deveres de proteÇÃo e o direito fundamental a … · a tese investiga o problema da proteção do...

460
PATRYCK DE ARAÚJO AYALA DEVERES DE PROTEÇÃO E O DIREITO FUNDAMENTAL A SER PROTEGIDO EM FACE DOS RISCOS DE ALIMENTOS TRANSGÊNICOS FLORIANÓPOLIS 2009

Upload: hanhan

Post on 31-Dec-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

PATRYCK DE ARAJO AYALA

DEVERES DE PROTEO E O DIREITO FUNDAMENTAL A SER

PROTEGIDO EM FACE DOS RISCOS DE ALIMENTOS

TRANSGNICOS

FLORIANPOLIS

2009

lazGir

PATRYCK DE ARAJO AYALA

DEVERES DE PROTEO E O DIREITO FUNDAMENTAL A SER

PROTEGIDO EM FACE DOS RISCOS DE ALIMENTOS

TRANSGNICOS

Tese apresentada ao curso de ps-graduao em Direito, Centro de Cincias Jurdicas da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial obteno do grau de Doutor em Direito. rea de concentrao: Direito, Estado e Sociedade.

Orientador: Professor Dr. Jos Rubens Morato Leite

FLORIANPOLIS

2009

TERMO DE ISENO DE RESPONSABILIDADE

Os argumentos, posies e crticas realizadas ao longo deste texto cientfico so de

exclusiva responsabilidade de seu autor, de modo que no refletem necessariamente a posio

dos membros da banca examinadora e, especialmente, a de seu presidente.

PATRYCK DE ARAJO AYALA

DEVERES DE PROTEO E O DIREITO FUNDAMENTAL A SER

PROTEGIDO EM FACE DOS RISCOS DE ALIMENTOS

TRANSGNICOS

A tese foi julgada adequada por todos os membros da banca examinadora e aprovada em sua

forma final pela Coordenao do Curso de Ps-Graduao em Direito da Universidade

Federal de Santa Catarina, para a atribuio do ttulo de DOUTOR EM DIREITO na rea de

concentrao Direito, Estado e Sociedade.

COMPOSIO DA BANCA EXAMINADORA:

____________________________________________

Presidente: Prof. Dr. Jos Rubens Morato Leite (UFSC)

____________________________________________

Membro: Prof Dr Carla Amado Gomes (Universidade Clssica de Lisboa)

____________________________________________

Membro: Prof. Dr. Paulo Affonso Leme Machado (Universidade Metodista de Piracicaba)

____________________________________________

Membro: Prof. Dr. Rubens Onofre Nodari (UFSC)

____________________________________________

Membro: Prof. Dr. Luis Carlos Cancellier de Olivo (UFSC)

____________________________________________

Coordenador: Prof. Dr. Antnio Carlos Wolkmer

Florianpolis, 18 de maro de 2009.

Mais uma vez, nesta segunda oportunidade,

aos meus pais.

A todos aqueles que, em diversos momentos nesta segunda

caminhada, ainda mais longa, fizeram-se presentes,

prximos ou a distncia, no Brasil e alm-mar.

Que tragdia no acreditar na perfectibilidade humana!...

E que tragdia acreditar nela!

Fernando Pessoa

Escrever esquecer. Fernando Pessoa

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Cleide de Arajo Ayala e Bls Len Ayala, pelo apoio na deciso de

ingresso no Curso de Doutorado em Direito, em momento no qual ainda hesitava por faz-lo e

inclinava-me por adi-la.

CAPES, pela concesso da bolsa de pesquisa PDEE, pelo perodo de nove meses,

responsvel por facilitar o desenvolvimento de parte desta pesquisa e de minha estada em

Lisboa, na prestigiosa Universidade Clssica.

Ao professor Dr. Jos Rubens Morato Leite, pelo estmulo e, sobretudo, pela

inesgotvel pacincia e compreenso nas ocasies mais difceis desta segunda oportunidade,

em que me concedeu o privilgio de acompanhar meu desenvolvimento acadmico, quando,

por mais uma vez, tive de conviver com atividades contradas posteriormente, agora, oriundas

do ingresso na carreira docente na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato

Grosso.

Aos professores Jorge Reis Novais, Carla Amado Gomes, Branca Martins da Cruz,

Jos Joaquim Gomes Canotilho e Maria Alexandra Arago, cada um ao seu modo, em Lisboa,

Porto e Coimbra, pela inestimvel colaborao, receptividade, simpatia, cordialidade e

incentivo na indicao de alternativas e possibilidades para a organizao do que, naquele

momento, ainda era apenas um conjunto de pretenses e, possivelmente, no mais do que

boas intenes , bem como pela proposio das fontes e de alguns dos caminhos que

puderam permitir a concluso desta investigao.

Para Telma e a todos os servidores e estagirios da Secretaria da Ps-Graduao,

que, com sua ateno e presteza durante todo o curso, continuaram a permitir que a minha

vida acadmica fosse mais confortvel, desde o ingresso at a concluso de meus trabalhos.

Registro especial deve ser feito queles membros que, no Colgio de Procuradores da

Procuradoria-Geral do Estado, por acreditar na convenincia do desenvolvimento cientfico da

instituio para a proteo dos interesses do Estado de Mato Grosso, empenharam-se e

permitiram que sua crena pudesse influenciar a concesso do afastamento de minhas

atribuies institucionais, permitindo a realizao do curso em Florianpolis e em Lisboa.

Mesmo quase por terminar este processo, no me seria permitido deixar de

reconhecer o apoio e a compreenso dispensados pela professora Beatrice Maria Pedroso da

Silva, Diretora da Faculdade de Direito da UFMT, e pelo professor Luiz Alberto Esteves

Scallope, que gentilmente concordaram em me esquecer para um expressivo conjunto de

encargos administrativos nesse perodo. E principalmente ao ltimo, que absorveu, de forma

voluntria, severos encargos que seriam exclusivamente meus.

Tambm na Procuradoria-Geral do Estado merecem registros a extrema considerao

e compreenso dispensadas pela Subprocuradora-Geral de Defesa do Meio Ambiente, Ana

Flvia Aquino, por ter contribudo que essa fase final do processo pudesse ser concluda com

maior tranqilidade.

Para todas as amizades cultivadas e reforadas em diversos momentos do curso de

Doutorado e queles que me permitiram o privilgio de sua convivncia durante a estada em

Florianpolis e, na seqncia, em Lisboa, na pessoa de Heline Sivini e Pedro, Thais Viegas,

Simone Fraga, Ana Marchesan, Thiago Souma, e para Fernanda Medeiros e Letcia

Albuquerque, que juntas, compartilharam comigo os melhores e os piores momentos, em

terras brasileiras e alm-mar.

Agradecimentos tambm no poderiam faltar para Ana e Clarice Spoladore,

justificados pelo primoroso e gil trabalho de reviso final do texto, sem o qual, sem dvida,

no poderia ser apresentado nestas condies.

E por fim, a esta graa que surgiu em momento de grandes tormentas para me trazer

com sua ternura e compreenso, a paz e a serenidade que ainda me faltavam para seguir ao

fim desta investigao.

Para Ndia, com todo o meu carinho e a minha admirao.

RESUMO

A tese investiga o problema da proteo do meio ambiente diante dos riscos representados pelo uso da tecnologia do DNA recombinante (DNAr) e de algumas de suas aplicaes (plantas transgnicas), sob a perspectiva da organizao dos processos de formao das decises na ordem jurdica brasileira. Para tanto, realiza anlise comparativa entre os regimes normativos norte-americano e europeu, para demonstrar a inadequao de abordagens sobre a avaliao de riscos as quais sejam baseadas em uma dicotomia pura entre cincia e democracia. Sustenta-se que a regulao adequada dos riscos analisados depende da considerao de graus de sensitivismo ecolgico na definio de abordagens de juridicidade e de normatividade. No plano da juridicidade, adota-se como referncia a de um Estado de direito aberto realizao de tarefas ecolgicas sob padres diferenciados de governo: um Estado de democracia e de justia ambiental, que lida com a tarefa de governar os riscos de tecnologias, como a do DNAr, a partir de uma abordagem de governana. Sob o plano de um regime normativo, argumenta-se que a formao das decises depende de uma atividade processual, capaz de assegurar a produo do conhecimento cientfico em contraditrio e de relacion-lo com os resultados de oportunidades de interveno pblica. Por fim, a tese ainda procura enfatizar sobretudo pela aplicao do princpio constitucional da imparcialidade a necessidade de uma atuao administrativa sob as diretrizes de um constitucionalismo administrativo de riscos, capaz de permitir a integrao e a comunicao entre todos os interesses e pontos de vista relevantes para a deciso. Desse modo, indica-se para o regime normativo brasileiro um sentido de co-responsabilizao nas atividades administrativas de instruo e de deciso quanto aos riscos de tecnologias complexas e de suas aplicaes. Palavras-chave: Estado de precauo, direito fundamental ao ambiente, biossegurana de

organismos transgnicos, processos de deciso tecnolgicos, princpio da imparcialidade, princpio da considerao de todos os interesses.

ABSTRACT

This dissertation investigates the problem of environment protection before the risks represented by the use of recombinant DNA technology (rDNA) and some of its applications (transgenic plants) under the perspective of the organization of decision formation processes in the Brazilian juridical order. A comparative analysis between the North-American and European normative regimes is carried out, to demonstrate the inadequacy of risks evaluation approach which have been based on pure dichotomy between science and democracy. It supports that proper regulation of the analyzed risks depends on the consideration of ecological sensitivism where legality and normativity approaches are taken into consideration. In the legality realm, a Legal State opened to the undertaking of ecological tasks under differentiated patterns of government is adopted as reference: a State of democracy and environmental justice, which deals with the duty of technological risk management like the rDNA from a management approach. Under a normative regime plan, it is argued that decision formation depends on a processual activity, able to secure the production of contradictory scientific knowledge and to relate it with opportunity results of public intervention. Finally, this dissertation aims to emphasize mainly by applying the principle of constitutional impartiality the need of an administrative performance under guidelines of a risk administrative constitutionalism, capable of allowing integration and communication amongst all interests and points of view that are deemed relevant for the decision. It is indicated therefore for the Brazilian normative regime a sense of co-responsabilization in the administrative activities of instruction and decision related to the risks of complex technology and its applications. Keywords: State of precaution, basic right to the environment, biosecurity of transgenic

organisms, technological processes of decision, precautionary principle, principle of impartiality, principle of consideration of all the interests.

RSUM

La presente dissertation tude le problme de la protection de l'environnement present dans les risques reprsents en employant la technologie d'ADN recombin (rDNA) et certaines applications (plantes transgniques) sous la perspective de l'organisation des processus de formation de dcision dans l'ordre juridique brsilienne. La courrante analyse comparative entre les rgimes normatifs nord-amricains et europens est effectue, pour dmontrer l'insuffisance de l'approche d'valuation des risques qui ont t bass sur la dichotomie pure entre la science et la dmocratie. On soutient que le rglement appropri des risques analyss dpend de la considration du sensitivism cologique o des approches de lgalit et de normativity sont prises en compte. Dans le royaume de lgalit, un tat de loi ouvert l'entreprise des tches cologiques sous les modles diffrencis du gouvernement est adopt comme rfrence : un tat de dmocratie et de justice environnementale, qui traite le devoir de la gestion des risques technologique comme le rDNA d'une approche de gestion. Dans le cadre d'un plan normatif de rgime, on discute que la formation de dcision dpend d'une activit processuelle, capable dassurer la production de la connaissance scientifique contradictoire et la rapporter avec des rsultats d'occasion de l'intervention publique. En conclusion, cette dissertation vise mettre en relief - principalement en appliquant le principe de l'impartialit constitutionnelle - la besoin d'une excution administratif sous les directives d'un constitutionalism administratif de risque, capables de permettre l'intgration et la communication entre tous les intrts et points de vue qui sont considrs appropris pour la dcision. On indique donc pour le rgime normatif brsilien un sens de Co-responsabilization dans les activits administratives de l'instruction et de la dcision lies aux risques de la technologie complexe et de ses applications. Mots-cls: tat de la prcaution, droit fondamental l'environnement, biosecurity des

organismes transgniques, processus technologiques de la dcision, principe de prcaution, principe de l'impartialit, principe de la considration de tous les intrts.

RELAO DE ABREVIAES E SIGLAS

ADI Ao Direta de Inconstitucionalidade

AgRE Agravo Regimental no Recurso Extraordinrio

ANVISA Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria

CDB Conveno sobre a Diversidade Biolgica

CIBio Comit Interno de Biossegurana

CONAMA Conselho Nacional do Meio Ambiente

CNBS Conselho Nacional de Biossegurana

CTNBio Comisso Tcnica Nacional de Biossegurana

CRFB Constituio da Repblica Federativa do Brasil

DNA/ADN cido Desoxirribonuclico

DNAr DNA Recombinante

DOU Dirio Oficial da Unio

EEA European Environmental Agency

EEB Encefalopatia Espongiforme Bovina

EFSA European Food Safety Authority

EPA United States Environmental Protection Agency

EPIA Estudo Prvio de Impacto Ambiental

EUA Estados Unidos da Amrica

EVU Estudo de Viabilidade Urbanstica

FAO Food and Agriculture Organization of the United Nations

FDA United States Food and Drug Administration

GM Geneticamente Modificado

GRAS Generally Recognized as Safe

IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis

IPCC Intergovernmental Panel on Climate Change

LI Licena de Instalao

LO Licena de Operao

LP Licena Prvia

LULU Locally Undesirable Land Use

MMA Ministrio do Meio Ambiente

MP Medida Provisria

MS Mandado de Segurana

MTD Maximum Tolerated Dose

NAS United States National Academy of Sciences

NRC National Research Council

NIH National Institute of Health

NIMBY Not in My Back Yard

OGM Organismo Geneticamente Modificado

PIDESC Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais

PNB Poltica Nacional de Biossegurana

PNMA Poltica Nacional do Meio Ambiente

PNEA Poltica Nacional de Educao Ambiental

RE Recurso Extraordinrio

RIMA Relatrio de Impacto Ambiental

RNA/ARN cido Ribonuclico

RS Royal Society

SIB Sistema de Informaes em Biossegurana

STF Supremo Tribunal Federal

SIB Sistema de Informaes em Biossegurana

SISNAMA Sistema Nacional de Meio Ambiente

TEDH Tribunal Europeu de Direitos Humanos

UE Unio Europia

USDA United States Department of Agriculture

WHO World Health Organization

WTO World Trade Organization

SUMRIO

INTRODUO.......................................................................................................................17

1 O ESTADO DE DIREITO E O GOVERNO DOS RISCOS DE NOVAS

TECNOLOGIAS ALIMENTARES......................................................................................25

1.1 A REVOLUO VERDE E OS RISCOS DA SEGUNDA MODERNIDADE NO

CONTEXTO DE UMA SOCIEDADE MUNDIAL DE RISCOS............................................36

1.1.1 A Agricultura Industrial e o Papel da Biotecnologia na Proliferao de Novos Riscos no

Sistema Alimentar.....................................................................................................................48

1.2 ESTADO DE DIREITO PROSPECTIVO, SENSITIVISMO ECOLGICO E O

GOVERNO DOS NOVOS RISCOS........................................................................................52

1.2.1 Governar os Riscos em um Contexto de Pluralismo Global............................................52

1.2.2 A Governana como Padro de Regulao dos Riscos de Alimentos Geneticamente

Modificados..............................................................................................................................62

2 BIOTECNOLOGIA E BIOSEGURANA DOS ORGANISMOS GENETICAMENTE

MODIFICADOS: O CONTEXTO CIENTFICO DA TECNOLOGIA E DOS

RISCOS....................................................................................................................................82

2.1 DO GENE AO CDIGO GENTICO...............................................................................86

2.2 BIOTECNOLOGIA, MODIFICAO GENTICA E A TECNOLOGIA DO DNA

RECOMBINANTE...................................................................................................................95

2.2.1 Das Tcnicas Tradicionais de Seleo ao Melhoramento Gentico..............................100

2.2.2 Biotecnologia Moderna e as Modificaes Planejadas..................................................102

2.2.3 Organismos Geneticamente Modificados e Organismos Transgnicos.........................107

2.3 AS TCNICAS DE TRANSFORMAO GENTICA E A CONSTRUO

EXPERIMENTAL DE PLANTAS TRANSGNICAS.........................................................112

2.3.1 O Sistema Agrobacterium..............................................................................................116

2.3.2 Microinjeo..................................................................................................................117

2.3.3 Fuso Somtica e Eletroporao....................................................................................119

2.3.4 Tcnicas Biolsticas........................................................................................................119

2.3.5 Tcnicas Agrolsticas.....................................................................................................120

2.4 OS RISCOS ASSOCIADOS AOS ORGANISMOS TRANSGNICOS.........................120

2.4.1 Os Riscos Sade Humana...........................................................................................123

2.4.1.1 Os precedentes das falhas institucionais nos sistemas de segurana alimentar: o caso

EEB.........................................................................................................................................123

2.4.1.2 O potencial alergnico e a toxicidade dos alimentos transgnicos.............................127

2.4.2 Riscos ao Meio Ambiente..............................................................................................133

2.4.2.1 O movimento de genes................................................................................................133

2.4.2.2 Efeitos sobre o solo, microbiota, espcies no-alvo e biodiversidade........................139

2.5 REDUCIONISMO CIENTFICO E A FORMAO DOS MODELOS DE

REGULAO DE BIOSSEGURANA DE ORGANISMOS TRANSGNICOS..............144

2.5.1 O Princpio da Similaridade ou da Equivalncia Substancial........................................148

2.6 O DESAFIO DA REGULAO NORMATIVA DOS RISCOS EM UM CONTEXTO

DE INSEGURANA CIENTFICA......................................................................................156

3 CONSTITUIO AMBIENTAL E A PROTEO DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS EM CONTEXTOS DE INCERTEZA CIENTFICA......................164

3.1 O AMBIENTE COMO OBJETO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NA ORDEM

CONSTITUCIONAL BRASILEIRA.....................................................................................173

3.1.1 Proteo Intergeracional do Acesso Qualidade dos Recursos Naturais......................188

3.1.2 Prestaes Normativas e Prestaes Fticas Adequadas e Suficientes..........................197

3.1.3 Proteo perante Comportamentos de Particulares........................................................204

3.2 A PROTEO DO AMBIENTE COMO DEVER ESTATAL E SOCIAL DE

PRECAUO NA ORDEM CONSTITUCIONAL BRASILEIRA......................................206

3.2.1 A Afirmao de um Princpio de Responsabilizao Compartilhada............................230

3.3 O DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE

EQUILIBRADO COMO DIREITO A SER PROTEGIDO PELO ESTADO E PELA

COLETIVIDADE...................................................................................................................241

3.3.1 O Problema da Determinao de um Imperativo de Proteo do Direito Fundamental ao

Meio Ambiente: Pressupostos para sua Fixao.....................................................................251

3.3.1.1 A afetao concreta ou potencial da diversidade biolgica e de seus processos

ecolgicos essenciais por intervenes pblicas ou particulares............................................252

3.3.1.1.1 Dever estatal de garantir proteo em relao a riscos e tcnicas submetidos

dfices de cognio pela cincia.............................................................................................255

3.3.1.1.2 A Irreparabilidade e a irreversibilidade dos efeitos da interveno.........................257

3.3.1.1.3 A proibio de retrocesso nos nveis de proteo....................................................260

3.3.1.2 A afetao dos pressupostos mnimos para o desenvolvimento de uma vida

digna........................................................................................................................................266

4 CONSTITUCIONALISMO ADMINISTRATIVO DE RISCO, BIOSSEGURANA, E

A REGULAO DECISRIA DOS RISCOS NA ORDEM JURDICA

BRASILEIRA........................................................................................................................276

4.1 OS REGIMES DE REGULAO DOS RISCOS DE ORGANISMOS TRANSGNICOS

NA EXPERINCIA COMPARADA.....................................................................................281

4.1.1 A Afirmao de uma Abordagem Precaucional nos Instrumentos Internacionais de

Proteo do Meio Ambiente...................................................................................................284

4.1.2 O Modelo Norte-Americano de Regulao Cientfica dos Riscos e suas Limitaes

Estruturais...............................................................................................................................288

4.1.3 Regulao em Rede e Polticas de Precauo na Experincia Europia........................295

4.1.3.1 Os princpios da avaliao dos riscos e a estrutura de deciso na Diretiva n

18/2001/CE.............................................................................................................................297

4.2 O REGIME DE REGULAO DOS RISCOS NO DIREITO BRASILEIRO...............304

4.2.1 A Estrutura do Processo de Formao das Decises sobre Aprovaes Comerciais na

Lei n 11.105/2005..................................................................................................................311

4.2.2 Os Princpios de Avaliao dos Riscos na Lei n 11.105/2005.....................................320

4.3 CONSTITUCIONALISMO ADMINISTRATIVO, PROCESSOS DE DECISO

TECNOLGICOS E DECISO PBLICA NA PNB...........................................................325

4.3.1 Princpios Constitucionais e a Formao das Decises sobre Riscos de Organismos

Transgnicos...........................................................................................................................327

4.3.2 A Imparcialidade Administrativa e a Avaliao Cientfica na Lei n 11.105/2005.......334

4.3.2.1 Imparcialidade e dever de assegurar a exposio da informao disponvel..............337

4.3.2.2 Imparcialidade e dever de aquisio de informao necessria e suficiente..............349

4.3.2.3 Imparcialidade e imperativo de participao na Lei n 9.784/99................................364

4.3.2.4 Imparcialidade, escolhas tecnolgicas e proibio de ponderao parcial.................372

4.3.3 Administrao Democrtica e Administrao Cientfica dos Riscos na Poltica Nacional

de Biossegurana: desafios e Alternativas..............................................................................376

4.3.3.1 Sensitivismo ecolgico e regulao em rede no processo de formao das decises

sobre os riscos na Lei n 11.105/2005. ...................................................................................382

4.3.3.2 O regime jurdico das audincias pblicas em matria de biossegurana de organismos

transgnicos.............................................................................................................................387

CONCLUSES.....................................................................................................................400

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................................410

GLOSSRIO.........................................................................................................................440

ANEXOS................................................................................................................................448

Anexo A - Aprovaes comerciais de plantas transgnicas no Brasil....................................448

Anexo B Aprovaes comerciais de plantas transgnicas na Europa..................................450

Anexo C - Aprovaes comerciais de plantas transgnicas nos Estados Unidos da

Amrica...................................................................................................................................452

Anexo D - Caractersticas dos sistemas nacionais de rotulagem em fevereiro de 2007.........456

Anexo E - Modelos de polticas de rotulagem e graus de implementao em fevereiro de

2007.........................................................................................................................................457

17

INTRODUO

Os debates contemporneos sobre segurana ambiental e alimentar em relao

aos organismos geneticamente modificados (OGMs) ou transgnicos sendo estes,

todos os que contenham em seu genoma, DNA exgeno que tenha sido integrado por

tcnicas de biotecnologia moderna tm suscitado, como questo fundamental para

sua regulao normativa, o tema do controle pblico dos processos de exposio das

opes, de organizao das escolhas, e de formao e tomada de decises sobre sua

segurana.

Esses aspectos vm ganhando nfase no debate internacional pela exposio de

dados e evidncias cientficos capazes de motivar dvidas factveis sobre sua segurana,

gerando uma quebra na relao de confiana social nos prprios julgamentos e

manifestaes das autoridades pblicas sobre a questo.

A reunio de evidncias e de dvidas sobre a segurana de tais produtos, que

constituem aplicaes obtidas pelo uso da tecnologia do DNA recombinante (DNAr)

sendo esta a responsvel por permitir transferncias de genes que seriam impossveis

por processos naturais desafia, sobretudo, a credibilidade e a confiana nos

resultados proporcionados pelos modelos normativos de avaliao, gesto e deciso

sobre os riscos escolhidos pelos governos, no plano da proteo do meio ambiente e da

sade humana.

So riscos incertos e complexos, e os pontos de partida das aes e dos

julgamentos expressam elevados graus de incerteza cientfica, por quase sempre

dependerem de juzos tcnico-cientficos tidos por inaptos ao oferecimento privativo de

prognsticos de segurana.

Nesse sentido, o conjunto de evidncias cientficas que gera estados de

controvrsia pblica sobre a inocuidade da tecnologia e de suas aplicaes aponta para a

admisso da insuficincia dos padres que tm orientado a organizao dos processos

de deciso sobre os riscos potenciais envolvidos. Isso porque tais evidncias esto

confiadas, em geral, a sistemas normativos de regulao cientfica que se valem da

autoridade de especialistas e cientistas para justificar posturas nas avaliaes de riscos e,

principalmente, para justificar as decises que sero tomadas ao final do processo.

De outro modo, as divergncias cientficas tambm se expressam como o

resultado de contextos e realidades culturalmente distintas aspecto que agrava as

18

dificuldades de determinar no apenas como proteger bens jurdicos de riscos incertos e

de difcil cognio pelos especialistas e cientistas, mas tambm como os riscos devem

ser, antes de tudo, compreendidos para essa finalidade.

Esse conjunto de dissensos afeta as escolhas realizadas pelos Estados em

relao definio de quais estruturas e condies so necessrias para assegurar que

um determinado regime ou um modelo normativo proporcione nveis suficientes de

proteo. Nesse contexto, tais divergncias ainda influenciam de modo mais especfico,

a definio de como devem ser constitudas as decises sobre os riscos j referidos, e

que funes so exercidas, ou devem ser exercidas pelos especialistas e cientistas nesses

modelos, tratados como regimes de regulao de riscos. Estes no podem ser

identificados avaliao dos riscos ou ainda, avaliao cientfica dos riscos, sendo

ambas, to somente partes dos processos de deciso, e elementos de uma estrutura mais

abrangente que define como tais riscos so compreendidos e considerados por uma

determinada opo pblica.

Assim descritos os desafios regulao normativa dos riscos, esclarece-se que

para sua anlise, o objeto de investigao foi limitado s aplicaes da tecnologia pela

agricultura moderna, visando a obteno de propriedades transgnicas em plantas,

dotadas de interesse comercial para o mercado de produo de alimentos.

Uma vez limitado o objeto de anlise, o seguinte problema foi proposto para

investigao: possvel admitir, na ordem jurdica brasileira, que um regime jurdico

para a regulao dos riscos oriundos da tecnologia do DNAr e de suas aplicaes, seja

definido sob um enfoque que privilegie a interveno de um grupo determinado de

sujeitos (cientistas e especialistas), em detrimento de outros sujeitos que efetivamente

poderiam influenciar de forma relevante uma deciso sobre tais questes? Do mesmo

modo, ainda foi possvel propor o seguinte problema secundrio como desenvolvimento

daquele: possvel atribuir em tal regime, uma funo de preeminncia a uma qualidade

de conhecimento, o cientfico, objetivando influenciar a deciso pblica sobre os riscos,

considerando como conhecimento cientfico, aquele que resulte de padres e

interpretaes majoritrias sobre a realidade dos riscos?

Como possvel alternativa para o enfrentamento dos problemas apontados,

sugere-se que as decises sobre riscos de grande complexidade, e que no possam ser

conhecidos de forma plena pela cincia, tais como os analisados, no podem prescindir

da organizao de estruturas normativas compatveis e influenciadas por prticas que

denotem um sensitivismo ecolgico. Tais prticas devem assegurar que todo o

19

conhecimento que esteja disponvel, e todos os pontos-de-vista que possa ser relevantes

para a formao da deciso, includas as manifestaes de posturas minoritrias, possam

ser integrados em uma estrutura decisria, no contexto de um processo imparcial. Tal

estrutura processual aqui concebida como aquela que seja capaz de assegurar que no

apenas uma parte das perspectivas ou do conhecimento, mas todas as partes que possam

ser relevantes para a deciso sejam integradas na relao de sua constituio.

De outro modo, sugere-se ainda, como hiptese secundria, que, se no h

proteo adequada e suficiente proporcionada pelos instrumentos normativos

disponveis na ordem jurdica brasileira, este efeito no deriva necessariamente de

dfices de participao pblica, ou de dfices de informao, como causas consideradas

em si mesmas. Os bices esto relacionados deficincia na definio das funes da

participao pblica e dos especialistas no processo de deciso, pelo texto da Lei n

11.105/2005 (Lei de Biossegurana).

Como forma de atingir a confirmao de tais hipteses definiu-se como

objetivo geral, demonstrar as limitaes que um regime de regulao de riscos que

esteja baseado em um enfoque puramente cientfico, tal como aquele definido pela Lei

n 11.105/2005 (Lei de Biossegurana), e que um regime de enfoque puramente

democrtico, representam para a elaborao de decises imparciais. Sob essa

perspectiva, prope-se que tanto um regime que dependa exclusivamente de uma

avaliao cientfica dos riscos, quanto um que sugira substituir a interveno dos

especialistas pela da sociedade, no so capazes de assegurar a considerao mais

completa que for possvel, dos efeitos de tecnologias ou de aplicaes, tais como a do

DNAr e dos OGMS, que ainda no so conhecidas adequadamente pela cincia, e que

esto expostas a controvrsias. Para o seu desenvolvimento, foram fixados quatro

objetivos especficos:

O primeiro prope relacionar a elaborao de um padro de juridicidade estatal

capaz de assegurar proteo diante de novos riscos, com a necessidade de considerao

de diretrizes de sensitivismo ecolgico, propondo-se ser imprescindvel que primeiro,

desenvolvam-se estruturas nacionais sensveis a referncias de democracia ambiental e

tarefas ecolgicas.

Como segundo objetivo especfico, indicou-se o de comparar as realidades

normativas norte-americana e europia no mbito dos enfoques para as avaliaes de

riscos, baseados na dicotomia produto/processo, e demonstrar a impossibilidade de que

20

possa justificar, por si mesma, a distino entre estruturas de formao de decises mais

ou menos precaucionais.

Na seqncia, props-se identificar um estatuto ou um regime de regulao

dos riscos de novas tecnologias no contexto de uma Constituio ambiental no Brasil,

baseado em um modelo que reconhece a complementaridade entre a necessidade de se

controlar os efeitos da prpria tecnologia e de suas aplicaes. O regime delineado

ainda foi vinculado noo pela qual, assegurar proteo suficiente de acesso

qualidade ambiental, ou um mnimo de proteo ambiental para as presentes e futuras

geraes com base no direito fundamental ao meio ambiente, depende da interao entre

realidades normativas subjetivas e objetivas, e principalmente, da organizao de

estruturas de deciso capazes de assegurar o acesso a um mnimo dessa realidade

existencial, e que pressupem a reduo dos riscos que possam comprometer tal

realidade, seja estes certos ou incertos, provenham de onde provierem.

Por fim, como quarto objetivo especfico, props-se apresentar os contornos

que identificam um regime de regulao na ordem jurdica nacional, baseado em uma

estrutura de deciso diferenciada, restringindo-se tal anlise, para o efeito desta

investigao, aos processos relacionados aprovao comercial de plantas transgnicas.

Tal estrutura seria influenciada pelos efeitos de um constitucionalismo administrativo

de riscos, e capaz de assegurar uma compreenso integrada entre cincia e democracia

nas prticas administrativas, tendo em considerao, princpios que regem todas as

formas de atividade administrativa brasileira, com nfase sobre o princpio da

imparcialidade.

O marco terico utilizado parte de uma abordagem sobre a compreenso dos

riscos, tal como apresentada pela teoria da sociedade de risco de Ulrich Beck. A opo

demonstrou-se funcional para analisar os desafios que atualmente se impem para as

tarefas estatais de proteo e regulao normativa, quando situadas perante qualidades

diferenciadas de riscos que se multiplicam nas sociedades contemporneas, como o

resultado do desenvolvimento tecnolgico.

Em relao aos aspectos metodolgicos, faz-se o uso dos mtodos indutivo e

monogrfico para a ordenao da abordagem e orientao do trabalho de investigao,

tendo-se valido das tcnicas de pesquisa bibliogrfica e documental.

As citaes reproduzem uma opo pelo sistema numrico de chamada,

utilizado para apresentar notas explicativas e as respectivas referncias, de acordo com a

alternativa autorizada pela norma tcnica NBR 10520/2002.

21

Para o enfrentamento do conjunto de problemas suscitados, o plano de trabalho

foi estruturado em quatro captulos, objetivando atingir cada um dos objetivos

indicados.

Desse modo, os captulos primeiro e segundo objetivam demonstrar a

necessidade de se organizar uma nova estrutura de juridicidade que seja compatvel com

os desafios suscitados regulao dos riscos de qualidade incerta, entre os quais esto

situados aqueles que constituem o objeto de anlise na tese: os resultantes da tecnologia

do DNAr em si mesma e de suas aplicaes pela agricultura moderna, para a produo

de plantas com propriedades transgnicas de interesse comercial.

Considerando-se as limitaes do conhecimento cientfico disponvel para

orientar concluses sobre a segurana dos OGMs e de sua tecnologia, e diante do estado

de controvrsia pblica gerado pelas incertezas cientficas, sustenta-se, no primeiro

captulo, que um modelo normativo capaz de proporcionar proteo diante de riscos de

novas tecnologias depende de que as estruturas legais e normativas sejam influenciadas

por uma noo de sensibilidade ecolgica.

Como referncia de juridicidade influenciada por essa noo, justificou-se a

proposio de um Estado de direito democrtico e de justia ambiental, vinculado a

tarefas ecolgicas, e ao dever de proporcionar segurana contra ameaas prprias de

uma sociedade mundial de riscos, que compreende a proteo diante de riscos

conhecidos ou ainda incertos, segundo o estado do conhecimento cientfico disponvel.

O segundo captulo prope que uma opo poltica sobre como os riscos devem

ser regulados implica, em ltima anlise, realizar escolhas sobre o modelo normativo de

regulao de riscos, os quais se encontram fortemente influenciados por dogmas

cientficos no que diz respeito segurana da tecnologia e dos produtos que dela

resultem. O resultado dessa influncia analisado, tomando-se como referncia os

principais modelos normativos em vigor, atravs de uma dicotomia processo/produto.

Nesse mesmo momento ainda so expostos conceitos e o processo tecnolgico de

obteno dos OGMs, em conjunto com a descrio dos principais efeitos negativos que

estariam associados ao seu uso, ainda que potencialmente.

Na seqncia, partindo-se de uma noo de sensibilidade ecolgica,

desenvolve-se, no terceiro captulo, a idia de que a organizao das estruturas

normativas capazes de superar os estados de incerteza cientfica e de controvrsia

pblica sobre os riscos, somente seria possvel no contexto de uma ordem constitucional

aberta a referncias ecolgicas. Esta foi definida nos termos de uma Constituio

22

ambiental e teve seus elementos e caractersticas analisadas e situadas na ordem jurdica

brasileira.

Sob as bases de uma Constituio ambiental e de um Estado de direito com

tarefas orientadas para a proteo diante de riscos acessveis ou no ao conhecimento

cientfico disponvel (sob imperativos de preveno e de precauo), prope-se,

finalmente, que a elaborao de uma normatividade adequada para os riscos

examinados, tem seu fundamento em um direito a ser protegido pelos Poderes Pblicos

e pela coletividade. Trata-se de uma representao do prprio direito fundamental ao

meio ambiente, que privilegia uma abordagem sobre como as decises so formadas,

portanto, sobre os processos de deciso.

Nesse sentido, concebe-se a proteo diante dos riscos como um resultado que

depende da interao entre as realidades subjetiva e objetiva do direito ao meio

ambiente com nfase sobre a segunda, a realidade dos deveres de proteo , da

presena de um conjunto de garantias procedimentais, e de uma abordagem diferenciada

sobre a relao entre os sujeitos envolvidos no processo de deciso: cientistas, leigos e

autoridades pblicas.

Desse modo, desenvolvem-se nesse captulo os principais elementos que

seriam capazes de definir uma Constituio ambiental na ordem jurdica brasileira, sob

uma clara orientao que reconhece ao direito fundamental ao meio ambiente, uma

funo de preeminncia, que seria exercida por uma leitura de complementaridade, na

definio de uma atuao estatal compatvel com as tarefas de proteo diante de riscos

incertos de novas tecnologias. Na ordem constitucional brasileira, tal atuao no

exclusivamente estatal, relacionando-se de forma necessria com a interveno da

coletividade, igualmente vinculada a uma imposio de proteo do meio ambiente pelo

atendimento de deveres fundamentais.

Para tanto, o direito fundamental ao meio ambiente tem seu sentido elaborado

no contexto de uma abordagem comparativa, gerando uma leitura que o prope como o

resultado de estrutura que conjuga necessidades de proteo puramente objetivas, com

hipteses de proteo de realidades subjetivas, em um regime pelo qual que no se pode

prescindir de qualquer uma das realidades para a proteo do bem jurdico.

De outro modo, argumenta-se que o regime nacional de juridicidade dos riscos

que emerge de uma Constituio ambiental funda-se na interpretao da clusula de

Estado de direito, desenvolvido como um Estado de preveno e como um Estado de

precauo de riscos.

23

Essa elaborao encontra seu sentido prtico em um regime de regulao que

contempla a proteo perante os efeitos das aplicaes de novas tecnologias e a

proteo diante dos efeitos da tecnologia, em si mesma.

Por fim, o quarto captulo procura apresentar os argumentos que demonstram a

hiptese central da tese, pela qual as deficincias do modelo normativo brasileiro de

regulao de riscos de OGMs devem ser reconhecidas, em primeiro lugar, como um

efeito de deficincias nas estruturas de formao das decises. A reproduo dessas

deficincias resultante de uma leitura de aplicao restritiva da Lei n 11.105/2005,

tida equivocadamente como a fonte exclusiva do regime normativo nacional, que no

permite a formao de decises imparciais sobre os riscos, nos processos destinados

aprovao comercial.

Expondo-se primeiro uma anlise comparativa sobre as estruturas de deciso

vigentes nos Estados Unidos da Amrica (EUA) e na Unio Europia (UE), e

posteriormente, uma anlise sobre a estrutura nacional, objetiva-se demonstrar,

decisivamente, que as limitaes do enfoque definido pela Lei de Biossegurana tm

sua causa na circunstncia de que a avaliao de riscos realizada no mbito dos rgos

responsveis por analis-la na ordem nacional a Comisso Tcnica Nacional de

Biossegurana (CTNBio) em primeiro lugar, e o Conselho Nacional de Biossegurana

(CNBS), de forma subsidiria no proporcionam sequer que todo o conhecimento

cientfico relevante possa ser objeto de exposio e, posteriormente, de avaliao pelos

responsveis por realizar suas escolhas.

Nesse sentido, sustenta-se que posies cientficas minoritrias que tenham

sido o produto de atividade de investigao desenvolvida sob os princpios da

objetividade, da transparncia e da independncia tambm devam ser integradas aos

processos de deciso como elementos situados em mesma posio de relevncia de

outras qualidades de conhecimento (estas resultantes da exposio dos pontos de vista

da coletividade), mas to-somente como elementos que interessam a um momento de

instruo processual.

Perante as deficincias que so apontadas como reproduzidas no processo de

avaliao de riscos e de deciso definidos pela Lei n 11.105/2005, afirma-se que, como

rgos da Administrao Pblica e vinculados aos princpios constitucionais do devido

processo legal, contraditrio, e principalmente, ao da imparcialidade (que resultante

do princpio da impessoalidade, na ordem constitucional brasileira), no podem se

eximir do dever de assegurar, em sua atividade, a fixao de um devido processo legal

24

na atividade de formao das decises sobre os riscos, e tampouco, da sujeio de sua

atividade s regras fixadas pela Lei n 9.784/99 (Lei do Processo Administrativo

Federal). O texto constitui a referncia para a exposio de novas formas de

participao pblica e de interveno na formao das decises regidas pela Lei de

Biossegurana, tais como as conferncias de cidados e as conferncias de consenso.

De outro modo, a Lei n 9.784/99 tambm constitui a referncia que justifica a

considerao de um regime diferenciado para as audincias pblicas que devem ser

realizadas em tais processos. Foi-lhe reservada uma funo de instruo, em momento

anterior atividade decisria, de forma distinta ao regime definido pelas Resolues n

01/86, 09/87, e 237/97, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA),

relativas ao Estudo Prvio de Impacto Ambiental (EPIA).

Assim, considerando-se a definio de um direito a ser protegido pelos poderes

pblicos e pela coletividade, e analisada a experincia relacionada a novos instrumentos

de participao pblica no domnio de tais processos de deciso, nominados como

tecnolgicos, procura-se sustentar que a reviso da abordagem praticada no mbito da

CTNBio e do CNBs para a formao das decises sobre potenciais efeitos negativos dos

alimentos transgnicos deve se submeter a princpios mnimos de um

constitucionalismo administrativo de risco.

25

1 O ESTADO DE DIREITO E O GOVERNO DOS RISCOS DE NOVAS TECNOLOGIAS ALIMENTARES

Uma primeira abordagem sobre o quadro da proliferao de ameaas ao meio

ambiente que fosse relevante para o objeto desta investigao poderia ser realizada no

contexto de um modelo terico que sugira uma modernidade em transio, ou paradigmas em

transio.1 Contexto no qual se verificam rupturas radicais com a tradio e perplexidades

resultantes do enfrentamento do novo, sendo este o prprio presente, que congrega, entre

outras, representaes em transio sobre os estados de perigos a que toda a coletividade se

encontra atualmente submetida.

Essas representaes expem, em primeiro plano, uma perspectiva que posiciona o

processo de transio como uma crtica da modernidade, crtica que , em primeiro lugar,

reveladora de ordens de perigos desestabilizadores das compreenses sociais da realidade.2

As imagens de instabilidade e insegurana que compem a representao de um

sentido negativo da modernidade contribuem tambm para a formao crescente de uma

particular representao coletiva do perigo, que se reproduz e se multiplica at que nos

permita identificar uma especfica forma coletiva de compreenso desses perigos. Esta se d

em termos de uma relao de esclarecimento e impotncia, de cincia e catstrofe, que pode

ser sintetizada por meio de uma particular narrativa da modernidade elaborada por Sousa

Santos3, narrativa de razes e opes, tomando como parmetro de referncia o enigmtico

Angelus Novus, o anjo da histria, segundo Benjamin. De costas para o futuro, ao mesmo

tempo em que presencia o desenvolvimento do passado, o anjo quer enfrentar a catstrofe

1 A representao referida de Sousa Santos, que a prope como uma leitura particular sobre a ps-

modernidade, argumentando que moderno e ps-moderno conviveriam em uma relao que no seria exatamente de ruptura ou continuidade, mas de transio, com momentos de ruptura e momentos de continuidade. (SOUSA SANTOS. Boaventura de. Pela mo de Alice: o social e o poltico na ps-modernidade. 7. ed., So Paulo: Cortez, 2000, p. 102.)

2 SOUSA SANTOS, Boaventura de. A queda do Angelus Novus: para alm da equao moderna entre razes e opes. Revista Crtica de Cincias Sociais, Coimbra: Centro de Estudos Sociais, n. 45, p. 5, maio 1996. Souza Santos organiza, a partir da obra de Walter Benjamin, um elenco ou uma ordem de imagens desestabilizadoras essenciais para uma sntese dos problemas e perigos do presente: a) o sofrimento humano; b) o epistemicdio; c) o apartheid global; d) a tragdia dos comuns, o perigo mais importante para a compreenso da crise ecolgica nesse contexto de transio.

3 Ibid., p. 8. Quadro de Paul Klee, que representa um anjo a se afastar de algo que olha fixamente. Em sua tese n. 9, sobre o

conceito de histria, Benjamin considera que esse seria o retrato do anjo da histria: com o rosto voltado para o passado, olha para a catstrofe sem, no entanto, nada poder fazer, porque uma tempestade sopra do Paraso e o detm, deslocando-o ento para o futuro, que se chamaria progresso. (BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e tcnica, arte e poltica. Traduo de Sergio Paulo Rouanet. 2. ed. So Paulo: Brasiliense, 1986. p. 226.)

26

com o conhecimento que rene dos eventos (razes), contudo forado a optar por um futuro

que no conhece, para o qual atrado.

Esse conjunto de representaes poderia descrever com fidelidade os estados de

ameaas que atingem o meio ambiente, consideradas como efeitos ou ainda como uma

seqncia dessa crise da modernidade. De outro modo, tambm permitiria revelar as faces da

desconfiana na capacidade de redeno e emancipao que poderia ser proporcionada pela

cincia para todos os problemas e conflitos emergentes da modernidade, contribuindo para a

formulao de uma terceira representao possvel para essa modernidade em transio, a de

tragdia, que proporia uma forma particular para sua compreenso e descrio, definida por

Sousa Santos4 como a tragdia da narrativa da modernidade ocidental.

Contrapondo-se a uma narrativa de tragdia, prope-se como ponto de partida, neste

captulo, uma narrativa que se funda basicamente no desenvolvimento e fortalecimento dos

elementos sociais, polticos e culturais necessrios organizao de modelos de poltica, de

juridicidade e de normatividade alternativos quele modelo de perplexidades e desiluses

associado representao de tragdia. Tais perplexidades so reproduzidas nos espaos de

produo da normatividade da modernidade fundamentalmente como uma crise da

regulao.5

Nesse plano de argumentao, as sociedades modernas carecem, em grande parte, da

capacidade de se comunicar adequadamente com os desafios emergentes das transformaes

dos processos econmicos, culturais e sociais, que sero restringidos, nesta investigao: a)

aos efeitos do uso da tecnologia do DNA recombinante (DNAr) pela agricultura industrial,

para a obteno de alimentos;6 b) aos efeitos produzidos pela aplicao dessas inovaes

tecnolgicas sobre o meio ambiente e suas projees reflexas sobre o desenvolvimento de

condies de uma vida digna coletividade, proporcionada diretamente pelo acesso

qualidade dos recursos naturais.

4 Cf. SOUSA SANTOS, Boaventura de. A queda do Angelus Novus..., p. 9. 5 Nessa crise, a equao razes/opes se concretiza juridicamente por uma frmula de impotncia, apesar do

esclarecimento, e de ineficcia, apesar do domnio da tcnica, materializando em sntese, os dfices de regulao. Consultar glossrio. 6 Os conceitos de organismos geneticamente modificados, de alimentos geneticamente modificados e a anlise

especfica dos efeitos da aplicao desta tecnologia nos sistemas alimentares sero apresentados no segundo captulo. Cumpre, entretanto, neste momento, antecipar uma definio de biotecnologia moderna, proposta pela Comisso do Codex Alimentarius, baseando-se no Protocolo de Cartagena sobre a Biossegurana, como: [...] a aplicao de (i) tcnicas in vitro de cido nuclico, incluindo o cido desoxirribonuclico (DNA) recombinante e a injeo direta de cido nuclico em clulas ou orgnulos, ou (ii) a fuso de clulas mais adiante da famlia taxonmica, que superam as barreiras fisiolgicas naturais de reproduo ou recombinao e que no so tcnicas utilizadas na reproduo e seleo tradicionais. (ORGANIZACIN MUNDIAL DE LA SALUD. Departamento de Inocuidade de los Alimentos. Biotecnologia moderna de los alimentos, salud y desarrolo humano: estudio basado en evidencias. Ginebra: Suiza, 2005, p. 2).

27

Os efeitos desse que constitui um novo padro de ameaas no podem ser

compreendidos restritivamente como desafios resultantes de uma leitura objetiva sobre a

transformao da realidade das ameaas, mas, principalmente como se demonstrar ao

longo deste captulo , como representaes que as sociedades contemporneas propem

sobre essas ameaas. Estas podem compreender tanto ameaas que a experincia humana e o

conhecimento cientfico j permitiram conhecer, como novas ameaas que ainda se encontram

distantes da possibilidade e da capacidade de que possam ser integralmente conhecidas.7

A representao proposta pretende fixar as limitaes da capacidade de centralizao

e monopolizao das opes e das alternativas para a regulao dos problemas de uma

sociedade que se encontra em transio. So limites que se posicionaram como resultado da

ineficcia da equao moderna razes/opes, que pouco pde contribuir para a concretizao

de grande parte dos projetos prometidos pela narrativa ocidental da modernidade. Como bem

observa Sousa Santos, so projetos ricos pela diversidade de idias, mas ambiciosos demais,

razo pela qual podem contemplar tanto o excesso das promessas como o dfice do seu

cumprimento.8

Das muitas conseqncias possveis do reconhecimento da limitao do extenso

projeto da modernidade, interessa acentuar apenas uma delas, que se manifesta enquanto

dfices de regulao, os quais enfatizam o esgotamento de um modelo particular, justamente

aquele que encontrou sua justificao em uma razo de centralizao poltica do poder e da

produo normativa em um Estado nacional.

Conforme esclarecem Held e McGrew 9,

[...] essa lgica de poder particularmente inadequada e inapropriada para resolver os muitos temas complexos, desde a regulao econmica at o esgotamento de recursos e a degradao ambiental, os quais geram a velocidade aparentemente cada vez maior um entrecruzamento .

A reproduo desse conjunto de dificuldades de organizao do exerccio do poder

poltico pelas formaes estatais sobre a definio de seus objetivos assume relevncia ainda

mais acentuada, quando as transformaes no se estabelecem apenas como modificaes

7 A diferenciao entre padres de ameaas justificadas a partir de uma perspectiva tradicional e mtica e aqueles justificados a partir do resultado de processos de deciso no domnio econmico, poltico e social, afetos prpria dinmica de transformao das relaes coletivas de uma modernidade em transio, ser objeto de anlise na prxima seo deste captulo, organizada em torno da distino entre as ameaas da primeira modernidade e os riscos da segunda modernidade.

8 SOUSA SANTOS, Boaventura de. Pela mo de Alice..., p. 78. 9 HELD, David; McGREW, Anthony. Globalizacin/antiglobalizacin. Sobre la reconstruccin del orden mundial. Traduccin de Andrs Francisco. Barcelona: Paids, 2003, p. 143.

28

localizadas de contextos culturais, sociais e econmicos locais, mas como o resultado

concreto da globalizao contempornea desses processos.

Ressalte-se que a abordagem utilizada para o fenmeno da globalizao limita-se a

consider-la como fenmeno pelo qual as transformaes acontecem como processos e

possuem dimenses transnacionais, no sendo lineares nem totais, distinguindo-se das noes

de globalidade (pela qual a desvinculao de todas as relaes sociais e de poder em relao

aos Estados nacionais j seria um processo irreversvel) e de globalismo (em que as relaes

de poder seriam o resultado da capacidade de transformao atribuda s relaes

desenvolvidas em um mercado mundial).10

De outro modo, a definio utilizada sobre globalizao no tem relao com

interpretaes referidas por Held e McGrew11 como cticas geralmente associadas a

imagens hegemnicas sobre o poder estando mais prxima de posturas prprias dos

tericos globalistas, que propem compreender a globalizao contempornea como um

processo que implica significativas mudanas globais e transformaes sobre a vida social e a

ordem mundial que importam transformaes sobre: a) os padres tradicionais da organizao

socioeconmica; b) o princpio territorial; c) o poder.

Se de um lado as relaes de poder que se organizam perdem uma referncia de

centralidade em uma representao nacional e localizada, tambm deve ser enfatizado que as

relaes sociais tambm foram atingidas por transformaes sob a mesma nfase do critrio

espacial, contribuindo para a formao de propostas como a apresentada por Beck12, de uma

sociedade mundial de vertente cosmopolita, policntrica e que constituiria a representao

contempornea de uma forma diferenciada de Estado, um Estado no-mundial.

Sob esta abordagem, Beck sustenta que, perante os processos de globalizao, uma

sociedade mundial constituiria uma sociedade sem Estado-mundial e sem governo mundial,

noes absolutamente desvinculadas de uma noo hegemnica do poder poltico. Para

Beck13, essa sociedade mundial no seria uma sociedade mundial estatal e tampouco uma

sociedade mundial econmica, mas uma sociedade no-estatal prpria de uma segunda

modernidade, no sentido de que, ao lado de uma sociedade de Estados nacionais (modelo de

sociedade e de relaes tipicamente associadas primeira modernidade), outra rede de

relaes se estabelece entre Estados, sociedades e outros atores transnacionais. 10 Nesse mesmo sentido, diferenciando o fenmeno da globalizao, das noes de globalidade e globalismo

conveniente consultar: BECK, Ulrich. O que globalizao? Equvocos do globalismo: resposta globalizao. Traduzido por Andr Carone. So Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 157-159, 181.

11 HELD, David; McGREW, Anthony. Globalizacin/antiglobalizacin..., p. 19. 12 BECK, Ulrich, O que globalizao?..., p. 181. 13 Ibid., p. 181-182.

29

Sob as referncias de um processo contemporneo de globalizao, da organizao

das relaes sociais sob a forma de uma sociedade mundial (adiante nominada como uma

sociedade mundial de riscos) e da admisso de que as relaes sociais e de poder so agora

policntricas, no se quer propor a desconsiderao da referncia estatal (sociedade mundial

sem Estado ou governo sem Estado ou sua substituio (mesmo em nome de representaes,

como a de um Estado transnacional).14 Tampouco se pretende defender a substituio dos

padres de exerccio do poder poltico em nome de uma autoridade global (que ser objeto de

anlise sob uma abordagem de governana).

A globalizao, como processo que importa transformaes espaciais sobre relaes

sociais econmicas e polticas, prope, nos limites desta tese, apenas o contexto a partir do

qual alguns dos efeitos desses processos se apresentam e propem novas formas

organizatrias para os Estados nacionais.

Desse modo, quando se sustenta a necessidade de considerar novas formas de

juridicidade, sua exposio e elaborao ainda sero fixadas a partir de uma representao

nacional de Estado, mas sob estruturas organizatrias revistas. Tal reviso deve ser

compreendida como um efeito das transformaes globais, resultando, como principal

conseqncia, considerar o exerccio do poder poltico uma estrutura policntrica, que se faz

mediante a admisso de sua interao e da concorrncia de seu exerccio com a iniciativa de

outros atores e de outras instncias situadas alm dos espaos nacionais, em um cenrio de

expanso.

Portanto, de forma distinta de interpretaes hegemnicas que tendem a associar o

processo de globalizao a um cenrio de hegemonia econmica, a interpretao globalista

procura to-somente enfatizar os atributos espaciais desse processo e as transformaes que

tm como ncleo o poder, situando a globalizao como a escala em expanso em que se

organiza e se exerce o poder.15

As transformaes econmicas reproduzem, portanto, apenas uma das dimenses do

processo, que tem como centro as relaes de poder e a forma de seu exerccio a partir da

expanso de sua dimenso espacial, assim como o impacto dessas transformaes sobre as

sociedades contemporneas.

14 Alternativa proposta por Beck para a globalizao; no admitida, contudo, nesta tese. (Cf. BECK, Ulrich. O

que globalizao?..., p. 191-193.) 15 HELD, David; McGREW, Anthony. Globalizacin/antiglobalizacin..., p. 20.

30

Canotilho chega mesmo a considerar que, em um contexto de transformaes, as

relaes sociais tendem a ser concebidas em um processo de contratualizao e a partir do que

classifica como os quatro contratos globais, a saber:

a) o contrato para as necessidades globais (compromisso para a remoo das

desigualdades);

b) o contrato cultural (proteo da tolerncia e promoo do dilogo de culturas);

c) o contrato democrtico (compromisso em prol da proteo da democracia como

modelo global de governo);

d) o contrato do planeta Terra, que implica a garantia de um modelo de

desenvolvimento sustentvel que produzir, em ltima anlise, a perda do carter

estatizante e total das Constituies dirigentes, substituindo a mensagem

dirigente pela constitucionalizao da responsabilidade, ou seja, a garantia de

condies mnimas de coexistncia da dialogicidade dos valores, aes, e

conhecimentos.16

Sob esta perspectiva, os governos enfrentam uma extensa e complexa rede de

conflitos que relacionam problemas de diversas ordens e contextualizados de forma global,

em que as solues esperadas tambm no se circunscrevem a medidas ou iniciativas locais.

Esses aspectos no apenas expem a deficincia do exerccio das funes atualmente

exercidas pelos governos, como tambm lhes propem e ao Estado de direito novos desafios

sua capacidade de regulao. Esta precisa, no momento, propor respostas compatveis e

adequadas a um contexto de problemas ambientais de nova gerao.17

Tal capacidade de regulao se encontra situada e desafiada perante a emergncia da

flexibilizao e da autonomizao das fontes de composio do poder, de percepo dos

conflitos e de ordenao de relaes em escala global, cenrio que pode ser baseado naquilo

que Held e McGrew18 tratam por uma comunidade poltica de destino. Isso se deve porque,

conforme esclarecem os autores:

16 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Rever ou romper com a constituio dirigente? Defesa de um

constitucionalismo moralmente reflexivo. Cadernos de Direito Constitucional e Cincia Poltica, So Paulo: RT, ano 4, n. 15, p. 17, abr./jun. 1996.

17 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito constitucional ambiental portugus: tentativa de compreenso de 30 anos das geraes ambientais no direito constitucional portugus. In: CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes; LEITE, Jos Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2007. p. 1-3.

18 HELD, David; McGREW, Anthony. Globalizacin/antiglobalizacin..., p. 142.

31

J no se pode dar-se por suposto que o foco do poder poltico efetivo est simplesmente nos governos nacionais: o poder efetivo compartilhado e intercambiado entre as diversas foras e instituies nos mbitos nacional, regional e internacional.19

Em um contexto em que os efeitos da crise ambiental proliferam globalmente, as

alternativas para sua resoluo tambm tendem a ser influenciadas decisivamente pelo

processo de globalizao, contribuindo para a modificao dos padres de exerccio do poder

poltico, que se encontra cada vez mais aberto a modelos de cooperao entre os Estados-

nacionais. No plano nacional, novas formas de juridicidade privilegiam a flexibilizao e a

interveno de outros agentes nos processos de formao das decises pblicas, mediante

solues baseadas na cooperao e na negociao entre os envolvidos nos conflitos.

Held e McGrew20 chegam a mencionar que, sob uma perspectiva globalista, assiste-

se no apenas a uma modificao do governo convencional para um modelo de governana

global, como do Estado moderno para um sistema de mltiplos nveis de poder e de

autoridade.

Portanto, tratando-se de ameaas que tm causa em decises e iniciativas humanas21,

a modificao de seu padro impe uma nova classe de problemas que desafia sua regulao

pelo poder estatal, impondo, neste sentido:

a) a atribuio de funes, tarefas e objetivos diferenciados ao Estado, mediante a

integrao de um pluralismo de valores;

b) a organizao de padres diferenciados de governabilidade para o exerccio do

poder poltico pelas formaes estatais;

c) a estruturao de uma normatividade compatvel com um padro de ameaas que

no podem ser enfrentadas por meio de iniciativas baseadas exclusivamente em

julgamentos precedidos da experincia humana sobre os fenmenos da realidade.

O primeiro argumento que justifica as imposies referidas reside no reconhecimento

de que os efeitos dos processos de expanso no se limitam geograficamente, indicando a

ineficcia de aes localizadas e as limitaes de um modelo liberal de ao estatal, que

propunha a proteo contra perigos domsticos e externos.22

19 HELD, David; McGREW, Anthony. Globalizacin/antiglobalizacin, p. 142. 20 Ibid., p. 139. 21 A distino entre esse padro de ameaas (risco) e os perigos objeto de desenvolvimento na seqncia deste captulo. 22 Sobre essa restrio do exerccio do poder estatal e sua vinculao definio de soberania, consultar:

FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. Traduo de Carlo Coccioli e Mrcio Lauria Filho.

32

Em segundo lugar, as fontes das ameaas tambm no esto limitadas

geograficamente e envolvem fatores e variveis em uma relao de sinergia e acumulao,

no sendo possvel, em princpio, determinar a responsabilidade por sua produo e, portanto,

situ-las ou atribu-las restritivamente capacidade de deciso de instncias nacionais, sendo

difcil determinar a distino entre assuntos internos e externos das naes.23

O terceiro argumento decisivo relaciona-se proliferao de fontes de produo

normativa sobre processos econmicos e tecnolgicos que no esto concentrados em regras

que sejam o produto do exerccio de uma fonte de poder soberana, de modo que os riscos

desses processos, definitivamente, deixam de ser um problema exclusivamente nacional.

Se a opo poltico-constitucional definida pelo Estado democrtico de Direito j

encerra uma complexa rede de objetivos, tarefas, direitos e obrigaes de ordem poltica,

econmica e social, com pretenses de realizao e efetividade que, no raras vezes,

organizam-se em relaes de tenso e coliso, novos objetivos so agora acrescentados

diretamente sua capacidade de regulao.

Como resultado de imposies de novas tarefas e objetivos organizao do

exerccio do poder atravs de uma juridicidade de Estado de direito, a capacidade e a eficcia

regulatria dos governos convivem cotidianamente com a difcil tarefa de modificar, adequar

e compatibilizar as prprias condies de governabilidade com a necessidade de garantir as

capacidades de desenvolvimento econmico e de inovao tecnolgica, assim como a

proteo do meio ambiente, compreendido agora em um contexto global.

Essa manifestao reproduz a necessidade de que os problemas sejam considerados

pelo Estado atravs de padres de governabilidade diferenciados, que reproduzam atributos

que se aproximem cada vez mais de uma governana dos riscos.24

Neste mesmo sentido, a funo estatal de proteo de bens jurdicos uma vez

exposta a necessidade de garanti-la perante riscos cuja previsibilidade se encontra cada vez

mais distante das condies de cognio cientfica passa por substancial redefinio em

seus instrumentos e principalmente em seus objetivos. Isso porque justificar iniciativas que

tenham como fundamento o conhecimento experimental e prvio sobre as ameaas para

somente ento faz-lo em relao quelas que esto fundamentadas nesse conhecimento

retrospectivo revela-se incompatvel com as potencialidades dos efeitos negativos das

So Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 27-38.

23 HELD, David; McGREW, Anthony. Globalizacin/antiglobalizacin..., p. 147. 24 Definio que ser analisada neste captulo.

33

ameaas que so veiculadas neste estgio do desenvolvimento em que se encontra a

agricultura industrial.

So tais ameaas que constituem o objeto desta tese: as ameaas associadas aos

alimentos geneticamente modificados, ou mais precisamente, aos alimentos obtidos mediante

o emprego de tcnicas de biotecnologia moderna.25 Ameaas que tm origem na aplicao da

tecnologia do DNAr pela agricultura moderna [industrial] e se estendem ao processo de

produo de alimentos, propondo conseqncias tecnolgicas que ainda so, em geral,

inacessveis ao conhecimento cientfico em um conjunto expressivo de variveis.26

Neste cenrio, admitindo-se que bens e valores de especial relevncia para os

Estados e suas manifestaes constitucionais de juridicidade como a vida em todas as suas

formas, a dignidade da pessoa humana e a manuteno das condies fsicas, culturais e

sociais para seu livre desenvolvimento podem ser atingidos de forma irreversvel pelos

efeitos de tais ameaas e pela concretizao dos riscos emergentes da nova gerao de

problemas ambientais,27 o objetivo de proteo da sociedade, de suas liberdades e das

decises fundamentais da coletividade pelas instituies e instrumentos vinculados forma

jurdica Estado de direito tende a exigir a afirmao de uma nova juridicidade para o

enfrentamento dos riscos, que agora se manifestam como riscos globais.

Exigem-se, portanto, novas formas de atuao destinadas a concretizar os mesmos

objetivos de segurana inspiradores do que se convencionou tratar por perspectiva liberal dos

direitos fundamentais.

A atuao do Estado de direito passa a ser orientada preveno de riscos, mediante

a assuno de novas tarefas, e que passam a ser desenvolvidas, a partir deste momento, sob a

a configurao de um Estado que se manifesta, ao mesmo tempo, como um Estado de

preveno de riscos28 e um Estado de precauo de riscos.29 30

25 O processo de modificao das representaes sociais sobre as ameaas emergentes da agricultura moderna

[industrial], no contexto da Primeira e da Segunda Revoluo Verde, ser examinado na prxima seo deste captulo.

26 Aspecto que ser objeto de anlise no segundo captulo. 27 A estrutura dogmtica do sistema de proteo do meio ambiente na Constituio brasileira ser examinada no

terceiro captulo. 28 GRIMM, Dieter. Constituio e poltica, p. 279-280; GRIMM, Dieter. Constitucionalismo y derechos

fundamentales, p. 192. A referncia tambm mencionada em: KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Os (des)caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 44.

29 A noo de precauo na condio de tarefa estatal, visando o enfrentamento de riscos expostos a incertezas, tambm considerada por Grimm, ao lado de tarefas de preveno perante riscos j conhecidos pela experincia. (GRIMM, Dieter. Constitucionalismo y derechos fundamentales, p. 193). Em outro sentido, referindo-se aos Estados de precauo, distinguindo-os de Estados protetivos, pelo critrio da considerao ou desconsiderao do princpio da precauo em seus sistemas normativos internos, consultar: REHBINDER, Ekhard. Precaution and sustainability: two sides of the same coin? In: DERANI, Cristiane. (Org.).

34

De outro modo, a proteo de um conjunto plural de valores que possui argumentos

de justificao moral bastante distintos31 tambm se encontra associada definio dessas

novas tarefas, orientando a transio da mesma forma jurdica estatal para um padro de

juridicidade que se manifesta, no plano substancial, como um Estado verde32 e,

principalmente, como um Estado do ambiente prospectivo,33 uma vez que prope justificar,

no plano de uma juridicidade estatal, a considerao de objetivos no necessariamente

antropolgicos e uma atuao dinmica mediante a considerao do desenvolvimento

tecnolgico e cientfico.

Hberle34 chega mesmo a enfatizar a integrao de uma varivel ambiental como

parte de um conjunto de reformas que deveriam ser realizadas sobre a organizao dos

Estados-nao, indicando, entre outras exigncias, a de que enfrentem o que chama de

desafios ambientais relacionados necessidade de se reduzirem os nus ambientais.

Portanto, compreender a transformao das ameaas ambientais exige,

necessariamente, reviso de elementos que fundamentaram uma leitura moderna da realidade,

vinculada nfase sobre a noo de soberania, e a padres liberais de justificao do poder

estatal. Estes ltimos representados pela regulao centralizada da normatividade jurdica,

limitao das solues para o enfrentamento dos perigos, e limitao das hipteses de

problematizao e compreenso dos perigos.

Tal esforo de reviso se faz em favor de uma racionalidade que permita considerar,

decisivamente, exigncias de enfrentamento e deciso sobre problemas que ainda no

puderam ser objeto de um juzo experimental; problemas que no reproduzem apenas

Transgnicos no Brasil e biossegurana. Revista de Direito Ambiental Econmico, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, n. 1, p. 20, 2005.

30 Em sentido semelhante, sem reconhecer, entretanto, uma distino entre preveno e precauo, Gomes tambm salienta que a funo estatal de assegurar a preveno de perigos j conhecidos pela experincia e suscetveis de antecipao, viu-se ampliada diante da necessidade de que o Estado tambm proporcionasse a antecipao diante de eventos imprevisveis e incertos, prprios de um contexto de desenvolvimento tecnolgico, e da transmutao dos perigos regulados por um Estado liberal, em riscos a exigir regulao por um Estado democrtico de direito. (AMADO GOMES, Carla. Risco e modificao do acto autorizativo concretizador..., p. 418).

31 Trata-se aqui da construo das bases de fundamentao de um Estado democrtico de direito ambiental, ou de uma organizao estatal que se encontre suscetvel de ser influenciada pela considerao de valores ecolgicos, j que outras tarefas foram atribudas. Neste plano de argumentao, o Estado democrtico de direito ambiental ser considerado, neste captulo, como a medida organizatria de mediao dessas tarefas, que se refletem em aes vinculadas a um sensitivismo ecolgico. Para o conceito de sensitivismo ecolgico, que ser examinado como condio de afirmao desse Estado democrtico de direito ambiental, parte-se da abordagem proposta por Perez. (PEREZ, Oren. Ecological sensitivity and global legal pluralism, p. 28-30.)

32 A expresso e a definio utilizadas neste captulo so atribudas a Eckserley. (ECKSERLEY, Robyn. The green state, p. 2.)

33 Representao proposta por Canotilho em: CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Privatismo, associacionismo e publicismo no direito do ambiente..., p. 151.

34 HBERLE, Peter. The constitutional state and its reform requirements, p. 82.

35

ameaas j conhecidas pela sociedade e pelas instituies, mas que compreendem tambm

ameaas qualitativamente diferenciadas. Estando tais ameaas situadas em um modelo social

de transio, convergem para sua considerao a partir de um segundo contexto, o de uma

sociedade mundial de risco.

Da mesma forma, convergem para sua considerao por um modelo estatal exposto a

exigentes necessidades sociais de proteo de valores que possuem argumentos de justificao

moral, em princpio distintos,35 reunidos em torno do marco de um Estado democrtico de

direito ambiental ou Estado democrtico de ambiente.36

Sob esta perspectiva, o captulo prope primeiro situar as ameaas produzidas pelas

aplicaes biotecnolgicas na agricultura industrial, no contexto de uma sociedade mundial

dos riscos e dos riscos de uma segunda modernidade, e como o resultado do desenvolvimento

de um contexto original de perigos produzidos pela agricultura industrial que se convencionou

tratar por uma Revoluo Verde.

Neste sentido, procura-se dissociar a compreenso dos efeitos das novas aplicaes

ainda imprevisveis e inacessveis ao conhecimento cientfico disponvel, no que diz

respeito a uma definio de perigo como condio que justifica sustentar a inadequao de

seu controle por instrumentos de antecipao baseados no clculo e na experincia.

Posteriormente, os riscos so situados no contexto dos marcos de juridicidade e de

normatividade que constituiro os pontos de partida para sua compreenso e para a definio

do contedo das estruturas polticas e organizatrias.

Desse modo, sustenta-se que os marcos de juridicidade e normatividade examinados

exercero contribuio relevante na definio de como os riscos sero considerados para a

finalidade de se garantir, ainda atravs de uma estrutura estatal mas de uma forma

diferenciada de Estado e por manifestaes diferenciadas de seu poder , a proteo do meio

ambiente e da pessoa humana, agora, perante riscos eminentemente tecnolgicos. 35 Trata-se aqui da construo das bases de fundamentao de um Estado democrtico de direito ambiental, ou de

uma organizao estatal que se encontre suscetvel de ser influenciada pela considerao de valores ecolgico. Nesse plano de argumentao, o Estado democrtico de direito ambiental ser considerado neste captulo, como a medida organizatria de mediao dessas tarefas, que se refletem em aes vinculadas a um sensitivismo ecolgico.

36 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Privatismo, associativismo e publicismo na justia administrativa do ambiente (As incertezas do contencioso ambiental). Revista de Legislao e de Jurisprudncia, Coimbra, n. 3857, p. 232-235, 265-271, 322-325, 354-360, dez. 1995; CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Juridicizao da ecologia ou ecologizao do direito. Revista do Direito, Urbanismo e do Ambiente, Coimbra, n. 4, p. 73-74, dez. 1995; CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Privatismo, associacionismo e publicismo no direito do ambiente..., p. 145-158; CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Estado constitucional ccolgico e democracia sustentada. In: FERREIRA, Heline Sivini; LEITE, Jos Rubens Morato (Orgs.). Estado de direito ambiental: tendncias, aspectos constitucionais e diagnsticos. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2004, p. 3-16; CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito constitucional ambiental portugus..., p. 1-11.

36

37

1.1 AS REVOLUES VERDES E OS RISCOS DA SEGUNDA MODERNIDADE NO

CONTEXTO DE UMA SOCIEDADE MUNDIAL DE RISCOS

A proliferao de ameaas imprevisveis e invisveis para as quais os

instrumentos de controle falham, sendo incapazes de prev-los uma caracterstica

tipicamente associada a um novo modelo de organizao social que se distingue por uma

dinmica de poder baseada nas relaes estabelecidas com o fenmeno da inovao e

encontra suas origens em uma fase do desenvolvimento da modernizao, em que as

transformaes produzem conseqncias que expem as instituies de controle e proteo

das sociedades industriais crtica.

Beck se referiu a esse novo modelo como a sociedade de risco37 e, mais

recentemente, como a sociedade mundial do risco. 38

O socilogo explica que o conceito descreve uma fase do desenvolvimento da

sociedade moderna onde os riscos sociais, polticos, ecolgicos e individuais criados pela

ocasio do momento de inovao tecnolgica, escapam das instituies de controle e proteo

da sociedade industrial.39

Se a reproduo de ameaas de diversas espcies sempre esteve presente nos

diversos contextos de organizao social, o risco um conceito de origem eminentemente

moderna.40 Sua elaborao deixa de ter justificao associada a uma representao mtica e

tradicional das ameaas, relacionadas a contingncias, eventos naturais e catstrofes, para se

aproximar de uma dimenso que tem por objeto as conseqncias e os resultados de decises

humanas (portanto, decises justificadas racionalmente) resultantes do processo civilizatrio,

da inovao tecnolgica e do desenvolvimento econmico, gerados pela industrializao.41

A noo de risco utilizada nesta investigao difere, portanto, de uma noo de 37 BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo. Traduo de Jorge Navarro, Daniel Jimnez, Maria Rosa Borrs.

Madrid: Paids, 1998. 38 Para uma elaborao conceitual sobre os elementos dessa segunda dinmica da sociedade de risco, cf. BECK;

Ulrich. La sociedade del riesgo global. Traduo de Jess Albores Rey. Madrid: Siglo XXI, 2001. p. 29-73, 211-241.

39 BECK, Ulrich. La invencin de lo politico. Para una teoria de la modernizacin reflexiva. Traduo de Irene Merzari. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 1999. p. 32; BECK, Ulrich. A reinveno da poltica: rumo a uma teoria da modernizao reflexiva. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernizao reflexiva. Poltica, tradio e esttica na ordem social moderna. Traduo de Magda Lopes. Reimpresso. So Paulo: Unesp, 1997, p. 15. ; BECK, Ulrich. Risk society and the provident state. In: LASH, Scott; SZERSZYNSKI, Bronislaw; WYNE, Brian. (Ed.) Risk, environment & modernity. Towards a new ecology. London: Sage, 2000. p. 27.

40 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. Traduo de Luiz Antnio Oliveira de Arajo. So Paulo: UNESP, 2003. p. 113.

41 Ibid., p. 113-114.

38

perigo, porque se considera que aquela est vinculada a uma fase do desenvolvimento da

modernidade, em que a interpretao das diversas ameaas a que a sociedade sempre esteve

exposta ao longo da histria no se vinculava ao resultado de uma atividade humana, mas a

uma leitura que as associava aos destinos coletivos.42

O conceito moderno de risco, segundo esclarece Beck43, encontra-se associado a um

perodo que o autor trata como a primeira modernidade (ou modernidade simples), o qual

representaria o fim da tradio como referncia de validade na organizao das relaes

sociais e polticas e a substituio desses padres de justificao tradicional por padres

baseados na certeza e na segurana, emergentes de uma nova racionalidade cientfica da

sociedade industrial.

Os riscos, na qualidade de representaes da modernidade, pressupem e dependem

de decises44 que constituem o resultado da transformao pela interveno humana das

incertezas e dos perigos.45

O conceito de risco reproduz, portanto, a pretenso moderna de tornar previsveis e

controlveis as conseqncias imprevisveis das decises, tentando submeter ao controle o

que incontrolvel,46 propondo prever o imprevisvel47 e, principalmente, sujeitando os

efeitos colaterais dessas decises a arranjos institucionais adequados, compreendendo um

conjunto de aes, programas e polticas institucionais compatveis, com o objetivo de gerar

segurana em contextos de imprevisibilidade.

Sob esta perspectiva, o conceito de risco evoca necessariamente as noes de

probabilidade, clculo, controle estatstico de expectativas e, sobretudo, normalizao das

contingncias por meio de mecanismos que permitam diminuir a incerteza que qualifica os

efeitos das decises.

Nessa primeira fase da modernidade, o acidente constitua a representao

caracterstica das ameaas agora compreendidas como riscos, produzidos ou capazes de ser

produzidos pelas sociedades industriais, e ilustrava uma profunda transformao sobre a

racionalidade das relaes que seriam estabelecidas a partir dessa abordagem sobre as

42 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo..., p. 113-114. 43 BECK, Ulrich. La invencin de lo poltico..., p. 64-66. 44 BECK, Ulrich. Risk society and the provident state, p. 30; BECK, Ulrich. La dynamique politique de la

socit mondiale du risque. Confrence donne dans le cadre du sminaire Economie de lenvironnement et du dveloppement durable. Traduction: Bernard Guilbert. Paris: Institut du dveloppement durable et des relations internationales, 2002. p. 6.

45 BECK, Ulrich. Risk society and the provident state, p. 30. 46 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo..., p. 115. 47 BECK, Ulrich. Risk society revisited: theory, politics and research programmes. In: ADAM, Barbara; BECK,

Ulrich; VAN LOON, Joost (Ed.). The risk society and beyond. Critical issues for social theory. London: Sage, 2002. p. 211-229.

39

ameaas. Isso porque, a racionalidade originria dessa representao props s instituies

uma referncia que indicava a possibilidade de reduo ou a eliminao das ameaas por

procedimentos de clculo e avaliao da probabilidade estatstica,48 por meio de julgamentos

confiados com exclusividade a um conjunto de atores dotados de atributos de elevada

especializao, os cientistas.49

Essa relao de estreita dependncia da autoridade cientfica poderia ser explicada

pela modificao do modo pelo qual os riscos passaram a se manifestar. Na medida em que

escapam percepo sensorial humana, necessitariam [...] dos rgos perceptivos da cincia

(teorias, experimentos, instrumentos de medio) para se fazerem visveis, interpretveis

como perigos.50

A confiana nos especialistas seria a chave dos sistemas de segurana das sociedades

industriais perante os riscos da primeira modernidade. Tal orientao justificava e legitimava

o estabelecimento de relaes de elevado grau de dependncia perante um limitado crculo de

sujeitos com a funo institucional de definir o referencial da segurana para o pblico,

determinando e fixando limites de tolerabilidade, por meio dos quais, a cincia procurava

legitimar publicamente a validade da hiptese de que alguns graus de exposio a riscos

seriam suportveis pelo homem e pelo ambiente.

Entretanto, a partir do momento em que a) a proporo quantitativa e qualitativa dos

acidentes passou a ganhar dimenses de macroperigos51 ou megaperigos;52 b) a previso

antecipada de sua origem deixou de ser realizada de forma eficiente pelas instncias

responsveis pelo controle, diante da invisibilidade de novas ameaas; c) as polticas de

segurana demonstraram sua incapacidade e falharam em sua gesto, a confiana nos sistemas

de segurana e na possibilidade do clculo dos riscos comea a ser posta em dvida.

Esse cenrio expe ao pblico a falncia dos programas institucionais de clculo dos

efeitos cola