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DIÁLOGO EM LETÍCIA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO

SUL

CHANCELER - Dom Dadeus Grings

REITOR - Ir. Norberto Francisco Rauch

CONSELHO EDITORIAL

Antoninho Muza Naime

Antonio Mario Pascual Bianchi

Délcia Enricone

Jayme Paviani

Luiz Antônio de Assis Brasil e Silva

Regina Zilberman

Telmo Berthold

Urbano Zilles (Presidente)

Vera Lúcia Strube de Lima

Diretor da EDIPUCRS - Antoninho Muza Naime

EDIPUCRS

Av. Ipiranga, 6681 - Prédio 33

C.P. 1429

90619-900 Porto Alegre - RS

Fone/Fax.: (51) 3320-3523

E-mail [email protected]

www.pucrs.br/edipucrs/

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Ernst Tugendhat

DIÁLOGO EM LETÍCIA

Tradução:

Maria Clara Dia

Ana de Resende

Coleção:

FILOSOFIA - 133

PORTO ALEGRE

2002

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© Copyright de EDIPUCRS

Título original: Dialog in Leticia, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main 1997

Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da BC-PUCRS

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização expressa desta

Editora

Capa: Larissa Goldoni e Roberta Wencel

Diagramação: Isabel Cristina Pereira Lemos

Diagramação da versão digital: Paolla Monticelli

Revisão: Maria Clara Dias

Cooperação: Julien Charles Bonnin

Impressão: Gráfica EPECÊ, com filmes fornecidos

Coordenador da Coleção: Dr. Urbano Zilles

T915d Tugendhat. Ernst

Diálogo em Letícia / Ernst Tugendhat; tradução de Maria Clara

Dias, Ana de Resende. — Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.

126 p. — (Coleção Filosofia; 133)

Tradução de: Dialog in Leticia

ISBN: 85-7430-288-O

1. Filosofia 2. Ética I. Título II. Série

CDD 170

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PREFÁCIO

Este texto foi escrito na segunda metade de 1995 em Santiago, no Chile, e

não encontrou muita aceitação em um colóquio no semestre de verão em

Constança. Há, possivelmente, alguns erros (se ao menos soubesse exatamente

quais), e outras formulações são demasiadamente curtas ou construídas de forma

pouco clara. Apesar disso, conservo a versão original. Após ter-me corrigido tão

freqüentemente nos últimos anos, não devo agora segui-lo sempre fazendo. A

questão acerca do que possa ou não ser útil neste texto, o leitor deverá decidir por

si mesmo. Além disso, nunca houve um autor filosófico cujas afirmações não

fossem julgadas por seus leitores de forma distinta da sua.

Devo agradecer aos meus pacientes e sagazes interlocutores de Constança

e também ao Institut für die Wissenschaften vom Menschen, de Viena, que, durante

o período previsto para elaboração final, hospedou-me com grande amabilidade e

indulgência.

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CAPÍTULO I

O senhor de São Domingo e o diálogo foram, de uma forma ou de outra,

inventados, O lugar, não. Existe, ao sul da Colômbia, um estreito corredor entre

Peru e Brasil, que fornece ao país um acesso ao Amazonas, e cujo porto é Letícia.

O fato de que tenha escolhido Letícia não tem nada a ver com a etimologia do

nome, mas antes, talvez, com o fato de que eu tenha pensado, naquele tempo, em

passar da América Hispânica ao Brasil. Letícia é um lugar entre dois mundos, que

juntos formam, por sua vez, um mundo que se diferencia, por exemplo, da Europa

Central, apesar de ser igualmente europeu — embora aqui e lá isto não seja, em

geral, encarado assim. Para a escolha de meu interlocutor, as diferenças

geográficas (ao menos estas) não desempenham, em um certo nível de abstração,

papel algum.

Já nos havíamos reconhecido e cumprimentado no portão de embarque do

avião, em Bogotá. Nos últimos cinqüenta anos, desde que ele, por um curto

período, me deu aulas particulares de espanhol, não havíamos mais nos visto.

Naquele tempo, em Caracas (ele vivia sem mulher, cercado por dezesseis cães, e

sempre me recebia fumando e de pijama), impressionou-me não apenas por sua

erudição, mas por suas (para mim) provocativas concepções políticas (eu tinha, na

época, quinze anos). Como emigrante procedente de outro lugar — fugira da

ditadura de Trujillo, na República Dominicana — tinha um ódio enorme pelos

norte-americanos. Para ele, os nazistas não eram os únicos demônios. Esta foi

minha primeira experiência no perspectivismo moral, e ele, minha primeira figura

marcante de mestre.

Três horas depois nos encontrávamos, mais uma vez, no porto de Letícia.

Ele queria ir de barco a Iquitos. Eu queria navegar rio abaixo, rumo ao Brasil.

Ambos tínhamos ainda muito tempo e sentamo-nos em um bar. Lá ele se lançou

imediatamente à filosofia, e, mais especificamente, à minha filosofia, tal como

―moscas no mel‖ 1. Ele me disse que acompanhava meus escritos em filosofia

moral, desde 1978.

T: Com o meu último livro, Lições sobre Ética (1993), pensei ter

descoberto o ovo de Colombo, mas, logo depois da publicação, acometeu-me a

1 Nota da tradução: No original: ―eine Gans...‖ (―como um ganso se atira às maçãs

podres‖)

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dúvida de ter incorrido novamente em erros grosseiros, justamente com relação

ao tema principal — a questão da justificação2.

I: É surpreendente que você tenha sempre retrocedido na filosofia moral.

Seus escritos, desde as Retratações de 1983, dão a impressão de que você sempre

procurava apenas reparar a dificuldade da posição anterior. Mas, em contrapartida,

você manteve intactos alguns pressupostos problemáticos. Quando alguém vê o

percurso em seu todo, deve se perguntar o que propriamente aconteceu. Você

ficará surpreso se eu disser que considero as Três Preleções, de 1981 — justamente

o trabalho que você rejeitou, com a publicação das Retratações — sua obra mais

importante. Nele é visível o progresso realizado face ao seu primeiro artigo em

teoria moral, de 1978, — ―Linguagem e Ética‖ (Philosophische Aufsätze, p. 275,

no original): você desenvolve, na primeira das três conferências, um novo conceito

do que deve ser compreendido por justificação da moral, que eu considero

convincente e com o qual, por minha vez, trabalho, desde então. Mas, nas

Retratações — que você publicou simultaneamente às Três Preleções em

Problemas da Ética (Reclam, 1984) —, interrompe-se a linha ascendente, e você

fica como que preso em um atoleiro, do qual, desde então, você não saiu mais. E

por quê? Para você, o conceito sobre como a moral na modernidade deve ser

justificada — ao qual você havia chegado no final da terceira conferência —

parecia ser irremediavelmente contratualista. Mas a posição não era de forma

alguma contratualista; ela permaneceu apenas corno urna insinuação. Você partiu

do pressuposto correto de que uma moral moderna só pode ser justificada na

medida em que a instância de justificação possa ser constituída apenas dos

interesses empíricos de cada um. Pode-se seguramente chamar a isto de uma

posição instrumentalista, mas instrumentalismo e contratualismo não são a mesma

coisa. O contratualismo é apenas uma forma de instrumentalismo.

T: Isso você terá que me explicar. Em primeiro lugar, estou, de fato,

impressionado com a sua alta estima por este trabalho antigo. Devo admitir que

eu nunca mais o revi.

I: Isto se nota, lamentavelmente, disse ele rindo. Ninguém, exceto eu,

levou a sério esse trabalho, e isto é bastante compreensível, posto que você

mesmo, já na sua publicação, o reprovou (ver o ―prefácio‖ de Problemas da

Ética, p. 8, no original). Acrescente- se a isto o fato de Jürgen Habermas, antes

mesmo da sua publicação, ter discutido o manuscrito original em inglês no

―excurso‖ do livro Consciência Moral e Agir Comunicativo (p. 78 ss., no

original), de tal modo que o escrito tornou-se irreconhecível. E, no meio anglo-

saxão, ele foi conhecido apenas desta forma indireta.

2 Nota da tradução: A expressão alemã ―Begründung‖ será aqui traduzida por

―justificação‖, seguindo a orientação do próprio autor.

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T: No que diz respeito às Retratações, devo admitir que as escrevi

demasiadamente rápido, e que oscilei, face ao problema da justificação da moral

moderna, entre diferentes concepções.

I: Não é isto o que estou querendo dizer. Qualquer um pode escrever de

modo apressado e hesitante. As seções 2 e 3 são o que há de mais obscuro em seu

trabalho. Isto não seria, contudo, um infortúnio. O infortúnio consiste na idéia fixa

de que a única possibilidade de afastar o suposto contratualismo de 1981 seja a

aceitação de uma ―propriedade essencial‖ aos integrantes da comunidade moral.

Com razão, você defende, desde 1981, a concepção de que aquilo que você chama

moral tradicional sempre se apoiou em uma propriedade supra-empírica, na qual se

acreditava (como, por exemplo, ser filho de Deus ou estar sob a tradição de uma

outra autoridade). Esta foi a base a partir da qual você insistiu, nas Três Preleções,

que a moral na modernidade só poderia ser justificada em interesses empíricos. Ao

invés disso, você novamente se dirige, nas Retratações, a uma propriedade, não

mais supra-empírica, mas ―essencial‖ (p. 153, na edição original). Isso se torna

análogo ao modo como, na tradição estóica falou-se na ―natureza‖ da pessoa, o

que, para nós na tradição católica, tinha conseqüências lamentáveis. Não foi tão

terrível que você tenha, naquela época, defendido esta concepção, mas sim que

você, até as Lições sobre Ética, inclusive, não a tenha fundamentalmente posto em

questão, ainda que a referência a uma ―propriedade essencial‖ não reapareça de

forma explícita; nas Lições, ela é substituída pelo discurso acerca de uma

―concepção de bem‖. Os trabalhos mais explícitos são os dois artigos do período

intermediário — ―Zum Begriff und zur Begründung von Moral‖ e ―Die

Hilflosigkeit der Philosophen‖ (Philosophische Aufsätze, p. 315 e p. 371, no

original) — pois, em ambos, você insiste em que, frente aos interesses empíricos

— você continua a falar simplesmente de contratualismo — algo mais é exigido

para que possamos falar de ―consciência moral‖ (Gewissen) e de ―respeito moral‖,

declarando, no entanto, não saber em que deve ser justificado este ―mais‖. Aqui,

vemos você se debater em seu próprio anzol.

I: Eu achava, então, que não poderia fazer mais do que apenas assinalar a

dificuldade. Abandonei a esperança de encontrar uma solução, porque me parecia

claro que, na modernidade, não se poderia postular algo de superior, quer religioso

quer metafísico. A solução instrumentalista (como você a chama) parecia-me, no

entanto, insustentável. Eu via, como também nas Lições, a relação face ao

contratualismo de forma semelhante àquela que se apresentava para Kant: o

contratualismo aparece, em Kant, como base, por assim dizer; mas para poder falar

de uma consciência moral e de um dever incondicional, ele acreditava ter que

introduzir sua razão pura. A ética do discurso é uma variante, na medida em que

ela mantém o conceito forte de razão, embora o interprete de outra forma. Que esta

razão ―com maiúscula‖ — como eu a chamava — era pura ilusão, já me parecia

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claro, há muito tempo. Como, então, compreender o ―mais‖ procurado? Sugeri,

então, nas Lições, que há um sentido de bem, e nenhum outro, que não precisa ser

reconhecido por todos, mas que poderia sê-lo (p. 80, na edição original). ―E

nenhum outro‖ quer dizer: pode-se, ao menos, justificar que o contratualismo

reforçado através do respeito seja o único conceito de bem que ainda resta, e que,

no entanto, deixa em aberto a liberdade de cada um se submeter a ele. Nesta

liberdade, no conceito de autonomia, portanto, parece estar agora a solução.

I: Mas isto era justamente apenas o ovo de Colombo, riu ele. É essencial,

acima de tudo, tornar clara a continuidade entre esta tentativa de solução e a

posição das Retratações. Os pressupostos são os mesmos. Era preciso, antes dc

mais nada, poder referir-se a uma ―qualidade essencial‖, mas esta, agora, não

precisa ser real, mas apenas possível. Mas não se pode construir uma moral com

base em uma qualidade possível, ainda que esta seja a única do ―ser bom‖

(Gutsein). Some-se a isto que você desvirtuou, nas Lições, o que e o conto algo

pode ser justificado na moral. A questão não é se uma determinada concepção

pode ser justificada como concepção de bem, mas se esta concepção pode ser

justificada face a outros indivíduos, ou melhor, como os indivíduos podem

fundamentá-la reciprocamente. Aqui eles devem poder remeter-se a algo real, com

o qual eles se identifiquem; se isto não puder ser uma ―propriedade superior‖, só

pode ser seu interesse. Você tem ressaltado, com razão, desde o final dos anos

oitenta, a importância dos sentimentos morais: indignação, ressentimento e

sentimento de culpa. Nestes sentimentos negativos constitui-se finalmente o dever

moral. Como, no entanto, justificar frente a outro, que, quando ele se comporta de

tal ou tal modo, tem motivo para sentir-se culpado, porque deve contar com a

legítima indignação dos outros, se a culpa e a indignação devem depender de que

ele apenas possivelmente compreenda-se a si mesmo desse modo?

T: Mas isto faz sentido. Quando alguém não aderiu ao jogo da

moral, a indignação cai no vazio.

I: Não questiono que a liberdade possua aqui um lugar importante. E

também sistematicamente forçoso que, assim como você diz, o dever repouse

sobre um querer. Não obstante, você atribuiu um peso à possibilidade de “lack of

moral sense” que, segundo a minha visão, ela não tem. Quando você fala de jogo

da moral‖, eu apenas posso responder: a moral precisamente não é um jogo. A

distinção consiste em que cada um está livre para tomar ou não parte em um

jogo. Está-se sujeito, ao contrário, aos sentimentos morais negativos, queira-se

ou não (aqui eu apenas repito suas próprias elucidações). As normas às quais se

relacionam tais sentimentos podem ser consideradas tanto como justificadas

quanto como injustificadas, e elas devem poder ser justificadas frente a alguém,

para que ele as perceba como legítimas. Digo ―ele‖, porque ainda não se impôs

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entre nós a maneira européia e anglo-saxã, que nos obriga a dizer ―ele‖ ou ―ela‖

ou mesmo apenas ―ela‖ 3.

T: Eu sei. Vocês são mesmo uns machistas incorrigíveis.

I: Isto pode ou não ser verdade. Mas acreditar poder transformar algo

através da desfiguração da língua ou até da religião é, em seu farisaísmo, ainda

pior.

T: Sem dúvida. Mas não perca o fio da meada.

I: Bem, o que eu queria dizer é: justificar as normas morais significa

fundamentá-las face a qualquer integrante da comunidade moral. Mas não

podemos fazê-lo quando, para isto, precisamos nos referir a uma propriedade que

paira no ar como uma mera possibilidade. As normas só podem ser justificadas

para alguém em relação a seus interesses empíricos comuns, e este alguém precisa

saber que o mesmo vale para todos. Com isso, permanecemos com o princípio

instrumentalista que você rejeitou, desde as Retratações.

T: Rejeitei apenas porque ele não me parecia viável. Posso ter sido

precipitado. Pois, no fundo, eu sei: quando uma moral não pode ser justificada face

a qualquer pessoa em relação aos seus interesses normais, mas parte de

determinados pressupostos, nos quais ela tem que acreditar — sejam eles religiosos

ou metafísicos ou assim chamados transcendentais, ou mesmo nacionais, ou se

quiser, por exemplo, ecológicos —, então, perde-se todo o espírito de uma moral

moderna. Não podemos excluir que tais morais reapareçam também na

modernidade, como nas correntes fundamentalistas e até no facismo. Mas a

questão deve ser, então: supondo que nós não acreditamos em algo especial, nem

em algo considerado como próprio do ser humano, como a razão ―com maiúscula‖,

nem, muito menos, em propriedades com valores inerentes, por exemplo, a um

grupo, restaria ainda uma moral que nós, enquanto pessoas comuns, pudéssemos

querer. E como seria tal moral? Ela tem que ser única? Tão importante como a

delimitação face a conteúdos de crenças é a delimitação contra supostos conteúdos

determinados pela pesquisa biológica ou psicológica. Naturalmente todas as

pessoas (ou quase todas) têm uma disposição para a moral, mas isto significa que

elas têm a capacidade de aprender comportamentos morais apoiados por

sentimentos morais mútuos e por justificações morais recíprocas, e o que é assim

aprendido, pode ser muito diverso em relação ao conteúdo. Os sistemas morais

(para falar nestes termos) nos quais as pessoas se normatizam e,

consequentemente, se socializam são diferentes dos ―sistemas morais‖ de outras

espécies. Como não são dados de antemão, isto significa que eles só poderiam ser

3 Nota da tradução: No original ainda se acrescenta ―bem como a mudanças dos sufixos

para o feminino, e até a reformulação do Pai-Nosso‖, o que preferimos omitir para

preservar a fluidez do texto.

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justificados, e aqui estou de acordo com você, ou bem com relação a propriedades

em que se acredita (pode-se dizer, da mesma maneira: relativamente a interesses

que se crêem superiores) ou com relação aos nossos interesses comuns. Supondo

que exista uma moral humana geral, então, este ―exista‖ não pode significar que

todas as pessoas a possuam, como um dado metafísico-transcendental ou

biológico-psicológico, mas que ela pode ser justificada frente a todas as pessoas.

Mas quando ela pode ser justificada frente a todas as pessoas sem recorrer a um

dado, portanto, a um sentido moral ou algo semelhante, isto só pode significar, tal

como você disse, justificá-la instrumentalmente. Você deveria mostrar agora como

isto é possível.

I: Você tem razão, eu tenho agora o onus probandi. Mas antes que eu

comece, deveríamos assegurar-nos da compreensão correta do conceito de

justificação moral, como você agora o utilizou, mais uma vez, tal como nas Três

Preleções, para que ele não possa nos escapar, tal como em seu último livro.

T: De acordo. Eu mesmo devo me surpreender de que, neste livro, eu

aponte o problema da justificação na moral como central, mas que não o tenha

esclarecido, a fundo, em parte alguma.

I: Se você entende assim, concordará também que eu preciso aqui extrair

algo mais. Se nós não tivermos esclarecido realmente este ponto, todo o resto será

construído sobre areia. Mais simples, talvez, seja que eu enuncie as teses e as

discuta caso a caso.

T: Faça isto. Quando eu não estiver de acordo, levantarei objeções.

I: Bom. Podemos, tal como você fez em seu livro, partir do lugar-comum

sociológico de que a moral de uma comunidade consiste naquelas regras que se

apóiam na coerção social. Aqui você fez, com razão, dois esclarecimentos (Lições

sobre Ética, p. 47. no original): em primeiro lugar, a coerção social não é apenas

algo externo, ela consiste em uma sanção interna que se constitui na referência

recíproca entre indignação e sentimento de culpa. Esta sanção interna constitui o

sentido específico do dever moral. Em segundo lugar, designamos como morais as

normas correspondentes, apenas quando elas são vistas como justificadas. Esta é,

então, a primeira tese: a pretensão de estar justificada é uma característica

definidora de tudo que diz respeito à moral. Quero deixar inicialmente em aberto se

esta característica serve para delimitar o moral e o convencional, tal como você fez.

De todo modo, pode-se esclarecer com esta característica como as normas morais

se distinguem das normas de um jogo, e a razão disto se mostrará importante para o

que se segue. As normas de um jogo não erguem a pretensão de estar justificadas

— não seria sequer compreensível o que isto devesse significar —, e isto se

relaciona com o fato de que as normas de um jogo não carecem de justificação (ver

Problemas da Ética, p. 75, na edição original). É surpreendente que, sendo a

pretensão de justificação característica de todas as normas morais, justamente hoje

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em dia, muito do que é escrito sobre a moral não leve esta característica sequer em

consideração. A ética do discurso constitui aqui uma honrosa exceção. — A

segunda tese diz respeito à questão sobre o que se quer dizer aqui com ―estar

justificado‖. Freqüentemente se diz: os enunciados morais possuem um caráter

assertivo e erguem com isto uma pretensão de justificação. Mas aqui caímos

imediatamente em uma grande confusão. Primeiro, o que são enunciados morais?

Enunciados valorativos, enunciados da forma ―fazer x é bom/ruim‖ ou enunciados

normativos, enunciados da forma ―x deve/não deveria ter feito‖, e são ambas as

formas de enunciados traduzíveis uma na outra? Os enunciados valorativos não

constituem uma variante em todas as línguas. Há, a propósito, enunciados

valorativos que, mesmo quando erguem uma pretensão objetiva (intersubjetiva),

não erguem pretensão de justificação, tal como os enunciados estéticos. E também

entre os enunciados normativos não é certo que eles, em geral, erguem uma

pretensão de justificação: as normas de um jogo são formuladas em enunciados

que possuem essa mesma forma, mas que não erguem tal pretensão de justificação.

T: Você quer dizer, então, que, a partir da forma linguística, nada pode ser

concluído acerca do que possa significar aqui ―justificado‖. Concordo em essência.

Talvez possa ajudar, esclarecer que o problema da justificação em enunciados

valorativos e normativos freqüentemente tem dois níveis. Quando é dito ―o que

você fez é ruim‖ (ou: ―não se deve agir assim‖), é inteiramente normal que tais

enunciados sejam encarados como asserções que podem ser justificadas em um

sentido totalmente normal, ainda que, em um sentido normal muito preciso, a

saber, dedutivamente (uma justificação indutiva não teria sentido). Isto quer dizer,

contudo, que os juízos normativos e valorativos concretos se fundam em normas

mais gerais, mas isto não pode se dar indefinidamente. De modo que a moral,

assim encarada, se basearia sempre em normas que, por sua vez, não seriam

passíveis de justificação ulterior.

I: Correto. Isto também quer dizer que elas, quando não são passíveis de

justificação ulterior, não podem mais erguer qualquer pretensão de justificação,

pelo menos, não no sentido de asserções. Mas ou não está correto o que sustentei

na primeira tese, isto é, que todas as normas morais erguem uma pretensão de

validade, ou, então, esta pretensão de ser justificado não se dá do mesmo modo

como nas asserções. Como resulta, ao menos da forma linguística, você pode

observar que, também com relação às normas de um jogo, empregamos palavras

como ―real‖ e ―verdadeiro‖, sem que, com isso, esteja implicada uma pretensão de

justificação. Analogamente se supõe, portanto, que, quando falamos daquelas

normas iniciais às quais você se referiu, como, por exemplo, ―é realmente o caso

que não se deve matar‖, o ―realmente‖ não remete a nenhuma exigência de

justificação. As palavras ―realmente‖ (wirklich) e ―verdadeiramente‖ (wahr) têm

aqui apenas o sentido de acentuar o que o enunciado enfatiza. Alguém pode, por

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exemplo, duvidar se o pequeno ―roque‖ 4, no xadrez, é executado exatamente deste

modo, pode-se responder ―claro, é realmente assim‖, e isto quer dizer apenas que

essa é realmente a regra neste jogo. — Uma curiosa variante com relação a isto é a

concepção de Habermas: normas e asserções (Aussagen) são duas formas

lingüísticas distintas, mas ambas teriam uma pretensão de justificação: as

asserções, de serem verdadeiras, e as normas, de serem corretas, e ambas são

compreendidas analogamente e caem sob um conceito genérico unitário, que ele

designa como ―validade‖. Mas, como decorre do que acaba de ser dito, a palavra

―verdadeiro‖ (wahr), no caso da pretensão de justificação de asserções, não

desempenha papel algum. Sabemos muito bem, no entanto, o que significa

justificá-las, de modo que é correto dizer: compreender uma asserção significa

saber o que significa justificá-la. Não faz sentido dizer algo análogo sobre as

normas. Eu compreendo o que são as normas do jogo de xadrez, mas isto não

significa, em geral, que eu compreenda como elas devem ser justificadas: elas não

são para ser justificadas. As normas morais, ao contrário, erguem uma pretensão de

justificação, mas não são inteiramente compreensíveis, sem que se saiba como

devem ser justificadas. Habermas ateve-se aqui, portanto, meramente à intuição de

que as normas morais erguem uma pretensão de ser justificadas, mas, através da

analogia com as asserções, obstruiu a questão do que significa para as normas

estarem justificadas. A orientação pela mera forma linguística é aqui, em todo o

caso, perniciosa, quer elas sejam consideradas como asserções, quer sejam

colocadas em analogia com as asserções. Nas Três Preleções, você formulou

corretamente que uma norma é um imperativo generalizado, e um imperativo é

uma sentença (Sat), cujo sentido, em contraposição a uma sentença assertiva

(Aussagesaiz), não está preso à justificação. . . A idéia de que uma norma como tal

poderia ser justificada — assim como uma asserção como tal é justificada — é,

portanto, despropositada (p. 76 s., na edição original). Coloca-se, então, a questão:

se uma norma, enquanto tal, não é justificável, o que nela é, então, justificável, e o

que se quer dizer aí ―ser justificado‖, em determinados casos, a saber, no caso das

normas morais e não no das normas de um jogo? O rodeio que você realiza neste

ponto, nas Três Preleções, sobre o denominado predicado de justificação de

normas, faz sentido, mas não é obrigatório. O decisivo é que a justificação, quando

se está falando da pretensão de justificação de normas morais, deve ter o mesmo

sentido que quando se fala da necessidade de justificação que possuem, ao

contrário das normas de um jogo. Cito, mais uma vez, as Três Preleções: ―o

sentido de justificação é, portanto, não o de uma justificação de (um ente

lingüístico), mas de uma justificação para (um agir): a justificação é uma

justificação para entrar numa práxis intersubjetiva que é definida por um sistema

4 Nota da tradução: Lance do jogo de xadrez, a saber: a troca do rei pela torre.

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normativo‖ (p. 84, na edição original)5. Neste ponto, você havia reconhecido

corretamente que a justificação aqui tem o sentido da indicação de um motivo.

Usamos a palavra Grund (razão, motivo), tal como em inglês, espanhol etc.,

reason, razón etc., em duplo sentido: no sentido de razão para uma asserção ou no

sentido de motivo para um agir. Perguntamos, por exemplo, qual a razão para sua

viagem? Ou por que, por qual razão, você passeia diariamente? E, em resposta, é

nomeado o motivo. Sua tese, nas Três Preleções, era, então, a de que — e ela me

parece correta —, quando se fala em necessidade ou pretensão de justificação de

uma norma moral, não se tem em mente algo como uma razão para uma asserção,

mas uma razão no sentido de motivo. Aqui não se trata, contudo, de uma única

ação, mas do entrar6 (einzugehen) numa práxis intersubjetiva. Como se deve

entender isto? Em um jogo, é-se livre para tomar parte ou não, e, por causa disto, o

sistema normativo não exige nenhuma justificação. Uma moral é, em

contrapartida. uma práxis de vida, que implica uma restrição do âmbito da

liberdade, e, ainda mais, quando se pensa nas sanções dos sentimentos morais.

Aqui um motivo deve ser assinalado para o indivíduo, uma razão pela qual se

sugere que ele esteja voluntariamente disposto a entrar nesta práxis de possíveis

censuras mútuas. A expressão ‗fundamento‘ tem, portanto, em primeiro lugar, um

sentido prático e, em segundo, um sentido dirigido aos indivíduos: o entrar numa

práxis normativa exige, primeiramente, justificação, de cada um. Aí, então, estará

eventualmente justificado. Mas posto tratar-se de uma práxis recíproca e universal

no cerne de uma comunidade, esta se constitui exatamente como uma práxis que se

exprime, também por isto, em um imperativo geral, cada qual sabe que a questão

se coloca da mesma maneira para os demais. Não se pode entrar nesta práxis

isoladamente. De acordo com seu próprio significado, os sentimentos morais são

sentimentos comuns, e neles está expresso que não apenas eu, mas que nenhum

outro, deve transgredir as normas, e nisto consiste que a práxis normativa deva ser

igualmente justificada frente a todos, isto é, que todos devam ter um motivo

análogo para entrar na práxis. Portanto, o fato de que a justificação deva ser

compreendida, em primeiro lugar, individualmente, implica (dado que se trata de

uma práxis comum) que esta práxis deva poder ser justificada igualmente face a

todos. Daí resulta. então, a possibilidade de se dizer diretamente das normas que

elas são justificadas, mas esta maneira de falar é, agora, fixada de tal forma, que

exprime que todos têm igualmente um motivo para entrar no sistema normativo. —

Por favor, não me interrompa ainda. Preciso esclarecer os diferentes aspectos desta

5 No original, diz-se ―einer Aussage‖ (―uma asserção‖), ao invés de ―einem

spraclichen Gebilde‖ (―um âmbito da linguagem‖). 6 Nota da tradução: O autor utiliza a palavra ―eingehen‖, em seu sentido literal, isto é,

―entrar dentro‖ ou ―entrar em‖.

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definição, que ainda não é encontrada nas Três Preleções. Em primeiro lugar, a

formulação de que as normas são justificadas, soa linguisticamente como uma

aproximação ao modo de falar do justificado de uma asserção, mas isto é uma

aparência superficial. Tão logo se pergunte o que isto quer dizer, a elucidação do

que foi dito na definição é inevitável: que todos têm igualmente um motivo para

entrar nela. Que a norma é justificada é, então, apenas uma abreviação de que ela é

igualmente justificada face a todos. Em segundo lugar, uma norma precisa ser

realmente justificável frente a todos e, além disso, igualmente? Naturalmente

apenas quando ela deve ser moral. Partimos da definição de que as normas morais

erguem uma pretensão de justificação e o fato de que isto equivale a que tenham

que estar justificadas por igual frente a todos é algo que se segue de sua

necessidade de justificação frente a todos igualmente. Com isto, não está excluído

que, em uma comunidade, também existam normas que, frente àqueles que a elas

estão submetidos, não sejam vistas como demandando justificação. Neste caso, no

entanto, não se trata de normas morais, mas de normas de poder. Os concernidos

— em caso extremo: os escravos — são forçados a observá-las, e não há

naturalmente qualquer pretensão de justificação frente a eles, pois eles não são

integrantes da comunidade moral.

T: Bem, posso dizer alguma coisa agora? Quero, antes, tentar recapitular

os passos essenciais deste raciocínio, para estar certo de que o compreendi

corretamente. Você se coloca tanto contra aqueles que tomam o ―ser justificado‖

(Begründersein) de uma norma como algo imaginário ou secundário, como

também contra aqueles que simplesmente pressupõem que a justificação de normas

precisa ser entendida como — ou de modo análogo — a das asserções. Ao invés

disto, você parte primeiramente do fato universal de que ninguém aceita uma

norma que não considere justificada. Uma criança, por exemplo, pergunta aos pais:

por que vocês reagem desta maneira quando eu faço tal e tal coisa? Os pais lhe

fornecerão o motivo que eles, e todos os demais também, têm para reagir tão

negativamente à transgressão da norma e, se eles não podem fornecer uma razão

(Grund) pela qual se reage mutuamente assim, sentirão isto como uma deficiência.

A norma aparece, neste caso, como um resíduo tradicional e, no contexto atual,

irracional. Isto mostra, de uma vez por todas, que a demanda de justificação é um

fenômeno universal, e é também compreensível a partir de seu contraste com a

situação, muito distinta, do jogo, Desta exposição resulta, em segundo lugar, que o

que é justificado na moral não é, como nas asserções, a sentença linguística mesma

(ou o pensamento correspondente, como diria Frege), mas o ―ser justificado‖ é

primeiramente um ―ser justificado para x” (Begründetsein-für-x) e significa que x

tem um motivo para entrar nesta prática com seus correspondentes sentimentos, e

isto se dá, do mesmo modo; para todo x. Daí, você conclui, em terceiro lugar, que,

quando se fala simplesmente de um ―ser justificado‖ da norma, isto só pode

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significar que ela é justificada face a todos igualmente, no sentido do segundo

passo. Introduzir a palavra ―igualmente‖, já neste ponto, parece-me muito ousado.

Há muitos autores que dizem que os interesses de todos devem ser igualmente

considerados, mas isto é pensado como linha-diretriz para uma moral justa no

contexto moderno. Para você, ao contrário, a consideração ―a todos igualmente‖

aparece já no sentido do que, em geral, significa justificar uma norma em alguma

moral. E, no entanto, demasiado evidente que existem comunidades morais que

tomam por justificadas normas desiguais e direitos desiguais.

I: Sim, isto pode parecer, à primeira vista, problemático. Minha tese é a de

que a igualdade na moral tem sua origem já no conceito de justificação, e

deveríamos deixar para tratar mais tarde quais as conseqüências disto para a

igualdade e a desigualdade, no âmbito da justiça. É sempre arriscado criticar um

pensamento dizendo que ele tem, supostamente, conseqüências implausíveis.

Deixemos, por hora, de lado, a questão de se realmente teremos aqui dificuldades

com relação à justiça ou se será preciso fornecer uma base para se compreender

apropriadamente o conceito de justiça em sua dupla face: a da igualdade e a da

desigualdade. É inevitável introduzir a expressão ―para todos igualmente‖ já no

esclarecimento do sentido da justificação moral, porque, de outro modo, aqueles

que não tivessem motivo ou tivessem apenas um motivo fraco para entrar na

práxis, não seriam ou seriam apenas integrantes parciais da comunidade moral. Na

medida em que eles tivessem ao menos um motivo menor para entrar na práxis,

seriam obrigados a tomar parte na mesma, Devemos ver, mais tarde, que é

perfeitamente concebível que alguns membros da comunidade tenham menos

direitos, mas que o sistema normativo, como tal, seja visto por eles como tão

justificado para eles como para todos os demais. Pode haver razões reconhecidas

para que o sistema considerado por todos de igual forma justificado distribua

direitos desiguais.

T: Talvez seja decisivo fixar que o ―igualmente para todos‖ está

necessariamente contido no conceito de ―ser justificado‖, quaisquer que sejam os

resultados, quando se entende este conceito prática e individualmente, como você o

faz. O que você apontou como definição para o ser justificado de uma norma não é,

portanto, uma mera sugestão, mas se deriva analiticamente, pois agora só se pode

imaginar, sob este conceito, que a palavra esteja sendo empregada como

abreviação para estar igualmente justificado para todos.

I: Naturalmente é preciso deixar em aberto, acrescentou ele, a

possibilidade de que uma parte da comunidade considere que as normas não estão

justificadas frente a ela. Posto que o conceito de ―ser justificado para x‖ é o

conceito básico, é preciso que o conceito de ―ser justificado para alguns‖ tenha um

sentido tão correto quanto o de ―ser justificado para todos‖, mas, então, ficam de

fora da comunidade moral aqueles para os quais as normas não aparecem como

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justificadas, ainda que eles continuem sendo integrantes, por exemplo, da

comunidade política. Por integrantes da ―comunidade moral‖ são entendidos todos

aqueles que (através dos sentimentos morais) tomam parte no sistema de

exigências recíprocas, e isto só é pensável, quando todos o vêem como igualmente

justificado para si e para todos. O fato de o ―ser justificado para x‖ ser o conceito

básico, reside simplesmente em que apenas os indivíduos possuem motivos. Tem-

se que entender que isto para o qual temos motivo é, neste caso, uma práxis mútua

e universal, tal que cada um que nela entre supõe que também todos os outros

possuam o mesmo motivo para nela entrar. Isso deixa em aberto quem são ―todos‖,

mas sem uma referência a uma totalidade não se pode falar de um motivo para

entrar numa práxis normativa, pois uma práxis normativa é uma práxis mútua de

uma totalidade (no menor dos casos de uma dupla), que se expressa em

imperativos universais, que por sua vez são mantidos por sentimentos, a cujo

sentido pertence ser sentimentos iguais para todos.

T: Mas este novo conceito de justificação ―justificar para x‖ é realmente

indispensável? No apêndice a minha crítica à teoria do discurso, nas minhas Lições

(p. 173-176, do original alemão), tentei mostrar que não apenas ele é dispensável,

mas que não possui sentido próprio. Pode-se reduzir ―N (uma norma) deixa-se

justificar frente a x‖ a ―N deixa-se justificar, e N diz respeito a x‖.

I: Lamento, mas tratava-se de um erro. Você disse que ―uma norma é

justificável frente a x‖ é análogo a ―uma asserção se deixa justificar frente a x‖.

Uma asserção (Aussage) é justificada, em si e por si, e quando a justificamos

frente a alguém, simplesmente se acrescenta algo (que a justificação dá-se no

diálogo com x). Mas uma norma não se deixa justificar em e por si; isto não tem

sentido algum. Você negligenciou que, nos enunciados — o enunciado que

expressa uma norma, e aquele no qual uma asserção se expressa —, a palavra

―justificar‖ possui um sentido completamente diferente. A primeira cláusula da

sua análise — ―a norma se deixa justificar‖ — é, portanto, sem sentido.

T: Tem razão. Isto nunca me teria ocorrido, se eu me mantivesse atento às

Três Preleções. O ―ser justificado para x‖ é, então, — para as normas, não para as

asserções não apenas irredutível, mas é o conceito básico para poder compreender,

em geral, o que se pensa com o ―ser justificado‖ de uma norma. Aceitando isto,

chego, neste ponto, a um estreito contato com a ética do discurso, posto que, em

conexão com o que você chama de definição do ―ser justificado‖ de uma norma,

poderíamos agora dizer: ―uma norma é justificada, quando todos podem, de uma

determinada maneira, concordar com ela‖.

I: Desta aproximação com a ética do discurso você estava totalmente

consciente, nas Três Preleções. A terceira preleção é intitulada ―Moral e

Comunicacão‖. Isto não altera em nada a sua crítica à maneira como Habermas e

Apel acreditam poder justificar a moral. Em primeiro lugar, recordo-lhe a sua

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observação anterior: não se trata aqui para nós de uma característica especial da

moral moderna (tampouco podemos ainda dizer que a norma é justificada,

quando ela é do interesse de todos igualmente; fica ainda em aberto qual seria o

elemento decisivo para o indivíduo, quanto ao seu motivo de entrar numa práxis

normativa. Em segundo lugar: a distinção face à ética do discurso é que, para a

ética do discurso, a concordância de todos — ou uma certa concordância — é

uma consequência que pertence ao Conceito de justificação em geral, quer seja,

então, de asserções ou normas, enquanto o que se conclui aqui é uma

conseqüência do que pertence especialmente ao conceito de ―ser justificado‖ de

uma moral. O modo como Habermas, partindo de sua idéia de que justificar

normas é algo análogo a justificar asserções, chega à tese que se assemelha à

minha, pode ser compreendido a partir da concepção, por você há muito

criticada, de uma teoria consensual geral da validade (―verdade‖ para asserções,

―correção‖ para normas). Assim, Habermas passa por cima da especificidade do

conceito de justificar frente a x. No entanto, é possível encontrar esta noção

também em outros autores, assim como por exemplo em T. Scanlon: o autor fala

de “justify to” (―justificar em relação a‖), em relação a uma pessoa, e desta

maneira chega — como Thomas Nagel — a uma teoria consensual da moral sem

levar em consideração (até onde vejo) a superestrutura racional da ética do

discurso7 e tampouco a teoria da ação, à qual fizemos alusão anteriormente, que

está na base deste conceito. Aliás, em nenhum destes autores o conceito de um

acordo geral qualificado está em conexão com a questão do que significa em

geral a justificação de normas morais, mas é uma resposta à questão de como as

normas devem ser justificadas em uma moral moderna.

T: Sim. A questão formal do que, em geral, está contido no conceito de

uma justificação de normas morais, está relacionada com a questão do que, em

geral, deve ser entendido como uma norma moral. Posto que você manifestamente

tomou de mim este princípio, não precisamos, neste ponto, temer qualquer

desentendimento. Mas seria, então, importante, que você, antes de passar à nossa

questão central — como pode ser justificada instrumentalmente a moral moderna

—, pudesse abordar de que modo o conceito de justificação, tal como você o

esclareceu, se adequa também às morais tradicionalistas (autoritárias), pois não é

por acaso que este conceito de justificação aparece em outros filósofos

contemporâneos precisamente para a justificação da moral moderna. Enquanto

meu conceito formal anterior de uma ―moral em geral‖ estava construído sobre um

conceito de bem e podia, por isto, ser mais facilmente aplicado às morais

7 T. Scanlon, ―Contractualism and utilitarianism‖, in: Sem/Williams, Utilitarianism

and Beyond, p. 113 ―justify to‖, p. 110 Teoria consensual; Th. Nagel, equality and

Partiality, p. 36.

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tradicionalistas, advirto que, com o seu conceito de ―uma moral em geral‖, se dá o

contrário: ele aplica-se mais facilmente à moral moderna do que às morais

tradicionalistas; já disse antes que não podia imaginar como se pudesse chegar a

morais com direitos desiguais, se o conceito de igualmente justificado pertencesse

a um conceito formal de moral.

I: Você verá que isto não acarreta problemas insolúveis. Aqui se vê que

você, mais uma vez, parece ter esquecido completamente suas Três Preleções,

quando diz que seu conceito formal de moral anterior implicava um conceito de

bem. Nas Três Preleções, não era este o caso, e eu tenho me limitado simplesmente

a elaborar a concepção lá apresentada.

Concordamos em encerrar por este dia e continuar no dia seguinte. Ambos

não tínhamos pressa alguma na continuação da nossa viagem e decidimos

continuar em Letícia tanto tempo quanto nosso diálogo exigisse. Havia, nas

redondezas, um hotel com ar condicionado.

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CAPÍTULO II

Na manhã seguinte, encontramo-nos antes mesmo do nascer do sol. O

frescor da manhã deveria ser aproveitado.

I: Antes de chegar à questão principal, eu deveria mostrar como o conceito

de justificação age na moral tradicionalista. O que você entende por uma moral

tradicionalista é caracterizado precisamente por uma determinada forma de

justificação que — se a teoria que tracei ontem é correta — deve ser simplesmente

um caso da minha definição geral. Uma criança, por exemplo, pergunta ―por

quê?‖, isto é, o que todos possuem como motivo, e os pais lhe respondem. O traço

específico de uma justificação tradicionalista é a referência ao que ―todos‖ somos

ou de onde ―todos‖ viemos. Isto é uma ―verdade superior‖, tal como você

anteriormente o expressou, ou seja, pressupõe-se que se acredite nela e que não se

deva questionar mais além. Trata-se de algo com que ―todos‖ nos identificamos,

algo que constitui a nossa identidade social. Esta ―propriedade superior‖ remete a

uma autoridade que fixou para nós as normas morais válidas. Este sistema

normativo pode ser, então, tão iníquo quanto se queira. Apesar de atribuir direitos

de tipo e de extensão distintos, ele é o nosso sistema normativo comum, todos

acreditamos nele igualmente e reagimos com igual indignação quando ele é

usurpado, e isto porque todos possuímos igualmente a propriedade superior de

pertencer a esta comunidade moral. Posto que a justificação, para cada um, não

está baseada em seus interesses empíricos, mas em uma propriedade superior de

pertinência, não há contradição entre o fato de que o sistema normativo seja

igualmente justificado para todos e de que atribua, não obstante, diferentes papéis e

posições jurídicas a cada um. Examinando, por exemplo, o código indiano do

Manu1, que, com sua justificação do sistema de castas, é um sistema normativo

extremamente desigual (por isso Nietzsche se interessou tanto por ele), vê-se que é

da proveniência dos distintos membros de um único Deus que resultam as

diferentes castas dentro da hierarquia total. Para todos os crentes o sistema é

igualmente justificado; eles crêem, de igual modo, no mesmo, e isto implica que

eles se censuram mutuamente, se indignam uns frente aos outros etc., sempre que

alguém, do lugar do sistema ao qual pertence, infringe as regras. Toda

desigualdade moral no conteúdo dos direitos repousa sobre uma igualdade no

1 The Laws of Manu, publicado por W. Doninger e brian K. Smith, Penguin, 1991.

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conteúdo da crença, pois, caso contrário, ela não poderia ser moral e não teríamos

uma comunidade moral unitária.

T: Aparentemente sim, mas na Índia ocorreram as revoltas dos

intocáveis, respondi.

I: Sim. Isto significa, então, que a igualdade no âmbito da superestrutura

ideológica, se você quiser, não pode mais ser afirmada em detrimento dos

interesses empíricos. A distinção entre a moral autoritária e a moral autônoma

moderna deveria ser considerada apenas como um tipo ideal, e deixar em aberto o

quanto da moral moderna já não está também contido em toda a moral autoritária.

Na medida em que isto se dê, será potencialmente anulada a desigualdade dada

autoritariamente, e na qual, até então, se acreditava. Quando você pensa, por

exemplo, na discriminação das mulheres, é interessante ver quantos preconceitos

derivados da tradição autoritária permanecem contidos também em nossa moral,

moral esta que somente pode fundar-se em interesses iguais. Em todos os casos,

seja no sistema de castas, seja no problema das mulheres, que nos é familiar, se

pode pensar em uma continuidade entre os dois extremos: em um extremo, a

autoridade tradicional atua de modo tão convincente sobre a minoria prejudicada,

que esta, de modo algum, pensa em questionar o ―ser justificado‖ das normas

desiguais. Em outro extremo, impõe-se o ponto de vista da igualdade na

consideração dos interesses. Isto pode acontecer de diferentes modos, ou bem não

se colocando em questão a autoridade, mas apenas reinterpretando-a, ou bem

rejeitando-a. Não é a possibilidade de revolução dos prejudicados que é

surpreendente, mas sim como a desigualdade tem funcionado bem em uma moral

tradicionalista. Minha tese é simplesmente a de que isto é compreensível a partir da

uniformidade da crença como instância justificadora. Ontem você se surpreendeu

que eu visse a base de justificação em uma moral tradicionalista não-igualitária, de

tal modo que ela fosse válida igualmente para todos. Mas não é evidente que, se

isto não pudesse ser assim por meio da crença, os prejuízos que o sistema não-

igualitário implica não seriam voluntariamente aceitos?

T: É provável que isto seja realmente evidente, disse eu. Devemos poder

diferenciar, por exemplo, o caso em que as mulheres reconhecem como legítimo o

prejuízo de seus direitos, enquanto parte do sistema, porque elas acreditam na

autoridade, do caso em que elas o fazem coercitivamente, porque adotam um outro

padrão de justificação ou, ao menos, consideram-no de modo complementar. Sua

explicação possibilita não apenas constatar esta diferença, mas entendê-la. No

segundo caso, o sistema normativo é, para as mulheres, apenas um sistema

pretensamente moral ao qual elas eventualmente se submetem, porque não podem

se impor contra o que, com razão, consideram como um sistema de coerção. Até

onde, nas sociedades tradicionalistas, a consciência das mulheres — ou de outros

grupos prejudicados — oscila entre estas duas concepções, não necessita e não

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pode ser decidido teoricamente, mas só pode ser esclarecido empiricamente e será,

em cada situação, historicamente distinto. Em todo caso, eu me declaro de acordo

no que diz respeito ao emprego do seu conceito de justificação nas comunidades

morais tradicionalistas. Passemos então à questão central da justificação em uma

moral moderna, que você declarou dever realizar-se instrumentalmente.

I: Sim. Quando você o formula de modo tão veemente, hesito diante do

termo ―instrumentalismo‖, pois, uma vez que atingimos o nível da moral,

precisamos, sem dúvida, distinguir os juízos e as ações morais das instrumentais. A

primeira tarefa consiste em provar se os níveis morais podem ser alcançados por

meio de reflexões puramente instrumentais, o que você negou em seu livro. O

provocativo rótulo ―instrumentalismo‖ tem o sentido de apontar a única direção

que resta, quando se admite a supressão de todos os atributos previamente dados e

de todos os elementos superiores na justificação da moral. Compreende-se aqui a

justificação da moral no sentido ontem elucidado de justificação para todos.

Enumero, mais uma vez, as possibilidades: em primeiro lugar, certamente, a

autoritária (ou ―tradicionalista‖); em segundo, a ―metafísica‖ dentro da qual incluo

também seu discurso acerca de uma propriedade superior ou de um conceito

pressuposto de bem (real ou possível). Ambas devem ser abandonadas, porque, na

justificação da moral, não pode ser aceita nenhuma cláusula do tipo: ―se você se

compreende assim‖ ou, dito de modo mais forte, não mais como possibilidade:

―porque você é assim e assado‖, com a qual é nomeada uma propriedade da qual

outros pudessem discordar. Em terceiro lugar, anula-se também qualquer recurso

biológico ou psicológico a propriedades supostamente inatas como altruísmo ou

compaixão. E isto, primeiro, porque elas não indicam normas morais — nosso

altruísmo não funciona como o das formigas. Um dever moral (nem externo nem

internamente coercitivo) implica sempre a liberdade de não agir de tal modo e

exige, por isto mesmo, um ―ser justificado‖. Em segundo lugar, e em conexão com

o ponto anterior, porque, mais uma vez, seriam mencionadas apenas propriedades

cuja existência pode ser contestada pelo interlocutor. — Em seu livro, e desde as

Retratações, você afirma que instrumentalmente não se chega a nenhuma moral. A

tese era que uma moral em sentido próprio, com sanções internas, e isto significa,

uma consciência moral (Gewissen) não pode ser introduzida contratualmente. Você

não definiu o contratualismo, mas pressupôs que isto significava, mais ou menos, o

mesmo que instrumentalismo, e você pensou o instrumentalismo como uma

maximização radical da utilidade (radikaler Nutzenmaximierer). A confusão aqui é

muito grande. Por instrumentalismo deve-se compreender um modo de pensar no

qual a pessoa age em consideração aos seus interesses. Poder-se-ia, então, com

Gauthier2, definir o maximizador radical da utilidade como aquele que —

2 David Gauthier, Morals by Agreement, Oxford, 1986, p.167.

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independente de se encontrar em um sistema moral ou não — escolherá, em caso

particular, sempre aquela opção da qual espera obter o maior proveito próprio. Há

também a outra possibilidade a ser considerada — e daí será constituída a

moralidade —, na qual alguém possui razões (Gründe) — justamente sobre a base

das normas morais justificadas instrumentalmente — para limitar, em seu próprio

caso, a maximização da utilidade. O contratualismo, ao contrário, não é nem um

nem outro, porque ele não se coloca, de maneira alguma, para o modo de pensar de

um indivíduo, mas sim para um sistema normativo recíproco ou para sua

justificação; um sistema para o qual a observância das regras, por todos, é

assegurada através da observância pessoal, como no caso da redução dos faróis no

tráfego noturno; neste caso, admite-se reciprocamente que qualquer pessoa, quando

puder evitar a sanção externa, agirá segundo o princípio da maximização ilimitada

da utilidade. Certamente outras definições também podem ser pensadas. Mas se

admitimos a definição fornecida acima, segue-se analiticamente que em um tal

sistema não pode haver nenhuma sanção interna e conseqüentemente nenhuma

consciência moral. Quando você argumenta, na página 75 (do original alemão) das

suas Lições, que não pode haver uma consciência moral para os contratualistas,

evidentemente você não pensa neste fato analítico, e isso fica claro, porque você

não tem em mente, de modo algum, o contratualismo, mas sim o modo de pensar

instrumentalista. Alcançamos aqui o ponto no qual há uma clara oposição entre

nós. Na minha concepção, a consciência moral pode ser introduzida

instrumentalmente, e, considero, então, o seu argumento como falso. Você escreve:

naturalmente o pensador instrumentalista desejaria também que os outros tivessem

uma consciência moral, mas é ―impossível‖ ter razões instrumentais para ter uma

consciência moral própria, então, ―seria irracional, no sentido da inteligência

egoísta, prescindir de eventuais vantagens, quando eu posso tê-las, sem punição

externa (ver também ―Die Hilflosigkeit...‖, Philosophische Aufsätze, p. 378). A

última frase mostra que você tem em mente o maximizador radical de utilidade.

Mas eu já disse que é problemático compreender o instrumentalismo

exclusivamente assim. O erro do seu argumento é a separação entre a consciência

moral para mim e para os demais. A questão é, antes: quero a consciência moral

para mim e para os outros, e querem os outros (todos os outros) o mesmo, da

mesma maneira? A questão acerca da moral em geral, ou ainda, de cada norma

moral é, por sua vez, se nós (todos) a queremos universalmente. A questão reza:

queremos uns dos outros, reciprocamente, que tenhamos uma consciência moral?

A esta questão um instrumentalista pode responder apenas positivamente: se

comparamos uma moral consciente (Gewissens,noral), isto é, uma moral com

sanções internas — que implica mútua confiança — com a moral contratualista, tal

como eu agora mesmo a apresentei, então, as vantagens saltam aos olhos.

Naturalmente queremos ser morais mutuamente, uns com os outros, não apenas em

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virtude de sanções externas, mas da confiança. Mas isto significa precisamente que

queremos uns dos outros, reciprocamente, que tenhamos uma consciência moral

ou, mais uma vez, formulado de outro modo, que a sanção com base na qual se

ergue a normatividade das normas consista no conjunto dos sentimentos morais, e

não no medo de represálias, como no caso da redução dos faróis. Você acabou de

indicar como característica da moral instrumental que ela seria incapaz de se erguer

sobre sentimentos morais, e esta é também a razão por que você a designou como

quasi-moral.

T: Primeiramente, ainda não vejo com clareza o que você faz com a

consciência moral do indivíduo. Como pode bastar dizer que queremos

mutuamente uns dos outros que tenhamos uma? E, segundo: pode-se, então,

simplesmente tirar da manga os sentimentos morais? Para mim eles se erguem

sobre o conceito de bem, e era exatamente o conceito de bem de que você falou,

que pensei faltar na quasi-moral. Que eles se ergam sobre um conceito de bem,

se mostra quando nos orientamos pelas definições habituais. Deixe-me

relembrar: já para Aristóteles o afeto não era simplesmente um sentimento, mas

referia-se per definitionem a um conteúdo proposicional, no qual, no caso dos

afetos não-morais, aparece a expressão ―bom para‖ e, no dos morais, a expressão

―bom‖. Designamos, por exemplo, um determinado sentimento de P como temor,

quando ele se refere à expectativa de um acontecimento que seria para ele (P)

ruim; ou, por exemplo, P inveja R, isto é, tem um sentimento que se refere ao

fato de que R possui um bem que ele, por sua vez, gostaria de ter. Precisamos

destes conteúdos proposicionais distintos para poder identificar os afetos em

geral como sendo este e aquele; por exemplo, para poder identificá-los como

temor ou inveja. O mesmo ocorre justamente com os sentimentos morais, com a

diferença de que aqui, no conteúdo proposicional, aparecem as palavras ―bom‖ e

―ruim‖ não-qualificadas e não mais a expressão ―bom para mim‖. Quando vocês,

em castelhano, falam de indignación ou nós, em alemão, falamos de Einpõrung

ou de Entrüstung, está sempre pressuposto o juízo de que a ação à qual este

sentimento se refere é (simplesmente) ruim. Seguindo a exposição de Strawson

em ―Freedom and Resentment‖ (Proceedings of the British Academy 48 (1962),

p. 187, na Ed. original), faz sentido falar de um sentimento análogo que alguém

possui quando julga como moralmente ruim a ação de outro que o afeta. Tal

sentimento, Strawson designa pela expressão resentment e o mesmo é feito em

espanhol, mas, em alemão, a palavra Ressentiment, vinda do francês, conservou,

graças a Nietzsche, o sentido de indicar uma atitude geral de inveja dos

prejudicados, tornando-se, portanto, inapropriada. Por isto utilizei a palavra

Groll. Todas estas definições são naturalmente convenções das quais não se pode

esperar que expressem de modo exato o uso linguístico. Por fim, Strawson

designa-o como sentimento de culpa aquele sentimento que alguém possui frente

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Coleção Filosofia - 133 25

a uma ação sua, quando ela é tal que, se um outro a praticasse, frente a ela, o

indivíduo sentiria ressentimento ou indignação. O interessante nesta tríade

indignação-ressentimento-sentimento de culpa é que eles contêm a palavra

―ruim‖ no juízo sobre o qual se erguem, e esta é a razão pela qual eu defendi a

concepção de que os mesmos não podem ser compreendidos a partir de uma

quasi-moral, quer dizer, sem um conceito de bem.

I: Quero deixar de lado, por ora, o seu primeiro ponto, que diz respeito à

consciência moral, e ocupar-me primeiramente da sua tese de que ―não há

sentimentos morais sem um conceito de bem‖. Apesar de concordar com você

com relação à teoria geral dos afetos em Aristóteles, não estou tão certo de que

seja imprescindível incluir, na definição da tríade strawsoniana, a palavra ―ruim‖

não-qualificada. E isto está relacionado à seguinte dúvida: se o discurso acerca

do ―bom‖ é realmente tão imprescindível para a compreensão da moral, como

você afirma em seu livro. Também sobre este ponto você foi mais cuidadoso em

suas Três Preleções com os denominados diferentes ―predicados de justificação‖.

Mas deixo para mais tarde estas considerações e gostaria de me ater, tanto quanto

possível, à sua posição. Quero primeiramente admitir que seja correta, ao menos

hipoteticamente, a sua tese de que “não há sentimento moral sem um conceito de

bem‖. Isto me conduz, então, a um outro ponto fraco do seu livro. Não é fácil

reconhecer o que você compreende lá como ―bom‖: você escreve, certamente

com razão, que este uso aparentemente predicativo da palavra se refere, na

realidade, a um atributivo, apesar de afirmar (Lições sobre Ética, p. 56, no

original) que não se pode provar (eu acredito que se possa) que este ―bom‖ deva

ser entendido em analogia com ―um bom violinista, cozinheiro‖ etc.; o

substantivo não está colocado para uma determinada função ou atividade, mas

para a capacidade de ―alguém ser socialmente tratável, ser um ser cooperativo,

ou, em uma sociedade primitiva, corresponder aos padrões de filiação a esta

sociedade‖ (Lições sobre Ética, p. 57, no original). Em outro lugar, você fala da

capacidade de ser um ―membro da comunidade‖ ou, também, de ser uma ―boa

pessoa‖ (Philosophische Aufsätze, p. 319 ss.). Aqui se revela uma incerteza

quanto a qual destes diferentes substantivos seja propriamente decisivo, neste

caso. Além disto, é flagrante que você, no momento em que passa deste conceito

de bem para o sistema das normas morais, precisa dar um salto para o qual você

não tem apoio (Lições, p. 58 acima). Mas isto está relacionado às dúvidas,

anteriormente aludidas, sobre a imprescindibilidade do conceito de bem: terei

que voltar a isto mais tarde. O problema propriamente dito consiste para mim em

que, tal como ontem pensava, este conceito de bem é o sucessor do conceito de

―propriedade superior‖ das Retratações. É surpreendente que você faça com ele

exatamente o mesmo que fez com o conceito de consciência moral, a saber.

considerá-lo de dentro.

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Coleção Filosofia - 133 26

T: E você pensa que se possa ver a consciência moral de fora?

I: Sim, pode-se mesmo exigir, e é apenas isso que se pode fazer

intersubjetivamente. Exatamente como penso que, com relação à consciência

moral, a questão seja ―queremos mutuamente uns dos outros que tenhamos uma

consciência moral?‖, é coerente aproximar-se da questão do bem na tradição de

Hume e perguntar ―como queremos ser mutuamente uns com os outros?‖ ou, mais

estreitamente orientados por Hume: sobre quais condições aprovamos ou

desaprovamos uma ação, elogiamos ou censuramos uma pessoa?

Eu silenciei durante algum tempo e finalmente disse:

T: Certo. Parece-me claro. Eu me orientava, neste ponto, provavelmente

há muito tempo, por Kant, o qual, tal como Aristóteles, sempre viu o bem —

contraposto ou comparado ao agradável — como ponto de referência para a

própria ação. Isto é plausível, sobretudo, no âmbito dos imperativos hipotéticos: a

pessoa que persegue um fim se pergunta qual o melhor meio de alcançá-lo. Aqui a

intersubjetividade não desempenha papel algum, Mas, tão logo se emprega ―bom‖

atributivamente (―um bom ―X‖), a questão é, quando se deve eleger um ―X‖, este

―X‖ é preferível, e, quando ―X‖ representa uma capacidade humana, a questão se

coloca de fora, e, com isso, é introduzida, de fato, a intersubjetividade: alguém é

um bom cozinheiro ou é um cozinheiro melhor que ―b‖, quando ele é desejado ou

preferível como cozinheiro, e isto é, sem dúvida, aquilo a que você se refere como

um julgamento de fora.

I: Sim, justamente. E o que há de mais plausível do que aplicá-lo, do

mesmo modo, ao bom moral? De modo semelhante, Rawls definiu, no § 66 de

Uma Teoria da Justiça, ―uma pessoa (moralmente) boa, em contraposição a um

bom médico ou a um bom agricultor‖, como uma pessoa que possui a propriedade

que é racional se desejar para o outro independentemente de uma determinada

função. Rawls emprega a palavra ―desejar‖ em sentido fraco, provavelmente para

aproximar, o máximo possível, o discurso acerca de uma pessoa moralmente boa

ao de um ―bom médico‖ etc. Quando alguém não é, em geral, um bom ―X‖, nós o

criticamos: na moral, em contrapartida, empregamos as expressões mais fortes de

aprovação e desaprovação, de louvor e censura. E estas expressões mais fortes se

relacionam ao fato de que não apenas desejamos mutuamente uns dos outros que

sejam assim, mas que o exigimos. Enquanto falamos de desejar, querer, eleger,

falamos uns dos outros em terceira pessoa. Em contrapartida, tão logo o exigimos,

isto se torna um comportamento normativo na segunda pessoa do plural. Com isto,

apenas remeto-me a uma distinção que você também fez (Lições sobre Ética, p. 59.

no original), e que é essencial para a moral. Ninguém precisa ser médico,

cozinheiro ou violinista; isto diz respeito à sua liberdade. As normas morais, no

entanto, não são do tipo que se colocam, quando alguém deseja ser tal e tal, mas,

dentro de uma comunidade moral, colocamos esta exigência mutuamente de modo

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categórico. Poder-se-ia dizer que a sanção é a exclusão (Exkommunikation) da

comunidade moral ou, de qualquer modo, a exclusão tendencial, e isto é

precisamente o que é expresso na indignação.

T: Você quer dizer que se deve definir os sentimentos morais em

relação a esta exclusão, ao invés de defini-los relativamente ao conceito de bem

ou, melhor dito, de mal?

I: Sim, no fundo, é o que acho. Mas isto já é uma antecipação. Não

gostaria de colocar o conceito de bem em questão. O que me interessa, em

primeiro lugar, é apenas que o discurso acerca de uma boa pessoa deve ser

compreendido a partir do julgamento recíproco. Tão logo se considere isto, não se

deveria mais poder duvidar de que possa introduzir o conceito instrumental de

bom, e isto quer dizer que o mesmo ocorre com os sentimentos morais, quando tais

sentimentos são tão estreitamente ligados a este conceito, como você o faz. Isto se

vê, por exemplo, na definição de Rawls que acabo de citar. Ele diz que é racional

querer isto mutuamente, e ―racional‖ quer dizer para ele: por interesse próprio. Isto

corresponde ao que chamei de concepção instrumentalista: é do interesse de cada

um querer mutuamente, uns dos outros, que sejamos tal e tal e, quando

fortalecemos isto da forma como pensei há pouco, segue-se a expressão forte: é do

interesse de cada um, em conjunto com todos os outros, exigir de todos ser de tal

modo. Posto que Rawls se movimenta apenas no contexto da moral moderna, ele

pode reclamar isto diretamente como uma definição da pessoa moralmente boa.

Posto que eu, tal como você, concebo tanto o conceito de moral como o de bem —

de boa pessoa —, de tal modo que ele sirva também às morais tradicionalistas, há

que se formular com maior grau de generalidade da seguinte forma: dentro de cada

comunidade moral, o conceito de bem corresponde àquilo que queremos (e

exigimos) ser em reciprocidade uns com os outros, independentemente de

determinadas funções. Destas exigências recíprocas podemos dizer, em conexão

com o que foi dito ontem, que devemos poder fundamentá-las reciprocamente no

sentido indicado, e isto acontece quer (na moral tradicionalista) em relação a uma

propriedade que se supõe, quer em relação aos interesses de cada um.

Naturalmente, discordando de você, eu não poderia, de antemão, querer dizer: uma

moral deve ser justificada instrumentalmente. É suficiente que ela possa ser

justificada instrumentalmente, e isto quer dizer, com certeza: quando é eliminada a

justificação tradicionalista, a instrumentalista é a única possível. (Ainda teremos

que restringir esta idéia, mais adiante, frente aos particularismos modernos.) — Eu

não penso naturalmente que, no discurso de justificação, a palavra

―instrumentalmente‖, ou ainda, apenas a palavra ―interesses‖, tenha que aparecer.

Imaginemos, por exemplo, o seguinte: uma criança pergunta aos pais ―por que

vocês reagem com indignação quando eu me masturbo?‖. Os pais não poderão

responder a isto se não recorrerem a uma autoridade. Esta proibição demonstra-se,

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portanto, não-justificável. Mas isto significa que a moral em geral deixou de existir

para a criança? ―Você mesmo gostaria. contudo‖, os pais podem dizer, ―que

algumas proibições tenham validade universal, e que todos os outros também

queiram o mesmo. Esta proibição, então, justifica-se frente a todos‖. A

determinação particular destas proibições decorre deste discurso de justificação

recíproca. Elas não precisam ser retiradas de uma lista precedente de interesses.

Eu silenciei um momento. Como pude deixar passar um erro tão

simples e, ao mesmo tempo, com conseqüências tão fortes: negligenciar a

reciprocidade do conceito de bem?

T: Mas o que se passa, então, com os sentimentos morais? Se eles se

referem a um conceito de bem justificado instrumentalmente, aparecem como

inventados.

I: Quando você diz que eles aparecem ―como que inventados‖, o contrário

será que eles são naturais, e não creio que devamos conceder isso. Encontramo-

nos, sem dúvida, frente a um fato biológico dado de antemão: os seres humanos

são seres que possuem a capacidade de aprender normas morais e de se comportar

de acordo com as normas morais. Com isto, ainda não está implicado nenhum

conteúdo moral, mas a capacidade de integrar uma comunidade moral, quer dizer,

de se compreender, ao mesmo tempo, como sujeito e como destinatário de

exigências emocionais recíprocas. No que concerne ao caráter imperativo das

normas: indignação e rancor constituem, do lado do sujeito, a base que sustenta a

norma e o mesmo ocorre com o sentimento de culpa, do lado dos destinatários e,

como acabei de dizer, todos os sujeitos são igualmente destinatários. A

peculiaridade destes afetos é que quem os tem, tem consciência de que os outros

também deveriam tê-los; não se pode ter rancor ou estar indignado sem, ao mesmo

tempo, pensar que também o restante dos integrantes da comunidade moral tem

razões para estar indignado, e que alguém não pode se indignar diante de uma certa

ação, se não se sente culpado quando ele mesmo a pratica. Quando falta esta

capacidade de reagir a sentimentos compartilhados neste sentido, pode-se falar de

“lack of moral sense” (―falta de senso moral‖), mas isto não é, como você o expôs,

uma possibilidade em relação à qual se pode decidir, mas realmente uma falha

psicológica. Esta capacidade ou bem se possui ou bem ela nos falta; pode-se

decidir apenas com relação ao seu exercício ou ao deixar de praticá-la. E poderia

acontecer, em princípio, que ela não pudesse mais ser praticada, se não fossem

fornecidas as condições do tipo tradicionalista. Mas este não é o caso aqui, tal

como procurei mostrar anteriormente, posto que há uma justificação

instrumentalista perfeitamente natural, a saber, aquela que considera o interesse de

todos. Eu quero dizer, portanto: se nós não tivéssemos nascido com esta

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capacidade, não poderíamos ser socializados em uma moral moderna, porque não

poderíamos ser socializados em moral alguma. Isto não outorga a esta capacidade

nenhum status supra-empírico.

T: Tudo bem, até aqui estou de acordo. E se esta explicação inatista

não agrada a alguém, podemos vê-la assim: nós já crescemos em uma moral

autoritária, porque a moral da primeira infância tem sempre feições autoritárias.

A moral autônoma não se constitui a partir de uma tabula rasa. De fato, apenas

aquilo que da moral precedente não resiste a uma justificação autônoma é

abandonado.

I: Eu concordo com você que isto é assim, mas não se deveria apresentar

este modo de ver sociológico como alternativa para um modo biológico, porque,

com isto, se daria a impressão de que a moral autoritária é uma base necessária

para o instrumentalismo, e que as razões morais surgem a partir daí. Poderíamos

compreendê-lo facilmente numa direção hegeliana: a moralidade (Sittlichkeit),

como base necessária para uma moral autônoma. Eu penso que a moral

instrumentalista é totalmente autárquica, e que, do mesmo modo, os sentimentos

morais não remetem a uma base tradicionalista. Você favoreceu esta maneira de

pensar ao apresentar o problema da moral moderna como se ele se colocasse

quando as morais tradicionalistas parecessem não-fundamentáveis. Como fato, isto

é correto, mas as coisas podem ser vistas também da maneira inversa: a moral

instrumentalista como aquela, em si, mais plausível, e que foi encoberta pelas

morais tradicionalistas. — Não deveríamos fazer aqui nenhuma concessão à

psicologia infantil, ou, neste caso, à psicanálise. A psicanálise deve tentar

esclarecer as formas prévias do sentimento de culpa, porque o sentimento de culpa

infantil desempenha um papel enorme no nosso inconsciente. Mas pensar que,

desta maneira, o sentimento de culpa pode-se tornar compreensível, no sentido

anteriormente definido em conexão com Strawson, seria uma genetic fallacy

(falácia genética). O esclarecimento destas formas prévias não é o esclarecimento

do fenômeno. O que é apontado, em estágios anteriores, como sentimento de culpa,

pode ser, por exemplo, o medo unilateral da punição. Este é, então, um outro

fenômeno que não o do sentimento de culpa, sentimento que alguém tem apenas

quando, na troca de papéis, sente indignação. Estes sentimentos, compartilhados de

maneira peculiar, pressupõem que se tenha consciência de se estar sob normas

comuns. ―Quando‖ e ―como‖ esta consciência se desenvolve é uma questão

empírica em aberto, do mesmo modo como ―quando‖ e ―como‖ as crianças

começam a contar. Ninguém iria, a partir daí, construir uma teoria dos números,

ainda que evidentemente tenhamos que possuir pressupostos biológicos para

aprender a contar. O mesmo vale para o falar em geral. Esta explicação biológica

indeterminada é inofensiva, porque não pressupõe nenhum conteúdo, mas se atém

apenas ao fato trivial de que um ser vivo, quando, em um determinado período do

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seu desenvolvimento, aprende coisas como falar, contar ou as normas, deve possuir

capacidade para tal.

T: Sim, mas ainda não está claro para mim, como o princípio instrumental

torna compreensível a própria consciência moral. Ou, formulado de outro modo:

como de um maximizador radical de utilidade, que, de fato, pode querer que os

outros devam ser morais, pode surgir um maximizador de utilidade limitado, quer

dizer, uma pessoa moral?

I: Parece-me que a expressão ―uma pessoa moral‖ é demasiado imprecisa.

Você mesmo, em seu último livro, deu grande importância à distinção entre, em

primeiro lugar, querer ser integrante da comunidade moral e, em segundo, querer

agir de modo moralmente motivado. Você mesmo distinguiu justificação

(Begründung) e motivação (Motivation). Eu entendo, tal como expus ontem, a

própria justificação do sistema moral por recurso a motivos, de tal modo que o

sistema seja considerado como justificado, quando todos possuem igualmente um

motivo para entrar no mesmo. A justificação do sistema — e, portanto, das normas

— decorre desta consideração a todos, e desta se deve distinguir apenas a

motivação do indivíduo. Aqui o princípio instrumentalista nos leva a realizar ainda

uma outra diferenciação relativamente à sua questão, qual seja, a de se alguém está

motivado para entrar no sistema, isto é, para se compreender como integrante desta

comunidade moral. Neste ponto, surge a possibilidade de alguém se compreender

como ―franco-atirador‖ (Trittbrettfahrer) — ou, como dizem os anglo-saxões

como “free-rider”. O franco-atirador participa, de um certo modo, do sistema

moral, na medida em que quer obter exclusivamente as suas vantagens, e, de certo

modo, não o faz, na medida em que permanece sendo secretamente um radical

maximizador da utilidade. Ele só pode fazer isso, na medida em que finge

indignar-se ou ter rancor. Posto que o sentimento de culpa — portanto, a

consciência moral — e a indignação estão relacionados, o franco-atirador só pode

evitar o sentimento de culpa, na medida em que evita também a indignação, mas o

que ele não pode evitar, sem se excluir da comunidade moral (e, com isto, pôr a

perder as suas vantagens), é dizer que ele está indignado, que tem rancor,

sentimento de culpa, que aprova e desaprova. Agora posso esclarecer melhor o que

considero propriamente o erro do seu livro: você viu o maximizador radical da

utilidade como contratualista, ao invés de vê-lo como franco-atirador. Mas,

independentemente de ser o contratualismo um sistema e não uma atitude, é mais

racional ser franco-atirador do que contratualista. E isto corresponde também à

realidade. Aqueles que não possuem a consciência moral encontram-se

normalmente dentro do sistema moral, e não fora dele. Isto tem agora o seu custo,

isto é, o custo de ter que mentir. E isto significa, então, que, embora alguém seja

livre para ter ou não uma consciência moral, só não pode é tê-la apenas a fingindo

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que a tem, isto é: a questão não é como se constrói uma consciência moral, mas

como ela é destruída ou negada.

T: Mas, então, seria pensável uma comunidade moral que

consistisse apenas de franco-atiradores.

I: Bem, não é muito fácil distinguir entre uma comunidade de pessoas que

têm estes sentimentos e uma na qual todos os simulam. Mas isto não corresponde à

realidade? O ponto principal é distinguir esta questão da motivação da questão da

justificação. O que nós justificamos é o sistema moral, e este funciona, de fato,

apenas como uma comunidade moral na medida em que todos, ou a maioria,

exigem uns dos outros reciprocamente ser de tal modo, e eles podem exigir isto

apenas na medida em que exprimem sentimentos morais, e isto eles podem fazer

sem possuí-los.

T: Eu compreendo, e aí se distingue claramente para mim entre a questão

da justificação e a da motivação. A moral contém uma limitação da busca

incondicionada dos próprios interesses e, portanto, uma limitação da tendência

instrumentalista. Nós alcançamos esta limitação na medida em que a exigimos

uns dos outros reciprocamente e exigimos também uma atitude correspondente (a

consciência moral); cada um está instrumentalmente motivado para esta

exigência recíproca, e, com isso, é justificado o sistema que coloca esta exigência

para todos nós; mas o quanto o indivíduo segue esta exigência é uma segunda

questão. Segui-la significa dar às normas morais um peso, colocá-las acima do

próprio interesse. Para se estar motivado para isto devem ser fornecidas razões

(Gründe) — quer dizer, razões práticas —, que estejam justificadas no próprio

sistema, ou, melhor dito, na própria situação na qual o indivíduo se encontra

graças a este sistema de exigências recíprocas, e por qualquer motivo

independente dele, como sentido moral, altruísmo inato e coisas semelhantes.

I: Sim, eu penso assim. Já se mostrou um fundamento prático semelhante.

É cansativo ter que mentir todo o tempo. Mas eu sugeriria que nós adiássemos toda

esta temática da motivação moral para uma outra conversa, pois tocamos, com isto,

em um outro ponto delicado do seu livro. Parecia-lhe claro que você tratou esta

questão apenas de modo pontual e insatisfatório e, talvez, também de modo

contraditório. No momento, trata-se apenas de ver que, pelo fato de a moral

consistir em um sistema de exigências recíprocas, é possível uma justificação

instrumentalista, posto tratar-se de uma justificação que não é, como no

contratualismo, uma justificação da perspectiva do respectivo indivíduo (uma ação

―estratégica‖, como diz Habermas), mas de uma perspectiva comum. Para o

contratualismo, trata-se de justificar para cada indivíduo a própria práxis, sob a

pressuposição de que os outros ajam do mesmo modo, e isto você considerou, com

razão, insuficiente para uma moral. Mas, com isto, você não levou em conta a

possibilidade de que todos os indivíduos, instrumentalmente, - a partir de seu

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próprio interesse - sejam motivados a entrar numa práxis comum. Dizer que ela é

justificada tem o sentido, de acordo com o conceito de justificação introduzido

ontem, de que ela é justificada para todos igualmente.

T: Em que exatamente deve consistir a distinção?

I: Para o contratualismo, não faz sentido falar de uma justificação tout

court das normas; em um sistema contratualista, cada um se pergunta se um

determinado modo de agir é justificado para ele, isto é, se é bom para ele,

pressupondo que os outros também ajam assim. Desta perspectiva, supõe-se que

cada um também se pergunte qual sistema, frente aos demais, é o melhor para ele,

e é, então, racional para ele. Caso tenha possibilidade de negociar com os outros,

escolher o melhor para si. Mas esta perspectiva não está mais disponível para os

instrumentalistas que escolheram a moral, porque se trata agora de entrar numa

práxis comum e, tão logo indagamos pelos fundamentos desta práxis, trata-se, na

verdade, não apenas dela ser justificada para mim — de ter um motivo para entrar

na mesma, de ser boa para mim — mas, ao mesmo tempo, de ser justificada

igualmente para todos. O discurso acerca de uma prúxis comum se relaciona a

exigências comuns recíprocas, que — enquanto exigências — se constituem sobre

sentimentos morais compartilhados. Pertence ao sentido de indignação, como já foi

mostrado, que ele seja compartilhado. Eu não posso, em geral, me indignar frente a

algo que não considere como uma violação das normas que estão igualmente

justificadas para todos os demais. O suposto ―estar justificado para todos os

demais‖ (Begründetsein-für-alle-anderen) — e isto é o que eu entendo como o ―ser

justificado‖ tout court — pertence ao sentido da indignação; o mesmo vale para o

elogio e a censura. Isto significa que, da perspectiva de cada integrante da

comunidade moral, a justificação unilateral é a base para seus sentimentos morais,

e a questão de qual melhoria unilateral do sistema normativo seria possível para o

indivíduo não pode mais, de modo algum, ser levantada.

T: Se tanta coisa está implicada na moral justificada de modo

instrumentalista, devemos, então, perguntar se o indivíduo ainda está motivado

por seus próprios interesses a entrar neste sistema ou se ele não preferirá a

opção contratualista.

I: Correto. Neste ponto a questão instrumentalista deve ser colocada na

perspectiva do indivíduo. Antes de entrar na comunidade — este ―antes‖ deve ser

naturalmente entendido de modo conceitual e não temporal —, deve estar certo de

que isto é o melhor para ele, mas, se isto é respondido afirmativamente, deverá se

ater às regras do sistema. Parece-me ser, então, bastante clara a resposta positiva a

esta questão: nós queremos, em geral, uns dos outros reciprocamente, que nós nos

compreendamos moralmente, e este passo é facilitado para o indivíduo, na medida

em que lhe resta a opção de se compreender como franco-atirador. O modo como,

então, se argumenta dentro do sistema, portanto, moralmente, é independente do

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quanto os indivíduos se compreendam como franco- atiradores ou não, assim como

também é independente de quais observações e reflexões comparativas o indivíduo

possa ter frente ao sistema.

T: Vejo que você pode responder a um ponto que eu pensava ser uma

armadilha, e este ponto é a consideração a ―todos igualmente‖. Este é o lugar que

se poderia acreditar dificilmente integrável a um instrumentalismo. Parecia estar ao

alcance das mãos a objeção de que cada um, na verdade, pode ter razões

instrumentais para se considerar como integrante de uma comunidade moral. Mas

como ele chega a julgar moralmente as ações e as pessoas, isto é, não apenas a

partir de seus próprios interesses, mas de um ponto de vista imparcial, para o qual o

critério para julgar uma ação ou uma pessoa não está em ser bom ou ruim para ele,

mas precisamente em ser bom ou ruim? Para isto, deve-se passar a um segundo

nível de julgamento, Desde as Retratações, penso que este segundo nível não pode

ser assimilado sem uma propriedade especial. Poder-se-ia perguntar: ainda que seja

do interesse da pessoa pré-moral integrar uma comunidade moral, como chegar a

ser uma pessoa moral e não julgar mais as coisas a partir da sua perspectiva?

I: Como eu já disse, parece-me mais fácil deixar de lado a expressão

ambígua ―uma pessoa moral‖ e dizer simplesmente: integrante da comunidade

moral. Isto deve incluir também a possibilidade de ser um pretenso integrante da

comunidade moral. Se alguém é, em sentido estrito, uma pessoa moral, isto é, se,

em primeiro lugar, desenvolveu os sentimentos morais e, em segundo, também está

motivado para agir moralmente, permanece, agora, totalmente aberto. O decisivo é

que, tão logo seja alcançado o nível que você chamou há pouco de segundo, seja

com isso alcançado um nível de julgamento que, por um lado, é do interesse de

cada um alcançar (ou fazer como se o tivesse alcançado) e, por outro, tem seus

próprios critérios de julgamento: ―bom‖ e não mais ―bom para mim‖. Por isso falei

anteriormente das ―regras do sistema‖: estas são independentes, porque o critério

para algo ser bom consiste em corresponder a uma norma que seja igualmente

justificada para todos, O indivíduo não pode, pelo menos por princípio, distorcer

este critério para seus próprios interesses, porque, com isto, se perderia o núcleo do

juízo moral e dos sentimentos morais, a saber: ser um juízo comum, isto é,

sentimentos compartilhados.

T: Sim. Este segundo nível contém, pelo menos, um predicado que

pertence a este nível, a saber: ―justo‖ (gerecht). Esta palavra não tem a mesma

ambigüidade da palavra ―bom‖ (―bom‖ e ―bom para mim‖). É absurdo dizer ―justo

para ―X‖, pois, com esta palavra, designamos uma norma ou instituição ou

distribuição de bens que se aplica, por igual, a todos os concernidos. Com esta

palavra, não julgamos o efeito de um sistema de normas para um indivíduo, mas

este próprio sistema quanto ao efeito que, por seu sentido, ele tem sobre todos de

igual modo.

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I: Eu também acho. Por isto, surge, em correlação com o julgamento de

algo como justo ou injusto, um novo emprego da palavra ―justificação‖. Dizer que

o sistema é justificado significa dizer que ele está justificado, motivado, igualmente

para todos. Pode- se dizer, do mesmo modo, que ele é igualmente justificado para

todos. Mas, com isto, constitui-se precisamente aquele segundo nível de

julgamento. Pode-se introduzir, por exemplo, razões a favor ou contra o fato de

uma determinada distribuição ser justa. Estas não são mais razões (Gründe) no

sentido de motivos (Motiven), mas são razões para asserções: aqui é justificado se

o predicado justo‖ pertence ou não a uma distribuição, uma norma etc., e este é

precisamente o predicado ao qual se chega quando se constitui o segundo nível. —

Para retornar à questão do instrumentalismo: quando algo é julgado como justo ou

injusto, não se argumenta mais instrumentalmente —, a não ser que se queira. Seria

enganoso designar como instrumental também um julgamento para o qual é

decisiva a igual consideração dos interesses de todos. Não vejo nenhuma

dificuldade no fato de que possa ser do interesse de cada indivíduo se associar a um

sistema que possua um ponto de vista de julgamento que não seja mais o do

indivíduo. A dificuldade que você viu aí vem do fato de que é muito natural pensar

que o indivíduo, quando se associa a este sistema, deva transformar sua motivação,

deva deixar de ser instrumentalmente orientado para si mesmo. Mas este não é

propriamente o caso. Ele aprende simplesmente uma nova forma de julgamento, e,

com isso, esta forma de julgamento é, de certo, colocada como determinante, e,

portanto, como motivadora da ação. Este segundo nível não pode ser adotado sem

que se diga que queremos que todos ajam assim para dizer e exigir isto, não é

preciso transformar a nossa própria motivação. Deveríamos discutir, em uma outra

conversa, o que pode motivar a transformar a própria motivação.

T: Certo. Eu também separei tais questões no meu livro. Mas o que a sua

visão traz de novo é que, até mesmo a motivação para se conceber como integrante

real — e não apenas aparente — da comunidade moral, é conceitualmente um

passo adiante. Eu digo ―conceitualmente‖, porque é naturalmente irrelevante se a

pessoa se compreende, antes, biológica e psicologicamente como franco-atirador e,

depois, como integrante efetivo da comunidade, ou o contrário. Neste meio tempo,

acumularam-se na minha cabeça outras questões em aberto.

I: Por favor.

T: Bem, uma é a da motivação, que acabamos de mencionar. Um segundo

ponto é que você declarou que também se poderia introduzir a moral sem o

conceito de bem (ver supra). Como você concebe isto? O terceiro ponto vincula-se

a sua afirmação de que um indivíduo não pode distorcer a moral em favor próprio,

pois, sem a consideração de todos igualmente, a moral cai por terra e, com ela, os

conceitos a ela imediatamente associados como o elogio e a censura e os

sentimentos morais. Por mais certo que isto possa ser, no que diz respeito aos

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Diálogo em Letícia

Coleção Filosofia - 133 35

indivíduos, eu me pergunto se os grupos não podem distorcer a moral a seu favor,

O que impediria um determinado grupo de se definir como ―todos‖ e privar os

restantes, quer dizer, todos os que não correspondem a sua definição, de seus

direitos? Este problema coloca-se tão logo a palavra ―todos‖ se introduz de modo

tão indeterminado como você fez, não mais falando de todos os seres humanos.

I: Considero esta terceira questão fundamental. Eu introduzi

intencionalmente a palavra ―todos‖ de forma tão indeterminada. Em primeiro

lugar, não vejo em que medida — tão logo se passe por cima da moral moderna —

, a palavra ―todos‖ possa ser entendida como ―todos os seres humanos‖. Em

segundo, creio que nos encontramos aqui realmente diante de uma das

controvérsias morais decisivas do nosso tempo. Esta controvérsia seria

incompreensível se uma moral particularista já não estivesse em contradição com o

conceito de uma moral não mais tradicionalista. Para podermos passar a esta

questão, sugiro que, primeiramente, esclareçamos o conceito de justiça. Como foi

indicado agora mesmo, a palavra ―justo‖ parece ser aquela com a qual julgamos no

―segundo nível‖, como você o nomeou, quer dizer, no nível do próprio sistema

normativo. A justiça diz respeito à questão do sistema estar equilibrado entre os

indivíduos. A questão não é mais, portanto, se o sistema (ou também as normas

isoladas) tem valor para os indivíduos isolados, mas sim se o modo como um

indivíduo (ou vários) é considerado está em correlação com o modo como os

outros ou todos são considerados, isto é, se é igualmente justificado frente a todos.

Aqui se suprime o julgamento especificamente instrumental, a saber, a partir da

perspectiva de um indivíduo. Agora a questão é: o que significa o ―para todos

igualmente‖? Trata-se, por assim dizer, da lógica peculiar ao sistema normativo,

uma lógica que naturalmente não é para ser pensada como pairando suspensa no ar,

mas precisamente como o ―mecanismo‖ ao qual os indivíduos isolados se

entregaram por razões instrumentais.

T: É de se supor que só possamos compreender a questão sobre quem

pertence ao todo da comunidade moral — quem pode, quem deve pertencer —,

quando tivermos esclarecido aquela virtude que consiste na apropriada

consideração recíproca de todos, quer dizer, a justiça. Até que ponto uma

comunidade pode delimitar a extensão de quem são ―todos‖, poderia encontrar seu

limite nisto que você chamou a lógica do sistema.

I: Eu penso assim. No que diz respeito ao seu primeiro ponto, o da

motivação, sugiro analisá-lo somente mais tarde, não, porém, porque ele não seja

fundamental. Poderíamos tratar agora mesmo do seu terceiro ponto, referente ao

conceito de bem, como um apêndice, pois não creio que ele vá se estender.

T: De acordo.

I: Eu já destaquei acima a relevância que, nas Lições, você atribuiu ao

termo ―bom‖. Se não ficar suficientemente claro qual seja o substantivo

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Coleção Filosofia - 133 36

correspondente, talvez se acrescente ao conceito de moral uma indeterminação

desnecessária. Faria sentido naturalmente querer evitar que se fale de ―moralmente

bom‖, mas, com isto, cairia por terra a sua idéia de que se pode definir a ―moral‖

por recurso à palavra ―bom‖. Minha segunda objeção é que, no esclarecimento do

conceito de moral, não nos deveríamos apoiar em uma palavra que, porventura,

seja empregada deste modo em algumas línguas e culturas, mas em outras não, ou

apenas marginalmente. Até mesmo em uma língua tão próxima a nossa, como o

inglês, empregam-se para ―moral‖ e ―imoral‖, em primeiro lugar, as palavras

―certo‖ (right) e ―errado‖ (wrong).

T: Isto é correto no que diz respeito, ao menos, às ações e às normas

correspondentes, mas não, em contraposição, ao discurso fundamental acerca de

uma boa pessoa ou caráter. A propósito, você apontou, com razão, para o fato de

que o que eu disse nas Lições estava errado: que não se poderia provar que o

discurso atributivo acerca de uma boa pessoa fosse mais fundamental do que o

predicativo acerca de boas ações. Mas corrigi este erro, mais tarde, na interpretação

de Kant (p. 104 ss., na edição original). A prova consiste em que uma ação não é o

que primeiramente julgamos como moral, quando não se toma a intenção pela qual

ela ocorre. Por isto, já dizia Aristóteles, uma ação é boa/ruim, não quando ela

corresponde a tais e tais normas, mas quando ela é realizada por uma pessoa que

reúna as disposições correspondentes (Ética a Nicômaco, 1 105a, 28-33), e o

mesmo pensa Kant, ao dizer que bom é, em primeiro lugar, a boa vontade, isto é, o

bom caráter (Werke IV, p. 393).

I: Sim, com certeza. Este foi um pequeno erro, irrelevante para a sua

posição.

T: E você pensa que estamos agora diante de um erro dos mais graves?

I: É possível que não. Mas o que você disse agora mesmo lança uma luz

surpreendente sobre o uso da língua inglesa. Os ingleses empregam uma palavra

para uma ação ruim — errada‖ (wrong) — e outra, para o caráter ruim (“bad”).

Também em alemão se pode dizer que as ações são corretas ou incorretas, mas

quase nunca que o caráter o seja e, com certeza, nunca se pode dizer que o sejam

os seres humanos ou a sua vontade, A orientação pelo par de palavras ―correto‖ /

―incorreto‖ contém, portanto, um prejuízo enganoso por considerar a ação como o

portador primitivo do julgamento moral. Isto serve para o direito, mas não para a

moral. Mas isso não tem nada a ver com a sua perspectiva.

T: De qualquer modo, é interessante. Sempre me perguntei o que, em

alemão, se pensava quando se falava de correção, especialmente quando a

palavra, como em Habermas, não se refere apenas a ações, mas também a

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normas3. Não é problemático que uma ação seja correta. Parece, em geral, querer

dizer — e não apenas em sentido moral, mas, por exemplo, também em jogos —,

que ela corresponde às normas a ela competentes. O que, em contrapartida, pode

significar dizer da norma que ela é correta/incorreta? Creio que isto só pode

significar que se é de opinião que a norma é justificada. Isto torna compreensível

por que não faria sentido falar em regras de xadrez corretas ou incorretas, mas

sim de normas morais corretas e incorretas. Pode-se, com base nisto, definir uma

ação moral correta como aquela que corresponde a uma norma moral justificada

(= correta). Mas se isto está certo, devemos, então, renunciar a este segundo

emprego da palavra ―correto‖ — a saber, ao uso relativo às próprias normas —

posto que ―correto‖, neste uso da linguagem, seria definido como ―justificado‖.

I: E não, talvez, o contrário; pois, então, o que deveria querer dizer

―correto‖? ―Correto‖ não é, portanto, na terminologia das Três Preleções, um

predicado de justificação. Isto deve significar que mostrar que uma norma é

justificada, não pode equivaler a mostrar que ela é correta (pois se passa o

contrário, como você acabou de dizer). Por outro lado, ―bom‖, nas suas Lições, não

tinha apenas a função de um predicado de justificação, mas a de ser o único. Minha

tese é que isto pode ter sentido, sem dúvida, mas de que não é obrigatório. Tem

sentido quando pressupomos que justificar uma moral significa justificar o modo

como queremos (―aprovamos‖) ser, reciprocamente, uns com os outros. Se,

contudo, o sentido essencial de justificação de uma moral consiste em que se possa

fundamentá-la frente a todos em uma comunidade moral, não é absolutamente

necessário que a justificação resulte assim. Apenas na moral tradicionalista parece

ser necessário que a justificação decorra de um predicado de justificação. O

predicado de justificação ―sagrado‖, por exemplo, está relacionado à propriedade

superior correspondente, com a qual se identificam os integrantes da comunidade

moral. Contudo, também se pode empregar, em outros casos, a palavra ―bom‖,

posto que tem sentido dizer que, em uma comunidade tradicionalista, todos querem

(aprovam) que todos se comportem de acordo com as normas tidas como sagradas.

Mas isto é, então, secundário. Como é na moral moderna? As normas são

justificadas de modo a se mostrar que é do interesse de todos igualmente que elas

sejam exigidas de todos. Aí não aparece a palavra ―bom‖. Eu posso remeter, em

comparação, a idéias correspondentes em Bernard Gert (The Moral Rales,

conclusão do cap. 5). Ele emprega a expressão “public advocacy”, aprovação

3 Ver também Gertrud Nummer-Winkler, ―Zur moralischen Sozialisation‖, Kölner

Zeitschr. F. Soziologie 44 (1992) 252-257. Nummer-Winkler refere a palvra ―correto‖

não a normas, mas a ações; ela a compreende, com isso, não em relação a uma norma,

mas em sentido absoluto: o agente moral faz ―o que é correto porque é correto‖ (p.265,

no original).

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pública. Uma regra moral é considerada como justificada quando se pensa que se

pode, em geral, aprovar que todos a exijam de todos (e a exigência pode ser

entendida no sentido do sentimento moral; Gert fala mais, em geral, de sanções).

Quem aprova uma regra moral, neste sentido, pode contar com o assentimento

geral, quando pode pressupor que sua observação é igualmente do interesse de

todos. Mais uma vez, a palavra ―bom‖ não é empregada. Se a palavra ―bom‖ é

enfatizada. parece-me apenas que tem o sentido de que se supõe que todos

concordaram com uma regra proposta, porque ela corresponde a como cada um

deseja reciprocamente que o outro seja. Mas indicar isto como razão (―porquê‖),

não contribui para nada e é, além disto, demasiado fraco. Dizer que nós o

desejamos ou escolhemos ou recomendamos (e assim é empregada a palavra

―bom‖. na maior parte das vezes) é menos que dizer que o exigimos. Além disto, já

chamei atenção anteriormente para o mal-estar com o qual você fez a passagem do

conceito de bem ao de normas morais, nas Lições: ―e eu apenas gostaria de afirmar

que as normas morais de uma sociedade são precisamente aquelas que (...) definem

o que significa ser um bom ser cooperativo‖ (p. 58, na edição original). A

necessidade de apresentar um tal enunciado como um enunciado sintético

desaparece agora, de certo modo. Não precisamos mostrar que o seguir

determinadas normas constitui o que significa ser uma boa pessoa etc., mas que

aquelas normas nas quais consentimos — isto é, das quais exigimos consentimento

recíproco, são igualmente do interesse de todos, Estas são as normas morais (em

sentido não-tradicionalista). E isto oferece duas vantagens: em primeiro lugar, não

precisamos absolutamente responder à questão ―e quais são estas?‖, isto é, as

normas que preenchem o critério mencionado mostram-se as we go along

(―conforme prosseguimos‖). Em segundo lugar, podemos agora definir

inversamente: quando uma pessoa é de tal modo que corresponda a estas normas,

nós a chamamos moralmente boa. Digo propositadamente ―moralmente boa‖, pois

―bom‖ não é mais empregado como definição para ―moral‖. Ou melhor: ―bom‖

pode agora ser empregado deste modo, mas não precisa sê-lo. Se ele é empregado

assim, nada impede (tal como estava contido implicitamente na sua explicação)

que se possa falar de uma boa pessoa (por exemplo, admirável) também em um

outro sentido, extra-moral.

T: Entendo. Na medida em que você simplesmente não coloca o conceito

de bem de lado, mas define o conceito de moral independentemente dele e

constrói, em seguida, a partir desta definição de ―moral‖, o ―bom‖ especificamente

moral, podemos nos ater, como antes, à concepção de que tanto a aprovação e a

desaprovação (approve/disapprove), como também os sentimentos morais estão

relacionados ao ser bom e ruim.

I: Podemos, mas não precisamos. Posto que o ser bom ou ruim colocado

em questão remete, por sua vez, à moral, podemos deixar em aberto a questão se

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não podemos falar do mesmo modo de aprovação, censura e dos sentimentos

morais, em outros idiomas, sem que estes procedimentos se refiram a ―bom/ruim‖.

Desaprovar o comportamento de alguém, por exemplo, significa que se quer dar a

entender que seu comportamento se choca contra aquelas normas de que todos

exigem o cumprimento reciprocamente, de maneira justificada. O mesmo vale para

o sentimento correspondente de indignação, Tanto no conteúdo proposicional deste

sentimento, quanto na explicação que você deu acima, a palavra ―bom‖ não

aparece, e quando esta aparece, seu sentido aponta, então, para a violação de

exigências reciprocamente justificadas. Supor. como você mencionou, que isto

deva significar que a ela subjaz uma exclusão tendencial, parece-me correto,

porque, caso contrário, não se compreenderia bem em que deve consistir o caráter

de exigência ou de sanção da censura e da indignação.

T: A aparentemente mansa e débil moral seria, então, um assunto

bastante sangrento, disse eu.

I: Não se pode, de forma alguma, falar em mansidão. Uma moral deixaria

de ser moral, se não nos déssemos conta de que se trata de exigências e, mais

precisamente, de exigências comuns, sustentadas pelo sentimento comum de

indignação. Uma exigência habitual ganha, nesta visão, um peso totalmente

diferente, na medida em que aqueles que a exprimem dizem que, por trás delas,

está a moral, isto é, o afeto negativo comum de toda a comunidade. Por causa

disto, os grandes crimes não são aqueles cometidos pelos solitários amorais, mas

aqueles que decorrem de uma compreensão comum da boa consciência moral e da

própria justiça, e esta é também a razão pela qual o sentimento de culpa pode se

converter num inferno.

T: Já foi muitas vezes dito que o bem (Gute) é o mal (Böse), como Hegel

faz, em sua Filosofia do Direito (§ 139). Que este problema não tenha

desempenhado quase nenhum papel na filosofia moral contemporânea relaciona-se

ao fato de que quase não se levou em conta a relevância constitutiva dos afetos

morais para a moral. A moral pertenceria, então, uma singular dialética: a moral,

em sentido próprio, seria apenas aquilo que se retirasse da moral superficial.

I: Kohlberg tinha algo assim em mente com a sua distinção entre a moral

convencional e a pós-convencional. Mas como devemos distinguir entre a moral

superficial e a moral em sentido próprio? Também aqui o conceito de justiça

poderia ser adequado.

T: Mas não exclusivamente. Aqueles que supõem ter a justiça do seu lado

são os que mais se enfurecem. Mas admito que aqui haveria uma outra razão para

nos determos no conceito de justiça. E, de uma vez por todas, deveríamos colocar,

como um próximo ponto na agenda, o tema que você mencionou há pouco: a

crueldade da moral.

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I: Talvez, ainda que não sejamos, com certeza, as pessoas mais

indicadas para isto. Não somos nem psicólogos nem historiadores.

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CAPÍTULO III

Depois da sesta, nós nos encontramos no ventilado saguão do hotel.

I: Queríamos abordar a questão da justiça. Mas esta, para nós, não pode

ser simplesmente um tema adicional, como, por exemplo, para Aristóteles, quando,

no livro VI da Ética a Nicômaco, trata desse tema. Para nós, aquilo a que se alude

com o termo ―justo‖ - como quer que ele seja entendido - é componente integrante

de uma moral: um indivíduo que possui razões (Gründe) instrumentais para entrar

na práxis de um moral entra numa práxis que está justificada do mesmo modo

(―igualmente‖) para outros. Esta circunstância implica que a práxis tem, por assim

dizer, tantas ―patas‖ quanto são os indivíduos. Cada indivíduo pode perguntar- se,

por sua parte, o que significa, para ele, esta práxis instrumental, mas, quando fala

sobre ela, ele não pode falar de algo que não tenha um valor igual para todos. O

que está sendo julgado, agora, por sua vez, é o modo como esta função é cumprida.

Não apenas existem regras que se referem a conteúdos que os indivíduos exigem

reciprocamente uns dos outros, mas também, fatalmente, de ―meta- regras‖, que se

referem ao ajuste das regras mencionadas antes, isto é, o equilíbrio das regras

quando são julgadas desde a perspectiva de cada indivíduo particular em

comparação com os demais. Se as regras se encontram em equilíbrio, são

designadas como justas, e, secundariamente, também é designada como justa a

conduta dos indivíduos, quando não infringem estas ―meta-regras‖. Uma coisa é

julgar o sistema - ou ainda uma norma particular - desde a perspectiva de uma

pessoa que está nele; outra, é o juízo desde a perspectiva do equilíbrio, isto é, desde

a perspectiva de todos igualmente. Mas a pessoa que entra no sistema por razões

instrumentais, quando quer se entender com outras sobre o bem do sistema, só

pode adotar a segunda perspectiva de juízo. É isto que o contratualismo ignora, e,

por esse motivo, não pode, em absoluto, alcançar o nível de uma moral. Por isso,

desde esta perspectiva de justiça, é válida a sua tese do contratualismo como uma

“quasi-moral”. No segundo nível do juízo, os indivíduos podem e devem por-se

de acordo — ou bem discutir — sobre o sistema ser ou não equilibrado. Daí resulta

um interesse pela verdade dos enunciados correspondentes (―se os deveres e os

direitos correlativos estão distribuídos assim, o sistema é bom, justo, equilibrado‖),

mesmo quando o indivíduo particular não se deixa determinar por este interesse,

em sua motivação particular. Deve-se esclarecer qual o critério de verdade de tais

enunciados, e em que sentido deve-se compreender, neste contexto, a expressão

―falar de razões contra ou a favor‖, Isto me leva ao segundo ponto, pelo qual

queríamos nos introduzir nesta problemática: você perguntou se há morais

particularistas na modernidade (e isto deve significar sempre: quando ela já não se

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justifica de modo autoritário). Não se duvida de que elas, de fato, possam existir.

Mas pode-se mostrar que elas não correspondem aos critérios de justiça. E, então,

este resultado teria exatamente o peso que já tem, e nada mais. E pode-se imaginar

um grupo que admita isto, mas diga: o que nos importa?

T: Você fixou o itinerário de um modo com o qual estou, em princípio, de

acordo. Seu segundo ponto é tema para uma próxima conversa. Em primeiro lugar,

devemos tratar de esclarecimentos conceituais prévios. Concordo com você em

que não poderíamos, simplesmente, perguntar: ―o que é a justiça?‖, mas antes

devemos esclarecer a gênese da perspectiva de justiça, desde a estrutura de um

sistema moral. Mas o ponto que você enfatizou — ―equilíbrio‖, ―ajuste‖ — não

cobre tudo o que designa a palavra ―justiça‖. Permita-me algumas observações

históricas. Existe uma duradoura — e surpreendente — continuidade no uso da

palavra ―justo‖, dos gregos aos nossos dias, e os limites deste uso superam aquele

que você tinha em mente há pouco. É digno de nota que, em nossa tradição, o mais

antigo esclarecimento sobre o termo oriundo de Simônides, assimilado por Platão

no livro I da República (331), e que, mais tarde, foi transmitido segundo a fórmula

de Ulpiano, se ajusta perfeitamente a esse complexo uso: jus suum cuique tribuere;

em lugar de “ius”, Platão emprega “lo proshekon”, o ―adequado‖, ―merecido‖,

―apropriado‖. Há diversos contextos, na essência de uma moral, em que pode ser

dito que se atribui a alguém — ou a muitos — o adequado ou o merecido, e,

justamente, nesse contexto, empregamos as palavras ―justo‖ e ―injusto‖.

Considerarei, aqui, três. O primeiro é aquele ao qual você se referiu: pode-se

designá-lo como o contexto da justiça distributiva, mas proponho entender este

conceito em um sentido amplo: não se trata apenas da justa repartição de bens,

mas, antes, da justa repartição de direitos, isto é, do equilíbrio no cumprimento das

normas morais mesmas, em relação a distintos receptores, dos quais se pode dizer

que têm direitos correspondentes. Deixa-me esclarecer: ainda que os membros de

uma comunidade moral tenham, além disso, deveres face a outros seres que não

são integrantes da comunidade (deuses, animais), ou ainda, deveres face a si

mesmos, ou não, é um elemento constitutivo de toda comunidade moral que uma

grande parte dos deveres subsista entre seus integrantes. A estes deveres

correspondem direitos (exigências): se x tem um dever face a y, então y tem um

direito correspondente face a x; assim talvez possamos dizer de forma simplificada,

sem ter que considerar as ulteriores conotações do discurso acerca de direitos que

exercem esta reciprocidade em relação aos deveres, De acordo com a classe (casta

etc.) a que pertencem x e y, eles possuem distintos direitos e deveres recíprocos. O

igualitarismo, por conseguinte, no qual todos têm estes direitos e deveres

recíprocos, é um caso-limite. O que, no entanto, vale, em geral, é que, em toda

comunidade moral, há uma determinada repartição de deveres e direitos; eu a

denomino uma determinada “configuração”, que prescreve quem tem face a quem

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quais direitos e quais deveres, e quem infringe esta configuração age de modo

injusto, independentemente do fato de infringir uma norma concreta. A vantagem

da fórmula de Ulpiano é que ela contempla este fenômeno sem decidir previamente

entre o igualitarismo ou o inigualitarismo. Neste sentido Vlastos pode dizer,

admitindo esta fórmula: é justo quem age de tal maneira que leve em consideração

os direitos de todos os concernidos; com isso, é pressuposto que os direitos

(exigências) estão assegurados, de algum modo, de modo igualitário ou não

(―Justice and Equality‖, in J. Waldron, Theories of Right, Oxford, 1984, p. 4lss.,

aqui p. 60s.). E esta a ―justiça distributiva‖ de Aristóteles? Não sei com certeza.

Por justiça distributiva, entendemos, usualmente, a repartição de bens e de

encargos e a distribuição de direitos ―especiais‖, mas o que eu acabo de descrever

concerne à configuração dos deveres e direitos já existentes. Em seu tratado sobre a

justiça, Aristóteles menciona, em primeiro lugar, um conceito de justiça segundo o

qual ―justo‖ é simplesmente que é moral (―virtuoso‖), mas, especialmente, em

relação aos outros (1129 b 26 ss.). Isto não corresponde, exatamente, ao que eu

disse aqui, porque Aristóteles não tem em mente nenhuma possível gradação dos

comportamentos normativos recíprocos, em geral. Independentemente de

Aristóteles, é, portanto, sem dúvida importante, ainda antes de ocupar-se da justiça

distributiva, referida aos bens e direitos especiais, voltar os olhos para uma justiça

que, por certo, também é distributiva, mas que diz respeito à configuração dos

deveres e direitos já existentes; ela não se origina, unicamente, quando há algo para

repartir. Isto permite destacar um importante conceito de igualitarismo, que diz

respeito a este primeiro nível e que é, inclusive, inteiramente independente do

igualitarismo, tal como se entende esta palavra na maior parte das vezes, a saber,

como a distribuição material dos bens. Bem, se isto está mais ou menos claro, é

preciso distinguir a justiça distributiva, em sentido corrente. Se não estiver claro,

quero indicar que pertence a toda moral, haja ou não algo a repartir. poder

considerar as normas e os direitos em si mesmos como gradativos ou não, e, por

outra parte, que é próprio, a toda moral, conter regras que indicam como repartir o

que é comum, Em ambos os casos, observa-se como tais significados de justiça,

como quer que sejam entendidos, se seguem do sentido de moral. A fórmula de

Ulpiano adapta-se a ambos os casos. Em ambos os casos, podemos também falar

especificamente de distribuição, de tal modo que podemos falar, em contraste com

a classificação de Aristóteles, de justiça distributiva a e b. É preciso, agora,

diferenciar ambas as formas de justiça distributiva — as que, apesar da distinção

que espero ter esclarecido, quero sintetizar num primeiro conceito de justiça — de

uma noção adicional de justiça, que concerne à decisão entre uma variedade de

exigências morais. Aqui se trata — pode-se pensar em um juiz durante uma disputa

da justiça civil, mas também duas pessoas podem discutir, entre si, neste sentido,

sobre o julgamento moral de uma situação —, tomar uma decisão ―adequada‖, em

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que sejam respeitadas, igualmente, as distintas exigências. O terceiro âmbito está

necessariamente presente em toda moral. Ele se refere às reações dos membros da

comunidade frente a ações alheias elogiáveis ou censuráveis, a que pertence

também a justiça nas punições. Trata-se, mais uma vez, de que as reações sejam ou

não adequadas, apropriadas ou não. Também aqui falamos de ―justo‖ ou de

―injusto‖. Neste terceiro caso, não se pode mais falar, como fazem Ulpiano e

Vlastos, de ―direitos‖: não se pode dizer que quem agiu mal tem o direito ou a

pretensão de ser censurado, mas, em troca, que o merece (e que, se o merece, a

censura e castigo são justos). Além do mais, este terceiro caso, distingue-se dos

dois primeiros, porque a pessoa se comporta de maneira justa ou injusta não

relativamente a uma variedade de coisas, mas reage de maneira moralmente

adequada ou inadequada frente a algo que tem um valor ou um desvalor moral.

Não obstante, há uma semelhança de família tão extensa, que nos permite

empregar, igualmente, a fórmula de Ulpiano encontrada em Platão.

I: É, seguramente, útil ter em vista todo este panorama. A genialidade de

Aristóteles revela-se no fato de que ele, embora não mencione a definição geral

de Simônides, a tenha em conta nestes quatro âmbitos. Ele observa, ainda, uma

estreita relação entre o que você chamou de segundo e terceiro âmbitos, porque

os reúne sob o título de justiça corretiva. Concordo com você que,

conceitualmente, o primeiro âmbito, em si, subdivido, e o segundo, se

aproximam. Observa-se isto no fato de que, em ambos os casos, designamos o

agir de modo justo como imparcial. Neste termo não está ainda implícito que se

trata igualitariamente os concernidos, mas apenas no sentido de que não se atém

exclusivamente às regras dadas previamente, aos padrões da justiça,

―desconsiderando-se a pessoa‖. As preferências pessoais próprias são deixadas

de lado: por isso, as figuras que representam a justiça, nas catedrais medievais,

têm uma venda sobre os olhos. Este conceito convém igualmente ao primeiro e

ao segundo âmbitos. pois, em ambos os casos, trata-se de respeitar,

convenientemente, os direitos ou as exigências de todos os concernidos.

Possivelmente, pensou-se também no terceiro âmbito nas representações da

justiça — a favor disso depõe a balança que a figura tem na mão —, mas a

expressão ―imparcialidade‖ se adequa menos a este âmbito, embora, sem dúvida,

se refira também ao juiz criminal, por não se tratar aqui de uma pluralidade.

T: Em todo caso, parece haver regras dadas previamente — ―padrões de

justiça‖, como você disse — e são estas regras que determinam a conveniência da

atribuição, a imparcialidade. A expressão contrária à imparcialidade é

―arbitrariedade‖, num sentido determinado desta palavra: a pessoa simplesmente

age como quer, em lugar de ater-se à medida.

I: E esta medida é o que você designa, no primeiro âmbito, como modelo

ou também como configuração dos direitos e deveres. Embora seja, certamente,

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correto ter em vista os outros âmbitos, devemos nos delimitar à justiça

distributiva, de que parti como de algo compreensível por si, sem atentar para o

fato de que se necessita de outras subdivisões deste primeiro conceito de justiça,

que você indicou, há pouco. O que quis dizer com ―ajuste‖ e ―equilíbrio‖, você

designa, de modo mais claro, como configuração dos direitos e deveres, para a

justiça distributiva (a). Esta primeira forma de justiça distributiva tem especial

significado para nossos propósitos: a distinção entre a moral universal e a

particular. Na discussão corrente sobre a justiça distributiva, o problema da

repartição de bens está em primeiro plano, a primeira questão é pouco

tematizada, porque, hoje, habitualmente, ela é respondida num sentido

igualitário. O fundamental, na fórmula de Simônides, é que não apenas abrange

os três ou quatro domínios, mas que ela pode ser compreendida em dois níveis, O

primeiro é aquele em que se pressupõe que a medida — o que também

denominamos padrões de justiça, ou o que você chama de configuração — está

definida, está dada, de antemão. E o segundo nível corresponde àquele onde se

pergunta sobre a justiça destes padrões. Pode-se, em principio, imaginar que falta

o primeiro nível e que a questão que se encerra na sentença de Simônides se

coloca, imediatamente, no segundo. Inversamente, parece-me inevitável que

quem fala desde o primeiro nível já tem em vista o segundo. Se alguém quiser

negá-lo – e isto, de fato, acontece com freqüência -, deve definir o sentido de

―justo‖ como ―assim como são prescritos os padrões de justiça‖, e, quando se

toma a definição geral de justiça, o caminho do segundo nível já está apartado. A

questão ―e estes padrões de justiça são, por sua parte, justos?‖ já não tem mais

sentido, quando ―justo‖ é definido desse modo. Mas isto significaria que os

próprios padrões de justiça tem apenas um sentido convencional, o que contradiz

o modo como falamos e pensamos. Não podemos dizer, então, ―esta ação é

justa‖, quando o próprio falante afirma que o critério, enquanto tal, se baseia

numa convenção. Assim, a palavra ―justo‖ deve ter um sentido que se situa

especificamente no segundo nível. É isto que os homens têm em vista, quando

discutem quais padrões de justiça são justos.

T : Você disse ―assim deve ser‖, mas todos os representantes da visão

particularista são de opinião de que, justamente, não existe este segundo nível. É

perfeitamente concebível falar de ―justo‖ de um modo que pressuponha uma base

que não existe. Toda a discussão sobre a justiça desde a Antiguidade sofre disso.

Não quero dizer que ninguém levou em consideração o segundo nível, mas que

nunca se disse, em geral, o que significa legitimar os enunciados neste segundo

nível. O que encontramos, de fato, é, por um lado, o igualitarismo: este é uma

resposta ao segundo nível, mas os adeptos desta opinião não diziam como eles a

justificavam, seus adversários sempre podiam, facilmente, invocar — ao menos

para a justiça distributiva (b) — que a repartição igualitária freqüentemente

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aparece, intuitivamente, como injusta. A solução, desde Platão e Aristóteles, é

apenas: a repartição por igual àqueles que não estão igualmente habilitados é

injusta, e até em tempos recentes — ver o livro de David Milier, Social Justice,

(Oxford, 1976) — objeta-se aos adeptos do igualitarismo, como Rawls, as

conhecidas proposições ―segundo‖ (gern4/3): é justa uma repartição segundo as

necessidades, segundo o mérito, segundo direitos preexistentes, ou ainda, embora

esta versão platonica não seja mais encontrada em Nietzsche: segundo a virtude ou

a honra. No entanto, exatamente esta versão, - e apenas ela – é conveniente

também no caso em que não se trata da repartição de bens. A disputa foi

exclusivamente intuitiva, a tal ponto que os atuais igualitaristas apresentam, com

frequencia, sua posição como não-justificavel. Assim, por exemplo, Rawls, mas

também Vlastos. O caso de Vlastos é particularmente significativo, porque,

primeiro, ele se ocupa de conceitos e, em segundo lugar, refere-se à justiça

distributiva (a). Na primeira seção, ele começa coma tese de que para os gregos a

justiça simplesmente significava igualdade, uma tese altamente implausivel,

porque, se assim o fosse, não poderia haver disputas entre os igualitaristas e os não-

igualitaristas. É interessante que, como destaca Vlastos, platão e Aristóteles

apresentem seu não-igualitarismo de um modo que se serve da palavra

―igualdade‖: a repartição igualitária não é a verdadeira igualdade.

Nesse momento, ele me interrompeu.

I: Em lugar de apenas constatar que, quando se reparte igualmente

entre os desiguais, os que se consideram prejudicados por uma repartição por

igual, queixam-se de serem tratados injustamente, Vlastos deveria perguntar o

que significa esta igualdade não-igualitária.

T: Correto. Na primeira seção Aristoteles é apresentado como um

equilibrista, que procura resgatar a palavra ―igualdade‖ justamente para a

desigualdade, na tese da proporcionalidade. Avancemos. Na segunda seção, o

proprio Vlastos defende uma tese da igualdade no nivel dos direitos básicos, mas a

expõe, de tal maneira, que ela é simplesmente uma suposição que fazemos, e que,

por isso, não é justificavel, uma questão de crenças; alguem de um outro planeta

poderia acha-la inconcebivel. Naterceira seção, ele, finalmente, se apropria da tese

de Simônides e esclarece: ―as palavras ‗justo‘ e ‗injusto‘ não são propriedade

privada dos igualitaristas‖ Mas não se entende por que. ao invés de começar com

Simônides, ele inicia a primeira seção com a palavra ―igual‖.

I: Embora a sentença de Ulpiano seja empregada tanto pelo lado

conservador quanto pelo relativista, apenas posso repetir que ela mantém a

neutralidade tanto entre o igualitarismo e o não-igualitarismo quanto entre o

primeiro e o segundo nível. Nisto esta sua importância. Se não pudéssemos

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começar com um sentido neutro de justiça, não seria possível discutir o que é

justo. E, então: o simples fato de que o igualitarismo exista mostra que há um

segundo nível. Mas, ao invés de simplesmente insistir na igualdade, como faz

Vlastos, no início de seu ensaio, devemos esclarecer qual o lugar da igualdade na

questão da justiça, uma circunstância que não é considerada, de imediato, na

formulação de Ulpiano. Devemos empreender, assim, algo de que sinto falta em

toda a tradição, a saber, ao invés de dar uma reposta dogmática ao segundo nível,

ou de, simplesmente, nomear instâncias opostas, perguntar como o segundo

nível, enquanto tal, é compreendido, isto é, esclarecer o que significa justificar

neste nível.

T: Você acha, então, que não temos antecessores nesta questão? Pode

ser, já que não conheço nenhum. Há pouco, você mesmo apresentou uma

proposta relevante. A sua proposta pode ser problemática, mas ainda assim é

uma sugestão para sairmos deste beco sem saída de teses e antíteses, Ela

consiste em que justificar uma moral significa justificá-la, igualmente, face a

todos. A referência à igualdade estaria implícita no conceito de justificação,

não, primeiramente, da justiça, mas da moral, em geral.

I: Correto. Minha reposta à questão sobre o que significa justificar os

padrões de justiça — no caso da justiça distributiva, a configuração, para usar a sua

expressão — diz: significa exatamente o mesmo que justificar quaisquer outras

normas, e, porque isto quer dizer justificar, igualmente, face a todos, na idéia do

―ser justificado‖ das normas morais está implicada uma referência à igualdade.

T: Poderia agora aparecer algum espertalhão, dizendo que esta teoria

da justificação de um sistema moral foi inventada, especialmente para

introduzir o igualitarismo.

I: Eu responderia a este espertalhão: em primeiro lugar é com isto apenas

dito o que aparece no conceito de igualdade em geral, isto é, que existe, de fato,

uma certa igualdade entre os integrantes da comunidade moral. Ela, contudo, não é

nenhum igualitarismo, nem em relação aos direitos básicos. Por isso, esta manhã,

no início de nossa conversa sobre a sua questão correspondente, procurei primeiro

mostrar-lhe que esta abordagem não exclui o inigualitarismo. Em segundo lugar,

perguntaria ao espertalhão como se pode compreender a justificação das normas

morais de outra maneira. Minha tese é a de que não há, em absoluto, outras opções.

T: Certo. Mas até o momento ainda não está claro como esta noção de

justificação concretamente repercute sobre o esclarecimento do conceito de justiça.

Permita-me responder ao espertalhão, de um outro lado, do qual abordei o

problema, em minhas Lições. Pode-se mostrar, na verdade, que a igualdade subjaz

também aos enunciados de proporcionalidade, que invocam os adversários do

igualitarismo. Tinha usado o exemplo da divisão de um bolo. Pode haver diversas

razões para que a divisão desigual do bolo pareça algo justo, mas o interessante é

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que se não se pode acrescentar razões convincentes que apóiem a divisão desigual,

resta somente a distribuição por igual. Nem mesmo a tradição aristotélica discutiu

isto, o que quer dizer que a igualdade está no fundo do não igualitarismo. Ela

aparece em três lugares. O primeiro — e decisivo: se não é dada nenhuma razão

para uma divisão desigual, então ela é injusta e arbitrária. Em segundo lugar,

também é possível fornecer razões, por exemplo, para que as crianças que tenham

mais fome recebam mais alimento. Ninguém põe em dúvida que a classe assim

caracterizada deve ser tratada com igualdade, salvo se forem invocadas,

novamente, razões que justifiquem uma distribuição desigual, mas, em tal caso, é

preciso também, novamente, uma divisão igualitária dentro de cada subclasse, e

assim por diante. A igualdade se impõe, portanto, à divisão desigual, e esta última

não pode dela se libertar, enquanto erguer pretensão de justiça. Finalmente, o

terceiro: que razões são aquelas que falam a favor da repartição desigual? Quando

não é dada nenhuma razão para uma repartição desigual, deve-se repartir

igualmente, isto significa que as razões requeridas são para não repartir igualmente.

Deste modo, as razões para a divisão desigual se reportam, por seu sentido próprio,

à divisão igualitária. como seu ponto de partida. Mas, sem dúvida, é preciso não

superestimar o resultado desta reflexão. O resultado não é, por exemplo, o

igualitarismo, mas a tese que diz que se deve repartir simetricamente, quando não

há razões contrárias. Podemos chamar a isto de tese da simetria. Isto significa que o

onus probandi está do lado da divisão desigual. A simetria na repartição não é uma

possibilidade entre outras, mas é a inevitável situação inicial. Por isso, não apenas é

iníquo mas também absurdo exigir a justificação da igualdade, posto que tanto o

não-igualitarista como a parte contrária a reconhecem como ponto de partida. A

distinção entre o igualitarista e o não-igualitarista está em que o primeiro crê ter

boas razões para limitar a igualdade e o segundo, não. O que se considera como o

ônus da prova do igualitarista não consiste, então, em introduzir razões para a

igualdade, mas em refutar as razões para a desigualdade que o partido contrário

possa apresentar.

I: Aqui o espertalhão pode objetar que a tese da simetria, como você a

chama, não diz nada, porque sempre é possível apresentar argumentos contra

ela. Ele também pode perguntar se não equivale dizer que a tese da simetria é

valida, mas que existem razões para limitar a igualdade, ou que não diz nada, e

que simplesmente não existem tais razões. ´

T: Não. A segunda opinião não existe, pois não faz sentido

simplesmente dizer que estas razões existem, posto que as razões são razões

precisamente para a limitação da igualdade. E com isto pressupõe-se a tese da

simetria. Não é certo que a tese da simetria não tenha significado. por ser

sempre possível introduzir razões contrárias. As razões devem ser,

primeiramente, relevantes e, em segundo lugar, convincentes; devemos, sem

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Coleção Filosofia - 133 49

dúvida, esclarecer o que. exatamente, significa isto. Mas não é certo também

que a tese da simetria não tenha significado no sentido de ela ser analítica. Não

podemos invertê-la, tal como naturalmente invertemos um juízo analítico: se

algo é igual, então, não é desigual. Não podemos invertê-la, porque não tem

sentido dizer: a repartição deve ser desigual, se não há razões para uma divisão

simétrica, pois o que significa não haver nenhuma razão para uma repartição

igualitária, exceto que existem razões indiscutíveis para uma divisão desigual?

I: Creio que isto é correto até certo ponto. O que você introduziu para

justificar a tese da simetria consiste, simplesmente, em que ambas as partes —

tanto o não-igualitarista como o igualitarista — a reconhecem. Mas por que

eles o fazem?

T: Esta é uma boa pergunta. Em que se fundamenta a tese da simetria? A

explicação que dei, nas Lições, me parece insatisfatória. Lá, digo: ―a posição

excepcional da igualdade decorre de ser a regra de distribuição mais simples‖

(Lições sobre Ética, p. 374, no original). Isto soa particularmente pragmático, e

não, obrigatoriamente, normativo. A tese da simetria, no caso de que pareça

obrigatória, deve seguir-se analiticamente de um aspecto da moral, enquanto tal —

por conseguinte, de cada um dos sistemas morais.

I: Pergunta-se apenas de qual. E esta é justamente a minha tese, a saber,

que ela resulta de um sentido particular de justificação, que todo sistema moral

exige. Se poder justificar uma norma moral, ou um sistema de normas, significa

poder justificá-lo face a cada um, igualmente, ficaria esclarecida a igualdade que

aparece como ponto de partida da questão da justiça.

T: Bom, Mas preciso, mais uma vez, colocar em cena o espertalhão. Ele

pode levantar três questões. Primeira: por que o ―igualmente‖ da justificação é

obrigatório? Segunda: é possível mostrar que este ―igualmente‖ é o que conduz ao

―igual‖, que aparece na distribuição? Terceira: em que medida a justificação por

igual conduz, não simplesmente ao igualitarismo, mas à tese da simetria? A

particularidade da tese da simetria está em que ela não apenas reclama a igualdade,

mas que com a igualdade introduz ao mesmo tempo a desigualdade e coloca ambas

em uma relação adequada no tocante à questão do que corresponde a cada um.

I: Dou razão ao espertalhão ao dizer que a minha tese se sustenta apenas se

estas três questões são respondidas. Só posso responder à primeira, repetindo o que

já disse ontem. Quem quer colocar em questão o fato de que uma moral somente

pode ser considerada justificada se podemos justificá-la face a todos, igualmente,

deve perguntar-se se ela apenas pode ser considerada justificada, quando pode ser

justificada face a todos. Acho que este ―todos‖ é mais complicado que o

―igualmente‖, porque o ―todos‖ provavelmente pode ser restringido. Este é o

problema com o particularismo, de que devemos nos ocupar. No contexto atual,

posso desviar-me desta questão. dizendo simplesmente: face a todos os integrantes

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da comunidade moral. E isto sucede, quando se considera que a expressão ―normas

justificadas‖ está construída sobre o ―estar justificado face a x‖. Uma norma que

não é justificável face a alguns membros da comunidade ou não o é por igual, não

é para eles uma norma moral, mas uma norma coercitiva. O conceito de equilíbrio,

que ganha importância concreta na questão da justiça, já se apresenta na questão da

justificação de normas morais, enquanto tais. A igualdade — ou, para usar suas

palavras, a simetria — não se apresenta na moral, porque existe uma tese que

reclame, por assim dizer, um padrão de super-justiça, que teria validade a priori,

mas porque ela é uma conseqüência necessária do modo como se compreende o

processo de justificação. Lembremo-nos de que o problema da justiça era de

segundo nível. No primeiro nível, que é relativo, a fórmula de Ulpiano pode ser

concebida de tal forma que aquilo que, em cada caso, é considerado justo, se

deduza a partir de proposições (dos padrões de justiça). No segundo nível, que é

absoluto e parece inevitável, se não queremos compreender a fórmula de Ulpiano

como uma convenção, falta um critério na tradição, posto que este sempre foi

representado da mesma maneira, isto é, como conclusão de uma proposição, e

assim é compreendido, no melhor dos casos, apenas o igualitarismo. A tese da

simetria, ao contrário, é, na verdade, um enunciado, mas expressa apenas o que

está implícito no processo de justificação, e este enunciado faz justiça a ambas as

partes. compreendendo-se como um critério geral, embora formal, para a justiça no

segundo nível, isto é, não mais num sentido relativo. Mas estou me antecipando

com isso. Passemos à segunda questão do espertalhão, que diz: admitindo que no

―ser justificado‖ das normas aparece o conceito de igualdade, subjaz esta igualdade

àquela que constitui a base de uma repartição justa? Continuemos com o exemplo

do bolo. Você constatou que, se não se pode mencionar nenhuma razão

convincente em contrário, apenas a repartição igualitária pode ser justa, e qualquer

outra deve parecer arbitrária. Mas por quê? Você disse que era uma boa pergunta.

Agora, temos uma resposta: porque, na explicação precedente, apenas esta

distribuição, por igual para todos, pode ser justificada. Qualquer outra repartição

deve parecer injustificável, da perspectiva das pessoas prejudicadas, se não pode

ser justificada, de modo convincente.

T: E como você incorpora à sua explicação a cláusula ―se não há nenhuma

razão convincente em contrário‖? esta era a terceira pergunta do espertalhão.

I: Creio que esta cláusula ganha um sentido apropriado apenas quando

partimos de minha explicação. O que pode significar, pois, que as razões devem ser

convincentes? Você mesmo disse que esta questão precisa de um esclarecimento

mais preciso. A explicação está contida na minha tese. Se é justa somente a

distribuição que pode ser justificada face a todos, então, também é justa a

distribuição desigual que pode ser justificada igualmente face a todos. Se isto está

correto, é preciso incluí-lo na formulação definitiva de sua tese da simetria. A tese

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não pode simplesmente dizer: ―a repartição simétrica obrigatória, se não existem

razões em contrário‖ — estas formulações são intoleravelmente vagas —, mas

antes, ―a repartição simétrica é obrigatória, se não existem razões que possam ser

justificadas igualmente face a todos‖. Desta maneira, tanto a repartição igualitária

quanto a distribuição desigual obrigatória se seguem do sentido unitário do

conceito de justificação de normas.

T: Não estamos colocando a trave exageradamente alta para o não-

igualitarista?

I: Não pode ser de outro jeito. Com que justificativa nós a poríamos mais

baixo? Se fosse assim, sempre um grupo decidiria unilateralmente sobre a

distribuição desigual, e isto contradiz não apenas nossa intuição sobre a justiça.

mas também o sentido proposto de justificação. Neste ponto, são considerados os

distintos modos de justificação de uma moral autoritária e de uma moderna. Esta

manhã, eu assinalei que, em uma moral tradicionalista, são justificáveis quaisquer

tipos de desigualdades normativas, no sentido do ―igualmente para todos‖, Isto se

esclarece na medida em que a justificação de uma moral tradicionalista face a

qualquer um não se refere, primariamente, aos seus interesses, mas à propriedade

mais elevada que a cada um convém, isto é, na qual crê cada membro da

comunidade. A crença entra no lugar dos interesses. Da crença segue-se, então, que

é válida aquela configuração de direitos que estabeleceu a autoridade, à qual a

crença se remete. Se, em uma moral moderna, ao contrário, os direitos são

distribuídos de modo desigual, esta situação não pode se justificar mediante o

recurso a uma autoridade. Deve-se, agora, introduzir razões objetivas, e estas

devem ser de tal modo que, segundo a tese da simetria, sejam aceitáveis para todos,

igualmente. Mas o que significa ―razões objetivas‖? Obviamente, deve ser

justificado que um determinado fator descritivo seja a razão de uma repartição

normativa desigual. Por ora, isto soa difícil. As mulheres são descritivamente

diferentes dos homens, mas o que, nesta diferença descritiva, pode ser tomado

como base para uma repartição desigual dos direitos?

T Que as mulheres, por exemplo, em razão da carga de sua gravidez,

mereçam, como compensação, certos direitos adicionais relativamente ao

mercado de trabalho, isto também os homens podem compreender. E, portanto,

algo que se pode fundamentar face a todos.

I: ―Como compensação‖, você disse. Uma justificação objetiva é

compreensível. Por isso, também pode ser evidente para os afetados

negativamente pela distribuição desigual dos direitos. Mas quando se diz ―como

compensação, por uma carga especial‖, já é pressuposta uma equiparação, em

princípio, dos direitos de homens e mulheres. Se disséssemos, ao contrário, ―as

mulheres, apenas porque são mulheres, ou igualmente os homens, apenas porque

são homens, merecem, em princípio, mais direitos‖, se estabeleceria entre o

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Ernest Tugendhat

Coleção Filosofia - 133 52

pressuposto descritivo e a conseqüência negativa uma relação cujo modo de

justificação não é evidente, em particular, face aos prejudicados por uma

semelhante regulamentação. Não esqueçamos que o partidário da desigualdade

tem o onus probandi. O mesmo vale para todas as outras distinções descritivas,

na medida em que devam ter, em princípio, alguma conseqüência normativa:

ascendência feudal, os brancos frente aos negros etc. parece que existem poucos

enunciados nos quais uma diferença descritiva possua uma conseqüência

normativa tal, que cumpra a exigência da tese da simetria, como, por exemplo, os

deficientes receberem uma bonificação (seu exemplo das mulheres deriva deste),

ou que é injusto recompensar igualmente pessoas que se esforçaram de modo

desigual. Existem outros enunciados deste tipo, tal como a recompensa segundo

o mérito, que suscitam maior controvérsia, Mas o que me importa é que todos

estes enunciados pressupõem a equiparação, entre todos, em princípio, isto é, um

igualitarismo nos direitos básicos. Não é evidente, em primeiro lugar, como a

equiparação, em princípio, pode ser posta em questão numa moral moderna, e,

em segundo lugar, esta equiparação é justamente o pressuposto necessário que

torna possível uma justificação da justiça das distribuições concretas desiguais.

T: Era exatamente isto que eu tinha em mente, a propósito de minha

diferenciação entre aquilo que denominei discriminação primária e secundária

(Lições, p. 375, 378 do original).

I: Correto. Você diz aí que a discriminação primária significa que se efetua

uma ―diferenciação valorativa prévia‖. Quanto ao conteúdo, isto equivale ao que

eu queria dizer; só que não procurei apreendê-lo mediante um princípio, um

enunciado, mas sim, intentei fazê-lo operacionalmente: uma discriminação

primária é aquela que não pode se justificar de modo não- autoritário, porque

colide com a tese da simetria. Talvez possamos dizer também: toda discriminação

primária se assemelha a um anjo que circulasse entre os homens, marcando,

arbitrariamente, com cruzes, uma parte deles. O anjo é, na realidade, a antipatia ou

o interesse de determinados grupos. Em sua perspectiva, estas diferenciações têm

um sentido muito claro, mas é um sentido que se revela arbitrário tão logo se tente

compreendê-lo do ponto de vista daqueles que foram privados dos seus direitos, ou

na perspectiva de um observador externo, ou seja, a partir da tese da simetria.

Quando alguém, por exemplo, é discriminado por causa da cor de sua pele, não se

trata, para este, de um mero prejuízo. mas de algo que lhe é incompreensível.

Enquanto outras distribuições normativas desiguais podem ser discutíveis, a

discriminação primária não é compreensível sequer como proposta: não se

compreende, exceto a partir desta perspectiva específica, que conexão objetiva

possam ter o pressuposto descritivo e a conseqüência normativa.

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Diálogo em Letícia

Coleção Filosofia - 133 53

T: O igualitarismo que se segue daqui é, como você disse, um

igualitarismo dos direitos básicos. É preciso, para isto, detalhar quais são os

direitos fundamentais?

I: Eu diria que por enquanto não. Pois, de acordo com a distinção que

acabamos de fazer, podemos designar como básicos todos aqueles direitos cuja

gradação não é justificável, senão de maneira tradicionalista. Os direitos básicos,

assim entendidos, não são, todavia, aqueles que chamamos direitos humanos, pois

não estão definidos em relação ao Estado, mas apenas dentro da comunidade

moral. O igualitarismo resultante disso significa, simplesmente, que o que você

denominou configuração, na justiça distributiva (a), deve ser simétrica. Com o

exemplo do bolo, nos lançamos, de certo modo, em outro nível, pois este exemplo

se refere à repartição de bens, isto é, ao que você chamou de justiça distributiva (b).

Mas no ponto em que estamos, ainda não foi completamente determinado se,

dentro da comunidade moral, em geral, é necessária uma repartição de bens. Pode-

se apenas dizer: se uma repartição de bens é conveniente — como, por exemplo, na

divisão de um bolo — exclui-se, em todo caso, uma justificação da distribuição

desigual, que equivale a uma discriminação primária (que, neste exemplo, seria:

que uma criança receba mais, porque é primogênita). Ao contrário, poderíamos

mencionar outras razões para uma distribuição desigual, porque, em primeiro lugar

— sobre a base da exclusão da discriminação primária — todos contam por igual e

porque, em segundo lugar, as circunstâncias particulares que estão em jogo devem

ser consideradas, na repartição dos bens. Em relação ao exemplo do bolo, falamos,

antes, da divisão igual e desigual, embora, no caso da justiça distributiva (a), não

convém repartir nada. Apenas se trata de considerar reciprocamente de modo igual

ou desigual os direitos e deveres. É certo que se pode também falar, nos direitos

básicos, de uma distribuição igual ou desigual justamente destes direitos, mas não

se considera, desde o princípio, aqueles pontos de vista da proporcionalidade, que

assinalam os não-igualitaristas — segundo a necessidade, o mérito etc. A

discriminação primária seria a única justificação pensável. Com isso, posso apenas

dizer: existe todo um âmbito da justiça distributiva — justamente aquele que você

assinalou como primeiro (―a‖) — no qual a única possibilidade de considerar a

desigualdade justificada é, por razões concretas, a discriminação primária.

T: A palavra ―igual‖ pode nos confundir em toda esta discussão. Você

falou, há pouco, da consideração igual em contraste com a repartição igualitária,

mas a expressão ―consideração igual‖ é, por si, ambígua. No exemplo do bolo,

uma criança, que, graças a uma repartição igualitária, visse ignoradas suas

exigências particulares, a consideraria desigual (isto é, que a trataram

injustamente). Mas, numa moral tradicionalista, uma pessoa tomaria por desigual

uma repartição igualitária, se se acreditasse merecedora de uma dignidade desigual.

Platão emprega, nas Leis (757a), a palavra ―igual‖ em relação ao direito em um

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Ernest Tugendhat

Coleção Filosofia - 133 54

duplo sentido. Sempre onde uma divisão igualitária é considerada injusta,

quaisquer que sejam as razões, não se pode fazê-lo sem tomar uma repartição

igualitária por uma consideração desigual, isto é, como uma violação da (desta)

igualdade. O duplo emprego da palavra ―igual‖ não é também, em si e por si, um

truque reacionário, como Vlastos sugere (p. 41 ss., da edição original), mas uma

exigência. E Aristóteles esclareceu amplamente esta concepção correta de Platão,

ao dizer que quando aparecem fatores para uma divisão desigual, é justa a divisão

proporcional a tais fatores (no caso em que estes possam, em geral, ser

quantificados). Não há o que reprovar nesta concepção de que as pretensões de

repartição desigual devem ser consideradas proporcionalmente, bem como que este

é o pressuposto para que as pessoas sejam consideradas igualmente. A virada

reacionária aconteceria quando se introduzisse como um fator determinante para a

justiça da repartição desigual a dignidade desigual, isto é, algo que só pode ser

justificado na discriminação primária. A consideração igualitária. tal como Platão a

compreende, é consequência, simplesmente, da fórmula de Ulpiano: a

consideração desigual dos direitos de pessoas distintas significa que não se dá a

cada um o que merece. Ao contrário, segundo a fórmula de Ulpiano, a

discriminação primária é excluída e assim também aquilo que a exigência de uma

consideração igualitária deixa em aberto: que os direitos ou, em todo caso, os

direitos básicos podem ser desiguais. Com isto, a expressão ―consideração igual‖

não tem mais o sentido formal que Platão presume, segundo a fórmula de Ulpiano,

mas um sentido concreto, a saber que. contrariamente a Platão e Aristóteles, todos

têm a mesma ―dignidade‖, podemos dizer, o que significa que todos merecem o

mesmo respeito. Posto que a palavra ―dignidade‖ apresenta prerrogativas

particulares, a expressão ―dignidade igual‖, apesar de vaga, ou graças a ela, é

apropriada para que ninguém possa pretender direitos especiais. Somente agora a

consideração igual equivale ao respeito igual. A palavra ―respeito‖ tem muitos

significados, mas, em nosso contexto, podemos compeendê-la como o reconhecido

dos direitos dos outros, de tal modo que respeito igual signifique: reconhecer que

todos são considerados iguais em seus direitos, e a expressão objetivadora

―dignidade igual‖ deve afirmar o mesmo. Metaforicamente: se os homens

expressam mutuamente seu respeito por uma reverência, ninguém pode inclinar-se

para uns mais que para outros.

I: Correto. Mas isto não pode ficar apenas nas reverências. A questão é:

qual a conseqüência concreta de respeitarmos mutuamente, de maneira igual, uns

aos outros? Rejeitei, em princípio, a questão de uma enumeração dos direitos

básicos, mas somente porque esta não pode preceder o reconhecimento da

dignidade igual, isto é, que deve se seguir a ela. A tese da simetria deveria ser

novamente aplicada, após a exclusão da discriminação primária. A questão seria,

então: primeiramente, quais direitos concretos, quando a possibilidade de

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Coleção Filosofia - 133 55

discriminação primária está excluída, seria injusto, segundo a tese da simetria, não

conceder a todos igualmente? E, em segundo lugar, que direitos desiguais, quando

as pessoas se encontram em tais e tais relações (circunstâncias), seria injusto, no

sentido da tese da simetria, não reconhecer, quando a discriminação primária está

excluída? Esta segunda pergunta é aquela que você assinala, em seu livro, como a

questão da exigida discriminação secundária. As duas perguntas podem referir-se à

repartição dos bens, sendo que a segunda, apenas a ela. Nenhuma delas, nem

mesmo a primeira, pode ser tratada de modo abstrato, como procedemos antes, isto

é, sem entrar nas circunstâncias sociais particulares dadas. pois é claro que são

estas circunstâncias que devem ser consideradas quando se estabelece,

concretamente, quais direitos iguais devam existir, quando a dignidade igual não é

violada. Trata-se de circunstâncias que, sob determinadas condições, podem fazer

uma distribuição igualitária parecer injusta como uma violação à dignidade igual.

Gostaria apenas de assinalar que, na discriminação secundária, trata-se de diretos

— de direitos desiguais —, justamente onde estes direitos são diretos a uma

repartição desigual de bens. Quando é dito que uma distribuição é justa. se é

―igualmente do interesse de todos‖ (Habermas, consciência Moral e Agir

Comunicativo, p. 76 no original), parte-se, com justiça, de regras que todos têm de

poder de aceitar, por igual (op. cit., p. 73). A justiça, contudo, não pode, tomando

este conceito, referir-se diretamente aos interesses — ela também não consiste em

uma equiparação de interesses —, mas apenas a pretensões de direitos, que se

justificam em regras gerais, em que os interesses se comparam com os interesses,

de tal modo que a pretensão de dignidade igual é sustentada. Uma solução justa das

diferenças não pode partir de uma distribuição baseada em interesses iguais dos

afetados, porque não fica claro, em absoluto, o que significa isto. Ao contrário, ela

se refere sempre a uma comparação das pretensões de direitos respeitadas. em

geral, que, por sua vez, se determinam de acordo com as circunstâncias e das quais

se pressupõe que possam ser aprovadas por todos, segundo a tese da simetria.

Trata-se apenas de regras gerais, das quais se espera que possam ser justificadas

igualmente face a todos, mas nunca de uma equiparação concreta de interesses e,

por conseguinte, também das oposições que não se resolvem mediante a tese da

simetria, quando, num caso concreto, várias regras gerais (tais como a de merecer

uma bonificação, quando se é um necessitado, e a de merecer uma bonificação,

quando se tem uma pretensão de um direito prévio) entram em contradição umas

com as outras. Nenhuma tentativa de solucionar tais contradições, através de regras

gerais, pode ser justificada igualmente face a todos.

T: Mas o que eu quero dizer é que, embora o complexo de questões que

você assinala, isto é, a da legítima divisão desigual de bens, relacione-se

estreitamente com nossas considerações, e apenas agora deciframos as

conseqüências concretas do princípio do igualitarismo, se trata de uma temática

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evidentemente ampla, que não pode ser resolvida num piscar de olhos. Não

devemos esquecer que não queremos abordar o tema da justiça, em si mesmo, mas

ganhar uma base sobre a qual possamos esclarecer as possíveis distinções, na

modernidade, entre uma compreensão universal da moral e uma particularista.

Alcançamos esta base, e seria interessante agora concluir a problemática da justiça,

se não formos desviarmos por questões mais básicas. Sugiro que nós nos

ocupemos desta problemática, quando nos encontrarmos, novamente, à noite, e

adiemos para uma outra vez a continuação da problemática da justiça.

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CAPÍTULO IV

Ao anoitecer, encontramo-nos novamente no bar do porto.

I: A maior parte dos filósofos que se ocupa da moral pergunta

simplesmente ―o que é a moral e como se comporta nela o indivíduo‖, como se o

único contraste interessante fosse o que se produz entre o interesse individual e o

moral. Justamente porque se considera o problema dessa maneira, ignora-se que há

modos distintos em que uma comunidade moral pode se compreender. Nesta noite

queremos esclarecer se podemos falar simplesmente de moral moderna ou se há

variantes distintas de uma compreensão moral moderna. (Sua expressão ―moral

moderna‖ não é muito feliz, em si mesma, porque sugere a idéia de que se trata da

moral ―na modernidade‖ enquanto que o que você quer dizer é: uma moral sem

justificação tradicionalista (autoritária)). Surgiu o rótulo ―particularismo‖. O

contrário seria ―universalismo‖. Isto parece pressupor que aquela moral moderna

produzida no contexto da tese da simetria e da exclusão da discriminação primária

é assinalada não apenas como igualitária, mas também como universalista.

T: O universalismo parece-me um simples corolário do igualitarismo.

Assim como aquele que, no interior da comunidade moral, quer afirmar uma

gradação nos direitos tem o onus probandi, também o tem aquele que deseja

restringir arbitrariamente a comunidade moral, e se limita, por exemplo, à

comunidade política ou a uma suposta comunidade ética. Não definimos, até agora,

o conceito de ―comunidade moral‖, mas parece claro que ele se estende tanto como

o sentido de suas normas. Tradicionalmente seria pensável que a autoridade

correspondente fixasse tanto limites para fora como gradações para dentro. Se a

autoridade é suprimida, a resposta mínima à pergunta sobre quem são todos

aqueles frente aos quais devemos poder justificar a regra de nossa conduta é:

sempre frente a todos os que podem exigir isso de nós. Por esta razão a

comunidade moral é aberta. A limitação da universalidade equivale a considerar

certos grupos ou, simplesmente, os estrangeiros, como pessoas total ou

parcialmente carentes de direitos, e isto exigiria uma decisão de poder que não é

justificável frente aos prejudicados. A discriminação ou ainda a não-admissão de

estrangeiros em um Estado não deve, na verdade, ser designada como

discriminação primária, porque é possível compreendê-la exclusivamente no

sentido de que não lhes correspondem, sem mais, certos direitos particulares que o

Estado outorga. Quando, frente aos estrangeiros, não podem valer nem mesmo os

deveres negativos, é lícito falar de uma discriminação primária. Talvez um país

tenha uma boa razão para se defender contra invasores. Mas há discriminação

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primária quando se fala, como hoje, por exemplo, nos Estados Unidos ou em

Israel, que em uma guerra só conta o número das mortes próprias, e não as de

inimigos ou de cidadãos de países terceiros.

I: Mas quando esta discriminação primária é observada em todas as partes,

como hoje em dia, é necessário tornar compreensível, de algum modo, este não-

universalismo da moral. É fácil dizer que é imoral, porque o particularista se

considera a si mesmo, de certo modo, de maneira moral.

T: Esta é a expressão correta: ―de certo modo, moral‖. Ele tem uma

outra compreensão da moral. Mas, então, devemos ter cometido um erro em

alguma parte. Ou o igualitarismo não implica o universalismo, como acabo de

afirmar, ou algo não funciona na tese da simetria; ou também, retornando a

questão anterior, o conceito de justificação que você introduziu talvez admita

alternativas. A última possibilidade parece-me a mais provável, pois, por um

lado, a passagem deste conceito de justificação à tese da simetria, e desta ao

igualitarismo e ao universalismo, dá-se de modo mais ou menos contínuo, e,

por outro, sua definição do conceito de justificação tem o caráter de uma tese.

Por que não deve haver outras opiniões sobre o que significa justificar a moral,

que igualmente não se sustentaram em uma autoridade?

I: .Certamente há algumas outras, por exemplo, a kantiana, a

utilitarista, a schopenhaueriana. Talvez este seja o lugar em que se deve tornar

explícito o nosso pressuposto de que as normas morais, ao menos em seu

núcleo, têm um caráter recíproco, isto é, que normas morais sempre são

compreendidas se constituindo numa comunidade moral. Mas se trata, em todo

caso, de uma pressuposição sobre a qual não há nenhuma disputa com os

particularistas. Quando, contudo, a justificação das normas é pensada, em sua

essência, como algo essencialmente recíproco, e as normas são tais que se

constituem no sentimento comum de sanção da tríade strawsoniana, não se

pode compreender a justificação sem estes dois passos: ―justificar frente a x‖ e

que seja assim para todo x.

T: E por que insistir no ―igualmente para todos‖? Coloco esta pergunta,

novamente, porque devemos saber, com precisão, quais as alternativas.

I: Quais as alternativas: esta é uma lembrança oportuna. Não há, então,

nenhum ―dever‖ (Muss) absoluto. Ninguém pode querer dizer: existe a moral e nós

não podemos fazer nada. Posso esclarecer o ―igualmente para todos‖ do seguinte

modo: a alternativa se chama arbitrariedade, isto é, poder, coerção. Naturalmente

podemos fazer algo. Podemos escolher o caminho da arbitrariedade e do poder,

apenas não podemos misturá-los: direito e poder. O sentido da justificação é

mostrar que a regra não implica a arbitrariedade de um frente aos outros, e, por esta

razão, não se pode compreendê-la, de outro modo, que com a fórmula ―igualmente

frente a todos‖. Em sua enumeração das alternativas possíveis - que nós podemos

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ter ignorado no curso de nossa discussão -‗ você ainda pode mencionar uma: não

apenas é possível que se possa compreender de outra maneira o conceito de

justificação, mas, antes, pode-se também abandonar a pressuposição com a qual eu

comecei e que você seguiu, isto é, de que compreendemos por normas morais as

normas recíprocas e universais sempre que estejam justificadas. Não podemos

querer pôr nossos adversários num xeque-mate conceitual. Não podemos querer

mostrar que não se pode ou deve pensar assim, mas que apenas podemos - com o

fim do esclarecimento mútuo - assinalar as implicações de sua posição e da nossa.

Tampouco a definição de normas morais com o acréscimo ―sempre que estejam

justificadas‖ pode ser entendida como algo que não admite contradição. Trata-se

apenas de uma definição.

T: Mas o que sobra quando suprimimos a cláusula ―sempre que‖?

Pode-se indicar ainda uma moral?

I: Nós nos baseamos no fato de que as normas morais são normas

sociais, que se sustentam - enquanto normas - na tríade strawsoniana. Você

estabelece, em seu livro, uma dicotomia, com convenções e costumes, de um

lado, e as normas morais, de outro, daí estas serem definidas como pretendendo

ser justificadas (Lições sobre Ética, p. 47, no original), Se falássemos agora de

dois conceitos de moral, tratar-se-ia, ou bem de uma mera variante idiomática, ou

bem de moral em sentido próprio.

T: Compreendo a sua estratégia. Você não considera o particularismo

como uma limitação do universalismo.

I: Correto. Isso não significa nada para mim. Ao tomá-lo como uma

limitação, não o compreendemos, mas apenas o condenamos a partir de um

conceito estreito de moral. É plausível considerar a limitação de ―todos‖, no

particularismo, como conseqüência de outra compreensão da noção de

justificação.

T: Um modo de justificação, e não simplesmente o abandono da

justificação‘? - Devo reconhecer que, ao diferenciar as regras morais das

convenções e costumes, como regras justificadas ou que necessitam de justificação,

deixei em aberto a questão de como entender a normatividade de tais convenções e

costumes. Pensa-se, por exemplo, nos hábitos de higiene e de vestuário, nos

costumes culinários e nas maneiras à mesa, que desempenham, provavelmente, um

papel mais importante que as regras morais na inserção de uma criança na

sociedade e na formação dos sentimentos de culpa e de vergonha. Não se pode

duvidar de que aqui a tríade strawsoniana está igualmente presente.

I: Não concordo. A indignação não pode ser representada aqui. E

podemos falar menos de sentimento de culpa do que de vergonha.

T: Mas como é compreendida aqui a indignação? Quem infringe os

costumes, infringe somente o decoro, e dado que todos - ou a maioria - partilham o

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sentimento de decoro, está dada a base para que haja sentimentos morais

partilhados. Este sentimento de decoro tem, talvez, algo que demarca e delimita,

que se dá historicamente de cima para baixo frente às pessoas comuns, mas que,

hoje, se dá mais freqüentemente em sentido horizontal, na medida em que uma

determinada ―comunidade de nós‖ tem assegurada sua identidade.

I: Você disse corretamente: ―quem infringe os costumes, infringe

somente o decoro.‖ O que significa este ―sentimento de decoro‖? Pode-se,

talvez, dizer: é uma consciência normativa comum que se confirma

reciprocamente. Uma tal confirmação pode ser, então, aquilo que se entende

por justificação. O sentimento de decoro seria uma consciência normativa,

em que se considera como justificação a consciência de partilhar um ponto de

vista, isto é, que se põe no lugar da justificação. Se você quiser, uma

“quasijustificação”. Pode-se aqui traçar uma analogia entre a consciência

correspondente no âmbito teórico: ainda que ―justificar‖ possua, neste

âmbito, um sentido distinto: o mero assegurar-se mutuamente de que todos

crêem o mesmo pode substituir a justificação. ―Todos julgam assim, logo, é

assim‖. Assim se pode pensar tanto em relação a enunciados como com

referência a normas. Naturalmente o ―todos‖ nunca pode ser todos, mas a

maioria ou os que são relevantes. No domínio normativo, esta circunstância

tem como conseqüência a tendência a excluir da comunidade moral aqueles

que não querem ou não podem corresponder ao sentimento de decoro da

maioria, como, por exemplo, os homossexuais. Talvez esteja me

precipitando. Não acho que seja possível esclarecer a importância dos

costumes sem levar em conta que relação eles têm com aquelas normas que

se consideram justificadas, isto é, não há nenhum conceito unitário de

costume. No interior de uma moral tradicionalista, é razoável que os

costumes e as normas morais não estejam nitidamente separados, mas que

ambos estejam justificados na autoridade competente. Quando, contudo, se

suprimi a justificação tradicionalista, restam duas possibilidades. Ou

dizemos: há um conjunto de normas que se pode justificar de um novo modo,

isto é, tendo em vista o interesse; trata-se, então, de normas morais em

sentido próprio. Quando existem outras normas que se apoiam simplesmente

em um sentimento de decoro e que não são fundamentáveis, elas são

inofensivas, desde que não infrinjam as regras morais. Sua inofensividade

expressa-se no fato de que são designadas como convenções. Ou. então, posto

que as normas podem, agora, por recurso à autoridade, não ser justificadas,

em absoluto; o sentimento de decoro se transforma aí em uma instância

última. Isto quer dizer que não se distingue entre os costumes e a moral, e -

como vemos em Hegel, em quem a moral se dissolve na ―moralidade‖ - ainda

não existem normas que possam ser justificadas. Ambas concepções são

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nitidamente contrapostas, porque, enquanto a primeira distingue entre os

costumes que têm consequências imorais dos costumes inofensivos - este é o

componente especificamente liberal da moral referida a uma justificação

recíproca -, não pode existir, para a concepção contrária, uma tal distinção, e

as minorias que pensam de modo diferente são excluídas da comunidade.

Entendo que, deste modo, chegamos a uma compreensão adequada da moral

particularista, porque agora vemos que, em primeiro lugar, ela não apenas

exclui os espectadores externos - aqueles que não pertencem à comunidade

política ou ética -- mas os integrantes da própria comunidade que não se

adequam ao sentimento de decoro sustentado pela maioria que fixa as

normas. Em segundo lugar, fica evidente que estas conseqüências concretas

são apenas o resultado de uma outra concepção de justificação, que, na

verdade, também pode ser articulada de tal maneira que as normas não

possam ser justificadas para além do sentimento de decoro compartilhado.

T: Muito bem. Então, estaria definida, até certo ponto, a posição contrária.

Não podemos ser tão ingênuos e dizer que pode haver apenas uma moral moderna,

como fiz em meu livro. Também as morais particularistas, que, concretamente,

podem ser variadas na medida em que se constituem como ―comunidades de nós‖,

com um sentimento compartilhado de decoro, são especificamente modernas, não

autoritárias. A discussão com elas teria algum êxito? Não podemos dizer que sejam

imorais, pois não podemos, por meio de uma definição, excluir outras idéias sobre

a moral. Há filósofos, na Alemanha em particular, que acham que uma tal moral,

na verdade, é uma moral, mas que não é racional. Em primeiro lugar, não sei em

que sentido de ―racional‖ eles entendem isto e, em segundo, ainda quando isso

fizesse sentido não seria preciso combater os particularistas. - Uma discussão

diferente com as morais deste tipo encontra-se em Richard Hare, em Freedom and

Reason (Oxford. 1963). no nono capítulo. O argumento que ele emprega, no

entanto, não parece muito convincente. Pode-se, inclusive, afirmar que o que se

revela implausível na concepção inteira de Hare é justamente sua controvérsia com

os assim chamados ―fanáticos‖. Hare convida os nazistas a dizerem se estariam a

favor do extermínio de judeus, se fossem eles mesmos judeus. Eu não vejo por que

os nazistas não poderiam simplesmente responder: ―certamente, não, mas, graças a

Deus, não sou judeu‖. Hare pressupõe simplesmente que o intercâmbio potencial

de papéis é inerente à essência da linguagem moral e crê que, desse modo, pode

derivar, analiticamente, sua versão utilitarista do kantismo. Se me perguntam ―você

também quereria esta norma, se o mundo inteiro fosse de outra maneira?‖ - e o

intercâmbio de papéis seria apenas uma variante disto -, não posso responder

afirmativamente. Hare isolou um único aspecto da linguagem moral para si, a

saber, que os mesmos dados são julgados moralmente do mesmo modo, e, em

conseqüência, exige simplesmente que devo poder aceitar, em todas as

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circunstâncias irreais pensáveis, que se realize a norma considerada correta. Hare

não considera que normas morais sejam regras que se exigem mutuamente e que,

por conseguinte, têm de ser vistas como necessitando de uma justificação

recíproca, isto é, ele não considerou toda esta dimensão intersubjetiva que vale para

uma moral moderna tanto como para uma moral autoritária e também no interior

de uma moral moderna, para o particularista1. Na realidade o intercâmbio

imaginário de papéis não tem, na moral, a significação ubíqua, que Hare admite.

Mas, na medida em que, em geral, ele é empregado, é a conseqüência de uma

determinada compreensão do ―ser justificado‖ frente a todos. Não queremos,

contudo, supor correta esta determinada compreensão do ―ser justificado‖, mas

entender o que o particularista deve levar em conta em sua compreensão do ―ser

justificado‖ frente a todos, posto que não atenta nem contra a racionalidade, nem

tampouco contra a estrutura da linguagem moral.

I: O particularista também interromperia rapidamente seu diálogo com

Hare. E nós, o que faríamos?

T: Certamente é desagradável simular um diálogo com alguém ausente.

Mas tentemos. Estou disposto a representá-lo. Sugiro também que, a partir de

agora, falemos em alemão.

I: Está bem. Não imagino você como um nazista, mas talvez como um

sérvio ou croata ou como americano ou israelense na visão correspondente. Eu

e meu amigo aqui temos dificuldade em compreender como você o faz.

T: Como faço o quê‘?

I: Como você se sente em sua pele?

T: Eu acho que muito bem. What is your problem?(Qual é o problema?)

I: Certamente você ouviu nossa conversa. Será que eu interpretei

corretamente, que você também considera seu sistema normativo justificado?

T: Certamente, e não apenas eu. Nós somos uma comunidade. Hoje, na

modernidade, há ainda, entre nós, os que estão fora dos limites da comunidade, os

assim chamados liberais. Todo tipo de coisas possíveis deve ser permitido e

tolerado. Mas nós, os outros, temos um sentimento de pertinência. Queremos

permanecer entre nós. E isto quer dizer também dentro de nossos valores, isto é,

daqueles que consideramos reciprocamente justificados.

1 Ver a critica semelhante de Th. Nagel, ―The Foundations of Impartiality‖, in: D.

Seanor e N. Fotions (eds.), Hare and critics (Oxford 1988), 101-112: ―But a moral

judgment ought to have a connection with pratical reason not only for the person who

produces it but also for the persons to whom it is addressed. If it is supposed to be

correct, it ought to claim that others have a reason to obey it…‖ (p. 105). É digno de

nota que Hare, que ao final desta obra se ocupa meticulosamente de todas objeções

feitas pelos críticos, tenha deixado sem comentários estas considerações centrais, talvez

porque seu alcance lhe tenha escapado.

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Coleção Filosofia - 133 63

I: Nossa pergunta é justamente qual a base desta justificação. Trata-se

de uma autoridade, uma igreja, por exemplo, ou são os interesses recíprocos

subjacentes às normas?

T: Certamente não os interesses. Isto seria um materialismo e um

individualismo crassos. Assim se dissolveria a comunidade. Uma autoridade pode

ser importante, mas não tem de sê-lo necessariamente. Assim dizia, por exemplo,

Martin Heidegger: ―o próprio líder e somente ele é a realidade atual e futura e sua

lei‖ 2. Mas o fato de que dado o caso se trate de um líder reconhecido é algo que,

por sua parte, repousa sobre um acordo do povo. Por essa razão, Heidegger afirma,

em outra passagem: ―pois a verdade é a manifestação do que torna um povo

seguro, luminoso e forte, em seu agir e saber‖ (p. 14). Naturalmente, você não deve

tomar ao literalmente este discurso pomposo. O importante é, como você mesmo

disse, o acordo mútuo entre os homens decentes de um povo. Assim se constitui

um valor. É preciso, evidentemente, compreender que isto também tem um valor

histórico. Outro povo terá outros valores.

I: Gostaria de retornar minha pergunta sobre a base da justificação. Se

você nos ouviu ontem, saberá que somos de opinião que o que normalmente se

chama moral tem uma base sobre a qual as normas aparecem como justificadas. Na

tradição, uma tal base era constituída por uma autoridade sagrada. Na

modernidade, é possível contrapô-la ao interesse próprio do indivíduo reconhecido

em reciprocidade. Em seu caso, ao contrário, parece desnecessária tal base, em

função da qual são testadas as opiniões morais.

T: Em última instância, isto é correto. Digo em última instância,

porque há versões do particularismo em que a tradição tem uma importância

próxima a de uma autoridade religiosa. Há formas intermediárias entre uma

moral simplesmente particularista e uma outra moral religiosa superior.

Ele sussurrou em espanhol:

I: Isto é uma indicação importante, você não acha? Isto revela que a

nossa dificuldade em relação à moral particularista coincide. em boa parte. com

o que nos cria problemas numa moral tradicionalista.

Continuei em alemão.

T: Também existem formas intermediárias entre a moral particularista e o

que eu gostaria de chamar de moral liberal. Isto significa que a maior parte das

concepções da moral particularista movimenta-se, dentro da moral liberal, como

2 G. Schneeberger, Ergänzungen zur einer Heidegger-Bibliographie, Berlim 1960, p. 11.

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Coleção Filosofia - 133 64

uma reação a ela. Assim têm origem muitas formas mistas. Mas se eu o entendi

bem, não devemos nos ocupar desta questão empírica. Queremos, antes, examinar,

de modo isolado, na medida do possível, os componentes particularistas.

I-: Correto. Você acaba de admitir que, em uma moral particularista.

não é dada nenhuma base de justificação. Isto significa, então, que uma tal

moral deve ser entendida, em última instância, como uma convenção?

T: Em última instância, sim. Na verdade, alguns particularistas se

oporiam a uma tal formulação. Eles diriam que a base de justificação é a

identidade comum. Mas isto equivale a dizer: somos precisamente quem

somos, e termos os pontos de vista que temos. Acho que a pergunta pela base

de uma moral determinada não tem sentido. Isto já era dito por Protágoras. A

moral é algo fundamentalmente relativo, e isto se evidencia no particularismo.

O caráter sagrado do religioso apenas o dissimulou.

I: Concordo com você em que não haja nenhuma base no sentido de

um princípio superior. Mas isto não conduz necessariamente a um relativismo,

porque a referência a uma base pode (creio, até mesmo que o deva) ser

operacionalizada dessa maneira: uma visão moral somente está justificada se

podemos fundamentá-la frente aos outros - isto é, frente a todos os outros. O

fato de que a moral possa ser entendida assim, é que, talvez, o deva, é algo que

aparece no conceito de justiça. Como convencionalista e relativista, você deve

dizer: justo é o que. dentro de uma determinada comunidade, corresponde a

suas concepções, isto é, a seus padrões de justiça (como dissemos há pouco).

Mas não se pode perguntar, por sua vez, se os padrões de justiça são justos?

T: Talvez eu deva fazer com que o seu oponente responda assim (porque

queremos supor que ele seja um interlocutor sério): podemos, mas não devemos.

I: Isto é suficiente. Quando você diz que podemos, é admitida uma

dimensão objetiva de justiça. E quando se procura esclarecer, como fizemos hoje à

tarde, em que ela consiste, descobre- se que ela está expressa na Lese da simetria,

que, por sua vez, se fundamenta no fato de que as regras morais devem ser

justificadas porque estão justificadas igualmente frente a todos. Você tem duas

opções: ou bem rejeita a tese da simetria, ou bem a reordena de tal modo que o

―todos‖ se reduza à totalidade limitada das pessoas decentes de sua comunidade.

T: Certamente escolho a segunda opção, mas não a compreendo como

uma reordenação, e sim como uma interpretação legítima.

I: Eu acho que você se meteu em dificuldades. O sentido da tese da

simetria é o de excluir a arbitrariedade, enquanto que você o interpreta de tal

modo que possa se adequar a ela uma determinada posição arbitrária.

T: O que lhe dá o direito de falar do sentido da tese da simetria, isto é,

de uma intenção que estaria, por assim dizer, por trás dela?

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I: Quero logo voltar a isto. Mas vejamos a questão de outro ponto: o

seu. Deve haver, inversamente, uma razão pela qual o particularismo dirige

seus ataques a uma compreensão ilimitada de ―todos‖.

T: Certamente existe uma. Ela reside no instinto de conservação da

―comunidade de nós‖. A identidade desta comunidade se constitui nas normas

comuns (gemeisainen), e isto significa também: na disposição para rejeitar ou

combater o ―ser outro‖ do estrangeiro, ―para preservar o próprio modo de vida

existente‖, como disse Carl Schmitt (Der Begriff des Politischeii, 3. ed., Berum

1963, p. 27).

Neste momento, uma barata enorme caiu do teto e se agitou dentro do

meu copo de cerveja. Estremeci de nojo. O velho sorriu, pegou o copo, caminhou

até a porta do bar, lançou longe o líquido e deixou que o monstro se fosse.

I: Isto significa, contudo, que se trata de uma luta pela existência. A

justificação não é mais normativa. Você mesmo disse, há pouco, que os costumes

são, em última instância, convenções, que não são definidas por si mesmas -

porque não estão justificadas fora da aceitação recíproca - mas para a preservação

da comunidade. Assim compreendidas. as normas são funcionalizadas, isto é,

servem para a conservação do poder de um grupo. Isto quer dizer que o direito é

compreendido como direito dos mais fortes. Os nazistas o consideravam assim,

explicitamente, e, em todo particularismo, isto está implícito. O que, então, pode

caracterizar um sistema normativo face a um outro, que lhe é relativamente

semelhante, salvo o poder? Acho que Rousseau disse, com razão, que não tem

sentido falar de ―direito dos mais fortes‖, porque o direito (a justiça) é, por seu

sentido mesmo, um conceito oposto ao de poder. Se uma ―comunidade de nós‖ que

se compreende normativamente de tal ou tal maneira se impõe frente a outra,

porque tem os tanques mais fortes, ela não demonstra, com isso, ser mais justa.

T: Você tem razão. Concordo também que não tem sentido falar de

direito dos mais fortes. Comparando, entre si, comunidades normativas distintas,

somente podemos falar de sua força comparativa, isto é, de seu poder. Devo dar-

lhe razão nisso. É um mau uso do conceito designá-lo - como fizeram Nietzsche

e Hitler - como direito superior. Negamos, justamente, que os distintos sistemas

normativos possam ser comparados normativamente, e que o comparativo ―mais

justo‖ tenha sentido. Nós nos deparamos, de novo, com o termo ―arbitrário‖, ao

qual damos um sentido fraco, e você, forte. Para nós, quem viola as convenções

de justiça da comunidade age de modo arbitrário. Para você, age arbitrariamente

quem viola as normas que todos igualmente podem admitir. Não negamos que se

possa definir o termo ‗justo‖ neste segundo sentido, mas nós o consideramos

uma determinação aleatória.

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Ernest Tugendhat

Coleção Filosofia - 133 66

I: Discordo e retorno a sua pergunta sobre se tenho direito de entender a

tese da simetria, de modo tal que seu sentido seja a exclusão da arbitrariedade.

Nesta explicação, só me incomoda uma coisa: falar de exclusão da arbitrariedade é

algo ainda mais indeterminado que a própria tese da simetria. Não obstante, esta

pode servir para esclarecê-la, e em um ponto isto é decisivo, porque a tese da

simetria não diz nada com respeito ao alcance de ―todos‖. Não esqueçamos que a

tese da simetria, se não for compreendida de modo tradicionalista, mas, igualitário,

contém duas partes. A primeiro afirma a equiparação de direitos, por princípio. Isto

implica, no contexto da atual discussão: quando o direito, e não o poder (o poder

dos mais fortes, a arbitrariedade), é o elemento relevante, vale o seguinte:

distribuição igual, direitos iguais. A segunda parte da tese da simetria limita a

primeira na medida em que admite a desigualdade, mas apenas se todos a aprovam.

O fato de que todos possam aprová-la não é, no entanto, condição para que a

desigualdade não possa ser considerada arbitrária, desde outra perspectiva. Se você

me pergunta como nós chegamos, em geral, à tese da simetria, vemos que sua

primeira parte é sempre uma base indubitável para falar de justiça, e que toda a tese

se apresenta como conseqüência do fato de que as normas morais devem ser

justificadas frente a todos igualmente. Se quiséssemos limitar, como você deve

fazer, a referência a todos, eliminaríamos a segunda parte da tese, a que exclui a

limitação da igualdade sem aprovação, e, neste sentido, o faríamos arbitrariamente,

posto que esta limitação não pode ser justificada de modo normativo. Não resta

dúvida de que a tese da simetria, se você a aprova da maneira como o faz, perde

seu sentido, ainda que, por necessidade, se conserve verbalmente.

T: Você pode ter razão. Vejo, por trás de sua explicação, que se tratava

de uma inconseqüência de minha parte. Se nego seu conceito de justificação,

rejeitar a tese da simetria que repousa sobre ele é apenas uma conseqüência.

Ainda considero como uma determinação arbitrária uma justificação que

exceda a confirmação mútua daqueles que têm a mesma opinião dentro de uma

comunidade.

I: Podemos formulá-la assim, mas isto não equivale a dizer que é arbitrário

aceitar o princípio da não-arbitrariedade, isto é. a moral entendida desse modo,

como justificável frente a qualquer um. Encontramo-nos, finalmente, na rocha em

que, como disse Wittgenstein, nossa pá entorta. Aceitar uma moral, neste sentido,

é, em última instância, uma opção, e você pode continuar aferrado a uma moral em

outro sentido: ―moral‖ representa simplesmente um sistema de normas sem

justificação, que se mantém mediante a indignação mutuamente confirmada dentro

da ―comunidade de nós‖. Está claro que não posso refutá-lo; seria insensato fazê-

lo, mas posso assinalar o inconveniente que você deve considerar. É melhor fazê-

lo, segundo penso, com ajuda da primeira parte da tese da simetria. Esta primeira

parte contém in nuce, por assim dizer, o que significa uma posição moral em nosso

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Coleção Filosofia - 133 67

sentido. A situação mais elementar é a de duas pessoas relacionadas entre si, uma

mais forte que a outra: pai e filho, marido e mulher, ou ainda duas pessoas

quaisquer, uma mais forte que a outra ou não. Nós nos deparamos, então, com a

questão: poder ou direito, arbitrariedade ou justiça, quer se trate de um bem

material ou da maneira como um se conduz frente ao outro, ou ainda, de quem

decide. Quando, neste ponto, nos atemos à tese da simetria, constatamos que, se

não se pode alegar razões especiais que convençam a ambos do contrário, rege a

igualdade. Isto pressupõe, naturalmente, que a relação pode ser justificada de

maneira recíproca. Se isso não acontece, o poder decide. Nossas duas pessoas

enfrentam, por conseguinte, a questão: querem ou não, mutuamente, que, em geral,

sua relação possa se justificar de modo recíproco? Por exemplo, o mais fraco quer

tomar algo e o mais forte o impede. O primeiro pode, então, fazer a pergunta que

Primo Levi formulou durante seu primeiro encontro com um guarda de Auschwitz:

―por quê?‖. E o segundo pode responder como o guarda: ―aqui não há porquê‖.

Isto é, o mais forte nega a dimensão do direito ao mais fraco ou ainda a outro forte.

Isto é o que se deve levar em conta. Trata-se da única instância que decide. em

último termo, se queremos ou não adotar uma posição moral em sentido estrito.

T: Talvez seja assim. Mas pense, por favor, que não somos pessoas

solitárias. Afirmamos o aspecto social e nos limitamos a ele. Somente neste

ponto, rejeitamos a questão do porquê.

O velho perdeu a compostura e começou a agitar o punho.

I: Exatamente como o guarda de Auschwitz. Você não é, certamente, uma

pessoa solitária, mas algo muito pior. Como indivíduos vocês são uns covardes,

Mas unidos, inflamando-se mutuamente, se convertem no que, ontem, chamava o

―mal‖. O que, erroneamente, se julgava como algo próprio do indivíduo.

T: Isso soa agora demasiado demagógico. Resta ainda a questão de por

que devo aceitar sua posição.

I: Parece-me que existem boas razões de tipo pragmático. Há muitas

minorias que se expandem de dentro para fora, tal como as fronteiras, em nosso

vertiginoso mundo em mudança. Qualquer um pode, com a mesma facilidade,

pertencer tanto aos excluídos como à maioria. Esta é, precisamente, a razão para

ser do interesse de todos aceitar uma moral que não apenas prescreva um conjunto

de regras materiais para o comportamento mútuo, mas que também proíba impor

restrições, tanto de dentro, como de fora, aos que pensam ou vivem de outra

maneira. Pense, por último, sobre o que é que o obriga a opor-se a uma tal moral:

uma ―consciência de nós‖, como você disse. Mas por que ela é considerada tão

significativa? Trata-se realmente de algo dado de antemão, uma ―realidade

existente‖, para nos reportar à citação de Carl Schmitt? Ou, por acaso, ela não é

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Coleção Filosofia - 133 68

uma substancialização. extremada pelo nacionalismo, de um sentimento de grupo.

que corresponde, de fato, a uma necessidade psicológica real, mas não nesta

absolutização, da qual o traçado de limites nítidos que você propõe é um elemento

constitutivo. Neste ponto não posso fazer outra coisa a não ser convidar a uma

reflexão psicológica e sócio-psicológica sobre os motivos que tornam possível esta

exacerbação. Tais motivos pretendem ser a razão para opor o próprio grupo aos

outros, de um modo tal que os membros do grupo legitimem a perseguição aos

demais e alguns possam expor-se a um comportamento semelhante por parte dos

outros, quando estes não se encontram na segura consciência do poder. Isto

significa que a arbitrariedade não se instaura apenas no momento em que os

membros de um grupo crêem que podem tratar aos estranhos e aos próprios

membros que pareçam estranhos do modo que querem. mas no modo da invenção

do grupo mesmo enquanto um ―dado prévio essencial‖.

T: Não sei muito bem o que devo responder, e parece-me que

podemos terminar a conversa com isto. Em todo caso, vou abandonar a

máscara de representante.

I: Bem. Resumamos, então. Primeiro, não teria sentido querer refutar, de

algum modo, uma moral particularista. Não se pode provar que é impossível a

existência de algo ubíquo. Segundo, o que se pode mostrar é que a moral

particularista, ou bem abandona completamente a exigência de justificação forte,

ou bem estipula de modo arbitrário até onde ela vai. Isto significa que o sentido da

moral se reduz à tríade strawsoniana, mas sem a exigência de justificação. Isto

implica que se passa do modo normativo ao fático, das questões de direito às de

poder. Em terceiro lugar, posto que se pode, enquanto observador, entender a

motivação para uma ―moral‖ semelhante, é possível, enquanto interlocutor de um

particularista, primeiro, fazê-lo pensar se não teria boas razões para adotar o ponto

de vista universalista e, segundo, perguntar-lhe se suas razões para aderir a uma

moral particularista são assim tão evidentes. –

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CAPÍTULO V

A luz se apagou. Tratava-se, aparentemente, de um curto- circuito, e

percebemos que as baratas invadiam o local. Deixamos o bar e fomos dar uma

volta na rua que conduzia à fronteira brasileira, afastando-nos do vilarejo.

Ficamos algum tempo em silêncio.

T: O que me preocupa é a sua observação sobre isto que você chamou de

mal. O que ele representa? Deve-se dizer: uma inclinação a perseguir em grupo

os estranhos? Perseguir parece ser algo especificamente moral. Uma pessoa

egoísta pode violentar, explorar, torturar outras, mas não persegui-las. Isto não é

válido conceitualmente. Somente se pode perseguir em comum, isto é, perseguir

é possível apenas com relação a normas. Há, naturalmente, um sentido mais

pueril do termo, no qual um homem pode perseguir alguém como pode perseguir

um animal, não importando com que intenções. Naturalmente, não me refiro a

isto agora. Não disse ―perseguir‖ simplesmente no sentido de seguir alguém, mas

no sentido de exercer sobre ele alguma coerção. Você, na verdade, refere-se

apenas ao particularista. De acordo com o que você disse antes sobre a

indignação como tendência à exclusão, isso não se remete ao fato de que um

perseguir e um ―sentir-se perseguido‖ pertencem, enquanto tais, à tríade

strawsoniana. Aqueles que são perseguidos por quem reage com indignação são

considerados ―outro‖ por serem estranhos, ou, antes, por serem imorais? Há

ainda o caso em que alguém se enfurece contra si mesmo com um sentimento de

culpa. Tudo isto não é, por assim dizer, inumano? Não devemos também avançar

um passo? Você assinalou que, no particularismo, um elemento da moral se

sustenta sem o outro, isto é, a tríade de Strawson sem o ―ser justificado‖. Não é

plausível que a moral universalista se apresente. inversamente, como ―ser

justificado‖ sem a tríade strawsoniana, sem sanção?

Ele riu.

I : Alguns, sem dúvida, pensam assim. Também neste ponto se tem

encontrado resistência na literatura secundária, como se a sanção fosse uma

preferência pessoal sua e não uma necessidade conceitual. O que, então, é

justificado, senão exigências recíprocas? E como você pode pensar tais

exigências sem sanção?

T: Um amigo me disse, há pouco, que se pode compreender o conceito

de dever (Soilens) sem recorrer a uma sanção; quem age moralmente assim age

por evidência.

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I: É preciso perguntar, no entanto, de que evidência se trata. Vimos,

anteriormente, que se trata da evidência de que determinadas exigências estão

justificadas igual mente para todos. Não nego que também se possa falar de um

―ser justificado‖ moral independentemente de exigências - isto é, justamente,

independentemente de um dever. Aquilo que se justificaria assim seria o que é

desejável para todos igualmente, e, neste sentido. que é bom que todos ajam deste

modo. Em conexão com o imperativo categórico kantiano, pode-se dizer que ele é

justificado frente a todos que, em geral, sigam tal e tal regra do agir, porque

somente assim se alcança um resultado desejável para todos. É por isso que a

exigimos uns dos outros de modo recíproco. Quando se procede assim, é

desnecessário recorrer a uma palavra como ―bom‖ - observe, no entanto, que com

isso não é reintroduzida aquela modificação de ―bom‖, que, hoje cedo, assinalei

como dispensável (―um homem bom‖). Aqui ―bom‖ se coloca para um fim que é

desejável para todos; este conceito remete a um componente consequencialista. -

Mais uma vez: ou bem ―é evidente‖ que obedecer à regra ―H‖ do agir conduz a um

resultado do interesse de todos (em geral, desejável, ―bom‖, neste sentido); isto

talvez tenha sido o que seu amigo disse. Ou então ―é evidente‖, que é justificável,

face a cada um, que exijamos, uns dos outros, agir segundo a regra ―H‖. No

primeiro caso, o caráter de dever ou de exigência seria acrescido posteriormente.

No segundo, consideramos justificado o próprio exigir. Ainda temos tempo e

devemos esclarecer se realmente existe uma regra, cuja observação é um meio para

alcançar um resultado que, em geral, é desejável, como, por exemplo, pagar

impostos. A sua inobservância, contudo, não causa indignação. Neste sentido,

concordaria com você - ou com seu amigo -, que se pode dar à palavra ―moral‖ um

sentido independente de dever. A palavra ―dever‖ (Soilen) é, por sua vez, ambígua.

Podemos compreender o seu sentido dessa maneira: assim é desejável para todos.

Mas eu também parti da idéia, bem como você, nas Lições, de que, na moral,

compreendemos o dever (Sollen) como ―ter que‖ (Müssen), como uma necessidade

prática, que certamente não é pensável sem a sanção. Podemos também considerar

―a moral‖ num sentido enfraquecido - não podemos de modo algum sucumbir a

um dogmatismo verbal -, mas este conceito estaria fora da comparação com a

moral tradicionalista ou particularista, das quais a tríade strawsoniana é sempre um

elemento constitutivo.

T: Tenho a impressão de que aqui você subestima algo. É alarmante

sua indicação de que existe uma norma moral tal como a proibição à sonegação

de impostos (talvez se possa falar, em geral, de corrupção) que inclui um

princípio construído sobre um conceito de bem - do desejável, em geral -, mas

que não corresponde ao nosso conceito anterior de bem e que. contudo, deve

esclarecer a proibição da ação, que não se pode compreender a partir da tríade

justificada de Strawson. A isso teremos que retornar mais tarde. - E o que

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Diálogo em Letícia

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acontece, quando se fala da pureza do coração, ou, como Tolstoi, da bondade

do coração‘? Aqui igualmente não se aplica a tríade strawsoniana,

I: Admiro sua capacidade de saltar de um pensamento a outro, que nada

tem a ver com o anterior. Agir, por bondade do coração, com certeza, não tem

relação com agir por evidência, como quer que se compreenda este último. Com

estas palavras é mencionada uma atitude. que consiste em se comportar

moralmente de maneira perfeita, mas não por uma motivação moral, antes, por

amor aos homens ou, como se pensa desde Francisco de Assis, por amor a todas as

criaturas. Este ocupa, por assim dizer, o lugar do egoísmo, individual ou coletivo.

Podemos deixar em aberto se existe algo semelhante. A questão é se esta não é

uma construção conceitual da moral. A dificuldade de se representar isto de uma

maneira psicologicamente realista está em que quem é motivado dessa maneira se

encontra, concretamente, dentro do limite da moral, e o expande ao máximo, mas

não age pela moral, ou porque é moralmente obrigado a fazê-lo. Antes, - esta é a

idéia - ele age de maneira espontânea. Uma tal pessoa não pensa moralmente; aqui

também é suprimida, de fato, a tríade strawsoniana, bem como o ―ser orientado‖

(Orientiertsein) pelo ―ser justificado‖, com o qual se anula, na verdade, a justiça.

Se acaso existem, tais santos pertencem a um outro mundo, não falam a língua

moral, e não podemos entender o fenômeno moral a partir deles, ainda que

representem em sua conduta um ideal da moral (certamente desprovido de justiça).

Retornando à sua pergunta inicial, creio que a moral, em sentido próprio, é um

antídoto. Ela não é simplesmente um outro modo de conduta, como a dos santos ou

dos anjos no céu. Antes, ela se situa - enquanto exigência - contra a arbitrariedade

do comportamento egoísta, isto é, uma conduta humana que depende, por sua

parte, da força motriz dos seus impulsos, que devem ser dominados. Na minha

opinião, Freud viu isto corretamente. Como se pode pensar que um homem

renuncie a uma parte de suas forças pulsionais sem compensá-las em um novo

nível, por sua vez, de maneira impulsiva? Mas também quando isto não está

correto, é sempre válido: quem não se indigna, não pensa moralmente. Na

indignação está manifestamente contido um momento de ódio, e na medida em que

este ódio converge e se vincula com o dos outros, ao mesmo tempo, que reclama

para si o direito - a arrogância moral -, dá origem àquela disposição para a

perseguição de que você falava antes. - Como desintoxicar-se agora desta

tendência, que devemos reconhecer como real? Certamente não por uma definição

insólita da moral, mas tampouco pela idéia da santidade. Como, então, esta

tendência se adequaria à moral, em sentido comum? Acho que a mesma

intersubjetividade fortalece, por um lado, o ódio na comunidade e, por outro lado,

opõe-se à arrogância. Ou melhor: não a mesma intersubjetividade, posto que ela

aparece na moral em uma dupla função. De um lado, as reivindicações são, por seu

sentido mesmo, comuns, compartilhadas - isto é o que conduz para uma tendência

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Coleção Filosofia - 133 72

à exclusão -, de outro, estas reivindicações se colocam para todos e, por isso,

necessitam de justificação frente a todos (frente a cada indivíduo). Pode-se

esclarecer isso dessa maneira: o primeiro aspecto se coloca para todos, em

conjunto; o segundo, para cada um, individualmente: todos e cada um pertencem

ao conjunto naturalmente de modo lógico, mas não psicológico. O segundo aspecto

- a necessidade de justificação frente a cada indivíduo -, contrapõe-se ao primeiro

(a reivindicação coletiva) e o restringe. Pode-se dizer também que, na

reivindicação coletiva, já está contida uma pretensão do ―ser justificado‖, mas que

esta reivindicação passa facilmente ao largo da pretensão de ser justificado desde a

perspectiva de cada um, e, por isso, deve ser detida por este último se não quer ser

exposta à objeção de arbitrariedade. Pode-se pensar em dois passos. O primeiro foi

dado há pouco, com o particularista: as reivindicações coletivas devem ser

limitadas materialmente de tal modo que possam ser justificadas frente a todos, isto

é, frente a cada um. Com isso, é suprimido todo conteúdo moral que contradiz uma

moral universalista, igualitária e liberal. Elas não apenas se excluem, mas a moral

particularista - a moral das massas - se converte, por sua vez, em objeto primário

da indignação moral. Mas, como você observou, não podemos nem queremos

perder a indignação e a tendência nela implícita de exclusão, porque deixaria de ter

sentido, para nós, dizer que consideramos um determinado modo de conduta

imoral (inumano, como você disse antes).

T: Ou perderia seu sentido emocional?

I: Você pode dizer isso, mas não sei o que significa a palavra ―imoral‖,

quando você subtrai o componente emocional. Vejamos agora o segundo passo.

Aquela tensão entre estes dois movimentos contrapostos se repete no nível da

própria moral universalista. Também quem julga moralmente de modo

universalista se indigna; também ele se inclina para a arrogância. Este já era

justamente o seu problema. Este se torna inofensivo quando aquele que julga

moralmente se torna consciente de que seu juízo é emitido desde uma perspectiva.

Por exemplo, dois agrupamentos ou duas pessoas travam uma discussão moral.

Ambos se acham no nível universalista. Um está indignado com o outro, ou,

formulado de um modo mais fraco, um reprova o outro. Nós nos inclinamos,

primeiro, a absolutizar a nossa própria perspectiva e apenas podemos relativizá-la

graças à perspectiva do outro (suas objeções, sua indignação). A tolerância não é

algo que cai do céu ou de que dispomos em algum canto oculto, mas ela se

constitui unicamente numa disputa em que um e outro se indignam.

A esta altura, não estávamos muito distantes da fronteira e

detivemos o passo.

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I: Deve ter sido uma noite como esta que levou Kant a pronunciar sua

célebre frase: ―Duas coisas preenchem o ânimo com admiração e respeito

sempre novos e crescentes, tanto mais freqüente e contínua é a reflexão sobre

elas: o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim‖ (Werke IV, 161). O céu

estrelado se manteve firme: frente à intemporalidade da natureza - que vivencia

a irrupção de cada dia como se fosse o primeiro -, e a incomensurabilidade do

universo, fazendo com que deixemos de nos centrar em nossas preocupações

diárias e de nossa geração, familiarizando-nos com a morte. Mas há ainda ―em

nosso interior‖ algo que nos encha de ―admiração‖?

T: Apenas a moral. A capacidade para viver em uma comunidade

normativa é algo impressionante, mas também angustiante. Do mesmo modo

como se presta para limitar nossa crueldade, pode, contudo, multiplicá-la. ―Nós

sabemos, contudo‖, disse Brecht, em seu poema Aos Póstu, nos, ―que também

o ódio contra a vilania desfigura o rosto!‖.

I: Em todo o caso, Brecht parecia sustentar esta descrição rigorosa da

atitude moral, apenas porque a envolvia numa expectativa messiânica: ―Vocês, no

entanto‖, disse ele, no fim do poema, ―quando chegar o momento em que o

homem seja o auxílio do homem...― ―Quando chegar o momento‖: isto significa

que retornaremos ao paraíso - repleto de anjos, como você disse - da bondade do

coração. Perspectiva grotesca, você não acha? Na verdade, a nostalgia do paraíso é,

sem dúvida, algo compreensível. Vocês, judeus, nos meteram, com ela, em uma

boa enrascada. - E, contudo, a capacidade para viver em uma comunidade

normativa na qual se ingressa, espontaneamente, por assim dizer, implica algo que

acho espantoso: a idéia da simetria, da igualdade, não apenas nas esferas celestes,

mas aqui sobre a terra entre nós, os homens. O que sempre achei admirável é que a

perspectiva da simetria proceda necessariamente da comunidade normativa, e que

esta seja a única dimensão intersubjetiva em que isto acontece, As relações

sentimentais de amor e amizade não são, em si mesmas, simétricas - não se pode

confundir reciprocidade e simetria -, e, no entanto - e isto talvez seja o mais

importante -, a simetria é necessária. Em seu sentido, o amor pode ser mais forte ou

mais fraco. Quando duas pessoas se amam, o sentimento de uma é mais forte que o

da outra, e isto é, para ambas, intolerável. Que o amor seja - não digo perfeito -

tolerável, em geral, apenas quando simétrico, é evidentemente um ideal moral. Na

determinação da relação entre amor e moral se cometem dois erros: alguns

concebem a moral como uma extensão do amor. Idéia absurda quando se considera

que a moral é uma relação normativa, isto é, uma forma de reconhecimento que é

necessário diferenciar claramente do amor. Outros consideram a moral apenas em

contextos sociais que excluem o amor. A verdade, ao contrário, é que o amor

necessita da moral para não ser uma relação de poder. Posso ilustrar isto com uma

história inocente. Recentemente, perguntei a um grupo de estudantes de doze anos

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Ernest Tugendhat

Coleção Filosofia - 133 74

se eles e seus irmãos se sentiam igualmente amados por seus pais. A reação foi

afirmativa, de modo unânime. Podia-se imediatamente perceber o temor que

produzia o pensamento contrário. Afirmam também, decididamente, que os pais

são perfeitamente justos em seu amor. Naturalmente, sabemos que isto não apenas

é impossível objetivamente, mas que tampouco é assim vivido subjetivamente

pelas crianças. Pode-se considerar a situação dos irmãos como um berço da moral.

Pela moral e, naturalmente, pelo interesse próprio, que conduz à moral, as crianças

exigem justiça, mesmo ali onde não se pode tê-la (na relação sentimental), e a

desejam tão ardentemente, que o desejo toma o lugar da realidade que o contradiz.

Naturalmente, os pais que refletem se esforçam por amar simetricamente, mas, sem

dúvida, eles não podem fazê-lo.

T: Por que não?

I: Porque, então, o sentimento perderia a espontaneidade, que é

inerente à sua essência. Aqui se mostra claramente que a idéia da simetria tem

uma outra proveniência. Também os cônjuges desejam que seu amor seja

equilibrado de modo recíproco, e, como no caso dos filhos, este desejo pode ser

realizado por razões de mera probabilidade - como no caso em que duas

pessoas têm, por acaso, a mesma altura -, mas com isso não podemos fazer

muito. Nossa emotividade é influenciada de modo limitado pelas exigências

morais. Acabei me desviando do tema, desculpe. Só quero dizer que a idéia da

simetria, que nós alcançamos, na interpessoalidade, por meio da moral apenas,

parece ser tão essencial para a idéia de uma convivência amistosa, que não

gostaríamos de pensar nem mesmo em nossas relações íntimas sem ela.

Contudo, esta não é algo que dependa apenas de nós.

Ele disse isso em voz baixa, e agora parecia cansado (não pude deixar

de me lembrar de seus dezesseis cães de outrora). Mas quando decidimos

voltar, parecia ter recobrado suas forças.

Depois de algum tempo, eu lhe falei.

T: A questão que deixamos em aberto, no bar, é, primeiro, o conceito

de costume (Sitten) e, segundo, como a justificação tradicionalista se distingue

da particularista, pois ambas aproximaram-se bastante.

I: Você está certo, com respeito ao costume. Ainda falta alguma coisa para

resolver, em especial, a maneira como se deve entendê-lo, em uma moral

universalista. Há pouco abordei o problema da moral particularista, a idéia da

moralidade, segundo a qual a regra moral é compreendida a partir dos costumes. É

plausível que, de acordo com o modo como se concebem as regras morais, também

os costumes sejam entendidos de modo diverso. Não é necessário pressupor um

conceito unitário; a expressão ―costumes‖, isto é, ―convenções‖, já indica uma

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Diálogo em Letícia

Coleção Filosofia - 133 75

ambigüidade. Pode-se remeter aqui ao conceito de Wittgenstein de ―semelhança

familiar‖. Mas, por isto, não se deveria deixar de tentar estabelecer as distinções

conceituais necessárias. Em uma situação como esta, em que esta expressão é, em

parte, encoberta pela expressão da regra moral, constitui-se uma obrigação fazer as

ditas distinções. Pode-se definir as convenções ou os costumes, como você fez em

seu livro, dizendo que se trata de regras que de fato temos, mas que não estão

justificadas de nenhuma outra maneira.

T: Nas Lições (p. 47, do original alemão), formulei o seguinte

exemplo: ―como reagiriam aqui se eu entrasse nu?‖. À pergunta sobre por que

se produziu a indignação, se responderia simplesmente: ―porque este não é o

costume entre nós‖, e não ―porque isto é ruim‖.

I: Se as palavras ―bom/ruim‖, como procurei demonstrar, são plausíveis

para a compreensão da moral, mas não imprescindíveis, pode-se dizer, para

delimitar a noção, em lugar de ―não, porque é ruim‖, simplesmente ―não, por

qualquer outra razão, seja porque uma autoridade superior o tenha proibido, seja

porque pode prejudicar alguém‖. A plurivocidade, de que falava há pouco, se

depreende de nossa consideração da moral particularista, que tende a entender toda

regra moral do mesmo modo que os costumes assim definidos. É plausível que o

que chamamos costume se confunda com as regras morais, porque ambos são

considerados como justificados de uma mesma maneira, a saber, por recurso à

autoridade que formula a norma. A distinção, como você a formulou, dá- se

unicamente na moral universalista. E já conseqüência de um esclarecimento.

T: De um esclarecimento do conceito de justificação. Fica ainda em

aberto a pergunta sobre como podemos compreender o fato de que nos

indignemos contra a violação das regras morais, quando estas são consideradas

convencionais, isto é, quando se diferenciam nitidamente da moralidade.

I: Fica claro que os costumes deixariam de existir se sua violação não

desencadeasse uma reação de indignação. Como se pode distinguir esta

indignação da indignação moral, e como é possível, apesar disso, a univocidade

do conceito? Retorno aqui a distinção que você faz com respeito ao

cumprimento (Lições sobre Ética, p. 257, no original): de um lado, a ação

simbólica, de outro, o que ela representa. Esta distinção desaparece nas ações

imorais; nelas o que indigna é o próprio conteúdo. A diferença extingue-se no

interior da moral tradicionalista ou particularista. Aqui a indignação com

respeito aos costumes alcança a própria ação, porque ela pertence ao código da

mesma maneira que as ações prescritas pelas normas restantes. A moral

universalista neutraliza o valor moral próprio dos modos de conduta que não

ofendem a ninguém - exceto ao sentimento de decoro -, na medida em que

permite pôr em relevo seu caráter simbólico.

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Coleção Filosofia - 133 76

T: Até aqui, muito bem. A ação exigida convencionalmente não é

respeitada enquanto tal, quando ela é considerada convencional, mas

unicamente devido ao fato de que sua violação expressa uma falta de respeito,

seja com referência à sociedade, em geral, seja com relação a esta ou aquela

comunidade determinada. Mas devemos dizer, agora, que não respeitar a

sociedade é algo imoral, em sentido universalista?

I: Por que não? Se me hospedo em algum lugar e, conscientemente,

infrinjo os costumes locais, nisto se expressa uma desvalorização desta

comunidade. Existe um direito humano que exige respeitar cada comunidade

em sua identidade normativa, na medida em que ela não cause danos a ninguém

com suas normas: é um direito igual de ser respeitado em sua desigualdade.

T: E o que acontece quando os costumes, como ocorre de maneira

crescente, hoje em dia, não pertencem a um determinado grupo, mas são

universais?

I: Você está utilizando a palavra ―universal‖ em um outro sentido.

Quando falamos de uma moral universalista, não queremos dizer que ela esteja

universalmente estendida, mas que suas normas são normas frente a qualquer

um. Pode-se dizer também implicitamente que se espera o reconhecimento

normativo de todas estas normas. Mas quando existem normas, que por seu

sentido são particularistas, sua ampliação universal seria meramente um acaso

empírico que poderia ser modificado a qualquer momento.

Durante algum tempo, caminhamos em silêncio.

T: Algumas vezes, perguntam-me se ainda sou um filósofo analítico.

Nessas ocasiões, respondo que ainda não estou muito certo em que exatamente

consiste meu método na filosofia moral. Quando penso sobre o que dissemos

em nossa conversa, dou-me conta de que se trata. exclusivamente, de

esclarecimentos conceituais, isto é, de filosofia analítica. Trata-se, certamente,

de esclarecimentos terminológicos que perseguem a finalidade de facilitar,

mediante a compreensão de suas implicações, decisões morais fundamentais

tais como as que se apresentam entre o particularismo e o universalismo.

I: Correto. As posturas morais repousam sempre em distinções, que, na

verdade, podem ser efetuadas em virtude de uma consciência mais ou menos clara

sobre o que se deve decidir, e não de uma maneira simplesmente arbitrária. A

clareza é a única coisa que pode ser designada aqui como base racional. Em todo

caso, é claro, a decisão a favor de uma comunidade moral, definida de tal ou tal

modo, não é mais racional que a decisão contrária a ela. Trata-se de decisões e não

de um dado prévio, quer seja um a priori antropológico (ou ―transcendental‖) quer

algo dado empiricamente. Causa estranheza a psicologia da moral que acredita,

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Coleção Filosofia - 133 77

seguindo Kohlberg, poder contribuir na determinação da moral ―correta‖ colhendo

dados acerca das intuições morais. O próprio Kohlberg não o afirma diretamente;

seu problema era o desenvolvimento da intuição moral em crianças e jovens. Mas

nele, como em Piaget, encontramos a idéia de que o desenvolvimento pode

enunciar algo sobre a intuição ―correta‖. Quando se esclarece em que se funda a

intuição moral, isto não apenas é uma genetic fallacy (falácia genética), mas um

pensamento fantasioso. A suposição de que, na história humana, tal

desenvolvimento ocorreu seguindo as mesmas etapas, sugere, finalmente, a

concepção de que nossa espécie tem um aparato moral a sua disposição. Se

admitimos que efetivamente um tal aparato existe, como é possível que dele se siga

alguma coisa sobre sua ―correção‖? Ou, acaso, ―correção‖ quer apenas dizer que

está efetivamente disponível? Em nossa reflexão analítica sobre a moral, a

experiência desempenha o mesmo papel que tem, em geral, na filosofia da

linguagem. Os filósofos partem sempre de uma determinada suposição empírica,

por exemplo, que se pode distinguir tais ou tais tipos distintos de normas sociais,

ou tais e tais estruturas linguísticas. Nelas está contida sempre uma certa

ingenuidade empírica. Um etnólogo pode comprovar que existem outros tipos, ou

que, em alguma parte, existe algo como uma moral que não entra em nenhuma de

nossas diferenciações disponíveis, do mesmo modo como poderia mostrar que

existem outras estruturas linguísticas, além daquelas que constatamos

ingenuamente em nosso grupo linguístico. Podemo-nos sentar tranquilamente a

esperar por tais comprovações e teremos, então, que incorporá-las. Já a situação

hermenêutica é, antes, aquela em que nos encontramos. É certo que isto gera. como

conseqüência, um monstro conceitual: algo sumamente indiferenciado como nossa

expressão ―a‖ moral tradicionalista. Quanto mais distantes da nossa própria

concepção sejam as outras, tanto mais indeterminada será a nossa idéia sobre elas,

mas também será, na maioria dos casos, menos relevante. Trata-se de uma

debilidade inevitável da reflexão filosófica e, além do mais, passível de correção

quando a reconhecemos. Esclarecimentos conceituais podem sempre ser

empreendidos sob condições empíricas já dadas. Ninguém pode fazer tudo e, na

medida em que admitimos que nosso saber empírico é limitado, temos o direito de

nos concentrar no esclarecimento do que se encontra dentro dos limites de nosso

saber, ao invés de ampliar o nosso conhecimento. Mas agora me recordo que não

nos ocupamos da segunda questão que foi colocada, isto é, a que se refere à relação

da moral particularista e da universalista.

T: O problema consiste em estabelecer a distinção entre uma moral

moderna particularista e uma tradicionalista. Como foi mostrado, ambas se

correspondem por seu conteúdo. Elas se distinguem, contudo, porque a moral

particularista nega uma justificação que exceda a opinião normativa, enquanto

que a tradicionalista oferece uma justificação semelhante, embora estabelecida

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pela autoridade na qual se crê. Se uma moral religiosa é injusta - no sentido de

nosso conceito mais forte de justiça -, isto é, se não é justificável com

referência aos interesses de todos os indivíduos igualmente, seu conteúdo pode

corresponder ao de uma moral particularista, mas, neste caso, ela se assegura

contra toda crítica, até onde vai a fé, mediante a justificação autoritária

sustentada pela própria fé. A moral particularista, ao contrário, sem uma

projeção transcendental semelhante, está exposta à objeção de arbitrariedade.

I: Sim. A moral particularista está, por esta razão, sempre aberta a uma

dinâmica peculiar. Porque não pode invocar algo superior, ela deve recorrer à

violência (ou a uma violência mais manifesta). e isto conduz a que sua injustiça

se torne ainda mais notória e que perca sua força de adesão. As morais

particularistas são efêmeras.

T: O que me preocupa é por que, então, achamos mais fácil nos

indignarmos contra uma moral particularista, enquanto que, ao contrário,

experimentamos um temor peculiar frente a uma moral fundamentalista, ainda

que esta seja igualmente injusta e mais dura. Se você tivesse conversado no

bar, não com um particularista moderno, mas com um crente, o diálogo seria

mais difícil. O particularista recusa a pergunta sobre como são justificados os

pontos de vista normativos de sua coletividade. O crente, ao contrário, a

responderia de maneira afirmativa, e só o que lhe poderíamos replicar é que

ele, de sua parte, não poderia convencer a outros; algo que, por exemplo, o

particularista não quer fazer. Não se poderia induzir um tal interlocutor a

admitir que sua posição é, em última instância, arbitrária. Ele continuamente se

remeteria a uma instância superior e. de lá, recusaria o recurso aos interesses,

tanto em sentido universalista como particularista. Assim se produz uma

relação triangular peculiar entre a justificação religiosa, a universalista e o

particularismo. Tanto o universalista quanto o particularista têm um discurso

comum, na medida em que nenhum deles reconhece uma instância superior. Ao

contrário, o particularista e o tradicionalista podem concordar materialmente.

Tanto o tradicionalista quanto o universalista falam de justificação e justiça em

um sentido forte, mas o compreendem de modo distinto.

I: Certamente. E aí se encontra a razão por que o diálogo com um

tradicionalista convicto acaba muito rapidamente, e aqui está também o motivo por

que, como você acaba de dizer, nos sentimos inibidos em nos indignarmos frente a

uma moral tradicionalista, ainda que seu conteúdo cause tanta indignação quanto o

do particularista. Nós nos sentimos como intrusos em um outro mundo. A

discussão entre um universalista e um tradicionalista desemboca, com facilidade,

na situação em que o segundo reprova o primeiro pela transgressão de seus

próprios princípios liberais, mas, assim que o faz, ele adota, a contragosto, uma de

nossas premissas. Para o universalista isto é problemático apenas na prática (pois,

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onde está escrito que devemos poder convencer a quem se encapsula em sua

argumentação?) - um problema de peso, na verdade: como tratamos os homens que

têm crenças morais distintas? Um problema que não se apresenta ao particularista,

porque ele não considera seu próprio ponto de vista como fundado

normativamente. Erraríamos ao superestimar este limite com o qual o

universalismo é enfrentado na discussão. Seria particularmente errôneo caracterizar

o universalismo, como ocorre freqüentemente, como um provincialismo mais

amplo. Tem esta impressão quem considera o universalismo como um fenômeno

cultural especificamente ―ocidental‖, que se vincula imediatamente ao

cristianismo, isto é, a outra fé tradicionalista. Porque a moral moderna se

desenvolveu, primeiro, no âmbito cristão, não se segue que tenha determinadas

premissas Cristãs, ao contrário, indica que o cristianismo possui um núcleo

universalista relativamente forte. Além do que, o universalismo liberal procede

menos do cristianismo que das guerras religiosas que se desenrolaram por trás da

divisão do cristianismo. Mas isto remete, por sua vez, a uma vantagem que o

universalismo liberal apresenta frente a todos os outros tradicionalismos, do

mesmo modo como o fazia antes na Europa. Com isso retornamos à questão sobre

o caráter provinciano do universalismo. Do simples fato de que a discussão se

encontra em um beco sem saída, não se segue que o universalismo não possua algo

característico. Sua peculiaridade consiste em que, enquanto o particularismo assim

como o tradicionalismo estão encapsulados dentro de si mesmos, o universalismo

busca e tem que buscar o diálogo com as outras interpretações. e o liberalismo tem

algo a oferecer que todos os homens possam aceitar sem ter que renunciar a sua fé.

sob a condição de que estejam dispostos a não construir a moral sobre ela. A

concepção universalista é aquela que todos os homens podem admitir como justa,

se não colocam, na sua aceitação, nenhuma condição particular de fé. Designar isto

como um provincialismo ampliado se assemelha a caracterizar, tal como você

retrucou ao particularista, a recusa da arbitrariedade como mais uma opção

arbitrária. Chegar a um acordo em torno da justiça, em sentido intersubjetivo, isto

é, em torno da justiça que nem recorre a uma autoridade nem se reduz a padrões

supostamente não-fundamentáveis, é algo tão independente da cultura como falar

sobre lógica. A pergunta pedagógica sobre o modo como a dimensão da justiça

pode ser descoberta argumentativamente em culturas onde está oculta, é uma

questão que não pode ser respondida abstratamente, mas apenas em conexão com

as crenças culturais em questão. Quando discutimos, por exemplo, com um cristão,

podemos perguntar se, em sua opinião, é bom o que Deus ordena, ou se Deus

ordena o que é bom. Se ele admite o segundo, encontra-se no mesmo nível que

nós. Se não se conhecem as pressuposições correspondentes, não se pode dizer

antecipadamente se, nesta forma especial, a pergunta tem sentido também frente a

outros crentes. Mas parece um fato que, no mundo atual, cresce a necessidade de

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pôr-se em acordo em torno da moral e dos direitos humanos, para além das

fronteiras da fé. Tal necessidade só pode ser satisfeita na base não específica do

universalismo, e não, como se pode observar, por exemplo, na atual discussão

intercultural sobre os direitos humanos, pondo em relação crenças culturalmente

específicas ―similares‖ e deixando, em conseqüência, todo o problema sem

resolução. É possível esclarecer que existe uma tal base cultural não específica, e

que ela é única.

Chegamos, então, ao nosso hotel.

T: Ainda nos resta, contudo, falar do problema da corrupção. Quase o

esqueci. Se, como você disse anteriormente, existem regras morais que não podem

ser integradas a nossa abordagem, nos encontraremos em uma situação ridícula.

Por isso, proponho ficarmos aqui e tomarmos uma caipirinha no bar do hotel.

I Obrigado. Aceito com gosto a caipirinha, e duas serão ainda melhor

que uma. Mas a corrupção é um problema muito sério, principalmente se você

acha que poderia colocar em questão toda a nossa abordagem. Mas não agora,

que já é tarde. Se você quiser, podemos adiar a nossa partida por algumas horas

e nos encontrarmos amanhã cedo.

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CAPÍTULO VI

Nós nos encontramos, na manhã seguinte, no saguão do hotel, e fomos

ao local do porto, em que, antes, o café fora servido.

T: Ocorre-me - disse eu, quando sentamos - que também adiamos a

questão da motivação moral que deveria se vincular à questão da corrupção.

Muitos julgam que o problema da corrupção reside essencialmente em uma

decadência generalizada da motivação moral.

I: Duvido que seja assim e acredito, antes, que se trate de um

descolamento que se considera importante para a moral. Que a corrupção,

contudo, tenha algo a ver com a motivação é algo de que certamente não se

duvida, Se você quiser, começaremos com uma compreensão do problema da

motivação em geral.

T: Muito bem. No meu livro, distingui duas questões da motivação

(Lições sobre Etica, p. 91, no original). A primeira é a mais comum: o que

motiva o indivíduo a proceder moralmente? A segunda é a mais fundamental, e

que comumente não é colocada: o que me motiva - e depois da sua explicação

de ontem cedo, parecia-me claro que sempre devemos formular esta pergunta

dessa maneira: o que motiva a mim e aos outros - a nos considerarmos como

integrantes de uma comunidade moral, isto é, como integrantes justamente

desta comunidade moral, ou seja, com este conjunto de regras morais?

I: Na verdade, você nem sempre distingue estas duas perguntas (Lições

sobre Ética, ver p. 207, no original). Acho que elas têm de ser claramente

separadas - embora a primeira não seja independente da segunda -, e que isto pode

ser importante justamente para o problema da corrupção. Se há razão (Grund) para

que o problema da corrupção seja percebido como um fenômeno moral marginal -

isto é, se não compreendemos a comunidade moral, em seu cerne. desta maneira) -,

então é evidente que isso tenha efeitos retroativos sobre a motivação do indivíduo.

Devemos nos entender, contudo, sobre a motivação singular enquanto tal, como

uma questão a que você chamou primeira. Embora você a tenha abordado em

outras partes do seu livro, ela, em princípio, é deixada em aberto, provocando

alguma confusão em seus leitores. Naturalmente, a pergunta pela motivação moral

é, em parte, psicológica: como e por qual razão um indivíduo pesa sua motivação

moral em relação aos seus outros interesses etc.? Mas ela é também, em princípio,

uma questão filosófica: justamente para uma abordagem instrumental, como eu a

defendi ontem de manhã. Coloca-se em questão se o indivíduo se considera,

apenas por razões instrumentais, como integrante da comunidade moral. Se ele se

compreende como tal, pode haver razões para. no plano que você chamou de

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segundo, não apenas julgar que ―o agir corretamente é justificado desde a

perspectiva de todos, igualmente‖ -, não apenas julgar assim, mas também ter

motivos para proceder segundo este juízo, isto é, para concretamente seguir as

regras que este segundo nível prescreve, em lugar de seu interesse próprio? Para

isso deve haver um fundamento na essência de uma comunidade moral, caso

contrário seria incompreensível. A noção kantiana de uma motivação moral (―da

razão pura‖) é indiscutível. E uma questão psicológica — isto é: como alguém que,

primeiramente, reconhece a voz da moral, a pondera em relação aos seus outros

interesses. Mas a questão filosófica é: como se compreende, em geral, que a voz

moral possa ter um peso motivacional para nós? Ou, formulado de outra maneira: o

que nos motiva a ser maximizadores limitados da utilidade?

T: Correto. Este é o lugar em que se deve mostrar uma motivação não-

instrumental, sobre a base de uma introdução instrumental da moral. Você

respondeu a esta questão filosófica, ontem pela manhã, de maneira imprecisa,

ao assinalar a figura do franco-atirador. E a questão, então, é o que motiva

alguém a não ser um franco-atirador?

I: O franco-atirador, como eu o defini ontem pela manhã, - isto é, uma

pessoa que simplesmente simula tanto o sentimento de culpa como a

indignação -, é um exagero, uma figura irreal. Proponho prescindirmos dele e o

caracterizarmos como ele foi usualmente considerado na filosofia moral: como

Giges, na República de Platão, isto é, de tal modo que, sem se importar com

quais sejam seus sentimentos morais, procede como um maximizador máximo

de utilidade, quando acredita poder escapar sem ser reconhecido. Podemos

supor que todos nos indignamos quando acreditamos que alguém age

imoralmente e que o censuramos, quer o afeto seja forte ou fraco. Fica

implícito, então, que temos um sentimento negativo correspondente, forte ou

fraco, quando nós mesmos agimos dessa maneira. Se temos um sentimento

fraco, isto é, se, em conseqüência, apenas o assinalamos com um peso diminuto

em relação aos nossos outros interesses, nos tornamos franco-atiradores, isto é,

aquela figura patológica que não possui, de modo geral, este sentimento. A

pergunta pela motivação moral seria, então, a pergunta: o que nos motiva -

quando julgamos algo imoral - a não agir assim?

T: Se o compreendi bem, você quer assimilar, sem deixar margem para

dúvidas, o problema da motivação ao sentimento moral. Nisso está uma recusa da

concepção - já implícita nas palavras de meu amigo -, segundo a qual o motivo

(Motiv) é simplesmente a evidência. Algo assim pode ser imaginado, em teoria, da

seguinte maneira: alguém julga algo imoral - como infundado, em sentido moral -,

e a evidência da correção deste juízo pode já ser o motivo para agir assim.

I: Isto corresponde a uma noção tradicional, de que a moral contrapõe-

se ao imoral, como a razão (Vernunft), à sensibilidade (Sinnlichkeit). Uma

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noção, que Hume, segundo penso, refutou definitivamente. Apenas os

sentimentos são motivos para o agir, e trata-se, no esclarecimento das

motivações morais, de identificar adequadamente o sentimento correspondente.

T: Certo. Não entendo como, nesta questão, se possa ser outra coisa

além de humano. Até Kant admite implicitamente a correção desta concepção,

posto que estava convencido de que a motivação moral, quando ela não pode

ser entendida como relativa a sentimentos, deve ser compreendida como algo

supra-sensível (ver Lições sobre Ética, p. 157 ss., no original).

I: O que, então, motiva um indivíduo a atribuir um peso à sua voz

moral, no repertório de suas motivações? A única crítica que faço à sua

exposição da resposta que Adam Smith dá a esta pergunta (Lições sobre Ética,

p. 310-314, no original) é que você deve percebê-la de maneira oposta. Em

minha opinião, contudo, Adam Smith pressupõe como um fato antropológico (e

o que se pode objetar contra isso?) que os homens, em primeiro lugar, são

amados, e, em segundo, também querem ser dignos de ser amados, mas que o

mesmo vale para o par ―ser apreciado‖ (Geschätztwerden) e ―ser digno de

apreço‖ (Schätzenswerten), que, por sua vez, é particularmente válido para os

casos morais correspondentes. Apenas o que causa dificuldades aqui é a

passagem crucial do ―querer ser apreciado‖ para o ―querer ser digno de

apreço‖, que, na verdade, Aristóteles também pressupõe como uma

autocompreensão (Ética a Nicômaco, 1095b, 26 - 30): aqueles a quem importa

a glória são igualmente afetados pela aprovação dos que são considerados aptos

a julgar, e isto pode apenas ter o sentido de receber a confirmação de que se é

bom. Como Aristóteles formulou, o ―ser bom‖ obtém imediatamente uma

posição independente face ao ―ser apreciado‖, e, por esta razão, o seu ―ser

fundado‖ (Fundiertsein) intersubjetivo cinde-se estruturalmente no ―ser

apreciado‖. O conceito de ―bem‖ paira. então, no ar. Somente se pode ir até

aqui. Mas a observação de Aristóteles de que não se trata de qualquer aplauso,

mas antes do aplauso das pessoas aptas para julgar - não de todos, mas dos

―bons‖ - inclui o essencial. Apreciar — ―ter por bom‖ (Fürguthalten) -, é

certamente algo distinto de ―achar agradável‖ (Angenehm-Finden), porque

inclui uma exigência objetiva. Esta é a razão por que, ainda que sejamos de fato

considerados como bons, podemos ter a consciência de não o sermos, e

inversamente - nos assuntos morais, como em todos os outros - e, portanto,

resulta aqui - pensemos inicialmente em um artista - a distinção entre

simplesmente querer agradar e querer fazer algo que corresponda à própria

exigência, e que significa, então, algo que também agradaria aos outros,

quando estes fossem competentes. Esta mesma distinção é produzida, agora, na

moral. Ontem indiquei a distinção de Kohlberg entre a moral convencional e a

moral autônoma. A consciência convencional procede da consciência

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Coleção Filosofia - 133 84

autônoma como o ―querer ser apreciado‖ procede do ―querer ser digno de

apreço‖, isto é, trata-se de uma autonomia no contexto do sentimento

intersubjetivo. Seria absurdo separar o sentimento particular e autônomo de

culpa, ou do menosprezo de si, da referência intersubjetiva à indignação e à

censura. A autonomia consiste em que o indivíduo não se deixa determinar pela

censura de fato, mas por aquilo que ele considera digno de censura. Quem, em

geral, é consciente, mesmo que ainda não tenha adquirido autonomia, já

efetuou uma primeira internalização, isto é, o que o motiva não é mais a

censura de fato, mas saber que a ação é censurável, ainda que, para uma tal

ação, os padrões convencionais sejam determinantes. E falamos de uma

consciência moral autônoma, em segundo lugar, quando o indivíduo chega a

ser independente também em seu juízo. Ainda neste caso, o sentimento de

culpa é correlato da indignação e do menosprezo intersubjetivos: sentir-se

culpado de maneira autônoma quer dizer considerar a própria ação como

indigna e desprezível, mesmo que ninguém mais se indigne além de nós

mesmos, não apenas porque os outros não o vêem, mas também porque se

considera que os outros não julgam corretamente.

T: O importante. disse eu, parece-me ser que, primeiro, é

psicologicamente evidente que, para um homem, o ―ser apreciado‖ pode se

tornar mais importante que seus interesses restantes, e, segundo, que o apreço e

o ―ser apreciado‖ se encontram em uma tensão entre um primeiro nível

superficial e uma dimensão mais profunda. Pelo jogo recíproco entre juízos e

sentimentos morais compartilhados, como vimos, ontem pela manhã, se

alcança o segundo nível do juízo, que, agora, por via do ―ser apreciado‖, se

converte em um segundo nível da motivação, e quase podemos falar de um

terceiro nível do juízo e da motivação, quando refletimos sobre a distinção

entre a moral autônoma e a moral convencional.

I: Talvez seja um terceiro nível da motivação, disse ele, mas dificilmente

um terceiro nível do juízo, posto que o segundo nível é precisamente o nível do

juízo, que, por si mesmo, remete ao que você chama de terceiro.

T: Não queremos discutir sobre os números. Mas se você pensar na

nossa discussão sobre o conceito de justiça, há no segundo nível da motivação -

e, portanto, no primeiro nível do juízo - uma maneira de justificar algo como

justo, isto é, no recurso à justiça convencional previamente dada, que se

distingue nitidamente daquela outra em que se pergunta se podemos justificar

intersubjetivamente frente a todos uma distribuição de direitos, e quem se situa

neste nível do juízo, se este resulta decisivo para a ação, também se coloca

motivacionalmente em um outro nível.

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Coleção Filosofia - 133 85

I: Tenho a impressão de que nos desviamos do tema. A pergunta inicial

era a seguinte: como podem adquirir peso para nós as dimensões da indignação

e da culpa?

T: Por que você diz que nos desviamos? Certamente não o fizemos

quando nos referimos aos conceitos de ―ser apreciado‖ e de ―querer ser digno

de apreço‖, de Adam Smith. Precisamos apenas substituir a expressão de

apreço pela de menosprezo, e esta, finalmente, pela de desprezo. Seguramente

estes conceitos negativos da moral são mais importantes que os positivos.

Quem segue sua consciência autônoma, pode não querer desprezar a si próprio.

Esta é a sua motivação. O conceito de menosprezo pertence de modo manifesto

ao conceito de indignação; só que agora já não podemos prescindir da palavra

―bom‖ (no sentido de ―bom caráter‖). Você, em troca. não tem nada a objetar.

Apenas não queria partir de uma construção sistemática. A indignação

corresponde, antes, ao sentimento de culpa; o menosprezo, à vergonha. A

resposta à questão de que você partiu parece ser, então, que a indignação do

outro - em meu terceiro nível, a possível indignação daqueles aptos a julgar -

afeta uma pessoa na medida em que ganha importância frente aos demais

interesses o não ser menosprezada e também o não se sentir menosprezada.

I: Bem formulado. Agora foi incorporado um segundo nível do juízo - e,

para o meu pesar, também um terceiro - que a introdução instrumentalista da moral

não colocava em questão. É esse segundo nível que torna compreensível uma

motivação não-instrumental, que decorre unicamente da dimensão - introduzida

instrumentalmente - do juízo normativo igualitário e que naturalmente, como você

acaba de fazer, pode ser assinalado como um ―interesse‖.

T: E agora eu queria muito saber por que, ontem à tarde, você disse (p.

104, do original alemão) ser pensável que o integrante de uma comunidade moral

possa experimentar o sentimento de culpa e a indignação - e isto quer dizer,

naturalmente, aprovar e censurar -, apenas com respeito a uma parte de suas

normas, e que não o façam, contudo, com relação a outra parte, que consideram

como igualmente justificada. Este é justamente o ponto a que você queria chegar,

quando disse, há pouco, que a motivação para considerar-se como membro de uma

comunidade moral - com um conjunto determinado de normas - tem um efeito

retroativo sobre o indivíduo, para que este esteja mais, menos ou até mesmo nada

motivado, para sentir culpa, quando viola determinadas regras.

I: Primeiramente, eu não queria formular aqui uma teoria de alto nível,

mas parti de um fenômeno empírico cujo esclarecimento me parecia necessário.

Sabidamente muitos homens que, no domínio interpessoal, pensam moralmente e

são moralmente motivados, no caso da sonegação de impostos, contudo, não

apenas não têm nenhum sentimento de culpa - apenas o temor de ser apanhados -‗

mas também não se indignam com os outros, quando sabem que estes agem assim.

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Coleção Filosofia - 133 86

São pessoas que, em geral, consideram igualmente correto que os impostos sejam

pagos, mas que, no entanto, tomam uma infração neste domínio como ―delitos de

cavalheiros‖. Como se entende isto? A corrupção é algo semelhante, que pode, por

sua vez, adotar formas muito distintas. Sem dúvida, o comportamento frente a

ambos delitos é distinto, tanto nos países e sociedades modernos, como também

entre suas diferentes gerações.

T: Posso remeter, neste ponto, a um outro fenômeno, que igualmente se

refere ao comportamento corporativo relativamente a instâncias anônimas. Há

pouco, eu observava, em Berlim, que uma grande parte dos jovens locais que

viajam clandestinamente no metrô dificilmente considera isto como um delito

moral - mas apenas como uma questão prudencial: é mais barato pagar uma

multa que a tarifa regular do bilhete. Quando você conversa com um

representante desta geração, você descobre que quem pensa assim são pessoas

que entendem a moral autonomamente (e não moralistas convencionais) e que

possuem uma moral alta no domínio interpessoal. Alguém me disse duvidar até

mesmo de que uma moral reflexiva fosse, em geral, capaz de sobreviver neste

domínio anônimo, e que onde fosse realmente factível, seria melhor para a

conservação da moral que desmoralizássemos estes domínios anônimos e

simplesmente intensificássemos os controles externos.

I: Não quero tomar posição agora, mas somente dizer que nossa teoria

moral deveria ser estruturada de modo que pudesse dar conta de tais

fenômenos, tanto os da consideração mencionada sobre a imposição de

determinadas regras para o agir tidas como desejáveis apenas mediante sanções

externas - portanto, sua desmoralização - (Entmoralisierung), como da

mentalidade descrita antes, que entende um modo determinado de agir como

moral, mas que, contudo, não o vincula com a tríade strawsoniana, ou o faz de

um modo mais fraco do que com os desvios de outras normas morais.

T: Também são fenômenos deste tipo, que, ontem à tarde, o levaram a

falar de um duplo conceito de tomar como evidente?

I: Sim, e a reintroduzir um conceito de bem para todos, do qual, ontem

pela manhã, disse poder prescindir, e que se distingue do conceito de bem, que se

refere, em seu livro, ao bom caráter. Em função das idéias mencionadas antes,

devemos poder falar de modos de agir que são exigidos (no sentido forte da tríade

strawsoniana), isto é, de modos de agir que se consideram, em geral, desejáveis e,

neste sentido, ―bons‖. Ontem pela manhã, eu disse que não precisamos falar

propriamente de desejável, porque, normalmente, não apenas consideramos

desejável tudo o que é moral, como também o reclamamos. Por que, então,

devemos nos deter, particularmente, na forma mais fraca? Seu amigo, contudo,

disse (ou, pelo menos, assim o compreendi) que poderia haver também modos de

agir cuja realização fosse, em geral, desejável, mas que nós não o exigíamos

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mutuamente (na verdade, ele não falaria assim). Pode-se, então, ―tomar como

evidente‖ que seria bom para todos agir de tal maneira, sem que isso fosse exigido

reciprocamente, e aqui (esta parecia ser a sua tese) estaria algo que poderia ser

considerado igualmente justificado frente a todos, sem ser sancionado. Quando

assimilo este conceito à palavra ―bom‖, naturalmente não me podem objetar a

introdução de um conceito obscuro, pois que este ―bom‖ estaria igualmente

referido àquele que, para que fosse desejável, seria preciso justificar igualmente

frente a todos, de modo semelhante a quando me referi a uma práxis normativa,

que se deve justificar a fim de poder ser aceita. Em ambos os casos, a palavra

―fundamento‖ (Grund) remete a motivo (Motive). O que me distingue do seu

amigo é apenas uma variação terminológica. Eu não diria que a realização destas

normas seja boa - pois, assim como empregamos a palavra, não são em absoluto

normas, se não são sancionadas -, mas sim a realização deste modo de agir

(Handlungsweise). Posso também dar um outro exemplo como o da sonegação de

impostos etc. Imagine um grupo humano que, sob condições externas, se encontra

em uma situação que o impeça de estabelecer até mesmo as relações morais

interpessoais mais simples, tais como não matar, manter promessas, não mentir etc.

É possível que isto aconteça aos meninos de rua em nossas cidades, exceto quando

se trata de relações estreitas de amizade. Aqui se pode dizer seguramente: seria

vantajoso (desejável) para todos que pudessem agir moralmente de modo

recíproco, mas (é o conhecido problema do prisioneiro) seria irracional agir desta

maneira se não existe uma base mínima de confiança, isto é, se não existe urna

certa possibilidade de que os demais também ajam assim. Nesse caso, não se

constitui, em geral, uma comunidade moral na qual os modos de agir desejáveis se

possam sustentar por meio de normas, isto é, mediante a tríade strawsoniana. Uma

tal possibilidade não se apresentou em nossas considerações, porque sempre nos

orientamos por uma criança que nasce e cresce em uma comunidade moral e que

pergunta somente pela justificação das normas nela contidas. Pode-se naturalmente

retroceder um passo e pensar a criança em um estado de natureza, em que se

perguntasse: que modo de agir, em geral, iria eu, e também todos os outros, querer,

se houvesse um determinado mecanismo que todos respeitassem mutuamente?

Uma tal criança construiria, primeiramente, uma moral referida a interesses, e

seria, então, plausível remeter-se aos mecanismos normativos da indignação e do

sentimento de culpa, antropologicamente disponíveis; mecanismos que

dificilmente poderiam ser postos em andamento sem um mínimo de sanções

externas. Quando se dispõe as questões em uma seqüência tão ordenada. deve-se

também distinguir a questão do ―ser desejado‖ (Erwünschtsein) do modo de agir (e

o correspondente ―ser justificado‖ para todos) da questão do ―ser desejável‖ (e o

correspondente ―ser justificado‖) da norma - da proibição moral. Passamos por

cima disto, porque nos subordinamos a um certo automatismo, pelo qual, em geral,

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sempre que um modo de agir se evidencia como desejável, produzem-se

sentimentos correspondentes: aceitar o modo de agir como desejável em comum

significa exigi-lo reciprocamente. Este procedimento sintético tem como

conseqüência que o que deve ser justificado são sempre as normas. Mas há

situações em que se requer que se tome os dois, analiticamente, em separado. Uma

tal situação é aquela em que, na verdade, ainda não temos nenhuma ―ongoing

moral community‖ (―comunidade moral vigente‖), com seus sentimentos morais, e

parece-me que uma segunda situação deste tipo é aquela em que temos certamente

uma comunidade moral cujos integrantes reagem mutuamente com indignação,

ressentimento e sentimento de culpa face a um domínio essencial de um modo de

agir, cujo cumprimento é tido como desejável em geral, em que, contudo - por

razões ainda não totalmente esclarecidas -, não parece que os sentimentos morais a

alcancem efetivamente, isto significa: neles a motivação moral ou bem desaparece

ou bem se desenvolve deficientemente.

T: Então você não considera o problema da corrupção apenas a partir da

motivação diminuída do indivíduo, mas retrocedendo à correlação intersubjetiva

entre a motivação e a indignação. Antes de entrarmos nisso, permita-me resumir a

estrutura que você acaba de desenvolver. Você disse que podemos distinguir, em

geral, - e que o devemos fazer, em determinadas situações - dois passos na questão

moral. Em ambos os passos, trata-se de uma ―justificação‖ (Begründung) do modo

como você explicou este conceito em nossa primeira conversa anteontem. Mas, no

primeiro, somente poderia ser justificado que um determinado modo de agir é de

igual interesse para todos. o que, desde logo, não é em si algo normativo.

Poderíamos, então, dizer: trata-se de um determinado estado. No segundo passo,

apareceriam como justificadas aquelas normas nas quais os modos de agir que

provocam um tal estado se apresentam como exigidos emocionalmente. O

primeiro destes passos é o que sugere utilizar a palavra ―bom‖ em um certo

sentido, a saber, como ―desejável por todos igualmente‖. É este uso do termo que

mais se aproxima do meu emprego da palavra ―bom‖, nas Três Preleções, como

predicado de justificação. Mas eles não se correspondem totalmente. Lá, eu disse

que as normas podem ser consideradas justificadas. quando as consideramos como

boas, igualmente. para todos. Tal como você o formula, agora, podemos entender

por bom (por igualmente desejável para todos) o estado que estas normas devem

tornar possível. Trata-se de uma interpretação consequencialista, que, na realidade,

já se encontrava implicada na minha terminologia de então. São boas aquelas

normas - no sentido anterior -, que produzem o estado que é bom, no meu sentido

atual. Para poder chegar a compreender os problemas que você assinala, é

inevitável o conceito de bem que você põe em destaque (―estado que é desejável

igualmente para todos‖), enquanto que a correspondente aplicação às normas nele

se funda e é imprescindível. Em todo caso, o que temos que distinguir em ambos

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conceitos de bem é a noção que aparece em minhas Lições e que se refere ao

caráter, isto é, à pessoa. Em nossa primeira conversa, você disse que isso era

conveniente, mas dispensável. Se admitimos que o conceito de bem que você

emprega agora é básico para todo este contexto, deve-se dizer: é moralmente boa a

pessoa que segue as normas em virtude de seu caráter, e elas são, por sua vez, boas,

porque produzem uma situação que é igualmente do interesse de todos. Você disse

que é indispensável partir de um conceito conseqüencialista de bem que, na

verdade, se distingue do utilitarista, porque o bem do estado a alcançar não é

intrínseco, mas, antes, está referido aos interesses de todos. igualmente ponderados.

Kant, no entanto, deve estar se revirando no túmulo.

Ele riu, e parecia ter recuperado esta manhã, seu bom humor de sempre.

I: Que se vire o quanto quiser. Mas, na verdade, isto não é necessário.

Primeiro, porque não se trata de um estado de todo o mundo que é comparado

como ―melhor‖ e ―pior‖. A questão é, em todo caso, apenas se um determinado

modo de agir conduz a um resultado desejado ou indesejado, e é difícil, em

realidade, ver como uma interpretação kantiana pode prescindir disto1. Em

segundo lugar, é precisamente uma reflexão como a que contém o imperativo

categórico kantiano a que poderia decidir sobre o ―ser desejado‖ ou o ―não ser

desejado‖ do resultado. Tomemos, como exemplo, a sonegação de impostos.

―Posso querer (assim reza a reflexão kantiana) que a máxima de minha ação

seja observada em geral?‖. ―Não‖, responde Kant, com um monossílabo.

―Não‖, diz a explicação mais detalhada, ―porque isso conduziria a um

resultado, em geral, indesejável‖.

T: Começo a compreender o que você está tramando. Parece claro que

você quer distinguir entre dois tipos de ação imoral que, graças ao critério

kantiano, se revelam, sem dúvida, como imorais: primeiro. uma ação na qual

alguém prejudica (ou não ajuda a outro) - Kant tinha em vista explicitamente

apenas a ação interpessoal -; segundo, o modo de agir que nós podemos chamar

cooperativo, cuja omissão não causa dano diretamente a ninguém, mas que, no

entanto, observado de maneira universal, conduziria a um resultado que seria

prejudicial a todos.

1 A exposição de Hruschka em torno da origem do imperativo categórico a partir do

que ele denomina ―princípio de universalização‖, e que tem uma base utilitarista, indica

que Kant devia estar consciente disto 9J. Hruschka, ―Die Konkurrenz Von Goldener

Regel und prinzip der Verallgemeinerung in der juristischen Diskussion des 17/18.

Jahrhunderts als geschichtliche Wurzel von Kants kategorischem Imperativ‖, Juristen-

Zeitung 42 (1987), 941-952, em especial 951.

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I: Totalmente correto. Estruturalmente é importante ver aqui o que ambos

tipos de ação têm em comum e em que se distinguem. Também no primeiro tipo de

ação está em jogo um aspecto conseqüencialista, que, no entanto, difere do da ação

do segundo tipo. Aqui se faz necessária uma distinção efetuada por von Wright

(Norm and Action, Londres 1963, III 5) entre o ―resultado‖ (―Ergebnis‖) e a

―conseqüência‖ (―Consequence‖) de uma ação. Se a ―ação‖ é compreendida de

uma determinada maneira, como o faz von Wright, isto é, se as atividades que têm

um fim em si mesmas, tais como dar um passeio. são excluídas, toda ação consiste,

por razões lógicas, na produção de um estado de coisas, como, por exemplo, ―eu

abro a janela‖: produzo um estado de coisas, isto é, que a janela esteja aberta. A

produção deste estado de coisas pertence ―intrinsecamente‖ - como diz von Wright

- à ação assim compreendida. Ao fazer isso, talvez deixe, no entanto, entrar uma

corrente indesejável de ar frio e provoque um resfriado em minha mulher. Estas

são conseqüências causais de minha ação. Segundo von Wright, o que decide qual

o resultado e qual a conseqüência de minha ação é o propósito com o qual agi.

Quando abro a janela para matar minha mulher, ambos estados de coisas são

resultados de minha ação: uma delas eu quis como meio, a outra, como fim.

Quando. contudo, abro a janela, tendo podido saber que uma provável

conseqüência seria a morte de minha mulher, não tinha intenção de realizar este

último, mas agi de modo negligente. Retornemos agora ao imperativo categórico.

Kant tinha em vista essencialmente a própria ação, razão pela qual é designado

como não conseqüencialista. Mas as ações só podem ser consideradas juntamente

com, pelo menos, seus resultados intrínsecos, quando não também junto com suas

conseqüências previsíveis. Por isso é necessária a interpretação conseqüencialista

que formulei antes, inclusive para a ação interpessoal de prejudicar ou de não

ajudar. Quando me pergunto por que - como diz Kant - não posso querer que a

máxima de prejudicar alguém por capricho se torne uma regra universal, a resposta

é que tanto eu como todos os outros não consideramos como desejável o estado

geral em que todos podem causar danos a outro, a qualquer momento. Não

podemos, então, evitar esta pequena porção de juízo conseqüencialista sobre os

estados, nem nos casos prediletos de Kant; isto é evidente no caso do mandamento

de não agir negligentemente, isto é, de evitar conseqüências negativas não

previstas. Chegamos agora. contudo, à ação cooperativa. Em uma ação negligente,

pode-se prejudicar alguém sem intenção. A pessoa que prejudiquei por negligência

se indignará contra mim, se bem que o fará de modo diverso do caso em que eu a

prejudico intencionalmente (a regra violada, por mim, é outra): quando violei a

regra, existia, de um modo ou de outro, uma clara relação entre o meu querer e a

circunstância de que uma determinada pessoa tenha sido prejudicada. Na ação

cooperativa, ao contrário, temos uma outra situação: aqui o indesejável para uma

determinada pessoa não parece nunca ser o resultado intrínseco da ação, de modo

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que todos consideramos como indesejável a regra geral de agir desta maneira, pois,

se a observamos, algum de nós sempre será afetado negativamente. Indesejável é,

agora, a conseqüência da ação: é um estado de coisas que é igualmente indesejável

para todos e que resulta tanto mais indesejável, quanto maior seja o número dos

que agem assim. Um kantiano pode utilizar, nos dois casos - tanto o do prejuízo

interpessoal quanto o da ação cooperativa - o critério do imperativo categórico. Em

ambos, chega-se a um resultado análogo: todos querem que ninguém. Mas quando

se pergunta por que se quer isto, a razão é outra. A razão por que se responde

negativamente à questão contida no imperativo categórico é que, no caso da ação

interpessoal, ninguém quer ser afetado por uma tal ação; ao contrário, no caso da

ação cooperativa, referimo-nos a uma conseqüência indesejável em geral, quando

muitos agem dessa maneira - é indesejável cumulativamente, não

distributivamente. Esta é, então, a razão por que todos querem que ninguém o seja;

pois por que alguém deveria ter o direito a uma exceção que viola a tese da

igualdade? 2No primeiro tipo de ação imoral é o seu resultado próprio intrínseco

que aparece como distributivamente negativo; no segundo tipo, é, ao contrário, sua

ação à distância cumulativa.

T: Você está dizendo, agora, que esta distinção estrutural é o que torna

inteligível por que as contravenções às regras do segundo tipo não se vinculam

tão claramente à tríade strawsoniana, assim como, por que a substituição da

tríade, se pode chegar a sugerir coisas tais como sugere o meu clandestino

berlinense sobre desmoralizar as regras de segundo tipo, isto é, a tríade

strawsoniana pelas sanções externas?

I: Sim. E, há pouco, apareceu um indício do porquê isto é percebido desta

maneira, quando eu disse que, nas contravenções do segundo tipo. não há nenhum

indivíduo que seja afetado negativamente, isto é, ninguém que se indigne ou passe

a fazê-lo. Não é provável que. quando faço algo que não afeta a ninguém, o

sentimento de culpa ou bem desapareça de todo, ou, ao menos, se transforma

essencialmente? Não é possível imaginar deusas vingativas que perseguem o

clandestino ou o sonegador de impostos, ou ainda aqueles que se apropriam dos

fundos públicos sem prejudicar a ninguém, pois não há ninguém cujos direitos

possam representar. Nisto é possível compreender em que reside que tais

contravenções deixem aflorar apenas uma sombra de indignação e porque, em

conseqüência, estas ações dolosas são vistas como ―delitos de cavalheiros‖.

Consideramos o sentimento de culpa como uma resposta à indignação justificada.

mas certamente o inverso também é válido. Parece natural considerar a tríade

strawsoniana como uma unidade, de modo que, quando falta um elo, os outros

dois, se não desaparecem, pelo menos, transformam-se, Pode-se interpretar assim a

2 Ver Hruschka, op. Cit.; D. Lyons, Forms and Limits of utilitarianism, Oxford 1965.

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proposta do seu clandestino berlinense alegando que a moral do respeito

interpessoal limita o prejuízo; uma indignação a que não corresponde nenhum

ressentimento atua de modo despersonalizado.

T: Não sei se podemos realmente dizer que, no comportamento

cooperativo doloso, falta o ressentimento. Quando alguém, por exemplo,

trapaceia em um jogo, ele engana os outros, e estes se indignarão quando

descobrirem a trapaça, e. do mesmo modo, se ele não cumpre sua parte em um

empreendimento comunitário. Ele não prejudicou a ninguém, mas a todos, e

todos se indignam contra ele, individual e coletivamente.

I: Aí você está certo. É evidente que não é a existência do franco-

atirador, no âmbito cooperativo, que como tal origina o problema de sua

imoralidade, mas somente na medida em que se torna anônimo o que está

frente a ela. Este parece ser um problema específico de nosso tempo. Quando

aqueles a quem prejudicamos não mais podem ser percebidos como indivíduos,

pode-se dizer, na verdade, que quem infringe a regra prejudica a todos, mas se

pode igualmente dizer que ele não prejudica a ninguém, que contribui

simplesmente para um prejuízo global. Não é razoável que a indignação e o

sentimento de culpa não possam ser ampliados onde a contravenção não pode

mais vincular-se a pessoas individuais reconhecíveis?

T : Geneticamente? Estamos de acordo em que a tríade strawsoniana

parece ser geneticamente predeterminada. A constituição genética que Lemos,

contudo, é tal que permitiu a sobrevivência de comunidades menores.

I: Não sei se isto deve ser visto assim, pois, em um determinado

sentido, a capacidade de sentir-se culpado pode ser ampliada universalmente:

nada nos obriga a aceitar a referência ao grupo da moral de nossos

antepassados; ao contrário, vimos ontem que, quando satisfazemos, sem

restrições, a exigência de justificação que parece residir na norma moral, é

necessária sua ampliação universal.

T: Devemos, agora, distinguir entre duas questões. Primeiro, quem são

todos aqueles frente aos quais devemos justificar? E. segundo, qual o alcance

do poder de sentir-se culpado face às partes de uma coletividade cooperativa?

I: Isto mostra, contudo, que a referência à comunidade de caçadores e

coletores tem escassas conseqüências. Por que esta origem genética nos limita em

um sentido, mas não em outro? Minha reflexão anterior deve tornar compreensível,

antes de tudo, não apenas o fato por que, em uma parte da sociedade atual, estas

normas são tomadas seriamente de modo restrito, mas também por que, por outra

parte, elas se excluem, inclusive enquanto normas morais.

T: Você tem razão em dirigir a conversa para a questão da possibilidade.

Porque, na verdade, nos encontramos em uma época de mudanças, e justamente

em ambas direções. No caso do clandestino, a tendência se dirige para uma

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desmoralização; no caso da corrupção, o faz na direção contrária. Mas ambas as

tendências parecem confirmar o que você disse. Por que não se deve desmoralizar

efetivamente, aí onde é possível, o modo anônimo de comportamento como o do

clandestino? A geração mais velha se inclina a dizer a esse respeito: regras são

regras e devem ser mantidas, e sabemos quão perigosa é esta atitude. A geração

mais jovem ou, de modo mais cuidadoso, alguns de seus representantes, quiseram

conceber a moral, até onde fosse possível, restrita ao respeito dos direitos dos

indivíduos, ou, conforme o caso, a estes mesmos. Por que. então, não dizer:

combater o modo de comportamento anônimo, até onde fosse possível, apenas

mediante sanções externas? Muitos concordariam com isto se fosse possível levá-

lo a cabo. Mas em vista da problemática da corrução está claro que não se pode

levá-lo. Quando se adverte que em um número cada vez maior de países a

população se torna consciente das devastadoras conseqüências da corrupção, é

compreensível o apelo ao fortalecimento do controle e das sanções externas. Mas

quando, além deste, apela-se para uma remoralização (Remoralisierung) deste tipo

de conduta ( Verhaltensweisen), coloca-se a pergunta sobre se isto não equivaleria

à tentativa de tornar funcional a tríade strawsoniana: a moral deve se sustentar não

porque cause repulsa aos homens uma tal conduta - neste caso, indignar-se-iam, e

com isso, estaria resolvido metade do problema - mas, primeiro, porque as

conseqüências prejudiciais são óbvias, e, em segundo lugar, porque as sanções

externas não são suficientes. Mas assim, funcionalmente, a moral não é de modo

algum praticável. Pensemos, por exemplo, nos grupos populacionais que se

conduziam essencialmente em termos de fidelidade a pequenos grupos, e que,

agora, devem ser honestos face a um Estado anônimo.

Ele pôs-se de pé, porque seu barco parecia estar pronto para zarpar, e

eu o acompanhei.

I: Acho muito conveniente sua expressão ―causar repulsa‖. Quem pensa

moralmente repugna-se com o que considera imoral, de um modo que chamamos

de indignação. Se, então, a honestidade pode ser considerada, também nos

contextos anônimos, como virtude moral, devemos esclarecer o que, do

comportamento contrario pode nos repugnar em um caso determinado. Algo nos

deve repugnar, não sendo suficiente que suas consequencias sejam indesejaveis. A

dificuldade, antes de falarmos de indignação, decorria da falta de um sujeito

potencialmente ressentido. Você estava certo em trazer. outra vez, o ressentimento

da parte enganada, e eu me importava apenas com o grande número. Poder-se-ia

dizer, contudo: apenas na medida em que o contraventor tem a consciência, não

apenas de prejudicar, mas de enganar aos outros, é pensável uma moralização

(Moralisierung) - ou remoralização - desta conduta. Há pouco assinalei que quem

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age desonestamente infringe a tese da igualdade (Gleichheitssatz). Isto, e não o

prejuízo que ele gera. isto é, enganar outras pessoas, é o que pode parecer

repugnante, mas deve parecê-lo se realmente enganou a outro. Mas não é

compreensível, por si. que esta condição seja cumprida. Aqui nos deparamos com

uma reciprocidade que não existe no comportamento imoral interpessoal. Quando

prejudico a A ou B, um se ressente comigo e outro se indigna sem que, de sua

parte, tenham feito algo. Quando, pelo contrário, em um contexto cooperativo,

engano a A, B, C etc., é suposto que eles se atêm, por sua parte, à regra, pois, em

caso contrário, eu não teria infringido a tese da igualdade. Daí se pode

compreender com clareza como é possível que. face ao modo de agir de tipo

cooperativo, se imponha tão facilmente uma consciência de indulgência recíproca.

Se minha desonestidade não causa indignação, seria simplesmente uma besteira

não ir contra a regra: a conduta honesta não pode, em conseqüência, suscitar

nenhum sentimento de culpa, se tenho razões para admitir que a maioria age desse

modo. A moralidade autônoma tem aqui limites visíveis. Ninguém pode agir

moralmente neste âmbito - e isto é estruturalmente impossível -, quando não supõe

que a grande maioria age desse modo. Como fica a situação moral, quando,

inversamente, a grande maioria se atém moralmente a um modo de agir, porque

nele se oferece um resultado desejável, que um homem que reflete autonomamente

consideraria indesejável, como, por exemplo, quando os impostos destinam-se à

produção de armamentos? Quando uma tal pessoa sonega impostos, sobre a base

deste juízo da finalidade, se não o faz publicamente. então, engana igualmente a

todos. Isto é, ajo imoralmente - isto causa repulsa e indignação - se me sirvo, como

franco-atirador, das vantagens de um sistema e não cumpro minha própria parte,

isso significa: se engano os outros, o que, por sua vez, quer dizer que se supõe - no

meu sentimento de culpa, na indignação dos outros - que os outros cumprem a sua

parte. Com isto, esclarece-se por que julgamos distintamente tipos diferentes de

condutas desonestas semelhantes, primeiro, de acordo com o modo como se supõe

que outros agem e, segundo, conforme o grau de liberdade que a pessoa tem para

participar do sistema cooperativo. Quanto maior a liberdade, mais inequívoca é a

falta. A maior liberdade que temos é evidentemente a de participar em um jogo, ou

a de não fazê-lo. Não se apresenta aqui nenhuma finalidade concebida como boa.

Justamente porque somos livres para participar ou não nele, não somos livres para

violar dissimuladamente as regras. De um lado do espectro se encontra o pagador

de impostos; enquanto cidadão de um Estado ele não é livre para sair deste ―jogo‖,

em razão de seu outro juízo sobre a finalidade ou também independentemente dele.

Isto esclarece por que julgamos a sonegação de impostos como corrupção de

maneira mais indulgente. Um pequeno funcionário talvez seja dependente de seu

ofício; um político. não. Uma dificuldade que permanece como antes é a do grande

número. Sem sustentar-se em sanções externas não é possível alcançar o que é

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condição para a imoralidade desta conduta, isto é, que a maioria aja honestamente.

Mesmo quando é assim, a tentação de agir desse modo será maior na medida em

que permanece anônima. Podia-se querer inserir aqui uma consideração kantiana

— ―eu quero que todos: então, eu devo‖ -; dela não resulta, no entanto, nenhuma

força de impulso motivacional. Trata-se de um paralogismo. e, quando este se

apresenta isolado, não expressa nenhum juízo moral: nenhuma exigência

intersubjetiva, mas simplesmente um desejo.

Ele falou estas últimas palavras rapidamente, e estava agora prestes a

saltar para o barco, quando ocorreu-me que deixamos pendente (p. 81 ss.. do

original alemão) a ―discriminação secundária‖ - a pergunta sobre que tipo de

distribuição desigual é justa e que tipo é injusta.

T: Por Deus, gritei. Temos aqui uma grande lacuna. Deixe passar

mais este barco.

Eu o segurei firmemente.

I: Isto não, gritou ele. Solte-me! Certamente é uma grande lacuna, mas

onde elas não existem? Ou você quer dizer que teríamos conseguido solucionar

a problemática de hoje da corrupção? Você mesmo insistiu em adiar o

problema da discriminação secundária (acima, p. 82, da edição original). Um

princípio foi delineado (p. 74, do original alemão), mas parecia que sua

utilização levava a contradições (p. 82, da edição original): existem situações,

na verdade, que - pode-se dizer prima facie - contêm uma regra igualmente

evidente para todos com respeito à divisão proporcionalmente desigual, mas há

uma variedade destas situações, e todas se contradizem entre si. Seria

necessário, então, uma meta- perspectiva, mas como esta deve ser? Isto se

tornou mais evidente depois da variedade de pontos de vista sobre a justiça que

Elster reuniu em seu artigo ―Local Justice‖ 3. Você não pode estar afirmando

seriamente que podemos esclarecer isto até o próximo barco, ou o seguinte.

Voltou a tocar o apito do navio e ele se pôs em movimento. Ele me

abraçou, saltou para o barco e desapareceu.

3 European Journal of Sociology 31 (1990), p.117-140.

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Ernest Tugendhat

Coleção Filosofia - 133 96

96- GUERIZOLI, Rodrigo

A metafísica no tractatus de primo princípio de Duns Escoto

97- TOMAZELI, Luiz Carlos

Entre o estado liberal e a democracia direta: a busca de um novo contrato

social

98- TEIXEIRA. Antônio M. R.

O topos ético da psicanálise

99 — COSTA, Alexandre

Thánatos: da possibilidade de um conceito de morte a partir do lógos

heraclítico

100— OLIVEIRA, Nythamar Femandes de

Tractatus ethico-politicus

101 — MACHADO. Jorge Antônio Torres

Filosofia e psicanálise: uni diálogo

102- GUERREIRO, Mano A. L.

Ceticismo ou senso comum?

103 — NA VIA, Ricardo

Verdade, racionalidade e relativismo em H. Putnamn

104- RAUBER, Jaime José

O problema da universalização em ética

105 — ANDRADE, Abraho Costa

Ricoeur e a formação do sujeito

106— CENCI, Angelo V. (Org.)

Temas sobre Kant

107 — TER REEGEN, Jan Gerard Joseph (Trad. e Introd.)

O livro das causas. Liber de causis

108— NEDEL. José

A teoria ético-política de John Rawls

109 — OLIVEIRA, Neiva Afonso

Rousseau e Rawls: contrato em duas vias

110— DE BONI, Luis Alberto

Filosofia medieval

111 — ULLMANN, Reinholdo Aloysio

A universidade medieval

112— DE BONI, Luis Alberto

A ciência e a organização dos saberes na Idade Média

113 — VALLS. Alvaro

Entre Sócrates e cristo

14— STEIN, Ernildo

Diferença e metafísica

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Diálogo em Letícia

Coleção Filosofia - 133 97

115 — NAPOLI, Ricardo Bins di

Ética e compreensão do outro

116— ATTIE FILHO, Miguel

Os sentidos internos de Ibn Sina

117 — ALMEIDA, Custódio Luís Siva de; FLICKINGER, Hans-Georg;

ROHDEN, L.

Hermenêutica filosófïca: nas trilhas de Hans-Georg Gadamer

118— PAVIANI. Jayme

Globalização e humanismo latino

119— RUEDELL. Aloísio

Da representação ao sentido

120— SOUZA, Ricardo Timm de

Sentido e alteridade

121 — SILVEIRA, Denis Coitinho

O sentido da justiça em Aristóteles

122— MÜLLER, Marcos José

Merleau-Ponty: acerca da expressão

123 — CUNHA, Mariana Palozzi Sérvulo da

O movimento da alma: a invenção por Agostinho do conceito de vontade

124 — SOUZA, José Zacarias de

Agostinho buscador inquieto da verdade

125 —LEITE JR., Pedro

O problema dos universais

126 — SCHÜTZ, Rosalvo

Religião e capitalismo

127 — CARVALHO, José Maurício de

História da filosofia e tradições culturais

128— MACEDO. Dion Davi

Do elogio à verdade: um estudo sobre a noção de Eros como intermediário no

Banquete de Platão

129 —SOUZA, Ricardo Timm & OLIVEIRA, Nythamar Fernande de

(Orgs.)

Fenomenologia hoje: existência, ser e sentido no alvorecer do século XXI

130 — SOUZA. José Antonio de Carmargo R.

O pensamento social em Santo Antônio

131 — GHISALBERTI, Alessandro

As raízes medievais do pensamento moderno

132— PAVIANI, Jayme

Filosofia e método em Platão

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