmão precisa de mimna sua empresa, e ele também quer manter o nome da

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família. Seria aceitável que eu fosse conhecido comoMontana quando estivesse aqui e como... como An-dretti quando estiver em casa com o meu irmão?

— Está querendo dizer que você e Rosa nãomorariam aqui? — Antonio perguntou, atônito.

— Não o tempo todo — Marco respondeu.Pelo modo como ele disse isso, era óbvio que nãomudaria de idéia.

Aquilo era grave. Antonio olhou para o VelhoNiccolo. E havia semblantes carrancudos de todoslados, diante da idéia de que a família seria separada.

— Não vejo por que não — opinou Elizabeth.— Bem, meu tio-avô fez isso — disse o Velho

Niccolo. — Mas não foi um sucesso. A esposa delefugiu para a Sicília com um bruxozinho ensebado.

— Isto não significa que eu vá fugir também!— Rosa protestou.

A família vacilava, enquanto a árvore balança-va-se levemente no meio deles. Todos amavam Rosa;era óbvio que Marco era um bom rapaz; ninguémqueria partir o coração deles. Mas aquela idéia de mo-rar longe da Casa...!

Tia Francesca deu um passo à frente, dizendo:— Concordo com Elizabeth. Nossa Rosa en-

controu um bom rapaz, com mais talento e uma vozmelhor do que tudo que vi fora da nossa família du-rante anos. Deixem que eles se casem.

Diante disso, Antonio pareceu ficar terrivel-mente preocupado, mas não chegou a puxar o lábio.Parecia estar relaxando, prestes a concordar, quandoRinaldo abriu caminho e passou por baixo da árvore,fazendo com que ela chocalhasse furiosamente.

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— Um momentinho. Não estamos sendo umpouco confiantes demais? Quem é este sujeito, afinal?Por que não o conhecemos antes, e jamais ouvimosfalar no talento dele?

Paolo baixou a cabeça e observou Rinaldo porbaixo dos cabelos. Aquele era Rinaldo no estado deespírito que ele menos admirava: Rinaldo vulgar e a-gressivo, com um esgar desagradável na boca. Rinaldoainda estava um pouco pálido, por causa do corte nacabeça, mas isso até combinava com as roupas negrase o lenço vermelho de bandoleiro. Rinaldo sabia dis-so. Ergueu a cabeça num gesto pretensioso e comdesprezo jogou longe uma pétala que havia caído emsua manga. Depois olhou para Marco, desafiando-o aresponder.

O modo como Marco o encarou de volta mos-trava que ele estava preparado para enfrentar Rinaldo.

— Estive na faculdade era Roma até recente-mente. Se é isto que você quer saber — declarou.

Rinaldo girou o corpo para ficar de frente paraa família.

— É o que ele diz — comentou. — Ele fez umbelo truque para nós, e disse todas as coisas certas.Mas qualquer pessoa no lugar dele faria a mesma coi-sa. — Tornou a girar o corpo, ficando de frente paraMarco. Foi um movimento tão teatral que Tonino fezuma careta e até Paolo sentiu-se ligeiramente infeliz.— Não confio em você — Rinaldo continuou. — Jávi sua cara antes, em algum lugar.

— Na Ponte Velha — Marco sugeriu.— Não, não foi lá. Foi em algum outro lugar

— Rinaldo insistiu.

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Tonino se deu conta de que aquilo devia serverdade. Marco tinha mesmo um ar familiar. E Toni-no não poderia tê-lo visto na Ponte Velha porque ja-mais estivera lá.

— Quer que eu busque o meu irmão, ou o meuconfessor, para dar referências minhas? — Marcoperguntou.

— Não. Quero a verdade — Rinaldo respon-deu em tom grosseiro.

Marco respirou fundo.— Não quero ser hostil — declarou.O braço que Rosa segurava dobrou-se, e o

mesmo aconteceu com o punho na sua extremidade.Rinaldo fez uma expressão de quem estivesse achandoaquilo ótimo, e deu um passo para a frente num mo-vimento arrogante.

— Por favor! — pediu inutilmente Rosa.Benvenuto mexeu-se nos braços de Tonino.

Em sua imaginação Tonino viu um gato grande e lis-trado andando com arrogância sobre o telhado da ca-sa — o telhado de Benvenuto. Tonino quase soltouuma risada. As musculosas patas traseiras de Benve-nuto fizeram força para trás, apertando Paolo, e o ga-to saltou para o chão, aterrissando entre Rinaldo eMarco. Ouviu-se uma exclamação em tom baixo porparte do resto da família. Sabiam que Benvenuto re-solveria a questão.

O gato ignorou Rinaldo deliberadamente. Ar-queando o corpo, com a cauda ereta como um ci-preste, ele aproximou-se com afetação das pernas deMarco e esfregou-se nelas. Marco abriu o punho einclinou-se para estender a mão para Benvenuto.

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— Olá! Qual é seu nome? — perguntou, e fezuma pausa para que Benvenuto respondesse. — Mui-to prazer em conhecê-lo, Benvenuto — concluiu.

Dessa vez a exclamação por parte da família foilonga e em alto volume. E foi seguida por gritos:

— Pare com isto, Rinaldo!— Não banque o tolo!— Deixe Marco em paz!Embora Rinaldo não se deixasse intimidar com

a mesma facilidade que Domenico, nem mesmo eleconseguiria enfrentar a família inteira. Quando ele o-lhou para o Velho Niccolo e viu que o Velho Niccolofazia-lhe gestos zangados para que se afastasse, desis-tiu e abriu caminho até a porta aos empurrões.

Antonio declarou:— Rosa e Marco, eu lhes dou o meu consenti-

mento temporário para que se casem.Diante disso, todos puseram-se a abraçar-se,

apertar a mão de Marco e beijar Rosa. Marco, verme-lho e feliz, colhia pêra após pêra da árvore dourada e aoferecia a cada um, até mesmo ao bebê mais jovem.Eram peras deliciosas, no ponto exato de amadureci-mento. Elas se derretiam na boca e escorriam peloqueixo das pessoas.

— Não quero ser desmancha-prazeres, masuma árvore no meio do Salão irá trazer muitos pro-blemas — declarou Tia Maria, cuspindo suco na ore-lha de Paolo.

Marco, porém, havia pensado nisso; assim quea última pêra foi colhida, a árvore começou a desva-necer-se. Logo era apenas um ruidoso brilho dourado,uma sombra de árvore a desaparecer, e logo em se-

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guida já não havia árvore alguma ali. Todos aplaudi-ram. Tia Gina e Tia Anna trouxeram garrafas de vi-nho e taças, e a Casa bebeu à saúde de Rosa e Marco.

— Graças a Deus! Eu estava tão nervosa, tor-cendo por ela! — Tonino ouviu Elizabeth exclamar.

No outro lado de Elizabeth, o Velho Niccolodeclarava a Tio Lorenzo que Marco era uma excelenteaquisição, porque conseguia entender os gatos. Toni-no sentiu-se um pouquinho triste diante disso. E saiupara o pátio gelado. Como imaginava, Benvenuto es-tava agora enrodilhado no local banhado de sol nosdegraus da varanda. O gato ondulou a cauda, irritadocom Tonino; acabara de acomodar-se para uma sone-ca.

Declarou a Tonino, em tom irritado, que Mar-co não conseguia entender os gatos. Ele sabia o nomede Benvenuto porque Rosa lhe contara, mas não tinhaa menor idéia daquilo que Benvenuto lhe dissera.Benvenuto havia dito a ele que ele e Rinaldo ficariaminteiramente arranhados se começassem uma briga naCasa — nenhum deles era o gato-chefe ali. Agora, seTonino fosse embora, ele poderia dormir um pouco.

Aquilo foi um grande alívio para Tonino. Eleagora sentia-se livre para gostar de Marco tantoquanto Paolo gostava. Marco era divertido. Nuncaficava muito tempo na Casa, porque ele e o irmão es-tavam construindo uma residência do outro lado daPonte Nova, mas era uma das poucas pessoas porquem Tonino largava o livro para conversar. E isso,conforme Lucia disse a Rosa, era realmente um elogi-o.

Rosa e Marco iriam casar-se na primavera. Os

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dois riam constantemente por causa disso enquantoentravam e saíam juntos da casa, sempre apressados.Antonio e Tio Lorenzo foram a pé até a casa ondeMario Andretti morava, e combinaram tudo. MarioAndretti veio até a casa dos Montana para acertaremos detalhes. Era um homem grande e gordo — durona queda na hora de negociar, segundo Tia Francesca— e bem diferente de Marco. A coisa mais notável aseu respeito era o automóvel comprido e branco noqual ele fora até lá.

O Velho Niccolo olhou Pensativamente para ocarro.

— Tem cheiro ruim. Mas parece mais confiáveldo que um cavalo de papelão — disse, e suspirou.

Ainda se sentia profundamente humilhado. Dequalquer maneira, depois que Mario Andretti reti-rou-se Tonino ficou muito interessado ao ser enviadoao correio com duas cartas. Uma era endereçada àFerrari, a outra à Rolls-Royce na Inglaterra.

Normalmente, a conversa na casa dos Montanateria sido toda a respeito daquele carro e daquelas du-as cartas. Mas essas coisas passaram despercebidas emmeio aos murmúrios ansiosos sobre Florença, Siena ePisa. O único tópico capaz de finalizar a conversa so-bre a guerra era o vestido de noiva de Rosa. Deveriaser longo ou curto? Com ou sem cauda? E qual o tipodo véu? Rosa mostrava-se tão independente a respeitodisso quanto havia se mostrado a respeito de Marco.

— Imagino que eu não tenha o direito de dar aminha opinião sobre o meu vestido — ela comentou.— Ele será na altura dos joelhos na frente e com umacauda de três metros atrás, eu acho. E nada de véu.

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Apenas uma máscara negra.Aquilo ofendeu profundamente Tia Maria e Tia

Gina, que eram as principais debatedoras. Com tudoisso — com o barulho que elas faziam e o som fa-nhoso que vinha do outro lado da sala, onde Antoniohavia encurralado Marco para ajudá-lo a encontrar aletra de “O Anjo”, Tonino não conseguia concen-trar-se no livro. Então saiu para a varanda e de lá foipara a biblioteca, na esperança de ali ter alguma paz.

Mas Rinaldo estava debruçado na balaustradada varanda, bem em frente à porta da biblioteca, comuma aparência extraordinariamente sinistra, e fez comque Tonino estacasse, dizendo:

— Esse tal de Marco, eu queria muito recordaronde foi que o vi. Encontrei-o na Galeria de Artecom Rosa, mas não foi lá. Sei que foi em algum lugarmuito mais degradante do que isso.

Tonino não tinha dúvida de que Rinaldo co-nhecesse todo tipo de lugares degradantes. Levou seulivro para dentro da biblioteca, torcendo para que Ri-naldo não conseguisse lembrar-se do tal lugar, e aco-modou-se para ler em meio ao frio e ao cheiro demofo.

No momento seguinte, Benvenuto aterrissousobre o livro com um ruído forte.

— Ora, saia daí! — Tonino ordenou. — Mi-nhas aulas começam amanhã, e quero terminar istoantes.

Benvenuto disse que não: Tonino devia ir ime-diatamente ao encontro do Velho Niccolo. Por trásdos olhos de Tonino passou um alvoroço de docu-mentos, feitiços, rolos de pergaminhos amarelados e

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então uma fila de imensos livros vermelhos. Isso foiseguido por uma tempestade de imagens imensas.Gigantes corriam, batiam, fumavam e incendiavam, etodos eles usavam vermelho e dourado. Mas não ain-da; estavam a preparar-se para o combate, marchandocom suas enormes e imponentes botas. Benvenutotinha tanta urgência que Tonino precisou usar toda asua capacidade para desvendar o que ele queria dizer.

— Está bem, eu direi a ele — concordou omenino. Levantou-se e saiu em disparada pela varan-da.

Ao passar por Rinaldo, este perguntou:— Qual é o motivo de tanta pressa?Quando Tonino chegou aos aposentos do Ve-

lho Niccolo, este estava justamente saindo. O meninorelatou:

— Benvenuto mandou dizer para preparar osfeitiços de guerra. O Duque está convocando os Re-servistas.

O Velho Niccolo ficou tão quieto, com os o-lhos tão arregalados, que Tonino achou que ele nãoestava acreditando. O Velho Niccolo tateou à procurada moldura da porta. Parecia pensar que ela não esta-va ali.

— O senhor me escutou, não foi? — Toninoquis saber.

— Escutei, sim — o Velho Niccolo afirmou.— É que é tão cedo... tão de repente... Queria que oDuque houvesse nos avisado. Então a guerra estáchegando! Deus permita que o nosso poder ainda sejasuficiente...

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CAPÍTULO V

A novidade de Benvenuto provocou uma ba-rafunda na Casa Montana. Os primos mais velhoscorreram para o Scriptorium e começaram a guardaros feitiços, as tintas e as canetas de uso diário; as tiastrouxeram as tintas especiais para serem usadas nosfeitiços de guerra; os tios cambaleavam sob pilhas depapéis e rolos de pergaminho em branco. Antonio, oVelho Niccolo e Rinaldo foram à biblioteca e pega-ram os gigantescos livros vermelhos, com GUERRAestampada na lombada, ao passo que Elizabeth correupara a sala de música com todas as crianças, paraguardar as partituras normais e preparar as canções eos instrumentos de guerra.

Enquanto isso, Rosa, Marco e Domenico saí-ram em disparada para a Via Magica e voltaram comjornais. Todos imediatamente abandonaram o queestavam fazendo e foram agrupar-se na sala de jantar,

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para saber o que os jornais diziam.Formaram junto à mesa uma pequena multidão

de pessoas de pescoço esticado. Rinaldo estava de pésobre uma cadeira, debruçado em cima de três tias.Marco estava embaixo, entortando ansiosamente opescoço para um lado, a cabeça quase grudada à doVelho Niccolo. Rosa virava as páginas. Havia tantasoutras pessoas apertadas e inclinadas para a frente queLucia, Paolo e Tonino foram forçados a agachar-se,com o queixo em cima da mesa, para que pudessemenxergar alguma coisa.

— Não, nada — disse Rosa, folheando o se-gundo jornal.

— Espere! — Marco exclamou. — Veja nasNotícias de Ultima Hora.

Todos se inclinaram na mesma direção, em-purrando Marco mais para o lado. Nesse momentoTonino quase recordou o lugar onde havia vistoMarco antes.

— Ali está — disse Antonio.Todos endireitaram o corpo, as expressões

muito sérias.— A Reserva foi mesmo mobilizada — Rosa

informou. — Ah, Marco!— Qual é o problema? Marco é Reservista? —

Rinaldo perguntou em tom sarcástico.— Não. Meu... meu irmão conseguiu que me

deixassem de fora — Marco respondeu.Rinaldo riu.— Quanto patriotismo! — exclamou. Marco

ergueu os olhos para ele.— Sou um Reservista Voluntário, e espero que

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você também seja. Se não for, terei muito prazer emlevá-lo ao posto do Exército no Arsenal agora mes-mo.

Os dois se entreolharam com ódio. Mais umavez ouviram-se exclamações para que Rinaldo parassede bancar o tolo. De fisionomia amarrada Rinaldodesceu da cadeira e saiu da sala.

— Rinaldo também é Reservista Voluntário —Paolo assegurou a Marco.

— Achei mesmo que fosse. Escute, preciso ir.Eu... eu preciso avisar meu irmão. Rosa, verei vocêamanhã, se eu puder.

Quando Tonino adormeceu, naquela noite, oaposento contíguo ao dele estava cheio de pessoasfalando da guerra e do Anjo de Caprona, com desviosocasionais a respeito do vestido de noiva de Rosa.Tonino tinha a cabeça tão cheia dessas coisas que fi-cou muito surpreso, quando foi para a escola, por nãoescutar esse assunto lá. Mas parecia que ninguém ha-via percebido que poderia haver guerra. Era bem ver-dade que alguns dos professores tinham a fisionomiaséria, mas isso podia ser simplesmente o seu senti-mento natural no início de um novo período letivo.

Conseqüentemente, Tonino voltou para casa,naquela tarde, a pensar que talvez as coisas não esti-vessem tão ruins assim. Como sempre, Benvenutosaltou de cima do grande barril de água e caiu nosbraços dele. Tonino estava esfregando o rosto na o-relha de Benvenuto quando ouviu uma carruagemparar às suas costas. Benvenuto prontamente desven-cilhou-se dos braços dele. Tonino, muito surpreso,olhou em volta e viu-o trotando, com calma e polidez,

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e com a cauda toda ereta, na direção de um homemalto que vinha entrando pelo portão da casa.

Benvenuto estacou, abanando de leve a ponti-nha da cauda, as patas traseiras trêmulas e ligeiramen-te afastadas sob as coxas recobertas de penugem, eficou a olhar com gravidade para o homem alto. To-nino pensou com rabugice que, visto por trás, Ben-venuto muitas vezes tinha uma aparência bem idiota.E a aparência do homem era quase tão ruim. Usavaum casaco extremamente caro, com uma gola de pe-les, e um boné de viagem feito de tweed com abas so-bre as orelhas. Ele fez uma reverência para Benvenu-to.

— Boa tarde, Benvenuto — disse, tão cerimo-nioso quanto o próprio Benvenuto. — Fico contenteem encontrá-lo tão bem disposto. Sim, vou muitobem, obrigado.

Benvenuto adiantou-se para esfregar-se naspernas do desconhecido.

— Não, por favor — pediu o homem. — Seuspêlos ficam na minha roupa.

E Benvenuto parou imediatamente, sem dimi-nuir um grama daquela polidez incomum.

A essa altura Tonino estava extremamente res-sentido: aquela era a primeira vez era muitos anos queBenvenuto se comportava como se alguém lhe fossemais caro do que Tonino. O menino ergueu os olhosacusadoramente para os do estranho. Encontrou o-lhos ainda mais escuros do que os seus, que pareciamderramar um brilho sobre o resto do rosto liso e mo-reno do homem. Aqueles olhos provocaram um so-bressalto em Tonino, ainda pior do que a ocasião em

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que os cavalos voltaram a ser de papelão. Ele sabia,sem a menor sombra de dúvida, que estava olhandopara um mago poderoso.

— Como vai? — cumprimentou o homem. —Não, meu rapaz, apesar do seu olhar de raiva, nuncaconsegui entender os gatos. Pelo menos, não mais doque de uma maneira muito geral. Gostaria de lhe pedira gentileza de traduzir para mim o que Benvenuto estádizendo.

Tonino escutou Benvenuto.— Ele está dizendo que está muito feliz em

vê-lo de novo e seja bem-vindo à casa dos Montana,senhor.

O “senhor” era de Benvenuto, não de Tonino.Tonino não achava muito agradável que magos des-conhecidos entrassem na sua casa e requisitassem aatenção de Benvenuto.

— Obrigado, Benvenuto — disse o mago. —Estou muito feliz por estar de volta. Apesar de que,para ser franco, raramente tive uma viagem tão difícil.Sabia que as suas fronteiras com Florença e Pisa estãofechadas? — ele perguntou a Tonino. — Tive que virpor mar desde Gênova.

— Foi mesmo? — disse Tonino, perguntan-do-se se aquele homem estava achando que a culpaera dele. — Então, de onde é que o senhor vem?

— Ah, da Inglaterra.Tonino gostou disso. Então aquele não poderia

ser o mago que o Duque havia mencionado. Ou po-deria? Tonino não tinha muita certeza da distância emque os magos podiam trabalhar.

— Isto o deixa mais tranqüilo? — o homem

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perguntou.— Mamãe é inglesa — Tonino admitiu, sen-

tindo que estava revelando coisas demais.— Ah! — fez o mago. — Agora sei quem você

é. Você é o Antonio Mais Jovem, não é? Era um bebêquando o vi pela última vez, Tonino.

Como não existe resposta para esse tipo decomentário, Tonino ficou feliz ao avistar o VelhoNiccolo atravessando apressado o pátio, seguido porTia Francesca e Tio Lorenzo, com Antonio e váriosoutros membros da família atrás. Eles fizeram umcírculo em volta do mago, deixando Tonino e Ben-venuto de fora, perto do portão.

— Sim, acabo de vir da casa dos Petrocchi —Tonino ouviu o desconhecido dizer.

Para sua surpresa, todos aceitaram o fato comose fosse a coisa mais natural do mundo para o desco-nhecido fazer — tão natural quanto o modo como eletirou seu ridículo chapéu inglês para Tia Francesca.

— Mas vai passar a noite conosco — ela con-vidou.

— Se não for muito trabalho... — respondeu odesconhecido. Ao longe, como se já soubessem —como sem dúvida sabiam, em um lugar como a casados Montana — Tia Maria e Tia Anna subiam os de-graus da varanda para preparar o quarto de hóspedesno andar superior. Tia Gina emergiu da cozinha, le-vantou as mãos para o céu e correu de volta para den-tro outra vez. Pensativamente, Tonino pegou Benve-nuto no colo e perguntou-lhe quem exatamente eraaquele desconhecido.

A resposta foi: Crestomanci, é claro. O mago

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mais poderoso do mundo.— É ele quem está prejudicando os nossos fei-

tiços? — Tonino perguntou, cheio de suspeitas.Benvenuto respondeu — com impaciência,

porque evidentemente achava que Tonino estavasendo muito burro — que Crestomanci estava sempredo lado deles.

Tonino tornou a olhar para o desconhecido —ou, melhor, para a sua cabeça morena destacando-seentre os Montana, que eram mais baixos — e enten-deu que a chegada de Crestomanci significava quehavia mesmo uma crise.

O desconhecido deve ter dito alguma coisa so-bre ele: Tonino viu que todos o encaravam, e a famílialhe sorria amorosamente. Ele sorriu de volta, comtimidez.

— Ah, é um bom menino — disse Tia Fran-cesca. Então, sempre conversando, todos começarama atravessar o pátio.

— O que torna tudo particularmente difícil éque sou, em primeiro lugar, um funcionário do go-verno britânico — Tonino ouviu Crestomanci dizen-do. — E a Grã-Bretanha está se mantendo fora dosproblemas italianos. Mas felizmente recebo relatóriosbem completos.

Quase no mesmo momento, Tia Gina maisuma vez saiu da cozinha como uma flecha. Ela haviacancelado o jantar normal e iniciado um novo, emhonra de Crestomanci. Seis pessoas foram imediata-mente enviadas para trazer bolos e frutas, e duas maisforam procurar alface e queijo. Paolo, Corinna e Luciaforam interceptados quando chegaram da escola e

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receberam a ordem de ir imediatamente até o açou-gueiro. Nesse instante, porém, Rinaldo irrompeu fu-riosamente do Scriptorium.

— Que é que pensa que está fazendo, man-dando todas as crianças saírem desse jeito? — gritouda varanda. — Estamos até o pescoço em feitiços deguerra. Preciso de copistas!

Tia Gina colocou as mãos nos quadris e gritoude volta:

— E eu preciso de bife! Não fique aí paradome contrariando, Rinaldo Montana! Os ingleses sem-pre comem carne, de modo que tenho que mandarbuscar bife!

— Então corte uns pedaços dos gatos! Precisode Corinna e Lucia aqui comigo! — Rinaldo berrou.

— Pois estou lhe dizendo que pelo menos umavez elas vão fazer um favor para mim! — berrou TiaGina.

— Meu Deus, que cena mais italiana! — disseCrestomanci, aparecendo outra vez no pátio. — Pos-so ser útil de alguma maneira?

Ele assentiu e sorriu para Tia Gina e para Ri-naldo. Ambos retribuíram o sorriso, Rinaldo todocheio de simpatia.

— O senhor concorda que preciso de copistas,não concorda? — perguntou.

— Bah! — exclamou Tia Gina. — Rinaldo ligao seu charme e eu acabo tendo que lutar sozinha!Como sempre! Muito bem. Como se trata de feitiçosde guerra, Paolo e Tonino podem ir buscar o bife.Mas esperem enquanto escrevo um bilhete, senão vo-cês chegarão de volta com alguma coisa que ninguém

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vai conseguir mastigar!— Fico feliz em poder ajudar — Crestomanci

murmurou e virou-se para cumprimentar Elizabeth.Ela vinha descendo em disparada os degraus da

varanda, acenando com uma pilha de partituras musi-cais, e caiu nos braços dele. Os cinco priminhos queElizabeth estava ensinando espichavam o pescoço,curiosos, para espiarem por cima da balaustrada davaranda.

— Elizabeth! Você está mais jovem do quenunca! — Crestomanci exclamou.

Tonino observava, tão curioso quanto os seusprimos. A mãe estava rindo e chorando ao mesmotempo. Ele não conseguia acompanhar a torrente defrases em inglês. Ouviu as palavras “virtude” e “guer-ra” e, sem muita demora, as inevitáveis “O Anjo deCaprona”. Ainda estava observando a cena quandoTia Gina enfiou o bilhete na mão dele e disse-lhe paraandar depressa.

Enquanto seguiam apressados a caminho doaçougueiro, Tonino disse a Paolo:

— Não sabia que mamãe conhecia uma pessoacomo Crestomanci.

— Nem eu — Paolo confessou. Afinal, eraapenas um ano mais velho do que Tonino, e, pelo jei-to, a última vez que Crestomanci estivera em Capronahavia sido muito tempo antes. — Talvez ele tenhavindo para encontrar a letra da canção do Anjo — elesugeriu. — Espero que sim. Não quero que Rinaldotenha que ir para longe lutar.

— Nem Marco — Tonino concordou. — OuCario ou Luigi, ou até mesmo Domenico.

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Por causa do bilhete da Tia Gina, o açougueirotratou-os com grande respeito.

— Digam à sua tia que este é o último filé dosbons que ela verá, se a guerra for declarada — disse,passando para cada um deles uma carga pesada, rosa-da e molenga.

Eles chegaram de volta com sua carga exata-mente quando de uma carruagem de aluguel saltava oTio Umberto, ofegante, do lado de fora do portão dacasa.

— É verdade mesmo? Crestomanci está aqui?Hein, Paolo? — Tio Umberto perguntou a Tonino.

Ambos os meninos assentiram. Parecia maisfácil do que explicar que ele havia se dirigido a Toni-no.

— Muito bom, muito bom! — Tio Umbertoexclamou. Ele irrompeu portão adentro e deu coraCrestomanci que atravessava o pátio. — “O Anjo deCaprona”, será que você poderia...

— Meu caro Umberto, todos aqui estão mepedindo isto — Crestomanci respondeu, com umcordial aperto de mão. — Aliás, na casa dos Petrocchitodos me pediram a mesma coisa, também. Infeliz-mente não sei mais do que vocês. Mas vou pensar noassunto, não se preocupe.

— Se conseguisse encontrar pelo menos umpedaço, para nós continuarmos... — disse Tio Um-berto em tom implorante.

— Vou fazer o possível... — Crestomanci es-tava dizendo, quando Rosa passou por eles, os saltosbatendo no chão com estrépito. Pela expressão no seurosto, ela havia avistado Marco chegando. — Eu lhe

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prometo — Crestomanci continuou, virando a cabeçapara ver por que Rosa estava com tanta pressa.

Marco entrou pelo portão e parou de supetão,olhos fixos em Crestomanci, de modo que Rosadeu-lhe um encontrão que quase o derrubou no chão.Marco cambaleou um pouco, enlaçou Rosa com osdois braços e continuou de olhos pregados em Cres-tomanci. Tonino prendeu a respiração sem perceber;Rinaldo tinha razão, havia mesmo alguma coisa esqui-sita em Marco.

Crestomanci sabia o que era, e Marco sabia queele sabia. Pela sua expressão, ele imaginava que Cres-tomanci estava prestes a revelar o que era.

Crestomanci realmente chegou a abrir a bocapara dizer alguma coisa, mas tornou a fechá-la e fran-ziu os lábios com uma espécie de assobio. Marco o-lhava para ele com incerteza.

— Ah, quero lhe apresentar... — começou TioUmberto, que então silenciou e pôs-se a pensar. DeRosa ele geralmente se lembrava, por causa dos seuscabelos claros, mas não conseguia determinar quemera Marco. — O noivo de Corinna — sugeriu.

— Eu sou a Rosa. E este é Marco Andretti —informou a moça.

— Muito prazer — disse Crestomanci educa-damente. Marco pareceu relaxar. Crestomanci voltouos olhos para Paolo e Tonino, que olhavam fixamentepara ele.

— Céus! Parece que todos aqui têm uma vidamuito excitante! — exclamou. — Que foi que vocêsmataram, meninos?

Paolo e Tonino baixaram os olhos, consterna-

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dos, e descobriram que o filé estava pingando era seussapatos. Dois ou três gatos já se aproximavam signifi-cativamente. Tia Gina apareceu à porta da cozinha.

— Onde é que está o meu filé?Paolo e Tonino saíram depressa em direção a

ela, deixando uma trilha respingada.— Que conversa era aquela? — Paolo, ofegan-

te, perguntou a Tonino.— Não sei — Tonino respondeu, porque não

sabia mesmo e porque gostava de Marco.Tia Gina logo se mostrou muito incisiva e e-

xaltada a respeito da carne. A trilha de respingos atra-iu todos os gatos da casa, que passaram a tarde inteiraperturbando na cozinha, miando tristemente. Benve-nuto também estava presente, mantendo uma distân-cia prudente de Tia Gina, e não perdeu tempo, poisTia Gina mais uma vez irrompeu no pátio, trombete-ando:

— Tonino! To-ni-noooo!Tonino largou o livro e correu para o pátio.— Sim, Tia Gina?— Aquele seu gato roubou mais de meio quilo

de carne! — Tia Gina proclamou, erguendo os braçospara o céu num gesto teatral.

Tonino olhou e, realmente, ali estava Benve-nuto no telhado, agachado, segurando com uma pataum grande bocado de carne.

— Ai, ai! — ele exclamou. — Acho que nãovou conseguir fazer com que ele devolva, Tia Gina.

— Eu não quero essa carne de volta! Veja poronde ela andou!

— Tia Gina berrou. — Diga a ele que eu man-

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dei dizer que vou torcer seu maldito pescoço se ele seaproximar de mim outra vez!

— Meu Deus, parece que você está no centrode tudo — Crestomanci comentou, aparecendo aolado de Tonino no pátio. — É sempre assim tão re-quisitado?

— Vou ter um ataque histérico! — Tia Ginadeclarou. — E ninguém vai ter jantar!

Elizabeth, Tia Maria e as primas Claudia e Te-resa imediatamente vieram em sua ajuda e a levaramcarinhosamente de volta para dentro.

— Graças ao Senhor! — Crestomanci excla-mou. — Não sei se conseguiria agüentar ao mesmotempo fome e histeria. Como sabia que sou um mago,Tonino? Foi Benvenuto quem lhe contou?

— Não, eu simplesmente soube quando olheipara o senhor

— Tonino afirmou.— Entendo. Isto é interessante. A maioria das

pessoas é incapaz de perceber. Isso me deixa na dúvi-da se o Velho Niccolo tem razão quando diz que avirtude abandonou a sua casa.

Você acha que seria capaz de distinguir outromago simplesmente olhando para ele?

Tonino franziu a testa, pensando.— Talvez possa. São os olhos. Está querendo

saber se eu reconheceria o mago que está atrapalhan-do os nossos feitiços?

— Acho que é isto que eu quero saber —Crestomanci concordou. — Estou começando a acre-ditar que essa pessoa existe. Tenho certeza, pelo me-nos, de que os feitiços na Ponte Velha foram rompi-

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dos deliberadamente. Será que iria atrapalhar muito osseus planos se eu pedisse ao seu avô para levar vocêcom ele todas as vezes que ele tiver que conhecer al-guém?

— Eu não tenho planos — Tonino respondeu.Então pensou um pouco, e riu. — Acho que o senhorfaz piadas o tempo todo — disse.

— Tento ser simpático — Crestomanci res-pondeu.

No entanto, a ocasião seguinte em que Toninoencontrou-se com Crestomanci foi durante o jantar— que estava magnífico, apesar de Benvenuto e doataque histérico de Tia Gina. E Crestomanci estavamuito sério mesmo.

— Meu caro Niccolo, a minha missão precisaestar ligada à má utilização da magia e não ao equilí-brio do poder na Itália. Os problemas seriam infindá-veis se eu fosse flagrado tentando impedir uma guerra.

O Velho Niccolo tinha a expressão de um bebêprestes a chorar. Tia Francesca interveio:

— Isto não é um pedido pessoal da nossa par-te...

— Mas, minha cara, não entende que eu sóposso fazer alguma coisa parecida com isto se forcomo um assunto pessoal? — Crestomanci interrom-peu-a. — Por favor, faça-me um pedido pessoal. Nãovou deixar que as regras severas do meu cargo interfi-ram com a minha obrigação para com os amigos.

Ele sorriu então, e seu olhar percorreu toda avolta da grande mesa, com muita afeição. E pareceunão excluir Marco. Então prosseguiu:

— Portanto, acho que o meu melhor plano, no

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momento, é seguir para Roma. Conheço certos luga-res, por lá, onde conseguirei informações imparciais,que me possibilitarão identificar esse mago. No mo-mento, tudo o que sabemos é que ele existe. Com umpouco de sorte poderei obter provas se Florença, ouSiena, ou Pisa está lhe pagando, e nesse caso o Estadoe o mago podem ser indiciados no Tribunal da Euro-pa. E se, enquanto estiver lá, conseguir que Roma, ouNápoles, aja em benefício de Caprona, é certo quefarei isto.

— Obrigado — disse o Velho Niccolo.Durante o resto do jantar eles debateram a

melhor maneira de Crestomanci viajar até Roma. Eleteria que ir por mar, já que pelo jeito o último trechoda fronteira entre Caprona e Siena estava agora fe-chado.

Muito mais tarde, nessa mesma noite, quandoPaolo e Tonino estavam a caminho da cama, viramluzes no Scriptorium e foram até lá pé ante pé, parainvestigar. Crestomanci estava lá com Antonio, Ri-naldo e Tia Francesca, estudando os feitiços nosgrandes livros vermelhos. Todos resmungavam, masos meninos escutaram Crestomanci dizer:

— Esta é uma combinação sólida, mas vai pre-cisar de uma nova letra. — E, em outra página: —Peça a Elizabeth para traduzir isto para o inglês, comofator de surpresa. — E, logo depois: — Ignorem amelodia; a única melodia que será de alguma utilidadepara vocês no momento é “O Anjo de Caprona”. Es-ta ele não consegue bloquear.

— Por que só aquelas três? — Tonino per-guntou num cochicho.

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— São as melhores para se fabricarem novosfeitiços de guerra — Paolo cochichou de volta. —Precisamos de feitiços de guerra novos. Parece que ooutro mago conhece todos os antigos.

Os dois irmãos foram para a cama com umsentimento de excitação e urgência, e nenhum dosdois achou fácil adormecer.

Na manhã seguinte, Crestomanci partiu antesque as crianças saíssem para a escola. Benvenuto e oVelho Niccolo foram com ele até o portão, um decada lado, e todos da casa reuniram-se para acenar emdespedida. Depois que ele se foi, as coisas pareciamsem força e preocupantes. Nesse dia houve muitasconversas na escola sobre guerra. Os professores co-chichavam em grupinhos. Dois deles haviam partidopara juntar-se aos Reservistas. Boatos corriam duranteas aulas. Alguém disse a Tonino que a guerra seriadeclarada no domingo seguinte, para que fosse umaGuerra Santa. Outro anunciou a Paolo que todos osReservistas haviam recebido botas com dois pés es-querdos, para que não conseguissem combater. Nãohavia a menor verdade nessas coisas. Simplesmente,todos sabiam agora que a guerra estava para chegar.

Os meninos voltaram depressa para casa, ansi-osos por notícias verdadeiras. Como sempre, Benve-nuto saltou de cima do seu barril de água. EnquantoTonino mais uma vez desfrutava da atenção total deBenvenuto, Elizabeth chamou da varanda:

— Tonino! Alguém lhe mandou um pacote!Tonino e Benvenuto saltaram para a escada que

levava à varanda, altamente excitados, pois Toninojamais havia recebido um pacote. Mas antes que che-

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gasse perto dele, o menino foi agarrado por Tia Maria,Rosa e Tio Lorenzo. Eles arrebanharam todas as cri-anças que sabiam escrever e as carregaram para a salade jantar. Esse aposento tinha sido transformado emum segundo Scriptorium. Diante de cada cadeira ha-via uma caneta especial, um frasco de tinta-de-guerravermelha e uma pilha de tirinhas de papel. Ali as cri-anças ficaram ocupadas durante duas horas inteiras,copiando o mesmo feitiço de guerra vezes sem conta.Tonino nunca em sua vida havia sentido tamanhafrustração. Não sabia sequer o formato do seu pacote.E ele não era a única pessoa a se sentir frustrada.

— Ah, por quê? — queixavam-se Lucia, Paoloe a jovem prima Lena.

— Eu sei, parece a escola. Comecem a escrever— disse Tia Maria.

— Exploração de menores, é isto que estamosfazendo — Rosa declarou em tom brincalhão. —Deve haver leis contra isto, de modo que podem re-clamar.

— Pode ter certeza de que vou fazer isto —disse Lucia. — Já estou fazendo.

— Contanto que escreva enquanto reclama...— Rosa respondeu.

— É uma nova tira de feitiço para o Exército.É muito urgente — Tio Lorenzo explicou.

— É difícil. Todas as palavras são novas —Paolo reclamou.

— Foi fabricado pelo seu pai ontem à noite —Tia Maria informou. — Continuem escrevendo. Va-mos ficar observando se cometem erros.

Quando finalmente, com o pescoço doendo e

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manchas de tinta vermelha nos dedos, eles foram li-berados para irem para o pátio, Tonino descobriu quemal teria tempo para desembrulhar o pacote antes dojantar. Naquela noite o jantar sairia mais cedo, paraque os Montana mais velhos pudessem fazer mais umturno nos feitiços do Exército antes de irem dormir.

— É pior do que trabalhar na Ponte Velha —disse Lucia. — Que é isso, Tonino? Quem foi quemandou?

O pacote tinha o promissor formato de livro.Trazia o selo e o escudo da Universidade de Caprona.Aquela era a única indicação que Tonino tinha de queo Tio Umberto o enviara, pois, ao arrancar o grossopapel marrom, não encontrou carta alguma, nem se-quer um cartão. Havia apenas um livro brilhando denovo. Os olhos de Tonino cintilaram. Pelo menos TioUmberto sabia alguma coisa sobre ele! Virou o livrocom um gesto amoroso. Chamava-se “O menino quesalvou o seu país”, e a capa era do mesmo couro ver-melho reluzente e pontilhado dos grandes volumes defeitiços de guerra.

— Será que o Tio Umberto está fazendo umainsinuação, ou qualquer coisa assim? — Paolo per-guntou, achando graça.

Ele, Lucia e Corinna debruçaram-se sobre To-nino enquanto ele folheava o livro. Para grande alegriado menino, havia figuras: soldados a cavalo, soldadosdentro de máquinas; um menino pendurado numacorda subindo pela muralha de uma fortaleza; e a maisexcitante de todas, um menino com uma bandeira, depé sobre um rochedo, enfrentando um exército intei-ro de dragões de aparência feroz. Suspirando de curi-

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osidade, Tonino voltou para o Capítulo Um: ComoGiorgio Descobriu uma Conspiração Inimiga.

Tonino foi forçado a fechar novamente o livromaravilhoso e descer correndo para a sala de jantar.Ele observava ansiosamente Tia Gina servindo o mi-nestrone; ela dava a impressão de estar tão irritada queele ficou convencido de que Benvenuto decerto an-dara aprontando na cozinha outra vez. Rosa expli-cou-lhe:

— Está tudo bem. Simplesmente ela pensouque havia conseguido um verso para “O Anjo de Ca-prona”. Então a sopa ferveu e ela esqueceu o verso.

Tia Gina estava distintamente chorosa.— Com tanta coisa para fazer, minha memória

é como uma peneira — ela repetia. — Agora decep-cionei vocês todos.

— Claro que não decepcionou, Gina, minhacara — contestou o Velho Niccolo. — Isto não é mo-tivo para se preocupar. Você vai tornar a se lembrar.

— Mas não consigo sequer lembrar em quelíngua ele estava! — lamentou-se Tia Gina.

Todos tentaram consolá-la. Polvilharam queijoralado em seus pratos de sopa e jantaram com umentusiasmo especial, para mostrar a Tia Gina comotodos lhe davam valor, mas Tia Gina continuou afungar e a acusar-se. Então Rinaldo lembrou-se decomentar que ela estava mais adiantada do que qual-quer outra pessoa na Casa Montana.

— Do resto de nós, nenhum já teve um versode “O Anjo de Caprona” para esquecer — esclareceu,lançando a Tia Gina o seu melhor sorriso.

— Bah! — fez ela. — Está recorrendo ao seu

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velho charme, Rinaldo Montana!Depois disso, porém, ela se mostrava bem mais

alegre.Tonino ficou aliviado ao saber que dessa vez

Benvenuto nada tinha a ver com o caso. Olhou emvolta, à procura do gato. Benvenuto geralmente seposicionava junto ao bufê, de modo a facilitar o rou-bo de restos de comida. Mas nessa noite ele não esta-va à vista. Aliás, Marco também não estava.

— Onde está Marco? — Paolo perguntou aRosa. Rosa sorriu. Parecia muito contente.

— Ele precisou ir ajudar o irmão com as forti-ficações — disse. Aquilo lembrou a Paolo e Tonino ofato de que ia haver uma guerra. Entreolharam-senervosamente. Nenhum dos dois tinha muita certezase durante uma guerra as pessoas se comportavam demaneira normal ou não. Os pensamentos de

Tonino voaram para o seu lindo livro novo, “Omenino que salvou o seu país”. Ele bebeu esse títuloatravés do pensamento, exatamente como estava be-bendo a sopa. Será que Tio Umberto estava lhe di-zendo: ‘Tonino, encontre a letra de “O Anjo de Ca-prona” e salve o seu país?’. Seria mesmo a coisa maismaravilhosa se ele, Tonino Montana, conseguisse en-contrar as palavras e salvar seu país. Mal podia esperarpara ver como o menino no livro havia feito isso.

Assim que o jantar terminou ele levantou-se deum pulo, pronto para sair correndo e começar a ler. Emais uma vez foi impedido. Dessa vez foi porquemandaram as crianças lavar a louça do jantar. Toninogemeu. E, mais uma vez, ele não foi o único.

— Não é justo! — Corinna declarou veemen-

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temente. — Trabalhamos como escravos durante todaa tarde copiando feitiços, e trabalhamos como escra-vos à noite lavando louça! Sei que vai haver umaguerra, mas mesmo assim vou ter que passar de ano.Como é que vou conseguir fazer o meu dever de casa?

A maneira como ela ergueu os braços numgesto exaltado fez com que Paolo e Tonino pensas-sem que os modos de Tia Gina eram contagiosos.

Inesperadamente, Lucia ficou solidária comCorinna.

— Acho que você já passou da idade de sertratada como uma criança como nós — ela declarou.— Por que não vai fazer o seu dever e deixa que euorganize as crianças?

Corinna olhou para ela com hesitação.— E quanto ao seu dever de casa?— Não é muita coisa. Não pretendo ir para a

Universidade, como você — disse Lucia com bonda-de. — Pode ir — insistiu, empurrando Corinna parafora da sala.

Assim que a porta foi fechada, ela voltou-separa as outras crianças com expressão séria.

— Vamos lá. Que é que estão fazendo aí para-dos como estúpidos? Cada um leve uma pilha de pra-tos para a cozinha. Depressa, marche, Tonino. Me-xam-se, Lena e Bernardo. Paolo, você leva as terrinasgrandes.

Com Lucia tomando conta como um sargento,Tonino não teve oportunidade de sair de fininho. Foipara a cozinha arrastando os pés, como todos os ou-tros, e lá, para sua surpresa, Lucia mandou que todoscolocassem os pratos e talheres enfileirados no chão.

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Então fez com que eles próprios se enfileirassem, defrente para as fileiras de pratos engordurados.

Lucia estava toda cheia de si.— Agora, isto é uma coisa que sempre quis

experimentar. É o método de lavar louça com facili-dade, inventado e patenteado por Lucia Montana.Vou lhes dizer as palavras. É uma letra para “O Anjode Caprona”. E vocês vão cantar logo em seguida...

— Tem certeza de que devemos fazer isso? —perguntou Lena, que sempre fora uma prima obedi-ente às leis.

Lucia lançou-lhe um olhar de desprezo. Diri-gindo-se às traves do teto, declarou:

— Se algumas pessoas não reconhecem o ver-dadeiro gênio quando o encontram, têm toda a liber-dade para ir morar com os Petrocchi.

— Foi só uma pergunta — disse Lena, arrasa-da.

— Bem, não pergunte. O feitiço é assim...Pouco depois, estavam todos cantando com

entusiasmo:

“Anjo, limpe facas e pratos,Nossos talheres e nossas terrinas,Nossas panelas, escute o que eu digo,Assim fazendo não corremos perigo. “

No princípio parecia que nada iria acontecer.Então ficou evidente que a gordura alaranjada estavadesaparecendo lentamente dos pratos. Em seguida, osfios de espaguete colados no fundo da maior das pa-nelas começaram a despregar-se e retorcer-se como

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vermes. Subiram até a borda da panela e caíram nopiso de pedra, onde se puseram a deslizar para dentrodas latas de lixo. A gordura alaranjada e o azeite dasalada foram atrás deles em pequenos fios líquidos. Ocanto fraquejou um pouco, pois as pessoas paravamde cantar para rir.

— Cantem, cantem! — Lucia gritava. E todoscantavam.

Infelizmente para Lucia, o barulho chegou atéo Scriptorium. Os pratos ainda estavam rosados e umpouco engordurados, e o último dos fios de espagueteainda se contorcia no chão, quando Elizabeth e TiaMaria irromperam na cozinha.

— Lucia! — Elizabeth exclamou.— Seus pirralhos sem religião! — exclamou Tia

Maria.— Não sei qual é o grande problema — disse

Lucia.— Ela não sabe... Elizabeth, estou sem pala-

vras! — disse Tia Maria. — Com é que eu possoter-lhe ensinado tão pouco, e tão erradamente? Lucia,um feitiço não é uma coisa para substituir outra. Ésimplesmente para ajudar essa coisa. E, ainda por ci-ma, você usa “O Anjo de Caprona”, como se fosseuma canção qualquer e não a mais poderosa de toda aItália! Eu... Eu tenho vontade de lhe dar umas palma-das, Lucia!

— Eu também — disse Elizabeth. — Vocênão compreende que precisamos de toda a nossa vir-tude, todo o poder da Casa Montana reunido, paracolocar nos encantos de guerra? E aí você fica des-perdiçando poder na cozinha!

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— Coloque estes pratos na pia, Paolo — TiaMaria ordenou. — Tonino, pegue essas panelas. Oresto de vocês pode recolher os talheres. E agora vãolavar tudo direitinho.

Envergonhados, todos obedeceram. Lucia, a-lém de envergonhada, estava zangada. Lena sussurrou:

— Bem que eu lhe disse!Por causa disso, Lucia quebrou um prato e deu

pulinhos em cima dos cacos.— Lucia! — chamou Tia Maria, olhando para

ela com raiva. Era a primeira vez que alguma das cri-anças a via tão perto de dar umas palmadas em al-guém.

— Ora, como é que eu podia saber? Ninguémnunca me explicou... Ninguém me disse que os feiti-ços eram assim! — Lucia argumentou, furiosa.

— Sim, mas você sabia perfeitamente que es-tava fazendo alguma coisa que não devia fazer, mes-mo que não soubesse por que não devia — Elizabethrespondeu. — O resto de vocês, parem de dar risadi-nhas. Lena, você também pode aprender esta lição.

Durante toda a conscienciosa lavagem da louça— que durou quase uma hora — Tonino ficou a re-petir consigo mesmo:

— Depois disto vou poder finalmente ler omeu livro.

Quando a tarefa chegou ao fim, ele saiu cor-rendo para o pátio. E lá estava o Velho Niccolo des-cendo às pressas a escada da varanda para intercep-tá-lo no escuro.

— Tonino, posso ficar com Benvenuto por al-gum tempo, por favor?

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Mas não se conseguiu encontrar Benvenuto.Tonino começou a pensar que morreria de leiturafrustrada. Todas as crianças se juntaram à caça, pro-curando e chamando, mas nada de Benvenuto. Logo,a maioria dos adultos também procurava por ele, eBenvenuto não aparecia. Antonio estava tão exaspe-rado que agarrou o braço de Tonino e sacudiu-o.

— Isto é muito ruim, Tonino! Você deveriasaber que íamos precisar de Benvenuto. Por que dei-xou que ele fosse embora?

— Eu não deixei! Você sabe como Benvenutoé! — Tonino protestou, igualmente exasperado.

— Pronto, pronto — disse o Velho Niccolo,segurando o ombro de cada um dos dois. — É evi-dente, a essa altura, que Benvenuto está no outro ladoda cidade, fazendo barulhos horrorosos em cima dealgum telhado. Tudo o que podemos fazer é torcerpara que não demore muito até alguém lhe jogar umbalde d’água em cima. A culpa não é de Tonino, An-tonio.

Antonio soltou o braço de Tonino e esfregouas duas mãos no rosto. Parecia muito cansado.

— Desculpe-me, Tonino. Sinto muito. Aviseassim que Benvenuto voltar, está bem?

Ele e o Velho Niccolo voltaram apressadospara o Scriptorium. Quando passaram sob a luz, a ex-pressão do rosto dos dois era de profunda preocupa-ção.

— Acho que não gosto da guerra, Tonino —Paolo comentou. — Vamos jogar pingue-pongue nasala de jantar.

— Vou é ler o meu livro — Tonino declarou

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em tom firme. Já estava achando que ficaria igual aTia Gina se acontecesse mais alguma coisa para impe-di-lo.

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CAPÍTULO VI

Tonino leu durante a metade da noite, já que,com todos os adultos mergulhados no trabalho noScriptorium, não havia alguém para mandar que elefosse para a cama. Corinna bem que tentou, depoisque terminou seu dever de casa, mas Tonino estavatão imerso no livro que nem sequer a escutou. E Co-rinna afastou-se respeitosamente, raciocinando que, seo livro viera do Tio Umberto, provavelmente eramuito erudito.

O livro não era nem um pouquinho erudito,mas sim a história mais emocionante que Tonino jáhavia lido. Começava com o garoto, Giorgio, seguin-do por um beco misterioso perto das docas, vindo daescola a caminho de casa. No final do beco havia umacasa de pintura azul descascada e, exatamente quandoGiorgio passava por ela, um pedacinho de papel veioflutuando de uma das janelas. Continha uma mensa-gem misteriosa, que de imediato levou Giorgio a uma

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série de aventuras com os inimigos do seu país. Cadaaventura era mais excitante do que a anterior.

Bem depois da meia-noite, quando Giorgio es-tava defendendo sozinho um desfiladeiro das mãos doinimigo, Tonino por acaso ouviu seu pai e sua mãevindo para a cama. Foi forçado a deixar Giorgio feri-do, estendido no chão, e mergulhar ele mesmo nacama. Durante toda a noite sonhou com bilhetes flu-tuando das janelas de casas azuis com a pintura des-cascada, Giorgio — que às vezes era o próprio Toni-no e às vezes era Paolo — e inimigos implacáveis, queem sua maioria pareciam ter barbas ruivas e cabelosnegros, como Guido Petrocchi. Quando o sol nasceu,ele estava excitado demais para continuar a dormir.Despertou e continuou a leitura.

Quando o resto da Casa Montana começou adespertar, Tonino havia terminado o livro. Giorgiosalvara o seu país. Tonino tremia de excitação e e-xaustão. Sua vontade era de que o livro tivesse o do-bro do tamanho. Se não fosse hora de levantar-se, eleteria voltado direto para o início e começado a ler to-do o livro outra vez.

Enquanto tomava seu café da manhã semprestar atenção, ele pensava que o mais maravilhosoera que Giorgio salvara o seu país, não apenas sozi-nho, mas sem que um único feitiço fosse mencionado.Se Tonino ia salvar Caprona, era dessa maneira queele gostaria de fazer isso.

Em volta de Tonino, todas as outras pessoasestavam reclamando, e Lucia estava de cara amarrada.O feitiço de lavagem da louça ainda perdurava na co-zinha. Todas as xícaras e todos os pratos estavam co-

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bertos por uma camada de gordura alaranjada do es-paguete, e a manteiga tinha gosto de sabão.

— Pelo amor de Deus! Que foi que ela usou,afinal? Este café está com gosto de tomate! — res-mungou Tio Lorenzo.

— A melodia de “O Anjo de Caprona” comuma letra que ela inventou — Tia Maria relatou, es-tremecendo ao pegar sua xícara gordurenta.

— Lucia, sua tola! É a canção mais poderosaque existe! — disse Rinaldo.

— Está bem, chega! Parem de brigar comigo.Eu lamento muito! — Lucia exclamou cora raiva.

— Nós todos lamentamos muito, infelizmente— suspirou Tio Lorenzo.

Levantando-se da mesa, Tonino pensava: se aomenos pudesse ser como Giorgio... Imaginava que oque devia fazer era encontrar a letra de “O Anjo”. Foipara a escola sem ver coisa alguma no caminho, per-guntando-se como poderia conseguir isso, quando oresto da família havia fracassado. Era suficientementerealista para saber que simplesmente não era suficien-temente bom em feitiços para conseguir criar a letrapela maneira usual. Esse pensamento fez com quesuspirasse profundamente.

— Anime-se — disse Paolo, quando entravamna escola.

— Está tudo bem — Tonino respondeu.Ele ficou surpreso que Paolo pensasse que es-

tava desanimado. Não estava nem um pouquinho de-sanimado! Estava, isso sim, mergulhado em sonhosdeliciosos. Pensou: talvez consiga fazer isso casual-mente...

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Assim, durante as aulas ele ficou a compor fra-ses sem sentido com a melodia de “O Anjo”, na es-perança de que alguma coisa desse certo. Mas, por ummotivo qualquer, esse método não apresentou resul-tados satisfatórios. Então, durante uma aula que pro-vavelmente era de História — ele não escutou umaúnica palavra — ocorreu-lhe, como um relâmpagocegante, aquilo que devia fazer. Ele tinha de encontraras palavras, naturalmente. O Primeiro Duque certa-mente as escrevera em algum lugar e depois perdera opapel. Tonino era o garoto cuja missão era descobriraquele papel perdido. Nada de bobagens de querercompor a letra, mas sim um simples trabalho de dete-tive. E Tonino tinha certeza de que o livro havia sidouma pista. Precisava encontrar uma casa de pinturaazul descascada, já que assim encontraria o papel coma letra da canção em algum lugar perto dela.

— Tonino! — chamou o professor, pela quartavez. — Para onde Marco Polo viajou?

Tonino não ouviu a pergunta, mas deu-se contade que estavam a perguntar-lhe alguma coisa.

— O Anjo de Caprona — respondeu.Nesse dia, ninguém na escola conseguiu arran-

car de Tonino alguma coisa que fizesse sentido. Eleestava tomado pelo assombro da sua descoberta. Nãolhe ocorreu que Tio Umberto havia procurado emcada pedaço de papel escrito que havia na Bibliotecada Universidade, e não havia encontrado a letra de “OAnjo”. Tonino achava que sabia.

Depois das aulas ele evitou Paolo e os primos.Assim que todos estavam se encaminhando em segu-rança para a casa dos Montana, Tonino partiu na di-

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reção oposta, rumo às docas e ancoradouros perto daPonte Nova.

Uma hora mais tarde, Rosa comentou com Pa-olo:

— Qual será o problema de Benvenuto? Olhesó para ele!

Paolo debruçou-se ao lado dela sobre a balaus-trada da varanda. Benvenuto, parecendo surpreen-dentemente pequeno e infeliz, corria para a frente epara trás perto do portão, miando freneticamente. Atodo momento, como se estivesse perturbado demaispara saber o que fazia, ele se sentava, esticava umapata traseira e punha-se a lambê-la enlouquecidamen-te. Depois erguia-se num salto e recomeçava a correr.

Paolo jamais havia visto Benvenuto compor-tar-se dessa maneira. Chamou:

— Benvenuto, qual é o problema?Benvenuto girou, estendeu-se no solo e pôs-se

a encará-lo com um olhar de urgência. Seus olhoseram como dois faróis amarelos. Ele soltou uma sériede miados, tão penetrantes e tão assustadores que Pa-olo sentiu o estômago encolher-se de aflição.

— Mas o que é, Benvenuto? — Rosa quis sa-ber. Benvenuto batia com a cauda no chão, exaspera-do. Deu um grande salto e desapareceu em algum lu-gar fora de vista. Rosa e Paolo debruçaram-se até oumbigo sobre a balaustrada e esticaram o pescoço àprocura do gato. Benvenuto estava agora parado so-bre o barril de água, abanando ferozmente a cauda.Assim que percebeu que os dois conseguiam vê-lo, eletornou a encará-los fixamente e a soltar sons verda-deiramente assustadores.

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— Wong wong wong wong-wong-wong!Paolo e Rosa, sem mais delongas, correram pa-

ra a escada e desceram os degraus a galope. Os gemi-dos de Benvenuto já haviam atraído todos os outrosgatos da Casa. Eles atravessavam o pátio correndo ousaltavam dos telhados antes que Paolo e Rosa estives-sem na metade da escada. Os dois foram forçados acaminhar com cuidado até o barril de água por entrecorpos peludos e olhos verdes ou amarelos que osencaravam ansiosamente.

— Mi-a-au! — fez Benvenuto autoritariamente,quando eles o alcançaram.

Estava mais magro e mais marrom do que Pa-olo jamais o vira. Havia um novo corte em sua orelhaesquerda, e a pelagem estava toda engrouvinhada. Pa-recia inteiramente infeliz.

— Mi-a-au! — ele insistiu, escancarando a bocacor-de-rosa.

— Alguma coisa está errada — disse Paolo, a-flito. — Ele está tentando dizer alguma coisa.

Sentindo-se culpado, ele desejou que tivessemantido sua resolução de aprender a entender o queBenvenuto dizia. Mas, como Tonino conseguia fazerisso com tanta facilidade, ele nunca achou que esseesforço valesse a pena. Agora ali estava Benvenutocom uma mensagem urgente — talvez um recado deCrestomanci — e ele não conseguia compreendê-lo.

— É melhor chamarmos Tonino — sugeriu.Benvenuto tornou a abanar a cauda ferozmente.

— Mi-a-au! — disse, com tremenda força. Emvolta de Paolo e Rosa, todos os outros gatos abriram aboca.

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— MI-A-AU!Era ensurdecedor. Paolo, sem saber o que fa-

zer, olhava em volta.Foi Rosa quem descobriu o significado daquilo.— Tonino! — ela exclamou. — Estão dizendo

“Tonino”! Paolo, onde é que Tonino está?Com um sobressalto de medo, Paolo se deu

conta de que não via Tonino desde o café da manhã.E no mesmo instante Rosa também se deu conta dis-so. E a natureza da Casa Montana era tal que alimesmo, no mesmo instante, o alarme soou. Tia Ginairrompeu da cozinha segurando uma faca numa dasmãos e uma peneira na outra; Domenico e Tia Mariasurgiram do Salão, e Elizabeth apareceu na varandacom os cinco primos, em frente à Sala de Música. Aporta do Scriptorium abriu-se, mostrando vários ros-tos ansiosos.

Benvenuto abanou a cauda e saltou para os de-graus da varanda. Subiu-os a galope, seguido pelosoutros gatos; e Paolo e Rosa subiram também, emmeio a uma onda de corpos pretos e brancos. Todosconvergiram para os aposentos de Antonio. Todos osque estavam no Scriptorium saíram, Elizabeth veioera disparada pela varanda e Tia Maria com Tia Ginasubiu a escada perto da cozinha com mais rapidez doque qualquer uma das duas alguma vez havia conse-guido. A casa encheu-se com o som oco de pés cor-rendo.

A família inteira espremeu-se atrás de Rosa ePaolo no quarto onde Tonino costumava ser encon-trado entregue à leitura. O menino não estava lá; haviaapenas o livro vermelho sobre o peitoril da janela. O

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livro já não estava brilhando; as páginas tinham asbordas grossas e a capa vermelha vergava-se para ci-ma, como se o livro estivesse molhado.

Benvenuto, cuja pelagem marrom e falhada es-tava eriçada e com a cauda parecendo uma broxa decaiação, aterrissou no peitoril ao lado do livro e apro-ximou o focinho para farejá-lo. Tornou a saltar paratrás, sacudindo a cabeça, agachando-se e rosnandocomo um cachorro. Do livro começou a sair fumaça.As pessoas tossiam e os gatos espirravam. O livro en-crespava-se e encolhia-se no peitoril, exatamente co-mo se estivesse pegando fogo. Em lugar de tornar-sepreto, porém, ele adquiria um tom claro de a-zul-acinzentado nos pedaços onde fumegava, e pare-cia pegajoso. O aposento encheu-se de um cheiro depodridão.

— Argh! — disseram todos.O Velho Niccolo empurrava os membros da

família para abrir caminho até perto do livro. Parou aolado dele e entoou, com uma forte voz de tenor quasetão boa quanto a de Marco, três palavras desconheci-das. Entoou-as duas vezes antes de ser obrigado a in-terromper-se para tossir.

— Cantem! — mandou com voz rouca e lá-grimas descendo por seu rosto. — Todos vocês!

Obedientemente todos os Montana puseram-sea cantar as três palavras, três notas longas em unísso-no. E mais uma vez. E de novo. Depois disso, muitosdeles puseram-se a tossir, embora a fumaça houvessediminuído distintamente. O Velho Niccolo recupe-rou-se e pôs-se a acenar com os braços, como o re-gente de um coral, e todos os que tinham condições

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recomeçaram a cantar. Foram necessárias dez repeti-ções para interromper a destruição do livro — que aessa altura estava reduzido a um triângulo enrugado,com mais ou menos a metade do tamanho que tinhaantes. Antonio inclinou-se cautelosamente por cimadele e abriu a janela, para deixar sair o restante da fu-maça.

— Que foi isso? Alguém tentando nos sufocara todos? — ele perguntou ao Velho Niccolo.

— Pensei que isto tivesse vindo de Umberto.Eu nunca teria... — começou Elizabeth.

O Velho Niccolo sacudiu a cabeça.— Umberto jamais mandou esta coisa. E não

me parece que a intenção era matar. Vamos ver qualtipo de feitiço é este.

Ele estalou os dedos e estendeu a mão, comoum cirurgião durante uma operação. Sem que fossepreciso ouvir uma ordem, Tia Gina colocou a faca namão dele. Cuidadosamente, com gestos delicados, oVelho Niccolo usou-a para abrir a capa do livro.

— Um ótimo facão de trinchar estragado —lamentou Tia Gina.

— Psiu! — fez o Velho Niccolo.As páginas enrugadas do livro estavam coladas

umas às outras. Ele tornou a estalar os dedos e esten-der a mão. Dessa vez Rinaldo colocou nela a canetaque estava segurando.

— É uma caneta das melhores — disse, comuma careta para Tia Gina.

Com a ajuda da caneta e do facão, o VelhoNiccolo conseguiu separar as páginas do livro semtocar nelas, e virar uma por uma. Em ambos os om-

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bros de Paolo havia queixos apoiados, pois todos es-ticavam o pescoço para enxergar, e havia queixos so-bre os ombros daqueles cujos queixos estavam nosombros de Paolo. Não se ouvia qualquer som além darespiração dos presentes.

Em quase todas as páginas o texto havia derre-tido, deixando uma superfície pegajosa, parecendocouro, bem diferente de papel, e apenas uma ou duasmarcas restavam no centro. O Velho Niccolo estudoucuidadosamente cada marca, resmungando. Tornou aresmungar ao ver a primeira figura, que havia desbo-tado como o texto, mas deixara uma marca mais níti-da. Depois disso, embora não houvesse texto em ne-nhuma das páginas, a marca que restara era cada vezmais nítida até o centro do livro, quando começava atornar-se mais desbotada outra vez, até mal ser visívelna última página.

O Velho Niccolo pousou a caneta e o facão decozinha em meio a um terrível silêncio.

— De cabo a rabo — disse finalmente.As pessoas se remexeram e alguém tossiu, mas

ninguém disse coisa alguma. O Velho Niccolo conti-nuou:

— Não sei de qual substância este objeto foifeito, mas reconheço um encanto de convocaçãoquando vejo um. Tonino deve ter ficado como quehipnotizado, se tiver lido o livro inteiro.

— Ele estava mesmo meio esquisito na horado café da manhã — Paolo comentou.

— Tenho certeza disso — disse o avô. Depoisde contemplar Pensativamente os restos do livro, elepercorreu com o olhar o círculo de rostos da sua fa-

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mília. Então perguntou em voz suave: — Mas quemia querer colocar um encanto de convocação tão po-deroso era Tonino Montana? Quem seria tão cruel aponto de usar uma criança? Quem iria...

De repente ele voltou-se para Benvenuto, queestava agachado ao lado do livro. O gato recuou, a-medrontado, estremecendo, as orelhas rasgadas en-costadas à cabeça.

— Onde foi que você esteve ontem à noite,Benvenuto? — o Velho Niccolo perguntou, a vozainda mais suave.

Ninguém entendeu aquilo que Benvenuto res-pondeu com expressão apavorada, mas todos sabiama resposta. Ela estava na expressão angustiada de An-tonio e Elizabeth, no queixo erguido de Rinaldo, nosolhos apertados de Tia Francesca, tão apertados queestavam quase fechados, e no modo como Tia Mariaolhava para Tio Lorenzo; mas, acima de tudo, a res-posta estava no modo como Benvenuto jogou-se delado, dando as costas ao aposento: o retrato de umgato em desespero.

O Velho Niccolo ergueu os olhos.— Ora, isto não é estranho? — perguntou em

tom delicado. — Benvenuto passou a noite de ontemcorrendo atrás de uma gata branca pelos telhados dacasa dos Petrocchi. — Fez uma pausa para que todosentendessem o significado daquilo. — De modo queBenvenuto, que conhece um feitiço maléfico quandovê um, não estava por perto para avisar Tonino.

— Mas por que motivo? — Elizabeth pergun-tou, desesperada. O Velho Niccolo falou, em tom a-inda mais baixo, se é que isso era possível:

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— Só posso concluir, minha cara, que os Pe-trocchi estão sendo pagos por Florença, Siena ou Pisa.

Houve outro silêncio cheio de significados.Antonio rompeu-o.

— Bem... — começou, de um modo tão der-rotado e triste que Paolo o encarou. — E então, nósvamos?

— É claro que sim — respondeu o VelhoNiccolo. — Domenico, traga o meu caderninho pretode feitiços.

Todos saíram do aposento, de maneira tão re-pentina, silenciosa e eficiente que Paolo ficou paratrás, sem entender muito bem o que estava aconte-cendo. Hesitante, ele virou-se para encaminhar-se pa-ra a porta e percebeu que Rosa também havia ficadopara trás. Ela estava sentada na cama de Tonino comuma mão na cabeça, branca como os lençóis de To-nino.

— Paolo, diga a Claudia que vou ficar com obebê, se ela quiser ir — ela pediu. — Fico cora todosos pequenininhos.

Ela ergueu os olhos para Paolo enquanto fala-va, e sua expressão era tão estranha que de repentePaolo sentiu-se assustado. Com alívio ele correu paraa varanda. A família, ainda silenciosa e triste, estava areunir-se no pátio. Paolo desceu correndo para lá edeu o recado. Os pequeninos foram enviados aosprotestos escada acima para Rosa, mas Paolo não a-judou. Ele avistou Elizabeth com Lucia e abriu cami-nho até elas. Elizabeth enlaçou-o com um dos braçose com o outro abraçou Lucia.

— Fiquem perto de mim, meus queridos. Vou

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proteger vocês. Paolo olhou para Lucia e viu que amenina não estava nem um pouco assustada. Estavaentusiasmada. Ela piscou para ele; Paolo piscou devolta e sentiu-se melhor.

Um minuto depois, o Velho Niccolo tomou oseu lugar à frente da família e todos se dirigiram a-pressados para o portão. Paolo havia acabado de for-çar o seu caminho através do portão, empurrando suamãe de um lado e Domenico do outro, quando umacarruagem parou na rua e Tio Umberto saltou. Eleencaminhou-se para o Velho Niccolo na mesma ma-neira triste e quieta em que todos pareciam mover-se.

— Quem foi raptado? Bernardo? Domenico?— Tonino — respondeu o Velho Niccolo. —

Um livro com o escudo da Universidade no papel deembrulho.

— Luigi Petrocchi também é membro da Uni-versidade — Tio Umberto comentou.

— Não vou me esquecer disso — afirmou oVelho Niccolo.

— Irei com vocês à casa dos Petrocchi — TioUmberto declarou.

Ele acenou para o cocheiro da carruagem dealuguel para avisar que ele podia ir embora. O homemestava ansioso para isso, e quase derrubou os cavalostentando fazer com que virassem depressa demais. Aoque parecia, a visão de toda a Casa Montana saindopara a rua num cortejo melancólico era demais paraele.

Isso deixou Paolo feliz. Ele olhava para um la-do e outro enquanto desciam a Via Magica, e o orgu-lho crescia dentro dele. Era uma família tão grande! E

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todos eram tão decididos! A mesma expressão resolu-ta mostrava-se em cada rosto. E embora as criançascaminhassem com passos pequenos e os jovens compassadas firmes, embora as mulheres pisassem ruido-samente nas pedras do pavimento com seus sapatoselegantes, embora os passos do Velho Niccolo fossemcurtos e entusiasmados, e Antonio — porque malconseguia esperar para enfrentar os Petrocchi — ca-minhasse com passos longos, o objetivo comum davaà família inteira um ritmo comum. Paolo quase podiaacreditar que estavam todos marchando com o mes-mo passo.

O cortejo encheu a Via Sant’Angelo e virou aesquina para o Corso, com a Catedral às suas costas.As pessoas que faziam compras apressavam-se a lhesceder a passagem. Mas o Velho Niccolo estava zan-gado demais para usar a calçada como um pedestrequalquer; ele guiou a família para o meio da rua e to-dos marcharam por ali como um exército em busca devingança, forçando carroças e carruagens a trafegarpela sarjeta, com o Velho Niccolo marchando orgu-lhosamente à frente. Era difícil acreditar que um velhogordo com rosto de bebê poderia ter uma aparênciatão belicosa.

O Corso faz uma curva ligeira depois do Palá-cio do Arcebispo, então torna a endireitar-se e passaem linha reta pelas lojas e, em seguida, pelas colunasda Galeria de Arte de um lado e as portas douradas doArsenal do outro. Eles fizeram essa curva. Ali, apro-ximando-se pela direção oposta, havia outro cortejo,também caminhando pelo meio da rua: a Casa Pe-trocchi também estava em marcha.

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— Extraordinário! — exclamou Tio Umberto.— Perfeito! — cuspiu o Velho Niccolo.As duas famílias avançavam uma para a outra.

O silêncio agora era total, rompido apenas pelo ruídodos passos. Todos os cidadãos comuns, assim queviram toda a Casa Montana avançando sobre toda aCasa Petrocchi, apressaram-se a sair da rua. As pesso-as batiam nas portas de perfeitos desconhecidos eeram convidadas a entrar sem qualquer pergunta. Ogerente da Grossi’s, a maior loja de Caprona, escan-carou suas portas de vidro laminado e mandou que osseus funcionários arrebanhassem todas as pessoaspróximas. Depois disso, ele fechou as portas e baixouuma grade de aço diante delas. Por entre as barras dagrade, rostos pálidos observavam os feiticeiros que seaproximavam. E uma tropa de Reservistas re-cém-convocados, que marchavam negligentementeem suas fardas novas e muito amarrotadas, ficaramhorrorizados ao encontrarem-se presos entre os doisbandos; abandonaram a formação e puseram-se acorrer freneticamente como se fossem um único Re-servista, indo procurar abrigo no Arsenal. As grandesportas douradas fecharam-se estrepitosamente atrásdeles justamente quando o Velho Niccolo fez alto,cara a cara com Guido Petrocchi.

— Então? — disse o Velho Niccolo, a fúriaespelhada em seus olhos de bebê.

— Então? — retrucou Guido, a barba verme-lha eriçada. O Velho Niccolo perguntou:

— Foi Florença ou foi Pisa que pagou a vocêspara raptar meu neto Tonino?

Guido Petrocchi soltou uma risada de escárnio.

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— O que você está perguntando é se foi Pisaou Siena que pagou a vocês para raptar a minha filhaAngélica.

— Por acaso imagina que dizendo isto vai ficarmenos óbvio que você é um raptor de crianças? —perguntou o Velho Niccolo.

— Por acaso está me chamando de mentiroso?— Estou, sim! — rugiu a Casa Montana. —

Mentiroso!— E o mesmo são vocês! — uivou a Casa Pe-

trocchi, reunida atrás de Guido, todos esguios e fero-zes, muitos deles de barba ruiva. — Mentirosos i-mundos!

A briga começou enquanto ainda estavam gri-tando. Não havia como saber quem a havia iniciado.Os rugidos de cada lado misturavam-se a cantorias eresmungos. Muitas mãos agitavam tirinhas de feitiço.E de repente o ar estava cheio de ovos voando. Paolorecebeu um ovo frito muito gorduroso, bem sobre aboca, e isso deixou-o com tanta raiva que ele tambémpôs-se a gritar feitiços de ovos, com todas as suasforças. Ovos quebravam-se por toda parte — ovosfritos, ovos cozidos, ovos frescos e ovos tão podresque quando explodiam pareciam bombas. Todo omundo escorregava nas pedras meladas de ovo. Ovosescorriam dos cabelos das pessoas e respingavam emsuas roupas.

Então alguém fez uma variação com um oudois tomates podres. Imediatamente todo tipo de coi-sas desagradáveis passou a voar pelo Corso: espaguetefrio e excremento de vaca — embora essa última va-riedade possa ter sido idéia de Rinaldo, logo foi ado-

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tada por ambos os lados — e repolhos, jorros de a-zeite e chuvaradas de gelo, ratos mortos e fígados degalinha.

Não era de se espantar que as pessoas comunsficassem escondidas. Ovos e tomates escorriam pelasgrades das janelas da Grossi’s e sujavam as colunasbrancas da Galeria de Arte. Havia um forte barulhoquando os repolhos podres atingiam as portas debronze do Arsenal.

Aquela foi a primeira fase da batalha, uma fasedesorganizada, com cada pessoa expressando separa-damente a sua fúria. Porém, quando todos já estavamimundos e pegajosos, a fúria começou a tomar forma.Ambos os lados começaram a cantar de maneira maisorganizada. A cantoria cresceu, e formaram-se doisfortes corais ritmados.

O resultado foi que os objetos que voavam pe-lo Corso ergueram-se no ar e começaram a cair comocoisas muito mais perigosas. Paolo ergueu os olhos eviu uma chuva de peças transparentes e cintilantes,parecendo congeladas, jorrar do céu em cima dele. Aprincípio pensou que se tratava de neve, até que umapeça atingiu seu braço e cortou-o.

— Que monstros cruéis! Estão jogando cacosde vidro! — Lucia gritou ao lado dele.

Antes que a grande massa de cacos de vidrocaísse, a penetrante voz de tenor do Velho Niccoloergueu-se acima dos berros e dos cânticos:

— Testudo!A voz de baixista de Antonio veio em seu a-

poio:— Testudo!

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O mesmo fez a voz de barítono de Tio Loren-zo.

Os pés batiam no chão. Paolo conhecia aquelefeitiço; inclinou-se para a frente, e pôs-se a bater ospés no chão com regularidade, ajudando a sustentar oencanto. A família inteira o imitou. Pam, pam, pam,“testudo, testudo, testudo”. Acima das cabeças curvadas,os cacos de vidro quicavam contra uma barreira invi-sível e caíam para os lados.

— Testudo!Do meio do mar de costas curvadas, a voz de

Elizabeth soou docemente em um novo feitiço. TiaAnna, Tia Maria e Corinna juntaram-se a ela. Era co-mo uma segunda voz cantada em soprano acima deum coro de batidas de pés ritmadas.

Paolo sabia, sem que alguém lhe dissesse, queprecisava manter o feitiço de escudo enquanto Eliza-beth montava o seu feitiço. O mesmo fizeram todosos outros. Paolo achava aquilo extraordinário, exci-tante, espantoso: cada Montana entendia a indiretamais sutil e agia de acordo com ela como se fosse umaordem.

Ele arriscou-se a olhar de relance para cima eviu que o feitiço da segunda voz estava funcionando:cada caco de vidro, ao bater no escudo invisível quePaolo estava ajudando a fabricar, transformava-senuma vespa furiosa e voltava zumbindo para atacar osPetrocchi. Mas os Petrocchi simplesmente transfor-mavam-nas novamente em cacos de vidro, que eramlançados de volta. Ao mesmo tempo, Paolo percebia,pelo ritmo dos cânticos deles, que alguns estavam seesforçando para destruir o encanto do escudo. Paolo

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cantou e bateu com os pés no chão com mais forçado que nunca.

Enquanto isso, a voz de Rinaldo e a voz do paide Paolo cantavam suavemente, em tom grave, traba-lhando em outra coisa ainda. Mais damas juntaram-seà canção das vespas para que os Petrocchi não con-seguissem perceber. E durante todo o tempo opam-pam-pam que sustentava o feitiço do escudo eramantido por todos. Poderia ter sido o coro maisgrandioso da ópera mais grandiosa de todos os tem-pos, exceto que o objetivo de tudo aquilo era diferen-te. O objetivo veio com um perfeito rugido de vozes.Os Petrocchi ergueram os braços e cambalearam: aspedras sob eles ondulavam e o sólido Corso começoua afundar, transformando-se em uma vala. A respostainstantânea deles foi outro enorme acorde cantado,com inúmeras desafinações. E os Montana encontra-ram-se de repente dentro de uma muralha de chamas.

A confusão foi total. Paolo saiu caminhandoincertamente em busca de segurança, com as pontasdos cabelos chamuscadas, sobre um pavimento queestremecia e ondulava sob seus sapatos.

— Voltava! Voltava! — ele cantava frenetica-mente.

Atrás dele, as labaredas assobiavam. Nuvens devapor escondiam até o telhado alto da Galeria de Ar-te, quando o rio respondeu ao encanto e veio en-chendo o Corso. A água batia nos joelhos de Paolo,depois chegou à sua cintura, e continuava subindo.Havia água demais; alguém havia cantado fora dotom, e Paolo temia que houvesse sido ele mesmo. Viusua prima Lena com água até o queixo e agarrou-a.

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Rebocando Lena, ele cambaleou através da correntezasobre o calçamento ondulante, tentando alcançar aescada do Arsenal.

Alguém deve ter tido o bom senso de criar umfeitiço de cancelamento; de repente tudo clareou — ovapor, a água e a fumaça desapareceram ao mesmotempo. Paolo encontrou-se nos degraus da Galeria deArte e não do Arsenal. Atrás dele, o Corso era umaconfusão de pedras soltas, imundas de lama e cobertasde excremento de vaca, tomates e ovos fritos. Nãoteria havido uma sujeira maior se Caprona houvessesido invadida pelos exércitos de Florença, Pisa e Sie-na.

Paolo achou que para ele já era o suficiente.Lena estava chorando. Ela era novinha demais, deviater ficado era casa com Rosa. Ele viu sua mãe pegan-do Lucia na lama, e Rinaldo ajudando Tia Gina apôr-se de pé.

— Vamos para casa, Paolo — Lena chora-mingou.

Mas a batalha não estava realmente terminada:os Montana e os Petrocchi subiam e desciam o Corsoem grupinhos furiosos e enlameados, gritando ofensasuns para os outros.

— Vocês vão ver o que é caco de vidro!— Foram vocês que começaram!— Seus porcos Petrocchi mentirosos! Raptores

de crianças!— Porcos são vocês! Não sabem fazer feitiços!

Traidores! Tia Gina e Rinaldo foram escorregando atéalgo que dava a impressão de ser uma rocha enlamea-da no meio da rua e puxaram-na; e surgiu então o

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corpanzil de Tia Francesca, coberta de lama e furiosacomo Paolo jamais a vira.

— Seus Petrocchi imundos! Exijo um duelo!— ela gritava. Sua voz soou rascante como um serrotegigantesco, e enchia o Corso.

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CAPÍTULO VII

O desafio de Tia Francesca pareceu ter empol-gado ambos os lados. Uma mulher Petrocchi gritou:

— Nós aceitamos!E todos os grupos enlameados dirigiram-se de-

pressa para o meio do Corso. Paolo chegou junto dasua família bem a tempo de ouvir o Velho Niccolodizendo:

— Não seja tola, Francesca!Ele parecia mais um duende enlameado do que

o chefe de uma Casa famosa. E estava quase ofegantedemais para conseguir falar.

— Eles nos insultaram e nos atacaram! Mere-cem ser derrotados e expulsos de Caprona! — excla-mou Tia Francesca. — E eu mesma vou fazer isto!Nenhum Petrocchi é páreo para mim!

E parecia mesmo intimidante, corpulenta e sujade lama, com o enorme vestido negro em farrapos e

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os cabelos grisalhos despenteados, caindo sobre umdos ombros.

Os outros Montana, porém, sabiam que TiaFrancesca era uma mulher de idade. Houve um corode protestos. Tanto Tio Lorenzo quanto Rinaldo ofe-receram-se para lutar cora o representante dos Pe-trocchi em seu lugar.

— Não — protestou o Velho Niccolo. — Ri-naldo, você foi ferido...

Ele foi interrompido por vaias e assobios dosPetrocchi:

— Covardes! Queremos um duelo!O rosto enlameado do Velho Niccolo cris-

pou-se de raiva.— Muito bem, eles terão um duelo — decidiu.

— Antonio, eu escolho você. Dê um passo à frente.Paolo sentiu uma onda de orgulho. Então seu

pai era, como ele sempre pensara, o melhor produtorde feitiços da Casa Montana. Mas o orgulho mistu-rou-se ao medo quando Paolo viu o modo como suamãe agarrava o braço de Antonio, e o olhar preocu-pado e relutante no rosto barrento do pai.

— Vá! — ordenou o Velho Niccolo em tomzangado. Lentamente Antonio avançou para o espaçovazio entre as duas famílias, tropeçando um pouconas pedras soltas.

— Estou pronto — ele anunciou aos Petroc-chi. — Onde está o seu representante?

Era óbvio que havia alguma indecisão entre osPetrocchi. Uma voz exclamou em tom assustado:

— Mas é o Antonio!Isto foi seguido por uma confusão de vozes.

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Pelo modo como eles viravam a cabeça e confabula-vam, Paolo achou que estavam procurando por umPetrocchi que, por um motivo desconhecido, não es-tava presente. Mas a confusão acalmou-se e GuidoPetrocchi em pessoa avançou um passo. Paolo viuque vários Petrocchi pareciam tão alarmados quantoElizabeth.

— Também estou pronto — disse Guido,mostrando os dentes com uma expressão de raiva.

Como o rosto dele estava coberto de barro, eletinha uma aparência bem selvagem. Também ele eracorpulento e robusto. Fazia Antonio parecer frágil edelicado.

— E exijo um duelo sem limites! — Guidorosnou, parecendo ainda mais zangado do que o Ve-lho Niccolo.

— Muito bem — concordou Antonio. Em suavoz havia um tremor quase imperceptível. — Vocêsabe que isto significa lutar até a morte, não sabe?

— Acho perfeito — disse Guido.Ele parecia um gigante. De repente Paolo sen-

tiu-se muito assustado.Foi nesse momento que a Polícia Ducal apare-

ceu. Os policiais haviam se aproximado estrategica-mente, sem ruído, montados em bicicletas e seguindopelas calçadas. Ninguém notou a presença deles até oChefe de Polícia e seu lugar-tenente estarem postadosao lado dos dois lutadores.

— Guido Petrocchi e Antonio Montana, vocêsestão presos... — começou o lugar-tenente.

Os dois lutadores deram um salto e viraram-se,encontrando fardas enfeitadas cercando-os pelos dois

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lados.— Ah, vão embora — disse o Velho Niccolo,

aproximando-se apressado. — Por que têm de inter-ferir?

— Sim, vão embora, estamos ocupados — rei-terou Guido. O lugar-tenente fez uma careta ao ver orosto de Guido, mas o Chefe de Polícia era um ho-mem corajoso e enérgico, com um belo bigode, e pre-cisava zelar pela sua reputação de homem corajoso eenérgico. Fez uma mesura para o Velho Niccolo.

— Estes dois estão presos — declarou. —Quanto ao resto de vocês, ordeno que esqueçam suasdiscordâncias e lembrem-se de que estamos prestes aentrar em guerra.

— Já estamos em guerra. Vá embora — disse oVelho Niccolo.

— Lamento muito, mas isto é impossível —insistiu o Chefe de Polícia.

— Então não diga que não foi avisado.Os adultos de ambas as famílias puseram-se a

cantar por um breve período. Paolo lamentava nãoconhecer aquele feitiço, que parecia ser útil. Assimque ele terminou, Rinaldo e um Petrocchi jovem emoreno aproximaram-se dos dois policiais e puxa-ram-nos para trás. Os dois policiais mostravam-se tãorígidos quanto os manequins na vitrine gradeada daGrossi’s. Rinaldo e o outro rapaz deitaram-nos nosdegraus da escadaria da Galeria de Arte e voltaramcada um para a sua família, sem olharem um para ooutro. Quanto ao resto da Polícia Ducal, parecia terdesaparecido, com as bicicletas e tudo.

— Está pronto agora? — Guido perguntou.

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— Pronto — respondeu Antonio. E o duelocomeçou.

Mais tarde, rememorando a cena, Paolo deu-seconta de que o embate não havia durado mais do quetrês minutos, embora na ocasião parecesse uma eter-nidade. Pois durante esse tempo, a força, a habilidadee a velocidade dos dois duelistas passaram por provasduríssimas. Durante a primeira parte, que provavel-mente foi a mais longa, os dois estavam testando umao outro, procurando uma abertura, e parecia quecomparativamente pouca coisa estava acontecendo.Ambos ficaram parados, ligeiramente inclinados paraa frente, resmungando, cantarolando, ocasionalmentefazendo um gesto rápido com a mão.

Paolo observava o rosto tenso do pai e sentiavontade de saber o que estava acontecendo exata-mente. Então, por um instante, Guido ficou sendoum pano de pó quadriculado de vermelho e branco.Alguém soltou uma exclamação. Antonio, porém,quase que simultaneamente transformou-se num ho-mem de papelão coberto de triângulos verdes. Entãoambos voltaram a ser quem eram.

A velocidade daquilo deixou Paolo atônito.Não apenas os dois lados haviam lançado um feitiço,mas também um contra-feitiço, e um feitiço contra ocontra-feitiço, tudo isso quase que simultaneamente.Ambos os combatentes estavam ofegantes e olhavamcautelosamente um para o outro. Era evidente queambos tinham as mesmas condições para vencer.

Mais uma vez houve um intervalo em que pa-recia que nada estava acontecendo, a não ser uma es-pécie de vibração de ambos os lados. Então Antonio

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atacou de repente, e de maneira tão forte que era evi-dente que durante aquele intervalo ele havia fabricadoum forte feitiço disfarçado pela vibração dos feitiçostriviais destinados a manter Guido ocupado. Guidodeu um grito e dissolveu-se em poeira, que se afastou,retrocedendo, em forma de espiral. Mas, de um modoou de outro, enquanto se dissolvia Guido jogou o seufeitiço poderoso em Antonio; este partiu-se em milpedacinhos, como peças espalhadas de um que-bra-cabeças.

Durante uma eternidade a espiral de poeira e apilha de pedacinhos de Antonio ficaram flutuando noar. Ambos se esforçavam para se manterem inteiros enão se dispersarem pelos paralelepípedos deslocadosdo calçamento do Corso. Na realidade, eles continua-vam também tentando fazer feitiços. Quando, final-mente, Antonio deu um passo cambaleante para afrente, outra vez inteiro, segurando um tipo qualquerde fruto vermelho em sua mão direita, mal teve tempode desviar-se: Guido era um leopardo em pleno salto.

Elizabeth gritou.Antonio jogou-se para um lado, inspirou pro-

fundamente e cantou:— Oliphans!Sua voz normalmente sedosa estava áspera e

entrecortada, mas ele entoou as notas corretas. Umelefante gigantesco, com presas maiores do que a al-tura de Paolo, bloqueou o sol poente e sacudiu oCorso enquanto avançava, com as orelhas bem aber-tas, para esmagar com as patas o leopardo atacante.Era difícil acreditar que o imenso animal era na reali-dade o magrela e preocupado Antonio Montana.

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Durante uma fração de segundo o leopardovoltou a ser Guido Petrocchi, de rosto muito branco ea barba exuberantemente vermelha, balbuciando umacanção frenética:

— Hickory-dickory-muggery-mus!E também ele deve ter cantado as notas certas,

pois aparentemente desapareceu.Os Montana estavam começando a festejar a

covardia de Guido quando o elefante entrou em pâ-nico. Antes de começar a correr para salvar sua vida,Paolo enxergou de relance um minúsculo ratinho a-vançando agressivamente para as patas dianteiras doelefante. O berro estridente de Antonio parecia que iaestourar os ouvidos do menino. Ele sabia que atrás desi o elefante estava inteiramente enlouquecido, mo-vendo-se de um lado para o outro em meio aos apa-vorados Montana. Lucia passou correndo por ele car-regando Lena de costas em seu peito. Paolo agarrou opequeno Bernardo por um braço e correu com ele,fazendo uma careta ao ouvir o barrito horrível e de-sesperado de seu pai.

Os elefantes têm medo de ratos, um medo ter-rível. E existem muito poucas pessoas que conseguemmudar de forma sem tomar a natureza da forma paraa qual mudaram. Parecia que Guido Petrocchi nãoapenas vencera, mas conseguira também que a maio-ria dos Montana morresse esmagada pelas patas doanimal.

Mas quando Paolo tornou a olhar, Elizabethestava parada no caminho do elefante, olhos fixos nosolhinhos selvagens do animal.

— Antonio! — ela gritou. — Antonio, contro-

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le-se!Ela parecia tão frágil e o elefante se aproximava

tão depressa que Paolo fechou os olhos.Tornou a abri-los bem a tempo de ver o ele-

fante erguendo sua mãe e colocando-a no dorso. Lá-grimas de alívio nublaram de tal modo a visão de Pa-olo que ele quase deixou de acompanhar o ataque se-guinte de Guido. Simplesmente ouviu um ruído in-fernal, sentiu um cheiro horrível e avistou uma espé-cie de torre móvel. Viu o elefante girar e Elizabethagarrar-se às costas dele. O animal agora estava sendoameaçado por uma enorme máquina de ferro, aindamaior que ele próprio, que pulsava com uma forçamecânica e enchia o Corso com uma desagradávelfumaça azul. Aquela coisa encaminhou-se lentamentena direção de Antonio, deslocando-se sobre enormestrilhos móveis. Quando se aproximou, uma arma nasua parte dianteira moveu-se para apontar para o es-paço entre os olhos do elefante.

No mesmo instante Antonio transformou-seem máquina também. Como foi obrigado a fazer issocom muita pressa, e ainda por cima sem conhecermuita coisa sobre máquinas, ele ficou uma máquinamuito esquisita mesmo. Era azul-clara, da cor de umovo de pato, com enormes rodas de borracha. Aliás,provavelmente era toda feita de borracha, porque oprojétil disparado pela máquina de Guido quicou nelae foi cair na escada do Arsenal. A maioria dos espec-tadores jogou-se no chão.

— Mamãe está dentro daquela coisa! — Luciagritou para Paolo acima do ruído.

Paolo deu-se conta de que só podia ser isso.

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Antonio não tivera tempo para colocar Elizabeth nochão. E agora estava dando encontrões em Guido:batia e quicava, batia e quicava. Devia estar sendohorrível para Elizabeth. Por sorte, isso só durou umsegundo; de repente Elizabeth e Antonio apareceramcom suas próprias formas, quase sob os poderosostrilhos da máqui-na-Guido. Elizabeth correu como ovento (Paolo nunca imaginara que ela conseguissecorrer tão depressa) na direção do Arsenal. E, talvezpela maldade dos Petrocchi ou talvez por simplesconfusão, o grande tanque-Guido girou o canhão paraapontá-lo para Elizabeth.

Antonio xingou Guido com um palavrão cabe-ludo e jogou o tomate que ainda tinha na mão. Ofruto vermelho bateu na lateral de ferro da máquina,esborrachou-se e começou a escorrer. Paolo estavajustamente perguntando-se qual seria a utilidade da-quilo quando o tanque desapareceu. Guido também.Em seu lugar havia um tomate gigantesco. Era maisou menos do tamanho de um abóbora. Que simples-mente ficou no meio da rua, sem se mover.

Aquele foi o golpe que venceu o duelo. Paolopercebia isso pela expressão no rosto de Antonioquando ele se encaminhava para o tomate. Com re-pulsa e cautela, Antonio baixou-se para recolhê-lo.Ouviram-se gemidos dos Petrocchi e aplausos, nãomuito convincentes, dos Montana.

Então alguém lançou mais um feitiço.Dessa vez foi uma neblina espessa e úmida.

Sem dúvida, no início não teria parecido tão terrível.Porém, depois de todo o resto, justamente quando ocombate estava no fim, Paolo achou que aquilo era a

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gota d’água. Ele estava olhando em volta para tentardistinguir quem mais estava tossindo, e quando viroua cabeça constatou que não conseguia enxergar Lucia.Tampouco conseguia encontrar Bernardo, e sabia queum minuto antes estava a segurá-lo pelo braço. Assimque se deu conta disso, ele percebeu que perderatambém o seu senso de direção. Estava sozinho, tos-sindo e tremendo, no vazio frio e branco.

— Não vou perder a cabeça — Paolo disse a simesmo veementemente. — Papai não fez isso, demodo que eu também não vou fazer. Vou encontraralgum lugar para me abrigar até esta porcaria de feiti-ço acabar. Então vou para casa. Não me importa queTonino ainda esteja desaparecido... — Ele interrom-peu-se então, porque um pensamento lhe ocorreucomo uma descoberta espantosa. — De qualquermaneira, deste jeito nunca vamos conseguir encontrarTonino — disse. E sabia que era verdade.

Com as mãos estendidas à frente do corpo e osolhos bem arregalados na esperança de enxergar al-guma coisa — o que era improvável, já que seus olhosestavam lacrimejando por causa da neblina, assimcomo o seu nariz estava escorrendo — Paolo avan-çou, tossindo, espirrando e tateando com os pés, atéque seus dedos esbarraram numa superfície de pedra.Paolo baixou os olhos, mas não conseguiu distinguir oque era. Ele tentou erguer o pé, deslizando os dedosde encontro à obstrução. E depois de alguns centíme-tros a obstrução desapareceu e o seu pé avançou. Eraum degrau, portanto. Provavelmente o meio-fio; eleestava perto da beirada da rua quando fugira correndodo elefante. Colocou o outro pé era cima do meio-fio

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e avançou 15 centímetros — então caiu em cima dealgo que parecia ser um corpo.

Paolo ficou tão assustado que no princípio nãoousou mexer-se. Mas logo se deu conta de que o cor-po debaixo dele estava tremendo, como ele próprio, etentando tossir e falar ao mesmo tempo. Paolo escu-tou uma voz rouca e entrecortada murmurando:

— Virgem Maria...Perplexo, Paolo estendeu a mão cautelosamen-

te e tateou o corpo. Seus dedos encontraram friosbotões metálicos, alamares e, um pouco acima, umrosto quente — que soltou um grasnido quando amão gelada de Paolo tapou sua boca — e um espessobigode debaixo do nariz.

Ele pensou: meu Anjo de Caprona, é o Chefede Polícia!

Paolo colocou-se de joelhos no que devia serum degrau da escada da Galeria de Arte. Não haviapessoa alguma por perto a quem pedir ajuda, mas nãolhe parecia justo deixar alguém caído, indefeso, naneblina. Mesmo para quem conseguia mover-se a ne-blina já era ruim demais. Assim, torcendo para estarfazendo a coisa certa, Paolo ajoelhou-se e cantou,bem baixinho, o feitiço de cancelamento mais geralque conseguiu recordar. Ele não teve qualquer efeitona neblina — que era, evidentemente, uma magiamuito forte — mas o menino escutou o Chefe de Po-lícia girar o corpo de lado e gemer, e depois esfregaras botas no chão, testando as pernas.

— Mamma mia! — Paolo ouviu-o resmungar.Pelo jeito, o Chefe de Polícia desejava ficar so-

zinho. Paolo deixou-o e subiu rastejando a escada da

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Galeria. Não tinha idéia de que havia chegado ao topoaté bater com o cotovelo numa coluna, ao mesmotempo em que enfiava a cabeça no estômago de Luci-a. Ambos disseram coisas bem desagradáveis.

— Quando você acabar de praguejar, pode virficar comigo entre essas colunas e me manter aqueci-da — Lucia disse finalmente. Ela tossiu e estremeceu.— Isto não é horrível? Quem foi que fez? — E tor-nou a tossir. A neblina deixara-a rouca.

— Não fomos nós, senão saberíamos — Paolorespondeu. — Ai, meu cotovelo!

Segurando nela para guiar-se, ele enfiou-se en-tre as colunas e sentou-se no chão ao lado dela. Assimse sentiu melhor.

— Estes porcos! Para mim, isto é um truquebaixo — disse Lucia. — É engraçado, a gente passa avida toda ouvindo as pessoas dizerem que eles são unsporcos, e a gente fica pensando que não devem sertanto assim. Então, quando a gente os conhece, vêque são piores ainda. Era você quem estava cantandoagora mesmo?

— Caí por cima do Chefe de Polícia na escada— Paolo explicou.

Lucia riu.— E eu caí por cima do outro. Também entoei

um feitiço de cancelamento. Ele estava esparramadoem cima dos degraus, e deve ter ficado todo machu-cado quando caí em cima dele.

— Já é ruim quando a gente consegue se mo-ver. Como se fosse cego — Paolo comentou.

— Horrível — Lucia concordou. — Aquelecego que pede esmolas na Via Sant’Angelo, amanhã

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vou lhe dar algum dinheiro.— Aquele de olhos brancos? — Paolo quis sa-

ber. — É, eu também vou. E nunca mais quero veroutro feitiço.

— Para falar a verdade, eu estava desejando tercoragem para incendiar a Biblioteca e o Scriptorium.Logo antes de cair em cima daquele policial, tive acerteza, como se fosse um relâmpago dentro da mi-nha cabeça, de que nenhum feitiço vai funcionar na-queles monstros raptores.

— Exatamente o que eu pensei! — Paolo ex-clamou. — Eu sei que a única maneira de encontrarTonino...

— Espere — Lucia pediu. — Acho que a ne-blina está ficando mais fraca.

Ela tinha razão. Quando Paolo inclinou-se paraa frente, conseguiu enxergar duas manchas pretas nosdegraus abaixo dele, onde o Chefe de Polícia e o seulugar-tenente estavam sentados com a cabeça apoiadanas mãos. Paolo conseguia enxergar também um bomtrecho do Corso, com as pedras do calçamento escu-ras como se estivessem molhadas, mas, para a suasurpresa, nem sujas de lama, nem fora do lugar.

— Alguém colocou tudo de volta no lugar! —Lucia exclamou.

A neblina dissipou-se ainda mais. Eles já con-seguiam enxergar as portas do Arsenal e toda a larguraenevoada do Corso, com cada pedra do pavimento devolta aonde deveria ficar. Em algum lugar mais oumenos no centro da rua, Antonio e Guido Petrocchiestavam parados de frente um para o outro.

— Ah, não, será que eles vão começar de no-

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vo? — Paolo lamentou-se.Mas quase que no mesmo instante Antonio e

Guido fizeram meia-volta e afastaram-se um do outro.— Graças aos céus! — Lucia exclamou.Ela e Paolo voltaram-se um para o outro com

sorrisos de alívio.Só que não era Lucia. Paolo encontrou-se en-

carando um rosto branco e pontudo, com olhos maisescuros, maiores e mais sagazes do que os de Lucia.Rodeando o rosto havia cachos despenteados de umvermelho-escuro. O sorriso morreu naquele rosto e ohorror surgiu em seu lugar, enquanto Paolo o obser-vava. E sentia que o seu próprio rosto se comportavada mesma maneira. Ele estivera aninhado junto a umaPetrocchi! E sabia quem ela era: a mais velha das duasque haviam estado com ele no palácio. Renata, esseera o nome dela. E ela também o reconheceu.

— Você é o menino Montana de olhos azuis!— ela exclamou. Pelo modo como falava, dava a im-pressão de que isso era uma coisa nojenta.

Os dois se puseram de pé. Renata recuou, en-costando-se na coluna como se tentasse penetrar napedra, e Paolo retrocedeu ao longo dos degraus.

— Pensei que você fosse a minha irmã Lucia— ele disse.

— E eu pensei que você fosse o meu primoClaudio — Renata retrucou.

Por um motivo qualquer, os dois falavam comose a culpa fosse do outro.

— A culpa não foi minha! — Paolo declarou,zangado. — Culpe a pessoa que criou a neblina, e nãoeu. Existe um mago inimigo.

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— Eu sei. Crestomanci contou — Renata re-velou.

Paolo sentiu que odiava Crestomanci. Ele nãotinha o direito de ir dizer aos Petrocchi a mesma coisaque dissera aos Montana. Mas ele odiava anda mais omago inimigo. Era ele o responsável pela coisa maisembaraçosa que jamais acontecera a Paolo. Resmun-gando, envergonhado, o menino virou-se para saircorrendo.

— Não, pare, espere! — Renata pediu.Disse isso com modos tão autoritários que Pa-

olo parou sem pensar, e deu a Renata tempo de agar-rar o seu braço. Em vez de desvencilhar-se, Paolo fi-cou imóvel e tentou comportar-se com a dignidadeque se esperava de um Montana. Olhou para o pró-prio braço, e para a mão de Renata que o segurava,como se as duas coisas tivessem se transformado nu-ma lagartixa pegajosa. Mas Renata não o soltou.

— Pode olhar à vontade, eu não me importo— disse. — Não vou deixar você ir embora enquantonão me disser o que a sua família fez com Angélica.

— Nada — Paolo respondeu cora desprezo. —Nós não tocaríamos num Petrocchi nem com umavara comprida. Que foi que o seu bando fez com To-nino?

Uma ruguinha estranha formou-se na testa pá-lida de Renata.

— É o seu irmão? Ele sumiu mesmo?— Ele recebeu um livro com um feitiço de

convocação — Paolo revelou.— Um livro... — Renata repetiu lentamente.

—Angélica também foi apanhada por um. Só perce-

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bemos quando o livro pegou fogo.Ela soltou o braço de Paolo. Os dois ficaram a

encarar-se em meio aos resquícios de névoa.— Deve ter sido o mago inimigo — Paolo a-

firmou.— Tentando fazer-nos esquecer a guerra —

Renata completou. — Conte isto à sua família, estábem?

— Se você contar à sua — disse Paolo.— Claro que vou contar. Pensa que sou boba?

Apesar de tudo, Paolo encontrou-se rindo.— Penso que você é uma Petrocchi — res-

pondeu.Mas quando Renata começou a rir também,

Paolo deu-se conta de que aquilo era demais. Virou-separa sair correndo e encontrou-se cara a cara com oChefe de Polícia. O Chefe de Polícia havia, evidente-mente, recuperado a sua dignidade.

— Agora, crianças, vão andando — ordenou.Renata fugiu sem outra palavra, com o rosto

vermelho de vergonha por ter sido flagrada com umMontana. Paolo deixou-se ficar. Tinha a impressão deque devia informar que Tonino estava desaparecido.

— Eu disse para ir andando! — repetiu o Che-fe de Polícia, ajeitando a farda com um puxão assus-tador.

A coragem de Paolo fugiu. Afinal, um policialcomum não seria de grande ajuda contra um mago.Ele saiu correndo.

Correu durante todo o caminho até a casa dosMontana. A neblina e a umidade não ultrapassavam oCorso. Assim que ele virou para uma rua lateral, Paolo

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encontrou-se nas sombras gélidas e ao sol vermelho ebaixo de um final de tarde de inverno. Era como serlançado em outro mundo — um mundo onde as coi-sas aconteciam como deviam acontecer, onde o pai dealguém não se transformava num elefante enlouque-cido, onde, acima de tudo, a irmã de alguém não eraconfundida com uma Petrocchi.

Enquanto Paolo corria, seu rosto queimava devergonha. De todas as coisas horríveis que poderiamter acontecido, aquela era a pior!

A casa dos Montana surgiu à vista, com o fami-liar Anjo acima do portão. Paolo passou em disparadapor ele e trombou com seu pai. Antonio estava para-do sob o arco do portão, ofegando como se ele tam-bém tivesse feito todo o caminho para casa correndo.

— Quem...? Ah, Paolo. Fique onde está — eledisse.

— Por quê? — Paolo quis saber.Ele queria entrar em casa, onde ficaria em se-

gurança, talvez comendo um bom pedaço de pão commel. Ficou surpreso ao ver que o pai não tinha amesma intenção. Antonio parecia exausto, e suasroupas eram farrapos enlameados; o braço que eleestendeu para manter Paolo no portão estava semi-desnudo e coberto de arranhões. Paolo ia protestarquando percebeu que alguma coisa estava mesmomuito errada: quase todos os gatos estavam no portãotambém, agachados, com as orelhas para trás. Benve-nuto, parecendo um gato-do-mato, patrulhava a en-trada para o pátio. Paolo ouvia os seus rosnados.

Antonio agarrou Paolo pelo ombro com a mãocheia de arranhões e empurrou-o para a frente, para

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que ele pudesse enxergar dentro do pátio.— Veja — disse.Paolo pestanejou ao ver no centro do pátio as

letras de 30 centímetros de altura que pareciam flutuarno ar. À luz fraca do final do dia, elas brilhavam comuma cor amarela desagradável, repugnante. Diziam:

PAREM COM TODOS OS FEITIÇOSSENÃO A CRIANÇA VAI SOFRER.

ASSINADO: CASA PETROCCHI

A assinatura vinha em letras ainda mais bri-lhantes e mais repugnantes. Sua intenção era deixarbem claro quem havia mandado a mensagem.

Depois daquilo que Renata havia dito, Paolosabia que havia um engano.

— Não foram os Petrocchi. Foi aquele magoque Crestomanci mencionou.

— Sim, naturalmente — disse Antonio.Paolo ergueu os olhos para o pai e viu que ele

não acreditara — provavelmente nem sequer prestaraatenção.

— Mas é verdade! — insistiu. — Ele quer quea gente pare de produzir feitiços de guerra.

Antonio suspirou e controlou suas emoçõespara explicar a Paolo:

— Meu filho, ninguém além de Crestomanciacredita nesse mago. Na magia, como em tudo mais, aexplicação mais simples é sempre a melhor. Em ou-tras palavras, por que inventar um personagem des-conhecido quanto temos um inimigo conhecido commotivos conhecidos para nos odiar? Por que não po-

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deriam ser os Petrocchi?Paolo sentia vontade de protestar, mas ainda

estava envergonhado demais por causa de Renata paradizer que Angélica Petrocchi também havia desapare-cido. Quando estava fazendo força para encontraralguma coisa que pudesse dizer e que conseguisseconvencer o pai, um quadrado de luz surgiu na va-randa quando uma porta foi aberta.

— Rosa! — Antonio chamou. Sua voz estavaentrecortada pela ansiedade.

A figura de Rosa apareceu à luz, carregando obebê da prima Claudia. A própria luz era tão alaranja-da e tão brilhante, ao lado do brilho nojento das letrasque flutuavam no pátio, que Paolo encheu-se de alí-vio.

Atrás de Rosa estava Marco, carregando outrobebê.

— Que bom! — Antonio murmurou. Depoisgritou: — Você está bem, Rosa? Como foi que estaspalavras apareceram aqui?

— Não sabemos. Simplesmente apareceram,sem mais nem menos — Rosa gritou de volta. —Tentamos nos livrar delas, mas não conseguimos.

Marco inclinou-se sobre a balaustrada e com-pletou.

— Não é verdade, Antonio. Os Petrocchi nãofariam uma coisa dessas.

Antonio gritou em resposta:— Não saia por aí dizendo isto, Marco.Ele falou num tom tão autoritário que Paolo

entendeu que nada do que dissesse seria levado a sé-rio. Se antes ele tinha alguma chance de convencer

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Antonio, acabava de perdê-la.

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CAPÍTULO VIII

Quando Tonino recuperou os sentidos — nomomento exato, aliás, em que o livro encantado co-meçou a pegar fogo — ele teve, a princípio, uma sen-sação de pesadelo: a sensação de estar preso dentro deuma caixa de papelão. Virou a cabeça para um lado,em cima do braço. Tinha a impressão de que estavadeitado de bruços numa superfície rígida, mas leve-mente peluda. Bem à distância ele conseguia enxergarvagamente uma outra pessoa, encostada na paredecomo um boneco, mas Tonino sentia-se esquisitodemais para interessar-se. Girou a cabeça para o outrolado e viu, bem perto, os lambris de uma parede. Issolhe mostrou que se encontrava em um aposento bas-tante comprido. Tornou a girar a cabeça e olhou parao piso peludo. Nele havia um desenho grande demaispara que Tonino conseguisse enxergar todo ele; ficouachando que se tratava de alguma espécie de tapete.Fechou os olhos enevoados e tentou recordar o que

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havia acontecido.Lembrava-se de ter ido até as cercanias da

Ponte Nova. Sentia-se cheio de entusiasmo. Havialido um livro que, segundo ele julgava, estava lhe di-zendo como salvar Caprona. Ele sabia que precisavaencontrar um beco tendo no final uma casa de pinturaazul descascada. Agora isso lhe parecia tolice; Toninosabia que as coisas nunca aconteciam do modo comoaconteciam nos livros, tanto assim que na hora elehavia ficado bastante espantado ao descobrir que ha-via mesmo um beco tendo no fundo uma casa depintura azul descascada. E, para grande excitação sua,havia um pedaço de papel que veio flutuando até seuspés. O livro estava se tornando realidade! Tonino in-clinara-se e pegara o papel.

E depois disso ele de mais nada sabia, até estemomento.

Isso era verdade. Por várias vezes Tonino re-memorou o que acontecera, e todas as vezes suaslembranças terminavam exatamente no mesmo mo-mento: quando ele se inclinou para pegar o pedaço depapel. Depois disso havia apenas uma vaga sensaçãode pesadelo. A essa altura, estava quase convencido deter sido vítima de um feitiço. Começou a se sentir en-vergonhado. Então sentou-se.

Percebeu imediatamente a razão pela qual tinhaa impressão de ter sonhado que estava fechado dentrode uma caixa de papelão: o aposento onde se encon-trava era comprido e baixo, tendo quase exatamente aforma de uma caixa de sapatos. As paredes e o tetoeram pintados de uma cor creme — uma espécie decor de papelão esbranquiçado, aliás — mas pareciam

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ser de madeira, já que havia neles entalhes realçadoscom tinta dourada. Pendendo do teto havia um lustrede cristal, embora a luz entrasse pelas quatro janelascompridas em uma das paredes mais compridas; nochão via-se um tapete de luxo, e perto da parede o-posta às janelas havia uma mesa de jantar muito ele-gante e algumas cadeiras. Sobre a mesa havia dois cas-tiçais de prata. Ao todo, era um aposento extrema-mente elegante — e, de alguma forma, errado.

Tonino ficou sentado, tentando descobrir oque era que lhe parecia estar errado. O aposento en-contrava-se praticamente vazio, mas não era exata-mente isto. Havia alguma coisa estranha na luz queentrava através das quatro janelas compridas, como seo sol estivesse, de algum modo, mais distante do quedeveria estar — mas também não era isto. Toninovoltou os olhos para as quatro listas de sol fraco de-mais que entravam pelas janelas e recaíam sobre otapete, e então deixou que seu olhar deslizasse pelotapete. No final do tapete Tonino avistou a pessoaencostada à parede. Era Angélica Petrocchi, a meninaque estivera no Palácio. Os olhos dela estavam fe-chados sob a testa proeminente, e ela dava a impres-são de estar doente. Então ela também havia sidocapturada!

Tonino tornou a olhar para o tapete. Aquilo erauma coisa estranha. Na realidade, não se tratava deum tapete; ele havia sido pintado sobre a substâncialevemente peluda do piso. Tonino conseguia distin-guir as pinceladas no desenho. E o motivo pelo qualhavia julgado o desenho grande demais era que ele eramesmo grande demais; seu tamanho era inadequado

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para o resto do aposento.Mais confuso do que nunca, Tonino fez um

esforço e ficou de pé. Sentia-se um pouco fraco, demodo que estendeu a mão para os lambris com dese-nhos dourados, para firmar-se. Os lambris tambémeram peludos ao tato, exceto nos trechos dourados.Estes eram planos, mas não inteiramente rígidos, co-mo se fosse... — Tonino pensou um pouco, mas ne-nhuma outra comparação lhe ocorreu — ...como sefosse tinta. Ele deslizou a mão sobre o lambri aparen-temente entalhado: era tudo falso. Nem sequer a ma-deira era de verdade, e os entalhes eram pintados eralinhas marrons, azuis e douradas. Quem quer que otinha aprisionado estava querendo parecer mais ricodo que era, mas estava fazendo isso muito mal.

Houve movimentos no outro extremo do apo-sento: Angélica estava tentando ficar de pé, cambale-ante, e também ela estava deslizando a mão sobre osentalhes pintados. Com muita ansiedade e muita cau-tela ela virou-se e olhou para Tonino.

— Pode me deixar ir embora agora, por favor?— perguntou. Em sua voz havia um leve tremor, quemostrava a Tonino que ela estava muito assustada. E,para falar a verdade, ele também estava.

— Não posso deixar você ir embora. Não fuieu quem prendeu você — ele respondeu. — Nenhumde nós pode ir embora. Não existe porta.

Aquela era a coisa errada que ele estivera ten-tando não perceber. E assim que disse isto ele se ar-rependeu, desejando ter ficado de boca fechada, poisAngélica deu um grito. E este som deixou Tonino empânico também. Não havia porta! Ele estava fechado

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numa caixa de papelão com uma menina Petrocchi!Tonino deve ter gritado também — ele não ti-

nha certeza. Quando se controlou, tinha nas mãosuma das cadeiras elegantes e estava batendo com elana janela mais próxima. Aquilo foi a coisa mais assus-tadora de tudo, porque a vidraça não se partiu; erafeita de um material ligeiramente elástico, e a cadeiraquicou nele. Perto de Tonino, a garota Petrocchi ata-cava outra janela com um dos castiçais de prata, semparar de gritar. Tonino via claramente, do lado de forada janela, um pequeno cipreste com seu formato detorre, iluminado pelo sol da tarde. Então estavam emuma daquelas ricas mansões perto do Palácio? Ah,quando ele conseguisse sair!.. Ele ergueu a cadeira edespedaçou-a de encontro à janela com toda a suaforça.

Não aconteceu coisa alguma com a janela, masa cadeira ficou em pedaços. Duas pernas mal coladasse soltaram, e o resto despedaçou-se. Tonino consi-derou a cadeira impressionantemente malfeita. Jo-gou-a sobre o tapete pintado e pegou outra cadeira.Dessa vez, para variar, ele atacou a parede perto dajanela. Pedaços da cadeira se desprenderam e saíramvoando, e na mão de Tonino sobrou apenas o assentopintado — alias, pintado para parecer uma almofadabordada, exatamente como o chão era pintado paraparecer um tapete. Por várias vezes ele bateu com amadeira na parede, conseguindo fazer umas mossasgrandes e marrons. Ainda melhor, a parede sacudia-secom um som seco e abafado, como se fosse feita dealguma coisa muito barata. Tonino batia na parede eberrava; Angélica batia na parede e na janela, imparci-

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almente, com seu castiçal, e continuava gritando.Eles foram interrompidos por um terrível mar-

telar. Alguma coisa parecia estar dando centenas degolpes barulhentos no teto. O aposento era como olado de dentro de um tambor; o ruído era forte de-mais para ser suportável. A menina Petrocchi deixoucair o castiçal e pôs-se a rolar pelo chão. Tonino en-controu-se agachado, as mãos tapando os ouvidos, osolhos fixos no lustre que se balançava acima dele. Eletinha a impressão de que a sua cabeça ia explodir.

Os golpes cessaram. Não havia qualquer somalém de um gemido, que Tonino imaginava que viessedele próprio.

Uma voz fortíssima retumbou através do teto:— Assim está melhor. Agora fiquem quietos,

senão vão ficar sem comida. E se tentarem qualqueroutro truque serão castigados. Estão entendendo?

Tonino e Angélica ficaram de pé ao mesmotempo.

— Tire a gente daqui! — berraram.Não houve resposta; apenas um ruído distante

de passadas. Pelo jeito, o dono da voz fortíssima es-tava indo embora.

— Um truque cruel com um feitiço amplifica-dor — disse Angélica.

Ela pegou o castiçal e estudou-o com revolta.A parte superior, que se dividia em duas, entortara,formando um ângulo reto com a base.

— Que lugar é este afinal? Tudo aqui parecefalsificado... — comentou.

Os dois se levantaram e voltaram para as jane-las, na esperança de uma pista. Logo do lado de fora

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eles avistaram várias arvorezinhas com o formato detorre, e mais atrás delas uma espécie de platô. Pormais que olhassem, no entanto, tudo o que conse-guiam distinguir à distância era uma extensão de umaestranha cor azul, com uma ou duas montanhas deformato quadrado refletindo a luz do sol a um canto.Parecia não haver um céu.

— É um feitiço — disse Angélica, numa vozque dava a impressão de que ela poderia entrar empânico outra vez. — Um feitiço para impedir que agente saiba onde está.

Tonino imaginava que devia ser isso mesmo.Não havia outra maneira de explicar a estranha ausên-cia de uma paisagem.

— Mas de uma coisa eu tenho certeza, porcausa dessas árvores: estamos em uma daquelas man-sões perto do Palácio — ele declarou.

— Tem razão — Angélica concordou. Sua vozestava livre do pânico. — Nunca mais vou invejaraquelas pessoas. A vida delas não passa de ostentação.

Eles deram as costas às janelas e descobriramque seus golpes haviam descolado um dos lambris daparede atrás da mesa de jantar, e ele estava abertocomo uma porta. As duas crianças empurraram-separa chegar primeiro ao local. Mas havia ali apenas umbanheiro do tamanho de um armário, sem janela.

— Bom. Eu estava tentando imaginar comopoderíamos resolver esse problema — disse Angélica.— E pelo menos temos água.

Ela estendeu o braço e segurou numa das tor-neiras presas na pequena pia, e a torneira soltou-se emsua mão. Onde ela estivera havia uma bolinha de cola

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sobre a louça branca. Era evidente que a torneira nãose destinava a ser usada. Angélica ficou a olhar paraela com um olhar de perplexidade tão ridículo queTonino riu. Ao ouvir isso, ela ergueu a cabeça.

— Não ria de mim, seu Montana desgraçado!Saiu com raiva para o aposento principal e jo-

gou a torneira inútil sobre a mesa com um ruído alto.Então sentou-se em uma das duas cadeiras restantes edescansou os cotovelos sobre a mesa, desanimada.

Depois de algum tempo, Tonino fez a mesmacoisa. A cadeira estalou sob ele; a mesa também.Embora tivesse a superfície do tampo pintada paraparecer mogno liso, de perto ela mostrava apenasmanchas de verniz e muitas farpas.

— Tudo aqui é ordinário — ele comentou.— Inclusive você, seu fulaninho Montana! —

Angélica respondeu, ainda furiosa.— Meu nome é Tonino — ele informou.— Este é o tiro de misericórdia, estar presa

com um Montana, seja qual for o seu nome! — Angé-lica continuou. — Vou ter que aturar seus hábitosimundos.

— Bom, eu vou ter que aturar os seus — To-nino retrucou com irritação.

De repente ele se deu conta de que estava so-zinho, distante da simpática agitação da casa dosMontana. Mesmo quando estava escondido com umlivro em um recanto da casa, ele sabia que o resto dafamília estava por perto. E Benvenuto estaria ronro-nando e encostando-se a ele, para mostrar que ele nãoestava sozinho. Que saudade do Benvenuto! Toninoficou com medo de começar a chorar — e ainda por

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cima na frente de uma Petrocchi!— Como foi que pegaram você? — perguntou,

para distrair os pensamentos.— Com um livro — Angélica revelou, e um

sorriso melancólico surgiu no seu rosto pálido e ten-so. — Chamava-se “A menina que salvou o seu país”,e eu pensei que vinha do meu tio-avô Luigi. Aindaacho que a história era boa — completou, com umolhar de desafio para Tonino.

O menino ficou irritado, pois não era agradávelpensar que ele se deixara prender pelo mesmo feitiçoque prendera uma Petrocchi.

— Eu também — ele admitiu de má-vontade.— E eu não tenho hábitos imundos! — Angé-

lica declarou com irritação.— Tem, sim. Todos os Petrocchi têm — To-

nino insistiu. — Mas imagino que você não perceba,porque para vocês a imundície é uma coisa normal.

— Ah, muito bonito! — Angélica pegou a tor-neira quebrada como se sentisse a tentação de jogá-laem cima dele.

— Não me importo com os seus hábitos —Tonino continuou. E não se importava mesmo. Tudoo que queria era encontrar um modo qualquer de li-vrar-se daquele pesadelo e ir para casa. — Como po-deremos sair daqui?

— Pelo teto — Angélica sugeriu sarcastica-mente.

Tonino olhou para o alto. Havia aquele lustre;se conseguissem dar um puxão nele, podia ser que eleabrisse um rombo no teto.

— Não seja burro — retrucou Angélica. — Se

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existe um feitiço lá fora, é claro que deve existir um láem cima para impedir a nossa saída.

Tonino temia que ela estivesse certa, mas valiaa pena fazer uma tentativa. Ele passou da cadeira parao tampo da mesa, imaginando que conseguiria alcan-çar o lustre se ficasse de pé em cima dela. Ouviram-seestalos violentos e, antes que Tonino conseguisse ficarde pé, a mesa oscilou para um lado, como se todas asquatro pernas estivessem bambas.

— Desça daí! — Angélica exclamou.Tonino desceu. Era evidente que a mesa ficaria

em pedaços se ele continuasse em cima dela. Melan-colicamente ele acertou as pernas tortas do móvel.

— Então isto não serve — comentou.Angélica, subitamente esperta e entusiasmada,

sugeriu:— A não ser que a gente consiga manter a me-

sa firme com um feitiço.Tonino transferiu seu olhar tristonho das per-

nas da mesa para o rostinho pontiagudo dela. Suspi-rou. Era inevitável que esse assunto viesse à tona.

— Você vai ter que fazer o feitiço — declarou.Angélica encarou-o, e ele sentiu que seu rosto ficavaquente.

— Não sei quase nenhum feitiço — confessou.— Eu sou... devagar.

Imaginava que Angélica ia rir, e ela riu mesmo,mas na opinião dele ela não precisava rir daquela ma-neira cruel e exultante, nem ficar dizendo:

— Ah, esta é ótima!— Qual é a graça? Pode rir! Conheço aquele

caso do seu pai ter ficado verde. Você não é melhor

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do que eu! — disse.— Quer apostar? — Angélica perguntou, ainda

dando risada.— Não — Tonino recusou. — Simplesmente

faça o feitiço.— Não consigo — Angélica admitiu.Foi a vez de Tonino encará-la, e a vez de Angé-

lica enrubescer. Um vermelho vivo espalhou-se até aproeminência da testa, e ela ergueu o queixo com ex-pressão de desafio.

— Sou péssima com feitiços — declarou. —Nunca na minha vida consegui acertar um. — Vendoque Tonino continuava a encará-la, ela prosseguiu: —É uma pena que você não tenha apostado. Sou muitopior do que você.

Tonino não conseguia acreditar.— Como? Por quê? — quis saber. — Também

não consegue aprender os feitiços?— Ah, aprender, até que eu consigo muito

bem. — Angélica pegou a torneira quebrada e pôs-sea rabiscar raivosamente com ela, fazendo grandes ar-ranhões amarelos no tampo envernizado da mesa. —Conheço centenas de feitiços, mas sempre erro nahora de executar — ela continuou. — Para começar,sou inteiramente desafinada. Não consigo entoar umfeitiço direito, nem que seja para salvar a minha vida.Como agora.

Cuidadosamente, como se fosse uma artesã fa-zendo um entalhe delicado, ela raspou da mesa umatira de verniz comprida e amarela, usando a torneiracomo goiva.

— Mas não é só isto — acrescentou com raiva,

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atenta ao trabalho que estava fazendo. — Eu erro aspalavras, também. Faço tudo errado. E meus feitiçossempre funcionam, isto é que é o pior. Já fiz toda aminha família ficar de todas as cores do arco-íris. Játransformei a água do banho do bebê em vinho, e ovinho em molho. Uma vez virei a minha cabeça paratrás. Sou muito pior do que você. Nem ouso fazerfeitiços. Acho que a única coisa em que sou boa é en-tender os gatos. Aliás, cheguei até a fazer a minha gataficar roxa.

Enquanto ela trabalhava com a torneira, Toni-no ficou a observá-la, cheio de sentimentos confusos.Olhando pelo lado prático, aquela era a pior notíciapossível, já que nenhum dos dois tinha qualquer es-perança de vencer o poderoso fazedor de feitiços queos aprisionara; por outro lado, porém, ele nunca haviaencontrado uma pessoa que fosse pior do que ele emfeitiços. E sentiu um certo orgulho ao pensar que pelomenos nunca cometera um erro num feitiço, e isso lhedeu uma sensação agradável. Perguntou-se como aCasa Montana se sentiria se ele insistisse em deixartodas as pessoas da família de todas as cores do ar-co-íris. Imaginou que os Petrocchi, tão sérios, certa-mente detestavam aquilo.

— Sua família não se importa? — quis saber.— Não muito — Angélica respondeu, surpre-

endentemente. — Não se importam nem a metade doque eu me importo. Todo o mundo acha muita graçacada vez que cometo um novo erro. Mas não permi-tem que alguém fale sobre isso fora da Casa. Papai dizque já sou suficientemente famosa por ter feito eleficar verde, e ele não gosta sequer que eu seja vista era

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algum lugar até esse meu problema passar.— Mas você foi ao Palácio — Tonino obser-

vou, achando que Angélica devia estar exagerando.— Só porque a minha prima Monica estava

dando à luz e todos estavam tão ocupados na PonteVelha — Angélica explicou. — Ele teve que tirar Re-nata do turno dela e tirar o meu irmão da cama paradirigir a carruagem, para conseguir juntar um númerosuficiente de pessoas.

— Nós éramos cinco — Tonino comentou,cheio de orgulho.

— Os nossos cavalos desmancharam-se nachuva — disse Angélica, desviando os olhos do quefazia e encarando Tonino. — De modo que o meuirmão disse que os de vocês devem ter se desman-chado também, porque até o cocheiro de vocês era depapelão.

Constrangido, Tonino admitiu para si mesmoque Angélica havia acertado em cheio.

— O nosso cocheiro se desmanchou, sim —ele admitiu.

— Foi o que pensei, pela sua cara — Angélicaafirmou, e voltou a arranhar a mesa, consciente da suavitória.

— Não foi culpa nossa! Crestomanci diz queexiste um mago que é nosso inimigo — Tonino pro-testou.

Angélica arrancou um pedaço de verniz tãogrande que a mesa oscilou para o lado e Tonino pre-cisou colocá-la reta.

— E agora ele pegou nós dois — disse Angéli-ca. — E teve o cuidado de pegar os dois que não sa-

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bem fazer feitiços. Então, como é que saímos daqui,Tonino Montana? Tem alguma idéia?

Tonino sentou-se com o queixo apoiado nasmãos e ficou a pensar. Já havia lido muitos livros. Noslivros, as pessoas estavam sempre sendo raptadas. Enos seus livros favoritos — isso soava como uma pi-ada sem graça — elas escapavam sem usar qualquertipo de magia. Mas não havia porta! Era isso que faziaa fuga parecer impossível. Mas espere um momento!A voz forte havia lhes prometido comida...

— Se pensarem que estamos nos comportandobem, provavelmente vão nos trazer jantar. E precisa-rão colocar a comida aqui dentro, de alguma forma.Se ficarmos observando por onde ela entra, podere-mos conseguir sair do mesmo modo.

— É claro que nessa entrada existe um feitiço— Angélica objetou melancolicamente.

— Pare de ficar tagarelando sobre feitiços. Seráque vocês Petrocchi não sabem falar de outra coisa?— Tonino objetou.

Angélica não respondeu, simplesmente conti-nuou raspando a mesa com a torneira. Tonino, sen-tado desanimadamente na cadeira que estalava, ficoupensando sobre os poucos feitiços que realmente co-nhecia. O mais útil parecia ser um simples feitiço decancelamento.

— Um feitiço de cancelamento! — Angélicadisse antes dele, deixando-o irritado. Ela raspava amesa com cuidado. No piso em volta dos seus péshavia montinhos de tiras de verniz amarelo. — Podeser que isso mantenha a entrada aberta. Ou um feitiçode cancelamento não está entre os poucos que você

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conhece?— Conheço um feitiço de cancelamento —

Tonino declarou.— Meu irmãozinho bebê também. Provavel-

mente ele seria mais útil — Angélica retrucou.O jantar deles chegou: apareceu, sem aviso, so-

bre uma bandeja que flutuava na direção deles, vindoda direção das janelas. Aquilo pegou Tonino de sur-presa.

— Faça o feitiço! Não fique aí simplesmenteolhando! — Angélica gritou.

Tonino entoou o feitiço. Apesar de apressado esurpreso como estava, ele tinha certeza de ter feitotudo certo. Mas foi em outra coisa que o feitiço fun-cionou: a bandeja, com a comida em cima, começou acrescer. Segundos depois, estava maior do que otampo da mesa. E continuava a flutuar na direção damesa, crescendo à medida que se aproximava. Toninofoi obrigado a retroceder, afastando-se das duas terri-nas de sopa fumegante, cada uma do tamanho de umabanheira, e dois grandes montes de macarrão alaran-jado — tudo isso ficando cada vez maior e cada vezmais perto. A essa altura não sobrava muito espaçoem volta das bordas da bandeja. Tonino recuou atéencostar-se na parede dos fundos, perguntando-se seo problema que Angélica tinha com os feitiços eracontagioso. A própria Angélica estava espremida con-tra a porta do banheiro. Ambos corriam o risco deserem cortados era dois.

— Deite-se no chão! — Tonino gritou.Os dois deslizaram depressa parede abaixo, sob

a bandeja, que ficou pairando sobre eles como um

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teto baixo demais. O fortíssimo cheiro de macarrãoera muito opressivo.

— Que foi que você fez? — Angélica pergun-tou, engatinhando na direção de Tonino. — Não fezdireito!

— Sim, mas se ela crescer mais, pode ser querebente as paredes — Tonino argumentou.

Angélica sentou-se e olhou para ele com algoque era quase respeito.

— É quase uma boa idéia.Mas apenas quase. A bandeja certamente en-

costou-se às quatro paredes; eles ouviram o ruído queela fez. Houve muitos trancos e estalidos vindo dabandeja e das paredes, mas as paredes não cederam.Depois de alguns instantes, ficou claro que a bandejanão estava conseguindo crescer mais.

— Há mesmo um feitiço nesta sala — Angélicaafirmou. Ela não pretendia que aquilo soasse como“bem-que-eu-avisei”, pois estava infeliz demais paraisso.

Tonino desistiu e entoou o feitiço de cancela-mento, com muito cuidado e corretamente. Imedia-tamente a bandeja começou a encolher. No final, osdois, sentados no chão, contemplavam um jantar detamanho normal colocado no centro da mesa.

— A melhor coisa que podemos fazer é comer— Tonino sugeriu.

Angélica tornou a irritá-lo completamente, aodizer, enquanto pegava o talher:

— Bom, estou feliz em saber que não sou aúnica pessoa que erra os feitiços.

— Eu fiz tudo direito, tenho certeza — Tonino

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resmungou para o seu garfo.Mas Angélica preferiu não escutar.Depois de algum tempo, ele ficou ainda mais

irritado porque cada vez que levantava a cabeça davacom Angélica olhando para ele com curiosidade.

— Qual é o problema agora? — ele perguntoufinalmente, exasperado.

— Estou esperando para ver o seu jeito nojen-to de comer — ela disse. — Mas você deve estar seesforçando para comer direito.

— Eu sempre como assim!Tonino percebeu que tinha enrolado macarrão

demais no garfo, e apressou-se a desenrolá-lo.A proeminência da testa de Angélica estava

ondulada de rugas.— Não come, não. Os Montana sempre co-

mem de maneira nojenta por causa do modo como oVelho Ricardo Petrocchi obrigou-os a engolir as suaspalavras.

— Não diga besteiras — Tonino retrucou. —De qualquer maneira, foi o Velho Francesco Montanaquem obrigou os Petrocchi a engolir suas palavras.

— Não foi, não! — Angélica desmentiu, exal-tada. — Esta foi a primeira história que aprendi naminha vida. Os Petrocchi fizeram os Montana engoliros feitiços disfarçados de espaguete.

— Não fizeram, não, foi exatamente ao contrá-rio! — Tonino retrucou. — Foi a primeira históriaque aprendi, também.

Por um motivo qualquer, nenhum dos doissentia vontade de terminar de comer o macarrão. Osdois largaram os garfos e continuaram a discutir.

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— E por terem comido aqueles feitiços, osMontana ficaram muito nojentos e passaram a comerseus tios e suas tias que morriam.

— Não comemos, não! Vocês é que comem osbebês!

— Como ousa! — Angélica exclamou. — Vo-cês comem esterco de vaca em vez de pizza, e lá doCorso já dá para sentir o fedor da casa dos Montana.

— A casa dos Petrocchi fede até a ViaSant’Angelo — Tonino retrucou. — E da Ponte No-va já dá para ouvir o zumbido das moscas. Vocês têmfilhos como se fossem gatos e...

— Isto é mentira! — Angélica berrou. — Vo-cês só espalham isto porque não querem que as pes-soas saibam que os Montana não se casam certinho!

— Casamos, sim! São vocês que não se casamcertinho!

— Muito engraçado! — Angélica gritou. —Pois fique sabendo que meu irmão se casou na igreja,logo depois do Natal. Pronto!

— Não acredito em você — Tonino respon-deu. — E a minha irmã vai se casar na primavera, demodo que...

— E eu fui dama de honra! — Angélica ber-rou.

Enquanto os dois discutiam, a bandeja er-gueu-se no ar silenciosamente e saiu flutuando, desa-parecendo em algum lugar perto das janelas. Tonino eAngélica olharam em volta, irritados, à procura dela,extremamente contrariados por terem mais uma vezdeixado de ver por onde ela entrava e saía.

— Está vendo o que você fez? — Angélica

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perguntou.— A culpa é sua, por ter falado mentiras sobre

a minha família — Tonino declarou.

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CAPÍTULO IX

Angélica, com um olhar de raiva sob a proe-minência da testa, declarou:

— Se não tomar cuidado, vou entoar o pri-meiro feitiço que me vier à cabeça. E espero que eletransforme você numa lesma.

Aquilo era mesmo uma ameaça, e Tonino sen-tiu-se um pouco intimidado. Mas a honra dos Mon-tana estava em jogo.

— Retire o que disse sobre a minha família —exigiu.

— Só se você retirar o que disse sobre a minha— retorquiu Angélica. — Jure pelo Anjo de Capronaque nenhuma dessas mentiras horríveis é verdadeira.Olhe, eu fiz o Anjo aqui. Venha jurar.

Seu dedinho rosado deu um tapinha no tampoda mesa, fazendo Tonino lembrar-se da sua professo-ra num dia ruim.

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Ele saiu da cadeira que estalava e debruçou-separa ver o que ela estava apontando. Angélica pôs-se alimpar cuidadosamente a poeira de verniz descascadopara poder mostrar a ele que realmente havia ali oAnjo, cuja figura ela havia desenhando arranhando otampo da mesa com a torneira inútil. Era um belo de-senho, levando-se em consideração que a torneira nãoera uma boa ferramenta e tinha tendência a escorre-gar. Tonino, porém, não estava preparado para admi-tir tal coisa.

— Você esqueceu o pergaminho — criticou.Angélica deu um salto, e sua frágil cadeira

tombou para o chão.— Agora chega! Foi você quem pediu!Ela marchou até o espaço vazio perto das jane-

las e assumiu uma posição de poder. Dali, com asmãos erguidas, olhou para Tonino, para ver se ele iaceder. Tonino tinha muita vontade de ceder, já quenão queria virar uma lesma. Pôs-se a pensar, procu-rando um modo de ceder que não parecesse covardia.Mas, como em todas as coisas, ele foi demasiado len-to. Angélica mexia-se sem parar, de modo que seusbraços já não estavam no ângulo correto.

— Certo, então vou fazer um feitiço de cance-lamento, para cancelar você. — E começou a entoar ofeitiço.

A voz de Angélica era horrível, alternadamentefraca e estridente, e sempre saindo do tom. Toninosentiu vontade de interrompê-la, ou pelo menos dedistraí-la fazendo algum barulho, mas não teve cora-gem, pois isso poderia simplesmente piorar as coisas.

Ficou esperando enquanto Angélica guinchava

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alguns versos de um feitiço que parecia girar em tornodas palavras “vire o feitiço ao contrário, faça o feitiçoacabar”. Como ele era um menino e não um feitiço,Tonino tinha esperanças de que nada lhe acontecesse.

Angélica ergueu os braços mais ainda, para oterceiro verso, e mudou de tom pela sexta vez.

— “Vire o feitiço acabar, faça o feitiço ao con-trário”...

— Está errado — Tonino interrompeu.— Não tente me atrapalhar! — Angélica re-

trucou, virando-se para dirigir-se a ele, fazendo comque o ângulo dos seus braços ficasse mais errado ain-da. Uma das mãos agora apontava para a janela.

— Ordeno que se solte aquilo que estava preso— ela entoou era tom irado e estridente.

Tonino rapidamente olhou para seu própriocorpo, mas pelo jeito ele ainda estava ali, e da mesmacor de sempre. Disse a si mesmo que já sabia que umfeitiço tão malfeito jamais poderia funcionar.

Houve então um forte estalo vindo do teto lo-go acima das janelas. O aposento inteiro sacudiu-se.Então, para espanto de Tonino, a parede inteira, comas janelas e tudo, desprendeu-se das paredes laterais edo teto e tombou para fora com um ruído suave —suave demais para a queda de toda a lateral de umacasa. Uma lufada de ar cheirando a mofo entrou peloespaço aberto.

Angélica ficou tão atônita quanto Tonino. Masisso não impediu que ela se voltasse para ele com umsorriso de triunfo e de superioridade.

— Está vendo? Os meus feitiços sempre fun-cionam...

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— Vamos sair daqui — Tonino sugeriu. —Depressa, antes que chegue alguém.

Os dois atravessaram correndo os lambris pin-tados entre as janelas, passando por cima das marcasque Tonino fizera com a cadeira. Desceram da borda— surpreendentemente limpa e regular — onde a pa-rede antes juntava-se ao teto, e passaram para um ter-raço na frente da casa. Ele parecia ser feito de madeirae não de pedra, como Tonino imaginara. E depoisdele...

Os dois estacaram, bem a tempo, na beira deum profundo precipício. Ambos quase caíram para afrente, e seguraram-se um no outro. O precipício ter-minava em total escuridão; eles não conseguiam en-xergar o fundo. Tampouco conseguiam ver muitacoisa quando olhavam diretamente para a frente, poishavia ali um clarão de sol vermelho-dourado que lhesimpossibilitava enxergar claramente.

— Ainda há um feitiço na paisagem — Toninoobservou.

— Neste caso, vamos continuar caminhando— Angélica propôs. — Deve haver uma estrada ouum jardim que não conseguimos enxergar.

Certamente deveria haver alguma coisa dessetipo, mas não era essa a impressão que aquele lugardava. Tonino tinha certeza de que conseguia sentirenormes espaços vazios abaixo do rochedo onde es-tavam. Não havia sons da cidade, apenas um estranhocheiro de mofo.

— Covarde! — disse Angélica.— Vá você — Tonino respondeu.— Só se você for também.

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Eles hesitaram, entreolhando-se com raiva. E,enquanto hesitavam, o clarão do sol foi bloqueadopor uma enorme forma preta.

— Seus travessos! — disse uma voz fortíssima.— As crianças travessas devem ser castigadas.

Uma força quase forte demais para ser sentidaempurrou-os para trás por cima da parede desabada.A parede desabada ergueu-se de supetão de volta aoseu lugar, jogando longe Angélica e Tonino, que rola-ram e escorregaram de volta até caírem sobre o tapetepintado. A essa altura, Tonino estava tão zonzo e semfôlego que mal conseguiu ouvir a parede encaixar-seno lugar com um forte estalo.

Depois disso a tontura ficou mais forte. Toninosabia que estava sendo vítima de outro feitiço e lutoufuriosamente contra ele, mas quem quer que o enfei-tiçara era imensamente poderoso. Ele sentia o apo-sento mover-se. A luz que vinha das janelas mudou, etornou a mudar. Tonino quase que poderia jurar queo aposento estava sendo carregado! De repente tudoparou com um solavanco. Ele escutou a voz de Angé-lica balbuciando uma oração para Nossa Senhora, enão achou que ela estivesse errada. Então aconteceuuma misteriosa lacuna nas coisas de que Tonino tinhaconsciência.

Ele voltou a si porque quem quer que estivessefazendo o feitiço quis que ele voltasse. Tonino tinhaabsoluta certeza disso. Afinal, castigá-lo não teria tan-ta graça se Tonino não estivesse consciente do casti-go.

Ele estava no meio de um alvoroço de luz ebarulho — havia uma enorme mancha destas coisas a

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um lado — e estava correndo de um lado para o ou-tro sobre uma estreita plataforma de madeira, arras-tando um (quem diria?) cordão de salsichas. Estavausando uma camisola de dormir de um vermelho vivoe sentia alguma coisa pesando na frente do seu rosto.Cada vez que chegava a uma das extremidades da pla-taforma de madeira, ele encontrava ali um cachorro depapelão branco com um babado em torno do pesco-ço. A boca de papelão do cachorro abria-se e fechava,e o papelão fazia fracas tentativas de pegar as salsi-chas.

A algazarra era terrível, e Tonino tinha a im-pressão de que ele próprio estava contribuindo paraisso.

— Que sujeito esperto! Que sujeito esperto! —ele ouviu-se dizer, numa voz guinchada completa-mente diferente da sua.

Era como o som que a gente faz quando cantacom a boca junto a um pente enrolado em papel. Oresto da algazarra vinha do espaço iluminado que fi-cava de um lado da plataforma.

Vozes fortes riam e soltavam exclamações,misturadas a uma música estridente.

— Estou sonhando — Tonino disse a si mes-mo.

Mas sabia que não estava. Embora ainda sen-tisse a cabeça pesada e os olhos nublados, o meninotinha uma vaga idéia do que estava acontecendo. En-quanto voltava correndo ao longo da pequena plata-forma, ele baixou os olhos nublados na direção dopeso em seu rosto. E naturalmente enxergou, emba-çado e duplicado, um enorme nariz vermelho e

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cor-de-rosa. Ele era o fantoche chamado Sr. Punch, eo cachorro era o Cachorro Toby!

É claro que ele tentou, nesse momento, fir-mar-se e parar de correr de um lado para o outro, etambém levantar a mão para arrancar o enorme narizcor-de-rosa. Não conseguiu fazer qualquer das duascoisas, e ainda pior do que isso: quem quer que esti-vesse fazendo com que ele fosse o Sr. Punch imedia-tamente aproveitou para obrigá-lo a correr ainda maisdepressa, fazendo as salsichas sacudirem-se aindamais.

— Ah, muito bom! — berrou alguém no es-paço iluminado.

Tonino achou que conhecia aquela voz. Saiucorrendo outra vez em direção ao Cachorro Toby,com um giro do corpo afastou as salsichas das man-díbulas de papelão do cachorro e esperou que sua ca-beça parasse de pesar e seus olhos parassem de nu-blar-se. Tinha certeza de que isto aconteceria; o mal-vado queria que ele ficasse consciente.

— Que sujeito esperto! — guinchou mais umavez. Enquanto corria pelo palco na direção oposta, eledeu uma olhada por cima do enorme nariz na direçãodo espaço iluminado, mas só enxergou um borrão.Então ele deu uma olhada em direção ao lado oposto.

Viu ali a parede de uma mansão dourada, comquatro janelas compridas. Ao lado de cada janela haviaum pequeno cipreste escuro. Agora ele sabia por queo estranho aposento havia parecido tão falsificado: eraapenas um cenário! A porta na parede externa erapintada. Entre a casa e o palco havia um buraco. Apessoa que estava movimentando as marionetes deve-

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ria estar ali, mas Tonino só conseguia enxergar escu-ridão. Tudo estava sendo feito por magia.

Justamente nesse momento a sua atenção foiatraída por uma pessoa de papelão que surgiu do bu-raco guinchando que o Sr. Punch havia roubado assuas salsichas. Tonino foi obrigado a permanecer i-móvel e guinchar em resposta. A essa altura ele estavafeliz por poder descansar. Enquanto isso, o cachorrode papelão agarrou as salsichas e mergulhou para forade vista com elas na boca. A platéia batia palmas egritava:

— Olhe o Cachorro Toby!A pessoa de papelão passou correndo por To-

nino, guinchando que ia chamar a polícia.Mais uma vez Tonino tentou olhar para a pla-

téia. Dessa vez ele conseguiu ver vagamente um apo-sento muito iluminado e volumosas figuras escurassentadas em cadeiras, mas era como tentar enxergaralguma coisa contra o sol. Seus olhos encheram-se delágrimas. Uma lágrima desceu pelo bico rosado emseu rosto, e Tonino teve a sensação de que a pessoamalvada ficou deliciada ao ver isso, julgando que To-nino estava chorando. Ele ficou zangado, mas tam-bém um pouco alegre; pelo jeito, aquela pessoa podiaser enganada por seus próprios pensamentos malva-dos. O menino ficou olhando para fora, apesar de o-fuscado, tentando ver o malvado, mas tudo o queconseguia enxergar claramente era um entalhe pertodo teto do aposento iluminado. Era o Anjo de Ca-prona, uma das mãos estendidas numa benção, a ou-tra segurando o pergaminho.

Então ele girou de um salto, e deu de cara com

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a personagem Judy. Do outro lado oposto, a parededa frente da casa havia desaparecido, e o cenário agoraera o aposento que ele conhecia bem demais, com olustre artisticamente iluminado.

Judy vinha atravessando o palco segurando umvolume arredondado em forma de um bebê. Ela usavauma camisola e uma touca azuis. Seu rosto era lilás,com um narigão bem no meio, quase tão grande evermelho quanto o de Tonino. Mas os olhos a cadalado do nariz eram de Angélica, alternadamente pis-cando e arregalados de terror. Ela piscou implorante-mente para Tonino, enquanto guinchava:

— Preciso sair, Sr. Punch. Veja se toma contadireito do bebê!

— Não quero tomar conta do bebê! — eleguinchou de volta. Durante todo o diálogo longo etolo, ele via os olhos de

Angélica piscando, suplicando para que elepensasse num feitiço para acabar com aquilo. Masnaturalmente Tonino não conseguia. E achava quenem Rinaldo, e nem mesmo Antonio, poderiam im-pedir uma coisa tão poderosa quanto aquela. Pensou:Anjo de Caprona, socorro! Isso fez com que ele sesentisse melhor, embora nada houvesse acontecidopara fazer cessar o feitiço. Angélica plantou o bebênos braços dele e mergulhou para fora de vista.

O bebê começou a chorar. Tonino primeiroguinchou coisas malcriadas, depois segurou-o pelaponta da longa camisola branca e bateu com a cabeçadele no chão repetidas vezes. O bebê era muito maisrealista do que o Cachorro Toby. Podia ser feito depapelão, mas contorcia-se e balançava os braços, e

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chorava de um modo horrível. Tonino quase poderiater acreditado que era o bebê da prima Claudia. Essaidéia deixou-o tão horrorizado que ele se encontrourepetindo a letra de “O Anjo de Caprona” enquantosacudia o bebê com violência. Podia não ser a letracorreta, mas ele conseguia sentir que ela estava agindode alguma maneira. Quando ele finalmente jogou atrouxinha branca para fora do palco, conseguiu en-xergar o piso reluzente onde o bebê caíra. E quandoergueu os olhos para os espectadores que batiam pal-mas, conseguiu vê-los também com a mesma nitidez.

A primeira pessoa que Tonino reconheceu foio Duque de Caprona. Ele estava sentado numa cadei-ra dourada, com seus botões cintilando, e ria estento-reamente. Tonino perguntou-se como alguém poderiarir daquela maneira de uma coisa tão horrível, atélembrar-se de que ele próprio havia feito isso muitasvezes, quase morrendo de rir exatamente da mesmacoisa. Mas antes eram apenas marionetes... Então o-correu a Tonino que o Duque pensava que ele tam-bém fosse só um fantoche, e estava achando graça nahabilidade do manipulador dos bonecos.

— Que sujeito esperto! — Tonino guinchou.E foi obrigado a pôr-se a dançar alegremente,

sem estar com a menor vontade de fazer isso. En-quanto dançava, porém, ele olhava atentamente para oresto da platéia para ver quem era a pessoa que sabiaque ele não era um fantoche.

Para seu terror, metade da platéia sabia. Toninodistinguiu um olhar de quem sabia no rosto de trêshomens sisudos que rodeavam o Duque, e a mesmacoisa no rosto maquilado de duas damas com a Du-

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quesa. E a Duquesa... Assim que Tonino viu a ex-pressão de divertimento no rosto dela, no arco dassobrancelhas e no leve sorriso secreto em seus lábios,ele entendeu que era ela quem estava fazendo aquilo.Sim, ela era uma maga, e era isso que tinha deixado omenino tão perturbado quando a vira antes. A Du-quesa reparou no olhar dele e sorriu mais abertamen-te, porque Tonino nada podia fazer.

Aquilo deixou o menino realmente apavorado.Mas Angélica tornou a surgir, com um grande porretenos braços, e ele não teve tempo para pensar.

— Que é que você fez com o bebê? — Angé-lica guinchou.

E pôs-se a atacar Tonino com o porrete. Asporretadas doíam de verdade. Elas o derrubaram nochão e continuaram a atingi-lo. Tonino via os lábiosde Angélica movendo-se. Embora a vozinha guin-chada dela repetisse sem cessar “Vou lhe dar uma li-ção por matar o bebê!”, seus lábios formavam a letrade “O Anjo de Caprona”. Aquilo era porque ela sabiao que vinha depois.

Tonino também recitou as palavras de “O An-jo” e tentou continuar agachado no chão. Mas nãoadiantou: ele viu-se forçado a ficar de pé num salto,arrancar o porrete da mão da personagem Judy e sur-rar Angélica com ele. Tonino via o Duque rindo e oscortesãos sorrindo. O sorriso da Duquesa era agorabem largo, porque, naturalmente, Tonino ia ser obri-gado a matar Angélica a porretadas.

Tonino tentou segurar o porrete de modo a a-tingir Angélica apenas de leve; ela podia ser uma Pe-trocchi e uma garota extremamente irritante, mas não

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merecia aquilo. Porém o porrete subia e descia porvontade própria, e os braços de Tonino apenas a-companhavam. Angélica caiu de joelhos e depois de-sabou de bruços no chão. Seus guinchos redobraram,enquanto Tonino lhe dava porretadas nas costas, eentão sua voz silenciou. Ela ficou deitada na borda dopalco, a cabeça pendendo para fora, exatamente comoum fantoche. Tonino foi forçado a chutá-la para oburaco entre a sala de mentira e o palco. Ele ouviu o“flop!” distante quando ela bateu no chão. E então foiobrigado a dançar e rir com entusiasmo, enquanto aDuquesa jogava a cabeça para trás e dava risadas tãoanimadas quanto as do Duque.

Tonino odiou-a. Estava tão zangado e tão infe-liz que nem se importou quando um policial de pape-lão apareceu e o menino correu atrás dele sacudindo oporrete. Ele batia no policial como se fosse a Duquesae não um boneco de papelão.

— Você está passando bem, Lucrezia? — eleouviu o Duque perguntar.

Tonino olhou de soslaio enquanto aplicava ou-tra poderosa porretada no capacete do policial. Viuque a Duquesa se encolhia quando o porrete descia.Não ficou surpreso por imediatamente o policial tersido afastado, e ele próprio forçado a dar cambalhotasainda mais frenéticas e a soltar guinchos ainda maisviolentos. Ele deixou-se fazer tudo aquilo; quandoguinchava “Que sujeito esperto!” pelo que parecia sera milésima vez, sentia-se realmente alegre. Pois tinhacompreendido o que acontecera: de um certo modo, aDuquesa era o policial, já que estava colocando umpouco dela mesma em todos os bonecos, para fa-

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zê-los funcionar. Mas Tonino não podia deixar queela percebesse que ele sabia. Então ele deu cabriolas esoltou gargalhadas fazendo o possível para parecerapavorado, e manteve os olhos naquele entalhe doAnjo bem no alto, acima da porta do salão.

E agora o fantoche Carrasco apareceu, enca-puzado, arrastando um pequeno cadafalso de madeiracom um laço de forca feito de barbante. Tonino davacambalhotas cautelosamente, pois era nesse momentodo enredo que a Duquesa dava cabo dele, a não serque ele tivesse muito cuidado. Por outro lado, se da-quela vez a história de Punch e Judy terminasse comodevia terminar, podia ser que ele é quem desse caboda Duquesa.

A tola cena teve início. Tonino nunca em suavida havia feito um esforço tão grande. Não cessavade repetir em pensamento a letra de “O Anjo”, tantocomo uma oração quanto como uma cortina de fu-maça para que a Duquesa não percebesse o que eleestava tentando fazer. Ao mesmo tempo ele pensava,feroz e vingativamente, que o Carrasco não era umsimples fantoche — era a Duquesa em pessoa. E,também ao mesmo tempo, ele prestava intensa aten-ção às suas falas de Sr. Punch. Tudo tinha que saircerto.

— Vamos, Sr. Punch — grasnou o Carrasco.— Coloque a sua cabeça neste laço.

— Como é que eu faço isto? — perguntaram oSr. Punch e Tonino, ambos fingindo com todas assuas forças que eram estúpidos.

— É só colocar a cabeça aqui — grasnou oCarrasco, enfiando uma das mãos pelo laço.

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O Sr. Punch e Tonino, ambos cheios de esper-teza, colocaram-se primeiro na frente do laço, depoisatrás dele.

— Assim está certo? Ou assim? — Então, fin-gindo estupidez com mais intensidade ainda, queixa-ram-se: — Não sei como fazer isto. Você vai ter queme mostrar.

Ou a Duquesa estava querendo brincar com ossentimentos de Tonino ou estava tentando algumamanobra também, pois este diálogo repetiu-se inteiri-nho por várias vezes. A cada vez, o Carrasco enfiava amão pelo laço para mostrar ao Sr. Punch o que fazer.Tonino não ousava olhar para a Duquesa; mantinhaos olhos no Carrasco e pensava sem parar: este é aDuquesa, enquanto recitava “O Anjo de Caprona”com todo o seu coração. Finalmente, para seu alívio, oDuque começou a ficar impaciente.

— Vamos lá, Sr. Punch! — gritou.— Você vai ter de enfiar sua cabeça pelo laço

para me mostrar — disseram o Sr. Punch e Tonino,da maneira mais convincente que eles conseguiram.

— Ah, está bem — grasnou o Carrasco. — Jáque você é tão burro...

E enfiou no laço a sua cabeça de papelão.O Sr. Punch e Tonino prontamente puxaram a

corda e o enforcaram. E Tonino, impulsionado pelopensamento de que o fantoche era a própria Duquesa,tornou-se o mais mole e pesado que conseguiu. Ape-nas por um segundo ele deixou que o peso total doseu boneco ficasse pendurado na ponta da corda.

Isso durou apenas aquele segundo. Tonino viude relance a Duquesa de pé, as mãos na garganta. Ele

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teve uma sensação de triunfo muito real. Então viu-sejogado de cara para o chão, na parte da frente do pal-co, incapaz de mover-se. E ali foi forçado a ficar. Suacabeça pendia para fora do palco, de modo que elenão conseguia ver grande coisa. Mas concluiu que aDuquesa estava sendo carinhosamente levada dali,com o Duque ao lado muito afobado.

E pensou: acho que estou feliz...

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CAPÍTULO X

Aquela foi uma noite da qual Paolo não querialembrar-se jamais. Ainda tinha os olhos fixos nas le-tras amarelas no pátio quanto o resto da família che-gou. Ele foi empurrado para o lado para deixar que oVelho Niccolo e Tia Francesca entrassem, mas Ben-venuto, com um ruído agressivo que soava comogordura na chapa quente, não os deixou passar.

— Pode deixar, meu amigo. Você fez o possí-vel — o Velho Niccolo tranqüilizou o animal. Emseguida voltou-se para Tia Francesca. — Nunca per-doarei os Petrocchi, nunca!

Paolo mais uma vez ficou impressionado com aaparência de duende alquebrado que seu avô apresen-tava. Ele pensara que o Velho Niccolo estava ampa-rando os passos de Tia Francesca, gorda, enlameada eofegante — mas agora o menino se perguntava se nãoera exatamente o oposto.

— Muito bem, vamos nos livrar desta mensa-

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gem horrível — o Velho Niccolo declarou, em tomirritado, ao resto da família.

Ele ergueu os braços para dar o sinal de inicia-rem o feitiço e começou a cambalear. Suas mãos er-gueram-se até o peito. Ele caiu de joelhos, com umacor muito estranha no rosto. Paolo pensou que eleestivesse morto, até verificar que ele respirava, embo-ra com dificuldade. Elizabeth, Tio Lorenzo e Tia Ma-ria correram para ele.

— Ataque cardíaco — disse Tio Lorenzo, as-sentindo para Antonio. — Inicie você o feitiço. Va-mos levá-lo para dentro.

— Paolo, vá correndo buscar o médico — dis-se Elizabeth. Enquanto corria, Paolo escutava o feiti-ço sendo cantado de si. Quando chegou de volta como médico, a mensagem havia desaparecido e o VelhoNiccolo havia sido carregado para a cama. Tia Fran-cesca, ainda suja de lama, com os cabelos soltos deum lado só, andava de um extremo ao outro do pátiocomo uma montanha ambulante, chorando e retor-cendo as mãos.

— Os feitiços estão proibidos — ela gritou pa-ra Paolo. — Fiz pararem com tudo.

— E foi uma boa coisa, mesmo! — exclamou omédico em tom amargo. — Um homem na idade deNiccolo Montana não pode ficar brigando pelas ruas.E faça a sua tia-avó ir deitar-se. Se ela continuar assim,vai ficar doente também — ele aconselhou Paolo.

Tia Francesca aceitou no máximo retirar-se pa-ra o Salão, onde recusou-se até mesmo a se sentar.Continuou a andar de um lado para o outro, lamen-tando-se por causa do Velho Niccolo, chorando por

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causa de Tonino, declarando que a virtude abandona-ra para sempre a Casa Montana e murmurando terrí-veis ameaças contra os Petrocchi.

Na verdade, ninguém da família estava muitomelhor do que ela: as crianças menores choraminga-vam de exaustão; Elizabeth e as tias preocupavam-secom o Velho Niccolo e, depois, com a Tia Francesca;no Scriptorium, em meio aos feitiços abandonados,Antonio e os tios estavam sentados, rígidos de aflição,e o restante da casa estava cheio de primos mais ve-lhos perambulando e amaldiçoando os Petrocchi.

Paolo encontrou Rinaldo, melancólico, apoiadona balaustrada da varanda, embora já estivesse escuroe realmente muito frio.

— Malditos sejam aqueles Petrocchi! — ele de-clarou para Paolo. — Agora não podemos sequer ga-nhar a vida, muito menos ajudar se houver uma guer-ra.

Paolo, apesar do seu sofrimento, sentiu-semuito lisonjeado porque Rinaldo parecia considerá-losuficientemente crescido para conversar sobre assun-tos da família. Respondeu:

— É mesmo horrível.E tentou apoiar-se na balaustrada com a mes-

ma pose elegante de Rinaldo. Não era fácil, porquePaolo não tinha altura suficiente, mas ele conseguiu, epreparou os argumentos que usaria para convencerRinaldo de que Tonino estava nas mãos de um magoinimigo. Aquilo também não era fácil; Paolo sabia queRinaldo não lhe daria ouvidos se ele fizesse a menorinsinuação de que havia conversado com uma Pe-trocchi — aliás, ele preferia morrer a revelar isso ao

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primo. Mas sabia que, se convencesse Rinaldo, esteresgataria Tonino em cinco minutos de ousadia. Ri-naldo era um verdadeiro Montana.

Enquanto ele pensava, Rinaldo exclamou comraiva:

— Que foi que deu naquele moleque burro,para ler aquela droga de livro? Quando tivermos To-nino de volta, vou lhe ensinar uma lição que ele nãovai esquecer.

Paolo estremeceu por causa do frio.— Tonino sempre lê livros — afirmou. Mudou

de posição, pois a pose elegante não era nada confor-tável, e perguntou com timidez: — Como vamos tra-zer o meu irmão de volta?

Não era nada daquilo que Paolo pretendia di-zer, e ele ficou bastante chateado consigo mesmo.

— De que adianta? — disse Rinaldo. — Sa-bemos onde ele está: na casa dos Petrocchi. Se estiverdesconfortável lá, a culpa é dele mesmo!

— Mas ele não está lá! — Paolo protestou.Embora estivesse difícil enxergar à luz do pátio,

ele viu que Rinaldo voltava-se para ele e o encaravacom expressão de zombaria. Pelo jeito, a cada segun-do a conversa estava se afastando cada vez mais dorumo que ele havia planejado.

— Um mago inimigo pegou Tonino. Aquele dequem Crestomanci falou — declarou.

Rinaldo riu, e afirmou:— Isto é um monte de besteiras, Paolo. O

nosso amigo andou conversando com os Petrocchi.Ele inventou esse conveniente mago porque quer to-dos trabalhando unidos era prol de Caprona. Todos

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nós logo percebemos isto.— Então quem criou aquela neblina no Corso?

— Paolo quis saber. — Nós não criamos, e nem eles.Mas Rinaldo limitou-se a perguntar:— Quem foi que lhe disse que eles não criaram

aquela neblina?Como Paolo não podia responder que havia

sido Renata Petrocchi, ele não teve como responder.Em vez disso, propôs, em desespero:

— Venha comigo à casa dos Petrocchi. Se usarum feitiço de descoberta, poderá provar que Toninonão está lá.

— O quê? — Rinaldo parecia atônito. — Quetipo de idiota acha que eu sou, Paolo? Não vou en-frentar sozinho uma família inteira de feiticeiros. E seeu for até lá e usar um feitiço, e eles fizerem algumamaldade com Tonino, todos vão me culpar, não vão?E tudo isso por uma coisa que, de qualquer maneira,nós já sabemos. Não vale a pena, Paolo. Vou lhe dizero que...

Ele foi interrompido por Tia Gina trombete-ando abaixo deles, no pátio:

— Notti é o único farmacêutico aberto a estahora. Diga a ele que é para Niccolo Montana!

Com certo alívio Paolo abandonou inteiramen-te a pose elegante e debruçou-se por cima da amuradapara observar Lucia e Corinna atravessarem correndoo pátio com a receita do médico. Aquela visão cau-sou-lhe um nó de preocupação no estômago.

— Acha que o Velho Niccolo vai morrer, Ri-naldo? Rinaldo deu de ombros.

— Pode ser. Ele é bem idoso. De qualquer

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maneira, já era hora de esse velho bobo renunciar.Então eu estarei um passo mais perto de ser o chefeda Casa Montana.

Nesse instante, uma coisa esquisita aconteceudentro da cabeça de Paolo. Ele jamais se dera ao tra-balho de pensar quem poderia ser o sucessor de An-tonio — já que era óbvio que seu pai sucederia aoVelho Niccolo — como chefe da Casa Montana; porum motivo qualquer, no entanto, jamais imaginaraque pudesse ser Rinaldo. Agora tentava imaginar Ri-naldo fazendo as coisas que o Velho Niccolo fazia. E,assim que começou, constatou que Rinaldo seria pés-simo. Rinaldo era vaidoso, egoísta... e covarde, quan-do tinha condições de ser covarde e ao mesmo tempomanter uma boa reputação. Era como se Rinaldo ti-vesse pronunciado um feitiço poderoso para abrir osolhos de Paolo.

Nunca ocorrera a Rinaldo, por mais eficienteque ele fosse como feiticeiro, que umas poucas pala-vras corriqueiras poderiam fazer tanta diferença. Eleinclinou-se na direção de Paolo e baixou a voz paraum murmúrio melodioso:

— Eu ia lhe contar, Paolo. Estou alistando to-dos os mais jovens. Vamos jurar uma vingança secretacontra os Petrocchi. Vamos fazer alguma coisa piordo que obrigá-los a engolir as próprias palavras. Vocêestá comigo? Jura juntar-se ao plano?

Talvez Rinaldo estivesse sendo sincero, poisseria muito conveniente trabalhar em segredo, comum monte de ajudantes de boa vontade. Mas Paolotinha certeza de que aquele plano era um passo adian-te nos planos de Rinaldo de ser o chefe da Casa. Pao-

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lo começou a afastar-se ao longo da balaustrada.— Vai aceitar ou não? — Rinaldo perguntou,

com uma risadinha.Paolo alcançou uma distância em que ficava a

salvo de ser agarrado.— Depois eu respondo — disse, e saiu apres-

sado. Rinaldo riu e não tentou pegá-lo; achava quePaolo escava com medo de aceitar.

Paolo desceu para o pátio sentindo-se mais so-litário do que jamais se sentira em sua vida. Toninonão estava ali. Seu irmão não era vaidoso, nem egoís-ta, nem covarde. E ninguém queria ajudá-lo a encon-trar Tonino. Até esse momento Paolo não havia per-cebido quanto dependia de Tonino. Eles faziam jun-tos todas as coisas importantes. Mesmo quando Paoloestava ocupado com suas próprias coisas, sabia queTonino estava em algum lugar por ali, sentado a lerum livro, pronto para abandonar a leitura se Paoloprecisasse dele. Agora, parecia não haver coisa algumaque Paolo pudesse fazer. E toda a Casa transpiravapreocupação.

Ele foi até a cozinha, onde, finalmente, algumacoisa estava acontecendo. Todos os seus primos maisnovos estavam lá. Rosa e Marco estavam tentandofazer sopa para eles.

— Venha ajudar, Paolo — Rosa pediu. —Vamos colocá-los na cama depois da sopa, mas esta-mos encontrando alguns probleminhas.

Tanto ela quanto Marco pareciam cansados eatrapalhados. A maioria dos pequeninos estava cho-ramingando, inclusive o bebê. O problema era o fei-tiço de Lucia. Paolo compreendeu isso quando Marco

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colocou o bebê em seus braços: a manta da criançaestava coberta de gordura alaranjada.

— Eca! — Paolo exclamou, com nojo.— Eu sei — disse-lhe Rosa. — Marco, é me-

lhor tentar outra vez. Panela limpa, água limpa, o úl-timo pacote de sopa em pó. Não faça esta cara, Paolo.Já estragamos todos os legumes. Eles simplesmentevoam para as latas de lixo, e antes de chegarem lá jáestão mofados.

Paolo olhou nervosamente para a porta, per-guntando-se se o mago inimigo era suficientementepoderoso para escutar o que ia propor.

— Tente um feitiço de cancelamento — sus-surrou.

— Tia Gina tentou todos eles esta tarde —Rosa revelou. — Não adianta. A pequena Lucia usou“O Anjo de Caprona”, entende? Agora estamos ten-tando da maneira de Marco. Pronto, Marco?

Rosa abriu o pacote de sopa e segurou-o acimada panela. Quando o pó cor-de-rosa começou a cairdentro da água, Marco inclinou-se sobre a panela ecomeçou a cantar furiosamente. Paolo, nervoso, osobservava. Aquilo era justamente o que a mensagemhavia dito para não fazer, ele tinha certeza. Quandotodo o pó estava na água, Rosa e Marco espiaram an-siosamente dentro da panela.

— Será que conseguimos? — Marco pergun-tou.

— Acho que... — Rosa começou, e terminoucom um grito de exasperação. — Ah, não! — As pe-quenas conchas de macarrão que havia no pó trans-formaram-se em conchas marinhas de verdade, pe-

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quenas e cinzentas. — Elas têm bichos dentro! —Rosa exclamou em desespero, retirando algumas comuma colher.

— Afinal onde está Lucia? Ela precisa vir atéaqui. Diga-lhe que eu... Não, simplesmente traga-apara cá, Paolo.

— Ela foi até o farmacêutico.Nesse momento uma gritaria irrompeu no pá-

tio. Paolo passou o bebê engordurado para o primomais próximo e disparou para fora, temendo que fos-se outra mensagem amarela sobre Tonino. E haviauma chance de que a responsável pela algazarra fosseLucia.

Não era uma coisa nem outra. Era Rinaldo. Ostios deviam ter saído do Scriptorium, pois Rinaldoestava fazendo uma fogueira de feitiços no meio dopátio. Domenico, Cario e Luigi ocupavam-se em tra-zer da varanda braçadas de tirinhas de feitiço, envelo-pes e pergaminhos. Paolo reconheceu, já queimandoem meio às labaredas, os encantos de exército que elee as outras crianças haviam passado tanto tempo co-piando. Aquilo era um chocante desperdício de tra-balho.

— Isto é o que os Petrocchi nos forçaram afazer! — Rinaldo gritava, fazendo pose ao lado dafogueira. Aquilo, evidentemente, fazia parte do seuplano de recrutar as crianças.

Paolo sentiu-se aliviado-se ao ver Antonio eTio Lorenzo saírem correndo do Salão.

— Rinaldo! — Antonio gritou. — Rinaldo, es-tamos preocupados com o Tio Umberto. Queremosque você vá até a Universidade para informar-se.

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— Mande Domenico — Rinaldo respondeu, etornou a virar-se para as chamas.

— Não. Vá você — Antonio insistiu.Havia alguma coisa no modo como ele disse

isso que fez com que Rinaldo recuasse diante dele.— Está bem, eu vou — disse Rinaldo. Ele er-

gueu uma das mãos, rindo. — Eu só estava brincan-do, Tio Antonio.

E partiu imediatamente.— Levem de volta estes feitiços — Tio Lo-

renzo ordenou aos outros três primos. — Detesto verum bom trabalho desperdiçado.

Domenico, Cario e Luigi obedeceram sem umapalavra. Antonio e Tio Lorenzo foram até a fogueira etentaram apagar as chamas pisoteando-as, mas elasardiam com demasiada violência. Paolo viu que eles seentreolharam com expressão conspiradora e depoisinclinaram-se para a frente e sussurraram um feitiçosobre as labaredas. O fogo extinguiu-se como se ti-vesse sido desligado por um interruptor. Paolo suspi-rou, preocupado; era óbvio que ninguém na CasaMontana conseguia abandonar o costume de usar fei-tiços. Ele perguntou-se quanto tempo isso durariaantes que o mago inimigo percebesse a desobediência.

— Traga uma luz! — Antonio gritou paraDomenico. — E separe aqueles que não estão quei-mados.

Paolo voltou para a cozinha antes que lhe pe-dissem para ajudar. A fogueira lhe dera uma idéia.

— Temos bastante carne moída — Rosa estavadizendo. — Será que ousamos tentar com isso?

— Por que não levam a comida para a sala de

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jantar? Posso acender o fogo na lareira, e vocês po-dem cozinhar lá mesmo — Paolo sugeriu.

— Este menino é um gênio! — Marco excla-mou.

Foi o que fizeram. Rosa cozinhava aos poucose Marco fez chocolate quente. As crianças — inclusi-ve Paolo — foram alimentadas primeiro. Paolo sen-tou-se num dos bancos compridos, achando aquilotudo quase divertido — a não ser quando pensava emTonino ou no Velho Niccolo na cama no andar supe-rior. Ele ficou muito satisfeito e surpreso quando umatrouxa de garras e músculos de ferro aterrissou no seucolo: Benvenuto, também sentindo falta de Tonino. Ogato esfregou-se em Paolo com uma espécie de de-sespero, mas não quis ronronar.

Rosa e Marco estavam fazendo menção de le-vantar-se para colocar os pequenos na cama quando láfora houve um ruído metálico forte e repentino.

— Céus! — Rosa exclamou, e foi abrir a portapara o pátio.

O barulho inundou a sala, um som metálico ir-regular, rápido e fortíssimo. O mais próximo — ching,ching, ching— vinha de tão perto que só podia ser osino da Igreja de Sant’Angelo. Por trás desse barulhão,o sino da Catedral dobrava. E mais longe ainda, orapróximos, ora distantes e fracos, todos os sinos detodas as igrejas de Caprona soavam. Corinna e Luciaentraram correndo, os rostos brilhando de frio e exci-tação.

— Estamos em guerra! O Duque declarouguerra! Marco disse que achava melhor ir para casa.

— Ah, não! — Rosa exclamou. — Ainda não!

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Aliás, Lucia... Lucia olhou de soslaio para a comida nofogo da lareira da sala de jantar.

— Vou levar o remédio para Tia Gina — eladeclarou, e prudentemente afastou-se correndo.

Marco e Rosa se entreolharam.— Três Estados contra nós e não temos feiti-

ços para nos defendermos! — lamentou-se Marco. —Pelo jeito, não teremos um casamento longo e feliz,não é mesmo?

— O Sr. Notti disse que a Reserva Voluntáriaserá convocada amanhã — Corinna informou, paratranqüilizá-los. Seu olhar cruzou com o de Rosa. —Venham, crianças, está na hora de dormir — disse aosquatro primos.

Enquanto os menores eram colocados na ca-ma, Paolo ficou sentado ninando Benvenuto, sentin-do-se mais desesperançado do que nunca. Pergunta-va-se se no dia seguinte haveria era Caprona soldadosde Florença, Pisa e Siena. Haveria tiroteio nas ruas!Ele imaginou grandes lascas de mármore da Catedralarrancadas pelos tiros, a Ponte Nova derrubada apesarde todos os feitiços que a protegiam, e inimigos mo-renos arrastando Rosa aos gritos. E viu que tudo a-quilo poderia realmente acontecer nos próximos dias.

Nesse instante ele teve certeza de que Benve-nuto estava tentando lhe dizer alguma coisa. Percebiaisso no olhar fixo e acusador dos olhos amarelos doanimal. Mas Paolo simplesmente não conseguia en-tender o que era.

— Vou tentar — disse a Benvenuto. — Voutentar de verdade.

Ele teve uma breve impressão de que Benve-

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nuto ficou satisfeito; com esse incentivo, Paolo incli-nou a cabeça e fixou os olhos no focinho de Benve-nuto com sua expressão de urgência. Mas não adian-tava; tudo o que Paolo conseguiu foi ver uma imagemem sua mente — a imagem de um lugar com uma fa-chada de mármore colorido, muito grande e bonita.

— A Igreja de Sant’Angelo? — perguntou, emtom de dúvida. Enquanto Benvenuto abanava a caudacom impaciência,

Rosa e Marco voltaram.— Ora, ora! Aí está Paolo tentando mais uma

vez carregar nas costas os problemas da nossa Casa!— Rosa comentou com Marco.

Paolo, surpreso, ergueu os olhos.— De vez em quando você fica igualzinho a

Antonio — Marco comentou.— Não consigo compreender o que Benvenuto

diz — Paolo explicou, sentindo-se desesperado.Marco sentou-se sobre a mesa ao lado dele.— Então ele terá de encontrar alguma outra

maneira de nos dizer o que deseja — afirmou. — Éum gato inteligente, o mais esperto que já conheci.Ele vai conseguir.

Estendeu a mão e Benvenuto deixou que acari-ciasse sua cabeça.

— As suas orelhas, Senhor Gato, são comoouriços-do-mar sem os espinhos.

Rosa empoleirou-se na mesa também, do outrolado de Paolo.

— O que é, Paolo? É Tonino? Paolo assentiu.— Ninguém quer acreditar que o mago inimigo

pegou o meu irmão — declarou.

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— Nós acreditamos — Marco afirmou, e Rosacompletou:

— Paolo, ainda bem que ele pegou Tonino enão você. Tonino vai agüentar tudo com muito maiscalma.

Paolo ficou um pouco confuso.— Por que vocês dois acreditam no mago e

ninguém mais acredita?— Que é que faz você achar que ele existe? —

Marco respondeu com outra pergunta.Nem mesmo para Rosa e Marco, Paolo conse-

guiria forçar-se a contar o seu embaraçoso encontrocom uma Petrocchi.

— Houve uma neblina horrível no final docombate — disse. Rosa e Marco soltaram exclama-ções de alegria. Suas mãos encontraram-se ruidosa-mente acima da cabeça de Paolo.

— Funcionou! Funcionou! — ela cantarolava.E Marco acrescentou:

— Estávamos torcendo para que alguém men-cionasse uma certa neblina! Por acaso você teve a im-pressão de que havia nela um feitiço de cancelamentoem grande escala?

— Sim — disse Paolo.— Fomos nós quem criamos aquela neblina,

Marco e eu — Rosa revelou. — Tínhamos esperançasde impedir a luta, mas demoramos séculos para fazero feitiço, porque toda a magia de Caprona estava reu-nida naquele combate.

Paolo ficou ruminando essa informação. Aqui-lo acabava com uma prova que não dependia da pala-vra de uma Petrocchi. Talvez o tal mago não existisse,

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afinal; talvez Tonino estivesse mesmo preso na casados Petrocchi. Ele lembrou-se de que Renata só haviarevelado que Angélica estava desaparecida depois quea neblina clareou e ela conseguiu enxergar quem eleera.

— Escute, vocês dois querem vir comigo à casados Petrocchi para ver se Tonino está lá?

Ele sentiu que Rosa e Marco trocavam um o-lhar por cima da sua cabeça.

— Por quê? — Rosa quis saber.— Porque sim — Paolo respondeu. — Porque

sim. — Finalmente, a necessidade de convencê-losclareou seus pensamentos. — Porque Guido Petroc-chi disse que Angélica também está desaparecida.

— Infelizmente não vamos poder — disseMarco, num tom de lástima que dava a impressão deser sincera. — Você compreenderia se soubesse comoos nossos motivos são importantes, pode acreditar.

Paolo não compreendia. Sabia que, no casodaqueles dois, não se tratava de covardia, orgulho ouqualquer coisa assim. Isso só tornava tudo mais com-plicado.

— Ah, ninguém quer me ajudar! — ele excla-mou. Rosa rodeou-lhe os ombros com o braço.

— Paolo, você é igualzinho ao papai. Acha quetem que fazer tudo sozinho. Mas existe uma coisa quepodemos fazer.

— Chamar Crestomanci? — Marco sugeriu.Paolo sentiu que Rosa fazia um gesto de assen-

timento.— Mas ele está em Roma! — objetou.— Não tem importância — disse Marco. —

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Ele é esse tipo de mago: se estiver suficientementeperto e você precisar suficientemente dele, ele viráquando você chamar.

— Tenho que cozinhar! — Rosa exclamou,saltando de cima da mesa.

Pouco antes que o segundo jantar ficassepronto, Rinaldo voltou, cheio de animação, contandoque o Tio Umberto e o velho Luigi Petrocchi tiveramoutra briga, no salão de jantar da Universidade. Porisso Tio Umberto não aparecera para ver como o Ve-lho Niccolo estava: ele e Luigi estavam ambos de ca-ma, prostrados de exaustão. Rinaldo estivera bebendovinho com alguns estudantes que lhe descreveramtoda a briga: costeletas e macarrão voavam pelo ar,seguidos por cadeiras, mesas e bancos. O jantar dosestudantes ficou estragado. Umberto tentara afogarLuigi numa terrina de sopa, e Luigi revidara jogandosobre Umberto todo o jantar dos Doutores. Os estu-dantes planejavam entrar em greve — não por se im-portarem com o jantar estragado, mas porque o revidede Luigi mostrara-lhes que a comida dos Doutores eramelhor do que a deles.

Paolo escutava sem na realidade prestar aten-ção. Estava pensando em Tonino e perguntando-se seousava acreditar na palavra de uma Petrocchi.

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CAPÍTULO XI

Passado algum tempo, alguém chegou e levan-tou Tonino como se ele fosse um boneco de trapo.Aquilo foi muito desagradável; suas pernas e seusbraços balançavam-se em todas as direções, sem queele nada pudesse fazer para impedir. Então foi jogadoem outro lugar, muito mais escuro, e ali ficou caído,sofrendo muitos solavancos e ouvindo um ruído sibi-lante, como se ele se encontrasse numa caixa que es-tivesse sendo arrastada pelo chão. Quando o ruído e omovimento cessaram, ele constatou que conseguiamover-se. Então sentou-se, o corpo inteiro tremendo.

Estava no mesmo aposento de antes, que davaa impressão de ser muito menor: ele constatou que seficasse de pé bateria com a cabeça no pequeno lustreaceso que pendia do teto. Isso significava que ele a-gora estava maior; se antes media cerca de

oito centímetros, agora devia ter uns vinte. Osfantoches deviam ser grandes demais para o cenário, ea falsa mansão era pequena justamente para parecerque estava distante. E, com a Duquesa passando mal

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de repente, nenhum dos ajudantes dela preocupara-secom o tamanho de Tonino; simplesmente providen-ciaram que ele fosse preso novamente.

— Tonino! — Angélica chamou num cochi-cho.

Tonino virou-se e viu que metade do aposentoestava ocupada por uma pilha de bonecos sem vida.Ele distinguiu a cabeça de papelão do policial, em se-guida a do seu inimigo Carrasco e a salsicha brancaque era o bebê; na metade da pilha encontrou o rostode Angélica. Não era o rosto de Judy, mas sim o delamesma, embora inchado e molhado de lágrimas. To-nino levou a mão ao nariz. Para seu alívio, o narigãovermelho havia desaparecido, embora ele constatasseque ainda estava vestido com a camisola vermelha doSr. Punch.

— Sinto muito — disse, com a sensação de es-tar batendo o queixo. —Tentei não machucar você.Está com algum osso quebrado?

— N-não — Angélica respondeu, mas não pa-recia ter muita certeza disso. — Tonino, que foi queaconteceu?

— Eu enforquei a Duquesa — Tonino revelou,sentindo um certo orgulho cruel. — Mas não matei— acrescentou, em tom de lástima.

Angélica riu. E ficou rindo até o monte defantoches estremecer e os bonecos começarem a es-corregar para o chão. Mas Tonino não conseguia a-char graça naquilo. Ele começou a chorar, sem seimportar de estar fazendo isso na frente de uma Pe-trocchi.

— Oh, céus! — Angélica exclamou. — Toni-

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no, pare com isto! Tonino... por favor!Ela lutou para desvencilhar-se dos fantoches e

atravessou o aposento caminhando com dificuldade.Estava alta demais; sua cabeça bateu no lustre, quecomeçou a tilintar, formando sombras esquisitas so-bre eles. A menina ajoelhou-se ao lado de Tonino.

— Tonino, por favor, pare. Ela vai ficar furio-sa, assim que se sentir melhor.

Angélica ainda estava usando a touca azul deJudy e o vestido da mesma cor. Ela tirou a touca eestendeu-a para Tonino.

— Tome, assoe o nariz com isto. Eu usei aroupa do bebê. Isso me fez sentir melhor.

Ela tentou sorrir para ele, mas o sorriso ficoutorto no seu rosto inchado. A testa larga de Angélicacertamente batera no chão primeiro, e agora estavaainda maior por causa de um enorme galo vermelho.Abaixo da testa, o sorriso tinha uma aparência gro-tesca.

Tonino compreendeu que aquela careta era umsorriso e sorriu em retribuição, o melhor que pôde, jáque ainda estava batendo o queixo.

— Espere. — Angélica tornou a atravessar oaposento até a pilha de fantoches e puxou o Carrascopara fora. Voltou com a capa de feltro preta que eleusava. — Vista isto.

Tonino enrolou-se na capa e assoou o nariz natouca azul. E sentiu-se melhor.

Angélica tornou a remexer na pilha de bonecos.— Vou usar o paletó da farda do policial —

declarou. — Tonino, você deduziu?— Na verdade, não — Tonino admitiu. — Eu

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já sabia, não sei como.Ele sabia desde o momento em que avistara a

Duquesa na platéia: era ela o tal mago que estava mi-nando as forças de Caprona e atrapalhando os feitiçosda Casa Montana. Tonino não tinha certeza a respeitodo Duque — que provavelmente era burro demaispara ter alguma importância. Apesar dos encanta-mentos da Duquesa, no entanto, os feitiços da CasaMontana — e da Casa Petrocchi — certamente aindaeram suficientemente fortes para representarem umobstáculo para ela. De modo que ele e Angélica ha-viam sido raptados para que ela, como preço do res-gate, pudesse obrigar as duas casas a parar de produzirfeitiços. Mas se elas parassem, Caprona estaria perdi-da. O mais assustador era que Tonino e Angélica e-ram as duas únicas pessoas que sabiam e a Duquesanão se importava que eles soubessem. O motivo dis-so? Ora, nem sequer uma pessoa esperta como Paolopensaria em procurá-los no Palácio Ducal, dentro deum teatrinho de marionetes; além disso, era óbvio queas duas crianças estariam mortas antes que alguém asencontrasse.

— Definitivamente temos que fugir daqui —Angélica declarou. — Antes que ela melhore do quaseenforcamento.

— Ela deve ter pensado nisso — Tonino res-pondeu.

— Não tenho tanta certeza assim. Dava paraver que todos ficaram muito perturbados. Eles deixa-ram que eu visse você ser colocado aqui por um bu-raco no chão, e acho que podemos sair por lá tam-bém. Vai ser mais fácil, agora que estamos maiores.

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Tonino prendeu a capa em torno do corpo elutou para ficar de pé, embora se sentisse quase queexausto e dolorido demais para isso. Ainda por cima,sua cabeça bateu no lustre. Enormes sombras treme-luzentes voejaram pelo aposento, fazendo com que osfantoches empilhados parecessem estar se contor-cendo.

— Por onde foi que me colocaram aqui? — eleperguntou.

— Exatamente por onde você está parado—Angélica informou.

Tonino recuou até encostar-se nas janelas eexaminou o local. Não havia como saber que ali exis-tia uma abertura. Depois, porém, que Angélica lhecontou, ele conseguiu distinguir uma linha negra finís-sima, disfarçada pelos arabescos do tapete pintado epela luz que oscilava. A linha formava o contorno deum retângulo mais ou menos do tamanho da mesa dejantar. A bandeja com comida provavelmente entraratambém por ali.

— Cante um feitiço de abertura — Angélicaordenou.

— Não conheço nenhum — Tonino foi obri-gado a confessar. Pela rigidez da postura de Angélica,Tonino percebia que ela estava tentando não dizeralgumas coisas desagradáveis.

— Bom, eu não tenho coragem. Você viu oque aconteceu na última vez — ela disse. — Se eufizer alguma coisa, ela vai nos pegar outra vez e noscastigar nos transformando em fantoches. E eu nãoconseguiria suportar isto de novo.

Tonino também não tinha certeza de conseguir

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suportar, embora achasse, agora que pensava no as-sunto, que aquilo não havia sido para castigá-los pelatentativa de fuga; era provável que antes disso a Du-quesa já pretendesse fazer com que eles representas-sem. Ela era suficientemente malvada para isso. Poroutro lado, ele não tinha certeza de conseguir suportaroutro dos feitiços malfeitos de Angélica.

— Bom, é apenas um alçapão. Deve estar fe-chado por um ganchinho — ele disse. — Vamos ten-tar bater nele com os castiçais.

— E se houver um feitiço nele? — Angélicaperguntou. — Ah, está bem, vamos tentar.

Cada um deles pegou um castiçal e ajoelhou-seao lado das janelas, pondo-se a bater diligentementeem cima da linha negra quase invisível. O papelão eragrosso e rijo; logo os castiçais ficaram parecendo ár-vores secas de metal. Mas eles conseguiram fazer umamassado no meio de uma das bordas da porta es-condida. Tonino achou que conseguia enxergar umbrilho metálico, e ergueu o castiçal entortado para darum golpe poderoso.

— Pare! — Angélica sibilou.De algum lugar vinha o ruído de passos arras-

tados. Tonino foi baixando devagarinho o castiçal emal ousava respirar. Uma voz distante resmungava:

— Nada por aqui... Devem ser ratos...De repente ficou muito mais escuro; alguém

havia apagado uma luz, deixando-os com apenas aluminosidade azulada do pequeno lustre. Os passosafastaram-se. Uma porta bateu, e o silêncio voltou areinar.

Angélica largou o castiçal no chão e começou a

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tentar rasgar o papelão com os dedos. Tonino levan-tou-se e afastou-se dali. Não adiantava; fosse o quefosse que eles tentassem, alguém escutaria. O Palácioestava cheio de lacaios e soldados. Tonino teria desis-tido, preferindo esperar que a Duquesa fizesse o pior— só que, agora que ele estava de pé, o aposento depapelão parecia-lhe muito pequeno. Metade dele es-tava cheia de fantoches; mal havia espaço para move-rem-se. Tonino teve vontade de jogar-se contra asparedes aos gritos. Chegou a fazer um movimento, ebateu contra a mesa. Como ele agora estava muitomaior e mais pesado, a mesa oscilou e estalou.

— Já sei! — exclamou. — Termine de fazer oAnjo! O galo da testa de Angélica voltou-se para ele.

— Não estou com disposição para desenhar.— Não é um desenho, é um feitiço — Tonino

explicou. — E depois puxe a mesa para cima de nósenquanto fazemos um buraco no alçapão.

Angélica não precisava que ele lhe dissesse queo Anjo era o feitiço mais poderoso de Caprona. Elajogou o castiçal para o lado e levantou-se com esfor-ço.

— Pode ser que funcione — disse. — Sabe,para um Montana até que você tem idéias muito boas.

Ela tornou a bater com a cabeça no lustre. Naconfusão das sombras que oscilavam, eles não conse-guiram encontrar a torneira que Angélica havia usadopara desenhar. Foi preciso Tonino enfiar a cabeça e obraço dentro do minúsculo banheiro e arrancar a ou-tra torneira falsa.

Mesmo quando a luz parou de balançar-se eradifícil enxergar o Anjo arranhado no tampo da mesa.

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Ele agora dava a impressão de ser fraco e pequeno.— Ele precisa do pergaminho — Angélica de-

clarou. — E é melhor eu colocar uma auréola, para tercerteza de que ele é santo.

Angélica estava agora tão maior e mais forteque a todo momento deixava cair a torneira. A auréolaque ela desenhou arranhando a mesa ficou grandedemais, e ela não conseguia acertar o pergaminho. Amesa balançava-se de um lado para outro, a torneiraresvalava e havia o perigo de que o desenho do Anjoterminasse como uma coisa inteiramente diferente.

— É tão difícil! — Angélica queixou-se. — Se-rá que assim está bom?

— Não — Tonino declarou. — Vai ser precisoum pergaminho mais desenrolado. No nosso Anjo,algumas das palavras aparecem.

Porque ele tinha razão, Angélica perdeu a cal-ma.

— Está certo! Faça você mesmo, se é tão es-perto, seu Montana horroroso!

Ela estendeu a torneira para Tonino e ele ar-rancou-a da mão dela, igualmente furioso.

— Olhe — disse, arrancando uma longa tira deverniz. — Aqui está o pedaço que fica pendurado. Eas palavras ficam de lado. Dá para ver “Carmen pa”,“Venitang”, “Cap” e muitas outras letras, mas não vaihaver espaço para tudo.

— O nosso Anjo diz “cis saeculare”, “elus cantare”e “virtus data perto do final — informou Angélica.

Tonino continuou arranhando, sem lhe prestaratenção. Já era suficientemente difícil desenhar letrasminúsculas usando uma torneira como instrumento,

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sem precisar escutar as broncas de Angélica.— Ora, é isto mesmo! — Angélica continuou.

— Muitas vezes fiquei pensando por que será que nãosão as palavras que nós cant...

Os dois tiveram a mesma idéia. Olharam umpara o outro, nariz com nariz por cima do verniz ar-ranhado.

— Encontrar as palavras não significa inventar,e sim procurar as palavras — Tonino declarou.

— E elas estavam o tempo todo em cima dosnossos portões! Ah, como fomos burros! — Angélicaexclamou. — Vamos, temos que fugir logo!

Tonino abandonou o pergaminho com as letras“Carmen” arranhadas nele. Na realidade, não haviamesmo espaço para outras letras. Os dois arrastaram amesa frouxa e barulhenta por cima do buraco que ha-viam feito no chão e puseram-se a trabalhar debaixodela, arrancando pedaços do chão pintado.

Logo depois eles encontraram uma barra demetal prateado que ia do alçapão até o piso abaixodeles. Tonino forçou a ponta de um dos castiçais en-tre as bordas rasgadas do papelão e fez força com ocastiçal lateralmente.

— Há um feitiço nele — disse.— Anjo de Caprona — Angélica disse no

mesmo momento.E a barra deslizou para um lado. Um grande

pedaço retangular de chão baixou, perto dos joelhosdeles, e ficou pendurado, deixando um buraco muitofundo e escuro.

— Vamos pegar a corda do Carrasco — Angé-lica sugeriu. Os dois foram até a pilha de fantoches e

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desfizeram o nó que prendia a corda da forca no ca-dafalso. Tonino amarrou-a no pé da mesa.

— É uma descida grande — comentou, hesi-tando.

— Na verdade, não chega a um metro — An-gélica afirmou. — E não somos suficientemente pe-sados para nos machucarmos. Eu fiquei toda molengaquando você me chutou para fora do palco e... bom...de qualquer maneira, não quebrei nenhum osso.

Tonino deixou Angélica ir primeiro, e ela des-ceu pela corda para o espaço escuro como um vigo-roso macaco azul. A mesa começou a produzir estali-dos diversos, e a inclinar-se na direção da perna ondea corda estava amarrada.

— Anjo de Caprona! — Tonino sussurrou.A mesa começou a entrar no alçapão. A caixa

de papelão sacudiu-se. E, com muitos estalidos, amesa ficou entalada na abertura, a maior parte deladentro do aposento, mas com um dos cantos parafora. Houve um ruído seco vindo de baixo. Toninoteve certeza de que agora estava preso para semprenaquela sala.

— Já cheguei ao chão — Angélica disse numcochicho alto. — Você pode puxar a corda para cima.Ela chega quase ao chão.

Tonino inclinou-se e puxou a corda. Tinhacerteza de que havia acontecido um milagre. Aquelaperna de mesa deveria ter se quebrado, e a mesa deve-ria ter passado inteira pelo buraco. Ele sussurrou maisuma vez:

— Anjo de Caprona!E deslizou por baixo da mesa para a escuridão.

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A mesa estalou assustadoramente, mas ficouinteira. O barbante queimava as mãos de Tonino en-quanto ele deslizava para baixo, e de repente ele aca-bou. Quase que no mesmo instante os pés dele atin-giram o chão com violência.

— Ufa! — ele exclamou. Tinha a impressão deque seus pés haviam entrado para dentro das pernas.

Os dois estavam de pé no piso encerado de umaposento do Palácio. As paredes altíssimas do teatrode fantoches rodeavam-nos por três lados. No lugarda quarta parede havia uma cortina de pano, feita paraesconder o manipulador dos bonecos. Pelas bordas dacortina entrava uma luz bastante fraca. Eles ergueramuma das pontas do pano. Era áspero e pesado, comopano de saco. No outro lado da cortina ficava a pare-de do aposento; mal havia espaço para Angélica e To-nino espremerem-se e saírem de trás do teatrinho,passando para uma sala ampla, iluminada pelo luarque entrava pelos quadrados de vidro da janela e for-mava blocos prateados sobre o piso lustrado.

Era a mesma sala onde os cortesãos haviam as-sistido à representação. Decerto, na confusão, haviamsimplesmente empurrado o teatrinho para perto daparede. Tonino lembrou-se de que ele e Angélica ha-viam parado, cambaleantes, na borda do palco, o-lhando para o vazio. Aquilo lhe parecia outro milagre:podiam ter morrido! Depois de transformados emfantoches eles provavelmente foram guardados emalgum tipo de depósito e, quando a Duquesa passoumal tão misteriosamente, ninguém se preocupou emguardá-los de volta lá.

A lua brilhava no rosto polido do Anjo incli-

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nado para fora, bem no alto, acima das portas duplasno outro lado do salão. Havia outras portas, mas To-nino e Angélica, sem hesitarem, encaminharam-se nadireção do Anjo. Ambos o tomaram como guia.

— Ah, droga, ainda estamos pequenos! —Angélica exclamou, antes de terem chegado ao pri-meiro bloco de luar. — Pensei que teríamos o nossotamanho normal assim que saíssemos de lá. Vocêtambém não achava?

A única idéia de Tonino era escapar, fosse qualfosse o seu tamanho.

— Assim ficará mais fácil nos escondermos —ele argumentou. — Alguém na sua casa poderá facil-mente devolver o seu tamanho normal.

Ele enrolou mais a capa do Carrasco em voltado corpo e estremeceu. Estava mais frio ali, no apo-sento amplo. Ele via a lua através das grandes janelas,bem alta e fria no céu azul-escuro de inverno. Nãoseria divertido correr pelas ruas metido numa camiso-la vermelha.

— Mas é que estou detestando ser tão pequena!— Angélica queixou-se. — E nunca conseguiremosdescer as escadas...

Ela tinha razão em reclamar, como Tonino de-pressa descobriu: a travessia do piso encerado pareciater quilômetros. Quando finalmente chegaram àsportas duplas, estavam exaustos. Acima deles, bemalto, o Anjo entalhado segurava um pergaminho queeles não tinham condições de ler, e já não parecia tãoamigável. A porta estava quase fechada, mas haviauma pequena fresta entre as duas folhas. Os doisconseguiram aumentar essa fresta apoiando as costas

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contra a borda de cada folha e empurrando. Era en-louquecedor pensar que poderiam abri-las com umasó mão, se tivessem o seu tamanho normal.

O aposento contíguo era ainda maior. E eracheio de cadeiras e mesinhas. A única vantagem deterem o tamanho de bonecos era que eles podiam ca-minhar em linha reta, por baixo de todos os móveis,até a porta, que lhes parecia distante demais. Era co-mo andar com dificuldade através de uma florestadourada iluminada pelo luar, onde cada árvore tinhaseu tronco elegantemente curvo como o pescoço deum cisne. O piso dava a impressão de ser de mármo-re.

Antes que chegassem à porta, estavam discu-tindo mais uma vez, devido ao extremo cansaço.

— Vamos levar a noite inteira para sair daqui!— Angélica resmungou.

— Ah, cale a boca! Você reclama mais do que aminha Tia Gina!

— Será que a sua Tia Gina está toda doloridaporque você lhe deu uma surra? — Angélica retrucou.

Quando finalmente chegaram à porta entrea-berta, só havia mais um aposento, um pouco menordo que os outros. E possuía um tapete e também, es-palhados, sofás com pintura dourada que lhes pare-ciam grandes como celeiros, e poltronas embabada-das. Angélica soltou um gemido de desespero.

Tonino pôs-se na ponta dos pés. Ele tinha aimpressão de que havia almofadas em cima de algunsdos assentos.

— E se nos escondermos debaixo de uma al-mofada para passarmos a noite? — ele sugeriu, ten-

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tando fazer as pazes.Angélica voltou-se furiosamente para ele:— Seu burro! Não admira que você seja anal-

fabeto em feitiços! Podemos estar pequenos, mas elespodem nos encontrar, justamente por isso! Nós de-vemos estar recendendo de magia. Até meu irmãozi-nho conseguiria nos encontrar. Mesmo sendo um be-bê ele é mais esperto do que você!

Tonino ficou tão furioso que não conseguiuresponder. Simplesmente saiu pisando forte. A princí-pio o tapete foi um alívio para os seus pés doloridos,mas logo tornou-se outro suplício. Era como cami-nhar através de um pasto de capim alto e peludo — equem quer que tenha feito isto por mais de um qui-lômetro sabe como é cansativo. Ainda por cima, atodo momento eles eram obrigados a rodear poltro-nas almofadadas que pareciam volumosas como casas,pufes embabadados e biombos extensos como tapu-mes. Algumas daquelas coisas proporcionariam umbom esconderijo, mas os dois estavam nervosos e as-sustados demais para sugerir tal coisa.

Então, quando finalmente chegaram à porta,ela estava fechada. Os dois se jogaram contra a ma-deira; a porta nem sequer estremeceu.

— E agora? — Tonino perguntou, apoiando ascostas na porta.

A essa altura a lua estava bem baixa. O tapetesumia na escuridão. As barras de luar que entravampelas janelas distantes tocavam apenas no alto daspoltronas, ou realçavam o ouro no encosto dos sofás,ou então cintilavam nos jarros de vidro colorido sobreuma prateleira. Logo estaria totalmente escuro.

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— Há um Anjo ali em cima — Angélica ob-servou fatigadamente.

Ela tinha razão. Tonino mal conseguia vê-locomo faíscas coloridas na madeira, iluminadas peloluar refletido pelos vasos coloridos. Havia outra portaabaixo do Anjo — ou, melhor, um espaço escuro,porque aquela porta estava escancarada. Cansado de-mais até mesmo para falar, Tonino recomeçou a andarpara o outro lado da sala, atravessando um quilômetrode tapete peludo e rodeando penhascos de mobília.

Quando chegaram à porta aberta, estavam tãocansados que nada mais lhes parecia real. Do outrolado da porta havia quatro degraus que desciam. Mui-to bem. De um modo ou de outro eles os desceram.No final havia um tapete ainda mais brutalmente pe-ludo. A escuridão era profunda.

Angélica farejou a escuridão.— Charutos — sussurrou.Para Tonino podiam ser até mariscos, tanto fa-

zia: tudo o que ele queria era chegar até a porta se-guinte. Foi em frente, tateando pelas paredes, comAngélica atrás dele aos tropeços. Trombaram nummóvel imenso, tatearam à volta dele e trombaram emoutro, um pouquinho acima do chão e sobressaindoainda mais no aposento. E assim seguiram os dois,tropeçando e trombando nas coisas, passando porcima de duas barras de metal redondas, arrastando ospés através do tapete, até que chegaram novamenteaos quatro degraus. Era uma saleta bem pequena —para o Palácio — e só tinha uma porta! Tonino tateouprocurando o primeiro degrau, que era da altura dasua cabeça, e ficou com a certeza de que não teria

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forças para conseguir subi-los novamente. Afinal, oAnjo não havia sido um guia...

— Aquela parte que sobressaía, não sei o queera, mas era oca, como uma caixa — disse Angélica.— Será que devemos correr o risco de nos escon-dermos ali?

— Vamos até lá — Tonino decidiu.Eles a encontraram, ou alguma coisa parecida,

ao trombarem com ela. Era uma caixa cujas paredeschegavam às axilas deles. Havia uma grande peça demetal, como se fosse uma aldrava, porém bem larga,presa na frente da caixa. Quanto tatearam dentro dela,encontraram o que lhes parecia ser couro rígido e ou-tro material que possivelmente era papel.

— Acho que é uma gaveta aberta — disse To-nino.

Angélica não respondeu; simplesmente trepoupara dentro dela. Tonino ouviu os ruídos que elaproduzia no meio dos papéis — se era mesmo papel.Ele pensou: bom, e foi ela quem disse que cheiramosa magia! Mas estava tão cansado que subiu para a ga-veta, também, e caiu sobre um aconchegante ninho depapel amassado onde Angélica já estava adormecida.A essa altura, Tonino estava quase que cansado de-mais para se importar se seriam ou não descobertos.Mas teve a sensatez de puxar uma folha de pergami-nho sobre os dois, antes de pegar no sono também.

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CAPITULO XII

Quando Tonino acordou, sentia-se friorento econfuso. A luz era pálida e amarela, porque a cobertaestava sobre o seu rosto. Tonino ergueu os olhos, a-chando que aquele lençol era surpreendentementerígido. Além disso, havia nele grandes letras pretas.Seus olhos seguiram as letras. Ele leu: DECLARA-ÇÃO DE GUERRA (Cópia em Duplicata).

Então, com um sobressalto, ele lembrou-se deque estava com 20 centímetros de altura e deitadonuma gaveta no Palácio. E era dia claro! Alguém osencontraria! Aliás, alguém quase os encontrara, e tinhasido isso que o havia acordado. Ele escutava umapessoa movimentando-se pelo aposento, ocasional-mente assobiando um trecho de “O Anjo de Capro-na”.

Quem quer que fosse, chegou à gaveta. Toninoescutava o chão estalar sob o peso da pessoa, e o ro-çar alto e próximo de um vestido. Ele moveu a cabeça

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com cuidado e encontrou o rosto assustado de Angé-lica descansando sobre um papel amassado, a poucoscentímetros do rosto dele. O roçar do vestido mos-trava que a pessoa era uma mulher. Devia ser a Du-quesa procurando por eles.

— Esse Duque! — exclamou a pessoa, numavoz que nenhuma Duquesa usaria. — Nunca vi umhomem tão bagunceiro!

De repente a respiração da pessoa aproxi-mou-se. Antes que Tonino ou Angélica pudessempensar no que fazer, a gaveta moveu-se. Indefesos, osdois foram empurrados para dentro da escuridãoquando a gaveta se fechou com ruído atrás da cabeçadeles.

— Socorro! — Angélica sussurrou.— Psiu!A criada ainda se encontrava na sala. Elas a es-

cutaram mover alguma coisa, e depois o som de notasmusicais quando ela tirou o pó de um piano. Entãoum ruído seco. E finalmente, nada. Quando tiveramcerteza absoluta de que ela havia ido embora, Angélicacochichou:

— Que é que vamos fazer agora?Na gaveta havia altura suficiente para eles se

sentarem eretos, porém pouco mais que isso. Acimada cabeça deles havia uma fresta iluminada, onde agaveta encontrava a frente da escrivaninha — ou fos-se o que fosse aquele móvel — e não havia jeito deabri-la. Mas eles conseguiam enxergar bastante bem;entrava luz pelos fundos da gaveta, atrás dos pés de-les. Os dois tentaram firmar as mãos na madeira aci-ma deles e puxar, mas a gaveta era feita de uma ma-

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deira sólida e perfumada, e eles não conseguiram mo-vê-la.

— Estamos sempre sendo fechados em lugaressem portas! — Angélica exclamou.

E saiu aos tropeços em direção aos fundos dagaveta, por onde a luz entrava. Tonino rastejou atrásdela.

Assim que chegaram lá, eles se deram conta deque ali havia uma saída: a madeira dos fundos da ga-veta era mais baixa do que a da frente, portanto nãopreenchia inteiramente o espaço, deixando ali umaboa fenda. Quando eles enfiaram a cabeça nesse es-paço, viram os fundos das outras gavetas, acima dasua, subindo como uma escada de pintor, e uma frestade luz do dia no alto.

Eles espremeram-se através da fenda e subi-ram, lado a lado. Era tão fácil quanto subir por umaescada. Quando faltava apenas uma gaveta para eleschegarem à fresta entre o móvel e a parede por ondeentrava a luz do dia — e por onde eles teriam de es-premer-se para valer — ouviram novamente umapessoa na sala.

— Eles desceram para cá, Senhora — disse avoz de uma dama.

— Então nós os pegamos — respondeu a vozda Duquesa.

— Procure com muita atenção.Tonino e Angélica ficaram pendurados pelas

mãos e pelos pés no lado de fora dos fundos da gave-ta, sem ousarem mexer-se. Os vestidos de seda sus-surravam enquanto a Duquesa e a sua dama movi-am-se pela sala.

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— Deste lado não há coisa alguma, Senhora.— E garanto que esta janela não foi aberta —

disse a Duquesa.— Abra todas as gavetas da escrivaninha.Houve um ronco forte acima da cabeça de To-

nino. Uma luz branca e empoeirada jorrou da gavetasuperior aberta. Os papéis dentro dela foram remexi-dos ruidosamente.

— Nada — afirmou a dama.A gaveta superior foi fechada com um ruído.

Tonino e Angélica estavam pendurados na segundagaveta. Desceram para a gaveta abaixo, o mais rapi-damente que puderam. A segunda gaveta também foiaberta ruidosamente, e fechada com força, quase osensurdecendo. A gaveta onde eles se penduravam deuum solavanco. Por sorte ela estava empenada. A damapuxou-a e sacudiu-a, o que deu a Tonino e Angélicatempo suficiente para tornarem a subir freneticamentepara a segunda gaveta e se agarrarem a ela. E ali per-maneceram, no espaço escuro e estreito, enquanto adama abria a terceira gaveta, fechava-a com força epuxava a gaveta mais baixa. Os dois esticaram o pes-coço e observaram o jorro de luz branca que vinha debaixo.

— Olhe para isto! — exclamou a dama. — E-les estiveram aqui! Parece um ninho de ratos!

A Duquesa aproximou-se depressa.— Maldição! — exclamou. — E não faz muito

tempo! Consigo sentir o cheiro deles, mesmo com ocheiro dos charutos. Depressa, eles não podem ter idomuito longe. Devem ter ido embora antes desta salater sido arrumada.

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A gaveta fechou-se, trazendo consigo a escuri-dão empoeirada. Houve um roçar de sedas quando asduas mulheres subiram apressadas os degraus para asala das poltronas, e depois o ruído seco e baixo daporta a fechar-se.

— Acha que é uma armadilha? — Angélicasussurrou.

— Não — Tonino respondeu.Ele tinha certeza de que a Duquesa não adivi-

nhara onde eles estavam. Mas agora, pelo ruído daporta, ele sabia que estavam fechados naquela sala, enão tinha idéia de como conseguiriam abrir a porta.

De qualquer maneira, até mesmo uma sala fe-chada era um espaço enorme, comparado com a es-treita fenda nos fundos das gavetas. Angélica e Toni-no empurraram e espremeram-se, forçando a passa-gem através do espaço estreito por onde entrava a luzdo dia, e finalmente alcançaram o tampo da escriva-ninha.

Antes que seus olhos se acostumassem à luz,Tonino deu uma topada com o dedão numa canetacomprida como um poste de telégrafo e depois tro-peçou num abridor de cartas que parecia uma tábuade marfim. Angélica deu um encontrão num bibelô deporcelana que ficava perto da borda e o bibelô balan-çou-se. Angélica cambaleou, depois jogou os braçosem volta do bibelô. Quando seus olhos pararam delacrimejar, ela descobriu que estava abraçada a um Sr.Punch de louça, de nariz e camisola vermelhos, maisou menos da mesma altura dela. Havia uma Judy naoutra extremidade da escrivaninha.

— Não conseguimos ficar livres destas coisas!

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— exclamou a menina.O tampo da escrivaninha era forrado com um

macio couro vermelho, muito agradável aos pés, esobre ele havia um enorme mata-borrão branco —caminhar sobre ele era ainda mais confortável. Umacadeira com o assento também forrado de courovermelho estava diante da escrivaninha, e Toninocalculou que poderiam facilmente pular para cima de-la. E até mais facilmente poderiam descer pelos pu-xadores das gavetas. Por outro lado, o piano que acriada havia limpado estava bem ao lado da escriva-ninha, e a janela redonda encontrava-se logo depoisdo canto da parede, que por sua vez ficava bem pró-ximo ao piano. Assim, para alcançar a janela bastavaum passo comprido a partir do piano. Embora aquelajanela estivesse fechada, tratava-se de um fecho apa-rentemente fácil de abrir, se as crianças conseguissemchegar até ele.

— Veja! — Angélica exclamou, apontando pa-ra alguma coisa com expressão de desagrado.

Em cima do piano havia uma fila inteira debonecos Punch e Judy. Dois eram fantoches sobresuportes, muito antigos e muito caros, a julgar pelaaparência deles; outros dois eram feitos de ouro; eainda outros dois eram figuras artísticas era argila, quedavam a Punch a aparência de um homem comum, deexpressão cafajeste, ao passo que Judy parecia-seconstrangedoramente com a Duquesa. E a partituraque estava aberta no piano tinha o seguinte título:“Arnolfini — Suíte Punch e Judy”.

— Acho que este é o Scriptorium do Duque —disse Angélica. E os dois tiveram um ataque de riso.

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Ainda rindo, Tonino passou para o teclado dopiano e saiu caminhando em direção à janela.Dó-si-lá-sol-fá, fez o piano.

— Volte! — Angélica exclamou, rindo.Tonino voltou — fá-sol-lá-si-dó — quase his-

térico de tanto rir.A porta do aposento abriu-se e alguém desceu

apressado os degraus. Angélica e Tonino não conse-guiram pensar em coisa melhor a fazer do que ficaremparados rigidamente onde estavam, na esperança deserem tomados por bonecos Punch e Judy. E feliz-mente o homem que entrou estava atarefado e preo-cupado. Ele colocou bruscamente uma pilha de papéissobre a escrivaninha sem sequer relancear um olharpara os dois novos bonecos e retirou-se apressado,fechando delicadamente a porta atrás de si.

— Ufa! — fez Angélica.Os dois foram até a frente dos papéis e, curio-

sos, espiaram o que estava no alto da pilha. Ele dizia:Relatório de Campanha às 8h00. Resumo: Tropas

avançando em todas as frentes para repelir invasão. ArtilhariaPesada e Reservistas deslocando-se fornecer apoio. A frente dePisa relata pesadas perdas. Avistada Esquadra (de Pisa?)navegando em grande velocidade para a foz do Voltava.

— Estamos em guerra! — Tonino exclamou.— Por que será?

— Porque a Duquesa nos seqüestrou e as nos-sas famílias não ousam fabricar feitiços de guerra, éclaro. Tonino, precisamos sair daqui. Precisamoscontar a eles onde estão as palavras de “O Anjo”!

— Mas por que a Duquesa quer que Capronaseja derrotada? — Tonino insistiu.

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— Não sei — Angélica admitiu. — Existe al-guma coisa errada nela, isso eu sei. Tia Bella disse quehouve uma confusão danada quando o Duque resol-veu casar-se com ela. Ninguém gosta dela.

— Vamos ver se conseguimos abrir a janela —Tonino propôs, e tornou a partir por cima do teclado:dó-si-lá-sol-fá-mi-ré...

— Quieto! — Angélica exclamou.Tonino descobriu que as notas não soariam se

ele colocasse cada pé devagar e com muito cuidado.Estava na metade do teclado, e Angélica já tinha es-tendido uma perna para acompanhá-lo, quando ouvi-ram alguém abrindo novamente a porta. Não davatempo de ter cautela: Angélica voou de volta para aescrivaninha. Tonino, produzindo um som horrivel-mente desafinado, disparou pelas notas pretas e es-premeu-se atrás da partitura.

Bem a tempo. Tonino — que estava espremidocom o rosto e os pés virados para um lado, como asfiguras nos hieróglifos egípcios — viu o Duque deCaprona em pessoa, de pé diante da escrivaninha. To-nino achou que o Duque dava a impressão de estar aomesmo tempo confuso e triste. Estava dando tapinhascom o Relatório de Campanha contra os dentes e pa-recia não ter percebido Angélica de pé entre o Punche a Judy em cima da escrivaninha, embora Angélicapestanejasse por causa do brilho dos botões do Du-que.

— Mas eu não declarei guerra! — disse o Du-que para si mesmo. — Como poderia? Estava assis-tindo ao espetáculo de fantoches! — Ele suspirou emordeu o relatório entre duas fileiras de dentes gran-

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des e brilhantes. — Será que estou mesmo ficandomaluco? — perguntou.

Dava a impressão de estar falando com Angé-lica, mas ela teve o bom senso de não responder.

— Preciso ir perguntar a Lucrezia — o Duquedeclarou. Então jogou o Relatório de Campanha aospés de Angélica sobre a escrivaninha e saiu apressadodo escritório.

Tonino escorregou cautelosamente pela tampado piano para cima do teclado outra vez, tocando du-as notas. Angélica agora estava de pé na extremidadedo piano, e apontava para a janela. Estava muda depavor.

Tonino olhou — e por um instante ficou tãoassustado quanto Angélica. Havia um monstro mar-rom de olhos fixos nele do outro lado do vidro, tododesgrenhado, com um focinho largo e os olhos enor-mes. A coisa tinha olhos como lamparinas amarelas.

Fracamente, através do vidro, chegou um pe-dido levemente irritado para que ele se controlasse eabrisse a janela.

— Benvenuto! — Tonino gritou.— Ah... é só um gato — Angélica falou com

voz trêmula. — Como deve ser horrível ser rato!— Só um gato? — Tonino repetiu em tom es-

candalizado. — Este é Benvenuto!Ele tentou explicar a Benvenuto que não era

fácil abrir janelas quando se tinha apenas 20 centíme-tros de altura. A resposta impaciente de Benvenutofoi colocar diante dos olhos mentais de Tonino omais recente livro de exercícios de magia, aberto emuma das primeiras páginas.

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— Ah, obrigado — Tonino disse, com certavergonha. Naquela página havia três feitiços de aber-tura, e nenhum deles lhe ficara na lembrança. Ele es-colheu o mais fácil, fechou os olhos para conseguir lercom mais clareza a página imaginária e entoou o fei-tiço.

Com facilidade e delicadeza a janela abriu-seinteiramente, deixando entrar uma rajada de ventofrio. Benvenuto entrou junto com o vento e quaseque com a mesma leveza. Enquanto o gato percorriao teclado em sua direção, Tonino teve outro instantede sensação exata de como um rato se sentia. Entãoesqueceu-a, na alegria de ver Benvenuto. E abriu bemos braços para esfregar Benvenuto atrás das orelhascheias de cicatrizes.

Benvenuto encostou o focinho preto e pegajo-so no rosto de Tonino e os dois ali ficaram, delicia-dos, pressionando as teclas de um longo acorde dis-sonante no piano.

Benvenuto disse que Paolo não era suficiente-mente esperto e que ele não conseguira fazer com queo menino compreendesse onde Tonino estava. Toni-no precisava mandar uma mensagem para Paolo. Comaquele tamanho, será que ele conseguiria escrever?

— Há uma caneta ali na escrivaninha — disseAngélica de longe.

E Tonino lembrou-se de que ela havia dito queconseguia compreender os gatos. Benvenuto, comcerta ansiedade, quis saber se Tonino se importava seele conversasse com uma Petrocchi.

Por um instante aquela pergunta deixou Toni-no atônito: o menino se esquecera inteiramente de

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que ele e Angélica deveriam se odiar. Aquilo lhe pare-cia uma grande perda de tempo, estando ambos na-quela enrascada.

— Nem um pouco — respondeu.— Desçam deste piano, vocês dois — Angélica

pediu. — Este som é horrível.Benvenuto obedeceu, com um salto longo e

gracioso. Tonino desceu com esforço atrás dele,prendendo os cotovelos acima da tampa do piano eempurrando-se para a frente de encontro às notaspretas. Quando ele conseguiu chegar à escrivaninha,Benvenuto e Angélica já haviam se apresentado for-malmente um ao outro, e Benvenuto aconselhava-os anão tentar sair pela janela: aquela sala ficava num ter-ceiro andar. Os ornamentos de pedra estavam se des-fazendo, e até mesmo um gato teria alguma dificulda-de em se equilibrar. Se eles esperassem, Benvenutotraria socorro.

— Mas a Duquesa... — Tonino começou aprotestar.

— É o Duque — Angélica acrescentou. —Este aqui é o escritório do Duque.

Benvenuto declarou que considerava o Duqueinofensivo por si só. Na sua opinião, eles estavam nolugar mais seguro do Palácio. Deviam permanecerescondidos e escrever um bilhete suficientemente pe-queno para ele carregar na boca.

— Não seria melhor se prendêssemos o bilheteem volta do seu pescoço? — Angélica perguntou.

Benvenuto objetou que jamais admitira algumacoisa era volta do pescoço, e não ia começar agora.De qualquer maneira, alguém no Palácio poderia ver a

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mensagem.Então Tonino colocou um pé sobre o Relatório

de Campanha e conseguiu, puxando com as duasmãos, rasgar um canto da folha. Angélica passou-lhe acaneta enorme, que ele precisou segurar com as duasmãos, com a ponta descansando sobre o seu ombro.Ela então ficou de pé sobre o papel, para mantê-lopreso enquanto Tonino movimentava a caneta. Foium trabalho tão difícil que ele fez a mensagem maiscurta possível: “No Palácio do Duque. Duquesa feiticeira.T. M. e A. P.?”.

— Conte-lhes sobre a letra de “O Anjo”, sópara prevenir — Angélica sugeriu.

Tonino virou o papel e escreveu “Letra de “OAnjo” no Anjo acima do portão. T. e A.”. Então, exaustode tanto movimentar a caneta para cima e para baixo,ele dobrou o pedaço de papel com a última mensagempara dentro e a primeira para fora, e pisou nela paraachatá-la. Benvenuto abriu a boca e Angélica fez umacareta ao ver aquela caverna cor-de-rosa com seu tetoarqueado e enrugado e suas fileiras de dentes brancos.Tonino colocou a mensagem em cima da língua áspe-ra de Benvenuto. O gato lançou a Tonino um olharcarinhoso e afastou-se num salto. Fez soar uma últimanota no teclado do piano, pousou rapidamente naborda da janela e então desapareceu de vista.

Tonino e Angélica ficaram olhando naquela di-reção e não perceberam, até que fosse tarde demais,que o Duque havia retornado.

— Engraçado, temos um novo Punch, e tam-bém uma nova Judy — disse este.

Tonino e Angélica ficaram duros como postes,

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um de cada lado do mata-borrão, em poses agonian-temente desconfortáveis. Felizmente o Duque perce-beu a janela aberta.

— Benditas criadas com sua mania de ar fres-co! — resmungou, e foi fechá-la.

Tonino aproveitou a oportunidade para apoi-ar-se nos dois pés, e Angélica para desentortar o pes-coço. Então ambos deram um pulo — de algum lugarabaixo deles veio o som inconfundível de um disparode arma de fogo. E mais um. O Duque debruçou-separa fora da janela e, ao que parecia, ficou contem-plando alguma coisa.

— Pobre bichano — disse. Parecia triste e re-signado. — Por que não ficou longe, bichano? Eladetesta gatos. E fazem tanta algazarra atirando neles...

Outro tiro soou, e depois vários mais. O Du-que endireitou-se, sacudindo tristemente a cabeça.

— Ora, ora — disse, enquanto fechava a janela.— Afinal, eles devoram os passarinhos...

Voltou a atravessar o escritório. Tonino e An-gélica não conseguiriam mover-se, mesmo que qui-sessem. Estavam ambos perturbados demais.

O rosto do Duque encolheu-se em rugas bri-lhosas; ele havia notado o papel do Relatório rasgadono canto.

— E agora dei para comer papel! — exclamou.Voltou o rosto triste e perplexo para Tonino e Angé-lica. — Acho que esqueço mesmo as coisas — conti-nuou. — E falo sozinho. Isto é um mau sinal. Masrealmente não me lembro de vocês dois. Pelo menos,eu me lembro de uma nova Judy. — Voltou-se paraTonino. — Mas não me lembro de você. Como foi

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que chegou aqui?Tonino estava preocupado demais com Ben-

venuto para pensar com clareza. Afinal de contas, oDuque estava falando com ele.

— Por favor, senhor, posso explicar... — co-meçou.

— Cale a boca! — exclamou Angélica em tomríspido. — Senão vou cantar um feitiço!

— Mas por favor me diga se atiraram no meugato — Tonino continuou.

— Acho que sim — disse o Duque. — Pareceque ele foi atingido.

No mesmo momento ele inspirou profunda-mente e ergueu os olhos com cautela para o teto, an-tes de tornar a olhar para Tonino e Angélica. Nenhumdos dois moveu-se. Angélica olhava com raiva paraTonino, com promessas de feitiços inimagináveis seele pronunciasse outra palavra. De qualquer maneira,Tonino já sabia que havia sido um perfeito idiota.Benvenuto estava morto e não havia sentido em mo-ver-se — não havia sentido em coisa alguma.

O Duque, enquanto isso, puxava lentamenteum lenço do bolso. Um charuto ligeiramente amas-sado saiu junto com o lenço e caiu em cima da escri-vaninha. O Duque pegou-o e colocou-o distraida-mente entre os dentes brilhantes. Então teve que tor-nar a retirá-lo para enxugar o rosto luzidio.

— Vocês dois falaram — disse, guardando olenço e pegando um isqueiro de ouro. — Sabem dis-so? — perguntou, tornando a colocar o charuto naboca. Lançou um olhar furtivo ao seu redor, acionouo isqueiro e acendeu o charuto. — Vocês estão o-

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lhando para um coitado de um Duque caduco —continuou.

De sua boca saía fumaça junto com as palavras,como se o Duque fosse um dragão.

Angélica espirrou. Tonino achou que ia espirrartambém; respirou bem fundo, para conter-se, e teveum acesso de tosse.

— Ah! Peguei vocês! — exclamou o Duque.Estendeu rapidamente as mãos grandes e úmi-

das e agarrou cada um deles em volta das pernas. Se-gurando-os assim, firmemente presos ao mata-borrão,ele sentou-se na cadeira e inclinou o rosto triunfante ebrilhoso até ficar no mesmo nível deles. O charuto,pendurado a um lado da boca, continuava a lançarfumaça sobre eles. As duas crianças puseram-se a sa-cudir os braços, tentando equilibrar-se, e a tossir semparar.

— Agora digam: o que são vocês? — o Duqueperguntou. — Outro dos diabólicos truques dela ten-tando me fazer pensar que estou maluco? É isto?

— Não somos, não! — Tonino tossiu.— Ah, por favor, pare de soltar esta fumaça —

Angélica tossiu ao mesmo tempo.O Duque riu.— A velha tortura chinesa do charuto, com a

garantia de dar vida a estátuas! — disse, em tom ale-gre.

Mas sua mão direita moveu Tonino, tropeçan-do e oscilando, por cima do mata-borrão, até Angéli-ca, onde com a mão esquerda agarrou-o junto comela. Com a mão direita ele tirou o charuto da boca epousou-o na borda da escrivaninha.

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— Pronto. Agora vamos dar uma olhada emvocês.

Os dois esfregaram os olhos cheios de lágrimase olharam, temerosos, para o enorme rosto sorridente.Era impossível ver todo ele de uma só vez. Angélicaescolheu o olho esquerdo do Duque, e Tonino ficoucom o direito. Ambos os olhos estavam arregaladospara eles, redondos e inocentes, como os do VelhoNiccolo.

— Ora, vejam! — o Duque exclamou. — Vo-cês são os filhos dos feiticeiros, que deveriam tervindo à minha pantomima! Por que não vieram?

— Nunca recebemos um convite, Vossa Graça— Angélica respondeu. — Você recebeu? — ela per-guntou a Tonino.

— Não — respondeu este em tom melancóli-co.

O rosto do Duque tomou uma expressão dedesânimo.

— Então é isso. Acontece que eu mesmo es-crevi os convites. Esta é a minha vida: nenhuma dasordens que eu dou é cumprida, e muitas coisas quejamais ordenei acontecem. — Ele abriu lentamente amão. Os dedos grandes e quentes deixaram úmidas aspernas dos meninos. — Contorcendo-se desse jeito,vocês fazem cócegas nas minhas mãos — disse. —Pronto, se eu deixar vocês soltos, vão me contar co-mo chegaram até aqui?

Eles então contaram-lhe tudo, com uma ouduas pausas forçadas quando ele dava uma tragada nocharuto e os fazia tossir novamente. O Duque escu-tou Pensativamente. Não era como explicar alguma

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coisa a um Duque adulto: Tonino tinha a sensação deestar contando aos seus priminhos pequenos umahistória inventada. Pelo modo como os olhos do Du-que se arregalavam, e o modo como ele ficava dizen-do: “Continuem!”, Tonino tinha certeza de que oDuque não estava acreditando mais do que os pe-quenos Montana acreditavam na história de Joãozinhoe o pé de feijão.

No entanto, quando eles terminaram o Duquedisse:

— Aquela apresentação de Punch e Judy co-meçou às 8h30 e foi até as 9h15. Eu sei, porque haviaum relógio acima de vocês. Dizem que declarei guerraontem à noite às 9 horas. Algum de vocês me viu de-clarando guerra?

— Não! — disseram os dois. Angélica acres-centou, em tom raivoso:

— Eu estava sendo morta a pancadas naquelemomento, e posso não ter percebido.

— Lamento muito — disse o Duque. — E al-gum de vocês escutou tiros? Não? Mas o tiroteio co-meçou por volta das 11 horas e durou a noite inteira.Ainda estão atirando. Dá para ver, mas não para es-cutar, da torre que fica acima deste escritório. O quesignifica outro maldito feitiço, eu imagino. Acho quepretendem que eu fique sentado aqui sem perceberque Caprona está sendo feita em ruínas ao meu redor.

Ele descansou o queixo nas mãos e ficou o-lhando para os dois com expressão infeliz.

— Sei que sou bobo, mas só porque adoro pe-ças e teatros de fantoches não quer dizer que sou umidiota — disse. — A questão é a seguinte: como é que

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vamos tirar vocês dois daqui sem que Lucrezia perce-ba?

Para Tonino e Angélica a surpresa e a gratidãoforam quase que grandes demais para que eles conse-guissem dizer alguma coisa. E enquanto ainda esta-vam tentando formular um agradecimento o Duqueficou de pé num salto, os olhos ainda mais arregala-dos.

— Ela está vindo aí! Eu tenho um instinto paraisso. Depressa! Entrem nos meus bolsos!

Ele virou-se de lado para a escrivaninha e, comdois dedos, esticou um dos bolsos do casaco bemrente ao tampo. Angélica depressa ergueu a aba sobreo bolso e deslizou para dentro dele entre as duas ca-madas de tecido. O Duque apagou o charuto na bordada escrivaninha e jogou-o dentro do bolso também.Depois fez meia-volta e abriu o outro bolso para To-nino. Agachado dentro do bolso escuro e cheio defiapos de pano, o menino escutou a porta abrir-se e avoz da Duquesa.

— Meu senhor, andou fumando charutos aquioutra vez?

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CAPÍTULO XIII

Naquela manhã, Paolo acordou com a certezade que ele próprio teria que procurar Tonino. Se seupai, e Rinaldo, e depois Rosa e Marco, todos eles, ha-viam se recusado a tentar, então não adiantaria pedir aqualquer outra pessoa.

Ele sentou-se e deu-se conta de que a casa es-tava cheia de ruídos incomuns. Lá embaixo, no pátio,o portão estava aberto. Ele conseguia distinguir asvozes de Elizabeth, Tia Anna, Tia Maria e a primaClaudia, que estavam chegando com o pão diário.

— Olhem só para o Anjo! Ora, quem foi quefez isto? — ele escutou sua mãe dizer.

— É porque paramos com os nossos feitiços— disse a prima Claudia.

Depois disso veio uma solitária nota musical,da Tia Anna, que foi interrompida por um guincho deTia Maria.

— Nada de feitiços, Anna! Pense em Tonino!

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— ela disse, cora raiva.Aquilo era intrigante, mas o que realmente in-

teressava a Paolo eram os ruídos por trás das vozes:passadas em marcha, ordens dadas aos gritos, umtambor batendo, passos de cavalos, alguns ruídosbaixos e vários palavrões. Paolo saltou para fora dacama. Devia ser o exército!

— São centenas — ele ouviu Tia Anna dizer.— A maioria mais jovem do que o meu Do-

menico — Tia Maria comentou. — Claudia, pegueesta cesta enquanto fecho o portão. Todos indo en-frentar três exércitos, sem contarem com um únicofeitiço de guerra... Dá vontade de chorar!

Paolo disparou ao longo da varanda, enfiandoseu casaco, e desceu correndo os degraus para o pátioà luz fria e amarela do sol. Mas chegou tarde demais;o portão estava trancado e os ruídos de guerra ficaramdo lado de fora. As mulheres vinham atravessando opátio com suas cestas.

— Aonde pensa que vai? — Elizabeth pergun-tou a ele. — Ninguém vai sair de casa hoje. Vai havercombate. As escolas estão todas fechadas.

Elas pousaram as cestas no chão para abrirem aporta da cozinha. Paolo viu que elas recuavam, comexclamações de consternação.

— Santo Deus! — disse Elizabeth.— Ninguém vai contar a Gina! — disse Tia

Maria.No mesmo instante alguém bateu com força no

portão.— Vá ver quem é, Paolo — chamou Tia Anna.Paolo passou sob o arco e abriu a portinhola

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para espiar. Estava contente com aquela oportunidadede ver o exército, e contente também porque as esco-las estavam fechadas. De qualquer maneira, não tinhamesmo a intenção de ir à escola naquele dia.

Do lado de fora havia um homem fardado, quegritou:

— Abram e recebam isto em nome do Duque!Por trás do homem, Paolo viu de relance botas

lustrosas em marcha, e mais fardas. Ele destrancou oportão.

Enquanto isto, ficou evidente que não conse-guiriam manter Tia Gina longe da cozinha. Ela desceuas escadas batendo os pés. Houve uma pausa, e entãoa casa inteira encheu-se com a voz dela:

— Ah, meu Deus! Santa Mãe de Deus! Insetos!A voz de Tia Gina abafou até o barulho da

banda militar que passava marchando quando Paoloabriu o portão.

O homem do lado de fora jogou uma folha depapel em cima de Paolo e saiu correndo para bater naporta seguinte. Paolo olhou para a folha. Tinha umaesperança louca de que houvessem acabado de lheentregar a letra de “O Anjo”. E continuou com osolhos fixos no papel, alheio tanto a Tia Gina — queagora anunciava aos gritos o que iria fazer com Lucia— quanto ao enorme canhão que passava ruidosa-mente, puxado com esforço por quatro cavalos.

Ele leu:Estado de Caprona, Formulário FR3. Convocação dos

Reservistas Voluntários. As seguintes pessoas devem apresen-tar-se no Arsenal às 3h00 de 14 de janeiro de 1979 para en-trar em ação imediatamente: Antonio Montana, Lorenzo

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Montana, Piero Montana, Ricardo Montana, Arturo Monta-na (nascido Notti), Cario Montana, Luigi Montana, AngeloMontana, Luca Montana, Giovanni Montana, Piero LacopoMontana, Rinaldo Montana, Domenico Montana, FrancescoMontana.

Aquilo significava todos os homens da família!Paolo não havia se dado conta de que seu pai tambémera um Reservista Voluntário.

— Feche o portão, Paolo! — guinchou TiaMaria.

Paolo fez menção de obedecer mas lembrou-sede que ainda não tinha olhado para o Anjo. Deu al-guns passos para fora e ergueu os olhos, enquanto ametade de um regimento de infantaria passava mar-chando por trás dele. Parecia que durante a noite to-dos os pombos de Caprona haviam escolhido empo-leirar-se naquela estátua dourada: o Anjo estava co-berto de excremento de pombos. E, naturalmente, acamada era mais espessa no braço horizontal que se-gurava o pergaminho, e este era uma massa branca eempelotada. Paolo estremeceu: aquilo parecia um au-gúrio. Ele não percebeu quando um dos soldados emmarcha destacou-se da coluna e aproximou-se delepelas costas.

— Se eu fosse você, fecharia o portão — disseCrestomanci. Paolo ergueu os olhos para ele, pergun-tando-se por que as pessoas ficavam com uma apa-rência tão diferente quando estavam fardadas. Maslogo voltou à realidade e apressou-se a puxar as duasfolhas do portão, fechando-o. Crestomanci ajudou-o acolocar as grandes barras de ferro que o trancavam.Enquanto fazia isso, disse:

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— Estive na casa dos Petrocchi ao amanhecer,de modo que não há grande necessidade de explica-ções. Mas gostaria de saber qual é o problema na co-zinha desta vez.

Paolo olhou naquela direção. Oito cestas con-tendo altas pilhas de pães encontravam-se no chão, dolado de fora da cozinha. De dentro da cozinha vinhaum burburinho agitado, e um curioso zumbido.

— Acho que é o feitiço de Lucia novamente —disse.

Ele e Crestomanci atravessaram o pátio. Antes,porém, que conseguissem dar três passos, as tias ir-romperam da cozinha e correram na direção deles.Antonio e os tios vieram em disparada pela varanda, ede toda parte surgiam primos.

Tia Francesca surgiu do Salão. Ela passara anoite inteira lá, e a sua aparência mostrava isso. Cres-tomanci logo se encontrou no centro de uma multi-dão, falando com várias pessoas ao mesmo tempo.

— Você fez muito bem em me chamar — eledisse a Rosa. Em seguida, recomendou a Tia Fran-cesca: — O Velho Niccolo ainda vai durar muitosanos, mas a senhora precisa descansar. — Para Eliza-beth e Antonio ele anunciou: — Já soube de Tonino.— E, para Rinaldo: — Esta é a minha quarta fardahoje. Está havendo um combate feroz nas colinas e euprecisava atravessar de alguma forma.

Ele voltou-se para os tios e perguntou:— O que foi que deu no Duque, para declarar

guerra tão apressadamente? Eu poderia ter consegui-do ajuda de Roma, se ele tivesse esperado.

Nenhum deles sabia a resposta, e todos disse-

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ram isto ao mesmo tempo.— Eu sei, eu sei — disse Crestomanci. — Ne-

nhum feitiço de guerra. Acho que o nosso inimigomago cometeu um erro com Tonino e Angélica. Isto,se não ajuda de outra forma, pelo menos me dá liber-dade para me intrometer. — Então, como o tumultonão dava sinais de diminuir, ele continuou: — Porfalar nisso, os Reservistas Voluntários foram convo-cados.

Fez um gesto para que Paolo entregasse o pa-pel a Antonio.

No silêncio consternado que esta declaraçãoproduziu, Crestomanci abriu caminho até a porta dacozinha e enfiou a cabeça para dentro.

— Não é possível! — Paolo ouviu-o murmu-rar.

Paolo agachou-se e, engatinhando, atravessou ogrupo que rodeava Antonio e espiou para dentro dacozinha por debaixo do cotovelo de Crestomanci.Deparou com uma muralha de insetos. O aposentoestava negro de insetos que cintilavam e rastejavam, ea atmosfera era densa com diferentes zumbidos.Moscas de todos os tipos, mosquitos, vespas e perni-longos enchiam o ar; besouros, formigas, traças ecentenas de outros animais rastejantes ocupavam opiso, as prateleiras e a pia.

Espiando por entre as nuvens que zumbiam,Paolo teve quase certeza de ter visto um enxame degafanhotos sobre o fogão. Aquilo era pior até do quea cozinha que ele, quando pequeno, imaginava que osPetrocchi teriam.

Crestomanci respirou profundamente. Paolo

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suspeitou que ele estava tentando não dar uma risada.Os dois olharam em volta, procurando por Lucia, queestava parada num só pé entre as cestas de pão, pron-ta para sair correndo.

— Tenho certeza de... — começou a dizerCrestomanci, que estava realmente tentando não rir,mas teve que recomeçar. — Tenho certeza de que jáfalaram com você a respeito de usar feitiços de ma-neira errada. Mas, só por curiosidade, o que foi quevocê usou?

— Ela usou uma letra dela mesma para a me-lodia de “O Anjo de Caprona”! — informou Tia Ma-ria, irrompendo, irada, do grupo de pessoas. — Ginaestá quase louca!

— Todas as crianças participaram. Não fui eusozinha — Lucia retrucou em tom de desafio.

Crestomanci olhou para Paolo e o menino as-sentiu. Crestomanci comentou:

— Um tributo considerável aos poderes dosjovens Montana. Ele voltou-se e estalou os dedos paradentro da cozinha cheia de insetos a zumbir e a raste-jar. Não aconteceu grande coisa: o ar limpou-se o su-ficiente para Paolo verificar que eram realmente ga-fanhotos sobre o fogão, mas isso foi tudo. Cresto-manci ergueu ligeiramente as sobrancelhas. E tentounovamente. Dessa vez, nada aconteceu mesmo. Eleafastou-se um pouco do zumbido, parecendo pensa-tivo.

— Com todo o respeito a “O Anjo de Capro-na”, a canção não deveria ser assim tão poderosa porsi só — declarou a Paolo e Lucia. — Infelizmenteacredito que teremos de esperar este feitiço gastar-se

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com o tempo. — E, voltando-se para Tia Maria, eleacrescentou: — Não é de se espantar que o mago i-nimigo tenha tanto medo da Casa Montana. Será queisto significa que não haverá café da manhã?

— Não, não. Vamos prepará-lo na sala de jan-tar — disse Tia Maria, parecendo bastante aflita.

— Ótimo! — Crestomanci exclamou. — Háuma coisa que preciso dizer a todos, quando todosestiverem lá.

E quanto todos haviam se reunido em volta dasmesas para comer pão puro e beber café preto feitona lareira da sala de jantar, Crestomanci parou dianteda lareira, segurando uma xícara de café, e começou:

— Sei que poucos entre vocês acreditam queTonino não esteja na casa dos Petrocchi, mas juro avocês que ele não se encontra lá, e que Angélica Pe-trocchi também está desaparecida. Acho que vocêsestão certíssimos em parar de fazer feitiços até queeles sejam encontrados, mas quero dizer o seguinte:mesmo se eu encontrasse Tonino e Angélica nesteminuto, todos os feitiços da Casa Montana e da CasaPetrocchi juntos não iriam salvar Caprona agora. E-xistem três exércitos, e a esquadra de Pisa está se a-proximando da cidade. A única coisa que poderá aju-dar vocês agora é a verdadeira letra de “O Anjo deCaprona”. Todos vocês compreenderam isto?

Todos haviam compreendido. O silêncio erageral. Durante algum tempo ninguém abriu a boca.Então Tio Lorenzo começou a resmungar que haviatraças dentro da sua farda de Reservista.

— Alguém retirou o feitiço da minha farda.Não posso ser visto assim — reclamou.

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— Faz alguma diferença? — Rinaldo pergun-tou. Tinha o rosto muito branco e não ingeriu coisaalguma além de café. — De qualquer maneira, só vaiser visto morto!

— Mas é justamente isto! Não quero ser vistoassim, nem morto! — retrucou Tio Lorenzo.

— Ah, fique quieto — ordenou-lhe Domenico.Tio Lorenzo ficou tão surpreso que parou de

resmungar. O café da manhã terminou em meio amurmúrios pessimistas.

Paolo levantou-se e deslizou atrás do bancoonde Crestomanci estava sentado.

— Com licença, senhor. Sabe onde Tonino es-tá?

— Gostaria muito de saber — Crestomancideclarou. — Este mago é muito eficiente. Até agora,tenho apenas duas pistas. Ontem à noite, quando euestava vindo para cá através de Siena, alguém fez fun-cionar dois feitiços muito estranhos em algum lugar àminha frente.

— Tonino? — Paolo perguntou ansiosamente.Crestomanci sacudiu a cabeça.

— O primeiro foi definitivamente de Angélica.Ela tem o que se pode chamar de um estilo individual.Mas o segundo me deixou confuso. Acha que seu ir-mão é capaz de fazer funcionar alguma coisa suficien-temente forte para transpor os feitiços de um mago?Angélica conseguiu isso por causa da estranheza doseu feitiço. Acha que Tonino teria conseguido domesmo modo?

— Acho que não... — disse Paolo. — Ele nãoconhece muitos feitiços, mas sempre os acerta e eles

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funcionam da maneira correta...— Então o mistério continua — disse Cresto-

manci. Ele suspirou, e Paolo achou-o com aparênciacansada.

— Obrigado — disse, e afastou-se, tomando ocuidado de só ter pensamentos inocentes sobre o quefaria enquanto a escola estava fechada, já que nãoqueria que alguém percebesse o que pretendia fazer.

Ele esgueirou-se através da cocheira, passandopelos cavalos e pelo cocheiro desmilingüidos, e depoispela carruagem, e abriu a pequena porta nos fundos,que dava para a rua. Estava atravessando a portaquando Rosa perguntou, em tom desconfiado, junto àporta da cocheira que dava para o pátio:

— Paolo, você está aí dentro?Paolo pensou: não estou, não. E fechou a por-

tinha atrás de si com o maior cuidado. Então saiucorrendo.

A essa altura, quase não havia soldados nas ru-as, e tampouco outras pessoas. Paolo passou correndopelas casas amarelas, firmemente fechadas, em meio aum silêncio quebrado pelo dobrar aflito dos sinos. Devez em quando ele julgava ouvir um ruído baixo edistante. Onde quer que as casas permitiam que Paoloavistasse as colinas ele via soldados — não como sol-dados, mas como fileiras que rastejavam e faiscavam,subindo a encosta num curso serpenteante — e algu-mas nuvenzinhas de fumaça. Constatou que Cresto-manci estava certo: o combate estava bem próximodali.

Ele era a única pessoa na Via Cantello. A casados Petrocchi estava tão fechada quanto a casa dos

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Montana. E o seu Anjo também estava coberto defezes de pássaros, já que, como os Montana, eles ha-viam parado de fazer feitiços. Para Paolo, aquilo mos-trava que Crestomanci tinha razão também sobreAngélica. Sentiu-se bastante encorajado por esse fatoenquanto batia com força no velho portão.

Não houve qualquer som vindo de dentro,mas, depois de um ou dois segundos, um gato brancosaltou para o alto do portão e agachou-se no espaçosob o arco, olhando para baixo cora olhos ainda maisazuis do que os de Paolo.

Aqueles olhos lembraram Paolo de que os seuspróprios olhos provavelmente o denunciariam. Acha-va que não ousaria disfarçá-los com um feitiço, poisos Petrocchi poderiam perceber. De modo que engo-liu em seco, disse a si mesmo que tinha que encontrara única pessoa que poderia ajudá-lo a procurar porTonino e falou com o gato:

— Renata. Posso falar com Renata?O gato branco continuou a encará-lo; talvez

tenha feito algum comentário. Então saltou nova-mente para dentro da casa, deixando Paolo com umasensação incômoda de que o gato sabia quem ele era.Mas ficou esperando. Quando estava quase decidido air-se embora de vez, a portinhola foi aberta. Para seualívio, foi o rosto pontudo de Renata que olhou paraele através das barras.

— Ora! Agora entendo por que Vittoria mechamou. Que alívio, você ter vindo! — ela disse.

— Venha me ajudar a procurar Tonino e An-gélica — Paolo pediu. — Ninguém me dá ouvidos.

— Hum. — Renata enfiou a ponta de um ca-

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cho de cabelos dentro da boca e mordeu-a. — Esta-mos proibidos de sair. Pense numa boa desculpa.

— A nossa professora está doente e assustadacom a guerra e quer que a gente fique com ela — Pa-olo sugeriu.

— Pode ser que sirva — disse Renata. — En-tre, enquanto eu peço permissão.

Paolo escutou o portão sendo destrancado.— O nome dela é Sra. Grimaldi — Renata co-

chichou, mantendo o portão aberto para ele entrar. —Mora na Via Sant’Angelo e é muito feia, caso pergun-tem. Entre.

Para seu considerável espanto, Paolo viu-se en-trando na casa dos Petrocchi; ficou ainda mais espan-tado por não se sentir particularmente assustado. Sen-tia-se como se estivesse prestes a fazer uma prova naescola: apreensivo, e sabendo que teria que ir até ofim, porém só isso.

Ele viu um pátio e uma varanda tão parecido5com os da sua própria casa que quase poderia ter a-creditado que voltara para lá por meios mágicos. Ha-via diferenças, naturalmente: a grade da varanda era deferro fundido, com leopardos de ferro a intervalos, eos gatos que se sentavam tomando sol sobre os barrisde água eram, na maioria, castanhos ou malhados —ao passo que na Casa Montana Benvenuto havia dei-xado a sua marca, e os gatos eram pretos ou pre-to-e-branco. E da cozinha vinha um penetrante aromade cebolas fritas; Paolo não sentia aquele cheiro desdeque Lucia fizera aquele feitiço infeliz.

— Mamãe! — Renata berrou.Mas a primeira pessoa que apareceu foi Marco.

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Ele vinha descendo a galope os degraus da varanda,trazendo um par de lustrosas botas de cano longo emuma das mãos e sobre o braço uma farda vermelhaamarrotada.

— Mamãe! — Marco gritou, no tom descui-dado em que as pessoas sempre gritam pelas mães. —Mamãe! A minha farda está cheia de traças! Quem foique retirou o feitiço dela?

— Seu burro! Ontem à noite desmanchamostodos os feitiços! — disse-lhe Renata. E, para Paolo,ela informou: — Este é o meu irmão Marco.

Marco virou-se para Renata, indignado.— Mas as traças levam meses para...Então ele viu Paolo. Era difícil dizer qual dos

dois ficou mais perturbado.Nesse momento, uma dama ruiva, de expressão

preocupada, atravessou o pátio carregando um bebê.A criança tinha cabelos escuros e a mesma testa pro-eminente de Angélica.

— Não sei, Marco. Peça a Rosa para remendar— disse ela.

— Que é que você quer, Renata?Marco interrompeu-a.— Rosa está com a irmã dela — disse, mar-

cando bem as palavras e olhando fixamente para Pa-olo. — Quem é o seu amigo, Renata?

Paolo não conseguiu resistir.— Meu nome é Paolo Andretti — disse, mali-

ciosamente.Marco recompensou-o com um olhar que o

desafiava a dizer mais alguma palavra. Mas Renataficou aliviada, já que agora sabia como chamar Paolo.

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— Paolo quer que eu vá ajudar a cuidar da Sra.Grimaldi. Ela está de cama, mamãe.

Pelo modo como Marco primeiro arregalou osolhos e depois os apertou até se transformarem emfrestas, Paolo percebeu que aquilo o deixara extre-mamente alarmado e decidido a impedir que Renatasaísse. Mas Paolo não via como Marco poderia fazeralguma coisa, pois ele não poderia confessar que sabiaquem Paolo era, sem denunciar a si próprio e tambémRosa. Aquilo lhe deu vontade de rir.

— Ah, coitada da Sra. Grimaldi! — exclamou aSra. Petrocchi.

— Mas, Renata, acho que...— Será que a Sra. Grimaldi não percebe que

estamos em guerra? — Marco perguntou. — Foi Pa-olo quem lhe disse que ela está doente?

— Fui eu, sim — o menino confirmou. —Minha mãe é muito amiga da Sra. Grimaldi, sente pe-na por ela ser tão feia.

— E é claro que ela sabe da guerra — Renatainterveio. — Eu vivo contando a você, Marco, que elamergulha embaixo da escrivaninha quando ouve umestouro. Ela tem pavor de armas.

— E tudo isso tem sido demais para ela, dizmamãe — Paolo acrescentou criativamente.

Marco tentou outro caminho:— Mas por que a Sra. Grimaldi quer você, Re-

nata? Desde quando você é a queridinha da professo-ra?

Renata, que obviamente era tão rápida quantoPaolo, explicou:

— Ah, mas eu não sou. Ela só quer que eu a

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distraia com uns feitiços...Ouvindo isto, a Sra. Petrocchi e Marco disse-

ram ao mesmo tempo:— Você não pode fazer feitiços! Angélica...— ...mas é claro que não vou fazer isto — Re-

nata continuou sem se interromper. — Vou só cantaralgumas canções. Ela gosta que eu cante. E Paolo vailer a Bíblia para ela. Diga que podemos ir, mamãe. Elaestá de cama, e sozinha...

— Bom... — começou a Sra. Petrocchi.— As ruas não são seguras — Marco objetou.— Não havia ninguém por aí — disse Paolo,

lançando a Marco um olhar que lhe dizia para tomarcuidado, pois duas pessoas podiam jogar o mesmojogo.

— Mamãe, você vai ou não vai remendar afarda de Marco? — Renata perguntou.

— Vou, sim, claro que sim — respondeu a Sra.Petrocchi. Renata imediatamente tomou isso comouma permissão para ir com Paolo.

— Vamos, Paolo — disse.E saiu correndo, passando sob o nariz de Mar-

co, na direção do que obviamente era a cocheira. Pa-olo disparou atrás dela.

Marco, no entanto, não se considerava derro-tado. Antes que Renata colocasse a mão na maçanetada grande porta, um homem, obviamente um dos tios,debruçou-se sobre a amurada da varanda.

— Renata! Seja uma boa menina e procure omeu tabaco. Uma mulher que era obviamente uma tiaveio correndo da cozinha. Ela se parecia com Tia Gi-na, com cabelos vermelhos, e gritou de maneira igual

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a ela:— Renata! Você pegou a minha faca boa?Dois jovens primos apareceram em outra por-

ta.— Renata, você disse que íamos nos fantasiar!E a Sra. Petrocchi, parecendo ansiosa e indeci-

sa, estendia o bebê e dizia:— Renata, você vai ter de tomar conta de Ro-

berto enquanto eu estiver costurando.— Não posso parar agora! — Renata gritou de

volta. — A coitada da Sra. Grimaldi! — Ela abriu comforça a grande porta e empurrou Paolo para dentro.— Que é que está acontecendo? — sussurrou.

Para Paolo, o que estava acontecendo era ób-vio. Na casa dos Montana era igualzinho. Marco haviairradiado — não um alarme, porque não ousava che-gar a tanto, mas uma espécie de inquietação generali-zada a respeito de Renata.

— Marco está tentando nos segurar — ele ex-plicou.

— Disso eu sei — respondeu Renata, passandocom ele pela elegante carruagem dos Petrocchi e —para grande interesse de Paolo — por quatro cavalosde papelão tão deformados e sujos de lama quanto osda Casa Montana. — Por que ele está fazendo isso?Como é que ele sabe?

Atrás deles ouvia-se um grande clamor de vo-zes de vários Petrocchi, todos querendo Renata.

— Ele sabe, e pronto — Paolo respondeu. —Ande depressa! A portinha para a rua tinha uma chavegrande e dura. Renata segurou-a com as duas mãos eesforçou-se para girá-la.

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— Ele conhece você? — perguntou, esperta-mente. Como uma resposta a voz de Marco soou portrás da carruagem:

— Renata! — E então, em tom bem mais bai-xo: — Paolo, Paolo Montana, venha cá!

Renata conseguiu abrir a porta.— Corra, se quiser mesmo ir! — Paolo co-

mandou.Os dois saíram para a rua e puseram-se a cor-

rer. Marco assomou à porta e gritou alguma coisa,mas não parecia querer persegui-los. Mesmo assimPaolo continuou a correr, o que forçou Renata a cor-rer também. Ele não estava com vontade de conver-sar, já que precisava absorver o choque de ter vistoMarco. Então Marco Andretti era, na realidade, MarcoPetrocchi — devia ser o filho mais velho de Guido!Rosa Montana e Marco Petrocchi! Paolo pergunta-va-se sem parar: como eles haviam feito isso? Comohaviam conseguido fazer tal coisa? E, mais seriamen-te, ele se perguntava: como conseguiriam se sair bem?

— Está bem. Já chega — ofegou Renata.A essa altura eles haviam atravessado o Corso e

estavam na margem do rio, trotando ao longo dasdocas desertas em direção à Ponte Nova. Renata di-minuiu o passo e Paolo fez o mesmo, bastante semfôlego.

— Agora me diga como foi que Marco reco-nheceu você, senão não darei mais nem um passo —ela declarou.

Paolo olhou para ela cautelosamente. Já haviadescoberto que Renata era, como Tia Gina diria, tãoafiada que ia acabar se cortando, e ele não estava gos-

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tando do modo como ela o olhava.— Ele me viu no Palácio, é claro — disse.— Não viu, não — Renata retrucou. — Era ele

quem estava dirigindo a carruagem. Ele sabe o seunome e sabe por que você me chamou, não sabe?Como?

— Acho que ele devia estar parado atrás de nósna escada da Galeria de Arte, e nós não percebemospor causa da neblina — disse Paolo.

Os olhos sagazes de Renata continuaram a en-cará-lo com aquele olhar que não agradava a Paolo.

— Boa tentativa — ela disse.Paolo tentou quebrar aquele olhar dando mei-

a-volta e saindo a caminhar ao longo dos embarca-douros. Renata seguiu-o, dizendo:

— E eu devia ficar toda envergonhada e nãoperguntar mais nada. Você é tão afiado que vai acabarse cortando, Sr. Montana. Mas que pena. Marco nãoestava no combate. Sei disso porque ele foi o esco-lhido para o duelo mas não estava lá, de modo queprecisaram escolher o meu pai. E já percebi que vocênão quer que eu saiba como foi que Marco reconhe-ceu você. E já percebi que Marco também não quer,senão teria tentado me segurar dizendo quem você é.Então...

— É você quem vai acabar se cortando por serafiada demais — Paolo declarou por cima do ombro.— Não sei como Marco me reconheceu, mas ele es-tava sendo bondoso, não revelando...

Ele calou-se e pôs-se a farejar. Estava na frentede um beco, onde uma casa de pintura azul descasca-da estendia-se até um cais. Paolo sentiu o ar em volta

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do beco com um sentido que ele mal sabia que pos-suía, herdado de gerações de feiticeiros. Alguém haviacolocado um feitiço ali, um feitiço poderoso — e nãofazia muito tempo.

Renata aproximou-se por trás dele.— Você não vai conseguir se livrar... — Ela

também se calou. — Alguém colocou um feitiço aqui!— exclamou.

— Foi Angélica? Você consegue saber? — Pa-olo perguntou.

— Por quê?Paolo contou-lhe o que Crestomanci havia dito.

O rosto dela ficou vermelho, e ela cutucou com o de-dão do pé uma amarra que havia no caminho.

— Estilo individual! — repetiu. — Ele e suaspiadinhas! Não é culpa de Angélica. Ela nasceu dessejeito. E não é qualquer pessoa que pode fazer um fei-tiço funcionar fazendo tudo errado. Acho que ela éuma espécie de gênio do lado do avesso, e foi isto queeu disse à Duquesa de Caprona quando ela riu, tam-bém.

— Mas este feitiço é dela? — Paolo insistiu.Ele escutava tiros vindo de algum lugar rio a-

baixo, misturados aos estrondos que vinham das coli-nas. Eram estouros surdos, como um gigante rachan-do lenha com um machado. Ergueu a cabeça para es-cutar, enquanto prosseguia:

— Sei que não é de Tonino. Os dele dão asensação de cuidado.

— Não — disse Renata, e ergueu a cabeçatambém. — Está um pouco gasto, não está? E não dáuma sensação de coisa boa. Pelo barulho, a guerra está

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terrivelmente perto daqui. Acho que devíamos nosafastar dos ancoradouros.

Ela provavelmente tinha razão. Paolo hesitou;tinha certeza de que estavam na pista certa. O feitiçoenvelhecido dava uma sensação ligeiramente repug-nante, que lembrava a ele a mensagem no pátio nanoite anterior.

E, enquanto ele hesitava, de repente pareciaque a guerra estava bem em cima deles. A algazarraera ensurdecedora, agressiva, horrível. Paolo pensouem uma pessoa segurando uma ponta de uma gigan-tesca folha de metal e sacudindo-a, ou em desperta-dores gigantescos. Mas aquilo não fazia justiça ao ba-rulho, e tampouco explicava alguns fortes guinchosmetálicos. Ele e Renata abaixaram-se e taparam asorelhas com as mãos, e coisas enormes passaram aci-ma deles. Fossem o que fossem, seguiram por cimado rio. Paolo e Renata ficaram agachados no cais, comos olhos pregados naqueles estranhos objetos voado-res.

Eles voavam em grupo — havia pelo menosoito deles — batendo asas com guinchos e tinidoscomo de gongos. Paolo pensou primeiro em máqui-nas voadoras e depois no cavalo alado dos Montana.Parecia haver pernas penduradas sob os grandes cor-pos negros, e suas asas de metal batiam furiosamente.Alguns não estavam voando tão bem. Um deles per-deu altura, apesar de bater destemperadamente as a-sas, e caiu no rio, jogando água sobre toda a PonteNova e molhando Renata e Paolo também. Outrotambém perdeu altura e pôs-se a movimentar a caudade ferro para equilibrar-se. No momento exato em

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que ele também caiu na água, Paolo o reconheceu: eraum dos grifos de ferro da Praça Nova.

Renata começou a rir.— Isto sim é da Angélica! — ela afirmou. —

Reconheço um feitiço dela em qualquer lugar.Os dois ficaram de pé num salto e saíram cor-

rendo na direção do comprido lance de degraus quesubiam para a Praça Nova. O barulho dos guinchosainda abafava o som dos disparos, com exceção dosmais próximos. Renata e Paolo subiram correndo osdegraus, virando-se a cada patamar para ver o que es-tava acontecendo ao resto dos grifos. Mais dois outroshaviam caído dentro do rio. Outros dois mergulharamnos jardins das ricas mansões. Mas os dois últimosiam muito bem; quando Paolo tornou a olhar, elespareciam estar tentando com esforço ganhar altitudepara ultrapassar as colinas atrás do Palácio. Os tinidosdistantes que faziam eram rápidos e furiosos, e as asasde metal pareciam borrões.

Paolo e Renata viraram-se e continuaram a su-bir a escadaria.

— O que é isto? Um pedido de ajuda? — Pao-lo ofegou.

— Deve ser — ofegou Renata em resposta. —Os feitiços de Angélica... sempre são... metade malu-cos, metade razoáveis.

Um ruído metálico que produziu ecos fez comque os dois se virassem. Outro grifo havia caído, maseles não viram onde. Fascinados, ficaram observandoos esforços do derradeiro. Ele agora alcançara a fa-chada de mármore do Palácio Ducal, mas não estavasuficientemente elevado para passar por cima dela. O

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grifo parecia saber disso, pois ele estendeu as garras,dando a impressão de estar se agarrando às ameias demármore. Mas não adiantou. Eles o viram, um borrãonegro à distância, escorregar para baixo pela fachadade mármore colorido — chegavam até a ouvir os ar-ranhões — caindo sempre, até bater no telhado dopórtico de mármore, onde ficou imóvel. Acima dele,mesmo de longe eles conseguiam distinguir duascompridas riscas de arranhões no mármore que iamde alto a baixo na fachada do Palácio.

— Uau! — fez Paolo.Ele e Renata subiram para a Praça Nova, es-

tranhamente nua. Agora ela nada era além de umagrande plataforma pavimentada, rodeada por umamureta baixa. A intervalos em volta da mureta haviaos tocos dos pedestais dos grifos, cada um com umaplaca verde ou vermelha quebrada e caída para o lado.No centro, o que costumava ser um chafariz comgrifos entrelaçados era agora um jato de água saindode um cano quebrado.

— Olhe só para todos esses feitiços que Angé-lica rompeu! — Renata exclamou. — Nunca penseique ela pudesse fazer uma coisa tão forte assim!

Paolo olhou para o Palácio arranhado, comcerta inveja. Havia feitiços no mármore para impediraquele tipo de coisa; Angélica havia conseguido rom-per todos eles. A coisa mais estranha era que ele nãoconseguia sentir o feitiço. A Praça Nova deveria estarrecendendo a magia, mas só dava a sensação de vazio.Ele olhou em volta, perplexo. E ali, descendo devagare cautelosamente ao longo da mureta, avistou umafigura marrom familiar, com uma cauda peluda.

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— Benvenuto! — ele exclamou.Por um instante parecia que Benvenuto iria

passar direto por Paolo, como freqüentemente fazia.Mas aquilo devia ser porque estava cansado, pois eleparou e olhou intensamente para Paolo. Então abriucuidadosamente a boca e cuspiu um pedacinho depapel dobrado. Depois disso, deitou-se e perdeu todoo interesse no mundo. Quando pegou o papel, Paoloviu as costelas do animal subindo e descendo.

Renata olhava por cima do ombro de Paoloenquanto ele desdobrava o papel — com certo nojo,pois o papel estava molhado. A letra era definitiva-mente de Tonino, embora fosse pequena demais. E,embora Paolo não soubesse disso, apenas um trechopequeno da mensagem sobrevivera. Ele e Renata le-ram:

tra de “O Anjo” no Anjo acima

Não era de espantar que Paolo e Renata inter-pretassem de maneira errada, já que ali da Praça Nova,agora que os grifos não estavam mais lá, um Anjo eraclaramente visível. Dourado e sereno, no topo dogrande domo da Catedral, ele montava guarda a umaCaprona que já estava cercada pela fumaça dos dispa-ros.

— Acha que conseguiremos chegar até lá emcima? — Paolo perguntou.

Renata tinha o rosto pálido.— Vamos ter que tentar. Mas vou logo avi-

sando, tenho medo de altura.Os dois saíram correndo por entre os telhados

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vermelhos e as paredes douradas, deixando Benvenu-to adormecido sobre a mureta. Depois de algumtempo, Benvenuto, já restaurado, levantou-se e afas-tou-se dali. Era preciso mais do que alguns tiros demá pontaria para acabar com ele.

Quando Paolo e Renata chegaram à praça cal-çada de paralelepípedos em frente à Catedral, o gran-de sino na torre ao lado dela estava tocando. As pes-soas se reuniam na igreja para rezar por Caprona, e oArcebispo de Caprona em pessoa estava parado juntoà porta abençoando todos os que entravam. Paolo eRenata juntaram-se à fila, já que essa parecia ser amaneira mais fácil de entrar. Tinham quase chegado àporta quando Marco apareceu na praça puxando Ro-sa. Rosa avistou os cabelos de Renata e apontou. Elaestava ofegante demais para falar. Marco sorriu.

— O seu feitiço venceu — disse apenas.

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CAPITULO XIV

O bolso quentinho onde Tonino se encontravasacudiu-se quando o Duque ficou de pé.

— É claro que fumei um charuto. Qualquerum rumaria um charuto se descobrisse que declarouguerra sem saber que havia declarado, e tendo certezade que sem dúvida será derrotado — ele declarou,injuriado, à Duquesa.

Sua voz, vindo através do seu corpo mais doque pelo lado de fora, parecia um trovão aos ouvidosde Tonino.

— Eu já lhe disse que faz mal à sua saúde —disse a Duquesa. — Aonde você vai?

— Eu? Ah! — fez o Duque. Os bolsos sacudi-ram-se novamente, quando ele subiu os degraus quelevavam à porta. — Vou até as cozinhas. Quero co-mer alguma coisa.

— Você poderia mandar buscar — disse aDuquesa, mas seu tom não era de desagrado.

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Isso fez Tonino entender que a Duquesa sabiaque ele e Angélica estavam escondidos no escritório, equeria o Duque longe dali enquanto ela procurava poreles.

Ele ouviu a porta fechar-se. O bolso balança-va-se ritmadamente enquanto o Duque caminhava.Não era um movimento muito ruim, depois que To-nino se acostumou. O bolso era grande; nele quaseque havia espaço para Tonino, mais o isqueiro doDuque, o seu lenço, e outro charuto, um pedaço debarbante e algum dinheiro, um rosário e alguns dados.Tonino acomodou-se confortavelmente usando olenço como almofada e desejando que o Duque nãoficasse dando tapinhas no bolso para verificar se eleainda estava lá.

— Vocês estão bem, aí dentro? — o Duquetrovejou finalmente. — Estou sozinho aqui. Vocêspodem botar a cabeça para fora. Pensei nas cozinhasporque parece que vocês não tomaram o café da ma-nhã.

— O senhor é bonzinho — disse a voz deAngélica, bem distante.

Tonino conseguiu pôr-se de pé e enfiar a cabe-ça para fora por debaixo da aba do bolso. Não con-seguia avistar Angélica — pois a generosa barriga doDuque estava no caminho — mas escutou-a dizer:

— O senhor guarda um monte de coisas nosbolsos, não é? Por acaso sabe o que é que está presono meu pé?

— Um caramelo, eu imagino — disse o Duque.— Por favor, fique à vontade para comê-lo.

— Muito obrigada — Angélica agradeceu em

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tom de dúvida.— Escute, por que a Duquesa não percebeu

que estávamos nos seus bolsos? Antes ela conseguiasentir o nosso cheiro — Tonino quis saber.

A risada alta do Duque trovejou atrás dele. Opedaço de parede dourada que Tonino conseguia en-xergar começou a dar saltos para cima, cada vez maispara cima: o Duque estava descendo uma escada.

— O charuto, meu rapaz! — disse o Duque. —Por que pensa que eu fumo charutos? Ela não conse-gue sentir cheiro algum quando há fumaça de charuto,e odeia isto. Certa vez tentou colocar um feitiço emmim para me fazer parar de fumar, mas fiquei tãomal-humorado que ela teve que desmanchá-lo.

— Com licença, senhor — disse a voz de An-gélica do outro lado do Duque. — Será que ninguémvai reparar se o senhor descer falando sozinho?

O Duque tornou a rir.— De jeito nenhum. Falo sozinho o tempo

todo. E dou risada, também, quando acho graça emalguma coisa. De qualquer maneira, todos pensam queestou caduco. Agora, vocês dois já imaginaram ummeio para eu tirar vocês daqui? A maneira mais fácilseria trazer aqui as famílias de vocês. Aí eu poderiaentregá-los em segredo, e ela não ficaria sabendo.

— Não pode simplesmente mandar chamar asnossas famílias? — Tonino sugeriu. — Diga que pre-cisa deles para ajudar na guerra.

— Ela iria desconfiar — replicou o Duque. —De qualquer maneira, ela diz que os feitiços de guerrade vocês estão todos anulados. Pensem em algumacoisa que não tenha a ver com a guerra.

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— Efeitos especiais para outra pantomima —Tonino sugeriu, um pouco desesperançado. Sabia quenem mesmo o Duque iria produzir uma peça en-quanto Caprona estava sendo invadida.

— Já sei! — exclamou Angélica. — Vou lançarum feitiço.

— Não! — gritou Tonino. — Pode acontecerqualquer coisa!

— Isto não tem importância. A minha famíliasaberia que sou eu, e viria me buscar como um raio —ela retrucou.

— Mas pode ser que você deixe o Duque ver-de! — Tonino objetou.

— Na verdade, eu não me importaria — inter-veio o Duque.

Ele chegou ao pé da escada e pôs-se a cami-nhar a passos longos e pesados através de salas e cor-redores do Palácio. Angélica e Tonino seguravam-sena borda dos bolsos e gritavam suas opiniões por ci-ma da barriga dele.

— Mas você poderia me ajudar, e a sua partesairia direito — Angélica argumentou. — E se a gentefizer um encantamento de convocação para chamartodos os ratos e camundongos de Caprona para o Pa-lácio? Se você fizesse a convocação, traríamos algumacoisa.

— Sim, mas o que seria? — Tonino perguntou.— Poderíamos fazer isto em honra de Benve-

nuto — Angélica gritou, na esperança de convencê-lo.Mas Tonino pensou em Benvenuto caído em

algum lugar sobre o telhado do pórtico do Palácio, eficou mais obstinado do que nunca. Gritou em res-

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posta que não ia fazer uma coisa tão desrespeitosa.— Está me dizendo que não consegue fazer

um feitiço de convocação? — Angélica berrou. —Até o meu irmãozinho...

Os dois gritavam tão alto que por duas vezes oDuque foi obrigado a pedir-lhes silêncio. O soldadoque se aproximava apressado levou um certo susto.

— Não é preciso olhar para mim deste modo,Major — disse-lhe o Duque. — Eu disse “psiu” e éisto mesmo que eu quis dizer. As suas botas rangemdemais. O que deseja?

— Infelizmente devo informar que as forças deCaprona estão batendo em retirada no sul, VossaGraça — disse o soldado. — E as nossas baterias nacosta foram capturadas pela esquadra de Pisa.

Ambos os bolsos se sacudiram quando o Du-que curvou as costas.

— Obrigado — disse. — Na próxima vez quetiver notícias, traga-as para mim pessoalmente.

O Major bateu continência e retirou-se, olhan-do uma ou duas vezes para o Duque por cima doombro. O Duque suspirou.

— Mais um que pensa que sou doido. Vocêsdois não disseram que são as únicas pessoas que sa-bem onde encontrar a letra de “O Anjo”?

Tonino e Angélica tornaram a colocar a cabeçapara fora dos bolsos.

— Sim! — exclamaram.— Então façam o favor de chegarem a um a-

cordo sobre um feitiço. Vocês realmente precisamescapar e encontrar essa letra enquanto ainda sobraalguma coisa de Caprona.

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Tonino não havia se dado conta de que o as-sunto era tão urgente.

— Então está certo, vamos chamar os ratos —decidiu.

O Duque foi postar-se perto de uma ampla ja-nela e, para encobrir o feitiço, acendeu o toco decharuto que vinha carregando debaixo de Angélicacom o isqueiro que estava debaixo de Tonino. Toninodebruçou-se para fora do bolso e entoou, devagar ecuidadosamente, o único feitiço de convocação queele conhecia.

Angélica, no outro bolso, ficou de braços er-guidos e, com rapidez e segurança, pronunciou as pa-lavras... certamente erradas. Mais tarde ela jurou queisso aconteceu porque ela quase soltou uma risada.

Outro homem aproximava-se. Tonino achouque era um dos cortesãos que haviam assistido ao es-petáculo de fantoches, mas não chegou a ter certezadisso, pois o Duque baixou as abas dos bolsos sobre acabeça deles e pôs-se ele mesmo a cantar em altosbrados:

— Com sua música soando, vejo o Anjo chegar can-tando... Nem mesmo Angélica cantava tão fora dotom. Tonino teve a maior dificuldade para continuarentoando o seu feitiço. E decerto foi nesse momentoque o feitiço pareceu sair errado. Tonino teve a súbitasensação de que as suas palavras estavam puxando umpeso enorme.

O Duque interrompeu sua cantoria abominávelpara dizer:

— Ah, Pollio, nada como uma boa canção en-quanto Caprona pega fogo! Nero fez isso, e agora eu.

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— Sim, Vossa Graça — respondeu o homemem voz fraca. Os meninos ouviram-no afastar-se.

— E este tem certeza de que sou louco — oDuque comentou. — Já terminaram?

Nesse instante, com uma espécie de solavanco,as palavras de Tonino ficaram leves outra vez e eleteve a certeza de que, de uma maneira ou de outra, ofeitiço havia funcionado.

— Terminamos, sim — declarou.Mas, pelo jeito, nada estava acontecendo. O

Duque afirmou, filosoficamente, que um rato levariabastante tempo para correr do Corso até o Palácio;em seguida dirigiu-se às cozinhas. Tonino percebeuque também lá achavam que ele era louco. O Duquepediu dois pãezinhos com manteiga e colocou um emcada bolso. Sem dúvida pensaram que ele estava aindamais destrambelhado quando ele comentou, dirigin-do-se a ninguém em particular:

— No meu bolso direito levo um cortador decharutos que espalha manteiga muito bem.

— É mesmo, Vossa Graça? — disse alguémem tom de dúvida.

Nesse exato momento alguém entrou corren-do, gritando alguma coisa a respeito das estátuas degrifos da Praça Nova: os grifos estavam voando porcima do rio, vindo diretamente para o Palácio. Houvepânico generalizado; todos gritavam e se lamentavam,afirmando que aquilo era um presságio de derrota.Então outra pessoa entrou correndo e berrando queum grifo chegara a alcançar o Palácio e estava escor-regando pela fachada de mármore. O vozerio aumen-tou. Todos diziam que só faltava o grande Anjo dou-

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rado da Catedral sair voando também.Tonino estava aproveitando a confusão para

arrancar um pedaço do pão batendo nele com o is-queiro do Duque, quando este gritou:

— Besteira!Imediatamente fez-se silêncio. Tonino não ou-

sava mover-se, porque todos estariam certamente o-lhando para o Duque.

— Não percebem? — este continuou. — É sóum truque do inimigo. Mas nós, de Caprona, não nosintimidamos com facilidade, não é mesmo? Ei, você,vá chamar os Montana. E você, vá buscar os Petroc-chi. Digam-lhes que é urgente. Digam-lhes para viremem maior número possível. Estarei na galeria norte.

E ele retirou-se, enquanto Angélica e Toninoeram jogados de encontro aos pães e tentavam nãopisar na manteiga.

Quando chegou à galeria, o Duque sentou-sejunto a uma janela. Angélica e Tonino ficaram com ametade do corpo para fora dos bolsos e conseguiramcomer seu pão com manteiga. O Duque Simpatica-mente passava o cortador de charutos de um para ooutro e, nos intervalos, parecia mergulhado era pen-samentos, olhos fixos nas nuvenzinhas de fumaça dosprojéteis que explodiam nas colinas atrás de Caprona.

Angélica sentia-se inclinada a vangloriar-se.— Eu lhe disse, meus feitiços sempre funcio-

nam — afirmou a Tonino.— Grifos de ferro não são ratos — este obje-

tou.— Não, mas eu nunca havia feito uma coisa

grande como esta — ela retrucou. — Ainda bem que

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ele não derrubou o Palácio.O Duque interveio, em tom melancólico:— Os canhões de Pisa logo farão isso. Estou

vendo navios canhoneiros no rio, e tenho certeza deque não são nossos. Gostaria que as famílias de vocêsviessem logo.

Mas passou-se meia hora até que um lacaioaproximou-se respeitosamente do Duque, fazendocom que este baixasse as abas dos bolsos e espalhassemigalhas de pão com manteiga em todas as direções.

— Vossa Graça, alguns membros da famíliaMontana e da família Petrocchi estão esperando pelosenhor no Grande Salão de Recepções.

— Ótimo! — exclamou o Duque.Ele ficou era pé num salto e saiu correndo a tal

velocidade que Tonino e Angélica precisaram apoiaros pés na bainha dos bolsos do Duque e segurar-secom força na borda. Várias vezes eles se desequilibra-ram, mesmo tendo o Duque tentado ajudá-los segu-rando os bolsos enquanto corria. Os meninos senti-ram que ele parava de repente.

— Droga! Isto está sempre acontecendo! — eleexclamou.

— Que foi? — Tonino perguntou, sem fôlegoe sentindo-se deformado pelos solavancos.

— Indicaram a sala errada! — o Duque expli-cou, saindo era disparada outra vez. Tonino e Angéli-ca sentiram que ele se jogava através de uma porta. Osbolsos se balançaram. Então eles tornaram a desequi-librar-se quando o Duque estacou derrapando.

— Lucrezia, isto é insuportável! É por isto quevocê sempre me informa a sala errada?

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— Meu senhor, eu não posso responder pelanegligência dos lacaios — disse uma voz gélida, vindode certa distância. — Qual é o problema?

— Isto — disse o Duque. — Estes...As crianças sentiram que ele estremecia.— São os Montana e os Petrocchi, não são? —

ele continuou.— Não tente me enrolar, Lucrezia. Eu mandei

chamá-los. Eu sei muito bem.— E se fossem? Gostaria de juntar-se a eles,

meu senhor? — perguntou a voz da Duquesa, maispróxima.

Os dois sentiram que o Duque retrocedia.— Não. Claro que não! Minha querida, os seus

desejos são ordens para mim. Eu... só queria saber porquê. Eles vieram simplesmente para falar sobre unsgrifos.

A voz da Duquesa tornou a distanciar-se, en-quanto ela respondia:

— Porque, se quer saber, Antonio Montana meidentificou.

— Mas... mas... — começou o Duque, comuma risada sem graça. — Todos a conhecem, minhacara. Você é a Duquesa de Caprona.

— Quero dizer que ele identificou o que eu sou— disse a Duquesa de longe.

Em seguida ouviu-se o som de uma porta quese fechava.

— Olhem! Olhem só! — disse o Duque numcochicho trêmulo. Enquanto ele ainda falava, Angélicae Tonino apoiavam os pés na bainha dos bolsos e co-locavam a cabeça para fora.

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O que viram foi o mesmo aposento de chãoencerado onde certa vez haviam aguardado e comidodoces, as mesmas cadeiras douradas e o teto cheio deanjinhos. Mas desta vez o piso brilhante estava cheiode fantoches. Os bonecos estavam por toda parte,flácidos e grotescos, espalhados por todos os lados ecaídos como se fossem pessoas que de repente hou-vessem desabado no chão. Estavam em dois grupos;exceto isto, não havia como distinguir qual boneco eraquem. Havia vários Punch e várias Judy, vários Car-rascos, Homens da Salsicha e Policiais, além de um ououtro Demônio. Pela quantidade deles, parecia que asduas Casas haviam entendido que Tonino e Angélicaestavam por trás dos misteriosos grifos, e ambas ha-viam enviado quase todos os adultos. Tonino nãoconseguiu falar. Angélica disse:

— Aquela mulher odiosa! Parece que ela sópensa em fantoches!

— É como ela vê as pessoas — disse o Duqueem tom de infelicidade. — Eu sinto muito por vocêsdois. Ela foi demais para nós. Que mulher terrível!Não consigo imaginar o motivo de ter me casado comela. Mas acho que isso também foi um feitiço.

— Ela deve estar querendo saber onde nósdois estamos. Acha que a Duquesa tem alguma sus-peita de que estamos com o senhor? — Tonino per-guntou.

— Pode ser, pode ser — o Duque respondeu.Ele pôs-se a marchar de um lado para o outro

na sala enquanto os meninos, debruçados para forados bolsos, contemplavam a multidão de fantochesespalhados.

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— Isto agora já não faz diferença para ela, éclaro; ela já acabou com as duas famílias — o Duquecontinuou. — Ah, como sou idiota!

— O senhor não teve culpa — Angélica afir-mou.

— Ah, tive, sim — retrucou o Duque. —Nunca consigo tomar uma decisão. Sempre deixo ascoisas seguirem seu rumo e... Mas o que foi?

A escuridão caiu sobre as duas crianças quandoo Duque baixou as abas dos bolsos.

— Vossa Graça, a esquadra de Pisa está de-sembarcando homens abaixo dos Ancoradouros No-vos — informou o Major cujas botas rangiam. — Eas nossas tropas no sul estão sendo obrigadas a recuarpara os subúrbios.

Eles sentiram que o Duque arriava os ombros.— Na verdade, estamos quase derrotados —

ele disse. — Obrigado... Ah, espere um pouco, Major!Pode me fazer a gentileza de ir até as cocheiras emandar preparar a minha carruagem? Os lacaios rugi-ram quase todos. Faça com que ela esteja na portadaqui a cinco minutos.

— Mas, Vossa Graça... — começou o Major.— Pretendo ir para a cidade e falar com o povo

— o Duque declarou. — Dar a eles... como se cha-ma... apoio moral.

— Um belo objetivo, senhor — disse o Major,com um respeito bem maior na voz. — Em cincominutos, senhor.

E o rangido das suas botas afastou-se rapida-mente.

— Escutaram isto? Ele me chamou de “se-

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nhor”! Coitado! — disse o Duque. — Eu disse a eleum monte de balelas e ele não conseguia tirar os olhosde todos estes fantoches, mas me chamou de “se-nhor” e vai mandar preparar a carruagem, e não vaicontar a ela. Uma caixa de papelão!

A cortina que fechava uma porta balançou-seviolentamente quando o Duque passou por ela e en-trou em outra sala. Ali havia uma mesa comprida nocentro do aposento.

— Ah! — fez o Duque.Ele correu até uma pilha de caixas perto de

uma das paredes. As caixas continham taças de vinho,que o Duque pôs-se a retirar febrilmente, colocan-do-as sobre a mesa.

— Não estou entendendo — disse Tonino.— A caixa. Não podemos deixar para trás as

famílias de vocês para que ela se vingue nelas — oDuque explicou. — Pelo menos uma vez vou tomaruma decisão. Vou pegar a carruagem e sair do Palácio,e ela que ouse me impedir!

Assim dizendo, ele voltou apressado para a Salade Recepções com a caixa vazia e ajoelhou-se pararecolher os fantoches. Quando a aba do paletó delebalançou-se com força, Angélica foi jogada no chão.

— Desculpe-me — disse o Duque.— Pegue-os com cuidado, pois eles sentem dor

— Tonino recomendou.Com cuidado e pressa, usando ambas as mãos

para cada fantoche, o Duque colocou todos eles emcamadas dentro da caixa de papelão. Nesse processo,os Montana ficaram totalmente misturados aos Pe-trocchi, mas não havia como impedir isso. Os três

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temiam que a Duquesa entrasse a qualquer momento,e o Duque não parava de olhar em volta nervosa-mente e depois murmurar consigo mesmo: “Deci-são!”. Ainda estava murmurando isso quando partiu,carregando desajeitadamente a caixa de papelão nosbraços.

— É estranho pensar que neste momento es-tou carregando quase todos os feiticeiros que existemem Caprona — ele comentou.

Um par de botas vinha rangendo na direçãodeles.

— Sua carruagem está à sua espera, senhor —disse a voz do Major.

— Decisão! — disse o Duque. — Quero dizer,muito obrigado. Vou me lembrar de você no paraíso,Major, já que tenho certeza de que é para lá que amaioria de nós logo irá. Enquanto isto, pode fazermais duas coisas para mim?

— Senhor? — disse o Major em tom alerta.— Primeiro: quando você pensa no Anjo de

Caprona, em que é que pensa?— A canção ou a figura, senhor? — o Major

perguntou, agora mais temeroso do que alerta.— A figura.— Ora... — O Major estava outra vez ficando

convencido de que o Duque estava louco. — Pensono Anjo dourado da Catedral, Vossa Graça.

— Grande homem! — exclamou o Duque. —Eu também penso! A outra coisa é: pode levar estacaixa e guardá-la na minha carruagem para mim?

Nem Tonino, nem Angélica conseguiram resis-tir, e espiaram para ver como o Major reagia àquele

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pedido. Infelizmente o rosto dele ficou escondidopela caixa que o Duque lhe colocava nas mãos. Osdois sentiram que haviam perdido uma cena rara.

— Se alguém perguntar, diga que são donativospara o meu povo sacrificado pela guerra.

— Sim, Vossa Graça — disse o Major numtom divertido e indulgente, destinado a agradar oDuque em sua loucura.

Logo em seguida, porém, os meninos ouviramo som de suas botas afastando-se depressa.

— Graças ao Senhor! Ela não vai me pegarcom eles — o Duque exclamou. — Tenho a sensaçãode que ela está vindo aí.

Como o Duque saiu correndo, passaram-se al-guns minutos antes que a Duquesa os alcançasse. To-nino, espiando disfarçadamente, conseguiu ver ogrande Vestíbulo de mármore da entrada quando oDuque estacou com um escorregão. O menino a-pressou-se a encolher a cabeça ao ouvir a voz fria daDuquesa. Ela soava ofegante, porém vitoriosa.

— O inimigo está perto da Ponte Nova, meusenhor. O senhor será morto se sair agora.

— E serei morto se ficar aqui, também — oDuque replicou.

Ele imaginava que a Duquesa fosse negar isso,e ficou esperando, mas ela nada disse. As crianças es-cutaram quando o Duque engoliu em seco. Mas elemanteve a decisão tomada e disse, em tom não muitoresoluto:

— Vou para onde está o meu povo, para con-fortá-lo em suas últimas horas de vida.

— Que tolo sentimental! — disse a Duquesa.

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Não falou era tom de raiva; estava apenas comentan-do um fato, pois era isso mesmo que ela o considera-va.

Diante desse comentário, o Duque disse, commais segurança:

— Posso não ser um bom governante, mas éassim que um bom governante deve agir. Irei... Ireifazer bilu-bilu para os bebezinhos e cantar com oscantores no coro.

A Duquesa riu.— De grande coisa isso vai adiantar, princi-

palmente se você cantar — disse. — Muito bem. Vo-cê pode ser morto lá embaixo ou aqui, tanto faz. Vácorrendo fazer bilu-bilu.

— Obrigado, minha cara — disse o Duquecom humildade.

Mais uma vez ele lançou-se para a frente e des-ceu os degraus de mármore com passos ruidosos. Osmeninos ouviram o som dos cascos dos cavalos nocascalho e sentiram o Duque sacudindo-se.

— Vamos, Carlos — fez a voz dele. — Que é?Para onde está apontando? Ah, sim, um grifo. Quecoisa notável. Vamos logo, está bem?

Ele fez um movimento para cima. As molas dacarruagem rangeram e uma porta foi fechada baru-lhentamente. O Duque fez um movimento para bai-xo. Os meninos ouviram-no dizer “Muito bem!” en-quanto se sentava, e escutaram também o ruído, infe-lizmente bastante familiar aos dois, de batidas no pa-pelão, quando o Duque deu uns tapinhas na caixa queestava ao seu lado no assento. Então a carruagem par-tiu com um guinchar de rodas e o som de patas no

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cascalho. Eles sentiram o Duque dar um suspiro dealívio que os fez saltar dentro dos bolsos.

— Vocês podem sair agora — disse o Duque.Os dois saíram cautelosamente para cima dos

largos joelhos do Duque. Este teve a consideração demover-se para perto da janela, para que eles pudessemver o lado de fora. E a primeira coisa que eles viramfoi um grifo de ferro, completamente retorcido, caídono meio de uma cratera bastante grande, no jardim doPalácio.

— Sabem, se o meu Palácio não estivesse paraser destruído de qualquer maneira pelos soldados dePisa, de Siena ou de Florença, eu processaria vocêsdois por perdas e danos. O outro grifo fez com asgarras dois riscos fundos pela minha fachada abaixo.

Ele riu e enxugou o rosto brilhoso dando unstapinhas nele com o lenço. Ainda se sentia muitonervoso.

Quando a carruagem saiu do pátio para a rua,eles escutaram um tiroteio. Uma parte dos disparossoava bem perto, uma rajada de tiros subindo do rio.A maior parte era distante e intensa, um longo es-trondo vindo das colinas, porque os estampidos eramtão freqüentes que o som era quase contínuo. De vezem quando, porém, em meio à trovoada espocava umclap-clap-clap bem mais próximo. E os três davam umpulo de susto cada vez que isso acontecia.

— Estamos levando uma surra — o Duquecomentou em tom tristonho.

A carruagem diminuiu a velocidade, e eles es-cutaram a voz afetada do cocheiro acima dos outrosruídos.

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— Infelizmente a Ponte Nova está sob ataque,Vossa Graça. Para onde, exatamente, devemos nosdirigir?

O Duque baixou a janela. O ruído redobrou.— Para a Catedral. Siga rio acima e veja se po-

demos atravessar pela Ponte Velha. — Ele fechou ajanela. — Poxa! Não invejo Cario, sentado lá era cima!

— Por que estamos indo para a Catedral? —Angélica perguntou ansiosamente. — Queremos irver os Anjos nas nossas Casas.

— Não. Ela vai pensar neles — disse o Duque.— Foi por isso que perguntei ao Major. Parece-meque o único lugar onde aquelas palavras estão sempreseguras e sempre invisíveis deve ser o Anjo da Cate-dral. A gente logo pensa nele, mas ele está tão alto etão inacessível lá em cima que a gente logo esquece.

— Mas ele está a quilômetros de altura! —Angélica exclamou.

— Acontece que ele tem um pergaminho —Tonino retrucou.

— E parece que esse pergaminho está maisdesenrolado do que os dos nossos Anjos.

— Infelizmente aquele deve ser o único lugarque ela pode ter esquecido — disse o Duque.

A carruagem seguia veloz, a não ser em certotrecho onde uma bala de canhão abrira uma craterano meio da rua. De um modo ou de outro Cario con-seguiu que passassem.

— Bom sujeito, o Cario. Deve ser o único bomsujeito de quem ela não se livrou — o Duque co-mentou.

O barulho diminuiu um pouquinho quando a

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carruagem desceu para o rio e para a Piazza Martia —pelo menos, Angélica e Tonino imaginavam que olugar fosse aquele; descobriram que eram pequenosdemais para enxergar a uma grande distância. Conse-guiram perceber que estavam passando na Ponte Ve-lha, por causa do ronco sob as rodas e dos oratóriostrancados a cada lado. O Duque muitas vezes virou opescoço, assobiou e balançou a cabeça, mas eles nãoconseguiam ver o motivo disso. Reconheceram a Ca-tedral, quando a carruagem virou na direção dela so-bre os paralelepípedos, porque ela era enorme e bran-ca como a neve. O grande sino ainda estava tocando.Uma enorme multidão, composta principalmente pormulheres e crianças, dirigia-se lentamente para a portada igreja. Quando a carruagem parou, estava suficien-temente próxima para Tonino e Angélica avistarem oArcebispo de Caprona em suas vestes esvoaçantes,parado à porta, borrifando água benta sobre cadapessoa e murmurando uma bênção.

— Ora, aí está um homem corajoso. Eu queriaser como ele — o Duque comentou. — Escutem, voucolocar vocês no chão por esta porta, depois saio pelaoutra e mantenho todo o mundo ocupado enquantovocês sobem para o domo. Isto será suficiente?

Enquanto falava, ele abria a porta mais próximaà Catedral.

Tonino e Angélica sentiam-se perdidos e semsaída.

— Mas o que é que devemos fazer?— Subir e ler em voz alta aquelas palavras —

disse o Duque. Ele inclinou-se, recolheu-os em suasmãos quentes e úmidas e plantou-os nos paralelepí-

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pedos frios. Os dois ficaram tremendo sob o grandepára-lama da roda da carruagem.

— Raciocinem: se eu pedir ao Arcebispo paracolocar escadas na torre, ela vai descobrir — disse.

Aquilo fazia sentido, naturalmente. Eles ouvi-ram-no dar um pulo para perto da outra porta e o ru-ído dessa porta ao abrir-se violentamente.

— Ele sempre faz tudo com tanta intensidade!— Angélica comentou.

— Povo de Caprona! — o Duque gritou. —Vim para cá para estar perto de vocês nesta hora detristeza. Acreditem, não escolhi o que aconteceu ho-je...

Da multidão veio um murmúrio e até mesmoalgumas palmas.

— Ele está se saindo muito bem — disse An-gélica.

— É melhor irmos fazer a nossa parte. Agorasó sobramos nós dois — disse Tonino.

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CAPÍTULO XV

Tonino e Angélica percorreram a vasta lateralde mármore da Catedral e, hesitantes, aproximaram-sede uma trave comprida e inclinada. Aquela era a únicacoisa que eles conseguiam avistar que lhes ofereciaalguma chance de subir. Uma vez tendo chegado per-to, constataram que não seria difícil: o mármore davaa impressão de liso, mas, para pessoas pequenas comoeles, era suficientemente áspero para lhes dar apoiopara mãos e pés.

Os dois treparam como dois macaquinhos, o arfrio revigorando-os. A verdade era que, embora eleshouvessem vivido uma manhã repleta de aconteci-mentos, havia sido também uma manhã abafada enada cansativa. Eles estavam cheios de energia, e nãopesavam mais do que algumas dezenas de gramas. Malofegavam enquanto subiam pela encosta longa e friado domo mais baixo. Mas naquele local o restante daCatedral erguia-se diante deles, uma intrincada geleira

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de mármore branco, rosa e verde. Eles não conse-guiam avistar o Anjo.

Nenhum dos dois sabia qual caminho tomarpara continuar a subida. Seguraram-se numa cruzdourada e olharam para o alto. E ali, um emaranhadode pêlos preto-amarronzados e uma nuvem de penu-gem branca surgiram diante deles. Olhos dourados osencaravam intensamente e olhos azuis os contempla-vam placidamente. Um focinho negro e um focinhorosado encostaram-se neles.

— Benvenuto! — exclamou Tonino. — Entãovocê não...?

— Vittoria! — exclamou Angélica, jogando osbraços em volta do pescoço do gato branco.

Mas os gatos explicaram: estavam apressados emuito aflitos. Várias coisas giravam em sua mente,coisas confusas e preocupantes sobre Paolo e Renata,Marco e Rosa. Tonino e Angélica poderiam, por fa-vor, se apressar?

Eles iniciaram uma subida que jamais teriamacreditado ser possível conseguir. Com os gatos paraguiá-los, eles passaram correndo por cima de com-pridos arcos de chumbo e esteios multicoloridos, co-mo pontes vertiginosas, para domos mais altos. Osgatos lhes imploravam sem cessar para andarem de-pressa, e estavam sempre perto quando a subida fica-va difícil. Com a mão no dorso peludo de Benvenuto,Tonino subiu alegremente uma lombada de mármoree passou através de minúsculos canos de drenagemque pendiam acima de pingos enormes; em seguidaescalou correndo superfícies altas e curvas, onde asgrandes costelas de mármore verde de um domo pa-

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reciam tão altas quanto a parede ao lado dele. Mesmoquando começaram a longa e árdua subida do própriogrande domo, nenhum deles ficou preocupado. Emcerta ocasião Angélica tropeçou e conseguiu equili-brar-se segurando-se na pelagem sedosa de Vittoria; eem outro momento Benvenuto pegou a camisolavermelha de Tonino entre os dentes e puxou-o parafora de uma calha profunda. Tonino tinha a impres-são de estar na superfície da lua, apesar do pálido céude inverno acima da sua cabeça e do uivar do vento.O estrondo dos canhões estava quase fora do alcancedas suas diminutas orelhas.

Finalmente eles treparam por entre os gordospilares de mármore para a plataforma no topo dodomo. E ali estava o Anjo dourado acima deles. Osimensos pés do Anjo descansavam sobre um pedestaldourado mais alto do que a estatura normal de Toni-no. Em volta do pedestal havia um desenho, que To-nino contemplou distraidamente, de leopardos dou-rados enlaçados a cavalos alados. Mas ele estava o-lhando mais para cima, para as vestes esvoaçantes doAnjo, as imensas asas estendidas com 10 metros oumais de envergadura, a mão enorme erguida acima dacabeça numa bênção e a outra estendida para o ladode encontro ao céu, ainda mais distante, segurando ogrande pergaminho desenrolado. Mais acima resplan-decia a face vasta e tranqüila do Anjo, indiferente,lançando a sua bênção sobre Caprona.

— Ele é gigantesco! — Angélica exclamou. —Nunca vamos conseguir chegar até aquele pergami-nho, mesmo se tentarmos o dia inteiro!

Os gatos, no entanto, não cessavam de cutu-

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cá-los e empurrá-los para um local no outro lado daplataforma redonda. Curiosos, os dois obedeceram epararam quase sob o pergaminho do Anjo. E ali esta-va a cabeça de Paolo acima da balaustrada, com osseus cabelos castanho-escuros despenteados e o rostoterrivelmente pálido. Um de seus braços segurava otopo da balaustrada de mármore, o outro estava es-tendido para baixo. Tonino espiou entre os pilares demármore para ver o motivo. E deparou com a figurainfeliz e curvada de Renata, agarrada a Paolo.

— Mas ela tem pavor de altura! Como será quechegou tão alto? — disse Angélica.

Vittoria disse a Angélica que ela precisava le-vantar Renata imediatamente.

Angélica enfiou a parte superior do corpo entredois pilares. Ser pequena certamente tinha suas van-tagens: as distâncias que eram impiedosamente imen-sas para Renata e Paolo eram longínquas demais parapreocupar Angélica. Para ela, o domo era como ummundo inteiro.

Paolo, com cautelosa paciência, disse:— Não vou conseguir me segurar muito tempo

mais. Acha que pode fazer outra tentativa?A resposta de Renata foi um gemido e um

tremor.— Renata! — Angélica gritou.Renata levantou lentamente o rosto assustado.— Agora aconteceu alguma coisa com os meus

olhos. Você parece minúscula!— Eu estou mesmo minúscula! — Angélica

gritou.— Os dois estão! — disse Paolo, olhos fixos na

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cabeça de Tonino.— Me puxe depressa — Renata pediu.O tamanho de Angélica e Tonino preocupava

tanto Renata e Paolo que os dois se esqueceram deque estavam a centenas de metros do chão. Paolo pu-xava Renata e Renata empurrava Paolo, e os dois numsegundo passaram por cima da balaustrada de már-more. Ali, porém, Renata ergueu os olhos para o i-menso Anjo de ouro e teve uma recaída instantânea.

— Ai... ai! — gemeu, e deixou-se cair no pe-destal dourado.

Tonino e Angélica aninharam-se em volta dela.O calor da subida havia se esgotado, e eles estavamsentindo cruelmente o vento através das suas finasroupas de dormir.

Benvenuto saltou por cima de Renata em dire-ção a eles. Alguma outra coisa precisava ser feita, elogo.

Tonino tornou a ir espiar através dos pilares demármore, onde o domo curvava-se para longe e parabaixo como um campo de gelo com costelas verdes edouradas. Ali, surgindo à vista por cima da curva, a-pareceu uma farda de um vermelho reluzente que fa-zia os cabelos cor de cenoura de Marco pareceremdesbotados e opacos. A farda combinava ainda menoscom os cabelos de Marco do que o uniforme púrpuraque ele usara como cocheiro — nesse momento To-nino lembrou-se de quem ele era. Mas isso o preocu-pou menos do que ver Marco achatado contra a su-perfície do domo e olhando para trás, coisa que To-nino tinha certeza de ser desaconselhável. Mas portrás das botas de Marco havia uma cabeleira loura que

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se alvoroçava ao vento. E o rosto corado de Rosasurgiu à vista.

— Eu estou bem. Cuide de si mesmo — disseela. Benvenuto, ao lado de Tonino, avisou: eles preci-savam subir mais depressa. Era importante.

— Tragam Rosa e Marco para cá, depressa! —Tonino berrou para Paolo. Ele não sabia se aquela suasensação vinha dos gatos ou não, mas tinha certeza deque Rosa e Marco estavam correndo perigo.

Paolo, contrafeito, foi até a balaustrada, e fezuma careta ao ver a altura.

— Eles vieram nos seguindo e gritando o ca-minho inteiro — informou. — Ei, subam para cá de-pressa! — gritou.

— Muito obrigado! — Marco gritou de volta.— E de quem é a culpa de estarmos aqui em cima?

— Renata está bem? — Rosa berrou. Angélicae Tonino enfiaram-se entre os pilares.

— Andem depressa! — gritaram.A visão deles provocou em Rosa e Marco a

mesma reação que havia provocado em Renata e Pa-olo: os dois fixaram os olhos nas duas figurinhas epuseram-se de pé sem despregar os olhos deles. En-tão, curvados para a frente, braços pendurados, elespercorreram correndo o resto da curva para olharemde perto. Marco subiu a balaustrada e caiu do outrolado. Enquanto ajudava Rosa a subir, ele disse:

— No princípio eu não acreditei nos meus o-lhos! É melhor fazermos um feitiço de crescimentoantes que...

— Abaixem-se! — Paolo gritou.A mensagem de Benvenuto era tão urgente que

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ele também a captara. Ambos os gatos estavam gru-dados ao chão, imóveis, e até mesmo as orelhas caídasde Benvenuto estavam abaixadas. Rosa agachou-se eMarco, contrafeito, apoiou-se num joelho.

— Escute aqui, Paolo... — ele começou.Uma violenta ventania atingiu o domo. Um

vento glacial uivava por cima da plataforma, assobiavaentre os pilares de mármore e descia varrendo a curvado domo. As asas do Anjo vibravam. O vento traziafarpas de chuva e agulhas de gelo, soprando com tan-ta força que Tonino foi jogado de cara no chão. Eleescutava o vento ricocheteando no Anjo e caindo so-bre o domo. Paolo puxou-o para que ele se refugiasseatrás do seu corpo, ao passo que Renata arrastou-setemerosamente até encontrar Angélica e puxou-a porum dos braços para abrigá-la. Marco e Rosa dobra-ram-se para a frente. Era óbvio que qualquer pessoaque estivesse subindo o domo teria sido soprada paralonge.

O vento afastou-se, uivando como um lobo. Ogrupo ergueu a cabeça para o sol.

A Duquesa estava parada na plataforma diantedeles. Pedacinhos de gelo derretido pingavam de seuscabelos e de cada dobra do seu vestido cinzento emarmóreo. O sorriso em seu rosto impassível não eraagradável.

— Ah, não! — ela exclamou. — Desta vez oAnjo não vai ajudar ninguém. Pensavam que eu haviaesquecido?

Marco e Rosa ergueram o olhar para o braçodourado do Anjo que segurava o grande pergaminhoacima deles. Se antes não haviam compreendido, ago-

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ra sabiam. Vendo a expressão subitamente pensativano rosto dos dois, Tonino entendeu que eles estavamtentando recordar algum feitiço para usar contra aDuquesa.

— Não façam isto! Ela é uma feiticeira! —Angélica guinchou. A Duquesa franziu os lábios emoutro sorrisinho desagradável.

— Mais do que isto — disse. Apontando parao Anjo, continuou: — Que as palavras sejam removi-das do pergaminho!

Da imensa estátua veio um forte estalo, seguidopor um som arranhado, como se uma mola tivessesido solta. O braço que segurava o pergaminho co-meçou a mover-se para baixo com suavidade e regula-ridade, produzindo um ruído bem leve. Eles o escu-tavam com facilidade, apesar da súbita explosão detiros vindo das casas no outro lado do rio. O braço doAnjo moveu-se para baixo e para dentro, até pararcom um tranco. O pergaminho, resplandecente ao sol,estava agora entre eles e a Duquesa. Nele havia gran-des letras em relevo. Eles leram: Angelus. Capronensipopulo. Era como se o Anjo estivesse segurando opergaminho para que eles lessem.

— Exatamente — disse a Duquesa.Tonino, porém, achava que, pela surpresa es-

tampada em seu rosto, aquilo não era exatamente oque ela esperava. Ela tornou a apontar para o perga-minho com um dedo longo e branco, como uma velade cera, e disse:

— Apaguem. Palavra por palavra.Todos olharam ansiosamente para as linhas es-

critas. A primeira palavra era Carmen. E, realmente, o

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C maiúsculo dourado estava lentamente afundando efundindo-se ao metal do pergaminho. Paolo fez ummovimento; precisava tomar uma atitude qualquer. ADuquesa olhou de relance para ele, erguendo as so-brancelhas numa expressão de desprezo. Paolo a-chou-se paralisado com as pernas tortas e sentindouma forte cãibra nelas.

Mas ele ainda conseguia falar, e lembrou-se doque Marco e Rosa haviam dito na noite anterior. Semousar tomar fôlego ele gritou, o mais alto que conse-guiu:

— Crestomanci!O vento surgiu novamente. Dessa vez foi uma

rajada forte e ruidosa. E ali estava Crestomanci, atrásde Renata e dos gatos. Crestomanci oscilou e rapida-mente amparou-se na balaustrada de mármore. Aindaestava fardado, mas todo sujo de lama, e dava a im-pressão de estar inteiramente exausto.

A Duquesa girou e apontou para ele o longodedo.

— Você! Eu o enganei!— Ah, foi mesmo — disse Crestomanci.Se a Duquesa tinha esperanças de pegá-lo de-

sequilibrado, era tarde demais. Crestomanci agora es-tava firme.

— Você me fez seguir pistas totalmente erradas— ele continuou. E estendeu uma das mãos, com apalma para a frente, na direção do dedo estendidodela; o comprido dedo da Duquesa curvou-se e delecomeçaram a pingar gotas brancas, como se ele fosserealmente de cera. A Duquesa olhou para o própriodedo e depois dirigiu a Crestomanci um olhar quase

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implorante.— Não — disse Crestomanci, com voz muito

cansada. — Acho que você já fez maldades suficien-tes. Tome a sua forma verdadeira, por favor.

E fez um gesto para ela, como alguém que estácansado de esperar.

Instantaneamente o corpo da Duquesa come-çou a mudar de forma. Os braços encolheram; o rostoesticou-se, permanecendo porém com as mesmasbrancas de expressão sarcástica. No lábio superiorsurgiram pêlos longos e os olhos adquiriram uma luzvermelha, como se fossem lâmpadas. As vestes mar-móreas tornaram-se brancas, incharam e grudaram-seaos tornozelos dela, revelando compridas garras rosa-das em seus pés. E durante todo o tempo ela estavaencolhendo. Dois dentes apareceram na ponta dorosto branco e alongado. Uma cauda cor-de-rosa sempêlos, marcada de anéis como um verme, surgiu ser-penteante por trás da saia e golpeou raivosamente opiso de mármore. Ela continuava a encolher.

Finalmente uma enorme ratazana branca comolhos como bolas de gude vermelhas saltou para abalaustrada de mármore e ficou agachada ali, guin-chando e olhando com ódio, com as costas curvasestremecendo em espasmos.

— O Demônio Branco, que o Anjo foi enviadopara expulsar de Caprona — Crestomanci anunciou.— Certo, Benvenuto e Vittoria, ela é toda de vocês.Dêem um jeito para ela nunca mais voltar.

Benvenuto e Vittoria já estavam a esgueirar-separa a frente. Suas caudas moviam-se sem parar, e elestinham os olhos fixos. Finalmente deram o bote. O

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rato também deu um salto do parapeito para o chão,com um guincho, e disparou domo abaixo. Benvenu-to disparou atrás dele, mantendo-se fora do alcancedo chicote da cauda rosada. Vittoria, uma faísca bran-ca que fazia a grande ratazana parecer amarela, corriapelo outro lado, na altura do ombro dela. Viram a ra-tazana virar-se e tentar mordê-la. E então, repentina-mente, uma dúzia de ratos menores, correndo e guin-chando, veio juntar-se aos três. Todos só ficaram vi-síveis por um instante, antes de ultrapassarem a en-costa do domo e desaparecerem de vista.

— Os ajudantes dela, que vieram do Palácio —Crestomanci informou.

— Vittoria não está correndo perigo? — Angé-lica perguntou.

— Ela é a melhor caçadora de ratos em Ca-prona, não é? — perguntou Crestomanci como res-posta. — Isto é, além de Benvenuto. E quando oDemônio e seus amigos chegarem ao solo, terão to-dos os gatos de Caprona atrás deles. Agora...

Tonino constatou que tinha novamente o seutamanho normal. Ele agarrou a mão de Rosa, e atrásdela ele avistou Angélica, também em seu tamanhonormal, tremendo e puxando para baixo a sua finacamisola azul antes de agarrar a mão de Marco. Ovento era muito pior num corpo grande. Mas o quefez Tonino agarrar-se a Rosa não foi o frio. O casoera que o domo já não tinha o tamanho do mundo,era um montinho que girava numa paisagem mar-rom-acinzentada. As colinas em volta de Capronamostravam-se cruelmente nítidas. Ele via os clarõesdas labaredas e figuras correndo. Aquilo tudo dava a

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impressão de estar quase ao lado dele, ou logo acimadele, como se o minúsculo domo branco houvessetombado de lado. No entanto, as casas de Capronaestavam lá embaixo, a uma distância imensurável, e orio parecia destacar-se delas. A Ponte Nova pareciaquase acima dele, envolta em nuvens de fumaça. Afumaça descia das colinas e escapava em espirais dascasas no outro lado da Ponte Velha, que já não fica-vam no alto, e, pior de tudo, o estrondo do tiroteioera agora quase ensurdecedor. Tonino já não ignoravao que havia assustado tanto Renata e Paolo; ele sesentia como se estivesse girando para a morte.

Ele agarrou-se à mão de Rosa e lançou um o-lhar desesperado para o Anjo. Este, pelo menos, aindaera imenso. O pergaminho, que ele ainda seguravapacientemente na direção deles, era quase tão grandequanto a lateral de uma casa.

— Agora a melhor coisa que vocês podem fa-zer, todos vocês, é entoar estar palavras rapidamente.

— Como assim? Eu também? — Angélica quissaber.

— Sim, vocês todos — Crestomanci confir-mou.

Os seis se reuniram junto ao parapeito demármore, de frente para o pergaminho dourado, coma Ponte Nova atrás deles, e começaram, um poucohesitantemente, a colocar aquelas palavras na melodiade “O Anjo de Caprona”. As palavras ajustavam-seperfeitamente à melodia. Assim que eles perceberamisso, todos passaram a cantar com mais firmeza. An-gélica e Renata pararam de tremer. Tonino soltou amão de Rosa, que por sua vez rodeou os ombros dele

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com o braço. E todos cantavam como se a vida todaconhecessem aquela letra. Era simplesmente a versãoem latim das palavras de sempre, mas era o que acanção sempre pedira.

“Carmen pacis saeculareVenit Angelus cantare,Et deorsum pacem dareCapronensi populo.Dabit pacem eternalem,Sine morbo immortalem,Sine pugna triumphalem,Capronensi populo.En diabola albataDe Caprona expulsata,Missa pax et virtus dataCapronensi populo.”

Quando terminaram, fez-se silêncio. Nenhumsom vinha das colinas, ou da Ponte Nova, ou das ruaslá embaixo; todo ruído havia cessado. Assim, eles le-varam um susto com o ruído metálico que o Anjo fezao enrolar lentamente o pergaminho. As reluzentesasas estendidas dobraram-se para junto do corpo doAnjo, que então sacudiu-as para que as penas se ar-rumassem. E esse som não era metálico, mas sim umsussurro suave de penas de verdade. Ele trouxe con-sigo um perfume de tal doçura que houve um instanteem que eles não tiveram consciência de qualquer ou-tra coisa.

Nesse momento o Anjo alçou vôo. Quando asimensas asas douradas passaram acima deles, o per-

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fume retornou, e com ele o som de cânticos. Pareciaque centenas de vozes cantavam a canção “O Anjo deCaprona”. Eles não tinham idéia se era o Anjo sozi-nho quem cantava ou se era outra coisa. Ergueram osolhos para contemplar a figura dourada que se elevavaem círculos até tornar-se apenas uma centelha doura-da no céu. E o silêncio continuava total, exceto pelamúsica.

Rosa suspirou.— Acho que é melhor descermos.Diante dessa idéia, Renata começou a tremer

novamente. Crestomanci suspirou também.— Não se preocupem com isso.De repente eles estavam todos no chão, sobre

os paralelepípedos do átrio da Catedral. A Catedral eranovamente um enorme edifício branco, as casas esta-vam no alto, as colinas estavam distantes atrás delas eas pessoas que os cercavam estavam tudo, menos qui-etas. Todos corriam para onde conseguiam avistar oAnjo que cintilava ao sol enquanto se elevava. O Ar-cebispo estava em lágrimas, e o Duque também. Elesse apertaram as mãos ao lado da carruagem do Du-que.

Crestomanci trouxera-os para o chão a tempode presenciar outro milagre. A carruagem começou asacudir-se para cima e para baixo e a dar trancos paraos lados, até que ambas as portas se abriram de supe-tão e por uma delas espremeu-se Tia Francesca; Gui-do Petrocchi caiu atrás dela. Pela outra porta tomba-ram Rinaldo e a tia ruiva dos Petrocchi. Depois delesvieram Montanas e Petrocchis misturados, em núme-ro cada vez maior, e qualquer pessoa podia ver que a

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carruagem não poderia conter tanta gente. Os espec-tadores pararam de esforçar-se para avistar o Anjo epassaram a esforçar-se para enxergar a carruagem doDuque.

Rosa e Marco se entreolharam e começaram arecuar para o meio dos espectadores. Mas Cresto-manci colocou uma mão no ombro de cada um.

— Tudo vai ficar bem — ele disse. — E, senão ficar, vou colocar vocês numa casa de feitiços emVeneza.

Antonio desvencilhou-se de um tio dos Pe-trocchi e correu na direção de Tonino e Angélica,acompanhado por Guido.

— Você está bem? Foi você quem soltou osgrifos? — os dois perguntaram ao mesmo tempo; en-tão calaram-se e encararam-se friamente.

— Sim. Sinto muito que vocês tenham sidotransformados em fantoches — disse Tonino.

— Ela foi esperta demais para nós — Angélicacompletou. — Mas sejam gratos por terem recupera-do suas roupas normais. Olhem para nós. Nós...

Então as duas crianças foram separadas pelastias e primas, que temiam que elas se contaminassemuma com a outra, e receberam casacos e suéteres dostios. Paolo também foi afastado de Renata por TiaMaria.

— Não chegue perto dela, meu bem!— Ah, está bem — disse Renata, enquanto era

afastada dali. — De qualquer maneira, obrigada porter me ajudado a subir até o domo.

— Esperem um momento! — exclamou Cres-tomanci era voz bem alta.

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Todos voltaram-se para ele, irritados, porémrespeitosos. Ele continuou:

— Se os membros de cada casa de feitiços in-sistirem era pensar que os membros da outra sãomonstros, posso lhes prometer que Caprona logo vaisucumbir outra vez.

Montanas e Petrocchis o encararam, igualmen-te indignados. O Arcebispo olhou para o Duque, eambos começaram a sair de fininho para irem se refu-giar no pórtico da Catedral.

— De que é que o senhor está falando? — Ri-naldo perguntou em tom agressivo.

De qualquer maneira, a dignidade dele haviasido ferida por ele ter sido transformado em fantoche.O seu olhar parecia prometer esterco de vaca paratodos, sendo a maior parte para Crestomanci.

— Estou falando do Anjo de Caprona —Crestomanci respondeu. — Quando, na época doPrimeiro Duque de Caprona, o Anjo pousou sobre aCatedral trazendo consigo a segurança de Caprona, aHistória declara claramente que o Duque indicou doishomens, Antonio Petrocchi e Piero Montana, paraguardiões das palavras do Anjo, portanto guardiões dasegurança de Caprona. Em memória disso, cada Casatem um Anjo acima do seu portão, e o Anjo da Cate-dral fica sobre um pedestal que mostra o leopardo dosPetrocchi enlaçado ao cavalo alado dos Montana. —Crestomanci apontou para cima. — Se não acreditamera mim, arranjem escadas e subam para ver. AntonioPetrocchi e Piero Montana eram grandes amigos, eassim também eram as suas famílias. Havia freqüentescasamentos entre as duas Casas. E Caprona tornou-se

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uma grande cidade e um Estado forte. Seu declíniocomeçou com aquela briga ridícula entre Ricardo eFrancesco.

Tanto da parte dos Montana quanto dos Pe-trocchi ouviram-se murmúrios de que a briga não ha-via sido ridícula.

— Claro que foi — Crestomanci insistiu. —Todos vocês vêm sendo enganados desde o berço.Deixaram que Ricardo e Francesco os fizessem detolos durante dois séculos. O verdadeiro motivo dabriga nós jamais saberemos, mas eu sei que os doiscontaram as mesmas mentiras às suas famílias. E vo-cês todos continuaram a acreditar nas mentiras deles eforam ficando cada vez mais divididos, até que oDemônio Branco conseguiu entrar novamente emCaprona.

Mais uma vez ouviram-se murmúrios. Antoniodisse: — A Duquesa era mesmo o Demônio Branco,mas...

— Sim — interrompeu Crestomanci. — E porenquanto ela foi afastada, porque as palavras corretasforam encontradas e o Anjo foi despertado pormembros das duas famílias. Eu suspeito que isso sópoderia ter sido feito por Montanas e Petrocchis uni-dos. Vocês poderiam ter cantado a letra correta sepa-radamente até perderem a voz, e de nada teria adian-tado. O Anjo respeita apenas a amizade. Felizmenteos jovens das duas famílias têm menos preconceito doque o resto de vocês. Marco e Rosa tiveram até mes-mo a coragem de se apaixonarem e se casarem...

Até esse momento, ambas as famílias haviamescutado — inquietas, é verdade, porque não era a-

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gradável ouvir um sermão diante de uma multidão deconterrâneos, isso sem mencionar o Duque e o Arce-bispo, mas escutaram. Esta notícia, porém, provocouum pandemônio.

— Casarem? — gritaram os Montana.— Ela é uma Montana? — gritaram os Pe-

trocchi.Todos gritavam insultos para Rosa e Marco.

Quem se desse ao trabalho de contar descobriria nadamenos do que dez tias em lágrimas ao mesmo tempo,todas xingando enquanto choravam.

Tanto Rosa quanto Marco estavam pálidos. Sófaltava Rinaldo abordar Marco com olhar de raiva, efoi o que ele fez.

— Este monte de lixo me derrubou e abriu aminha cabeça. E você se casa com ele! — disse paraRosa.

Crestomanci apressou-se a ficar entre Marco eRinaldo.

— Eu tinha esperanças de que alguém aqui ti-vesse juízo — disse, dirigindo-se a Rosa. Ele dava aimpressão de estar muito cansado. — Era melhor te-rem ido para Veneza.

— Saia da minha frente, seu feiticeiro traidor!— Rinaldo gritou.

— Por favor, dê licença, senhor — Marco pe-diu. — Não preciso ser protegido de um idiota comoele.

— Marco, vocês já imaginaram o que duas fa-mílias de magos poderosos poderiam fazer a você e aRosa? — Crestomanci perguntou-lhe.

— Claro que imaginamos! — Marco respondeu

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com raiva, tentando afastar Crestomanci para o lado.Mas novamente fez-se um estranho silêncio, o

silêncio do Anjo. O Arcebispo ajoelhou-se e os es-pectadores, atemorizados, agruparam-se de um lado edo outro do átrio da Catedral. O Anjo estava voltan-do! Ele veio de longe, ao longo do Corso, desta vez apé, com as pontas das asas roçando os paralelepípe-dos e o coro de vozes crescendo à medida que ele seaproximava. Quando ele atravessou a frente da Cate-dral, viu-se que em cada lugar que uma pena haviatocado nas pedras crescia um arbusto de pequenasflores douradas. Todos sentiram o perfume quando oAnjo, imenso e dourado, aproximou-se e estacouperto do pórtico da Catedral.

Ali ele virou seu rosto tranqüilo e sorridentepara todos os presentes. Sua voz era como uma vozúnica cantando acima de muitas.

— Caprona está em paz. Respeitem o nossopacto. Com isto ele estendeu as asas, deixando aspessoas aturdidas com o perfume. Em seguida come-çou a elevar-se, acima dos domos menores e dos mai-ores, para mais uma vez tomar o seu lugar no grandedomo, protegendo Caprona nos anos que se seguiri-am.

Na verdade este é o final da história, mas aindafaltam algumas explicações.

Marco e Rosa precisaram contar a história delesmuitas vezes — pelo menos tantas quanto Tonino eAngélica contaram a sua. Entre as primeiras pessoas aquem eles contaram estava o Velho Niccolo, que es-tava muito revoltado por ser obrigado a ficar de camae só não se rebelava porque Elizabeth ficou o tempo

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fazendo companhia a ele.— Mas eu estou muito bem! — ele insistia em

dizer.Assim, para mantê-lo na cama, Elizabeth fez

com que primeiro Tonino e depois Rosa e Marco vi-essem lhe contar suas histórias.

Rosa e Marco haviam se conhecido quando osdois estavam trabalhando na Ponte Velha. Apaixo-nar-se e resolver casar-se foi a parte mais fácil, queocupou poucos minutos. A dificuldade era que cadaum deles precisava inventar uma família para si quenada tivesse a ver com qualquer das duas Casas. Pri-meiro foi Rosa quem conseguiu isso; ela fingiu seringlesa. Ficou muito amiga da moça inglesa da Galeriade Arte — a mesma Jane Smith de quem Rinaldotanto gostava. Jane Smith, achando graça em fingirque era irmã de Rosa, escreveu a Guido Petrocchilongas cartas em inglês que supostamente vinham dopai de Rosa na Inglaterra, e chegou a visitar pessoal-mente a Casa Petrocchi no dia em que Rosa foi apre-sentada à família.

Rosa e Marco planejaram cuidadosamente asapresentações. Usaram o feitiço da pereira — queambos confeccionaram — nas duas Casas, para gran-de divertimento de Jane. Mas os Petrocchi, emborativessem apreciado a pereira, no princípio não aceita-vam Rosa. Na verdade, algumas das tias de Marcomostraram-se tão antipáticas que Marco ficou combastante raiva delas. Foi por isso que ele foi capaz dedizer a Antonio tão veementemente que detestava osPetrocchi. Mas com o passar do tempo as tias se a-costumaram com Rosa, e Renata e Angélica passaram

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a gostar muito dela. E o casamento foi realizado logodepois do Natal.

Durante todo esse tempo, Marco não conse-guiu encontrar alguém para fingir ser da sua família.Estava ficando desesperado. Então, poucos dias antesdo casamento, seu pai encarregou-o de levar um re-cado à casa de Mario Andretti, o construtor. E Marcodescobriu que os Andretti tinham uma filha cega.Quando Marco lhe pediu esse favor, Mario Andrettidisse que faria qualquer coisa por qualquer pessoa quecurasse a sua filha.

— Mesmo assim nós mal ousávamos ter espe-ranças — Marco contou. — Não sabíamos se conse-guiríamos curá-la.

— Além disso, a única vez que nós dois ousa-mos ir até lá juntos foi na noite depois do casamento.

De modo que o casamento foi realizado naCasa Petrocchi. Jane Smith ajudou Rosa a fazer o ves-tido de noiva e serviu de dama de honra, juntamentecom Renata, Angélica e uma das primas de Marco.

Rosa comentou em tom seco que Jane adorouo casamento e parecia achar Alberto, primo de Marco,pelo menos tão atraente quanto Rinaldo, ao passo queRosa e Marco só conseguiam pensar na pequena Ma-ria Andretti. Os dois correram para a Casa Andrettiassim que as comemorações chegaram ao fim.

— E eu nunca vi uma coisa tão difícil — Rosacontou. — Passamos a noite inteira trabalhando!

Ao ouvir isso, Elizabeth foi incapaz de con-ter-se.

— E eu nem percebi que você não estava emcasa! — disse.

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— Nós tomamos bastante cuidado para quenão percebesse — disse Rosa. — De qualquer manei-ra, nunca havíamos feito uma coisa assim, de modoque tivemos que estudar os feitiços na Universidade.Tentamos 17 feitiços e nenhum deles funcionou. Fi-nalmente tivemos que fabricar o feitiço nós mesmos.E durante todo aquele tempo eu ficava pensando: seeste também não funcionar, nós demos esperançasfalsas aos Andretti.

— Para não falar nas nossas — Marco acres-centou. — Mas o nosso feitiço funcionou quando jáestava amanhecendo. Maria gritou que o quarto eratodo colorido e que havia coisas como árvores nele,pois ela achou que as pessoas pareciam árvores, e nóstodos começamos a pular e a nos abraçar. E Andretticumpriu a sua palavra, e representou tão bem um ir-mão aqui que eu lhe disse que ele deveria estar no tea-tro.

— Ele enganou até a mim! — disse o VelhoNiccolo em tom surpreso.

— Mas no final alguém certamente iria desco-brir. Que é que vocês fariam então? — Elizabethperguntou.

— Nós simplesmente tínhamos esperanças —disse Marco. — Pensamos que talvez as pessoas pu-dessem acostumar-se com a idéia...

— Em outras palavras, vocês se comportaramcomo um par de jovens idiotas — disse o Velho Nic-colo. — Mas o que é este fedor horrível?

Ele saltou da cama e saiu em disparada para avaranda, para investigar, com Elizabeth, Rosa e Marcocorrendo atrás dele para segurá-lo.

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O fedor, naturalmente, era novamente o feitiçoda cozinha. Os insetos haviam desaparecido e um fe-dor de esgotos havia tomado o lugar deles. Durante odia inteiro a cozinha arrotou cheiros fétidos, que fica-ram mais fortes ao entardecer. Era uma situação par-ticularmente desagradável porque Caprona inteira es-tava preparando banquetes e comemorações. Capronaestava verdadeiramente em paz. As tropas vindas deFlorença, Pisa e Siena haviam retornado para casa(com os soldados perplexos, perguntando-se comohaviam sido derrotados) e o povo de Caprona dança-va pelas ruas.

— E não podemos sequer cozinhar, quantomais comemorar! — gemia Tia Gina.

Então chegou um convite da Casa Petrocchi: aCasa Montana gostaria de unir-se às comemoraçõesna Casa Petrocchi? Era um convite um pouco seco,mas a Casa Montana aceitou-o. O que poderia sermelhor do que isso? Tonino e Paolo suspeitaram queaquilo era obra de Crestomanci.

A única dificuldade era encontrar alguém paraficar com o Velho Niccolo, para que ele não se levan-tasse da cama e fosse com o resto da família. Todosconcordavam que Elizabeth já fizera o suficiente, etodos, até mesmo Tia Francesca, faziam questão de ir.

Então, ainda mais afortunadamente, Tio Um-berto apareceu, e com ele o velho Luigi Petrocchi.Disseram que estavam velhos demais para danças e sesentariam com o Velho Niccolo — e até em cima de-le, se fosse necessário.

De modo que todos os outros se dirigiram àCasa Petrocchi, e a festa foi inesquecível. O Duque

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estava lá, porque Angélica havia insistido. O Duquesentia-se tão grato por ter sido convidado que trouxe-ra consigo todo o vinho e os doces que cabiam na suacarruagem, e seis lacaios em outra carruagem paraservi-los.

— O Palácio está horrível. Lá dentro só exis-tem bonecos de Punch e Judy. Não sei por que, nãogosto mais deles como gostava.

Com o vinho, os doces e a boa comida feita nacozinha da Casa Petrocchi, a noitada foi muito alegre.Alguém encontrou um realejo e todos dançaram nopátio. E, se os seis lacaios se esqueceram de servir osdoces e dançaram também, quem poderia culpá-los?Afinal de contas, o Duque estava dançando com TiaFrancesca — uma visão realmente formidável.

Tonino estava sentado com Paolo e Renata aolado de um braseiro de carvão, observando a dança.E, enquanto eles estavam ali, Benvenuto surgiu derepente das sombras e foi sentar-se junto ao braseiro,onde pôs-se a limpar-se inteiramente com lambidasvigorosas.

Enquanto estendia uma pata acima da cabeça elhe dava um banho de lambidas, ele informou a To-nino que haviam feito um ótimo e agradável trabalhocom a ratazana branca. Ela não voltaria mais.

— Mas Vittoria está bem? — Renata quis sa-ber.

Benvenuto respondeu que ela estava ótima.Estava descansando, já que estava esperando gati-nhos. Seriam filhotes especiais, porque ele era o pai. ETonino não devia deixar de levar um para a CasaMontana.

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Tonino no mesmo instante pediu um filhote aRenata, e Renata prometeu pedir a Angélica. Diantedisso, Benvenuto, tendo terminado de limpar ambasas patas traseiras, acomodou-se no colo de Tonino,onde enrolou-se, parecendo um tapete marrom, edormiu durante uma hora.

— Eu queria conseguir entender o que Benve-nuto diz — Paolo confessou. — Ele tentou me dizeronde você estava, mas a única coisa que eu vi foi umaimagem da fachada do Palácio.

— Mas é assim que ele sempre diz as coisas! Épreciso ler as imagens — Tonino explicou. Estavasurpreso por Paolo não saber disso.

— Que é que ele está dizendo agora? — Rena-ta perguntou a Paolo.

— Nada — respondeu o menino. — Só ronc,ronc.

E todos riram.Algum tempo depois, quando Benvenuto já

havia despertado e ido tentar a sorte na cozinha, To-nino foi dar uma volta e entrou num aposento pró-ximo sem saber muito bem por que fazia isso. Assimque entrou, no entanto, constatou que não havia sidopor acaso: Crestomanci estava lá, com Angélica eGuido Petrocchi, assim como Antonio. Antoniomostrava-se tão carrancudo que Tonino preparou-separa uma repreensão.

— Estávamos falando sobre você, Tonino —disse Crestomanci. — Você ajudou Angélica a trazeros grifos, não foi?

— Foi, sim — Tonino confirmou. Lembrou-sedo estrago causado e ficou com medo.

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— E você ajudou no feitiço da cozinha? —Crestomanci perguntou.

Tonino confirmou novamente. Agora tinhacerteza de que ia levar uma bronca.

— E quando você enforcou a Duquesa, comofoi que fez isso? — Crestomanci perguntou, paragrande confusão de Tonino.

O menino não entendeu como poderia levaruma bronca por ter feito isso também, mas respon-deu:

— Fazendo o que o enredo da peça me man-dava fazer. Eu não conseguia fugir daquilo, de modoque tive que fazer, entende?

— Entendo — Crestomanci disse, e virou-separa Antonio cora expressão vitoriosa. — Está ven-do? E aquele era nada menos do que o DemônioBranco! O que acho interessante é que todas as vezestratava-se do feitiço de outra pessoa.

Então, antes que Tonino ficasse confuso de-mais, Crestomanci tornou a virar-se para ele.

— Tonino, parece-me que você tem um talentonovo e muito útil. Pode não ser capaz de fazer muitosfeitiços próprios, mas ao que parece é capaz de fazeros poderes de magia das outras pessoas serem úteis avocê. Acredito que se tivessem deixado você ajudar naPonte Velha, por exemplo, ela teria ficado pronta emmetade de um dia. Andei perguntando ao seu pai seele permitiria que você fosse para a Inglaterra comigo,para que possamos descobrir exatamente o que vocêconsegue fazer.

Tonino olhou para o rosto preocupado do pai.Não sabia o que pensar.

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— Não para sempre? — perguntou. Antoniosorriu.

— Só por algumas semanas — disse. — SeCrestomanci estiver com a razão, vamos precisarmuito de você aqui.

Tonino sorriu também.— Então não me importo — respondeu.— Mas na verdade fui eu quem trouxe os gri-

fos — reclamou Angélica.— O que era que você queria trazer na verda-

de? — Guido perguntou.Angélica baixou a cabeça.— Ratos — confessou.E pareceu resignada quando o pai soltou uma

risada.— Eu queria conversar sobre você também —

Crestomanci declarou, e voltou-se para Guido: — Osfeitiços dela sempre funcionam, não é? Acho que vo-cês poderiam aprender com Angélica.

Guido coçou a barba.— Está dizendo que podemos aprender a fazer

as pessoas ficarem verdes e a trazer grifos?Crestomanci pegou sua taça de vinho.— É claro que os métodos de Angélica apre-

sentam riscos. Mas o que eu quis dizer é que ela podelhes mostrar que para uma coisa funcionar não precisaser feita sempre da mesma maneira antiga. Acho quecom o passar do tempo ela vai lhes fazer todo umnovo conjunto de feitiços. As duas Casas podem a-prender com ela — afirmou.

E ergueu sua taça de vinho.— À saúde de vocês, Angélica e Tonino. A

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Duquesa pensou que estava raptando os membrosmais fracos de ambas as Casas, e aconteceu que foiexatamente o contrário.

Antonio e Guido ergueram suas taças também.— Vou dizer uma coisa: se não fosse por vocês

dois, não estaríamos comemorando esta noite — de-clarou Guido.

Angélica e Tonino se entreolharam e fizeramuma careta. Sentiam-se muito tímidos e muito, muitofelizes.

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