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1998 Sérgio Gouveia ©- 2012 Deus Próprio

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1998

Sérgio Gouveia

©- 2012

Deus Próprio

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Deus Próprio 1

Um amante sacerdote antigo,

Derrubando uma deusa dum altar

- a um corpo perfeito –

Gomes Leal

Não sei se existo,

Se os outros existem,

Se Deus ou o Diabo existem.

Devemos ser todos simples ficções

De alguém que nunca existiu.

E estas palavras

Talvez nunca tenham sido escritas.

Talvez sejam ficção

Para nunca serem lidas por alguém.

Quem sabe?

- Outro –

Luís Carlos Gaudella

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Deus Próprio 2

Imagem de capa: Ruins of St. Johns Episcopal Church (Wikipedia)

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Deus Próprio 3

Outra noite acordado com o choro da criança. Desde que ele nasceu que tem sido

sempre assim. Todas as noites ele chora, chora, chora e de dia dorme. Como é

que se lhes ensina que as noites são para dormir e os dias para estar acordados?

Ainda não acredito em tudo o que aconteceu antes do nascimento do meu filho.

Os acontecimentos são quase irreais, não sei se sonhei, se os vivi. Tendo a

pensar que foi loucura momentânea, mas o meu filho está ali, a provar tudo. A

sua mãe está lá com ele, a cuidar dele. Tudo diz que foi verdade.

Nunca soube o que me levou àquela igreja perdida no topo daquela serra. Já lá

tentei voltar mas... A igreja já não existe. A população da aldeia mais próxima

diz-me que ela nunca existiu. Contudo estive lá por duas vezes. Sei que estive.

Lembro-me dos cheiros, das cores, das pedras, das vozes das pessoas, do sino,

de tudo, só que o tudo nunca existiu...

Sei que foi no Verão passado. Tinha ido passar as férias ao Minho, ali para os

lados de Ponte de Lima. Fiquei numa pequena casa de turismo rural. Passava os

dias a visitar a região, vendo os locais de turismo, conhecendo as pessoas. Tudo

normal para alguém de férias.

Um dia de manhã, fui estranhamente atraído para uma serra à beira de Ponte da

Barca. Fui de carro até onde pude ir, passando a andar o resto do caminho a pé.

Ao chegar ao topo vejo a igreja.

As suas quatro paredes ainda estavam de pé, pelo que se percebia o seu estilo

Gótico, porém grande parte da igreja era um amontoado de pedras. Das paredes

de pedra viam-se igualmente o que devia ser a residência do Pároco, bem como

uma velha torre de sino.

O musgo cresce nas paredes dando-lhe um aspecto velho e vivo. Aquelas paredes

pareciam mesmo respirar. Tinham um pulsar estranho. Só agora é que me

recordo desse pulsar. Era como se ela ali estivesse, a olhar e a analisar-me.

O sino, um grande sino de bronze, que por tantos já tinha dobrado, morre agora,

ao vento, à chuva e ao Sol, já todo cheio de ferrugem e sem ninguém que por ele

vele. Tem uma fenda a meio pelo que o seu toque deve ser bastante desafinado.

A torre onde ele estava, está caída. As pedras espalhadas na erva servem de

banco a todos os que sobem até aqui.

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Deus Próprio 4

Subi as escadas e passei pelo alto portal. Dentro da igreja a sensação de “vivo”

era maior. As paredes pareciam encolher e dilatar a cada passo que dava.

Olhei para as paredes, vi vários postigos vazios. As pequenas estátuas deviam ter

sido levadas para longe. A esta hora embelezam igrejas particulares um pouco

por toda a Europa. Devem ter rendido bastante dinheiro, só que nunca ninguém

saberá a quem. Ainda tinham flores e velas, provavelmente graças à memória

dos mais velhos que ainda se lembram quais os Santos que ocupavam cada

postigo.

Sobre o altar, Cristo na Cruz. Esta figura fria, hirta de um homem em dor, preso

num pedaço de madeira é o único sobrevivente à desolação geral desta igreja.

Era iluminado por uma rosácea de ar pois à muito que os vitrais estavam

quebrados e espalhados no chão, transformando-se em pó.

Tinha algo estranho essa estátua, mas não sei o que é.

Desolador! Esta é a palavra mais indicada para explicar o sentimento que a visão

desta igreja. Nesta altura ainda não havia percebido o que é que me tinha feito

subir até esta igreja.

Quando me preparava para sair vejo que algumas beatas começam a entrar na

igreja e a ajoelharem-se junto a um altar. Eram dez mulheres, já idosas, vestidas

de preto com um xaile sobre a cabeça. Em uníssono começam a rezar um terço.

Quando chegam ao fim do terço, um sacerdote surge de uma porta lateral e

começa a dar a eucaristia. A sua batina branca contrastava com a negridão das

vestes das beatas.

Assisti à eucaristia toda, escondido nas sombras ao fundo da igreja. Vi-o a fazer a

consagração, levantando o cálice e a hóstia ao alto e à frente das beatas e

durante todo esse tempo tentei perceber o que é que estava ali a fazer.

Olho para o tecto e onde antes estava um fresco representando uma qualquer

situação bíblica, surgiam agora sombras baças que se dirigiam para mim. Quando

as primeiras sombras chegam à minha beira, percebo que eram de fantasmas,

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Deus Próprio 5

que voam à minha volta. Fantasmas de mortos que não têm descanso, que me

acham talvez um anjo enviado para os levar deste mundo.

Entro em pânico, conforme os fantasmas se multiplicam à minha volta. Tudo em

meu redor fica baço, não consigo distinguir as paredes da igreja, o padre, as

beatas. Existe uma cortina de fantasmas semelhante a uma cortina de fumo que

me envolve. O pânico aumenta de intensidade.

Olho em volta na procura de alguma coisa que me pudesse ajudar a escapar.

Procuro no tecto um fresco que apagasse as figuras que me cercavam, mas nada

em todo o lado apenas fantasmas que me rodeavam cada vez mais até que nada

mais vejo apenas a cortina fantasmagórica que me rodeia.

De repente o fumo começa a desaparecer, deixando-me ver outra vez para além

dele. Para meu espanto eu já não estava na igreja mas num outro lugar, um

outro tempo.

Vejo-me no meio de uma guerra. Vejo os cavaleiros a passarem por mim, através

de mim e percebo que agora sou eu o fantasma.

Á minha volta apenas corpos dilacerados, cortados. Alguns feridos a gemerem,

que logo são esmagados por outros soldados em fuga. Vejo outros feridos a

prostrados a morrerem afogados no próprio sangue.

Novamente os fantasmas cercam-me desta vez são os dos que morrem acham

que os vim buscar. Mais uma vez sou totalmente rodeado, porém desta vez a

sensação não é tão desagradável.

Quando se afastam vejo-me noutra guerra, desta vez os fantasmas são em maior

número, cobrem o céu como nuvens num dia de tempestade. Vejo montes de

corpos a serem atirados para valas comuns. Vejo os que os atiraram a serem

fuzilados. Vejo corpos a serem retirados de compartimentos estanques e deitados

para fornos que trabalham dia e noite. Vejo corpos vivos a serem deitados dentro

dos mesmos fornos.

Outra guerra, a mesma mortandade. Como em alguns séculos passamos da

morte pelo ferro para matar pelo gás e fogo.

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Sou novamente cercado, desta vez deixam-me no alto dos céus onde um brilho

me cega, e num segundo milhares e milhares de almas sobem na minha direcção.

Vejo-as a subirem até deixarem de ter forças, depois a voltarem e a entrarem

dentro da terra como se procurassem algo. Vejo-as a voltarem para trás. Ouço-

lhes as palavras e os pensamentos, blasfemam contra Deus e o demónio,

esperando que um ou outro se volte para eles e lhes indique um caminho, lhes dê

uma explicação. Nada, tudo em vão.

Sou novamente envolvido e, novamente, sou liberto. Desta vez sinto-me

cansado, com o corpo dorido e nos braços abertos, dores dilacerantes

estremecem-me. Percebo que tenho corpo outra vez, que já não sou fantasma,

sou homem, mas um homem em sofrimento.

Quando os meus olhos conseguem ver onde estava vejo-me num alto de uma

cruz, no topo de uma colina. Diversas pessoas choram à minha frente. Não sei

quem são, mas parecem conhecer aquele cujo corpo ocupo.

Sinto os músculos a contraírem-se e dilatarem-se, o sangue sobe até à boca e

engasga-me e no segundo em que começava a duvidar de tudo espetam-me uma

lança no flanco e dão-me vinagre a beber. Antes do último suspiro olho em volta

e pensando que ia morrer peço desculpa a todos os que fiz sofrer. Desfaleço.

Acordo na velha igreja, cercado pelo padre pelas beatas, olho em volta não vejo

nada ou ninguém. Sinto ainda o sabor do sangue na boca, e nas minhas mãos

ainda sinto a marca dos pregos.

Sou ajudado a levantar-me, perguntam-me se estou bem, se costumo desmaiar

assim muitas vezes, digo que não que foi só fraqueza, que já estou melhor, que

preciso ir apanhar ar. Saio e vou até aos claustros. Começo a pensar em tudo o

que aconteceu. Teria sonhado? Mas e as dores que sinto, a marca do meu lado?

Olho para a Cruz e percebo que era eu a figura que estava nela, era nisso que ela

tinha de diferente. Aquele Cristo era diferente do que costuma aparecer nos

altares, mas sou eu. O que é que se estava a passar?

Até que de repente tive como que uma revelação: Eu era aquele Deus, daquela

igreja. Mas era igualmente o Demónio, apenas por ser divino. Percebi então que

Deus e Demónio são apenas palavras inventadas pelo homem numa tentativa de

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se divinizar. Cada um é o seu próprio deus. A religião é algo de estéril, não nos

apresenta nada de novo, de tal forma que os seus dogmas foram corrompidos por

séculos e séculos de ignorância e orgulho e de nada nos servem hoje em dia.

Não há deus ou demónio, céu ou inferno, apenas a terra e a nossa vida. Depois

as almas vagueiam no vazio até se perderem e suicidarem-se no esquecimento.

Apenas há uma verdade, nós próprios, um deus, nós próprios, um templo, nós

próprios.

As igrejas não passam de quatro paredes levantadas no ar. Não está lá ninguém.

Ninguém lá mora. Esta é a verdade que foi escrita em letras de sangue numa

escritura à muito que esquecida… ou escondida.

Naquele claustro, naquela confusão, criei uma nova religião, a minha, um novo

deus, eu, uma nova igreja, o meu corpo. Apenas faltava um sacrifício para tudo

se confirmar.

Desci daquela serra, cheguei onde estava o carro e voltei para a casa onde estava

a morar. Cheguei a casa, tomei banho e fui-me deitar. Nessa noite sonhei com

uma rapariga com quem nunca conheci. Não me lembro muito bem desse sonho,

mas sei que acordei em delírio.

Na manhã seguinte preparei-me para sair dali o mais depressa possível, na

esperança de me esquecer de tudo. Fui até á casa do dono da casa que arrendei

para lhe entregar a chave, quando, ao passar pelo jardim vejo uma rapariga

parecida à do sonho, quando me aproximei e a olhei nos olhos vi que era ela e

que ela também parecia conhecer-me.

Começamos a falar. Conforme íamos falando percebi que ela também tinha visto

tudo o que eu vira na igreja, e que apesar dos seus quinze anos, também ela

sabia a verdade. Ela sabia das almas, das guerras, do céu e do inferno. Sabia o

que eu tinha vivido, pois era ela que tinha estado no pé da cruz a chorar.

Éramos assim quase que irmãos, irmãos de sentimento... As leis dos homens e as

de Deus já nada nos diziam, metemo-nos dentro do carro, fomos à casa dela

buscar algumas roupas, avisou os pais que se ia embora e partimos para longe…

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Fomos para o interior, para uma aldeola perdida, onde os habitantes já tinham

partido. Procuramos uma casa que não estivesse muito degradada, arranjámo-la

e começamos a viver juntos...

Íamos uma vez por semana à cidade mais próxima, durante esse tempo

habituamo-nos a comungar de nós próprios, partilhando tudo o que tínhamos,

que apesar de pouco era o suficiente.

Só um mês depois é que fizemos o sacrifício final. Tudo foi preparado ao

pormenor. As roseiras bravas que havia na aldeia deram as pétalas para o leito

que seria o altar. Os lençóis brancos dariam a pureza ao momento. Tudo estava

preparado.

Comungamos um do outro, lançamos a nossa roupa para o chão e deitamo-nos.

Durante o resto da noite fizemos amor no meio das pétalas. De manhã quando

nos posemos a pé ainda havia a marca de um fio de sangue que lhe escorrera

pela perna e manchara os lençóis.

Tinha terminado a fase preparatória da nossa religião. Os fantasmas voltaram a

aparecer, mas ficavam à distância, não nos incomodavam. O tempo das

revelações já havia acabado.

Sabíamos que os pais dela andavam à nossa procura, apesar das notícias que

lhes mandávamos, não se tinham convencido que a filha estivesse comigo de

livre vontade, mas não sabiam ao certo onde estávamos.

Nem sabiam que no seio dela crescia a nossa igreja, fruto do sacrifício que

fizéramos algumas semanas antes. Continuámos a nossa vida durante os nove

meses em que durou a gravidez dela. Ao fim dos nove meses nasceu um rapaz,

fruto do nosso amor e da nossa fé.

Foi ainda no berçário do hospital que vi algo que me arrepiou todo. Não que me

tivesse surpreendido, mas não estava preparado para ver o que vi.

Atravessando chão da sala dezenas de almas vindas do fundo, talvez da morgue,

dançavam à volta do meu filho. Nesse bailado fantasmagórico, reconheci um

deles. Era um que tinha estado na igreja. Era ele que conduzia os outros. Olhou

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para mim e deu uma volta em meu redor para me fazer ver que também me

tinha reconhecido.

Foi a primeira vez que tive esta visão. Não a contei a ninguém nem à minha

companheira, mãe da criança. Apesar de saber que ela devia querer saber.

Levámo-lo para a nossa pequena comunidade. As visitas começaram a ser

frequentes, parecia que as almas errantes da terra começavam a fazer romaria à

nossa igreja e andavam em oração à volta do meu filho. A princípio ainda

tentámos afastá-las, mas percebemos que tudo havia sido previsto por elas.

Era o nosso filho o que queriam. Pensavam que era ele que lhes iria abrir o céu

ou o inferno. Pensavam que era ele que lhes daria o descanso.

Mas não queríamos esse futuro para ele. Não queríamos que ele visse o que

vimos da mesma maneira. Tentámos afastá-los em vão. Tudo o que queriam era

o fim do seu tormento. Já não nos ligavam. Não nos viam.

A minha companheira chorava todo o dia. Nas nossas conversas falávamos de

como poderíamos acabar com aquilo. De repente tivemos uma ideia. Voltar onde

tudo tinha começado. Talvez o início fosse o fim de tudo.

Mas para o fazermos teríamos de enfrentar os pais dela, a população e a tradição

de que nos tínhamos afastado à um ano atrás. Decidimos ir. Não podíamos que o

nosso filho crescesse com os espíritos à sua volta.

Fomos para o norte. Durante a viagem vimos as almas nas beiras das estradas, a

acenarem-mos como se estivéssemos a fazer um cortejo.

Arrendámos uma pequena casa perto de Ponte de Lima. Enquanto a minha

companheira amamentava o filho e preparava a casa para nós, fui até ao monte,

procurar a igreja. Quando lá cheguei, nada vi. Nem as pedras, nem os muros

nem o sino, nada. Apenas um descampado, um baldio, onde pastavam algumas

cabras... Pensei ter-me enganado, mas era o mesmo monte, só a igreja é que

não estava lá, nunca esteve…

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Percebo porque é que os pais dela nunca acreditaram em nós, quando falávamos

da igreja. É que ela não existia, era apenas uma ilusão criada pelos fantasmas

que nos cercavam em tempos.

Volto para trás. Vou para casa. Ao chegar digo à minha companheira que a igreja

não estava lá. Desesperados começamos a pensar no que fazer. Olhamos para o

nosso filho. Estava a dormir. Não se apercebia de nada o que se passava.

Felizmente.

Toda a noite falámos para decidirmos o que fazer. No dia seguinte teríamos de

enfrentar os pais dela, bem como o olhar da população. Tínhamos ainda de

decidir o que fazer acerca da igreja e dos fantasmas.

Enquanto falávamos os fantasmas iam e vinham continuamente, parecia que

queriam dizer algo, mas nós não lhe ligávamos, já tínhamos aprendido que o

melhor era ignorá-los.

O sol começou a levantar-se sobre os montes. O dia começava a nascer. Primeiro

com um brilho, com uma claridade que ia aumentando, depois apareciam os

primeiros raios de sol. Pouco a pouco o sol ia surgindo, apresentando-nos uma

visão maravilhosa: milhares de quilómetros de árvores ainda imaculadas do fogo,

com algumas casas, com os seus telhados a brilhar com aqueles primeiros raios

de sol.

No início da manhã, enchemo-nos de coragem e dirigimo-nos à casa dos pais

dela. Quando a mãe nos viu gritou e correu para ela, abraçando-a. Depois das

apresentações devidas, sentámo-nos os três a conversar. Apesar de não aceitar

totalmente a nossa relação, disse que estava pronta para ajudar-nos a resolver a

nossa situação.

Deixando com ela o nosso filho, fomos até à igreja novamente tentar descobrir

algum vestígio das ruínas ou de qualquer coisa que nos explicasse as nossas

visões.

Conforme nos íamos aproximando, recomeçámos a ver os fantasmas que, em

procissão, subiam connosco até ao monte. Alguma coisa se iria passar, não

podíamos imaginar naquela altura o que seria, nem a importância que teria.

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Deus Próprio 11

Ao chegarmos ao topo não vimos nenhuma igreja. Contudo um outro edifício

estava no seu lugar. Parecia um teatro grego, cheio de bancadas, onde uma

plateia de almas penadas se sentava. Esta assembleia era enorme. Tinham vindo

fantasmas de todo o mundo.

Via, num canto, uns da América do Sul, do Norte, da África, da Ásia, da Oceânia.

De continentes há muito que desaparecidos. Via fantasmas de todos os países do

mundo, mesmo de países já extintos, e outros de países que ainda não existiam.

Todos se iam sentando, sem nenhuma ordem identificável.

Nós fomos conduzidos para o centro do palco. Havia lá duas cadeiras para nós.

Só então percebemos tudo. Ia haver um julgamento, nós seriamos os réus, os

fantasmas os jurados, testemunhas e juízes.

Quando os fantasmas chegaram todos soubemos que íamos ser julgados por não

deixarmos que o nosso filho fosse o Deus que eles queriam. Era agora o

momento da verdade. Ia ser decidido o futuro do nosso filho e talvez o nosso.

Começaram a ser chamadas as testemunhas, se é que lhes posso chamar isso.

Vinham vestidas de túnicas brancas. Descreveram a sua morte e o seu martírio

pelos séculos. Foram as vítimas do diluvio. Aquelas primeiras condenadas do

Deus de Misericórdia. Contaram como foram abandonadas durante todos estes

séculos, deixadas a cuidarem de si mesmas. Nem com o salvador elas foram

salvas, pois tinham sido condenados por quem tudo devia perdoar.

Ouvimos os que pertenceram ao povo prometido, e todos os que não

pertenceram a esse povo. Falaram uns de promessas não cumpridas e outros de

promessas nunca feitas. Vieram os profetas confessarem os seus erros,

confessarem como as suas palavras estiveram sempre erradas, serem apenas

fruto de uma mente louca. E que nunca viram aquilo que tinham anunciado.

Seguidamente vieram os inocentes massacrados em vez de cristo, que havia sido

avisado para fugir. Fantasmas de crianças que nunca nada fizeram, e que foram

mortas para que os outros se salvassem. Morreram sem salvação.

Também passou pelo palco aquele que traiu com um beijo. Aquele que morreu

pelos pecados de Deus, e foi condenado ao exílio de Deus. Também ele disse que

precisava de outro Deus que não pedisse sangue pela salvação que nunca dá.

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Deus Próprio 12

Depois foi a vez dos mortos nas guerras santas. Árabes, cristãos e judeus lado a

lado a dizerem como foi o seu lado da luta, como morreram. Das promessas

feitas pelos seus líderes de como seriam santificados por lutarem em Seu nome.

Mas quando a morte chegou, na ponta de uma espada, nos pés de um cavalo, ou

numa sala de tortura, ninguém estava lá para os receber, para os acolher na casa

de Deus.

Também os santos e os mártires lá estavam. Diziam que a sua vida de sofrimento

tinha sido em vão. Também tinham sido iludidos por falsas promessas escritas

nuns livros, por sonhos e pesadelos. Uma inútil fé fê-los passar por um martírio

em vida na esperança de um novo mundo junto Dele. Só que Ele não estava lá

para sarar as suas feridas.

- E nós? Quem nos vale? Não acreditávamos em nada das vossas mentiras, mas

por elas fomos escravizados e mortos durante quase 500 anos! – Esta era a voz

dos milhões de escravos que morreram pelas mãos de quem levava uma cruz

numa mão e uma espada na outra.

Foram séculos e séculos de mortos que nos passavam pela frente. Conforme eles

iam descrevendo as suas mortes, essas eram mostradas à nossa volta como se

estivessem a acontecer novamente. Foi aí que vimos os inocentes a morrerem,

tivemos mesmo um dos bebés nos nossos braços a chorar depois de ser

trespassado por uma lança. Vimos os escravos a serem flagelados por um

chicote. Vimos os soldados a lutarem para, após morrerem, abraçarem-se aos

inimigos e chorarem em conjunto. Vimos os santos, os mártires, vimos as almas

a procurarem Deus, a procurarem os anjos, a procurarem o céu ou o inferno, e

sem encontrarem nada, sentarem-se a chorar pela sua vida perdida.

Alturas houve que o chão da assembleia se tornou sangue, outras era água,

terra, ar, fogo, para ser sangue outra vez. Nós sentimos, vimos, cheirámos tudo

o que nos contavam. Nunca nos tínhamos sentido tão mal. Toda aquela morte,

todas aquelas desgraças, todo aquele sangue. Os inocentes mortos. As

promessas falsas. Começamos a compreender tudo o que tínhamos passado

durante este último ano. Quase que começámos a aceitar o destino que eles

queriam dar ao nosso filho, fosse ele qual fosse.

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Deus Próprio 13

Quando demos por nós, estávamos a chorar lágrimas de sangue. Do mesmo

sangue que eles tinham perdido em vão.

Mas as histórias ainda não tinham acabado. Vieram falar ainda os que morreram

nas fogueiras e nas câmaras de tortura das inquisições. Foram mortos devido a

falsas acusações dos que deviam seguir Deus, mas que agiam como que ao

serviço do demónio. Morreram com a promessa de pela dor em salvos, mas a dor

apenas os perdeu.

Vieram os mortos das guerras. Os que morreram pela bala, gás, morteiro, fogo, e

tantas outras formas de matar que o século XX nos ensinou. Vieram as mulheres

humilhadas pelos soldados, vieram os seus filhos trespassados pelas baionetas

dos soldados. Vieram os perseguidos. Vieram todos os que morreram sem saber

porque é que lutavam.

De repente o ar à nossa volta ficou cheio. A chegada dos milhões que morreram

nos holocaustos judeu e japonês. Milhares de corpos fantasmagóricos penavam à

nossa volta. Pediam a ajuda de um Deus que nunca lhes apareceu. Rogavam para

que os salvassem, que salvassem os seus que ainda vivem.

Milhares e milhares de almas penadas passaram por nós, descrevendo as suas

mortes, pedindo ajuda na sua salvação. Nós sentíamos o que eles sentiam,

cheirávamos o cheiro a carne queimada, o cheiro ao sangue, e cada vez

ficávamos mais confusos acerca do nosso papel, e do papel do nosso filho nisto

tudo. Começámos a pensar que alguém estava a brincar connosco. Só não

sabíamos quem ou se de facto era brincadeira.

Vimos ainda os mortos de acidentes. Aqueles que acreditaram que nada lhes iria

acontecer, e sem darem por nada morreram. Ainda não sabem o que lhes

aconteceu, nem porque estão mortos. Estavam lá os que foram iludidos pela

ignorância dos homens e morreram pela força da natureza. Estavam lá os que só

pediam para lhes salvarem as almas, e nem essa foi salva.

Quase no fim um fantasma elevou-se e de uma forma solene disse que iria falar

em nome dos que não podiam falar. Todos se calaram. Então essa figura fala dos

que se fartaram de existir, dos que se isolaram e pouco a pouco foram morrendo.

Alguns milhões de almas desapareceram dessa forma e não podem estar ali

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Deus Próprio 14

presentes para pedirem salvação. Era esse o destino que todos eles tinham.

Desaparecerem. Simplesmente desaparecerem sem deixarem rasto.

Silêncio. Todos os fantasmas se calaram e olharam para nós. Era a nossa vez.

Tinha-nos sido revelado algo e tínhamos de dar a nossa opinião. Mas o que é que

podíamos dizer? Também nós acreditávamos no que eles acreditavam e agora

víamos que estávamos errados. O que fazer?

Como fazer o sacrifício final. Pelas nossas mentes passava tudo o que tinha sido

dito nestas últimas horas. Por nós aceitávamos morrer por eles, mas nunca o

nosso filho. Mas era isso o que eles queriam.

Olhámos um para o outro e, num minuto que pareceu uma eternidade, nada

dissemos, o que podíamos dizer. Aí levanto-me, receoso ainda. Dou um último

olhar à minha companheira e começo a falar

Digo que os compreendemos mas se aceitássemos o que nos pedem estariam a

ser enganados outra vez com já o foram ao longo dos séculos por tantos. Só que

desta vez eram enganados por eles próprios. Este seria o maior erro de todos.

Olhando para os mais velhos perguntei-lhes quantas vezes ouviram falar de Deus

e do céu, e quantas vezes eles viram um sinal que fosse de um ou se outro.

Olharam uns para os outros e, apesar de responderem à primeira parte da

pergunta com uma infinidade de vezes, calaram-se na resposta da segunda...

É isso o que querem mais uma vez? Olho em volta, pergunto se Moisés estava ali.

Estava. Viro-me para ele e digo: «tu que viveste como rei numa terra que não

era a tua, foste levado por Deus a levar o teu povo para a terra prometida,

atravessaste o deserto durante 40 dias, quase sem comida, alimentaste-te com o

maná, separaste as águas do mar vermelho, chamaste a coluna de fogo, falaste

com um arbusto a arder que se identificou como Deus, de lá trouxeste as

palavras da lei. Alguma vez chegaste a ver o Deus que anunciaste toda a vida, ou

entraste no céu que te foi prometido?» o seu olhar disse-me que não.

«E tu Elias, aquele que é conhecido por vivo. Fechaste os céus em Seu nome,

foste alimentado por estranhos corvos, atravessaste o deserto indo parar à terra

do sogro do teu inimigo. Aí em Seu nome multiplicaste a farinha e o óleo. Viste o

filho da tua benfeitora morrer e deste-lhe o Seu sopro. Contra Baal e Astarde O

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Deus Próprio 15

evocaste. O fogo surgiu novamente a queimar os infiéis. Degolaste os

sobreviventes e fugistes para o deserto. Dizem que foste levado até Ele. O que

tens a Dizer?»

- Caí num buraco e os meus restos foram comidos pelos animais do deserto.

Ainda em vida os meus olhos foram comidos pelos estranhos corvos que me

alimentavam. Nunca O vi, nunca fui a Ele levado... Não sou o santo vivo, mas

morto como todos.

«Oseias que sempre achaste que os sacrifícios não têm valor, mas que

sacrificaste a tua família, negando um amor que nunca quiseste com a prostituta

do templo. Os teus filhos pagaram os teus pecados com os seus nomes, mas Ele

alguma fez te agradeceu, fazendo-te ver que estavas no caminho certo, ou não,

caminhaste para o abismo. Se Gomer não se converteu quem teria razão afinal?»

- Não sacrifiquem a família, nem perante Deus nem perante nada. Ainda hoje

sofro por Gomer e pelos meus filhos...

«Isaías e Jeremias onde estão as vossas promessas de redenção para o povo

eleito se seguisse os Seus caminhos. O Povo seguiu, mas nunca o encontrou. O

que dizem sobre isto?»

Disseram-me que as suas almas já se tinham extinguido, alguns séculos depois

de eles morrerem em desgosto de terem indicado um caminho errado, um

caminho que não leva a Ele. Muitos outros profetas morreram da mesma forma,

Ezequiel foi-se extinguindo lentamente enquanto procurava os seres que tinha

visto em visões. João extinguiu-se após ver extinguido aquele que viria depois

dele. Quase todos os profetas extinguiram-se com o passar dos séculos, ou

devido a tormentos próprios ou devido às vozes dos que os seguiam a pedir-lhe

explicações que eles não tinham.

Silencio. Um silêncio avassalador percorria a plateia. Vi algumas almas a

extinguirem-se, talvez à falta de esperança de solução. Começou um murmúrio

seria a extinção o caminho para Deus? Um coro começa a cantar em memória

dos extintos. Novamente o silêncio.

Eu tremia por dentro. Não sabia como me consegui recordar do que escutara na

missa em miúdo, mas de repente as palavras surgiram e creio que comecei a tê-

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Deus Próprio 16

los do meu lado. Olhei para a minha companheira. Chorava. Tudo o que se tinha

passado nestes últimos momentos tinha sido demais para ela. Afinal tinha apenas

16 anos feitos.

De novo os olhos viram-se para mim. Continuavam a querer uma resposta e eu

ainda não sabia qual. Olhava em volta à procura de uma solução mas nada, o que

podia fazer ou dizer. Lembro-me da aldeia perdida na serra, de como o

isolamento nos agravava, recordo-me da igreja dessa aldeia, caída aos pedaços,

penso no último Padre que ali tinha estado, há quantos anos? Dez, vinte, trinta,

cinquenta? Recordei a cruz tombada o altar partido. Penso no esquecimento. E de

súbito tive uma ideia.

Voltei a olhar em volta, voltei a encher-me de coragem e senti de novo as

palavras a surgirem na minha boca.

«E se for esse o caminho para Deus? A extinção? Viram como eu aquela pequena

luz que rodeia a alma no segundo antes de desaparecer?»

Um alvoroço percorreu a plateia. Logo algumas dezenas de almas se extinguiram.

Antes que se extinguissem todos chamei-lhes a atenção.

«Esperem! Não se extingam já. Não vêem que isto tem de ter um sentido? Se

vocês nos surgiram e surgem constantemente neste último ano. As nossas visões

de há um ano têm de ter um sentido. Se vocês sobreviveram todos estes anos

neste estado de fantasmas é porque ainda vos é pedido uma coisa. Devem guiar

as almas novas no caminho da redenção. Devem ainda desligar-se dos vossos

laços com a terra.»

Todos me perguntaram como é que fariam isso e porque é que o fariam. Porque

não extinguiam-se simplesmente.

«Vocês ainda se lembram dos tempos passados. Se se extinguirem todos agora,

todos os fantasmas que surgirem daqui para a frente como se salvaram eles?

Continuarão a vaguear no limbo até redescobrirem a salvação? E aqueles de

vocês que morreram inesperadamente? Não se sentem na obrigação de se

despedirem de quem deixam para trás?»

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Deus Próprio 17

Qual a solução que nós temos? Ficar para trás? Assombrar as nossas famílias?

Como escolher os que ficam e os que vão? Quem é meritório da redenção e quem

fica a indicar o caminho? – Estas eram as perguntas que todos faziam em

uníssono.

Olhei para um que reconheci dos que nos visitaram na aldeia e disse-lhe:

«Lembras-te daquela igreja perdida na serra perto do local onde vivi no último

ano? Vou regressar à aldeia e reconstruirei a igreja. Aí será a sede da nova

igreja, que aqui será fundada. Será essa igreja o centro do limbo em que vivem.

Cada um de vocês escolherá um discípulo entre aqueles que morrerem daqui para

a frente. A ele devem ensinar tudo o que aqui aprendemos. Quando esse vosso

discípulo estiver em condições de ocupar o vosso lugar então devem dirigir-se à

igreja e extinguirem-se lá. Cabe ao vosso discípulo recolher um outro recém-

falecido para o guiar.

«Quanto aos que deixaram laços no mundo, devem recorrer à igreja e dizer-nos o

que desejam dizer, que nós faremos chegar a informação a quem de direito.

Comprometemo-nos igualmente a garantir seguimento nas nossas acções, no

conforto aos fantasmas».

Olharam entre eles e um a um foram concordando com a solução. Foram-se

afastando aos poucos à procura de almas para guiar. Os últimos vieram ter

comigo e disseram que era melhor nós estivéssemos a dizer a verdade. Depois de

eles se irem embora, o teatro grego desapareceu. Só lá ficámos os dois. Olhámos

um para o outro, aproximámo-nos e abraçámo-nos durante uma hora. Com o

olhar confirmámos o compromisso que eu tinha feito.

Começámos a descida. Já tinha escurecido. Ao chegarmos ao sopé do monte

estavam lá alguns aldeões e polícias com cães. Estavam à nossa procura. Parece

que tínhamos estado quatro dias desaparecidos nos montes. Olhámos um para o

outro incrédulos. Inventámos que nos tínhamos perdido, e andámos pelos montes

esses dias. Não contámos a ninguém o que de facto tinha acontecido.

Fomos levados para casa da minha companheira, onde o pai só não nos deu uma

tareia logo ali, porque estava feliz por a sua filha ter regressado. Ficámos lá dois

dias depois saímos. A relação com os pais dela nunca foram boas sempre a pedir

satisfações, com mau humor. Nunca aceitou o facto de ambos acreditarmos no

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Deus Próprio 18

que tínhamos visto, e no que queríamos fazer. Logo a saída foi o melhor que

podíamos fazer. Nunca mais falámos com eles. Voltámos os três à casa que

tínhamos arrendado. Arrumámos as nossas coisas e regressámos para a aldeia.

Pouco a pouco fomos reconstruindo a igreja. Por vezes aparecia um fantasma a

pedir que falássemos com a sua família. Aí escrevíamos uma carta as suas

últimas palavras para com a sua família e ele seguia com o seu guia. Algumas

vezes vítimas de homicídios não resolvidos vinham ter connosco para que nós

contássemos o que lhes tinha acontecido. Eram cartas anónimas que nunca

ninguém soube ao certo de onde vinham.

E aqui estamos nós. O nosso filho ainda chora no canto da sala. Um dia virá em

que ele será o herdeiro das minhas promessas. O que ele achará disso? Aceitará

de bom-tom? Ou recusar-se-á? O tempo dirá. Por agora apenas posso continuar a

obra que me comprometi a fazer.

FIM

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Deus Próprio 19

EPÍLOGO

Passaram vinte anos. A aldeia cresceu. Numa gaveta perdida, encontrei o

manuscrito que o meu pai escreveu à muito tempo atrás, ainda eu era um bebé.

Sim continuei a obra do meu pai. Há dois anos que sou o responsável pela aldeia

e pela igreja.

Disse que a aldeia cresceu. Sim, com o passar do tempo a obra do meu pai foi

conhecida. Algumas cartas foram identificadas como oriundas de perto da aldeia

e daí até encontrarem a aldeia foi um passo.

Inicialmente a obra foi apoiada. Houve quem criasse um fundo para nós

utilizarmos na nossa obra. Foi assim que comprámos a aldeia e continuamos a

sua reconstrução.

Começámos igualmente a ter visitas na aldeia. A nossa fama começava-se a

expandir. E com a fama os primeiros problemas. Chamaram-nos de culto,

acusaram-nos de só querermos roubar dinheiro às pessoas. O meu pai foi mesmo

preso depois de uns padres ignorantes que nem reconheciam os símbolos da sua

religião e os seus significados, terem confundido um dos nossos símbolos com um

sinal satânico.

Como é que o sinal de humildade perante Deus pode ser interpretado como algo

relacionado com o demónio? Não sabem eles a história de um dos seus homens

santos, o apóstolo em que a sua igreja é fundada? É triste e depois nós é que

somos os criminosos...

Mas o facto é que o meu pai foi preso. A minha mãe ficou sozinha a cuidar da

obra e de mim. Estivemos sozinhos durante dois anos. Sozinhos não os

fantasmas continuavam a visitar-nos e alguns turistas começaram a visitar-nos e

ajudaram-nos na reconstrução.

O regresso do meu pai foi marcado com um facto muito importante para todos

nós. Dois meses depois de ele ter regressado, fomos visitados por um fantasma,

inicialmente achámos que procurava conforto, mas depois vimos quem ele era.

Era o meu avô. O pai da minha mãe. Tinha morrido poucas horas antes, e tinha

sido recolhido por um guia. Após o guia lhe ter explicado o que se passaria, ele

quis visitar-nos.

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Deus Próprio 20

Quando chegou, timidamente, falou com o meu pai. Parece que tinha sido a

primeira vez que eles falaram mesmo. Foi aí que ele disse que agora

compreendia o que a obra que os meus pais se tinham proposto fazer, e

abençoou o casamento deles. Acho que nunca tinha visto os meus pais tão

contentes. O meu avô afastou-se e começou a sua aprendizagem.

Ao longo dos anos voltou várias vezes para nos visitar. Optou por não extinguir-

se logo. Foi guia de muitas almas que apareciam, ia ajudando-nos nos trabalhos

da igreja.

Aliás ele foi o guia da minha avó e dos meus pais quando eles morreram. Eles

morreram quando eu tinha 20 anos... Mas continuam o seu trabalho. Também

não de extinguiram. Continuam a acompanhar-me durante todos estes anos.

Fui estudar em Lisboa e em Coimbra, onde conheci a minha esposa. Ela

compreendeu a minha missão e ajudou-me nos anos após ao falecimento dos

meus pais.

Como eu já disse agora a nossa comunidade é maior. Temos vários seguidores. A

sociedade que nos rodeia parece que não nos incomoda. Talvez já nos tenha

aceite. Os últimos padres que vi foram fantasmas. Chegam donativos um pouco

de todo o mundo.

Igualmente para todo o mundo saem todos os dias dezenas de cartas, com os

últimos desejos dos fantasmas. Talvez já a tenham recebido ou visto alguma. Os

meus filhos irão continuar a obra. Também já eles acreditam no que vêem.

Espero que possa ainda viver por muitos anos. Quando morrer irei acompanhar

os meus pais e avós a guiar os recém-falecidos.

Este foi o relato da vida de José Rodrigues, sua esposa Odete Almeida Rodrigues,

e do seu filho Luís Almeida Rodrigues, da sua obra e da Comunidade dos Guias

Celestes. O que aqui se relatou foi verdade e aconteceu às referidas pessoas.

FIM EPÍLOGO