dia mundial do urbanismo: o que temos a comemorar afinal? · no 1º congresso de urbanismo do...

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Salvador, 14 de novembro de 2015 Dia Mundial do Urbanismo: o que temos a comemorar afinal? João Soares Pena 1 Introdução Anualmente no dia 08 de novembro é comemorado o Dia Mundial do Urbanismo, data que além de celebração e difusão da importância desse campo do conhecimento, pode também provocar uma reflexão acerca do contexto urbano atual. Uma das principais motivações deste texto foi a recente instituição do dia 8 de novembro como Dia Municipal do Urbanismo em Salvador num momento em que não apenas esta cidade, mas tantas outras têm trazido à luz importantes e inquietantes problemas. Este ano além da celebração habitual, comemoramos os 20 anos de existência do Curso de Bacharelado em Urbanismo da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), primeiro curso do Brasil a formar urbanistas em nível de graduação. 2 O curso tem se consolidado na formação profissional e na contribuição para o pensamento urbanístico no país, especialmente na Bahia. Mais recentemente foi criado o Curso de Bacharelado em Planejamento Territorial na Universidade Federal do ABC (UFABC), 3 ratificando a necessidade de uma formação mais específica e aprofundada voltada aos estudos urbanos. Além disso, é preciso assinalar os diversos cursos de pós- graduação vinculados à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ANPUR), os quais têm contribuído fundamentalmente para a construção do pensamento urbanístico crítico. 4 Contudo, apesar da importância da data, será que as cidades têm o que festejar? Nesse sentido, este texto aponta algumas questões urbanas atuais e críticas a partir de uma prática urbanística hegemônica e tenta assinalar algumas iniciativas que fazem oposição a projetos urbanos e ao modelo de cidade vigente. Porém, antes contextualizamos e historicizamos a instituição da data comemorativa do dia 8 de novembro num período de intensos debates e críticas acerca de modo de produzir cidade em voga na época.

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Salvador, 14 de novembro de 2015

Dia Mundial do Urbanismo: o que temos a comemorar afinal?

João Soares Pena1

Introdução

Anualmente no dia 08 de novembro é comemorado o Dia Mundial do

Urbanismo, data que além de celebração e difusão da importância desse

campo do conhecimento, pode também provocar uma reflexão acerca do

contexto urbano atual. Uma das principais motivações deste texto foi a recente

instituição do dia 8 de novembro como Dia Municipal do Urbanismo em

Salvador num momento em que não apenas esta cidade, mas tantas outras

têm trazido à luz importantes e inquietantes problemas.

Este ano além da celebração habitual, comemoramos os 20 anos de

existência do Curso de Bacharelado em Urbanismo da Universidade do Estado

da Bahia (UNEB), primeiro curso do Brasil a formar urbanistas em nível de

graduação.2 O curso tem se consolidado na formação profissional e na

contribuição para o pensamento urbanístico no país, especialmente na Bahia.

Mais recentemente foi criado o Curso de Bacharelado em Planejamento

Territorial na Universidade Federal do ABC (UFABC),3 ratificando a

necessidade de uma formação mais específica e aprofundada voltada aos

estudos urbanos. Além disso, é preciso assinalar os diversos cursos de pós-

graduação vinculados à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa

em Planejamento Urbano e Regional (ANPUR), os quais têm contribuído

fundamentalmente para a construção do pensamento urbanístico crítico.4

Contudo, apesar da importância da data, será que as cidades têm o que

festejar? Nesse sentido, este texto aponta algumas questões urbanas atuais e

críticas a partir de uma prática urbanística hegemônica e tenta assinalar

algumas iniciativas que fazem oposição a projetos urbanos e ao modelo de

cidade vigente. Porém, antes contextualizamos e historicizamos a instituição da

data comemorativa do dia 8 de novembro num período de intensos debates e

críticas acerca de modo de produzir cidade em voga na época.

Salvador, 14 de novembro de 2015

A data comemorativa

Desde 1949 comemora-se em 08 de novembro o Dia Mundial do

Urbanismo. A iniciativa do Instituto Superior de Urbanismo da Cidade de

Buenos Aires contou com apoio da Organização das Nações Unidas (ONU)

que instituiu a data comemorativa.5 Além disso, o professor Carlos Maria della

Paolera, da Universidade de Buenos Aires, fundou a Organización

Internacional del dia Mundial del Urbanismo.6

O símbolo do urbanismo, também criado por Carlos Maria della Paolera,

já havia sido adotado no Congresso de Urbanismo de Besançon, França, em

1935, no 1º Congresso Argentino de Urbanismo, em Buenos Aires em 1935, e

no 1º Congresso de Urbanismo do Chile, em 1938. O símbolo representa três

elementos considerados essenciais à vida humana: o sol (em amarelo), a

vegetação (em verde) e o ar (em azul) (Figura 1).

Figura 1: Símbolo do urbanismo Fonte: Blog Construnea

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Salvador, 14 de novembro de 2015

A combinação desses fatores pode denotar uma preocupação em

relação ao meio ambiente natural e ao urbanizado, este caracterizado pelas

grandes cidades, como evidencia Carlos Maria della Paolera:

La ciencia urbanística moderna ha puesto plenamente en evidencia que la utilización en la ciudad de los más maravillosos e inesperados recursos de la técnica no debe ni puede excluir el aprovechamiento intensivo de los elementos naturales. La ciudad como el árbol no puede desligarse de la tierra que la sustenta. 8

A iniciativa buscava promover maior discussão sobre o urbanismo e os

problemas urbanos que se apresentavam na época e aconteceu em um

período de muito debate sobre os preceitos do urbanismo moderno

funcionalista difundido em vários países por figuras como Le Corbusier. No

Brasil, nomes importantes ligados a essa corrente são os arquitetos Lúcio

Costa e Oscar Niemeyer, responsáveis pelo projeto urbanístico e arquitetônico

de Brasília, a então nova capital do Brasil, inaugurada em 1960 sob os

preceitos do urbanismo moderno.9

O dia do Urbanismo é celebrado em mais de 30 países e no Brasil a

data consta no calendário oficial do país desde 1985 quando foi instituído pelo

Decreto nº 91.900 o dia 8 de novembro como o Dia Nacional do Urbanismo.10

Nessa época a população urbana já constituía 67,59% da população brasileira,

taxa que continuou em ritmo crescente atingindo 84,36% no Censo de 2010.11

Esse crescimento provocou a complexificação da problemática urbana e trouxe

novos desafios às cidades, sobretudo às de grande porte com imensa

concentração populacional.

Recentemente o município de Salvador através da Lei nº 8.924, de 15

de outubro de 2015, instituiu o Dia do Urbanismo12 a nível municipal,

evidenciando e reconhecendo a importância dessa área e seus profissionais

para o desenvolvimento da nossa sociedade, sobretudo ajudando a dar

visibilidade aos inúmeros problemas urbanos atuais. A instituição de uma data

comemorativa não pode ser vista de modo acrítico, é preciso inseri-la em seu

contexto, de modo que consideramos importante comentar algumas questões

recentes em algumas cidades, sobretudo em Salvador.

Salvador, 14 de novembro de 2015

Algumas questões atuais

Uma série de fatos recentes demonstram importantes avanços em

relação a algumas questões jurídico-institucionais que se referem às cidades e

ao urbano. Podemos rapidamente mencionar a luta pela Reforma Urbana

protagonizada pela sociedade civil organizada que culminou no Capítulo da

Política Urbana (Arts. 182 e 183) na Constituição de 1988, a aprovação em

2001 da Lei nº 10.257 que instituiu o Estatuto da Cidade, criação do Ministério

das Cidades e do Conselho Nacional das Cidades em 2003, leis específicas

que disciplinam sobre questões setoriais, tais como habitação social,

saneamento, resíduos sólidos, mobilidade, participação social etc.

Entretanto, apesar desses e outros tantos avanços no campo

institucional, nossas cidades continuam apresentando uma série de problemas,

muitos dos quais são agravados pelas ações públicas e privadas na

(re)produção da cidade de maneira segregada, desigual e fragmentada. O

direito à cidade, embora seja uma das bases do Estatuto da Cidade, ainda não

é uma realidade quando se observam as intervenções que são realizadas

pretensamente para melhorar a condição urbana.

Desde 2009, o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) – criado

pela Lei nº 11.977, de julho de 200913 – tem contribuído significativamente para

a expansão urbana em municípios de características variadas. Se por um lado

o PMCMV cria mecanismos de incentivo à produção e aquisição de habitação

para parcelas da população, o programa também é um grande estimulador da

indústria da construção civil (o que sugerimos que tenha sido seu principal

objetivo, tendo em vista o contexto de crise internacional da época de sua

criação). Contudo, a localização dos conjuntos habitacionais em áreas urbanas

periféricas (de modo geral) têm acentuado problemas como a distância entre

residência e centro da cidade e postos de trabalho, oferta de equipamentos

urbanos e infraestrutura etc., além da continuação de uma realidade urbana já

bastante excludente.

Salvador, 14 de novembro de 2015

Na mesma época o país começou a se preparar para a realização de

dois importantes megaeventos: Copa do Mundo (de Futebol) e Olimpíadas, os

quais têm lugar em algumas capitais, as “cidades-sede”.14 As intervenções

realizadas no intuito de preparar as cidades para os jogos provocaram um sem-

número de remoções daqueles que estavam “atrapalhando” ou “impedindo” as

mudanças ditas necessárias. Segundo informações da Secretaria Geral da

Presidência da República divulgadas em 2014, o número de remoções

forçadas decorrentes das intervenções foi de 13.558 famílias,15 porém estes

dados não parecem reais, de acordo com a arquiteta e urbanista Raquel

Rolnik:

Se por um lado é positivo que, finalmente, tenhamos números oficiais sobre o que aconteceu nos últimos anos, por outro, é preciso dizer que se o próprio governo teve enorme dificuldade de “descobrir” quantos foram os removidos por obras relacionadas à Copa, isso demonstra a forma como são tratadas as remoções relacionadas a obras públicas no Brasil: um assunto irrelevante, não “contabilizado”, atravessado por obscuridades e violência. [...]

Além disso, não é difícil constatar que os dados não estão nada completos: em Belo Horizonte e Cuiabá, por exemplo, o quadro apresentado não fornece nenhuma informação sobre se as pessoas foram indenizadas ou reassentadas e onde isso aconteceu; no caso do Rio de Janeiro, apenas as famílias afetadas pelas obras da Transcarioca estão listadas, quando várias outras obras removeram centenas de pessoas – como na favela do metrô mangueira, no entorno do Maracanã.16

Além do desrespeito à população, situações como essa deixam bem

claro o que realmente interessa e, infelizmente, não é a vida dessas pessoas.

Segue nesse sentido o projeto Porto Maravilha,17 na zona portuária do Rio de

Janeiro, com o objetivo de reestruturar a área na modalidade de Operação

Urbana Consorciada,18 instrumento muito estimado pelo setor imobiliário pela

valorização urbana provocada pelos investimentos numa dada área. De acordo

com o Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro não houve

participação e transparência nas decisões relacionadas ao projeto, além de não

haver medidas efetivas para construção de habitação social e regularização

fundiária na área do projeto.19 A gentrificação, ou seja, a expulsão dos

Salvador, 14 de novembro de 2015

residentes de baixa renda com sua substituição por uma população de rendas

altas, é uma das consequências desse projeto, como afirma Christopher

Gaffney:

A área portuária está vivendo uma gentrificação promovida pelo Estado. A privatização da paisagem portuária financiada com recursos públicos resultará em novas formas de governança urbana que irão, se o projeto for executado, gerir uma população diferente, mais ampla e de maior poder aquisitivo.20

Projetos como esse deixam evidente a oferta da cidade aos interesses

do capital privado em detrimento dos interesses e necessidades da população.

21 Exemplo semelhante desse processo pode ser encontrado em Salvador, no

bairro 2 de julho, no Centro da cidade, que foi alvo do Projeto de Renovação do

Bairro Santa Tereza, lançado pela Prefeitura de Salvador em 2012. Na

verdade, esse novo bairro proposto compreende parte significativa do bairro 2

de julho e curiosamente a poligonal desse projeto coincide com a área do

Cluster Santa Tereza, que é um projeto da iniciativa privada que compreende

empreendimentos residenciais de alto padrão e um resort, além de fazerem

uso dos aspecto patrimonial e cultural da área (como o Museu de Arte Sacra e

a vista para a Baía de Todos os Santos) de grande valor simbólico para a

população. Segundo Mourad, Figueiredo e Baltrusis (2014, p. 442), “esses

elementos, diferenciados do conjunto da cidade, oferecem condições para que

se desenvolva um projeto de renovação voltado para a lógica da

gentrificação”.22

Como afirmam os autores, esse fato deixa claro que o poder público

estaria propondo uma intervenção urbana claramente vinculada a interesses

privados com alarmantes consequências sociais para o bairro 2 de Julho.

Contudo, moradores, coletivos, movimentos sociais, etc. assumiram a linha de

frente contra a investida do capital imobiliário com a constituição do

“Movimento Nosso Bairro é 2 de julho!”.23 Esse movimento tem sido bastante

combativo e tem resistido ao processo de especulação imobiliária nesse bairro,

bem como contribuído no debate e enfrentamento de questões importantes da

Salvador, 14 de novembro de 2015

cidade. As atividades do movimento incluem debates, reuniões, exibição de

filmes, atividades artísticas, manifestações políticas de rua, criação de um

fórum virtual de debate no site do Movimento, entre outros.

Outros movimentos da sociedade em diferentes cidades civil têm se

levantado contra investidas do capital imobiliário em áreas importantes da

cidade ou reivindicado o uso público e coletivo de áreas públicas. Nesse

sentido, podemos citar o Movimento Ocupe Estelita, em Recife, organizado em

oposição ao Projeto Novo Recife que se trata da destinação de uma área de 10

ha no centro da cidade para um empreendimento imobiliário de R$ 800 milhões

com torres que chegam a 40 andares na área que engloba o Cais José Estelita,

O movimento é composto por pessoas de distintas formações e lutam para que

a cidadania ocupe o cais, que a legislação seja respeitada, do respeito ao meio

ambiente e da participação popular na definição do futuro da área do centro-

sul. Como defende um dos integrantes do movimento:

Nosso discurso do direito à cidade é do direito de fruir, de aproveitar tudo o que ela tem para oferecer, de ser feliz nela. A cidade é para isso: para ocuparmos seus espaços públicos dando-lhes uma destinação social, cultural e popular. 24

Em Salvador podemos citar o Movimento Desocupa que surgiu em 2012

a partir da ocupação da Praça de Ondina pelo Camarote Salvador para o

carnaval daquele ano. Apesar do lucro de cerca de R$ 66 milhões, a empresa

só pagaria à prefeitura anualmente a quantia de R$ 250 mil e uma reforma no

local. A articulação do movimento ocorreu nas redes sociais decorrendo em

manifestações em espaços públicos no sentido de reivindicar o uso público da

praça e repudiar as ações de privatização da cidade de Salvador. Além dessa

questão, a pauta do movimento inclui discussões sobre temas de interesse da

cidade, o combate à segregação social tão marcante em Salvador, entre

outros.25 O movimento continua atuante na luta pela conquista de uma

Salvador mais justa e equitativa, já que muitos problemas ainda perduram.

No final dos anos 2000 o governo Federal passou a usar mais um

artifício para alavancar a economia, mas neste caso foi a partir da indústria

Salvador, 14 de novembro de 2015

automobilística com a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados

(IPI), possibilitando facilidades na venda de carros no mercado brasileiro.26

Entretanto, esta medida vai de encontro com as diretrizes da Política Nacional

de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/2012) que visa a priorização do transporte

público e de meios não motorizados em detrimento do automóvel individual.27 A

facilitação da aquisição do automóvel fez o número de carros crescer

significativamente nas ruas das cidades, e, por outro lado, os investimentos no

transporte público não acompanharam a mesma dinâmica. Isto levou a

problemas de congestionamentos, deseconomias, além de investimentos

equivocados na ampliação da malha viária.

Em Salvador, a Prefeitura anunciou em 2012 a construção da Linha

Viva: polêmico projeto que propõe a construção de uma via expressa

pedagiada conectando o Acesso Norte (Rótula do Abacaxi) ao Aeroporto com

extensão de 17,70 km exclusiva para carros.28 Além de ser questionável por

sua ultrapassada concepção, ao favorecimento do mercado imobiliário com a

abertura de um corredor “exclusivo” às classes altas, sua implantação

provocaria a remoção de uma população significativa em áreas como

Saramandaia e Pernambués, além de atravessar um resquício de Mata

Atlântica na área do 19º Batalhão de Caçadores do Exército Brasileiro. O

projeto tem sido questionado pelo Ministério Público e fortemente combatido

por acadêmicos e movimentos sociais.29

Além disso, a Prefeitura de Salvador tem tomado outras atitudes

também questionáveis que não se justificam como reais necessidades da

cidade e sua população. É o caso da lei nº 8.655/2014,30 que autorizou a

desafetação de 59 terrenos públicos do município sem nenhum estudo técnico

que respaldasse tal ação, ou seja, essas áreas públicas poderão ser alienadas

(vendidas), quando poderiam servir para a construção de equipamentos

urbanos públicos, construção de praças ou mesmo compor um estoque de

terrenos públicos para posterior utilização em prol da coletividade.

Da mesma maneira o Projeto de Lei nº 201/14 enviado pela Prefeitura

de Salvador à Câmara Municipal propõe a modificação do cálculo da outorga

onerosa do direito de construir,31 instrumento estabelecido pelo Estatuto da

Salvador, 14 de novembro de 2015

Cidade através do qual o município pode arrecadar recursos que podem ser

investidos para atender às demandas da cidade. Esta lei modifica o Plano

Diretor vigente, de modo que deveria acontecer com a devida participação

popular, conforme determina a lei do Estatuto da cidade. Além disso, a

Prefeitura já anunciava a elaboração do Plano Salvador 500, o qual inclui a

revisão do Plano Diretor. Nesse sentido, tanto a desafetação das áreas

públicas quanto a mudança no cálculo da outorga são ações arbitrárias que

contrariam os dispositivos legais vigentes no país (como o Estatuto da Cidade

e resoluções do Conselho Nacional das Cidades), além de se adiantarem (por

quê?) à discussão da política urbana municipal que se anunciava.

Uma iniciativa bastante recente merece atenção, pois decorre da

inquietação de jovens estudantes universitários de Salvador a cerca do

processo de revisão do Plano Diretor. Insatisfeitos com o pouco debate

promovido pela Prefeitura com a juventude sobre o plano, os estudantes

iniciaram em julho de 2015 o “Ciclo de Oficinas PDDU e eu com isso?” como

um espaço de discussão sobre a cidade com a realização de oficinas com

estudantes do ensino médio do Instituto Federal da Bahia (IFBA) e minicursos

sobre participação social e educação.

O projeto buscou promover a discussão com os estudantes, os quais

coletivamente elaboraram propostas para a cidade a partir da realidade de

distintas áreas da cidade. Essas proposições foram sistematizadas e entregues

à coordenação do Plano Salvador 500 como contribuições à revisão do plano

diretor. Além disso, foi realizado em outubro um seminário público a fim de

publicizar o material produzido e discutir juntamente com a Prefeitura a revisão

do plano diretor e as contribuições do projeto.

Mobilização e resistência – caminho possível

Apontamos acima algumas questões importantes, embora haja tantas

outras a serem discutidas, que indicam caminhos que as cidades têm trilhado.

Quando falamos cidade, é preciso pontuar que estamos falando de um

conjunto de fatores, atores sociais e processos urbanos e não de um elemento

uniforme e homogêneo. Por trás das ações e medidas levadas a cabo há

Salvador, 14 de novembro de 2015

intencionalidades, podendo elas estarem mais vinculadas aos interesses da

coletividade ou mais direcionadas a interesses de setores específicos.

De modo geral as cidades têm sido geridas e pensadas à luz do

entendimento que elas seriam mercadoria num voraz mercado global de

cidades. O planejamento da cidade segundo essa lógica leva a fatos como os

que discorremos anteriormente, quando os interesses privados e de poucos se

sobressaem aos da sociedade como um todo. Contudo, essa lógica tem sido

combatida pela ação de movimentos sociais, coletivos, artistas, ativistas e

militantes do direito à cidade etc. que se articulam e promovem atividades,

manifestações, ocupações, protestos diversos na rua ou especificamente em

áreas que são foco dessas investidas.

Em 2013 eclodiram manifestações em diversas cidades do país,

desencadeadas pelo aumento da tarifa de transporte público de São Paulo.

Logo as Jornadas de junho 2013 tomaram as ruas em cidades em diferentes

partes do país, agregando em suas pautas muitas outras questões para além

do preço da tarifa do transporte coletivo. Esses protestos aconteceram na

mesma época em que ocorria a Copa das Confederações da FIFA no Brasil,

competição que antecede a Copa do Mundo. Muitas críticas foram feitas à

realização das intervenções que preparariam as cidades-sede para os eventos

e suas consequências sociais e urbanas numa sociedade já bastante desigual.

Portanto, não se tratava apenas dos R$ 0,20 centavos acrescidos à tarifa do

transporte público de São Paulo, o que estava em jogo, na verdade, era a

questão urbana e o direito à cidade.32

Esses movimentos foram articulados pelas redes sociais, assim como

outros como o Movimento Ocupe Estelita, em Recife. Em Salvador tem havido

movimentos de resistência a ações e projetos que claramente não se

coadunam com os interesses da população nem se justificam em argumentos

plausíveis, além do visível interesse do capital imobiliário nessas intervenções.

É o caso da demolição de 31 casarões no Centro de Salvador após

deslizamentos de terra provocados pelas chuvas em maio de 2015.33

Sabemos, contudo, que essa situação se dá menos pelas chuvas e mais pela

Salvador, 14 de novembro de 2015

falta de investimentos em medidas não-estruturais e também pela falta das

intervenções estruturais necessárias à proteção do ambiente edificado.

Além disso, houve uma tentativa de remoção dos artífices da Ladeira da

Conceição, também no Centro Antigo de Salvador, cujo trabalho perdura

gerações. Mais uma vez, movimentos que constituem a Articulação do Centro

Antigo de Salvador se mobilizaram no sentido de frear a tomada de uma área

importante para a cidade por e para um projeto de gentrificação, qual seja a

“revitalização” dos arcos da Ladeira da Conceição pelo Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional e Prefeitura de Salvador. Atos organizados nas

redes sociais foram realizados no local no sentido de defender a população do

Centro Histórico, neste caso mais especificamente os artífices da ladeira.34

Com as novas mídias e as redes sociais, a população têm tido mais

condições de expor questões e contar com o apoio de outras pessoas

interessadas e sensibilizadas por determinadas questões. As possibilidades de

organização pela internet de movimentos políticos, porém apartidários, tem

sido muito importante na luta pelo direito à cidade e a gestão democrática. É

possível, nesse sentido, produzir organizar protestos, realizar fóruns de

discussão, etc., além da produção de vídeos que denunciam ações arbitrárias e

truculentas contra a população. Uma vez publicado na internet nas redes

sociais a notícia pode ser compartilhada e muitas pessoas tomam

conhecimento da situação, já que geralmente esses movimentos de resistência

não tem espaço na mídia tradicional e hegemônica.

As plataformas online tem sido, portanto, uma ferramenta importante

para mobilizações sociais de resistência contra projetos urbanos

segregacionistas, gentrificadores e voltados ao mercado. A disseminação dos

problemas na rede contribui para democratizar o acesso aos fatos que

acontecem e não são noticiados pelas grandes mídias e para a mobilização da

população e tem sido importante no contexto em que vivemos.

Os fatos mencionados ao longo do texto mostram, por um lado, uma

prática urbanística hegemônica liderada pelo poder público e iniciativa privada

que não se baseia no interesse social, na gestão democrática e no direito à

cidade, muito pelo contrário, são claros os benefícios à especulação imobiliária

Salvador, 14 de novembro de 2015

e ao capital imobiliário privado. Por outro lado, os movimentos de resistência

têm sido bastante combativos e criativos na luta contra esses projetos de

cidade para poucos. Portanto, muito mais que uma data comemorativa, o Dia

do Urbanismo deve ser lembrando pelo constante campo de disputa por

cidades mais socialmente justas e equitativas, pela gestão democrática de fato

e pelo direito à terra urbanizada com todos os benefícios que ela pode

oferecer.

1 Urbanista graduado pela UNEB, doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA,

professor na Faculdade de Arquitetura da UFBA e diretor da Sociedade Brasileira de Urbanismo.

2 Cf. Site do curso de Urbanismo da UNEB. Disponível em:

http://www.uneb.br/salvador/dcet/urbanismo/

3 Site do Bacharelado em Planejamento Territorial da UFABC. Disponívele m:

http://cecs.ufabc.edu.br/index.php/cursos-de-graduacao/42-bacharelado-em-planejamento-territorial.html

4 Cf. Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional.

Disponível em: http://www.anpur.org.br/

5Cf. Portal Peruano del Día del Urbanismo. Disponível em:

http://www.urbanistasperu.org/diadelurbanismo/diamundial.htm

6 Cf. Sociedade Brasileira de Urbanismo. Disponível em:

https://sburbanismo.wordpress.com/dia-mundial-do-urbanismo/

7 Cf. Construnea. Disponível em: http://construnea.blogspot.com.br/2008/11/hoy-es-el-da-

mundial-del-urbanismo.html

8 Cf. Manifesto do Símbolo do Urbanismo, 1934. Disponível em: http://surp-

aqp.blogspot.com.br/2013/11/el-simbolo-del-urbanismo.html

9 Cf. Inauguração de Brasília. Disponível em:

http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1257

10 Cf. Decreto nº 91.900, de 8 de novembro de 1985. Disponível em:

http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-91900-8-novembro-1985-442112-publicacaooriginal-1-pe.html

11 Cf. Stamm, Cristiano et al. A população urbana e a difusão das cidades de porte médio no

Brasil. Interações, Campo Grande, v. 14, n. 2, p. 251-265, jul./dez. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/inter/v14n2/a11v14n2.pdf

12 Cf. Diário Oficial Do Município. Salvador-Bahia, sexta-feira, 16 de outubro de 2015, ano XXIX

| N º 6.443. Disponível em: http://www.dom.salvador.ba.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=694

13 Cf. Lei nº 11.977, de julho de 2009. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/L11977compilado.htm

14 Apesar de o Rio de Janeiro ser a cidade-sede das Olimpíadas, jogos de futebol acontecerão

também em outras capitais: São Paulo, Belo horizonte, Salvador, Brasília e Manaus. No caso da Copa do Mundo, não apenas as cidades-sedes foram impactadas, já que municípios no entorno também receberam o evento, como no caso de são Lourenço da Mata, na Região Metropolitana de Recife, onde está a Arena Pernambuco. Cf. http://www.copa2014.gov.br/pt-

Salvador, 14 de novembro de 2015 br/sedes/recife/arena e http://www.rio2016.com/os-jogos/locais-de-competicao/mapa-cidades-do-futebol.

15 Cf. Quadro síntese das desapropriações na Copa FIFA 2014. Disponível em:

http://www.secretariageral.gov.br/noticias/2014/julho/gilberto-carvalho-faz-coletiva-sobre-democracia-e-grandes-eventos/copa_2014_desapropriacoes-final-1.pdf

16 Cf. Os legados da Copa. Disponível em: https://raquelrolnik.wordpress.com/2014/07/17/os-

legados-da-copa/

17 Cf. Site do Porto Maravilha. Disponível em: http://www.portomaravilha.com.br/

18 A Operação Urbana Consorciada é um dos instrumentos de política urbana previstos pelo

Estatuto da Cidade.

19 Cf. Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro. Dossiê do Comitê

Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro. Junho de 2014. Disponível em: https://comitepopulario.files.wordpress.com/2014/06/dossiecomiterio2014_web.pdf

20 Cf. Gaffney, Christopher. Forjando os anéis a paisagem imobiliária pré-Olímpica no Rio de

Janeiro. In: e-metropolis, nº 15, ano 4, dezembro de 2013. Disponível em: http://www.emetropolis.net/download/edicoes/emetropolis_n15.pdf

21 Cf. Carlos, Claudio Antonio S. Lima. Una mirada crítica a la zona portuaria de Río de Janeiro.

In: Bitácora Urbano Territorial, vol. 2, nº17, 2010, p. 23-54. Disponível em: http://www.revistas.unal.edu.co/index.php/bitacora/article/view/18892/19783

22 Cf. Mourad, Laila. N. ; Figueiredo, Glória Cecília dos S ; Baltrusis, Nelson. Gentrificação no

Bairro 2 de Julho, em Salvador: modos, formas e conteúdos. In: Cadernos Metrópole (PUCSP), v. 16, 2014, p. 437-460. Disponível em: http://www.cadernosmetropole.net/download/cm_artigos/cm32_300.pdf

23 Cf. Site do Movimento Nosso Bairro é 2 de Julho. Disponível em:

https://nossobairro2dejulho.wordpress.com/

24 Cf. Ocupe Estelita: movimento social e cultural defende marco histórico de Recife. Disponível

em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-67252014000400003&script=sci_arttext

25 Para saber mais sobre o Movimento Desocupa ver:

https://movimentodesocupa.wordpress.com

26 Cf. Governo mantém IPI reduzido para carros, após pressão de montadoras. Disponível em:

http://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2014/06/30/governo-mantem-ipi-reduzido-para-carros-sob-pressao-de-montadoras.htm

27 Cf. Política Nacional de Mobilidade Urbana. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12587.htm

28 Cf. Linha Viva. Disponível em: http://www.linhaviva.salvador.ba.gov.br/index.php/evento

29 Cf. Via Expressa Linha Viva: ausência de deliberação democrática em Salvador/Bahia

disponível em: https://sites.google.com/site/plbsaramandaia/linha-viva

30 Cf. Terrenos desafetados começam a ser leiloados; recursos deveriam ir para o FUNDURBS.

Disponível em: http://participasalvador.com.br/2014/12/12/terrenos-desafetados-comecam-a-ser-leiloados-recursos-deveriam-ir-para-o-fundurbs

31 Cf. Novo projeto de lei do prefeito quer mudança do cálculo da outorga onerosa e extinção

do FUNDURBS. Disponível em: http://participasalvador.com.br/2014/10/14/novo-projeto-de-lei-do-prefeito-quer-mudanca-do-calculo-da-outorga-onerosa-e-extincao-do-fundurbs/ 32

Cf. Maricato, Erminia et al. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo ; Carta Maior, 2013.

Salvador, 14 de novembro de 2015 33

Cf. Arquitetos recorrem à Unesco para evitar novas demolições em Salvador. Disponível em: http://m.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/07/1653564-braco-da-onu-e-acionado-por-demolicoes-no-centro-de-salvador.shtml 34

Cf. “Várias queixas” no Centro Antigo de Salvador. Disponível em: http://www.passapalavra.info/2015/06/104621