dialÉtica do esclarecimento (1947) -...

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DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO (1947) Theodor W. Adorno & Max Horkheimer Indústria Cultural: O esclarecimento como mistificação das massas Na opinião dos sociólogos, a perda do apoio que a religião fornecia, a dissolução dos últimos resíduos pré-capitalistas, a diferenciação técnica e social e a extrema especialização levaram a um caos cultural. Ora, essa opinião encontra a cada dia um novo desmentido. Pois a cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio e as revistas constituem um sistema. Cada setor se harmoniza em si e todos entre si. Até mesmo as manifestações estéticas de tendências políticas opostas entoam o mesmo louvor do ritmo de aço. Os decorativos prédios administrativos e os centros de exposição industriais mal se distinguem nos países autoritários e nos demais países. Os edifícios monumentais e luminosos que se elevam por toda parte são os sinais exteriores do engenhoso planejamento das corporações internacionais, para o qual já se precipitava a livre iniciativa dos empresários, cujos monumentos são os sombrios prédios residenciais e comerciais de nossas desoladoras cidades. Os prédios mais antigos em torno dos centros urbanos feitos de concreto já parecem cortiços, favelas e os novos bungalows 1 na periferia da cidade já proclamam, como as frágeis construções das feiras internacionais, o louvor do progresso técnico e convidam a descartá- los como latas de conserva após um breve período de uso. Mas os projetos de urbanização que, em pequenos apartamentos higiênicos, destinam-se a perpetuar o indivíduo como se ele fosse independente, submetem-no ainda mais profundamente a sua antítese, o poder absoluto do capital. Toda cultura de massas é idêntica nos sistemas econômicos dominados pelo poder dos monopólios, e o seu esqueleto, a armadura conceitual fabricada por esses [monopólios], começa a se delinear. Os dirigentes não estão interessados em encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa. O cinema e o rádio não precisam mais ser empacotados como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos. Os interessados adoram dar uma explicação tecnológica da indústria cultural. A participação de milhões em tal indústria imporia métodos de reprodução que, por seu turno, fazem com que inevitavelmente, em numerosos locais, necessidades iguais sejam satisfeitas com produtos estandardizados. O contraste técnico entre poucos centros de produção e uma recepção dispersa condicionaria a organização e o planejamento pela direção. Os padrões e os clichês teriam resultado originariamente das necessidades dos consumidores: eis por que 1 Bangalôs: Estilo de casa que se popularizou nos EUA na primeira metade do século XX. São casas de madeira fáceis de construir que podem vir prontas (pré-moldadas). [Nota do professor] são aceitos sem resistência. De fato, o que o explica é o círculo da manipulação e da necessidade retroativa, no qual a unidade do sistema se torna cada vez mais coesa. O que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma. Os automóveis, as bombas e o cinema mantêm coeso o todo e chega o momento em que seu elemento nivelador mostra sua força na própria injustiça à qual servia. Por enquanto, a técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema social. Isso, porém, não deve ser atribuído a nenhuma lei evolutiva da técnica enquanto tal, mas à sua função na economia atual. A passagem do telefone ao rádio separou claramente os papéis. Liberal, o telefone permitia que os participantes ainda desempenhassem o papel do sujeito. Democrático, o rádio transforma-os a todos igualmente em ouvintes, para entregá-los autoritariamente aos programas, iguais uns aos outros, das diferentes estações. Não se desenvolveu nenhum dispositivo de réplica e as emissões privadas são submetidas ao controle. Elas limitam-se ao domínio apócrifo dos “amadores”, que ainda por cima são organizados de cima para baixo. No quadro da rádio oficial, porém, todo traço de espontaneidade no público é dirigido e absorvido, numa seleção profissional, por caçadores de talentos, competições diante do microfone e toda espécie de programas patrocinados. Os talentos já pertencem à indústria muito antes de serem apresentados por ela: de outro modo não se integrariam tão fervorosamente. A atitude do público que, pretensamente e de fato, favorece o sistema da indústria cultural é uma parte do sistema, não sua desculpa. Quando um ramo artístico segue a mesma receita usada por outro muito afastado dele quanto aos recursos e ao conteúdo; quando, finalmente, os conflitos dramáticos das novelas radiofônicas tornam-se o exemplo pedagógico para a solução de dificuldades técnicas, que à maneira do jam 2 , são dominadas do mesmo modo que nos pontos culminantes da vida jazzística; ou quando a “adaptação” deturpadora de um movimento de Beethoven se efetua do mesmo modo que a adaptação de um romance de Tolstoi pelo cinema, o recurso aos desejos espontâneos do público torna- se uma desculpa esfarrapada. Uma explicação que se aproxima mais da realidade é a explicação a partir do peso específico do aparelho técnico e do pessoal, que devem todavia ser compreendidos, em seus menores detalhes, como partes do mecanismo econômico de seleção. Acresce a isso o acordo, ou pelo menos a determinação comum dos poderosos executivos, de nada produzir ou deixar passar que não corresponda a suas tabelas, à ideia que fazem dos consumidores e, sobretudo, que não se assemelha a eles próprios. Se, em nossa época, a tendência social objetiva se encarna nas obscuras intenções subjetivas dos diretores gerais, estas são basicamente as dos setores mais poderosos da indústria: aço, petróleo, eletricidade, química. Comparados a esses, os monopólios culturais 2 . Improvisação jazzística. (N. do Tradutor)

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DIALÉTICADOESCLARECIMENTO(1947)TheodorW.Adorno&MaxHorkheimer

IndústriaCultural:Oesclarecimentocomomistificaçãodasmassas

Naopiniãodossociólogos,aperdadoapoioqueareligiãofornecia,adissoluçãodos

últimosresíduospré-capitalistas,adiferenciaçãotécnicaesocialeaextremaespecializaçãolevaramaumcaoscultural.Ora,essaopiniãoencontraacadadiaumnovodesmentido.Poisaculturacontemporâneaconfereatudoumardesemelhança.Ocinema,orádioeasrevistasconstituem um sistema. Cada setor se harmoniza em si e todos entre si. Até mesmo asmanifestaçõesestéticasdetendênciaspolíticasopostasentoamomesmolouvordoritmodeaço. Os decorativos prédios administrativos e os centros de exposição industriais mal sedistinguem nos países autoritários e nos demais países. Os edifícios monumentais eluminososqueseelevamportodapartesãoossinaisexterioresdoengenhosoplanejamentodascorporaçõesinternacionais,paraoqualjáseprecipitavaalivreiniciativadosempresários,cujosmonumentossãoossombriosprédiosresidenciaisecomerciaisdenossasdesoladorascidades.Osprédiosmaisantigosemtornodoscentrosurbanosfeitosdeconcretojáparecemcortiços,favelaseosnovosbungalows1naperiferiadacidadejáproclamam,comoasfrágeisconstruçõesdasfeirasinternacionais,olouvordoprogressotécnicoeconvidamadescartá-loscomolatasdeconservaapósumbreveperíododeuso.Masosprojetosdeurbanizaçãoque,empequenosapartamentoshigiênicos,destinam-seaperpetuaroindivíduocomoseelefosse independente, submetem-no ainda mais profundamente a sua antítese, o poderabsolutodocapital.Todaculturademassaséidênticanossistemaseconômicosdominadospelopoderdosmonopólios,eoseuesqueleto,aarmaduraconceitual fabricadaporesses[monopólios],começaasedelinear.Osdirigentesnãoestãointeressadosemencobri-lo,seupodersefortalecequantomaisbrutalmenteeleseconfessa.Ocinemaeorádionãoprecisammais ser empacotados como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles autilizamcomoumaideologiadestinadaalegitimarolixoquepropositalmenteproduzem.Elesse definema simesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seusdiretoresgeraissuprimemtodadúvidaquantoànecessidadesocialdeseusprodutos.

Os interessados adoram dar uma explicação tecnológica da indústria cultural. Aparticipaçãodemilhõesemtalindústriaimporiamétodosdereproduçãoque,porseuturno,fazemcomqueinevitavelmente,emnumerososlocais,necessidadesiguaissejamsatisfeitascomprodutosestandardizados.Ocontrastetécnicoentrepoucoscentrosdeproduçãoeumarecepçãodispersacondicionariaaorganizaçãoeoplanejamentopeladireção.Ospadrõeseosclichêsteriamresultadooriginariamentedasnecessidadesdosconsumidores:eisporque

1 Bangalôs:EstilodecasaquesepopularizounosEUAnaprimeirametadedoséculoXX.Sãocasasdemadeirafáceisdeconstruirquepodemvirprontas(pré-moldadas).[Notadoprofessor]

são aceitos sem resistência. De fato, o que o explica é o círculo da manipulação e danecessidaderetroativa,noqualaunidadedosistemasetornacadavezmaiscoesa.Oquenãosedizéqueoterrenonoqualatécnicaconquistaseupodersobreasociedadeéopoderqueoseconomicamentemaisfortesexercemsobreasociedade.Aracionalidadetécnicahojeéaracionalidadedaprópriadominação.Elaéocarátercompulsivodasociedadealienadadesimesma.Osautomóveis,asbombaseocinemamantêmcoesootodoechegaomomentoem que seu elemento nivelador mostra sua força na própria injustiça à qual servia. Porenquanto,atécnicadaindústriaculturallevouapenasàpadronizaçãoeàproduçãoemsérie,sacrificandooquefaziaadiferençaentrealógicadaobraeadosistemasocial.Isso,porém,nãodeveseratribuídoanenhumaleievolutivadatécnicaenquantotal,masàsuafunçãonaeconomiaatual.

Apassagemdo telefoneao rádio separouclaramenteospapéis. Liberal,o telefonepermitia queos participantes ainda desempenhassemo papel do sujeito.Democrático, orádiotransforma-osatodosigualmenteemouvintes,paraentregá-losautoritariamenteaosprogramas, iguais uns aos outros, das diferentes estações. Não se desenvolveu nenhumdispositivoderéplicaeasemissõesprivadassãosubmetidasaocontrole.Elaslimitam-seaodomínioapócrifodos“amadores”,queaindaporcimasãoorganizadosdecimaparabaixo.Noquadro da rádio oficial, porém, todo traço de espontaneidadenopúblico é dirigido eabsorvido, numa seleção profissional, por caçadores de talentos, competições diante domicrofoneetodaespéciedeprogramaspatrocinados.Ostalentosjápertencemàindústriamuito antes de serem apresentados por ela: de outro modo não se integrariam tãofervorosamente.Aatitudedopúblicoque,pretensamenteedefato,favoreceosistemadaindústriaculturaléumapartedosistema,nãosuadesculpa.Quandoumramoartísticosegueamesmareceitausadaporoutromuitoafastadodelequantoaosrecursoseaoconteúdo;quando,finalmente,osconflitosdramáticosdasnovelasradiofônicastornam-seoexemplopedagógicoparaasoluçãodedificuldadestécnicas,queàmaneiradojam2,sãodominadasdomesmomodoquenospontosculminantesdavidajazzística;ouquandoa“adaptação”deturpadoradeummovimentodeBeethovenseefetuadomesmomodoqueaadaptaçãodeumromancedeTolstoipelocinema,orecursoaosdesejosespontâneosdopúblicotorna-se uma desculpa esfarrapada. Uma explicação que se aproxima mais da realidade é aexplicaçãoapartirdopesoespecíficodoaparelhotécnicoedopessoal,quedevemtodaviasercompreendidos,emseusmenoresdetalhes,comopartesdomecanismoeconômicodeseleção. Acresce a isso o acordo, ou pelomenos a determinação comum dos poderososexecutivos,denadaproduziroudeixarpassarquenãocorrespondaasuastabelas,à ideiaquefazemdosconsumidorese,sobretudo,quenãoseassemelhaaelespróprios.

Se,emnossaépoca, a tendência socialobjetiva seencarnanasobscuras intençõessubjetivas dos diretores gerais, estas são basicamente as dos setoresmais poderosos daindústria:aço,petróleo,eletricidade,química.Comparadosaesses,osmonopóliosculturais

2 .Improvisaçãojazzística.(N.doTradutor)

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sãofracosedependentes.Elestêmqueseapressaremdarrazãoaosverdadeirosdonosdopoder, para que sua esfera na sociedade demassas não seja submetida a uma série deexpurgos.Adependênciaemqueseencontraamaispoderosasociedaderadiofônicaemfacedaindústriaelétrica,ouadocinemarelativamenteaosbancos,caracterizaaesferainteira,cujossetoresindividuaisporsuavezseinterpenetramnumaconfusatramaeconômica.Tudoestátãoestreitamentejustapostoqueaconcentraçãodoespíritoatingeumvolumetalquelhepermitepassar por cimada linhadedemarcaçãoentre as diferentes firmas e setorestécnicos.Aunidadeimplacáveldaindústriaculturalatestaaunidadeemformaçãodapolítica.AsdistinçõesenfáticasquesefazementreosfilmesdascategoriasAeB,ouentreashistóriaspublicadasemrevistasdediferentespreços,têmmenosavercomseuconteúdodoquecomsuautilidadeparaaclassificação,organizaçãoecomputaçãoestatísticadosconsumidores.Para todos algo está previsto; para que ninguém escape, as distinções são acentuadas edifundidas.Ofornecimentoaopúblicodeumahierarquiadequalidadesserveapenasparauma quantificação ainda mais completa. Cada qual deve se comportar, como queespontaneamente,emconformidadecomseunível,previamentecaracterizadoporcertossinais,eescolheracategoriadosprodutosdemassafabricadaparaseutipo.Reduzidosaumsimplesmaterialestatístico,osconsumidoressãodistribuídosnosmapasdos institutosdepesquisa (que não se distinguem mais dos de propaganda) em grupos de rendimentosassinaladosporzonasvermelhas,verdeseazuis.

O esquematismo do procedimento mostra-se no fato de que os produtosmecanicamente diferenciados acabam por se revelar sempre como a mesma coisa. AdiferençaentreasérieChrysler,aFordeaGeneralMotorsénofundoumadistinçãoilusória,como já sabe toda criança interessada em modelos de automóveis. As vantagens edesvantagens que os conhecedores discutem servem apenas para perpetuar a ilusão daconcorrênciaedapossibilidadedeescolha.OmesmosepassacomasproduçõesdaWarnerBrothers e daMetro GoldwynMayer (MGM Studios). Atémesmo as diferenças entre osmodelos mais caros e mais baratos da mesma firma se reduzem cada vez mais: nosautomóveis, elas se reduzem ao número de cilindros, capacidade, novidade dos gadgets(acessórios),nosfilmesaonúmerodeestrelas,àexuberânciadatécnica,dotrabalhoedoequipamento,eaoempregodefórmulaspsicológicasmaisrecentes.Ocritériounitáriodevalor consiste na dosagem da produção ostensiva, do investimento pesado. Os valoresorçamentáriosdaindústriaculturalnadatêmavercomosvaloresobjetivos,comosentidodosprodutos.Osprópriosmeiostécnicostendemcadavezmaisaseuniformizar.Atelevisãovisaumasíntesedo rádioedocinema,queé retardadaenquantoos interessadosnãosepõemdeacordo,mascujaspossibilidadesilimitadasprometemaumentaroempobrecimento

3 Obra de arte total [Gesamtkunstwerk] é um conceito estético do romantismo alemão doséculoXIX.GeralmenteassociadoaocompositorRichardWagner,otermorefere-seàconjugaçãodemúsica,teatro,canto,dançaeartesplásticas,emumaúnicaobradearte.Wagneracreditavaque,naantigatragédiagrega,esseselementosestavamunidos,mas,emalgummomento,separaram-se.[Notadoprofessor]

dosmateriaisestéticosatalpontoqueaidentidademaldisfarçadadosprodutosdaindústriaculturalpodeviratriunfarabertamentejáamanhã—numarealizaçãodeescárniodosonhowagnerianodaobradeartetotal3.Aharmonizaçãodapalavra,daimagemedamúsicalograum êxito aindamais perfeito do que no Tristão4, porque os elementos sensíveis— queregistram sem protestos, todos eles, a superfície da realidade social— são em princípioproduzidos pelomesmo processo técnico e exprimem sua unidade como seu verdadeiroconteúdo.

Esse processo de elaboração integra todos os elementos da produção, desde aconcepçãodo romance (que já tinhaumolho voltadoparao cinema) atéoúltimoefeitosonoro.Eleéotriunfodocapitalinvestido.Gravarsuaonipotêncianocoraçãodosexploradosque se tornaram candidatos aoemprego comoaonipotência de seu senhor, eis aí o queconstituiosentidodetodosos filmes,não importaoenredoescolhidoemcadacasopeladireçãodeprodução.

Em seu lazer, as pessoas devem se orientar por essa unidade que caracteriza aprodução.Afunçãoqueoesquematismokantianoaindaatribuíaaosujeito,asaber,referirdeantemãoamultiplicidadesensívelaosconceitosfundamentais,étomadaaosujeitopelaindústria. O esquematismo é o primeiro serviço prestado por ela ao cliente. [...] Para oconsumidor,nãohánadamaisaclassificarquenãotenhasidoantecipadonoesquematismodaprodução.Nãosomenteostiposdascançõesdesucesso,osastros,asnovelasressurgemciclicamentecomoinvariantesfixos,masoconteúdoespecíficodoespetáculoéelepróprioderivadodelesesóvarianaaparência.Osdetalhestornam-sefungíveis.Abrevesequênciadeintervalos,fácildememorizar,comomostrouacançãodesucesso;ofracassotemporáriodoherói,queelesabesuportarcomobomperdedorqueé;aboapalmadaqueanamoradarecebedamãofortedoastro;suarudereservaemfacedaherdeiramimadasão,comotodosos detalhes, clichês prontos para serem empregados arbitrariamente aqui e ali ecompletamente definidos pela finalidade que lhes cabe no esquema. Confirmá-lo,compondo-o,eisaísuarazãodeser.Desdeocomeçodofilmejásesabecomoeletermina,quemé recompensado, e, aoescutar amúsica ligeira, oouvido treinadoéperfeitamentecapaz,desdeosprimeiroscompassos,deadivinharodesenvolvimentodotemaesente-sefelizquandoeletemlugarcomoprevisto.Onúmeromédiodepalavrasdashortstory(históriacurta)éalgoemquenãosepodemexer.Atémesmoaspiadas,efeitosedeixassãocalculados,assimcomooquadroemqueseinserem.Suaproduçãoéadministradaporespecialistas,esuapequenadiversidadepermitereparti-lasfacilmentenoescritório.

A indústria culturaldesenvolveu-se comopredomínioqueoefeito, aperformancetangíveleodetalhetécnicoalcançaramsobreaobra,queeraoutroraoveículodaIdeiae

4 ReferênciaaÓperadeWagner,TristãoeIsolda,consideradainovadora,naqualrevolucionaospadrõesmusicaisqueseentrelaçaatensãododramaencenadonopalco.[Notadoprofessor]

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comessafoiliquidada.Emancipando-se,odetalhetornara-serebeldee,doromantismoaoexpressionismo,afirmara-secomoexpressão indômita,comoveículodoprotestocontraaorganização.Oefeitoharmônicoisoladohaviaobliterado,namúsica,aconsciênciadotodoformal; a cor particular na pintura, a composição pictórica; a penetração psicológica noromance, a arquitetura. A tudo isso deu fim a indústria cultural mediante a totalidade.Emboranadamaisconheçaalémdosefeitos,elavencesuainsubordinaçãoeossubmeteàfórmula que substitui a obra. Ela atinge igualmente o todo e a parte.O todo se antepõeinexoravelmenteaosdetalhescomoalgosemrelaçãocomeles;assimcomonacarreiradeumhomemdesucesso,tudodeveservirdeilustraçãoeprova,aopassoqueelapróprianadamais é do que a somadesses acontecimentos idiotas. A chamada Ideia abrangente é umclassificadorqueserveparaestabelecerordem,masnãoconexão.Otodoeodetalheexibemosmesmostraços,namedidaemqueentreelesnãoexistenemoposiçãonemligação.Suaharmoniagarantidadeantemãoéumescárniodaharmoniaconquistadapelagrandeobradearteburguesa.NaAlemanha,apaz sepulcraldaditadura jápairava sobreosmaisalegresfilmesdademocracia.

Omundointeiroéforçadoapassarpelofiltrodaindústriacultural.Avelhaexperiênciadoespectadordecinema,quepercebearuacomoumprolongamentodofilmequeacaboudever,porqueestepretendeelepróprioreproduzirrigorosamenteomundodapercepçãocotidiana,tornou-seanormadaprodução.Quantomaioraperfeiçãocomquesuastécnicasduplicamosobjetosempíricos,maisfácilsetornahojeobterailusãodequeomundoexterioré o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme. Desde a súbitaintroduçãodofilmesonoro,areproduçãomecânicapôs-seaointeiroserviçodesseprojeto.Avidanãodevemais,tendencialmente,deixar-sedistinguirdofilmesonoro.Ultrapassandode longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao pensamento dosespectadoresnenhumadimensãonaqualestespossam,semperderofio,passearedivagarno quadro da obra fílmica permanecendo, no entanto, livres do controle de seus dadosexatos, e é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele para seidentificar imediatamente com a realidade. Atualmente, a atrofia da imaginação e daespontaneidadedoconsumidorculturalnãoprecisaserreduzidaamecanismospsicológicos.Osprópriosprodutos—eentreelesemprimeirolugaromaiscaracterístico,ofilmesonoro—paralisamessascapacidadesemvirtudedesuaprópriaconstituiçãoobjetiva.Sãofeitosdetal forma que sua apreensão adequada exige, é verdade, presteza, dom de observação,conhecimentosespecíficos,mastambémdetalsortequeproíbemaatividadeintelectualdoespectador,seelenãoquiserperderosfatosquedesfilamvelozmentediantedeseusolhos.Oesforço,contudo,está tãoprofundamente inculcadoquenãoprecisaseratualizadoemcadacasopara recalcara imaginação.Quemestá tãoabsorvidopelouniversodo filme—pelosgestos,imagensepalavras—,quenãoprecisalheacrescentaraquiloquefezdeleumuniverso, não precisa necessariamente estar inteiramente dominado no momento daexibiçãopelosefeitosparticularesdessamaquinaria.Osoutrosfilmeseprodutosculturaisquedeveobrigatoriamenteconhecer tornaram-no tão familiarizadocomosdesempenhosexigidos da atenção, que estes têm lugar automaticamente. A violência da sociedadeindustrial instalou-senoshomensdeumavezportodas.Osprodutosda indústriacultural

podemteracertezadequeatémesmoosdistraídosvãoconsumi-losabertamente.Cadaqualé um modelo da gigantesca maquinaria econômica que, desde o início, não dá folga aninguém, tanto no trabalho quanto no descanso, que tanto se assemelha ao trabalho. Épossíveldepreenderdequalquerfilmesonoro,dequalqueremissãoderádio,oimpactoquenão se poderia atribuir a nenhum deles isoladamente, mas só a todos em conjunto nasociedade.Inevitavelmente,cadamanifestaçãodaindústriaculturalreproduzaspessoastaiscomoasmodelouaindústriaemseutodo[...].

NenhumPalestrina[compositordorenascimentoitalianodemúsicasacradaIgrejanoséculoXVI]podiasermaispuristanaperseguiçãodadissonânciainesperadaenãoresolvidado que o arranjador de jazz na perseguição de todo desenvolvimento que não se ajusteexatamente ao seu jargão. Se ele adaptaMozart ao jazz, ele não omodifica apenas naspassagensemqueMozartseriadifícilousériodemais,mastambémnaspassagensemqueesteselimitavaaharmonizardeumamaneiradiferente,ouatémesmodeumamaneiramaissimplesdoqueécostumehoje.NenhumconstrutormedievalpoderiaterpassadoemrevistaostemasdosvitraiseesculturascommaiordesconfiançadoqueahierarquiadosestúdiosdecinemaaoexaminarumtemadeBalzacouVictorHugo,antesdelhedaro imprimaturdoaceitável. Nenhum concílio poderia ter designado o lugar a ser ocupado pelas caretasdiabólicasepelostormentosdosdanadosnaordodoamorsupremocommaiorcuidadodoqueadireçãodeproduçãoaocalculara torturadoheróiouaalturadaminissaiadaatrizprincipalnaladainhadofilmedesucesso.

O catálogo explícito e implícito, esotérico e exotérico, do proibido e do toleradoestende-seatalpontoqueelenãoapenascircunscreveamargemdeliberdade,mastambéma domina completamente. Os menores detalhes são modelados de acordo com ele.Exatamentecomoseuadversário,aartedevanguarda,écomasproibiçõesqueaindústriacultural fixa positivamente sua própria linguagem com sua sintaxe e seu vocabulário. Acompulsãopermanenteaproduzirnovosefeitos(que,noentanto,permanecemligadosaovelho esquema) serve apenas para aumentar, como uma regra suplementar, o poder datradiçãoaoqualpretendeescaparcadaefeitoparticular.Tudooquevemapúblicoestátãoprofundamentemarcadoquenadapodesurgirsemexibirdeantemãoostraçosdojargãoesemsecredenciaràaprovaçãoaoprimeiroolhar.Osgrandesastros,porém,osqueproduzemereproduzem,sãoaquelesquefalamojargãocomtantafacilidade,espontaneidadeealegriacomoseelefossealinguagemqueele,noentanto,hámuitoreduziuaosilêncio.Eisaíoidealdo natural neste ramo. Ele se impõe tanto mais imperiosamente quanto mais a técnicaaperfeiçoadareduzatensãoentreaobraproduzidaeavidacotidiana.Oparadoxodarotinatravestidadenaturezapodesernotadoemtodasasmanifestaçõesdaindústriacultural,eemmuitaseleétangível.Ummúsicodejazzquetenhadetocarumapeçademúsicaséria,porexemploomaissimplesminuetodeBeethoven,élevadoinvoluntariamenteasincopá-

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lo5,eécomumsorrisosoberanoqueele,porfim,aceitaseguirocompasso.Éessanatureza,complicadapelasexigênciassemprepresentesesempreexageradasdomediumespecífico,queconstituionovoestilo,asaber,“umsistemadanão-cultura,àqualsepodeconcederatémesmouma certa ‘unidadedeestilo’, se équeainda tem sentido falar emumabarbárieestilizada”6.

A obrigatoriedade universal dessa estilização pode superar a dos preceitos eproibiçõesoficiais.Atualmente,émaisfácilperdoaraumacançãodesucessoqueelanãoseatenhaaos32compassosouàextensãodointervalodenona,doqueaintrodução,pormaissecretoqueseja,deumdetalhemelódicoouharmônicoquenãoseconformeaoidioma.Acompulsão do idioma tecnicamente condicionado, que os astros e os diretores têm queproduzircomoalgodenaturalparaqueopovopossatransformá-loemseuidioma,temavercom nuanças tão finas que elas quase alcançam a sutileza dos meios de uma obra devanguarda,graçasàqualesta,aocontráriodaquelas,serveàverdade.Acapacidaderaradesatisfazerminuciosamenteasexigênciasdoidiomadanaturalidadeemtodosossetoresdaindústria cultural toma-se o padrão de competência. O que e como o dizem deve sercontrolável pela linguagem cotidiana, como no positivismo lógico. Os produtores sãoespecialistas.Oidiomaexigeamaisespantosaforçaprodutiva,queeleabsorveedesperdiça.Ele superou satanicamente adistinçãoprópriado conservadorismo cultural entreo estiloautêntico e o estilo artificial. Artificial poder-se-ia dizer um estilo imposto de fora àspotencialidadesdeumafigura.Naindústriacultural,porém,osmenoreselementosdotematêmorigemnamesmaaparelhagemqueo jargãonoqualéacolhido.Asbrigasemqueosespecialistas em arte se envolvem com o sponsor [patrocinador] e o censor sobre umamentira óbvia demais atestam menos uma tensão de valores estéticos do que umadivergênciade interesses.O renomedosespecialistas,ondeàs vezesainda se refugiaumresquíciodeautonomia,entraemconflitocomapolíticacomercialdaigrejaoudacorporaçãoqueproduzamercadoriacultural.Masotemajáestá,emvirtudedesuaprópriaessência,reificadocomoaceitávelantesmesmoqueasinstânciascompetentescomecemadisputar.Antes mesmo de ser adquirida por Zanuck [o manda chuva da FOX na época], SantaBernadette[religiosafrancesaquerenderiaumbest-sellerealgunsOscars]jáapareciaaosolhosdeseupoetacomoumapelopublicitárioparatodososconsórciosinteressados,eissoresultavadaspotencialidadesdafigura.Eisporqueoestilodaindústriacultural,quenãotemmaisdesepôràprovaemnenhummaterial refratário,éaomesmotempoanegaçãodoestilo. A reconciliaçãodouniversal e doparticular, da regra e da pretensão específica doobjeto,queéaúnicacoisaquepodedarsubstânciaaoestilo,évazia,porquenãochegamaisa haver uma tensão entre os pólos: os extremos que se tocam passaram a uma turvaidentidade,ouniversalpodesubstituiroparticularevice-versa.

No entanto, essa caricatura do estilo descobre algo acerca do estilo autêntico dopassado.Oconceitodoestiloautênticotorna-setransparentenaindústriaculturalcomoum

5 Sincopar:Suprimirumoumais fonemano interiordeumapalavra; suprimir,diminuir, reduzir;perdaintencionaldoritmoerecuperá-laimediatamente(gingado).

equivalente estético da dominação. A ideia do estilo como uma conformidade a leismeramenteestéticaséumafantasiaromânticaretrospectiva.Oqueseexprimenaunidadedoestilonãoapenasda IdadeMédiacristã,mas tambémdoRenascimento,éaestruturadiversificada do poder social, não a experiência obscura dos dominados que encerrava ouniversal.Osgrandesartistasjamaisforamaquelesqueencarnaramoestilodamaneiramaisíntegraemaisperfeita,masaquelesqueacolheramoestiloemsuaobracomoumaatitudeduracontraaexpressãocaóticadosofrimento, comoverdadenegativa.Noestilodesuasobras,aexpressãoconquistavaaforçasemaqualavidasediluisemserouvida.Asprópriasobras que se chamam clássicas, como amúsica deMozart, contêm tendências objetivasorientadasnumsentidodiversodoestiloqueelasencarnavam.

Até Schõnberg e Picasso, os grandes artistas conservaram a desconfiança contra oestiloe,nasquestõesdecisivas,seativerammenosaessedoqueàlógicadotema.Aquiloque os expressionistas e dadaístas chamaram polemicamente de inverdade do estiloenquanto tal triunfaatualmenteno jargão cantadodo crooner [cantordebandapop],nagraça consumadadaestrelado cinemae atémesmonaperfeiçãoda fotografia da choçamiseráveldeumcamponês.Emtodaobradearte,oestiloéumapromessa.Aoseracolhidonasformasdominantesdauniversalidade:alinguagemmusical,pictórica,verbal,aquiloqueé expresso pelo estilo deve se reconciliar com a Ideia da verdadeira universalidade. Essapromessadaobradeartedeinstituiraverdadeimprimindoafiguranasformastransmitidaspela sociedade é tão necessária quanto hipócrita. Ela coloca as formas reais do existentecomo algo de absoluto, pretextando antecipar a satisfação nos derivados estéticos delas.Nessamedida,apretensãodaarteésempreaomesmotempoideologia.

No entanto, é tão-somente neste confronto com a tradição, que se sedimenta noestilo,queaarteencontraexpressãoparaosofrimento.Oelementograçasaoqualaobradeartetranscendearealidade,defato,é inseparáveldoestilo.Contudo,elenãoconsistenarealizaçãodaharmonia—aunidadeproblemáticadaformaedoconteúdo,dointerioredoexterior,doindivíduoedasociedade—,masnostraçosemqueapareceadiscrepância,nonecessáriofracassodoesforçoapaixonadoembuscadaidentidade.Aoinvésdeseexporaesse fracasso,noqualoestilodagrandeobradearte sempresenegou,aobramedíocresempreseateveàsemelhançacomoutras,istoé,aosucedâneodaidentidade.Aindústriaculturalacabaporcolocaraimitaçãocomoalgodeabsoluto.Reduzidaaoestilo,elatraiseusegredo,aobediênciaàhierarquiasocial.Abarbárieestéticaconsumahojeaameaçaquesemprepairousobreascriaçõesdoespíritodesdequeforamreunidaseneutralizadasatítulodecultura.Falaremculturafoisemprecontrárioàcultura.Odenominadorcomum“cultura”já contém virtualmente o levantamento estatístico, a catalogação, a classificação queintroduz a cultura no domínio da administração. Só a subsunção industrializada econsequenteéinteiramenteadequadaaesseconceitodecultura.Aosubordinardamesmamaneira todosos setoresdaproduçãoespiritualaeste fimúnico:ocuparos sentidosdos

6 Nietzsche.UnzeitgemässeBetrachtungen.Werke(Grossoktavausgabe).Leipzig,1917.Vol.I,p.18710.

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homensdasaídadafábrica,ànoitinha,atéachegadaaorelógiodoponto,namanhãseguinte,com o selo da tarefa de que devem se ocupar durante o dia, essa subsunção realizaironicamenteo conceitoda culturaunitáriaqueos filósofosdapersonalidadeopunhamàmassificação.

Assimaindústriacultural,omaisinflexíveldetodososestilos,revela-sejustamentecomoametadoliberalismo,aoqualsecensuraafaltadeestilo.Nãosomentesuascategoriaseconteúdossãoprovenientesdaesferaliberal,tantodonaturalismodomesticadoquantodaoperetaedarevista:asmodernascompanhiasculturaissãoolugareconômicoondeaindasobrevive,juntamentecomoscorrespondentestiposdeempresários,umapartedaesferadecirculaçãojáemprocessodedesagregação.Aíaindaépossívelfazerfortuna,desdequenãosesejademasiadoinflexívelesemostrequeéumapessoacomquemsepodeconversar.Quemresistesópodesobreviverintegrando-se.Umavezregistradoemsuadiferençapelaindústriacultural,elepassaapertenceraelaassimcomooparticipantedareformaagráriaaocapitalismo.Arebeldiarealistatorna-seamarcaregistadadequemtemumanovaideiaatrazer à atividade industrial. A esfera pública da sociedade atual não admite nenhumaacusaçãoperceptívelemcujotomosbonsentendedoresnãovislumbremaproeminênciasobcujosignoorevoltadocomelessereconcilia.Assim,tambémsobrevivenaindústriaculturalatendênciadoliberalismoadeixarcaminholivreaseushomenscapazes.Abrircaminhoparaessescompetentesaindaéafunçãodomercado,quesoboutrosaspectosjáéextensamentereguladoecujaliberdadeconsistiamesmonaépocadeseumaiorbrilho—paraosartistasbemcomoparaoutrosidiotas—emmorrerdefome.Nãoéàtoaqueosistemadaindústriaculturalprovémdospaíses industriais liberais,eénelesquetriunfamtodososseusmeioscaracterísticos,sobretudoocinema,orádio,ojazzeasrevistas.Éverdadequeseuprojetoteveorigemnasleisuniversaisdocapital.

Acrençadequeabarbáriedaindústriaculturaléumaconsequênciadoculturallag7,doatrasodaconsciêncianorte-americanarelativamenteaodesenvolvimentodatécnica,éprofundamenteilusória.AtrasadarelativamenteàtendênciaaomonopólioculturalestavaaEuropapré-fascista.Maseraexatamenteesseatrasoquedeixavaaoespíritoumrestodeautonomiaeasseguravaaseusúltimosrepresentantesapossibilidadedeexistiraindaqueoprimidos.NaAlemanha,aincapacidadedesubmeteravidaaumcontroledemocráticoteveumefeitoparadoxal.Muitacoisaescapouaomecanismodemercadoquesedesencadeounos países ocidentais. O sistema educativo alemão juntamente com as universidades, osteatrosmais importantesnavidaartística,asgrandesorquestras,osmuseusestavamsobproteção.Ospoderespolíticos,oEstadoeasmunicipalidades,aosquaisessas instituiçõesforam legadas como herança do absolutismo, haviam preservado para elas uma partedaquelaindependênciadasrelaçõesdedominaçãovigentesnomercado,queospríncipesesenhoresfeudaishaviamasseguradoatéoséculodezenove.Issoresguardouaarteemsuafasetardiacontraoveredictodaofertaedaprocuraeaumentousuaresistênciamuitoacima

7 .Atrasocultural.(N.doT.)8 .A.deTocqueville,DelaDémocratieenAmérique.Paris,1864.Vol.II.P.1519 .Códigodecensurainstituídoem1934pelaindústriacinematográficadeHollywood.(N.doT.)

daproteçãodequedesfrutavadefato.Noprópriomercado,otributoaumaqualidadesemutilidadeeaindasemcursoconverteu-seempoderdecompra:époressarazãoqueeditoresliteráriosemusicaisdecentespuderamcultivarporexemploautoresquerendiampoucomaisdoqueorespeitodoconhecedor.Sóaobrigaçãodeseinseririncessantemente,sobamaisdrásticadasameaças,navidadosnegócioscomoumespecialistaestético impôsumfreiodefinitivo ao artista. Outrora, eles firmavam suas cartas como Kant e Hume— com um“humildeservidor”,aomesmotempoquesolapavamosfundamentosdotronoedoaltar.Hojechamamoschefesdegovernopeloprimeironomeeestãosubmetidosemcadaumdeseusimpulsosartísticosaojuízodeseuspatrõesiletrados.AanálisefeitahácemanosporTocqueville verificou-se integralmente nesse meio tempo. Sob o monopólio privado dacultura“atiraniadeixaocorpolivreevaidiretoàalma.Omestrenãodizmais:vocêpensarácomoeuoumorrerá.Elediz:vocêélivredenãopensarcomoeu:suavida,seusbens,tudovocêhá-deconservar,masdehojeemdiantevocêseráumestrangeiroentrenós”8.Quemnãoseconformaépunidocomumaimpotênciaeconômicaqueseprolonganaimpotênciaespiritual do individualista. Excluído da atividade industrial, ele terá sua insuficiênciafacilmente comprovada. Atualmente em fase de desagregação na esfera da produçãomaterial, omecanismo da oferta e da procura continua atuante na superestrutura comomecanismodecontroleemfavordosdominantes.Osconsumidoressãoostrabalhadoreseosempregados,oslavradoreseospequenosburgueses.AproduçãocapitalistaosmantémtãobempresosemcorpoealmaqueelessucumbemsemresistênciaaoqueIheséoferecido.Assimcomoosdominadossemprelevarammaisasériodoqueosdominadoresamoralquedeles recebiam, hoje em dia as massas logradas sucumbemmais facilmente ao mito dosucessodoqueosbemsucedidos.Elastêmosdesejosdeles.Obstinadamente,insistemnaideologiaqueasescraviza.Oamor funestodopovopelomalqueaele se faz chegaa seanteciparàastúciadasinstânciasdecontrole.ElechegaasuperarorigorismodoHays-Office9,quandoeste,nosgrandesmomentoshistóricos,incitoucontraopovoinstânciasmaisaltascomooterrordostribunais.A indústriaajusta-seaovotoqueelaprópriaconjurou.Oquerepresentafauxfrais10paraafirmaquenãopodeexplorarafundoocontratocomaestrelaemdecadênciasãocustoslegítimosparaosistemainteiro.Aoratificarcomrefinadaastúciaa demanda de porcarias, ele inaugura a harmonia total. A competência e a perícia sãoproscritas como arrogância de quem se achamelhor do que os outros, quando a culturadistribui tão democraticamente seu privilégio a todos. Em face da trégua ideológica, oconformismodoscompradores,assimcomoodescaramentodaproduçãoqueelesmantêmemmarcha,adquireboaconsciência.Elesecontentacomareproduçãodoqueésempreomesmo.

Essamesmiceregulatambémasrelaçõescomoquepassou.Oqueénovonafasedaculturademassasemcomparaçãocomafasedoliberalismoavançadoéaexclusãodonovo.Amáquinagirasemsairdolugar.Aomesmotempoquejádeterminaoconsumo,eladescarta

10 .Despesasacidentais,queseacrescentamàsdespesasprincipais.(N.doT.)

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oqueaindanãofoiexperimentadoporqueéumrisco.Écomdesconfiançaqueoscineastasconsideramtodomanuscritoquenãosebaseie,emumtranquilizantebest-seller.Porissoéquesefalacontinuamenteemideia,novidadeesurpresa,emalgoqueseriaaomesmotempofamiliaratodossemterjamaisocorrido.Aseuserviçoestãooritmoeadinâmica.Nadadeveficarcomoera,tudodeveestaremconstantemovimento.Poissóavitóriauniversaldoritmodaproduçãoereproduçãomecânicaéagarantiadequenadamudará,dequenadasurgiráque não se adapte. O menor acréscimo ao inventário cultural comprovado é um riscoexcessivo.Formasfixascomoosketch[esquete],ahistóriacurta,ofilmedetese,oêxitodebilheteriasãoamédia,orientadanormativamentee impostaameaçadoramente,dogostocaracterísticodoliberalismotardio.

Oentretenimentoeoselementosdaindústriaculturaljáexistiammuitotempoantesdela.Agora,sãotiradosdoaltoeniveladosàalturadostemposatuais.Aindústriaculturalpodeseufanardeterlevadoacabocomenergiaedetererigidoemprincípioatransferênciamuitasvezesdesajeitadadaarteparaaesferadoconsumo,deterdespidoadiversãodesuasingenuidadesinoportunasedeteraperfeiçoadoofeitiodasmercadorias.Quantomaistotalelasetornou,quantomaisimpiedosamenteforçouosoutsiderssejaadeclararfalênciasejaaentrarparaosindicato,maisfinaemaiselevadaelasetornou,paraenfimdesembocarnasíntesedeBeethovenedoCasinodeParis.Aarte“leve”comotal,adiversão,nãoéumaformadecadente.Quemalastimacomotraiçãodoidealdaexpressãopuraestáalimentandoilusões sobre a sociedade. A pureza da arte burguesa, que se hipostasiou como reino daliberdadeemoposiçãoàpráxismaterial,foiobtidadesdeoinícioaopreçodaexclusãodasclassesinferiores,maséàcausadestasclasses—averdadeirauniversalidade—queaartese mantém fiel exatamente pela liberdade dos fins da falsa universalidade. A arte sériarecusou-seàquelesparaquemasnecessidadeseapressãodavidafizeramdaseriedadeumescárnio e que têm todos os motivos para ficarem contentes quando podem usar comosimplespassatempootempoquenãopassamjuntoàsmáquinas.Aarteleveacompanhouaarteautônomacomoumasombra.Elaéamáconsciênciasocialdaarteséria.Oqueesta—emvirtudedeseuspressupostossociais—perdeuemtermosdeverdadeconfereàquelaaaparênciadeumdireitoobjetivo.Essadivisãoéelaprópriaaverdade:elaexprimepelomenosanegatividadedaculturaformadapelaadiçãodasduasesferas.Apiormaneiradereconciliaressaantíteseéabsorveraartelevenaartesériaouvice-versa.Maséistoquetentaaindústriacultural.Oqueésignificativonãoéaincultura,aburriceeaimpolideznuaecrua.Orefugode outrora foi eliminado pela indústria cultural graças à sua própria perfeição, graças àproibiçãoeàdomesticaçãododiletantismo,muitoemboraelanãocessedecometererroscrassos,semosquaisoníveldoestiloelevadoseriaabsolutamenteinconcebível.Masoqueénovoéqueos elementos irreconciliáveis da cultura, da arte e dadistração se reduzemmediante sua subordinação ao fim a uma única fórmula falsa: a totalidade da indústriacultural.Elaconsistenarepetição.Ofatodequesuasinovaçõescaracterísticasnãopassemdeaperfeiçoamentosdaproduçãoemmassanãoéexterioraosistema.Écomrazãoqueointeressedeinúmerosconsumidoresseprendeàtécnica,nãoaosconteúdosteimosamenterepetidos,ocosejáemparteabandonados.Opoderiosocialqueosespectadoresadoramémaiseficazmenteafirmadonaonipresençadoestereótipoimpostapelatécnicadoquenas

ideologias rançosas pelas quais os conteúdos efêmeros devem responder. Todavia, aindústriaculturalpermaneceaindústriadadiversão.Seucontrolesobreosconsumidoresémediadopeladiversão,enãoéporummerodecretoqueestaacabaporsedestruir,maspelahostilidadeinerenteaoprincípiodadiversãoportudoaquiloquesejamaisdoqueelaprópria.Comoaabsorçãode‘todasastendênciasdaindústriaculturalnacarneenosanguedopúblicose realizaatravésdoprocessosocial inteiro,asobrevivênciadomercadonesteramoatuafavoravelmentesobreessastendências.Ademandaaindanãofoisubstituídapelasimplesobediência.PoisagrandereorganizaçãodocinemapoucoantesdaPrimeiraGuerraMundial—condiçãomaterialdesuaexpansão—consistiuexatamentenaadaptaçãoconscienteàsnecessidades do público registradas com base nas bilheterias, necessidades essas que aspessoasmalacreditavamterquelevaremcontanaépocapioneiradocinema.Aindahojepensamassimoscapitãesda indústriacinematográfica—que,noentanto,sebaseiamnoexemplo dos sucessos mais ou menos fenomenais, e não, com muita sabedoria, nocontraexemplodaverdade.Suaideologiaéonegócio.Averdadeemtudoissoéqueopoderda indústria cultural provém de sua identificação com a necessidade produzida, não dasimples oposição a ela, mesmo que se tratasse de uma oposição entre a onipotência eimpotência.—A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela éprocuradaporquemquerescaparaoprocessodetrabalhomecanizado,parasepôrdenovoemcondiçõesdeenfrentá-lo.Mas,aomesmotempo,amecanizaçãoatingiuumtalpoderiosobre:apessoaemseulazeresobreasuafelicidade,eladeterminatãoprofundamenteafabricaçãodasmercadoriasdestinadasàdiversão,queestapessoanãopodemaisperceberoutra coisa senão as cópias que reproduzemo próprio processo de trabalho.O pretensoconteúdo não passa de uma fachada desbotada; o que fica gravado é a sequênciaautomatizadadeoperaçõespadronizadas.Aoprocessodetrabalhonafábricaenoescritóriosó se pode escapar adaptando-se a ele durante o ócio. Eis aí a doença incurável de todadiversão.Oprazeracabaporsecongelarnoaborrecimento,porquanto,paracontinuaraserumprazer, nãodevemais exigir esforço e, por isso, temde semover rigorosamentenostrilhosgastosdasassociaçõeshabituais.Oespectadornãodeveternecessidadedenenhumpensamentopróprio,oprodutoprescrevetodareação:nãoporsuaestruturatemática—quedesmoronanamedidaemqueexigeopensamento—masatravésdesinais.Toda ligaçãológica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada. Osdesenvolvimentosdevemresultartantoquantopossíveldasituaçãoimediatamenteanterior,e não da Ideia do todo. Não há enredo que resista ao zelo com que os roteiristas seempenhamemtirardecadacenatudooquesepodedepreenderdela.Porfim,opróprioesquemapareceperigosonamedidaemqueestabeleceumaconexãointeligível,pormaispobrequeseja,ondesóéaceitávelafaltadesentido.Muitasvezesserecusamaldosamenteàaçãoodesenvolvimentoqueospersonagenseotemaexigiamsegundooesquemaantigo.Aoinvésdisso,anovaetapaescolhidaéaideiaaparentementemaiseficazqueocorreaosroteiristasparaasituaçãodada.Umasurpresaestupidamentearquitetadairrompenaaçãofílmica.Atendênciadoprodutoarecorrermalignamenteaopuroabsurdo—umingredientelegítimodaartepopular,dafarsaedabufonariadesdeosseusprimórdiosatéChaplineosirmãosMarx—aparecedamaneiramaisevidentenosgênerosmenospretensiosos. Essa

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tendênciaimpôs-setotalmentenotextodanoveltysong,nofilmepolicialenoscartoons11.Exatamentecomoosobjetosdos filmescômicosede terror,opensamentoéeleprópriomassacrado e despedaçado. As novelty songs sempre viveram do desprezo pelo sentidointeligível, que elas — como predecessoras e sucessoras da psicanálise — reduzem àmonotonia da simbólica sexual.Os filmes policiais e de aventuras nãomais permitem aoespectadordehojeassistiràmarchadoesclarecimento.Mesmonasproduçõesdogênerodestituídasdeironia,eletemquesecontentarcomossustosproporcionadosporsituaçõesprecariamenteinterligadas.

Osfilmesdeanimaçãoeramoutroraexpoentesdafantasiacontraoracionalismo.Elesfaziam justiça aos animais e coisas eletrizados por sua técnica, dando aosmutilados umasegundavida.Hoje,apenasconfirmamavitóriadarazãotecnológicasobreaverdade.Atépoucosanosatrás,tinhamenredosconsistentesquesóseesfacelavamnoredemoinhodaperseguiçãodosúltimosminutosdofilme.Seuprocedimentoassemelhava-senissoaovelhocostumedacomédiapastelão.Masagoraasrelaçõestemporaisdeslocaram-se.Asprimeirassequênciasdofilmedeanimaçãoaindaesboçamumaaçãotemática,destinada,porém,aserdemolidanocursodofilme:sobagritariadopúblico,oprotagonistaéjogadoparacáeparalácomoumfarrapo.Assimaquantidadedadiversãoorganizadaconverte-senaqualidadedacrueldadeorganizada.Osautodesignadoscensoresdaindústriacinematográfica,ligadosaelaporumaafinidadeeletiva,vigiamaduraçãodocrimeaquesedáadimensãodeumacaçada.Ahilaridadepõefimaoprazerqueacenadeumabraçopoderiapretensamenteproporcionareadiaasatisfaçãoparaodiadopogrom.

Seosdesenhosanimadostêmoutroefeitoalémdehabituarossentidosaumnovoritmo,éodemartelaremtodososcérebrosaantigaverdadequeomautratocontínuo,oesfacelamentodetodaresistência individual,éacondiçãodavidanestasociedade.Assimcomo o Pato Donald mostra nos desenhos animados como os infelizes na vida real sãoespancadosparaqueosespectadoresseacostumemcomoqueelesmesmosrecebem.

O prazer da violência contra o personagem transforma-se em violência contra oespectador,odivertimentoconverte-seemtensão.Aoolhocansadonadadeveescapardoqueosespecialistaspuseramcomoestimulante,nãonosdevemosespantardiantedafinurada representação, havemos sempre de acompanhar e, por conta própria,mostrar aquelaprestezaqueacenaexpõeerecomenda.Assimsendoépelomenosduvidosoqueaindústriaculturalpreenchamesmoatarefadediversãodequeabertamentesevangloria.Seamaiorparte do rádio e do cinema emudecesse, com toda probabilidade os consumidores nãosentiriammuitosuafalta.Apassagemdaruaparaocinemajánãointroduzaosonho,eseasinstituições,porumcertoperíodo,nãomaisobrigassemaprópriapresençadoespectador,oimpulsoparautilizá-lonãoseriamuitoforte.12Tal fechamentonãoseconfundiriacomumreacionário"assaltoàsmáquinas".Desiludidosnãoficariamtantoosfanáticosquantoosque,deresto,aliseperdem,istoé,osvencidos.Paraadonadecasaaobscuridadedocinema,nãoobstanteosfilmesvisaremposteriormenteintegrá-la,representaumrefúgioemquepode

11 .Desenhosanimados.(N.doT.)12 Note-sepeladatadefeituradesteensaioqueatelevisãonãoestavaentãodifundida.(N.doT.)

estarsentadaporduashorasempaz,comooutrora,quandoaindahavianoitesdefesta,eelaaapreciaromundoalémdasjanelas.Osdesocupadosdasmetrópolesencontramamenidadenoverãoecalornoinvernonassalasdetemperaturaregulada.Poroutrolado,mesmoaoníveldoexistente,osistemainfladopelaindústriadosdivertimentosnãotoma,defato,maishumana a vida para os homens. A ideia de "exaurir" as possibilidades técnicas dadas, deutilizarplenamenteascapacidadesexistentesparaoconsumoestéticodemassa,fazpartedosistemaeconômicoqueserecusaautilizarsuascapacidadesquandosetratadeeliminarafome.

A indústria cultural não cessadeprivar seus consumidores quanto àquilo queestácontinuamentea lhesprometer.Apromissóriasobreoprazer,emitidapeloenredoepelaencenação,éprorrogadaindefinidamente:maldosamente,apromessaaqueafinalsereduzo espetáculo significa que jamais chegaremos à coisa mesma, que o convidado deve secontentar coma leiturado cardápio.Aodesejo,excitadopornomese imagens cheiosdebrilho, o que enfim se serve é o simples louvor do cotidiano cinzento ao qual ele queriaescapar.Deseulado,asobrasdeartetampoucoconsistiamemexibiçõessexuais.Todavia,apresentando a renúncia como algo de negativo, elas revogavam por assim dizer ahumilhaçãodapulsãoesalvavamaquiloaqueserenunciaracomoalgomediatizado.Eisaíosegredo da sublimação estética: apresentar a satisfação como uma promessa rompida. Aindústriaculturalnãosublima,masreprime.Expondorepetidamenteoobjetododesejo,obustonosuétereotorsonudoheróidesportivo,elaapenasexcitaoprazerpreliminarnãosublimadoqueohábitoda renúnciahámuitomutiloue reduziu aomasoquismo.Nãohánenhumasituaçãoeróticaquenãojunteàalusãoeàexcitaçãoa indicaçãoprecisadequejamaissedevechegaraesseponto.OHaysOfficeapenasconfirmaoritualqueaindústriaculturaldequalquermodojáinstaurou:odeTântalo[osofrimentodaquelequedesejaalgoaparentementepróximo,porém,inalcançável].Asobrasdeartesãoascéticasesempudor,aindústriaculturalépornográficaepuritana.Assim,elareduzoamoraoromance,e,umavezreduzido, muita coisa é permitida, até mesmo a libertinagem como uma especialidadevendávelempequenasdosesecomamarcacomercial“daring”13.Aproduçãoemsériedoobjeto sexualproduzautomaticamente seu recalcamento.Oastrodocinemadequemasmulheresdevemseenamorarédeantemão,emsuaubiquidade,suaprópriacópia.Osrostosdas moças já se assemelham em sua espontaneidade natural aos modelos que fizeramsucesso,seguindoospadrõesdeHollywood.Areproduçãomecânicadobelo—àqualserveafortiori,comsuaidolatriametódicadaindividualidade,aexaltaçãoreacionáriadacultura—nãodeixamaisnenhumamargemparaaidolatriainconscienteaqueseligavaobelo.Otriunfosobreobeloélevadoacabopelohumor,aalegriamaldosaqueseexperimentacomtodarenúnciabem-sucedida.Rimosdofatodequenãohánadadequeserir.Oriso,tantoorisodareconciliaçãoquantoorisodeterror,acompanhamsempreoinstanteemqueomedopassa. Ele indica a liberação, seja do perigo físico, seja das garras da lógica. O riso dareconciliaçãoécomoqueoecodofatodeterescapadoàpotência,orisomauvenceomedo

13 .Ousado,audacioso.(N.doT.)

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passandoparaoladodasinstânciasqueinspiramtemor.Eleéoecodapotênciacomoalgode inescapável. Fun 14 é um banho medicinal, que a indústria do prazer prescreveincessantemente. O riso torna-se nela o meio fraudulento de ludibriar a felicidade. Osinstantesdafelicidadenãooconhecem,sóasoperetasedepoisosfilmesrepresentamosexocomumagargalhadasonora.

Nafalsasociedade,orisoatacou—comoumadoença—afelicidade,arrastando-aparaaindignatotalidadedessasociedade.Rir-sedealgumacoisaésempreridicularizar,eavidaquerompecomorisoaconsolidaçãodoscostumes,énaverdadeavidaqueirrompebarbaramente, a autoafirmação que ousa festejar numa ocasião social sua liberação doescrúpulo.Umgrupodepessoasariréumaparódiadahumanidade.Sãomônadas,cadaumadasquaisseentregaaoprazerdeestardecididaatudoàscustasdosdemaisecomorespaldodamaioria.Suaharmoniaéacaricaturadasolidariedade.Aideologiadosconventos,segundoa qual não é a ascese, mas o ato sexual, que demonstra a renúncia a uma felicidadealcançável, é confirmada negativamente pela seriedade do amante que, cheio depressentimentos,atrelasuavidaao instantefugidio.A indústriaculturalcolocaarenúnciajovialnolugardador,queestápresentenaembriaguezcomonaascese.Aleisupremaéqueelesnãodevemanenhumpreçoatingirseualvo,eéexatamentecomissoqueelesdevem,rindo, se satisfazer. Cada espetáculo da indústria cultural vem mais uma vez aplicar edemonstrar de maneira inequívoca a renúncia permanente que a civilização impõe àspessoas.Oferecer-lhesalgoeaomesmotempoprivá-lasdissoéamesmacoisa.Éissooqueproporcionaaindústriadoerotismo.Éjustamenteporquenuncadeveterlugar,quetudogiraemtornodocoito.Assim,porexemplo,confessarnumfilmeailegitimidadedeumarelaçãosem impor aos culpados a correspondente punição é objeto de um tabu rigoroso.Contrariamenteaoquesepassanaeraliberal,aculturaindustrializadapodesepermitiraindignaçãocomocapitalismo;oqueelanãopodesepermitiréaabdicaçãodaameaçadecastração.Poisestaconstituiasuaprópriaessência.Essaameaçasobreviveaorelaxamentoorganizado dos costumes, quando se trata de homens uniformizados nos filmes alegresproduzidosparaeles,esobreviverá,porfim,narealidade.Oqueédecisivo,hoje,nãoéopuritanismo,masanecessidadeimanenteaosistemadenãosoltaroconsumidor,denãolhedar em nenhummomento o pressentimento da possibilidade da resistência. O princípioimpõequetodasasnecessidadeslhesejamapresentadascomopodendosersatisfeitaspelaindústriacultural,mas,poroutrolado,queessasnecessidadessejamdeantemãoorganizadasdetalsortequeelesevejanelasunicamentecomoumeternoconsumidor,comoobjetodaindústriacultural.Nãosomenteelalhefazcrerqueologroqueelaofereceseriaasatisfação,masdáaentenderalémdissoqueeleteria,sejacomofor,desearranjarcomoquelheéoferecido.Afugadocotidiano,queaindústriaculturalprometeemtodososseusramos,sepassadomesmomodoqueo raptodamoçanuma folhahumorística.A indústriaculturalvoltaaoferecercomoparaísoomesmocotidiano.Tantooescape,afugaeoraptoestãode

14 .Gracejo,brincadeira(N.doT.)

antemãodestinadosareconduziraopontodepartida.Adiversãofavorecearesignação,quenelaquerseesquecer.

Livrede toda restrição,oentretenimentonãoseriaameraantítesedaarte,masoextremoqueatoca.Quantomaisasérioelalevaacontradiçãocomavida,tantomaiselaseparece com a seriedade da vida, seu oposto; quanto mais trabalho emprega para sedesenvolveremtodasuapurezaapartirdaleidesuaprópriaforma,maiselavoltaaexigirtrabalhodoentendimento,quandoelaqueria justamentenegaropesodeste trabalho.Opuro entretenimento em sua lógica, o abandono descontraído à multiplicidade dasassociaçõeseaoabsurdofeliz,écerceadopeloentretenimentocorrente:eleéestorvadopelaimitação de um sentido coerente que a indústria cultural teima em acrescentar a seusprodutosedequeela,aomesmotempo,abusaespertamentecomoummeropretextoparaaapariçãodosastros.Nãosãoosguizosdacarapuçadobufãoquesepõematilintar,masomolho de chaves da razão capitalista, que mesmo na tela liga o prazer aos projetos deexpansão.Ologro,pois,nãoestáemqueaindústriaculturalproponhadiversões,masnofatodequeelaestragaoprazercomoenvolvimentodeseutinocomercialnosclichêsideológicosdaculturaemviasdeseliquidarasimesma.Aindústriaculturalestácorrompida,nãocomoumaBabilôniadopecado,esimcomocatedraldodivertimentodealtonível.Ainverdadeéinerente a um espírito que foi recebido pronto da arte e da ciência. A indústria culturalconservao vestígiodealgomelhornos traçosqueaaproximamdocirco.Masosúltimosrefúgios da arte circense que perdeu a alma, mas que representa o humano contra omecanismosocial,sãoinexoravelmentedescobertosporumarazãoplanejadora,queobrigatodasascoisasaprovaremsuasignificaçãoeeficácia.Elafazcomqueosem-sentidonabasedaescaladesapareçatãoradicalmentequanto,notopo,osentidodasobrasdearte.

Afusãoatualdaculturaedoentretenimentonãoserealizaapenascomodepravaçãodacultura,masigualmentecomoespiritualizaçãoforçadadadiversão.

Quantomaisfirmessetornamasposiçõesdaindústriacultural,maissumariamenteela pode proceder com as necessidades dos consumidores, produzindo-as, dirigindo-as,disciplinando-ase, inclusive suspendendoadiversão:nenhumabarreira seeleva contraoprogresso cultural. Mas essa tendência já é imanente ao próprio princípio da diversãoenquanto princípio burguês esclarecido. Mas a afinidade original entre os negócios e adiversãomostra-seemseuprópriosentido:aapologiadasociedade.Divertir-sesignificaestardeacordo. Issosóépossível se issose isoladoprocessosocialemseu todo, se idiotizaeabandonadesdeoinícioapretensãoinescapáveldetodaobra,mesmodamaisinsignificante,de refletir em sua limitação o todo. Divertir significa sempre: não ter que pensar nisso,esquecerosofrimentoatémesmoondeeleémostrado.Aimpotênciaéasuaprópriabase.Énaverdadeumafuga,masnão,comoafirma,umafugadarealidaderuim,masdaúltimaideiaderesistênciaqueessarealidadeaindadeixasubsistir.Aliberaçãoprometidapeladiversãoéaliberaçãodopensamentocomonegação.Odescaramentodaperguntaretórica:“Masoqueé que as pessoas querem?” consiste em dirigir-se às pessoas como sujeitos pensantes,

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quandosuamissãoespecíficaédesacostumá-lasdasubjetividade.Mesmoquandoopúblicoserebelacontraaindústriacultural,essarebeliãoéoresultadológicododesamparoparaoqualelaprópriaoeducou.Todavia, tornou-secadavezmaisdifícilpersuadiraspessoasacolaborar.Oprogressoda imbecializaçãonãopodeficaratrásdosimultâneoprogressodainteligência.Naeradaestatística,asmassasestãomuitoescaldadasparaseidentificarcomomilionárionatela,masmuitoembrutecidasparasedesviarummilímetrosequerdaleidograndenúmero.Aideologiaseescondenocálculodeprobabilidade.Afelicidadenãodevechegarparatodos,masparaquemtiraasorte,oumelhor,paraquemédesignadoporumapotência superior — na maioria das vezes a própria indústria do prazer, que éincessantemente apresentada como estando em busca dessa pessoa. As personagensdescobertaspeloscaçadoresdetalentosedepoislançadasemgrandeescalapelosestúdiossãotiposideaisdanovaclassemédiadependente.Aestrelinhadevesimbolizaraempregadadeescritório,masdetalsorteque,diferentementedaverdadeira,ograndevestidodenoitejáparecetalhadoparaela.Assim,elafixaparaaespectadora,nãoapenasapossibilidadedetambémvirasemostrarnatela,masaindamaisenfaticamenteadistânciaentreelas.Sóumapodetirarasortegrande,sóumpodesetornarcélebre,emesmosetodostêmamesmaprobabilidade,estaéparacadaumtãomínimaqueémelhorriscá-ladevezeregozijar-secomafelicidadedooutro,quepoderiaserelepróprioeque,noentanto,jamaisé.Mesmoquando a indústria cultural ainda convida a uma identificação ingênua, esta se vêimediatamente desmentida. Ninguém pode mais se perder de si mesmo. Outrora, oespectadorvianofilme,nocasamentorepresentadonofilmeoseuprópriocasamento.Agoraosfelizardosexibidosnatelasãoexemplarespertencendoaomesmogêneroaquepertencecadapessoadopúblico,masestaigualdadeimplicaaseparaçãoinsuperáveldoselementoshumanos.Asemelhançaperfeitaéadiferençaabsoluta.Aidentidadedogêneroproíbeadoscasos.Aindústriaculturalrealizoumaldosamenteohomemcomosergenérico.Cadaumétão-somenteaquilomedianteoquepodesubstituirtodososoutros:eleéfungível,ummeroexemplar.Elepróprio,enquantoindivíduo,éoabsolutamentesubstituível,opuronada,eéissomesmoqueelevemaperceberquandoperdecomotempoasemelhança.Éassimquesemodificaaestruturainternadareligiãodosucesso,àqual,aliás,aspessoaspermanecemtãorigidamenteagarradas.Ocaminhoperasperaadastra15,quepressupõeapenúriaeoesforço,ésubstituídocadavezmaispelapremiação.Apartedoacasocegoqueintervémnaescolharotineiradacançãoqueseprestaaosucesso,dafiguranteaptaaopapeldaheroína,édecantadapelaideologia.Osfilmesdãoênfaseaoacaso.Obrigandoseuspersonagens,comexceção do vilão, a uma igualdade essencial, ao ponto de excluir as fisionomias rebeldesfacilita-seaprincípio,éverdade,avidadoespectador.Assegura-seaelesqueabsolutamentenãoprecisamserdiferentesdoquesãoequepoderiamteromesmosucessosemexigirdelesaquiloquesesabemincapazes.

As reportagens detalhadas sobre as viagens tão brilhantes e tãomodestas do felizganhador do concurso organizado pela revista — de preferência uma datilógrafa que

15 .Peloscaminhosásperosaosastros(N.doT.)

provavelmente ganhou o concurso graças a suas relações com as sumidades locais —refletemaimpotênciadetodos.Elesnãopassamdeumsimplesmaterial,atalpontoqueosquedispõemdelespodemelevarumdelesaoscéusparadepoisjogá-lofora:queelefiquemofandocomseusdireitoseseutrabalho.Aindústriasóseinteressapeloshomenscomoclienteseempregadose,defato,reduziuahumanidadeinteira,bemcomocadaumdeseuselementos, a essa fórmula exaustiva. Conforme o aspecto determinante em cada caso, aideologia dá ênfase ao planejamento ou ao acaso, à técnica ou à vida, à civilização ou ànatureza.Enquantoempregados,elessãolembradosdaorganizaçãoracionaleexortadosaseinserirnelacombom-senso.Enquantoclientes,verãoocinemaeaimprensademonstrar-lhes,combaseemacontecimentosdavidaprivadadaspessoas,aliberdadedeescolha,queéoencantodoincompreendido.Objetoséquecontinuarãoaseremambososcasos.

Quantomenospromessasaindústriaculturaltemafazer,quantomenoselaconseguedar uma explicação da vida como algo dotado de sentido, mais vazia torna-senecessariamenteaideologiaqueeladifunde.Adecepçãodaesperançadeganharaviagemem torno do mundo corresponde a exatidão as regiões que se atravessariam durante aviagem.OqueseoferecenãoéaItália,masaprovavisíveldesuaexistência.Ocinemapodese permitir mostrar Paris, onde a jovem norte-americana pensa realizar suas aspirações,comoumapaisagemermaedesolada,afimdeempurrá-laaindamaisinexoravelmenteparaojovemevivocompatriota,queelapoderiaterconhecidoemcasa.Quetudoissocontinue,que o sistema—mesmo em sua fasemais recente— reproduza a vida daqueles que oconstituem,aoinvésdeeliminá-loslogo,émaisumarazãoparaquesereconheçaseusentidoe seumérito. O simples fato de continuar a existir e continuar a operar converte-se emjustificaçãodapermanênciacegadosistemae,atémesmo,desuaimutabilidade.

Háumacoisa,porém,apropósitodaqualaideologiaocanãoadmitebrincadeiras:aprevidência social. “Ninguém deve sentir fome e frio; quem sentir vai para o campo deconcentração”essapilhériadaAlemanhahitleristapoderiaestarabrilharcomoumamáximasobretodososportaisdaindústriacultural.Elapressupõecomastutaingenuidadeoestadoquecaracterizaasociedademaisrecente:ofatodequeelasabemuitobemreconhecerosseus.A liberdade formalde cadaumestágarantida.Ninguém temque se responsabilizaroficialmentepeloquepensa.Emcompensação,cadaumsevêdesdecedonumsistemadeigrejas,clubes,associaçõesprofissionaiseoutrosrelacionamentos,querepresentamomaissensível instrumentodecontrolesocial.Quemnãoquiser searruinardeve tomarcuidadoparaque,pesadosegundoaescaladesseaparelho,nãosejajulgadolevedemais.Deoutromodo,daráparatrásnavidaeacabaráporirapique.Ofatodequeemtodacarreira,massobretudo nas profissões liberais, os conhecimentos especializados estão, via de regra,ligadosaumamentalidadedeconformismoàsnormasensejafacilmenteailusãodequeosconhecimentos especializados são os únicos que contam. Na verdade, faz parte doplanejamentoirracionaldessasociedadereproduzirsofrivelmentetão-somenteasvidasdeseusfiéis.Aescaladopadrãodevidacorrespondecombastanteexatidãoàligaçãointerna

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dasclassesedosindivíduoscomosistema.Pode-seconfiarnomanager,econfiáveltambéméopequenoempregado.Quemtemfrioefome,sobretudoquandojáteveboasperspectivas,estámarcado.Eleéumoutsider e,abstração feitadecertoscrimescapitais,a culpamaisgraveéadeserumoutsider[marginal].Nosfilmes,eleseránomelhordoscasosumindivíduooriginal,objetodeumhumorismomaldosamenteindulgente.Namaioriadoscasos,seráovilão, identificadocomotaldesdesuaprimeiraaparição,muitoantesqueaaçãotenhasedesenvolvido o suficiente para não darmargem ao erro de acreditar, ainda que por uminstanteapenas,queasociedadesevoltacontraaspessoasdeboavontade.Defato,oquesedesenvolveatualmenteéumaespéciedeEstadodebem-estarsocialemgrandeescala.Paraafirmarsuaprópriaposição,aspessoasconservamemmovimentoaeconomianaqual,graçasàtécnicaextremamentedesenvolvida,asmassasdoprópriopaísjásão,emprincípio,supérfluasenquantoprodutoras.Ostrabalhadores,quesãonaverdadeaquelesqueprovêma alimentação dos demais, são alimentados, como quer a ilusão ideológica, pelos chefeseconômicos, que são na verdade os alimentados. A posição do indivíduo torna-se assimprecária. No liberalismo, o pobre era tido como preguiçoso, hoje ele é automaticamentesuspeito.O lugardequemnãoéobjetodaassistênciaexternadeninguéméocampodeconcentração,oupelomenosoinfernodotrabalhomaishumildeedosslums.

[...]Naindústria,oindivíduoéilusórionãoapenasporcausadapadronizaçãodomodode

produção.Elesóétoleradonamedidaemquesuaidentidadeincondicionalcomouniversalestáforadequestão.Daimprovisaçãopadronizadanojazzatéostiposoriginaisdocinema,que têmdedeixara franjacair sobreosolhosparaseremreconhecidoscomotais,oquedomina é a pseudo-individualidade. O individual reduz-se à capacidade do universal demarcartãointegralmenteocontingentequeelepossaserconservadocomoomesmo.Assim,porexemplo,oardeobstinadareservaouaposturaelegantedoindivíduoexibidonumacenadeterminada é algo que se produz em série. As particularidades do eu são mercadoriasmonopolizadasesocialmentecondicionadas,quesefazempassarporalgodenatural.Elassereduzem ao bigode, ao sotaque francês, à voz grave da mulher de vida livre: são comoimpressõesdigitaisemcédulasdeidentidadeque,nãofosseporelas,seriamrigorosamenteiguaisenasquaisavidaea fisionomiadetodosos indivíduos—daestreladocinemaaoencarcerado—setransformam,emfacedopoderiodouniversal.Apseudo-individualidadeé um pressuposto para compreender e tirar da tragédia sua virulência: é só porque osindivíduosnãosãomaisindivíduos,massimmerasencruzilhadasdastendênciasdouniversal,queépossívelreintegrá-lostotalmentenauniversalidade.Aculturademassasrevelaassimocaráterfictícioqueaformadoindivíduosempreexibiunaeradaburguesia,eseuúnicoerroé vangloriar-se por essa duvidosa harmonia do universal e do particular. O princípio daindividualidade estava cheio de contradições desde o início. Por um lado, a individuaçãojamaischegouaserealizardefato.Ocaráterdeclassedaautoconservaçãofixavacadaumnoestágiodomerosergenérico.Todopersonagemburguêsexprimia,apesardeseudesvioegraçasjustamenteaele,amesmacoisa:adurezadasociedadecompetitiva.Oindivíduo,sobre o qual a sociedade se apoiava, trazia em si mesmo sua mácula; em sua aparenteliberdade,eleeraoprodutode suaaparelhagemeconômicae social.Opoder recorriaàs

relaçõesdepoderdominantesquandosolicitavaojuízodaspessoasaelassubmetidas.Aomesmotempo,asociedadeburguesatambémdesenvolveu,emseuprocesso,oindivíduo.Contraavontadedeseussenhores,atécnicatransformouoshomensdecriançasempessoas.Mascadaumdessesprogressosda individuaçãosefezàcustada individualidadeemcujonometinhalugar,edelesnadasobrousenãoadecisãodeperseguirapenasosfinsprivados.Oburguêscujavidasedivideentreonegócioeavidaprivada,cujavidaprivadasedivideentreaesferadarepresentaçãoeaintimidade,cujaintimidadesedivideentreacomunidademal-humoradadocasamentoeoamargoconsolodeestarcompletamentesozinho,rompidoconsigoecomtodos,jáévirtualmenteonazistaqueaomesmotemposedeixaentusiasmaresepõeapraguejar,ouohabitantedasgrandescidadesdehoje,quesópodeconceberaamizade como social contact, como o contato social de pessoas que não se tocamintimamente. É só por isso que a indústria cultural pode maltratar com tanto sucesso aindividualidade,porquenelasempresereproduziuafragilidadedasociedade.Nosrostosdosheróisdocinemaoudaspessoasprivadas,confeccionadossegundoomodelodascapasderevistas,dissipa-seumaaparêncianaqual,deresto,ninguémmaisacredita,eoamorporessesmodelosdeheróisnutre-sedasecretasatisfaçãodeestarafinaldispensadodeesforçodaindividuaçãopeloesforço(maispenoso,éverdade)daimitação.Évãaesperançadequeapessoacontraditóriaemsimesmaeemviadedesintegraçãonãoconseguirásobreviveramuitas gerações, que o sistema tem que desmoronar com essa cisão psicológica, que asubstituição mentirosa do individual pelo estereotipado há de se tornar por si mesmainsuportávelaoshomens.DesdeoHamletdeShakespeare,jásedescobriraqueaunidadedapersonalidadenãopassadeumaaparência.Hoje,asfisionomiasproduzidassinteticamentemostramquejáseesqueceuatémesmodequejáhouveumanoçãodavidahumana.

Aheroificaçãodoindivíduomedianofazpartedocultodobarato.Asestrelasmaisbempagasassemelham-seareclamespublicitáriosparaartigosdemarcanãoespecificada.Nãoéàtoaquesãoescolhidasmuitasvezesentreosmodeloscomerciais.Ogostodominantetomaseuidealdapublicidade,dabelezautilitária.AssimafrasedeSócrates,segundoaqualobeloéoútil,acabouporserealizardemaneirairônica.Ocinemafazpropagandadotrusteculturalenquanto totalidade; no rádio, asmercadorias em função das quais se cria o patrimônioculturaltambémsãorecomendadasindividualmente.Porcinquentacentavosvê-seofilmedemilhõesdedólares;pordezrecebe-seagomademascarportrásdaqualseencontratodaariquezadomundoecujavendaserveparaqueestacresçaaindamais.Inabsentia,estandotodos sintonizados, investigam-se as finançasdos exércitos, semque se tolere, todavia, aprostituiçãono interior dopaís. As “melhores orquestras” (quenãoo são) são entreguesgrátis a domicílio. Tudo isso é uma paródia do reino da carochinha, assim como a“comunidade da nação” é uma paródia da comunidade humana. Todos são servidos dealguma coisa. A constatação de um espectador provinciano do velhoMonopoltheater deBerlim:“Éespantosooqueseoferecepelopreçodeumaentrada!”Hámuitofoiretomadapelaindústriaculturaletransformadanasubstânciadaprópriaprodução.Estanãoapenasseacompanhasempredotriunfoconsistindonosimplesfatodeserpossível,maséemlargamedidaesseprópriotriunfo.“Show”significamostraratodosoquesetemeoquesepode.Atéhoje,eleaindaéumafeira,sóqueincuravelmenteatingidopelomaldacultura.Mascom

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abaratezadosprodutosdeluxofabricadosemsérieeseucomplemento,afraudeuniversal,o carátermercantil daprópria arte está emviasde semodificar.Onovonãoéo carátermercantildaobradearte,masofatodeque,hoje,elesedeclaradeliberadamentecomotal,eéofatodequeaarterenegasuaprópriaautonomia,incluindo-seorgulhosamenteentreosbensdeconsumo,quelheconfereoencantodanovidade.Aartecomoumdomínioseparadosó foi possível, em todos os tempos, como arte burguesa. Até mesmo sua liberdade,entendidacomonegaçãodafinalidadesocial,talcomoestaseimpõeatravésdomercado,permaneceessencialmenteligadaaopressupostodaeconomiademercado.Aspurasobrasde arte, quenegamo carátermercantil da sociedadepelo simples factode seguirem suaprópria lei,sempreforamaomesmotempomercadorias:atéoséculodezoito,aproteçãodospatronospreservavaosartistasdomercado,mas,emcompensação,elesficavamnestamesmamedidasubmetidosaseuspatronoseaosobjetivosdestes.Afaltadefinalidadedagrandeobra de artemoderna vive do anonimato domercado. As demandas domercadopassamportantasmediaçõesqueoartistaescapaaexigênciasdeterminadas,masemcertamedidaapenas,éverdade,poisaolongodetodaahistóriaburguesaestevesempreassociadoàsuaautonomia,enquantoautonomiameramentetolerada,umaspectodeinverdadequeacabouporsedesenvolvernosentidodeumaliquidaçãosocialdaarte.Oprincípiodaestéticaidealista,afinalidadesemfim,éainversãodoesquemaaqueobedecesocialmenteaarteburguesa:a faltade finalidadeparaos finsdeterminadospelomercado.Para concluir,naexigênciadeentretenimentoerelaxamento,ofimabsorveuoreinodafaltadefinalidade.Mas,namedidaemqueapretensãodeutilizaraartesetornatotal,começaasedelinearumdeslocamentonaestruturaeconômicainternadasmercadoriasculturais.Poisautilidadequeos homens aguardam da obra de arte na sociedade antagonista é justamente, em largamedida, a existência do inútil, que, no entanto, é abolido pela subsunção à utilidade.Assimilando-setotalmenteànecessidade,aobradeartedefraudadeantemãooshomensjustamentedaliberaçãodoprincípiodautilidade,liberaçãoessaqueaelaincumbiarealizar.Oquesepoderiachamardevalordeusonarecepçãodosbensculturaisésubstituídopelovalordetroca;aoinvésdoprazer,oquesebuscaéassistireestarinformado,oquesequeréconquistarprestígioenãosetornarumconhecedor.Oconsumidortorna-seaideologiadaindústriadadiversão,decujasinstituiçõesnãoconsegueescapar.Tudoépercebidodopontodevistadapossibilidadedeservirparaoutracoisa,pormaisvagaquesejaapercepçãodessacoisa.Tudosótemvalornamedidaemquesepodetrocá-lo,nãonamedidaemqueéalgoemsimesmo.Ovalordeusodaarte,seuser,éconsideradocomoumfetiche,eofetiche,aavaliaçãosocialqueéerroneamenteentendidacomohierarquiadasobrasdearte—torna-se seu único valor de uso, a única qualidade que elas desfrutam. E assim que o carátermercantildaartesedesfazaoserealizarcompletamente.Elaéumgênerodemercadorias,preparadas,computadas,assimiladasàprodução industrial,compráveise fungíveis,masaarte como um gênero de mercadorias, que vivia de ser vendida e, no entanto, de serinvendível, torna-se algo hipocritamente invendível, tão logo o negócio deixa de ser

16 .Esteconcertoélevadoatévocêcomoumserviçopúblico.(N.doT.)

meramente sua intenção e passa a ser seu único princípio. O concerto de Toscaninitransmitidopelorádioé,decertamaneira,invendível.Édegraçaqueoescutamos,ecadanota da sinfonia é como que acompanhada de um sublime comercial anunciando que asinfonia não é interrompida por comerciais — “this concert is brought to you as publicservice”16. A ilusão realiza-se indiretamente através do lucro de todos os fabricantes deautomóveisesabãoreunidos,quefinanciamasestações,enaturalmenteatravésdoaumentode vendas da indústria elétrica que produz os aparelhos de recepção. O rádio, esseretardatário progressista da cultura de massas, tira todas as consequências que opseudomercado do cinema por enquanto recusa a este. A estrutura técnica do sistemaradiofônicocomercial torna-o imuneadesvios liberaiscomoaquelesqueos industriaisdocinemaaindapodemsepermitiremseuprópriosetor.Eleéumempreendimentoprivadoque já representa o todo soberano, no que se encontra um passo à frente das outrascorporações.Marlboro é apenas o cigarro da nação,mas o rádio é o porta-voz dela. Aointegrartodososprodutosculturaisnaesferadasmercadorias,orádiorenunciatotalmenteavendercomomercadoriasseusprópriosprodutosculturais.

NosEstadosUnidos,elenãocobranenhumataxadopúblico.Destemodo,eleassumeaformadeumaautoridadedesinteressada,acimadospartidos,queécomoquetalhadasobmedidaparaofascismo.Orádiotorna-seaíavozuniversaldoFührer[noBrasil,adoGetúlioVargas];nosalto-falantesderua,suavozsetransformanouivodassirenesanunciandoopânico,dasquais,aliás,apropagandamodernaédifícildesedistinguir.Osprópriosnazistassabiamqueorádioderaformaàsuacausa,domesmomodoqueaimprensafizeraparaaReforma[Protestante].OcarismametafísicodoFührer,inventadopelasociologiadareligião,acabouporserevelarcomoasimplesonipresençadeseusdiscursosradiofônicos,quesãouma paródia demoníaca da onipresença do espírito divino. O fato gigantesco de que odiscursopenetraemtodapartesubstituiseuconteúdo,assimcomoofavorquenosfazemcom a transmissão do concerto de Toscanini toma o lugar de seu conteúdo, a sinfonia.Nenhumouvinteconseguemaisapreenderseuverdadeirosentido,enquantoodiscursodoFühreré,dequalquermodo,amentira.Colocarapalavrahumanacomoalgodeabsoluto,comoumfalsoimperativo,éatendênciaimanentedorádio.Arecomendaçãotransforma-seemumcomando.Aapologiadasmercadorias, sempreasmesmas sobdiversasmarcas,oelogiodolaxante,cientificamentefundamentado,navozadocicadadolocutortornaram-se,jáporsuacretinice,insuportáveis.Umbelodia,apropagandademarcasespecíficas,istoé,odecretodaproduçãoescondidonaaparênciadapossibilidadedeescolha,podeacabar setransformando no comando aberto do Führer. Numa sociedade dominada pelos grandesbandidosfascistas,quesepuseramdeacordosobreapartedoprodutosocialaserdestinadoàs primeiras necessidades do povo, pareceria enfim anacrônico convidar ao uso de umdeterminadosabãoempó.OFührerordenademaneiramaismodernaesemmaiorcerimôniatantooholocaustoquantoacompradebugigangas.

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Atualmente,asobrasdeartesãoapresentadascomoossloganspolíticose,comoeles,inculcadasaumpúblicorelutanteapreçosreduzidos.Elastornaram-setãoacessíveisquantoosparquespúblicos.Mas issonão significaque,aoperderemocaráterdeumaautênticamercadoria, estariampreservadasna vidadeuma sociedade livre,mas, ao contrário,queagoracaiutambémaúltimaproteçãocontrasuadegradaçãoembensculturais.Aeliminaçãodoprivilégiodaculturapelavendaemliquidaçãodosbensculturaisnãointroduzasmassasnas áreas de que eram antes excluídas, mas serve, ao contrário, nas condições sociaisexistentes, justamente para a decadência da cultura e para o progresso da incoerênciabárbara.Quem,noséculoXIXounoiníciodoXX,desembolsavaumacertaquantiaparaverumapeçateatralouparaassistiraumconcertodispensavaaoespetáculopelomenostantorespeitoquantoaodinheirogasto.Oburguêsquepretendesseauferiralgumavantagemcomisso podia eventualmente buscar algum contato com a obra. As introduções aos dramasmusicaisdeWagner,porexemplo,eoscomentáriosdoFaustodãotestemunhodisso.Sãoeles que servem de transição para a embalagem biográfica e outras práticas a que sesubmetematualmenteasobrasdearte.Mesmona florda idadedosnegócios,ovalordetrocanãoarrastouovalordeusocomoummeroapêndice,mastambémodesenvolveucomoopressupostodesuaprópriaexistência,e issofoisocialmentevantajosoparaasobrasdearte.Aartemanteveoburguêsdentrodecertoslimitesenquantofoicara.Masissoacabou.Suaproximidade ilimitada,nãomaismediatizadapelodinheiro,àspessoasexpostasaelaconsuma a alienação e assimila um ao outro sob o signo de uma triunfal reificação. Naindústriacultural,desaparecemtantoacríticaquantoorespeito:aprimeiratransforma-senaproduçãomecânicadelaudospericiais,osegundoéherdadopelocultodesmemoriadodapersonalidade. Para os consumidores nada mais é caro. Ao mesmo tempo, porém, elesdesconfiamque,quantomenoscustaumacoisa,menoselalhesédadadepresente.Adupladesconfiançacontraaculturatradicionalenquantoideologiamescla-seàdesconfiançacontraacultura industrializadaenquanto fraude.Transformadasemsimplesbrindes,asobrasdearte depravadas são secretamente recusadas pelos contemplados juntamente com asbugigangasaquesãoassimiladaspelosmeiosdecomunicação.Osespectadoresdevemsealegrar com o fato de que há tantas coisas a ver e a ouvir. A rigor pode-se ter tudo. Osscreenos e vaudevilles17no cinema, os concursos de identificação de temasmusicais, osexemplares grátis, os prêmios e presentes oferecidos aos ouvintes de determinadosprogramasradiofónicos,nãosãomerosacidentes,masapenasprolongamoquesepassacomos próprios produtos culturais. A sinfonia torna-se um prêmio para o simples fato de seescutarrádio,eseatécnicapudesseimporsuavontade,osfilmesjáseriamfornecidosemcadaapartamentosegundoomodelodorádio.Elesjátendemparaocommercialsystem.AtelevisãoanunciaumaevoluçãoquepoderiafacilmenteforçarosirmãosWarneraassumiraposição, certamente incômoda para eles, de produtores de um teatro doméstico e deconservadoresculturais.Masosistemadeprêmiosjásesedimentounocomportamentodosconsumidores.Namedidaemqueaculturaseapresentacomoumbrinde,cujasvantagens

17 .Nosprimórdiosdocinema,intervalosduranteosquaisseorganizavamconcursosentreosespectadores.

privadas e sociais no entanto estão fora de questão, sua recepção converte-se noaproveitamentodechances.Osconsumidoresseesforçampormedodeperderalgumacoisa.Oquê—nãoestáclaro,dequalquermodosótemchancequemnãoseexclui.Ofascismo,porém,esperareorganizarosrecebedoresdedádivas,treinadospelaindústriacultural,nosbatalhõesregularesdesuaclientelacompulsiva.

Aculturaéumamercadoriaparadoxal.Elaestátãocompletamentesubmetidaàleidatrocaquenãoémaistrocada.Elaseconfundetãocegamentecomousoquenãosepodemaisusá-la.Éporissoqueelasefundecomapublicidade.Quantomaisdestituídadesentidoestaparecesernoregimedomonopólio,maistodo-poderosaelasetorna.Osmotivossãomarcadamenteeconômicos.Quantomaioréacertezadequesepoderiaviversemtodaessaindústriacultural,maiorasaturaçãoeaapatiaqueelanãopodedeixardeproduzirentreosconsumidores.Porsisóelanãoconseguefazermuitocontraessatendência.Apublicidadeéseuelixirdavida.Mascomoseuprodutoreduzincessantementeoprazerqueprometecomomercadoria a uma simples promessa, ele acaba por coincidir com a publicidade de queprecisa, por ser intragável. Na sociedade concorrencial a publicidade tinha por funçãoorientar o compradorpelomercado, ela facilitava a escolha epossibilitava ao fornecedordesconhecidoemaisprodutivocolocarsuamercadoria.Nãoapenasnãocustavatempodetrabalho,mastambémoeconomizava.Hoje,quandoomercadolivrevaiacabando,osdonosdosistemaseentrincheiramnela.Elaconsolidaosgrilhõesqueencadeiamosconsumidoresàsgrandescorporações.Sóquempodepagarcontinuamenteastaxasexorbitantescobradaspejasagênciasdepublicidade,pelorádiosobretudo,istoé,quemjáfazpartedosistemaoué cooptado com base nas decisões do capital bancário e industrial, pode entrar comovendedornopseudomercado.Oscustosdepublicidade,queacabamporretornaraosbolsosdas corporações, poupam as dificuldades de eliminar pela concorrência os intrusosindesejáveis.Essescustosgarantemqueosdetentoresdopoderdedecisãoficarãoentresi;aliás, como ocorre nas resoluções dos conselhos econômicos que controlam, no Estadototalitário, a criação e a gestão das empresas. A publicidade é hoje em dia um princípionegativo, um dispositivo de bloqueio: tudo aquilo que não traga seu sinete éeconomicamentesuspeito.Apublicidadeuniversalnãoéabsolutamentenecessáriaparaqueas pessoas conheçam os tipos demercadoria, aos quais a oferta de qualquermodo estálimitada. Só indiretamente ela serve à venda. O abandono de uma prática publicitáriacorrenteporumafirmaparticularsignificaumaperdadeprestígio,naverdadeumainfraçãodadisciplinaqueacliquedominanteimpõeaosseus.Duranteaguerra,continua-seafazerpublicidadedemercadoriasquejánãopodemmaisserfornecidas,comoúnicofimdeexibiropoderioindustrial.Maisimportantedoquearepetiçãodonome,então,éasubvençãodosmeiosideológicos.Namedidaemqueapressãodosistemaobrigoutodoprodutoautilizaratécnicadapublicidade,estainvadiuoidioma,o“estilo”,daindústriacultural.Suavitóriaétão completa que ela sequer precisa ficar explícita nas posições decisivas: os edifíciosmonumentaisdasmaioresfirmas,publicidadepetrificadasobaluzdosholofotes,estãolivres

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dereclamespublicitárioseexibemnomelhordoscasosemsuasameias,brilhandolapidarmente e dispensadas do autoelogio, as iniciais da firma. Ao contrário, os prédios quesobrevivemdoséculoXIXecujaarquiteturaaindarevelavergonhosamenteautilidadecomobemdeconsumo,ouseja,suafinalidadehabitacional,estãorecobertosdoandartérreoaotelhadodepainéiseanúnciosluminosos;apaisagemtorna-seummeropanodefundoparaletreiros e logotipos. A publicidade converte-se na arte pura e simplesmente, comaqualGoebbels identificou-apremonitoriamente, l’artpour l’art, publicidadede simesma,purarepresentação do poderio social. Nas mais importantes revistas norte-americanas, Life eFortune, o olhar fugidiomal pode distinguir o texto e a imagem publicitários do texto eimagemdaparteredacional.Assim,porexemplo,redacionaléareportagemilustrada,quedescreve entusiástica e gratuitamente os hábitos e os cuidados com o corpo de umapersonalidadeemevidênciaequeserveparagranjear-lhenovos fãs,enquantoaspáginaspublicitáriasseapoiamemfotoseindicaçõestãoobjetivaserealistasqueelasrepresentamoidealdainformaçãoqueaparteredacionalaindaseesforçaporatingir.Cadafilmeéumtrailerdofilmeseguinte,queprometereunirmaisumavezsobomesmosolexóticoomesmopardeheróis;o retardatárionão sabe seestáassistindoao trailerouao filmemesmo.Ocaráterdemontagemdaindústriacultural,afabricaçãosintéticaedirigidadeseusprodutos,que é industrial não apenas no estúdio — cinematográfico, mas também (pelo menosvirtualmente) na compilação das biografias baratas, romances-reportagem e canções desucesso,jáestãoadaptadosdeantemãoàpublicidade:namedidaemquecadaelementosetornaseparável,fungíveletambémtecnicamentealienadoàtotalidadesignificativa,elesepresta a finalidades exteriores à obra. O efeito, o truque, cada desempenho isolado ereceptível foram sempre cúmplices da exibição de mercadorias para fins publicitários, eatualmente todo close de uma atriz de cinema serve de publicidade de seu nome, todosucesso tornou-se um plug18 de sua melodia. Tanto técnica quanto economicamente, apublicidadeeaindústriaculturalseconfundem.Tantolácomocá,amesmacoisaapareceeminúmeroslugares,earepetiçãomecânicadomesmoprodutoculturaljáéarepetiçãodomesmosloganpropagandístico.Lácomocá,soboimperativodaeficácia,atécnicaconverte-seempsicotécnica,emprocedimentodemanipulaçãodaspessoas.Lácomocá,reinamasnormas do surpreendente e, no entanto, familiar, do fácil e, no entanto, marcante, dosofisticadoe,noentanto,simples.Oqueimportaésubjugaroclientequeseimaginacomodistraídoourelutante.

Pela linguagemquefala,eleprópriodásuacontribuiçãoaocarácterpublicitáriodacultura.Poisquantomaiscompletamentealinguagemseabsorvenacomunicação,quantomaisaspalavrasseconvertemdeveículossubstanciaisdosignificadoemsignosdestituídosdequalidade,quantomaiorapurezaeatransparênciacomquetransmitemoquesequerdizer, mais impenetráveis elas se tornam. A desmitologização da linguagem, enquantoelemento do processo total de esclarecimento, é uma recaída na magia. Distintos einseparáveis, a palavra e o conteúdo estavam associados um ao outro. Conceitos como

18 .Publicidade,recomendaçãodealguémoualgumacoisa,porexemplo,numprogramaradiofónico.(N.doT.)

melancolia, história e mesmo vida, eram reconhecidos na palavra que os destacava econservava.Suaformaconstituía-ose,aomesmotempo,refletia-os.Adecisãodesepararotexto literal como contingente e a correlação como objeto como arbitrária acaba com amisturasupersticiosadapalavraedacoisa.Oque,numasucessãodeterminadadeletras,vaialémdacorrelaçãocomoeventoéproscritocomoobscuroecomoverbalismometafísico.Masdestemodoapalavra,quenãodevesignificarmaisnadaeagorasópodedesignar,ficatãofixadanacoisaqueelasetornaumafórmulapetrificada. Issoafetatantoa linguagemquantooobjeto.Aoinvésdetrazeroobjetoàexperiência,apalavrapurificadaserveparaexibi-locomoinstânciadeumaspectoabstrato,etudoomais,desligadodaexpressão(quenão existemais) pela busca compulsiva de uma impiedosa clareza, se atrofia tambémnarealidade.Oponta-esquerdanofutebol,ocamisa-negra,omembrodaJuventudeHitleristaetc.nadamaissãodoqueonomequeosdesigna.Se,antesdesuaracionalização,apalavrapermitiranãosóanostalgia,mastambémamentira,apalavraracionalizadatransformou-seemumacamisadeforçaparaanostalgia,muitomaisdoqueparamentira.Acegueiraeomutismodosfatosaqueopositivismoreduziuomundoestendem-seàpróprialinguagem,que se limita ao registro desses dados. Assim, as próprias designações se tornamimpenetráveis, elas adquiremuma contundência, uma forçade adesãoe repulsãoqueasassimilaaseuextremooposto,asfórmulasdeencantamentomágico.Elasvoltamaoperarcomoumaespéciedemanipulações,sejaparacomporonomedadivanoestúdiocombasenaexperiênciaestatística,sejaparalançaroanátemasobreogovernovoltadoparaobem-estarsocialrecorrendoanomestabuscomo“burocratas”e“intelectuais”,sejaacobertandoainfâmiacomonomedaPátria.Sobretudoonome,aoqualamagiaseprendedepreferência,está passando atualmente por uma alteração química. Ele está se transformando emdesignaçõesarbitráriasemanejáveis,cujaeficáciasepodeagora,éverdade,calcular,masqueporissomesmosetornoutãodespóticacomoemsuaformaarcaica.Osprenomes,quesão resíduos arcaicos, foram modernizados: ou bem mediante uma estilização que ostransformouemmarcaspublicitárias—paraosastrosdocinema,ossobrenomestambémsãoprenomes—oubemmedianteumapadronização coletiva. Emcompensação, pareceantiquado o nomeburguês, o nomede família, que, ao contrário dasmarcas comerciais,individualiza o portador relacionando-o à sua própria história. Ele desperta nos norte-americanos um estranho embaraço. Para disfarçar a incômoda distância entre indivíduosparticulares,elessechamamdeBobeHarry,comoelementosintercambiáveisdeteams.Talprática degrada as relações pessoais à fraternidade do público esportivo, que impede averdadeira fraternidade. A significação, única função da palavra admitida pela semântica,consuma-seno sinal. Seu carácterde sinal reforça-se coma rapidez comqueosmodeloslinguísticossãocolocadosemcirculaçãodecimaparabaixo.Seéverdadequeascançõesfolclóricas podem ser consideradas como resultando de uma degradação do patrimônioculturaldecamadassuperiores,emtodocaso,foinumprocessolongoemuitomediatizadoda experiência que seus elementos adquiriram sua forma popular. A difusão das popular

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songsocorredeumsógolpe.Aexpressãomoda/mania,usadaparasereferiramodasquesurgem como epidemias (isto é, que são lançadas por potências econômicas altamenteconcentradas), já designavao fenômenomuito tempoantesqueos chefes totalitáriosdapublicidadeimpusessemaslinhasgeraisdacultura.Seosfascistasalemãeslançamumdiapelo alto-falante uma palavra como “insuportável”, no dia seguinte o povo inteiro estarádizendo“insuportável”.FoisegundoomesmoesquemaqueasnaçõesvisadaspeloBlitzkrieg(guerra-relâmpago)alemãoacolheramessetermoemseujargão.Arepetiçãouniversaldostermosdesignandoasdecisõestomadastorna-asporassimdizerfamiliares,domesmomodoque,naépocadomercadolivre,adivulgaçãodonomedeumamercadoriafaziaaumentarsua venda. A repetição cega e rapidamente difundida de palavras designadas liga apublicidade à palavra de ordem totalitária. O tipo de experiência que personalizava aspalavrasligando-asàspessoasqueaspronunciavamfoiesvaziado,eaprontaapropriaçãodaspalavras faz comque a linguagem assuma aquela frieza que era própria dela apenas noscartazesenapartedeanúnciosdosjornais.Inúmeraspessoasusampalavraselocuçõesqueelas ou não compreendem mais de todo, ou empregam segundo seu valor behaviorista(comportamental), assim como marcas comerciais, que acabam por aderir tanto maiscompulsivamenteaseusobjetos,quantomenosseusentidolinguísticoécaptado.

Hoje,aindústriaculturalassumiuaherançacivilizatóriadademocraciadepioneiroseempresários,quetampoucodesenvolveraumafinezadesentidoparaosdesviosespirituais.Todossãolivresparadançareparasedivertir,domesmomodoque,desdeaneutralizaçãohistórica da religião, são livres para entrar em qualquer uma das inúmeras seitas.Mas aliberdadedeescolhada ideologia,que refletesempreacoerçãoeconômica, revela-seemtodosossectorescomoaliberdadedeescolheroqueésempreamesmacoisa.Amaneirapelaqualumajovemaceitaesedesincumbedoencontro/namoroobrigatório,aentonaçãonotelefoneenamaisfamiliarsituação,aescolhadaspalavrasnaconversa,eatémesmoavida interior organizada segundo os conceitos classificatórios da psicologia profundavulgarizada,tudoissoatestaatentativadefazerdesimesmoumaparelhoeficienteequecorresponda,mesmonosmaisprofundosimpulsosinstintivos,aomodeloapresentadopelaindústriacultural.Asmaisíntimasreaçõesdaspessoasestãotãocompletamentereificadasparaelasprópriasqueaideiadealgopeculiaraelassóperduranamaisextremaabstração:personalitysignificaparaelaspoucomaisdoquepossuirdentesdeslumbrantementebrancoseestarlivresdosuornasaxilasedasemoções.Eisaíotriunfodapublicidadenaindústriacultural, amimesecompulsivadosconsumidores,pelaqual se identificamàsmercadoriasculturaisqueeles,aomesmotempo,deciframmuitobem.