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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOCENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
SUMIKA SOARES DE FREITAS HERNANDEZ-PILOTO
(DES)NATURALIZANDO A CRIANÇA NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL
VITÓRIA2008
SUMIKA SOARES DE FREITAS HERNANDEZ-PILOTO
(DES)NATURALIZANDO A CRIANÇA NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL
Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção de grau de Mestre em Educação, na linha de pesquisa História, Sociedade e Filosofia da Educação. Orientador: Profª Drª Vânia Carvalho de Araújo.
VITÓRIA2008
SUMIKA SOARES DE FREITAS HERNANDEZ-PILOTO
(DES)NATURALIZANDO A CRIANÇA NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação na linha de pesquisa História, Sociedade e Filosofia da Educação.
Aprovada em ____________________________ .
COMISSÃO EXAMINADORA
______________________________________Profª. Drª. Vânia Carvalho de AraújoUniversidade Federal do Espírito SantoOrientadora
______________________________________Profª. Drª. Maria Elizabeth Barros de BarrosUniversidade Federal do Espírito Santo
Profª. Drª. Claúdia Maria Mendes GontijoUniversidade Federal do Espírito Santo
Profª. Drª. Rita Marisa Ribes PereiraUniversidade do Estado do Rio de Janeiro
Aos meus pais, Jades e Ivaldete, pela vida de
amor e por acreditarem numa educação de
qualidade para seus filhos.
Ao meu irmão, Ricardo, pela força e incentivo.
Ao meu esposo, Santiago, pela paciência e
compreensão.
Ao meu filho, Davi, razão do meu viver.
AGRADECIMENTOS
Às crianças que participaram desta pesquisa com suas narrativas e aos seus
familiares pelo consentimento.
Aos amigos profissionais do Centro Municipal de Educação Infantil Rubens Duarte
de Albuquerque, pelo incentivo, força e carinho na realização desta investigação e
por compartilharmos nossos sonhos por uma educação pública de qualidade.
Ao Sistema Municipal de Ensino de Vitória pela disponibilidade para freqüentar o
Curso de Mestrado.
Aos colegas de trabalho na Secretaria Municipal de Educação de Vitória, por
acreditar nesse trabalho, em especial a Marcela Abdala, Graça Lobino, equipe da
Gerência de Educação Infantil e Gerência de Formação.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito
Santo por me permitir atuar no campo da pesquisa.
Às amigas Ana Paula Martinez, Moyara Machado, pelo apoio nos momentos mais
diversos.
As demais colegas, Maria das Dores, Marluce, Angélica e Rosane Muñoz, pelo
incentivo e horas de estudos.
As demais colegas da linha de pesquisa pelo carinho e saberes compartilhados.
`A Alina Bonella pelas indicações e incentivo no trabalho de revisão textual.
Às professoras Claúdia Maria Mendes Gontijo, Maria Elizabeth Barros de Barros e
aos demais professores, pelas importantes contribuições apresentadas no processo
de produção.
À professora Rita Marisa Ribes Pereira, pela atenção e contribuições
compartilhadas.
Especialmente à minha orientadora, professora Vânia Carvalho de Araújo, pela
amizade, carinho e competência em me guiar no processo de investigação e por
acreditar na Educação Infantil pública de qualidade. Fico feliz com a sua amizade e
confiança.
Toda pedra que ela encontra, toda flor colhida e toda borboleta capturada já é para ela o começo de uma coleção e tudo aquilo que possui constitui para ela uma única coleção. Na criança, essa paixão revela o seu verdadeiro rosto, o severo olhar de índio que continua a arder nos antiquários, pesquisadores e bibliônamos, porém com um aspecto turvado e maníaco. Mal entra ela na vida e já é caçador. Caça os espíritos cujos vestígios fareja nas coisas; entre espíritos e coisas transcorrem-lhe anos, durante os quais o seu campo visual permanece livre de seres humanos. Sucede-lhe como em sonhos: ela não conhece nada de permanente; tudo lhe acontece, pensa ela, vem ao seu encontro, se passa com ela. Os seus anos de nômade são horas passadas na floresta de sonhos. De lá ela arrasta a presa para casa, para limpá-la, consolidá-la, desenfeitiçá-la. Suas gavetas precisam transformar-se em um arsenal e zoológico, museu policial e cripta. ‘Por em ordem’ significaria aniquilar uma obra repleta de castanhas espinhosas, que são as clavas medievais, papéis de estanho, uma mina de prata, blocos de madeira, os ataúdes, cactos, as árvores totêmicas e moedas de cobre, que são os escudos. A criança já ajuda há muito tempo no armário de roupas da mãe, na biblioteca do pai, enquanto que no próprio território continua sendo o hóspede mais instável e belicoso (BENJAMIN, 2004, p. 107).
RESUMO
Este estudo teve como objetivo compreender como está inserida a concepção de
natureza infantil no cotidiano da Educação Infantil, uma vez que a escola tem
demonstrado, ao longo de seu processo histórico, uma visão de criança como
território da não linguagem (In-fans), negando a sua natureza histórica e social,
prevalecendo, portanto, uma concepção de criança como uma entidade
biopsicológica, cuja natureza infantil é percebida apenas como um organismo em
desenvolvimento, determinada por fatores inatos e a-históricos. A metodologia desta
investigação foi de natureza qualitativa do tipo etnográfica. Como referencial teórico
utiliza autores que procuram (re)significar a concepção de criança, reconhecendo-a
como um ente político, histórico, social e produtor de/na cultura. Como resultado,
observa que há um processo de naturalização das práticas das crianças no universo
escolar, resultando uma negação do seu direito à fala, à manifestação de sua cultura
e de sua história nos diferentes tempos e espaços escolares. Observa, ainda, que a
prática do professor tem sido limitada a uma atuação rotineira e pedagogizante.
Essa prática, ao mesmo tempo em que não tem possibilitado à criança construir o
seu próprio universo de significações, tem reduzido as culturas infantis a
acontecimentos naturalizados. De modo geral, a existência de dois movimentos,
muitas vezes antagônicos, no cotidiano da Educação Infantil, parece sintetizar a
experiência pedagógica como um desafio permanente onde, de um lado, está o
professor (adulto) que não consegue traduzir as manifestações da natureza infantil
como modos de governos próprios e, de um outro lado, estão as crianças que
continuam a erigir novas formas de saberes e fazeres, confirmando, desse modo,
uma concepção de criança como sujeito histórico, produtor de cultura que verte e
subverte a ordem escolar e a vida social normalmente pensadas pelos adultos.
Palavras-chave: Educação Infantil. Criança. Natureza Infantil.
ABSTRACT
The work aimed at understanding how children’s nature conception is inserted in
their education everyday life, once the school has been demonstrating, throughout its
historical process, a vision of children as territory of non language (In-fans), denying
its historical and social nature, prevailing, therefore, a conception of child as a bio
psychological entity, which childish nature is seen only as a developing organism,
determined by inmates and non historical factors. The methodology of this
investigation was considered qualitative and ethnographic. As theoretical referential it
uses authors who seek for giving a new meaning to the children conception
recognizing them as a political, historical, social and cultural producer being. As
result, it is observed that there is a process of naturalization of the children’s
practices in the school universe resulting a denial of their right to speak, to the
manifestation of culture and history in different periods and school spaces. It is still
observed that the teacher practice has been limited to a routine and pedagogical
performance. That practice, at the same time when it does not make possible for the
children to build their own universe of significations, it has reduced the children’s
culture in naturalized happenings. In general, the existence of two movements, most
of the time antagonistic, in the Children’s Education everyday life, seems to
synthesize the pedagogical experience as a permanent challenge that there is the
teacher(adult) on one side, who can not translate the children’s nature manifestations
as ways of self governs and on the other side, there are children who keep raising
new ways of knowledge and actions, confirming the children’s conception as
historical subject who produces culture that translates the school order and the social
life normally thought by adults.
Keywords: Children’s Education. Children. Childish nature.
LISTA DE FOTOS
FOTO 1 - Região da Unidade Escolar
FOTO 2 - Rampa da escola
FOTO 3 - Sala de movimento
FOTO 4 - Salão interno
FOTO 5 - Pátio externo
FOTO 6 - Pátio interno
FOTO 7 - Criança observando fotos de Sebastião Salgado
FOTO 8 - Crianças conversando com a monitora
FOTO 9 - Crianças na exposição
FOTO 10 - Crianças fazendo perguntas
LISTA DE SIGLAS
ASG - Auxiliar de Serviços Gerais
CMEI - Centro Municipal de Educação Infantil
CTA - Corpo Técnico-Administrativo
EMEF - Escola Municipal de Ensino Fundamental
SEME - Secretaria Municipal de Educação
SEMUS - Secretaria Municipal de Saúde
SEMCID - Secretaria Municipal de Cidadania
RCNEI - Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil
PCNs- Parâmetros Curriculares Nacionais
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................... 14
CAPÍTULO 2 - O QUE SABEMOS DAS CRIANÇAS?......................................... 17
2.1 A CRIANÇA NASCE HISTORICAMENTE.................................................... 21
2.2 UM DIÁLOGO SOBRE A NATUREZA INFANTIL E A PEDAGOGIA..................................................................................................
26
2.3 OUTROS TEMPOS DA INFÂNCIA............................................................... 30
2.3.1 Devir-criança, Infância e Temporalidade................................................ 36
CAPÍTULO 3 - LINGUAGEM E A APROPRIAÇÃO CULTURAL DA CRIANÇA.......................................................................................
46
3.1 A HISTORICIDADE DO SER HUMANO....................................................... 47
3.1.1 A criança nasce em um mundo humano............................................... 51
3.1.2 Alguns apontamentos sobre a obra de Vigotsky................................. 53
3.2 LINGUAGEM, APROPRIAÇÃO E MEDIAÇÃO SEMIÓTICA EM VIGOTSKY....................................................................................................
58
3.3 APROPRIAÇÃO CULTURAL DA CRIANÇA.................................................. 61
3.3.1 A dimensão dialógica da linguagem....................................................... 61
3.3.2 As culturas infantis................................................................................... 65
3.3.2.1 Manifestações culturais das crianças....................................................... 68
CAPÍTULO 4 - DESAFIOS METODOLÓGICOS EM UMA PESQUISA COM CRIANÇAS....................................................................................
72
CAPÍTULO 5 - A CRIANÇA NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL.......... 81
5.1 O CENÁRIO DA PESQUISA 83
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 124
REFERÊNCIAS..................................................................................................... 128
APÊNDICE............................................................................................................ 141
1 INTRODUÇÃO
A trajetória dessa investigação parte de saberes e fazeres vividos e compartilhados
com as crianças no cotidiano da Educação Infantil de um Centro Municipal de
Educação Infantil (CMEI) no município de Vitória. Ao escutarmos distintas vozes sobre
a natureza infantil das crianças - por diferentes interlocutores - causando-nos, em
alguns momentos, um certo “estranhamento”, nossas crianças verbalizavam uma
condição de infância que confrontava e questionava os modos de ser/estar dos adultos:
ao fazer inferências sobre a realidade que as cercava; ao falar sobre ser criança e suas
formas de organização; ao questionar os espaços e tempos escolares; ao manifestar
suas culturas infantis no contexto escolar.
Compreender a dinamicidade das culturas infantis, suas manifestações, suas
expressões, seus modos próprios - uma vez que a escola tem exigido, ao longo de seu
processo histórico, uma visão de criança como território da não-linguagem (In-fans1), da
não-razão e do não-conhecimento - foi um desafio a ser trilhado por nós. (Re)significar
a infância, buscando o seu significado social, concedendo valor à criança como ser
social e culturalmente definido, é
[...] considerar que ela tem uma história, que pertence a uma classe social determinada, que estabelece relações definidas segundo seu contexto de origem, que apresenta uma linguagem decorrente dessas relações sociais e culturais estabelecidas, que ocupa um espaço que não é só geográfico, mas que também é de valor, ou seja, ela é valorizada de acordo com os padrões de seu contexto familiar e de acordo também com sua própria inserção nesse contexto (KRAMER, 1986, p. 79).
As várias contribuições teóricas de diversos campos do conhecimento voltados à
infância, nos últimos anos, vêm nos permitindo analisar como desenvolvemos nossas
pesquisas sobre crianças.
Percebemos que ainda pouco se conhece sobre as culturas infantis, seus próprios
saberes, suas possibilidades de criar e recriar a realidade social, porque perguntamos e
1 O que não fala, aquele que não tem linguagem.
14
ouvimos muito pouco as nossas crianças, “ [...] há resistência em aceitar ‘o testemunho
infantil’ como fonte de pesquisa confiável e respeitável” (QUINTEIRO, 2002, p.140). É
nesse percurso que encontramos a contribuição de alguns pesquisadores para
(re)significarmos o nosso olhar sobre a infância.
Dessa forma, refletir a respeito da natureza infantil enfocada numa perspectiva
histórico-cultural significa considerar a criança como ser social que ela é, sujeito de sua
história, produtora de cultura e, portanto um ser humano-criança, criador e autônomo.
Assim, afirmamos uma concepção de infância contrária à idéia de natureza infantil,
abstrata e supostamente universal. Essa ruptura busca (des)naturalizar a criança e, ao
mesmo tempo, o próprio conceito de natureza infantil.
Em nossa pesquisa, portanto, interessou-nos investigar em que medida a
concepção de natureza infantil vem sendo (re)produzida no cotidiano da
Educação Infantil tendo em vista conhecer os modos como as crianças
manifestam suas culturas no contexto escolar.
Em termos específicos, os objetivos desta pesquisa são:
a) analisar como as diferentes concepções de infância e criança estão presentes nas
diversas narrativas e práticas dos sujeitos que atravessam o cotidiano da Educação
Infantil.
b) analisar os possíveis contrapontos entre as culturas infantis e a cultura escolar;
c) identificar as estratégias encontradas pelos diferentes sujeitos da escola de criarem
modos de (re)significar a infância.
As discussões que fundamentam este trabalho estão em quatro capítulos. No primeiro
capítulo, abordaremos os conceitos de infância e criança comumente manifestos no
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cotidiano da Educação Infantil tendo como interlocução a categoria natureza humana
desenvolvida por Vigotsky.
No segundo capítulo, abordaremos a apropriação cultural das crianças, considerando a
linguagem e as manifestações das culturas infantis.
No terceiro capítulo, discorreremos sobre os desafios metodológicos em uma pesquisa
com crianças, apresentando o aporte teórico de nossa investigação fundamentada em
uma abordagem etnográfica.
E, no quarto capítulo, apresentaremos as análises do trabalho de campo, destacando
as narrativas das crianças como uma forma de se (re)pensar e (re)significar as
manifestações das culturas infantis no cotidiano da Educação Infantil.
16
2 O QUE SABEMOS DAS CRIANÇAS
_ Que menino bagunceiro, acho que não tem pai. A mãe dele é alcoólatra. Você vai ver, ele vai ser assim também quando crescer (PROFESSORA ELI, Jardim II).
_ Menina, pára de correr, você tem que me obedecer, eu vou falar com a sua professora. Se você continuar fazendo bagunça no pátio, eu vou deixar você de castigo (LIL,ASG).
Nos últimos anos, crescem os estudos pelo conhecimento da criança em vários campos
teóricos que têm influenciado a pesquisa em educação.
A própria idéia de criança, tal como pensamos hoje (como um ser que tem
necessidades, interesses, modos de pensar específicos), não existia antes do século
XVII, conforme estudos de Ariès (1981).
No que diz respeito às crianças, na Idade Média, não se evidenciou um sentimento de
infância que distinguisse a criança do adulto. As crianças eram consideradas como
adultos em miniatura.
A convivência com um alto índice de mortalidade infantil fazia com que a morte das
crianças fosse considerada natural e a duração da infância fosse limitada a um período
muito curto na vida dos indivíduos. Ela correspondia ao período em que, para
sobreviver, a criança necessitava de cuidados físicos. Quando sobrevivia, com seis ou
sete anos, após o desmame tardio, a criança “[...] misturava-se com os adultos
[...]” (ARIÈS, 1981, p.193), com quem passava a conviver grande parte do tempo
participando das atividades e compartilhando com eles o trabalho nos campos ou nos
mercados, nos jogos e nas festas.
O avanço das descobertas científicas tornou possível o prolongamento da vida e a
diminuição da mortalidade infantil. A partir do século XVII, gradativamente, passou-se a
admitir a idéia de que a criança era diferente do adulto não apenas fisicamente.
Começou-se, então, a considerá-la como não preparada para a vida, cabendo aos pais,
17
além da garantia de sua sobrevivência, a responsabilidade por sua formação,
entendida, principalmente, como espiritual e moral. Nesse período, segundo Ariès
(1981), iniciou-se o costume de enviar crianças às escolas, as quais se ocupavam
basicamente com o ensino da religião e da moral e de algumas habilidades, como a
leitura e a aritmética.
Mas a atuação da escola era ainda bastante limitada, tanto no que se refere aos
objetivos que ela assumia quanto em relação aos métodos que utilizava e ao pequeno
número de crianças que atendia.
Nesse período, o uso de castigo corporal, o chicote, pelo mestre, para a correção dos
estudantes, tornou-se comum nas escolas e nas famílias.
A retirada da criança do universo adulto teve repercussões no modo de pensar sobre
elas. No século XVIII, os filósofos começaram a apontar a existência de um mundo
próprio e autônomo da criança. A figura que executou a virada mais explícita da história
moderna foi: Jean Jacques Rousseau (2004), que, juntamente com outros teóricos
consideraram que a mente infantil opera de forma diferente da dos adultos. Esse modo
de pensar possibilitou o estudo científico da criança e seu desenvolvimento em suas
formas próprias de organização.
As representações que a Idade Moderna fez da criança ainda fortalecem os traços com
que geralmente a sociedade contemporânea pensa nela: fragilidade, meiguice,
inocência, pureza. Tal permanência está explicitada na própria discussão que
Rousseau desenvolveu sobre a natureza infantil.
Rousseau (2004) colocou no centro de sua teorização a criança e opôs-se a todas as
idéias correntes (da tradição e do seu século) em matéria educativa: elaborou uma
nova imagem de infância, vista como próxima do homem por natureza -- bom e
animado pela piedade, sociável, mas também autônomo -- como articulada em etapas
sucessivas (da primeira infância à adolescência) bastante diversas entre si por
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capacidades cognitivas e comportamentos morais. Ele reconhecia no homem uma
dupla dependência: a das coisas, que é a da natureza, e a dos homens, que é a
sociedade. “Conservai a criança unicamente na dependência das coisas e tereis
seguido a ordem da natureza no progresso de sua educação” (ROUSSEAU, 2004, p.
83).
O referido autor define a criança como um sujeito que, respeitada a sua ordem natural,
resguardaria em si a bondade, a felicidade, a liberdade e espontaneidades
comprometidas pela ordem social adulta.
As idéias de Rousseau apresentam, ao mesmo tempo, uma concepção de natureza
social para o homem e um entendimento da natureza a-social da criança, definida como
boa, pura, inocente, que devia ser preparada. Ele defendia que a criança deveria ser
resguardada da ordem social, sublinhando o compromisso da criança com ela mesma,
voltada para si mesma.
Com Rousseau, a criança como ser específico ganha uma teoria, uma sistematização enfocando seu estatuto como ser (a-moral, a-social), e realçando o movimento particular que realiza para apreender o real (o método negativo). A sociedade ganha um corpo de conhecimentos sobre a criança e sobre a prática de educá-la segundo o princípio da natureza – uma psicologia, uma filosofia, uma metodologia de ensino, uma pedagogia do indivíduo e da liberdade, sob o fulcro da natureza. Desenha-se com mais expressão a ideologia da especificidade da infância, isto é, a visão da infância como algo singular, onde a criança é um ser que é ela própria em sua condição ditada pelo seu estágio de vida (OLIVEIRA, 1989, p.179).
Para ele, é sempre a natureza que mostra um caminho que não deve ser contrariado. A
criança passa a ser reconhecida na sua especificidade. “Ela não deve ser nem um
animal, nem homem, e sim criança” (ROUSSEAU, 2004, p.81).
É Rousseau quem vai colocar a infância como um tempo à parte, o tempo em que a
natureza humana, ainda não corrompida pela sociedade, guarda toda sua pureza e
inocência e que, por isso, deve ser preservada, com o intuito de ser cultivada por meio
da educação. Cabe à educação moldar o homem. Ao mesmo tempo em que a infância
ganha valorização e reconhecimento, a criança é vista como alguém incapaz de
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conviver socialmente por não ser dotada de raciocínio e de julgamento de suas ações e
das ações dos outros.
[...] o primeiro de todos os bens não é a autoridade, mas a liberdade. O homem verdadeiramente livre só quer o que pode e faz o que lhe agrada. Eis a minha máxima fundamental. Trata-se apenas de aplicar a infância, e todas as regras da educação decorrerão dela (ROUSSEAU, 2004, p. 81).
Rousseau vê a infância como um momento em que se vê, se pensa e se sente o
mundo a partir de um modo próprio. Para ele, a ação do educador deve ser uma ação
natural, que leve em conta as peculiaridades da infância,
É preciso que ela sinta a sua fraqueza e não que a sofra; é preciso que ela dependa, e não que obedeça; é preciso que ela peça, e não que mande. A criança só está submetida aos outros em razão de suas necessidades, e porque vêem o melhor do que ela o que lhe é útil, o que pode contribuir ou prejudicar a sua conservação. Ninguém tem o direito, nem mesmo o pai, de ordenar à criança o que não lhe serve para nada (ROUSSEAU, 2004, p. 81-82).
Observa-se, portanto, uma orientação da criança pelas “leis naturais”, a preocupação
de formar na criança o homem de amanhã para a realização de uma sociedade
equilibrada e harmoniosa. A função social de educar, de transformar novos seres
humanos em futuros cidadãos ainda é tomada pela Pedagogia como sua maior tarefa:
[...] a natureza dispõe de meios que nunca devemos contrariar. Não devemos obrigar uma criança a ficar quando quer sair, ou a sair quando quer ficar. Quando a vontade das crianças está mimada por nossa culpa, elas nada querem inutilmente. Elas devem pular, correr, gritar quando têm vontade. Todos os seus movimentos são necessidades de sua constituição que procura fortalecer-se (ROUSSEAU, 2004, p. 83).
A partir de Rousseau, a infância ganha em valorização e reconhecimento como uma
época peculiar da vida do homem, mas, ao mesmo tempo, a criança é ainda vista como
um “recipiente”, como alguém incapaz de conviver socialmente.
O que permanece do pensamento de Rousseau é a idéia da infância como um tempo à
parte, preservado e resguardado das influências sociais (consideradas perversas),
assim como a noção de uma época, por isso mesmo, pura e feliz.
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2.1 A CRIANÇA NASCE HISTORICAMENTE
Desde que Ariès (1981) publicou, nos anos 70, seu estudo sobre o aparecimento da
noção de infância na sociedade moderna, sabemos que as visões sobre a infância são
construídas social e historicamente a partir da inserção concreta das crianças e que
seus papéis variam com as formas de organização social.
De acordo com Sarmento (2002) foi durante grande parte da Idade Média, que as
crianças foram consideradas como meros seres biológicos, sem estatuto social e sem
autonomia existencial. Ao pontuar que “[...] apesar de ter havido sempre crianças, seres
biológicos de geração jovem, nem sempre houve infância, como categoria social de
estatuto próprio” (SARMENTO, 2002, p.3), nos instiga a uma reflexão sobre a
construção histórica da infância com base na produção de representação das crianças;
na estrutura de seu cotidiano e na constituição de organizações sociais para elas.
Autores como Kuhlmann Júnior e Fernandes (2004), na ótica da Historiografia Cultural
da Infância, compreendem a infância como a concepção ou a representação que os
adultos fazem sobre o período inicial da vida, ou como o próprio período vivido pela
criança, o sujeito real que vive essa fase da vida. Para eles, a história da infância seria
a história da relação da sociedade, da cultura dos adultos, com essa classe de idade, e
a história da criança seria a história da relação das crianças entre si e com os adultos,
com a cultura e a sociedade.
A definição da duração da infância é outro elemento variável, que, segundo Kuhlmann
Júnior e Fernandes (2004, p. 29),
[...] pode se restringir aos primeiros 18 ou 24 meses - infans - ou, então ao período que se estende até completar sete anos, a idade da razão - e dentro dele a sua subdivisão em primeira infância, dos zero a dois anos, e a segunda infância, dos dois a seis anos. Mas a infância pode se prolongar até aos dez, doze ou quatorze anos - como na análise de Áries.
21
O uso do termo infâncias, no plural, é outro fator considerado por esses autores. No
entanto, infância, no singular, seria um conceito, uma representação, um tipo ideal a
caracterizar elementos comuns às diferentes crianças. Nesse sentido, encontra-se
também o inverso, a subdivisão infâncias, quando surgem propostas para a infância
material ou moralmente abandonada, para a infância pobre, delinqüente etc. Como
contraponto, a criança torna-se categoria genérica.
Às vezes, a expressão infância refere-se às crianças dos setores dominantes, quando se atribui a esses setores a primazia dos sentimentos e das práticas que caracterizam esse conceito ou representação. Outras vezes, a infância representa as crianças pobres, objeto das políticas sociais (KUHLMANN JR, FERNANDES, 2004, 29).
Para Corsini (apud KULHMANN,1998, p.16),
A infância tem um significado genérico e, como qualquer outra fase da vida, esse significado genérico é função das transformações sociais: toda sociedade tem seus sistemas de classes de idade e a cada uma delas é associado um sistema de status e de papel.
Já os autores Cambi e Ulivieri (apud KUHLMANN, 1998, p.17) consideram que há dois
grandes setores da história da infância, compostos pela história social da infância - que
estuda as suas condições de vida, as instituições, as práticas de controle, a família, a
escola, a alimentação, os jogos, a vida material e social - e o segundo, envolvendo
aspectos ligados ao imaginário, que trata de colher as mutações que intervêm na
história das mentalidades em relação ao fenômeno infância, as atitudes que se
externam nos documentos como as obras de arte, as reflexões filosóficas e
pedagógicas etc. Esses autores defendem que tais aspectos não podem mais ser
trabalhados isoladamente. Desse modo, torna-se necessário caminhar em direção a um
entrelaçamento da história social com a do imaginário.
Sem dúvida, não podemos deixar de destacar que a publicação de Philippe Áries
(1981), História social da criança e da família, iniciou uma nova linha de investigação: a
história da infância. Para o autor, o sentimento moderno de infância corresponde a duas
atitudes contraditórias dos adultos: uma considera a criança ingênua, inocente e pura; a
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outra toma a criança como um ser imperfeito e incompleto, que necessita da
moralização e da educação feitas pelo adulto.
Manuel Pinto (1996, p. 34 - 35), ao apresentar uma análise da obra de Áries, considera
que:
a) na época moderna, a idéia de infância como fase autônoma relativamente à adultez só começa a adquirir pertinência na sensibilidade e na vida social a partir dos finais do século XVII e especialmente do século XVIII, em alguns sectores da aristocracia e sobretudo da burguesia;
b) nas classes superiores da sociedade, a criança vai adquirindo uma certa especificidade relativamente ao adulto já ao longo do século XVI, especifidade que se revela numa individualização no vestuário (sobretudo dos rapazes) na linguagem etc.;
c) na Idade Média, as crianças são representadas como adultos em miniatura (homunculus): trabalham, comem, divertem-se e dormem no meio dos adultos;
d) finalmente, nas classes populares, os antigos gêneros de vida e as antigas concepções de infância mantiveram-se, quase até aos nossos dias, havendo mesmo razões para pensar numa regressão verificada com o advento da industrialização e a procura de mão-de-obra infantil.
É bem verdade que Ariès (1981) identifica a ausência de um sentimento de infância até
o fim do século XVII. Entretanto, no século XVIII, a escola passa a imprimir o ensino
escolar como meio de educação, em que a criança deixa de ser misturada aos adultos,
e a família passa a ser um lugar de afeição entre pais e filhos. A educação das crianças
torna-se a ser responsabilidade da escola.
Kuhlmann Júnior e Fernandes (2004, p.17) fazem uma análise interessante da obra de
Áries sobre a qual cabe a nossa apreciação:
A historiografia da infância tem-se ocupado do debate sobre a obra de Ariès, em torno do processo de desenvolvimento da concepção moderna da infância, da época e dos ritmos em que se deu. Os estudos que têm sido realizados mostram que a consciência da existência de diferentes períodos da vida humana, por parte dos adultos, assim como as atribuições e representações relacionadas às características específicas de cada um deles - incluída a particularidade infantil -, pode ser identificada desde a antiguidade e nas mais diversas culturas [...] contrariamente às teses de Ariès, na Idade Média teve-se a percepção nítida da especificidade da infância. A criança era construída, em primeiro lugar pelo amor ou pela rejeição dos pais e aquele se manifesta no
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protagonismo da mãe durante o período de criação, acolhendo a criança, rejeitando-a ou, eventualmente, praticando infanticídio.
Para Cambi e Ulivieri (apud KUHLMANN JR.; FERNANDES, 2004, p. 21), a
transformação que se observa em relação à infância não é linear e ascendente, como a
descreve Ariès. A visão linear do desenvolvimento histórico de Ariès ganha um caráter
ainda mais abstrato, quando da sua transposição para outros contextos.
Manuel Pinto (1996, p. 36) também, faz a seguinte reflexão:
As conclusões de Ariès sobre a história da infância tiveram um grande impacto nos meios acadêmicos e da educação e foram, sem dúvida, fonte de inspiração para numerosos trabalhos em diversas latitudes, mas suscitaram igualmente algumas objeções que não tiram, no entanto, a este historiador o mérito de nos ter proporcionado a consciência de que aquilo que parecia um fenômeno natural e universal era afinal o resultado de uma construção paulatina das sociedades moderna e contemporânea.
Desse modo, podemos perceber que a idéia de infância não existiu sempre e da
mesma maneira. Kramer (1992) afirma que ela surge com a sociedade capitalista, na
medida em que muda o papel desempenhado pela criança na sociedade:
Se, na sociedade feudal, a criança exercia um papel produtivo direto (‘de adulto’) assim que ultrapassava o período de alta mortalidade, na sociedade burguesa, ela passa a ser alguém que precisa ser cuidada, escolarizada e preparada para uma atuação futura. Esse conceito de infância é, pois, determinado historicamente pela modificação das formas de organização da sociedade (KRAMER, 1992, p.19).
As marcas da modernidade estão presentes no espaço-tempo da infância, ou seja, uma
temporalidade marcada pela linearidade, cronologia, racionalidade.
Assumimos a correria infinita como se fosse nosso movimento próprio. Desde a revolução industrial, temos nos deixado seduzir pelas idéias de utilidade, produtividade e lucro, passando a identificar tempo e dinheiro [...]. A idéia de progresso, trazida à tona pela revolução industrial e pelo conceito darwinista de evolução, consolida-se por meio do capitalismo monopolista e faz das teorias positivistas seu ponto alto de sustentação. A história passa a ser vista como um encadeamento que engloba sucessivas dimensões bem definidas-passado, presente e futuro-, cristalizadas pelas leis da causalidade e desdobradas nos conceitos de causa e conseqüência (PEREIRA; JOBIM e SOUZA, 2005, p. 30).
24
Diante desse tempo tão reduzido, a infância tem um lugar. Na bibliografia (re)visitada,
encontramos um teórico que faz um diálogo importante sobre o tempo não enquanto
linearidade. Esse teórico é Walter Benjamin (2002), do qual traremos algumas
contribuições.
De acordo com Benjamin (2002), a criança é um indivíduo social, capaz de ver o mundo
com seus próprios olhos. Para ele, a criança não é vista de maneira romântica ou
ingênua, mas alguém inserida na história, numa classe social. Ele imprime a idéia de
que a criança reconstrói o mundo baseada em sua experiência infantil.
Na perspectiva benjaminiana, a infância não se esgota na experiência vivida, mas ela
se (re)significa na vida adulta. Desse modo, quando falamos em infância e
relembrarmos o passado, (re)contado a partir do presente, entendemos a infância como
categoria, social, histórica e cultural, que se recompõe na experiência vivida.
Cabe-nos destacar que é esse exercício que trataremos de pontuar neste trabalho
investigativo, ao rememorarmos em nossa experiência no cotidiano da Educação
Infantil, trazendo as marcas de nossa história e nossa sensibilidade ao ouvir as vozes
infantis.
São imagens, sons, aromas, vozes ecoando em distintos espaços e tempos da escola,
todos evocados pela rememoração. Mais que lembrar, rememorar significa um esforço,
um trabalho de memória em busca de (re)significar as experiências de nossa infância,
de trazê-las à consciência por meio da narrativa.
Nesse sentido, pelas narrativas infantis, a experiência da infância é (re)elaborada e,
nesse (re)contar, adultos e crianças descobrem e redescobrem, juntos, caminhos,
continuações da história em permanente processualidade.
25
A criança é sujeito em processo de criação e revela todo o seu potencial. Reconhecer a
criança como sujeitos da história é entrelaçar as vozes das crianças com os adultos. É
reconhecê-la como sujeito humano.
2.2 UM DIÁLOGO SOBRE A NATUREZA INFANTIL E A PEDAGOGIA
A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens [...] a infância tem maneiras de ver, de pensar e de sentir que lhe são próprias; nada é menos sensato do que querer substituir essas maneiras pelas nossas [...] (ROUSSEAU, 2004, p. 90-91).
A literatura revisada indica que o conceito de infância utilizado pela Pedagogia ainda
nos remete às marcas de sua formulação original. Tais marcas estão presentes em
nosso cotidiano escolar, no que diz respeito à idéia de uma natureza infantil que define
a criança como um ser abstrato, inocente, sem linguagem (Infans).
A noção de natureza infantil, também debatida na obra de Bernard Charlot (1979),
discute a idéia de infância no pensamento pedagógico comum, entre os filósofos e nos
sistemas pedagógicos. Por um lado, sendo a criança naturalmente um ser complexo
(fraco, inacabado, imperfeito e desprovido de tudo), caberia à educação combater tal
natureza, recusando seus “interesses naturais”.
Segundo Charlot (1979), a tarefa pedagógica consiste, neste caso, na inculcação de
regras, na disciplina e na transmissão de modelos. Noutro pólo, a idéia de preservação
preocupa-se em não destruir a “inocência original”, protegendo sua natureza. Aqui a
ação do educador deveria guiar-se pelos interesses e necessidades infantis.
Poder-se-ia acreditar que a idéia de infância é um conceito pedagógico de base. Na realidade, não é nada disso. É por isso, aliás, que pudemos analisar a ideologia pedagógica sem encontrar a idéia de infância em seus conceitos-chave. A noção de infância não é uma noção pedagógica primeira, mas uma noção derivada. A teoria da educação não é fundamentalmente uma teoria da infância; é essencialmente uma teoria da cultura e de suas relações, com a natureza humana (CHARLOT, 1979, p. 99).
Vemos, portanto, que, de acordo com Charlot (1979), a Pedagogia traduz conceitos
vindos da Filosofia e elabora representações da infância com uma natureza
26
contraditória. O autor é enfático ao dizer que: “Nossa imagem contraditória da infância
passa assim por ser a de um ser, em si contraditório” (CHARLOT, 1979, p.101).
Desse modo, as contradições que atribuímos à natureza infantil são múltiplas, ou seja,
complexas. Nas relações de dualidade, ao mesmo tempo inocente e má; imperfeita e
perfeita; dependente e independente; herdeira e inovadora, a criança é considerada
como sem-razão, sem experiência, sem-linguagem e não pela afirmação de suas
especificidades, é apenas vista como aquela que deve ser guiada pelo adulto.
Assim, conforme explicitou Charlot (1979), a Pedagogia procura formular significações
da infância ao tomar o conceito de natureza humana e faz associações a uma gênese
original (natureza infantil) e a um processo “natural” de desenvolvimento, que seria
impulso da própria natureza, estabelecendo, no ideário pedagógico, um jogo de
significações, que consolida uma concepção em torno da idéia de evolução natural.
Para melhor compreendermos, faz-se necessário aprofundar algumas questões
pertinentes à Pedagogia tradicional e à Pedagogia nova.
Na Pedagogia tradicional, a criança apresenta uma natureza corrompida. Daí por que a
educação deve inculcar-lhe regras e conduzi-la ao caminho do bem e da virtude por
meio de uma Pedagogia disciplinadora.
Desse modo,
A Pedagogia tradicional insiste na insuficiência de desenvolvimento e de experiência puramente negativa, a falta de acabamento da criança. Julga a criança com referência ao que deve tornar-se, isto é, em função de uma norma ideal (CHARLOT, 1979, p.119).
Já na Pedagogia nova, a criança não é vista como uma tábula rasa; ela assume um
papel ativo. Ela está na centralidade da discussão:
A infância não é mais julgada com referência a uma norma ideal de humanidade projetada para o futuro, mas com referência ao dinamismo de seu desenvolvimento, que obtém sua fonte na humanidade verdadeira. A infância é
27
humanidade e simboliza o que há de melhor da natureza humana: inocência, confiança, liberdade, criatividade, perfectibilidade (CHARLOT, 1979, p. 121).
Nesse sentido, a especificidade da criança é destinada à espontaneidade e não mais a
modelos determinados pelos adultos. A concepção de infância elaborada pela
Pedagogia nova é de uma criança ativa, em vias de desenvolvimento, alguém capaz de
elaborar o seu próprio conhecimento espontaneamente, sem a mediação com o outro,
sem a linguagem.
Para Charlot (1979, p.130), tanto a Pedagogia tradicional quanto a Pedagogia nova
dissimulam a “[...] significação social da infância por trás da idéia de natureza humana e
de luta contra a corrupção”.
Pelo que podemos perceber nas duas Pedagogias, a concepção de infância vem
marcada pela idéia de uma natureza infantil que separa a criança de uma existência
concreta e julga suas manifestações de acordo com a essência de cada natureza. A
criança continua a ser considerada como um ser abstrato, e a escola teria o papel de
prepará-la para o mundo. O significado social da infância fica a mercê da idéia de uma
natureza infantil descontextualizada e homogênea.
Reduzir a infância e a criança a seus aspectos naturais significa considerá-la apenas
um organismo em desenvolvimento ou simplesmente uma categoria etária. A natureza
infantil, aqui demarcada, é vista como um organismo em desenvolvimento ou um dado
etário, biológico, um ser sem alma, sem linguagem, “[...] como um ‘devir’2, portanto
desprovido de um estatuto epistemológico pleno,[...] cuja tônica se estabelece na
negação do seu direito à palavra, no desreconhecimento de sua condição
social” (ARAÚJO, 2005, p. 67).
A criança é reconhecida apenas como um “ser” em pleno desenvolvimento, ou seja,
“naturalmente desenvolvida”, com um conteúdo determinado pela imaturidade,
2 Aqui o sentido de “Devir” é um vir a ser, em desenvolvimento.
28
inocência e imperfeição de sua natureza, não a reconhecendo como um sujeito
histórico, capaz de criar cultura.
No texto Visibilidade social e estudo da infância, Sarmento (2007) faz algumas sínteses
sobre as imagens sociais das crianças no decorrer da história. O que nos chama
atenção é imagem da criança pré-sociológica citada na “criança naturalmente
desenvolvida”. Segundo esse autor, a Psicologia de bases desenvolvimentista, a partir
dos trabalhos de Jean Piaget, tem se constituído como referência de entendimento e
interpretação da criança no século XX, influenciando de certo modo a Pedagogia, a
Medicina, os cuidados sociais, as políticas públicas e a relação das crianças com os
adultos. O autor é enfático ao dizer
A psicologia do desenvolvimento é não apenas responsável pela constituição de uma reflexividade institucional sobre a infância, mas também pela proposta de uma norma de constituição do conhecimento científico sobre as crianças, através do recurso a um conjunto sofisticado de escalas e testes de ‘medição’ do ‘desenvolvimento natural’ da criança (SARMENTO, 2007, p. 32).
Caracterizadas por traços de negatividade, mais do que pela definição de conteúdos
(biológicos ou simbólicos) específicos, as crianças são percepcionadas como estando
em vias de o ser, por efeito da ação adulta sobre as gerações “[...] mais do que um
constructo interpretativo da condição social da infância, o próprio fator da ocultação: se
as crianças são o ‘ainda não’, o ‘em vias de ser’, não adquirem um estatuto
epistemológico pleno” (SARMENTO, 2000, p. 149).
Para tal concepção de criança, faz-se necessário superá-la, uma vez que reconhece a
criança como sujeito sem vez e voz, sem fala, aquele que não tem linguagem. “Este
olhar ‘adultocêntrico’ sobre a infância registra especialmente a ausência, a
incompletude ou a negação das características de um ser humano” (SARMENTO,
2000, p.155). O lugar da infância na contemporaneidade é um lugar em mudança e
precisa ser (re)significado.
29
Quando falamos em natureza infantil, entendemos que esta apresenta algumas bases
filosóficas, baseadas principalmente em Rousseau, que atravessam o campo da
Pedagogia, tanto a Pedagogia tradicional quanto a Pedagogia nova, legitimando
algumas práticas pedagógicas “naturalizadas” pelos adultos. Essa expressão, ao
mesmo tempo em que parece se opor à cultura, indica que as crianças produzem e
criam cultura em meio à sua inventividade, criação e produção; subvertendo uma lógica
muitas vezes prescritiva e nos mostra como a sua natureza infantil não é somente um
ser humano em vias de desenvolvimento, ou seja, um vir a ser. A criança está
relacionando experiências com o seu entorno social, cultural e histórico. O termo
natureza infantil não nos parece inadequado, pois não se opõe à cultura; ele se
(re)significa, ao incorporar aquilo que é criado pelo homem, que é produto de uma obra
humana.
2.3 OUTROS TEMPOS DA INFÂNCIA
Dia-a-dia nega-se às crianças o direito de ser crianças.Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua.O Mundo trata os meninos pobres como se fossem lixos, para que se transformem em lixo. E os do meio, os que não são ricos nem pobres, conserva-os atados à mesa do televisor, para que aceitem desde cedo,como destino, a vida prisioneira.Muita magia e muita sorte têm as criançasque conseguem ser crianças.(EDUARDO GALEANO, 1999)
Na contemporaneidade, vem se delineando uma ótica de infância que nos exige uma
retomada histórico-filosófico-sociológica das diferentes concepções de infância.
Conforme dito, a modernidade apresenta marcas de um tempo da racionalidade
técnico-científica que repercute na concepção de infância.
Sarmento (2001, p.13-14), apresenta-nos a seguinte reflexão sobre a modernidade:
30
A verdade é que houve sempre crianças, não houve sempre infância. A consideração das crianças como grupo etário próprio, com características identitárias distintas e com necessidades e direitos genuínos, é muito recente, é mesmo um projecto inacabado da modernidade.
Ao trazer reflexões sobre a modernidade, Sarmento (2002) segue sua discussão ao
pontuar que a segunda modernidade era vista como um conjunto associado e complexo
de rupturas sociais, em substituição de uma economia predominantemente industrial
por uma economia de serviços. São rupturas que contribuíram para as idéias
fundadoras da modernidade: a crença na razão, o sentido do progresso, a hegemonia
dos valores ocidentais, a idéia do trabalho com base social.
Sarmento (2002, p.7) afirma que “[...] a reentrada da infância é um aspecto nuclear da
reinstitucionalização da infância na esfera econômica”. A reinstitucionalização da
infância no mundo contemporâneo ocorre por efeito da convergência de três mudanças
centrais: a globalização social; a crise educacional; as mutações do mundo do trabalho.
Para o autor, é na primeira mudança que as crianças participam da economia pelo lado
da produção, principalmente pelo trabalho infantil, e a globalização social contribui para
a homogeneização infantil, sobretudo no marketing da infância (produtos, discurso,
publicidade).
A crise educacional é considerada por Sarmento (2002) como a segunda mudança
contemporânea com implicações no estatuto social da infância. Ela exprime mudanças
contemporâneas na criação e na difusão de saberes encontrados na estrutura formal da
escola que é considerada como o palco das trocas e disputas sociais e culturais, um
palco decisivo da luta político-pedagógica. A escola da segunda modernidade é
considerada de massas, heterogênea e multicultural.
E ainda considera como terceira mudança contemporânea as mutações do mundo do
trabalho. O desemprego massivo e a dificuldade de acesso ao primeiro emprego
constituem fatores importantes na precarização da vida das crianças das famílias
populares. “A emergência de modalidades de economia paralela e o envolvimento
31
precoce das crianças em atividades que nela integram [...]” (SARMENTO, 2001, p.
19-20) associam-se à crise do emprego, fruto do mercado capitalista.
Concluímos, conjuntamente com Sarmento (2001, 2002) que esses fatores vêm
contribuindo para a institucionalização da infância e colocam-na na interação de
tensões contraditórias, que contribuem para a formação de identidades sociais
fragmentárias, consideradas como “[...] o espaço social da (re)institucionalização da
infância na contemporaneidade”(SARMENTO, 2001, p. 22).
Pereira e Jobim e Souza (1998, p. 32-33) pontuam,
A criança, no mundo moderno, também veste as asas do anjo da história. ‘O que você vai ser quando crescer?’ Crescer. Futuro. As asas abertas talvez não signifiquem promessas de vôo. Seriedade. Sisudez. É preciso tornar-se um sujeito de razão. Prontidão. Amadurecimento. Pressa, rotina catalogada: escola de inglês, judô, informática, natação, ufa! Crianças vivendo na rua. Trabalho infantil. Erotização. Prostituição. Objeto de consumo. Apressamento da infância. Empurrada/seduzida cada vez mais para o futuro - o mundo adulto -, contempla o passado e acumula ruínas a seus pés: brinquedo, fantasia, peraltice, imaginação, burburinho. ‘Já é uma mocinha’, ‘é homem feito’ E o tempo? O tempo passou pela janela, como diz a canção popular. E a gente não viu. Que imagens guardar de tudo isso? Que diálogo manter com um tempo que se evapora aos nossos pés sem deixar rastros ou marcas?
As autoras explicitam que falar da influência da modernidade no tempo e espaço da
infância é afirmar uma linearidade e cronologia de forma hegemônica nas práticas
sociais do mundo moderno.
O lugar da infância na contemporaneidade é um lugar em mudança. A modernidade
estabeleceu uma infância marcada pela negatividade: “[...] criança não trabalha, não
tem acesso ao mercado, não se casa, não vota nem é eleita, não toma decisões
relevantes, não tem lugar, não é punível por crimes”, afirma Manuel Sarmento (2006, p.
17-18). Dessa forma, o estudo da infância faz-se cada vez mais importante, uma vez
que a criança ainda é vista como um ser em pleno desenvolvimento, ou seja, um vir-a-
ser.
32
As considerações de Sarmento (2006) sobre a segunda modernidade levam-nos a uma
reflexão sobre as condições em que vive a infância moderna e a considerarmos que ela
não se dissolveu na cultura e no mundo do adulto.
Tem-se produzido a idéia de que as crianças atualmente vivem em um processo de
adultização precoce, que estão perdendo o tempo da infância, e por conseqüência,
habitam a idade da não-infância. Um dos autores que trabalha com essa idéia de
“morte da infância” é Neil Postman (1999). Para ele: “As evidências do
desaparecimento da infância vêm de várias maneiras e diversas fontes” (POSTMAN,
1999, p. 134).
Concordamos com Sarmento (2007) quando explícita que essa concepção da morte da
infância burla a natureza ativa das crianças, como sujeitos sociais, e não como meros
receptores passivos da cultura de massas e ainda,
[...] obscurece o fato de que as crianças, nas complexas e adversas condições sociais da sua vida atual vivem-na na especificidade da sua geração; [...] é incorreto falar em morte da infância, ainda que, efectivamente, a infância contemporânea sofra constrangimentos poderosos e se apresente especialmente vulnerável à colonização dos seus mundos de vida pelos adultos (SARMENTO, 2007, p. 35).
Dessa forma, reafirmamos conjuntamente com Manuel Sarmento (2007, p. 35-36) que,
[...] a infância não é a idade da não-fala: todas as crianças, desde bebês, têm múltiplas linguagens (gestuais, corporais e verbais) pelas quais se expressam. A infância não é a idade da não-razão: para além da racionalidade hegemônica da sociedade industrial, outras racionalidades se constroem. A infância não é a idade do não-trabalho: todas as crianças trabalham nas múltiplas tarefas que preenchem os seus quotidianos, na escola, nas oficinas ou na rua. A infância não vive a idade da não-infância: está aí, presente nas múltiplas dimensões que a vida das crianças (na sua heterogeneidade) continuamente preenche.
Portanto, a infância é uma construção histórica. A infância não está em
desaparecimento, nós a temos, ela se (re)significa em nossa experiência vivida. Nós,
profissionais e pesquisadoras/es da infância, também não estamos isentas/os do
processo de elaborar concepções e representações das crianças que nos fazem agir de
33
forma preconceituosa. É preciso aprofundar os conhecimentos sobre que crianças são
essas, o que elas têm em comum, o que partilham entre si.
As rupturas provocadas pelas teorias contemporâneas podem ser uma via que nos leva
a repensar a infância. Tanto os diálogos com a Psicanálise, a Psicologia, a Filosofia e
os estudos da linguagem, como também a História da Infância e as contribuições da
Sociologia e da Antropologia permitem-nos enfrentar polêmicas e nos instiga a indagar
conjuntamente com Kramer (1999, p. 271-272):
Como deixar de ser in-fans (aquele que não fala), como adquirir voz e poder num contexto que de um lado, infantiliza os sujeitos sociais, empurrando para frente o momento da maturidade e, de outro, os adultiza, jogando para trás a curta etapa da primeira infância? Para resolver este aparente paradoxo, é preciso perceber a concepção — que lhe é subjacente — de infância em abstrato, desenraizada de sua cultura, classe, grupo social e, ao contrário de ver as crianças segundo uma suposta essência ou natureza, entender que são produzidas em e por condições concretas de existência, que são sujeitos sociais e históricos, marcados pelos aspectos contraditórios das sociedades em que vivem.
A criança não se resume a ser alguém que não é, mas que se tornará (adulto, no dia
em deixar de ser criança). Contra essa percepção naturalizadora da infância, há que se
forjar uma concepção que reconheça a especificidade da infância, entendendo seus
modos de criar cultura. Além de serem nela produzidas, as crianças possuem um olhar
crítico.
Dessa forma, não é só compreender as crianças, mas ver o mundo a partir do ponto de
vista da criança e aprender a ver o mundo com o olhar da criança — questionando o
olhar adultocêntrico presente nas instituições, a dominação e a didatização existentes
nas diferentes modalidades de educação, nas diversas instâncias da cultura e da
sociedade.
Entender que as crianças imprimem saberes e fazeres a partir de uma história, que
brincam, que inventam, que falam, enfim, é acreditar que há uma história a ser contada,
é acreditar em uma infância do homem.
34
Concordamos, assim, com muitos autores que apresentam a preocupação de provocar
uma compreensão da experiência infantil na contemporaneidade, ao redefinir o seu
lugar social, ao tecer suas redes de relações para uma cultura infantil.
O campo das Ciências Sociais é onde a História Social, a Antropologia da Educação e,
mais recentemente, a Sociologia, tem se tornado um lugar de referência nos estudos
sobre/com a infância, quando se trata de desconstruir o paradigma tradicional de
infância - uma infância natural, biológica, universal, psicológica.
A ampliação da discussão sobre infância, mediante o surgimento da Sociologia da
Infância, tem reconhecido as crianças como atores sociais e produtores de culturas
infantis. É interessante destacar que muitos textos apontam a construção social da
infância como um novo paradigma para o seu estudo.
Prout e James (apud SARMENTO, 1996, p.67) sintetizam algumas bases importantes
para assentar a nova forma de abordagem dos mundos sociais da infância:
a) a infância é entendida como uma construção social; a infância, sendo distinta da imaturidade biológica, não é uma forma natural nem universal dos grupos humanos;b) a infância é uma variável da análise social, não dissociável de outras variáveis, como o sexo ou a classe social;c) as culturas e relações sociais das crianças merecem ser estudadas em si mesmas, estudadas pelo seu próprio direito e autonomamente em face às perspectivas e preocupações dos adultos;d) as crianças são e devem ser vistas como atores na construção e determinação das suas próprias vidas sociais, das vidas dos que as rodeiam e das sociedades em que vivem.
Reconhecer as crianças como atores sociais é reconhecer que elas são capazes de
questionar, inferir, narrar confrontando em muitas vezes a lógica do adulto.
Portanto, quando falamos em (re)significar a infância, é ajustar o foco para além da
Pedagogia e da Psicologia do desenvolvimento. É reconhecer as culturas infantis e
reinventar espaços e tempos institucionalizados, escutar a criança em seus modos de
ser e estar no mundo.
35
Nessa perspectiva, partindo das contribuições dos autores sobre a infância, observa-se
que as crianças estão presentes desde o início da humanidade, no entanto “[...] a
infância enquanto categoria social vem sendo construída no decorrer da história, desse
modo, o sentimento de infância não é condição natural, mas uma condição criada pela
história” (QUINTEIRO, 2002, p.27).
2.3.1 Devir-criança, infância e temporalidade
A infância ainda sofre um processo de (in)visibilidade que decorre de como sua
concepção foi constituída historicamente. Ao longo desse processo histórico sobre a
infância, vários autores discutem essa ocultação da criança pautada em uma idéia de
devir como um vir-a-ser adulto, uma idéia de incompletude, in-fans (o que não fala,
aquele que não tem linguagem), relacionada com o tempo cronológico - presente,
passado, futuro.
Manuel Sarmento e Vera Vasconcellos (2007), em seu livro Infância (In)visível, afirmam
que a infância é “o ser em devir” e, nessa transitoriedade, por bastante tempo a
complexidade da realidade social das crianças foi anulada.
Um autor que também contribui na reflexão sobre a infância é Agamben (2005) que nos
mostra como a infância é, antes de uma etapa, uma condição de experiência humana.
Ele ainda esclarece que ela indica uma condição: infância é tanto ausência, quanto
busca de linguagem; só um infante se constitui em sujeito da linguagem e é na infância
que se dá essa descontinuidade especificamente humana entre o dado e o adquirido,
entre natureza e cultura.
Outra contribuição importante é fomentada por Walter Kohan (2004), ao afirmar que a
infância não é apenas uma questão cronológica: a infância é uma condição da
experiência. É preciso ampliar os horizontes da temporalidade. O referido autor recorre
à Filosofia para tratar o tema da temporalidade. Para Kohan (2004), as distinções entre
36
história e devir, chrónos e aión, podem nos ajudar a pensar a infância. Para ele há duas
infâncias:
Somos habitantes dos dois espaços, das duas temporalidades, das duas infâncias. Uma e outra infância não são excludentes. As linhas se tocam, se cruzam, se enredam, se confundem. Não nos anima a condenação de uma e mistificação da outra. Não somos juízes. Não se trata de combater uma e idealizar a outra. Não se trata, por último, de dizer como há que se educar as crianças. A distinção não é normativa, mas ontológica. O que está em jogo não é o que deve ser (o tempo, a infância, a educação, a política), mas o que pode ser (poder ser como potência, possibilidade real) o que é. Uma infância afirma a força do mesmo, do centro, do tudo; a outra, a diferença, o fora, o singular. Uma leva a consolidar, unificar e conservar; a outra a irromper, diversificar e revolucionar (KOHAN, 2004, p .63).
Será que duas infâncias convivem? Uma da cronologia e outra do tempo intenso,
contemporâneo, presente. A primeira remetendo a nossa biografia às crianças; a outra
sem idade, que diz respeito à potência de cada idade.
Quem trabalha com crianças pequenas sabe que há algo em “devir” que nada tem a ver
com um vir-a-ser adulto, mas sim, um devir-criança (ABRAMOVICH, 2003). Devir como
uma capacidade de transpor barreiras e fronteiras entre o individual e o coletivo, o
humano e o inumano etc. Devir que deve ser entendido como movimento
“processualidade”, trajetos, como forças intensivas.
A autora Virgínia Kastrup (2000) apresenta-nos uma contribuição interessante, uma
ótica do devir-criança à luz da cognição, relacionada com o desenvolvimento dos
humanos. Ela afirma que as teorias do desenvolvimento cognitivo são pautadas numa
ordem sucessiva e trazem uma novidade a introdução do problema do tempo. Trata-se
aqui do tempo cronológico, que responde pela construção das estruturas cognitivas
uma ordem sucessiva. A noção de desenvolvimento assume características próximas e
derivadas da noção biológica de evolução, em que as idéias-chave são aquelas de
modificação e evolução que diz respeito às transformações das formas ao longo do
tempo; como genealogia, a evolução organiza tais formas em linhagens, por elos de
filiação e descendência.
37
Para essa autora, as teorias do desenvolvimento são pautadas nessas coordenadas; o
que as caracteriza é colocar o problema da transformação temporal da cognição em
termos de gênese, descendência ou filiação.
A criança, bem como o adulto, é entendida por suas formas ou estruturas específicas de conhecer. Tais teorias têm ainda como característica tomar o homem adulto como ponto de chegada e termo eminente da série de transformações que têm lugar na cognição da criança. [...] Como a colocação do problema das transformações temporais da cognição tem como horizonte a forma adulta de conhecer, a cognição da criança ainda é assombrada pela idéia do déficit (KASTRUP, 2000, p. 373).
Ao se fazer as comparações entre criança e adulto, a partir dessas coordenadas, a
noção de desenvolvimento traz, assim, como uma espécie de contrapeso, a idéia de
progresso, que tem como horizonte a forma adulta de conhecer.
A associação da idéia de progresso ao conceito de evolução aparece por meio de
referências a uma maior complexidade ou eficiência dos seres mais evoluídos. Em
lugar do progresso, a autora faz a opção pelo critério da evolução como abertura do
código genético para a aprendizagem, que permite ao organismo expandir seu meio.
Kastrup (2000) questiona: o que falta à criança para chegar a pensar como o adulto?
Para ela, esse processo se daria de forma horizontal e sua ocorrência se efetivaria no
curso de um tempo histórico, seqüencial e cronológico. Uma outra coordenada de
análise é vertical, referindo-se a uma ordem de sucessão marcada pelo progresso. Ao
tomar como exemplo o construtivismo de J. Piaget, verifica que as transformações
temporais são por certo genealógicas. Caberia, então, à Psicologia explicar a gênese
das estruturas cognitivas, sua derivação umas das outras por filiação progressiva
durante um processo de construção, ou seja, acompanhar as transformações da
criança até tornar-se adulta.
Para Kastrup (2000, p. 374), aí se encontra o tempo histórico, sucessivo e seqüencial.
E afirma:
Introduzir o tempo é então explicar a gênese, a construção das estruturas intelectuais. Traduzindo o problema do tempo como sendo desenvolvimento
38
cognitivo, Piaget caracteriza a criança por certas estruturas intelectuais que tendem a ser integradas e subordinadas ao modo adulto de conhecer, representado pelas estruturas lógico-matemáticas. A coordenada vertical aparece através da colocação do problema epistemológico, que move a investigação de Piaget.
Para a autora, a perspectiva piagetiana dirige a criança em frente a situações lógicas,
como tarefas de conservação de quantidades, classificação e seriação, ou seja, uma
busca pelas estruturas lógicas da criança, que evidencia um déficit ou uma falta que
será ultrapassada pelo modo adulto de conhecer.
Concordamos com Kastrup (2000) ao afirmar que a infância, na ótica piagetiana, surge
como um longo período de preparação para o mundo adulto de conhecer e pensar,
caracterizado pelo estágio das operações lógico-formais.
Cabe-nos aqui um contraponto: a infância seria somente vista em seu processo
desenvolvimentista, quando a criança chegasse a seu último estágio de
desenvolvimento cognitivo, ou seja, o estágio lógico-formal? A infância seria apenas
vista como um vir-a-ser, em fase de desenvolvimento? Ora, se Piaget esteve
preocupado em como o homem elabora o seu conhecimento, obviamente sua
discussão sobre os estágios de desenvolvimento cognitivo e os processos de
adaptação iriam ser questionados.
Até aqui nos parece que as críticas tecidas por Kastrup (2000) são necessárias, uma
vez que a cognição tem sido vista somente nessa ótica desenvolvimentista. Essas
críticas ainda reconhecem a criança pelo seu déficit. Como mesmo a autora afirma:
“Cabe notar [...] que para Piaget o desenvolvimento representa um movimento de
fechamento do sistema cognitivo” (KASTRUP, 2000, p. 375).
A questão é como se vem empregando o conceito de tempo histórico, uma vez que
Piaget não trabalha com a categoria história, por trazer a condição desenvolvimentista.
Colocaríamos ele, sim, na seqüência cronológica, mas não histórica.
39
Outro autor que, na contemporaneidade, fala sobre devir é Gilles Deleuze (1992),
filósofo francês, que distingue também dois modos de temporalidade. “De um lado,
temos o devir e, do outro, a história” (DELEUZE, apud KOHAN, 2004, p. 60). Nesse
sentido, “[..] a história não é a experiência, mas o conjunto de condições de uma
experiência e de um acontecimento que têm lugar fora da história. A história é a
sucessão de efeitos de uma experiência ou acontecimento” (KOHAN, 2004, p. 60). De
um lado, então, está o contínuo: a história, chrónos, as contradições e as minorias; do
outro lado, o descontínuo: o devir, aión, as linhas de fuga e as minorias.
Aqui o devir não é visto como um tempo cronológico, mas como processualidade.
Deleuze e Guattari (apud KASTRUP, 2000, p. 376) concebem o tempo na perspectiva
bergsoniana. Reconhecem o tempo como virtual, como coexistência de durações
distintas e heterogêneas, o princípio de uma realidade própria ao devir. O conceito de
devir-criança porta uma idéia de “uma” criança que persiste no adulto como virtualidade
e como condição de divergência e diferenciação. “A infância ou a criança não são
propriamente acontecimentos, mas o devir-criança [...]” (KOHAN, 2004, p. 61).
Os sujeitos portam significados para além deles e recuperam “vozes” no âmbito das
práticas culturais. O sujeito está fincado numa cultura, somos uma síntese de múltiplas
significações e temos, como seres humanos, capacidade de (re)significar a nossa
experiência. A infância é uma categoria geracional. Tal como afirma Sarmento (2002),
essa categoria não se desmonta; nós a temos, nos constituímos e vamos
(re)significando-a. A infância perpassa pela vida adulta.
“Falar em devir-criança, no que se refere à cognição, é conceber sua dimensão
politemporal” (KASTRUP, 2000, p. 376). Talvez o conceito de devir-criança, tal como
Deleuze e Guattari inauguram, mereça alguns esclarecimentos. O devir, para esses
autores, instaura outra temporalidade, que não a da história. Por isso mesmo o devir
não é imitar, assimilar-se, fazer como um modelo, voltar-se ou tornar-se uma outra
coisa em tempo sucessivo. Devir-criança não é tornar-se uma criança, infantilizar-se,
nem sequer retroceder à própria infância cronológica.
40
Aqui temos uma questão bastante interessante, pois os autores Deleuze e Guattari
(apud KASTRUP, 2000) com base em Bergson, levantam algumas reflexões sobre o
devir, uma vez que a dimensão da história passa a ser questionada.
Entendemos que a história, somente vista como linearidade e sucessão dos fatos em si
própria, não contribui para a ampliação da categoria infância na contemporaneidade. A
discussão, ao longo da história de devir - como um vir-a-ser adulto - não dá conta
também. A influência da Psicologia do Desenvolvimento nessa discussão e ampliação
até a Pedagogia carrega marcas profundas nos discursos atravessados em nossas
escolas. A discussão levantada por Kohan (2004), sobre a existência de duas infâncias,
é também questionável. Como desvencilharmos da história? O que precisamos é
ajustar o foco, pois, em nossas análises, sempre levamos os distintos discursos da
Psicologia para o embate.
Quando, em nossa investigação, falamos da categoria criança, entendemos que, como
afirma Perrotti (1990, p. 12), “[...] é também alguém profundamente enraizado em um
tempo e um espaço, alguém que interage com essas categorias (outras categorias
etárias), que influencia o meio onde vive e é influenciado por ele”.
Uma análise somente à luz da Psicologia desenvolvimentista precisa ser revista.
Wartosky (1999) apresenta uma outra perspectiva quanto ao tema cognição. Na
realidade, o autor tem a intenção de esboçar uma epistemologia histórica como uma
teoria da evolução da práxis cognitiva. Afirma que a Psicologia atual é essencialmente
não-histórica. Mesmo os enfoques mais antigos da Psicologia, como um aspecto da
evolução cultural, continuam a ser não-históricos, considerando que neles a história é
vista como extensão de uma evolução imanente, biológica ou até cósmica. Por isso a
necessidade de uma Psicologia histórica que reconheça que a história é feita por seres
humanos, que se fazem a si mesmos e refazem-se ou transformam-se no curso dessa
história.
41
O que Wartofsky (1999) propõe é uma epistemologia histórica servindo como
abordagem à evolução cultural (com base lamarckiana), relacionando-se com o
desenvolvimento de uma Psicologia histórica, isto é, uma abordagem que focaliza tanto
o tema como a metodologia da Psicologia em seus contextos históricos e sociais.
A evolução cultural substitui, então, os mecanismos biológicos de adaptação e os
traços da espécie, biologicamente constituídos, passam depois por esse
desenvolvimento e transformação adicional que os leva para além do domínio biológico,
para o da cultura e da história humana (WARTOFSKY, 1999). Desse modo, a infância
vira, com efeito, um fato cultural e histórico ou, na realidade, um artefato de feitura
humana. A infância é um atributo cultural e não natural.
A evolução cultural que Wartofsky (1999) apresenta é uma evolução da práxis cognitiva
que produz e usa artefatos e que vem a conhecer a si mesma nos próprios artefatos em
que uma atividade cognitiva se materializa ou objetiva: isto é, na sua linguagem, em
suas ferramentas, nos produtos e processos de trabalho, enfim, nas instituições sociais
de uma cultura.
Portanto, como afirmamos, se a evolução cultural é uma evolução da práxis cognitiva,
entende-se que a cognição tem uma história. Aqui temos um contraponto com Kastrup
(2000, p. 377), pois, para a autora,
Afirmar uma cognição em devir não é o mesmo que reconhecer sua natureza histórica. Pois o tempo que caracteriza a história é ainda o tempo cronológico dos acontecimentos sucessivos- passado-presente-futuro. O devir não equivale a uma transformação temporal que se concretiza no decurso do tempo histórico. Diferentemente, é uma transformação temporal que se dá no presente, caracterizando-se inclusive por operar uma bifurcação em relação às formações históricas aos regimes de funcionamento que caracterizam os estratos. Pode-se dizer que, neste sentido, ele é a designação por excelência do que há de contemporâneo na cognição. Não se define como passagem de uma forma a outra, mas sobretudo como movimento que faz tensão com as formas.
A cognição tem uma história e não é simplesmente uma história de conceitos, mas de
modalidades de práxis cognitiva. Não é apenas o que conhecemos que muda
42
historicamente, mas também as formas de conhecer. Se a cognição tem uma história,
então o desenvolvimento cognitivo não é dado em algumas configurações genéticas,
mas é um processo histórico da espécie como um todo, portanto os seres humanos são
uma espécie histórica.
Em se tratando do desenvolvimento humano, o que destacamos e apropriamos em
várias discussões com os autores é de que a Psicologia precisa ser (re)significada.
Uma Psicologia histórica muito contribui para o estudo da infância na perspectiva que
abordamos neste trabalho.
Além da Psicologia, que está centrada nos discursos e práticas escolares, convidamos
para o debate a Sociologia, ou melhor, a Sociologia da Infância. Falar sobre Sociologia
da Infância é ajustar o foco para além da Pedagogia e da Psicologia do
desenvolvimento.
A partir dessas contribuições sobre a infância, observamos que as crianças estão
presentes desde o início da humanidade, no entanto a infância, como categorial social,
vem sendo construída no decorrer da história. Desse modo, o sentimento de infância
não é condição natural, mas uma condição criada pela história.
A Sociologia da Infância está sendo construída e é um movimento de vários campos
disciplinares em que o desafio metodológico é o ponto comum:
[...] o estudo das crianças a partir de si mesmas permite descortinar uma outra realidade social, que é aquela que emerge das interpretações infantis dos respectivos mundos de vida. O olhar das crianças permite revelar fenômenos sociais que o olhar dos adultos deixa na penumbra ou obscurece totalmente [...] relativamente às metodologias seleccionadas para colher e interpretar a voz das crianças, os estudos etnográficos, a observação participante, o levantamento dos artefactos e produções culturais da infância, as análises de conteúdo dos textos reais, as histórias de vida e as entrevistas biográficas, as genealogias, bem como a adaptação de instrumentos tradicionais de recolha de dados, como, por exemplo, os questionários, às linguagens e iconografia das crianças, integram-se entre os métodos e técnicas de mais frutuosa produtividade investigativa (PINTO; SARMENTO, 1997, p. 27).
43
É importante delinear uma outra ótica da infância, na qual
[...] a criança é concebida na sua condição de sujeito histórico que verte e subverte a ordem e a vida social. Analiso, então, a importância de uma antropologia filosófica (nos termos que dela falava Walter Benjamin), perspectiva que, efetuando uma ruptura conceitual e paradigmática, toma a infância na sua dimensão não infantilizada, desnaturalizando-a e destacando a centralidade da linguagem no interior de uma concepção que encara as crianças como produzidas na e portadoras de cultura. A crítica à pedagogização do conceito de infância e à pedagogização das tantas ações desenvolvidas com crianças é o fio condutor da análise. Fio que constitui, vale dizer, o desafio teórico com o qual nos defrontamos ainda hoje (KRAMER, 1996, p.14).
Concordamos com Ulivieri (apud BARBOSA, 2005), ao afirmar que o conceito de
infância é geral e historicamente impreciso. A infância, como objeto de estudo, sempre
foi estudada pela Biologia, pela Psicologia, pela Medicina, ficando muito tempo
marginalizada nos estudos históricos e sociológicos que abordavam apenas suas
relações com a família e, nos últimos anos, com a história da mulher.
Todavia a universalização do tema infância pode ser um equívoco, ou até um modo de
encobrir uma realidade. A questão aqui delineada é refletir e reconhecer que a infância
não é singular nem única; ela é plural. “A infância é uma construção
social” (SARMENTO, 2001, p.13) e discursa sobre as mudanças e modificações que
foram se dando historicamente, no interior de cada sociedade, de acordo com a classe
social, com o grupo étnico, e/ou outras variáveis sociais.
Para contrapor-se à uma concepção singular e universal de infância e criança, em que
eram pensadas como uma existência abstrata e sem pertencimento social, faz-se
necessário e instigante “[...] (re)significar a infância na sociedade “ (ARAÚJO, 2005, p.
68).
Não se trata apenas de (re)significar o conceito de infância,
[...] mas sim romper com uma estrutura arcaica e discriminatória sobre a infância e a criança pensadas como uma existência abstrata e sem
44
pertencimento social, fixadas num mundo que foi feito pelos adultos e para os adultos (ARAÚJO, 2005, p. 67).
Com os novos marcos teóricos, a cultura, a história, a Sociologia, frutos de um
movimento teórico-crítico, permitem-nos compreender a criança como um ator social:
“Todas são concebidas como crianças no que diz respeito ao dado biológico, mas nem
todas vivem a infância da mesma forma no que diz respeito às condições sociais,
culturais e econômicas” (DELGADO, 2004, p. 2).
Ao afirmar a construção social da infância, não se está apenas a declarar que a infância
é um produto da história e não da natureza. Este não é um aspecto inacabado, mas um
processo contínuo de investimento de papéis sociais para as crianças, de elaboração
de sistemas representacionais, crenças e imagens sobre o que é ser criança.
Portanto, a partir dessas discussões, consideramos “natural” uma idéia que busque o
que é próprio da infância e o que a caracteriza como tal. Nem tão próxima do biológico
ou inato, mas, sim, uma idéia de natural, como aquilo que possa ser específico da
infância, ou seja, sua linguagem, seu pensamento, sua cultura infantil. Os aspectos
naturais e culturais que marcam a elaboração de um conceito de infância não devem
ser redutíveis um ao outro; é preciso conjugar esses aspectos, na tentativa de
alcançarmos uma compreensão mais completa do que seja infância, seu significado e
suas peculiaridades.
45
3 LINGUAGEM E A APROPRIAÇÃO CULTURAL DA CRIANÇA
Tudo o que dá valor ao dado do mundo, tudo o que atribui um valor autônomo à presença no mundo, está vinculado ao outro [...]; é a respeito do outro que se inventam histórias, é pelo outro que se derramam lágrimas, é ao outro que se erigem monumentos; apenas os outros povoam os cemitérios; a memória só conhece só preserva e reconstitui o outro [...] (BAKHTIN, 1992, p. 126).
Reconhecer a criança como sujeito que pensa, deixa suas marcas e rompe com o
tempo e o espaço instituído é o desafio a nós apresentado, quando falamos sobre a
(des)naturalização da infância.
Tomaremos Vigotsky (2007), por entendermos que esse autor apresenta uma relação
entre pensamento e palavra como um processo polissêmico, multifacetado, carregado
de sentidos e por compreendermos a linguagem como aquela que faz a mediação das
funções mentais elementares na constituição das funções psicológicas superiores; e
também por encontrarmos em Bakhtin (2003), a discussão de que a linguagem é social
e apreendida dialogicamente no fluxo da história. Esses autores valorizam a linguagem
na constituição histórica do ser humano, e essa concepção nos é necessária, uma vez
que nosso estudo apresenta a possibilidade de fazermos reflexões sobre o que as
crianças têm a dizer sobre a sua natureza infantil.
A concepção de linguagem por eles discutida nos remete para um outro olhar e a uma
outra compreensão do papel das trocas verbais na formação das ideologias e na
constituição da subjetividade da criança. Ambos os autores não realizaram
propriamente, em suas pesquisas, uma análise específica da linguagem no cotidiano da
criança, mas abordaram a constituição do ser humano mediante a linguagem.
Desse modo, discutir o lugar que a criança ocupa faz-se necessário, já que a linguagem
acontece no cotidiano das falas infantis e é por meio dela que a mediação entre as
crianças e os adultos acontece, e as apropriações se efetivam.
46
Ao anunciar as vozes infantis, a linguagem é importante, pois ela carrega significações,
sentidos e atravessa indistintas vozes sociais, históricas e culturais. Para delinearmos
essa discussão, faz-se necessário dialogarmos com a historicidade do ser humano e é
isso que apresentaremos a seguir.
3.1 A HISTORICIDADE DO SER HUMANO
A crítica às concepções naturalizantes das relações entre individuo e sociedade exige a
explicitação do que entendemos ser o núcleo da concepção histórico-social do ser
humano.
Duarte (1993), em sua obra A individualidade para si, defende que a dialética entre os
processos de objetivação e apropriação constitui o núcleo da historicidade do ser
humano e constitui, também, a própria dinâmica do trabalho. Na perspectiva marxista,
trabalho é a atividade fundamental com base na qual vai sendo constituída a realidade
social. O conteúdo da essência humana reside no trabalho.
É na teoria de Marx que o processo pelo qual o ser humano foi se diferenciando dos
demais seres vivos tem seu fundamento objetivo no trabalho, como atividade pela qual
o homem transforma a natureza e a si próprio, produzindo cultura. Para Marx e Engels
(2006, p.53-54), em A ideologia alemã,
[...] o primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, é que todos os homens devem estar em condições de viver para poder ‘fazer história’. Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter moradia, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam que haja a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material e de fato esse é um ato histórico, uma exigência fundamental de toda a história, que tanto hoje como há milênios deve ser cumprido cotidianamente e a toda hora, para manter os homens com vida.
Marx e Engels (2006) consideram o trabalho como atividade de produção de vida
material, como o motor de todo processo histórico. A base da sociedade, assim como a
característica fundamental do ser humano, está no trabalho. É do e pelo trabalho que o
homem, ao transformar a natureza, se constitui homem, construindo a sociedade e
47
fazendo a sua história, produz cultura. Pelo trabalho, o homem elabora situações,
constrói objetos materiais requeridos para a satisfação de suas necessidades e,
simultaneamente, aperfeiçoa sua inteligência.
Duarte (2004) afirma que a historicidade do ser humano é gerada pelo trabalho, e isso é
o que diferencia a realidade social da realidade puramente biológica e natural. O
homem, antes de qualquer coisa, é um ser vivo, isto é, um ser cuja existência jamais
pode transcorrer sem a base biológica, ou seja, das funções mentais elementares. Mas
a interlocução entre essas bases biológicas com a mediação, a linguagem faz com que
o homem se aproprie e desenvolva as suas funções psicológicas superiores.
Vigotsky (2007), com base na teoria marxiana, destaca que o processo pelo qual o ser
humano foi se diferenciando dos demais seres vivos tem seu fundamento objetivo no
trabalho, como atividade pela qual o homem transforma a natureza e a si próprio. Com
base na dialética entre objetivação e apropriação, como aquela que sintetiza a dinâmica
essencial do trabalho, a dinâmica de produção e reprodução da cultura humana,
destacamos que,
O processo de apropriação surge, antes de mais nada, na relação entre o homem e natureza. Nessa relação o ser humano, pela sua atividade transformadora, apropria-se da natureza incorporando-a prática social. Ao mesmo tempo, ocorre também o processo de objetivação, pois o ser humano produz uma realidade objetiva que passa a ser portadora de características humanas, uma realidade que adquire características socioculturais, acumulando a atividade de gerações de seres humanos. Isso gera a necessidade de outra forma do processo de apropriação, já agora, não mais apenas como apropriação da natureza, mas como apropriação dos produtos culturais da atividade humana, das objetivações do gênero humano (DUARTE, 2004, p. 117).
Conforme explicitamos, o processo de apropriação surge na relação entre o homem e a
natureza e, nessa relação, ele apropria-se da natureza incorporando-a à prática social.
Já o processo de objetivação, que ocorre ao mesmo tempo, indica que o ser humano
produz uma realidade objetiva com características humanas, sendo uma realidade que
adquire características sociais e culturais.
48
Os processos de produção e difusão do conhecimento não podem, numa perspectiva do ser humano, ser analisados sob a ótica de um abstrato sujeito cognocente que interage com os objetos de conhecimento por meio de esquemas próprios da interação biológica que um organismo estabelece com o meio ambiente (DUARTE, 2004, p.121),
Conjuntamente com Duarte (2004), concluímos que a análise epistemológica precisa
caracterizar justamente os elementos que configuram a inevitável historicidade da
relação entre sujeito e objeto. O autor é enfático ao dizer que é impossível unir a
epistemologia genética de Jean Piaget a uma abordagem sócio-histórica de base
marxiana, tal como expressa a obra de Vigotsky.
De acordo com a concepção piagetiana, a interação é ponto de grande discussão de
sua obra, uma vez que Piaget primava pela relação entre sujeito e objeto, prevalecendo
aquilo que o sujeito era capaz de construir e elaborar sozinho. Isso demonstrou o
quanto o seu modelo foi pautado em uma matriz biológica, defendendo o processo de
assimilação e acomodação, ou seja, o processo de adaptação do organismo no meio
em que estava inserido.
Quando falamos da relação entre objetivação e apropriação, afirmamos que esta se
realiza sempre em condições determinadas pela atividade passada de outros seres
humanos. “A apropriação das objetivações do gênero humano é uma necessidade do
próprio processo de formação da individualidade” (DUARTE, 2004, p.122), não é
simplesmente um processo de adaptação ou auto-regulação de acordo com o nível de
desenvolvimento.
Outro autor contemporâneo de Vigotsky que analisa o processo de apropriação da
cultura pelos indivíduos foi Leontiev (apud DUARTE, 2004). Para ele, uma das
características da apropriação é que ela é sempre um processo ativo, isto é, o indivíduo
precisa realizar uma atividade que reproduza os traços essenciais da atividade
acumulada no objeto.
49
Outra característica do processo de apropriação é que, por meio desse processo, são
reproduzidas, no indivíduo, as aptidões e funções humanas historicamente formadas.
Aqui, Duarte (2004) destaca a importância dessa característica, pois se trata justamente
da mediação entre o processo histórico de formação do gênero humano e o processo
de formação de cada indivíduo como um ser humano.
Na medida em que a atividade humana se objetiva em produtos, em objetivações, sejam elas materiais ou não, temos, como conseqüência, que o processo de objetivação do gênero humano é cumulativo. Assim, no significado de uma objetivação está acumulada a experiência histórica de muitas gerações. Os instrumentos são novamente um bom exemplo. Um instrumento é, num determinado sentido, um resultado imediato da atividade de quem o produziu. Nesse sentido contém o trabalho objetivado da pessoa ou das pessoas que participam de sua produção. Mas ele é também objetivação da atividade humana num outro sentido, qual seja, o de que ele é resultado da história de ‘gerações’ de instrumentos do mesmo tipo, sendo que durante essa história, esse tipo específico de instrumento foi sofrendo transformações e aperfeiçoamentos, por exigência da atividade social (DUARTE, 2004, p.123)
Contudo a objetivação é síntese da atividade humana. Quando o individuo objetiva-se,
ele está se relacionando com a história social, ainda que tal relação nunca venha a ser
consciente para ele.
A terceira característica do processo de apropriação, apontada por Duarte (2004), é que
tal processo é sempre mediatizado pelas relações entre os seres humanos. O homem
apropria-se da história, objetivando-se no interior dessa história.
Desse modo, para o autor, a apropriação da cultura humana pelo indivíduo sempre
assume a característica de um processo educativo. Portanto, a apropriação só é
possível se as relações das crianças com o mundo das objetivações forem
mediatizadas pelas relações com os outros.
É mediante a linguagem que as relações entre as crianças e o mundo humano (cultural
e social), que as apropriações se efetivam, possibilitando a elas descobrirem
progressivamente as significações sociais dessas objetivações.
50
3.1.1 A criança nasce em um mundo humano
Conforme explicitado anteriormente, o princípio orientador da abordagem de Vigotsky é
a dimensão sócio-histórica do psiquismo humano. Segundo esse princípio, tudo que é
especificamente humano, que distingue o homem de outras espécies, origina-se de sua
vida em sociedade: seus modos de perceber, de representar, de explicar e de atuar
sobre o meio, seus sentimentos em relação ao mundo, ao outro e a si mesmo, enfim,
seu funcionamento nas relações sociais.
A criança, de acordo com Vigotsky e seus colaboradores, não nasce em um mundo
“natural”. Ela nasce em um mundo humano. Começa a vida em meio a objetos e
fenômenos criados pelas gerações que a precederam e vai se apropriando deles
conforme se relaciona socialmente e participa das atividades e práticas culturais.
Nesse processo interativo, as reações naturais - herdadas biologicamente - de resposta
aos estímulos do meio (como a percepção, a memória, as ações reflexas, as reações
automáticas e as associações simples) entrelaçam-se aos processos culturalmente
organizados e vão se transformando em modos de ação, de relação e de representação
caracteristicamente humanos.
Vigotsky (1997) destaca dois aspectos da teoria marxista como importantes: o aspecto
histórico e o cultural. Ele acreditava que o homem não é apenas um produto de seu
meio; ele é um sujeito ativo no movimento que cria esse meio, essa realidade. Assim, a
compreensão do referido autor sobre o ser humano contradiz a idéia de “ser natural”.
Para ele, a criança é vista como um indivíduo que se constitui no meio social em que
vive, na cultura e, portanto, é um sujeito social. Desse modo, um dos pressupostos
básicos de sua teoria é considerar a cultura como parte da natureza humana.
É na corrente histórico-cultural da Psicologia de Vigotsky (1997) que a cultura é
introduzida como “locus” do desenvolvimento humano que, em razão disso, é
51
denominado de “desenvolvimento cultural”, o qual é concebido como um processo de
transformação de um ser biológico num ser cultural. Quando Vigotsky (1997) discute as
funções psicológicas superiores, aponta, para a nossa reflexão, o desenvolvimento
cultural do homem.
As funções biológicas não desaparecem com a emergência das funções culturais ,mas adquirem uma nova forma de existência: elas são incorporadas na história humana. Afirmar que o desenvolvimento humano é cultural equivale a dizer que é histórico, ou que traduz o longo processo de transformação que o homem opera na natureza e nele mesmo como parte dessa natureza (PINO, 2000, p. 51).
Falar da relação entre funções elementares ou biológicas e funções culturais ou
superiores é falar de uma dimensão simbólica, ou seja, uma nova forma de existência.
Portanto, quanto ao desenvolvimento infantil, Vigotsky (1997) o conceitua como um
processo de natureza cultural. Se entendermos cultura como o conjunto das obras
humanas, o específico dessas obras é a sua significação. O desenvolvimento cultural
da criança é o processo pelo qual ela deverá apropriar-se, pouco a pouco, nos limites
de suas possibilidades reais, das significações atribuídas pelos homens aos objetos.
Agora, o seu desenvolvimento cultural estará comprometido se ela não tiver também
acesso aos bens materiais produzidos pelos homens e que são portadores dessas
significações.
Parece-nos comum vermos o desenvolvimento da criança como um processo de
transformação, mediado pelo outro, da sua condição de ser biológico num ser cultural,
ou seja, um ser semelhante aos outros homens. Mas isso supõe duas condições
fundamentais: que o ato do nascimento, a criança possua o equipamento genético e
neurológico da espécie - o que é garantido pela natureza no próprio ato da gestação - e
que, com a mediação do Outro, integre-se nas práticas sociais do seu grupo cultural.
Falar em equipamento genético e neurológico da espécie supõe admitir a hipótese científica que a biologia e a neurologia dos homens estão marcadas pela história cultural da espécie, cujos efeitos são conservados em memória genética. A presença dessas marcas é o que faz do organismo humano diferente de qualquer outro, mesmo de espécies mais próxima dele filogeneticamente. A presença dessas marcas é o que garante que todos os recém-nascidos dessa espécie possam adquirir um dia as funções culturais
52
que a caracterizam. Em outras palavras, a presença dessas marcas faz do recém–nascido um candidato à condição humana; esta condição não lhe vem de graça, mas é resultado de uma conquista na convivência humana (PINO, 2005, p.153-154).
Se o ser humano é definido como um ser cultural, o desenvolvimento da criança é um
processo de constituição dos modos de funcionar humanos (a linguagem, o
pensamento, o agir etc.) e do saber necessário para esse funcionar. Isso quer dizer que
o desenvolvimento cultural da criança é mais do que a inserção dela na cultura, é a
apropriação da cultura nela para torná-la um ser cultural.
3.1.2 Alguns apontamentos sobre a obra de Vigotsky
Duarte (2004), ao analisar a obra de Vigotsky, afirma que esta vem ganhando matizes
diferentes, de acordo com a necessidade imposta pela sociedade e conforme pesquisas
desenvolvidas por estudiosos dessa vertente. O autor esclarece que, em alguns
estudos, há a intenção de retirar o marxismo de Vigotsky e abolir seus estudos sobre o
método que lhe deu sustentação.
A forma como isso tem sido realizado, para Duarte (2004), acontece em três instâncias:
primeiro, tentando afastar a teoria de Vigotsky da teoria de Leontiev; em segundo lugar,
substituindo o que Vigotsky escreveu pelo que escreveram seus intérpretes ou mesmo
apresentando traduções resumidas e censuradas dos textos escritos pelo autor; e, por
fim, fazendo uso do ecletismo, representado principalmente pelas aproximações entre a
teoria de Piaget e a de Vigotsky.
Concordamos com Facci (2004, p.140) quando afirma que: “O ecletismo também está
presente nas interpretações pós-modernas e neoliberais da teoria Vigotskyana”. Muitos
autores tentam confrontar o pensamento de Vigotsky com o de Piaget e defender a
idéia de que exista um antagonismo fundamental entre essas duas teorias, muitas
vezes afirmando que ambos os autores partem de uma matriz sociointeracionista.
53
Duarte (2004) ainda afirma que uma Pedagogia marxista não pode deixar de fazer
crítica às Pedagogias não-críticas, de cunho neoliberal, como é o caso da Pedagogia
tradicional e da Escola Nova. A teoria de Piaget está totalmente atrelada aos preceitos
do escolanovismo, e muitos educadores, ao tentarem fazer a aproximação entre Piaget
e Vigotsky, o fazem tomando como ponto de partida o lema “aprender a aprender”.
Facci (2004, p. 140) apresenta:
Essa busca da junção entre a teoria de Piaget e Vigotsky tem conduzido os estudiosos a uma análise da teoria marxista, nesse caso psicologia histórico-cultural, utilizando referenciais que pertencem à pedagogia liberal - a Escola Nova. Não discordo do fato de Piaget ser um clássico na educação e na psicologia, e que, portanto, deve ser exaustivamente estudado; no entanto, entendo que o ‘casamento’ entre esses dois autores leva a caminhos que pode cair no esvaziamento, pois ambos não partem da mesma base teórico-metodológica.
Um outro problema destacado é a afirmação de que Piaget e Vigotsky são clássicos
interacionistas. Se tomarmos como base as ideais de Piaget, que entende o
interacionismo como um modelo biológico de análise das relações entre organismo e
meio ambiente, buscando a superação tanto do apriorismo quanto do empirismo, não
podemos enquadrar Vigotsky como interacionista.
Piaget naturaliza o social, entende a sociedade utilizando elementos da Biologia,
quando analisa seus moluscos e seu hábitat natural. Desse modo, “[...] sendo o modelo
interacionista um modelo biologizante, naturalizante, não permite uma abordagem que
leve à compreensão do homem como um ser histórico e social” (DUARTE, 2004, p.
179), como é o caso da escola vigostkiana.
Temos observado que muitos autores acabam adequando a teoria Vigotskiana às
idéias pós-modernas, ao adotarem uma perspectiva “estetizante” na análise das
questões educacionais, “[...] aderindo ao espírito anticientífico tipicamente pós-
moderno” (FACCI, 2004, p.142).
54
Duarte (2004, p.210-211) ainda nos aponta a seguinte reflexão,
[...] a despeito de o nome de Vigotsky ser atualmente bastante mencionando no meio educacional brasileiro, o fato é que os escritos desse autor permanecem desconhecidos para a maioria dos educadores brasileiros, o que facilita a divulgação de interpretações que procuram aproximar a teoria Vigotskiana a ideários pedagógicos afinados com o lema ‘aprender a aprender’ e ao universo ideológico neoliberal e pós-moderno. Tal aproximação é facilitada antes de mais nada porque são retirados do pensamento Vigotskiano seu caráter marxista e sua radicalidade na crítica às psicologias incompatíveis com a perspectiva marxista e socialista.
A reflexão levantada por Duarte (2004) demonstra o quanto a descaracterização da
teoria e do pensamento de Vigotsky ainda é considerada por alguns estudiosos. Tal
descaracterização não tem permitido nenhum avanço na compreensão do processo de
ensino-aprendizagem, e ainda tem levado a possibilidade de legitimar políticas
educacionais comprometidas com a classe dominante.
Em nossos estudos, encontramos algumas referências de Vigotsky, nos anos 80 e 90,
no Brasil, apresentando, em sua tradução, a ausência do caráter político, cultural,
histórico de sua obra. Esse atravessamento fragilizou o pensamento desse autor,
refletindo nos cursos de formação de educadores e principalmente nos documentos
oficiais, tais como, o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI),
e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), idealizando um tipo de criança e
infância a ser seguido e “construído” pela escola.
Shuare (apud FACCI, 2004, p. 147) argumenta que, em muitas situações, houve a “[...]
aplicação mecânica de algumas teses do materialismo dialético à psicologia, a
compreensão superficial dessa filosofia e o desconhecimento da importância que o
materialismo histórico tem para a ciência psicológica”. Para essa autora, foi Vigotsky
quem aplicou, com muita propriedade e criatividade, o materialismo histórico-dialético à
Psicologia, uma vez que ele aprofunda a discussão das correntes psicológicas vigentes
na época, as correntes filosóficas que as embasam e fundamentam a dimensão sócio-
histórica do psiquismo, inaugurando, assim, uma Psicologia comprometida com o ser
humano.
55
Vejamos isso em seus escritos nas Obras escogidas (1997, p. 406):
En la futura sociedad, la psicología será en realidad la ciencia del hombre nuevo. Sin ella, la perspectiva del marxismo y de la historia de la ciencia sería incompleta. Pero, sin embargo, esa ciencia del hombre nuevo será también psicología. Por eso ya hoy mantenemos sus riendas en nuestras manos.3
Vigotsky (1997), ao dialogar criticamente, num primeiro momento, com as grandes
correntes da Psicologia desenvolvidas em sua época, tais como: personalismo, gestalt,
reflexologia e psicanálise, apresenta a Psicologia Soviética afirmando a necessidade de
ressignificar a Psicologia.
Em seu texto Método de investigación (1997), ele faz uma análise sobre tais
perspectivas psicológicas e afirma a necessidade de se ressignifcar a Psicologia.
Nesse capítulo, Vigotsky descreve, de forma esquemática, o caminho seguido pela sua
investigação. Ele afirma que a Psicologia infantil não sabia enfocar adequadamente o
problema dos processos superiores. Isso significa que carecia de um método
investigativo.
Conocer tal peculiaridad y tomarla conscientemente como punto de partida en la investigación es la condición indispensable para que el método y el problema se correspondan; por ello, el problema del método es el principio y la base, el alfa y el omega de toda la historia del desarrollo cultural del niño (VIGOTSKY, 1997, p. 47).4
Vigotsky (1997), em seus estudos, faz pontuações importantes sobre as teorias
psicológicas de seu tempo. Em seus textos, ao fazer algumas análises sobre essas
teorias, apresentou críticas por estas entenderem que o desenvolvimento parte apenas
da linha natural, ao conceber o posicionamento humano como o produto da evolução
biológica. Considerou, ainda, que essa posição unilateral e equivocada seria incapaz de
encarar os fatos do desenvolvimento humano como históricos, restando apenas as
funções naturais, confundindo o biológico e o cultural. Completa a sua crítica afirmando
3 Na futura sociedade, a Psicologia será, em realidade, a ciência do homem novo. Sem ela, a perspectiva do marxismo e da história da ciência seria incompleta. Mas, entretanto, essa ciência do homem novo será também Psicologia. Por isso hoje mantemos as rédias em nossas mãos (tradução nossa).4 Conhecer tal peculiaridade e tomá-la conscientemente como ponto de partida na investigação, é a condição indispensável para que o método e o problema se correspondam, por ele, o problema do método é o princípio e a base, o alfa e o ômega de toda a história do desenvolvimento cultural da criança (tradução nossa).
56
que é, na ontogênese que deve ser considerada, não só a linha natural, biológica, por
ser a dimensão do desenvolvimento histórico do homem que carrega a linha cultural,
social.
Portanto, o que é humano fica reduzido se for apenas compreendido a partir de uma
linha natural ou biológica, ou seja, a partir somente das funções mentais elementares,
que são determinadas, imediata e automaticamente, pelos estímulos externos ou pelos
estímulos internos baseados nas necessidades biológicas. As funções mentais
elementares nos são dadas hereditária e biologicamente, enquanto as funções mentais
superiores são apropriadas a partir das relações entre as pessoas, entre a linguagem e
o meio cultural. É nas relações sociais que o sujeito se constitui, nas suas formas de
ação e sua consciência, acrescendo à sua condição de ser biológico a de um ser sócio-
histórico.
O estudo dos processos psíquicos superiores, do desenvolvimento cultural da criança,
requer a busca de método adequado, pois a Psicologia (da época) não se dedicava a
estudar esses processos, assim Vigotsky e seus seguidores passam a dialogar mais
amplamente sobre esse tema.
Concordamos com Tuleski (apud FACCI, 2004, p.18) quando afirma que, para estudar
Vigotsky, nos tempos atuais, é necessário enfrentar dois problemas: “[..] romper com a
censura burguesa, referente à sua formação marxista e seu compromisso com a
sociedade comunista, e romper com a censura comunista de suas próprias obras,
operada a partir dos anos de 1930 pelo stalinismo”.
Na Psicologia, embora esteja voltada para o estudo do desenvolvimento psicológico do
ser humano, a questão da relação entre natureza e cultura ficou por muito tempo longe
de sua agenda de pesquisa.
Portanto a possibilidade de superação e elaboração de uma “nova Psicologia”, tal como
Vigotsky pontuou, visou a romper com o idealismo, tão marcado pela Psicologia, e
57
também superar as formas empiristas e não dialéticas de materialismo que se fazem
presentes nas versões biologizantes do psiquismo humano.
3.2 LINGUAGEM, APROPRIAÇÃO E MEDIAÇÃO SEMIÓTICA EM VIGOTSKY
Segundo a abordagem histórico-cultural de Vigotsky (2001), o uso da linguagem se
constitui na condição mais importante do desenvolvimento da consciência da criança
(funções psicológicas superiores). E é por meio da linguagem que o homem se apropria
da cultura, da história, do seu entorno social, possibilitando, assim, que essa natureza
social se torne sua natureza psicológica. “A função da linguagem é comunicativa. A
linguagem é, antes de tudo, um meio de comunicação social, de enunciação e
compreensão” (VIGOTSKY, 2001, p.11).
Vigotsky (2005), em seu livro Pensamento e linguagem, apresenta o estudo do
pensamento e da linguagem como uma das áreas da Psicologia de grande importância,
mas afirma que ela nunca investigou essa relação de forma detalhada ou
sistematizada.
O autor pontua,
A concepção do significado da palavra como uma unidade tanto do pensamento generalizante quanto do intercâmbio social é de valor inestimável para o estudo do pensamento e da linguagem, pois permite uma verdadeira análise genético-causal, o estudo sistemático das relações entre o desenvolvimento da capacidade de pensar da criança e o seu desenvolvimento social. A inter-relação da generalização e da comunicação pode ser considerada um foco secundário do nosso estudo (VIGOSTKY, 2005, p. 8).
O autor concluiu que o significado da palavra, a partir do ponto de vista psicológico, tem
no ato do pensamento a sua generalização. A palavra pertence tanto ao reino da
linguagem quanto ao reino do pensamento.
A palavra seria vazia, sem significado. Para o autor, o pensamento passa por muitas
transformações até tornar-se fala e move-se em diferentes sentidos. Se a palavra for
considerada sem significado, ela não faria parte da dimensão humana. Pensamento e
58
fala é o significado da palavra simultaneamente. Assim “[...] a função primordial da fala
é a comunicação, o intercâmbio social” (VIGOTSKY, 2005, p. 6).
[...] a relação entre pensamento e palavra não é uma coisa, mas um processo, um movimento contínuo, um vaivém do pensamento para a palavra e vice-versa. Nesse processo, a relação entre o pensamento e a palavra passa por transformações que, em si mesmas, podem ser consideradas um desenvolvimento no sentido funcional. O pensamento não é simplesmente expresso em palavras: mas é por meio delas que passa a existir. (VIGOTSKY, 2005, p.156),
Vigotsky (2005), ao analisar a relação entre pensamento e palavra, afirma que essa
análise deve começar com uma investigação das fases e dos planos que o pensamento
transcorre antes de ser expresso por palavras.
A primeira coisa que esse estudo revela é a necessidade de se fazer uma distinção entre os dois planos da fala. Tanto no aspecto interior da fala – semântico e significativo – quanto o exterior – fonético -, embora formem uma mesma unidade, têm as suas próprias leis de movimento. A unidade da fala é uma unidade complexa, e não homogênea (VIGOTSKY, 2005, p.157).
E ainda afirma,
Quando passa a dominar a fala exterior a criança começa por uma palavra, passando em seguida a relacionar duas ou três palavras entre si; um pouco mais tarde progride das frases simples para as mais complexas, e finalmente chega à fala coerente, constituída por uma série dessas frases; em outras palavras, vai da parte para o todo. [...] Semanticamente, a criança parte do todo, de um complexo significativo, e só mais tarde começa a dominar as unidades semânticas separadas, os significados das palavras (VIGOTSKY, 2005, p.157).
Desse modo, tanto a fala interior (semântico e significativo) quanto a exterior (plano
fonético), para a criança, também se completam: “[...] os processos de desenvolvimento
semântico e externo (fonético) são essencialmente idênticos exatamente porque
seguem direções contrárias” (VIGOTSKY, 2005, p.157).
No princípio do desenvolvimento da criança, toda função psíquica é uma função
externa, pois é social, formou-se com base nas relações entre as pessoas, ou seja: “[...]
a criança começa exercer sobre si mesma a ação que, antes, era exercida por outras
pessoas” (GONTIJO, 2003, p.19). Desse modo, o que apropriamos são as significações
59
sociais e culturais, reconhecendo que o processo de apropriação é de natureza
semiótica.
No plano individual, o que torna possível a constituição das funções psíquicas é a
mediação dos signos.
O signo que, no início do desenvolvimento histórico da humanidade, nasceu da necessidade de as pessoas comunicarem-se e interferirem sobre outras, no processo de desenvolvimento infantil, é, também, um meio de conexão das funções psíquicas que torna a apropriação possível (GONTIJO, 2003, p.20).
A mediação semiótica, por sua vez, é uma mediação social, pois, como vimos, a
palavra tem uma significação social. Desse modo, podemos refletir sobre o mundo, e
este só pode ser conhecido como objeto de representação que dele se faz, se o sujeito
o internaliza, e depois que ele foi um mundo para os outros, ou seja, o conhecer é um
processo social e histórico, não um fenômeno natural. É de acordo com a mediação
semiótica que o homem desenvolve suas funções psicológicas superiores.
A forma como o homem se apropria desses conhecimentos se dá na “Zona de
Desenvolvimento Proximal” (ZDP), que é definida como:
[...] a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (VIGOTSKY, 2007, p. 97).
A zona de desenvolvimento proximal possibilita a participação do adulto no processo de
aprendizagem da criança e a apropriação de significações sociais e culturais. Para
consolidar as atividades e operações culturais, a criança se apropria dos elementos
culturais e sociais que ela necessita na mediação com o outro.
Observar a atividade compartilhada da criança é possibilitá-lhe olhar para o seu futuro,
pois “[...] aquilo que é a zona de desenvolvimento proximal hoje será o nível real
amanhã – ou seja, aquilo que uma criança é capaz de fazer com assistência hoje, ela
será capaz de fazer sozinha amanhã” (VIGOTSKY, 2007, p. 98).
60
O processo de desenvolvimento vai do social para o individual, ou seja, as nossas
maneiras de pensar e agir são resultado da apropriação de formas culturais de ação e
de pensamento.
É na mediação, que a abordagem histórico-cultural entende a categoria fundamental
para se compreender a ação humana e seu desenvolvimento. O processo de mediação
deve ser entendido como algo dinâmico, em que há a participação dos indivíduos e que
sempre está inserida em um todo.
Portanto, as significações sociais e culturais são apropriadas nas relações entre os
homens e o outro. Os sujeitos comparam os sentidos que atribuem à situação,
conforme nela atuam segundo determinados papéis. Sabemos que esses significados
sociais não são totalmente criados individualmente, eles se fazem coletivamente,
circulam entre as pessoas e o que estas têm a fazer é se apropriarem deles.
3.3 APROPRIAÇÃO CULTURAL DA CRIANÇA
3.3.1 A Dimensão dialógica da linguagem
Em nossos estudos, tomamos Bakhtin (2003, 2004) por este entender a palavra como
espaço privilegiado da criação ideológica. Sua concepção de linguagem vai se constituir
a partir de uma crítica radical às grandes correntes da lingüística contemporânea, por
essas teorias não considerarem a língua como fenômeno social.
O referido autor faz uma análise de várias tendências filosóficas de seu tempo. Todo
esse universo científico e cultural deixa marcas, no que diz respeito ao vocabulário
incorporado a seus estudos, quanto à possibilidade de tentativas de decifrar o projeto
que está atrás de seus escritos, incluindo significação, autoria, discurso, enunciação,
gêneros, atividade, interação etc.
61
A natureza dialógica da linguagem é um conceito que desempenha papel fundamental
nas obras de Bakhtin. O lugar que as preocupações com a língua vão ocupar em seus
estudos pode ser observado em seu texto: “A língua vive e evolui historicamente na
comunicação verbal concreta, não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua
nem no psiquismo individual dos falantes” (BAKHTIN, 2004, p. 124).
Podemos observar que Bakhtin (2004) ao fazer considerações sobre a língua,
apresenta a dimensão dialógica da linguagem e pontua diversas vezes em seus
escritos que a palavra é carregada de um sentido ideológico ou vivencial.
As observações sobre a língua são exemplos das primeiras reflexões que o orientam. A
constituição de um conceito de linguagem, incluindo as questões da relação dos
sujeitos com o mundo, nessa relação, incorpora o conceito de enunciação:
[...] a enunciação só se realiza no curso da comunicação verbal, pois o todo é determinado pelos seus limites, que se configuram pelos pontos de contato de uma determinada enunciação com o meio extraverbal e verbal (isto é, as outras enunciações). A primeira palavra e a última, o começo e o fim de uma enunciação permitem-nos já colocar o problema do todo. O processo da fala, compreendida no sentido amplo como processo de atividade de linguagem tanto exterior como interior, é ininterrupto, não tem começo nem fim. A enunciação realizada é como uma ilha emergindo de um oceano sem limites, o discurso interior (BAKHTIN, 2004, p. 125).
A linguagem funciona diferentemente para vários grupos, “[...] a palavra (o discurso
interior) se revela como material semiótico privilegiado do psiquismo” (BAKHTIN, 2004,
p. 52). Ela tem sempre um sentido ideológico e/ou vivencial, relaciona-se totalmente
com o contexto e carrega um conjunto de significados que socialmente foram dados a
ela. A palavra é plural, multifacetada, polissêmica, uma presença viva da história.
Desse modo, uma mesma palavra assume diferentes significados ao longo de sua
história e depende diretamente do contexto em que é enunciada e dos sentidos dados
pelo sujeito.
Bakhtin (2004, p. 113) considera “[...] a palavra uma espécie de ponte entre mim e os
outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu
interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor”. O produto do
62
ato da fala, a enunciação, é de natureza social, sendo determinada pela situação mais
imediata ou pelo meio social mais amplo.
Por isso, junto com a palavra, as diversas formas de linguagem que expressamos:
nossos gestos, nossos trejeitos, manuseios são de valor social. “Todo signo é social por
natureza, tanto exterior quanto interior” (BAKHTIN, 2004, p. 58). A palavra se dirige, é
enunciação totalmente vinculada ao contexto, portanto, além dos ditos, carrega os não
ditos “pronunciados” pelos gestos, acentos apreciativos ou até mesmo pelo silêncio.
Ao discorrer sobre o signo, Bakhtin (2004) ressalta que o signo é o fenômeno do mundo
exterior, resultado das práticas humanas, portanto o conteúdo da atividade psíquica
origina-se da realidade exterior e está impregnado por ela. Os signos
[...] são o alimento da consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico não sobra nada. A imagem, a palavra, o gesto significante etc. constituem seu único abrigo. Fora desse material, há apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido do sentido que os signos lhe conferem (BAKHTIN, 2004, p. 35-36).
Contudo, para Bakhtin (2004), o material semiótico da vida interior, da consciência
(discurso interior) é a palavra. A linguagem é importante na constituição da natureza
humana.
Desse modo, encontramos, no pensamento bakhtiniano, uma concepção de linguagem
fundamentada numa abordagem histórica, cultural e social. Por isso, o enunciado é
apresentado por Bakhtin inserido na história, na cultura, na sociedade, isto é, a
linguagem emerge a partir da vida do homem,
[...] a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social ou não, se estiver ligada ao locutor por
63
laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.). Não pode haver interlocutor abstrato (BAKHTIN, 2004, p. 112).
Nesse trecho, vemos o autor delineando a natureza social do enunciado que é
apontado por ele como resultado da interação social entre dois indivíduos. Assim,
conforme nossos estudos, o enunciado é uma expressão semiótica entre os indivíduos
que estão inseridos em uma mesma comunidade lingüística. Os indivíduos são capazes
de fazer usos da língua por meio de enunciados que se dirigem a um interlocutor
“concreto” pertencente a uma comunidade social.
Portanto, “[...] a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam
completamente e, por assim dizer, a partir de seu próprio interior, a estrutura da
enunciação” (BAKHTIN, 2004, p. 113). Dessa forma, é a situação que dá forma à
enunciação, por isso as enunciações, como unidades reais da cadeia da comunicação
verbal, devem ser estudadas levando em consideração o meio extraverbal e o verbal
(outros enunciados). A enunciação, mesmo tomada no “[...] estágio inicial de seu
desenvolvimento, ‘na alma’, não se mudará a essência das coisas, já que a estrutura da
atividade mental é tão social como a da sua objetivação exterior” (BAKHTIN, 2004, p.
114).
Conforme mencionado, a natureza do enunciado, na perspectiva bakhtiniana, é
eminentemente social e é nisso que acreditamos. Em nossa investigação ao falarmos
de apropriação cultural da criança, tomamos sim a linguagem, pois ela nos ajuda a
entender a relação entre o mundo biológico e o mundo cultural e nos possibilita explicar
como a criança, se apropria das funções culturais. A pesquisa com as crianças tem nos
possibilitado ouvir tais enunciações e este foi o nosso desafio.
Neste trabalho, quando dialogamos com Vigotsky (2007) e com Bakhtin (2003),
acreditamos que a linguagem é carregada de sentido e significação, que as questões
sociais e culturais atravessam os nossos discursos com diferentes vozes e também que
a natureza humana é social e cultural.
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O referencial teórico até aqui exposto tem nos possibilitado uma escuta mais sensível
às narrativas das crianças no cotidiano da Educação Infantil. A nossa preocupação em
ouvirmos o que as crianças têm a dizer sobre a sua natureza infantil não fica isolada
dos modos de ser e estar dos humanos na sociedade. Como vimos, as diversas vozes
são e estão atravessadas nesse cotidiano. Ao adentrarmos cada vez mais em nosso
campo investigativo, podemos perceber que as crianças trazem suas marcas culturais e
sociais não desvencilhadas da cultura da sociedade.
3.3.2 As Culturas Infantis
Nas duas últimas décadas, a produção sobre o tema infância tem-se ampliado, mas
pouco se conhece sobre as culturas infantis “[...] porque pouco se ouve e pouco se
pergunta às crianças e, ainda assim, quando isto acontece, a ‘fala’ apresenta-se solta
no texto, intacta, à margem das interpretações e análises dos
pesquisadores” (QUINTEIRO, 2002, p. 20).
Em se tratando da discussão das culturas infantis, outro autor que apresenta uma
contribuição sobre a cultura infantil é Willian Corsaro (1997, 2005). O referido autor
define a cultura infantil como “[...] um conjunto estável de atividades ou rotinas,
artefatos, valores ou preocupações que crianças produzem e compartilham em
interação com pares” (CORSARO, 1997, p. 95). Para ele, é na relação da criança com
os adultos e com os seus pares que as culturas infantis são produzidas.
Manuel Sarmento (2002), ao enfatizar que a expressão “culturas infantis” é um tema
recente, afirma que há controvérsias no campo da Sociologia da Infância sobre o seu
significado. Esse propósito de pensar a infância a partir dos outros foi o que levou a
emergência de uma Sociologia da Infância. A Sociologia da Infância propõe uma
inversão que resgata a autonomia das crianças por meio da apropriação dos seus
discursos. Isso explica a utilização do termo “culturas infantis”. Portanto, o conceito de
“culturas infantis” tem se estabelecido pela Sociologia da Infância como um elemento
distintivo da categoria geracional.
65
Entendemos por esse conceito a capacidade de as crianças construírem de forma
sistematizada, modos de significação do mundo e de ação intencional, que são distintos
dos modos adultos de ação e significação.
A pluralização do conceito significa que as formas e conteúdos das culturas infantis são produzidas numa relação de interdependência com culturas societais atravessadas por relações de classe, de gênero e de proveniência étnica, que impedem definitivamente a fixação num sistema coerente único dos modos de significação e acção infantil. Não obstante, a ‘marca’ da geração torna-se patente em todas as culturas infantis como denominador comum, traço distintivo que se inscreve nos elementos simbólicos e materiais para além de toda a heterogeneidade, assinalando o lugar da infância na produção cultural (SARMENTO, 2002, p. 4).
Entendemos que as culturas da infância são produzidas social e historicamente e “[...]
são aliadas pelo processo histórico de recomposição das condições sociais em que
vivem as crianças e que regem as possibilidades das interações das crianças entre si e
com os outros membros da sociedade” (SARMENTO, 2002, p.4).
As crianças são produtoras/criadoras de cultura. Crianças e adultos têm experiências
de acordo com suas experiências culturais. A criança, o adulto, o jovem, enfim, o
homem é um ser ontocriativo, ele (re)significa o mundo, (re)cria. A criança tem modos
de governos próprios, ou seja, ela é capaz de reinventar, é capaz de lidar com
determinada situação, modificando-a, não fazendo a mesma coisa.
As crianças não reproduzem; elas reinventam, (re)significam o contexto.
A consideração das crianças como actores sociais de pleno direito, e não como menores ou como componentes acessórios ou meios da sociedade dos adultos, explica o reconhecimento da capacidade de produção simbólica por parte das crianças e a constituição das suas representações e crenças em sistemas organizados, isto é, em cultura (SARMENTO; PINTO, 1997, p. 20).
A cultura da criança é manifestação, experiência representada do social. Aqui, as
crianças conforme as suas experiências sociais se fazem permanentemente. Nas
culturas infantis, elas se manifestam, apropriando-se do social e representando-o. São
66
as marcas do outro que perpassam social e culturalmente em mim. Eu me constituo no
outro e ele se constitui em mim. São as marcas da alteridade.
Sarmento (apud DELGADO; MÜLLER, 2005, p. 5) ainda menciona alguns conceitos
importantes para compreender as infâncias e as culturas da infância relacionadas com
a diversidade, alteridade, cultura, como mostraremos a seguir:
-Diversidade: não se pode falar em infância como grupo homogêneo. A infância é marcada pela heterogeneidade e diversidade de condições de existência, possibilitando a existência de múltiplas infâncias. Embora a infância seja plural – infâncias -, constantemente ela sofre generalizações. -Alteridade: constitui-se no fosso entre o que se é e aquilo que os outros são, principalmente quando o outro tem uma diferença radical. Nesse sentido, nossa visão de mundo, enquanto adultos, é muito diferente da das crianças. -Cultura: sistemas simbólicos organizados, ou seja, conjuntos articulados relativamente estáveis de idéias, normas de comportamento. É resultado de um processo de sedimentação de relações entre seres humanos. Dessa forma, culturas infantis são sistemas simbólicos distintos dos demais, com um recorte geracional que mantém cruzamentos com recortes de classe, gênero, raça, entre outros.
As culturas infantis apresentam um recorte geracional que mantém uma interligação
com a diversidade, em se tratando de classe, gênero, raça e outros. E nos faz retomar
uma idéia de Sarmento (2000), ao apontar alguns traços identificadores da “gramática
das culturas da infância”, que é entendida com metáfora identificadora das regras de
estruturação simbólica.
a) semântica - a construção de significados autônomos e a elaboração de processos de referenciação e significação próprios. A cultura e a infância se constroem;b) sintaxe - a articulação dos elementos constitutivos da representação, que não se subordinam aos princípios da lógica formal, mas sustentam a possibilidade da contradição do princípio da identidade. A infância não se subordina à lógica formal do adulto;c) morfologia - a especificidade das formas que assumem os elementos constitutivos das culturas da infância: os jogos, os brinquedos, os rituais, mas também os gestos e as palavras. A especificidade em ver a totalidade (SARMENTO, 2000, p.13).
Em se tratando de cultura infantil, gostaríamos de destacar os quatro pilares das
culturas da infância destacados por Manuel Sarmento (apud DELGADO, MÜLLER,
2005, p. 6):
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a) interação - em termos de culturas populares a autoria é coletiva, pois todos os membros de uma comunidade participam. As culturas da infância aproximam-se muito das culturas populares neste aspecto;b) reiteração - é o princípio da repetição e da réplica. É a razão circular do tempo e o tempo pode sempre começar de novo, não há uma medida que o controle para as crianças;c) ludicidade - assim como as crianças brincam, os adultos também brincam, porém estes últimos separam o brincar de uma “coisa séria”. No jogo, os adultos se “infantilizam” e as crianças se “adultizam”, o que não pode ser levado ao extremo, pois é necessário manter essa alteridade entre adultos e crianças;d) fantasia - o imaginário é a condição para experimentar outras possibilidades de existência, não sendo sinal de incompetência. Isso possibilita a articulação entre as culturas da infância e as dos adultos.
Por último, Sarmento (apud DELGADO; MÜLLER, 2005, p. 7) enfatiza que os conceitos
de culturas da infância geram conseqüências pedagógicas, como pensar o trabalho
pedagógico a partir das crianças e não como adultos; como atores sociais e não como
alunos. Nesse quadro, as manifestações de resistência das crianças podem ser
entendidas a partir das dimensões culturais que surgem e se desenvolvem como um
resultado das tentativas das crianças para fazer sentido e, até certo ponto, para resistir
ao mundo adulto.
3.3.2.1 Manifestações culturais das crianças
Quando nos reportamos às manifestações culturais das crianças, é por entendermos
que elas são sujeitos sociais e por percebermos que, em muitos momentos em nossa
observação, a brincadeira e a imaginação permearam todos os momentos de
interações das crianças.
Dialogaremos um pouco com Vigotsky (2007), quando se refere ao brincar. Para o
autor, a brincadeira é uma situação imaginária criada pelo contato da criança com a
realidade social incorporando elementos do contexto culturalmente adquiridos por meio
da apropriação e comunicação.
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Vigotsky (2007) deixa claro que, nos primeiros anos de vida5, a brincadeira é a atividade
predominante e constitui fonte de desenvolvimento ao criar zonas de desenvolvimento
proximal. Ao prover uma situação imaginativa por meio da atividade livre, a criança
desenvolve a iniciativa, expressa seus desejos e internaliza as regras sociais. As
brincadeiras são aprendidas pelas crianças no contexto social, tendo o outro como
suporte e mediador para sua realização. “A criança imagina-se como mãe e a boneca
como criança e, dessa forma, deve obedecer às regras do comportamento
maternal" (VIGOTSKY, 2007, p.110).
[...] Sempre que há uma situação imaginária no brinquedo [faz-de-conta], há regras - não as regras previamente formuladas e que mudam durante o jogo, mas aquelas que têm sua origem na própria situação imaginária. Portanto, a noção de que uma criança pode se comportar em uma situação imaginária sem regras é simplesmente incorreta (VIGOTSKY, 2007, p.111-112).
Nessa perspectiva, brincadeira é coisa séria, pois elas, brincando, representam o que
poderiam fazer quando adultas, isto é, um constante faz-de-conta. Dessa maneira, a
apropriação de conhecimentos de uma criança é aprendida brincando.
Por ser uma atividade que não dispensa o uso da imaginação, o jogo de faz-de-conta6
contém, pelo menos, uma regra, a regra de que a criança pode agir de acordo com os
significados culturais dos objetos e nas relações sociais representados dramaticamente
nas brincadeiras. As crianças atuam no mundo de maneira que os significados aos
objetos “reais” são apropriados e suas verdadeiras ações estão adequadas aos seus
princípios culturais.
Gostaríamos de pontuar que a ludicidade/o brincar e a imaginação estão presentes no
cotidiano das crianças independentemente do local onde elas se encontram, pois, “[...]
a ludicidade constitui um traço fundamental das culturas infantis” (SARMENTO, 2004, p.
25).
5 Referimo-nos aos primeiros seis anos da criança.6 Muitos autores trabalham com diferentes terminologias ao tratar o tema jogo, algumas vezes como: jogo de faz-de-conta; jogo de papéis; jogos protagonizados etc. Portanto, neste estudo, interessa-nos chamar o jogo de faz-de-conta essas ações representacionais lúdicas de natureza dramática da criança que usa brinquedos e que possuem certas regras – no caso, regras implícitas à própria situação imaginária.
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Embora a brincadeira seja uma peculiaridade das crianças, enfatiza a alteridade entre
elas e os adultos. É mediante o brincar que representam o que acontece em seu
entorno.
“A interpretação das culturas infantis não pode ser realizada no vazio
social” (SARMENTO, 1997, p. 22), pois necessita de se sustentar, na análise das
condições sociais em que as crianças vivem, interagem e dão sentido ao que fazem.
Reconhecer as culturas infantis é um grande desafio. O conhecimento sobre infância
não se faz em qualquer espaço e tempo; é necessário explicitar conceitos, identificar
valores e representações que constroem e constituem as culturas infantis.
Ao falarmos que a (des)naturalização da criança é uma construção social, afirmarmos
que, mesmo com inúmeras linguagens expressas em nosso cotidiano, precisamos
(re)significar a temática infância, valorizando suas culturas infantis e reconhecendo-as
como sujeitos de direitos. Acreditamos ser o nosso desafio como pesquisadoras/es,
pois anunciar as vozes infantis é anunciar seus modos de vida que são próprios, é
desenraizar posicionamentos teóricos e metodológicos presentificados no cotidiano da
Educação Infantil. Portanto, o nosso trabalho pedagógico deve fortalecer a experiência
da criança como sujeito histórico e produtor de cultura em todos os tempos e espaços
da instituição e não ser pensado somente para elas, mas a partir delas e com elas.
Ouvir o que as crianças pensam, sentem, na perspectiva de estudar, desvelar e
conhecer as culturas infantis, “[...] constitui não apenas mais uma fonte (oral) de
pesquisa, mas, principalmente, uma possibilidade de investigação acerca da
infância” (QUINTEIRO, 2002, p. 35).
Portanto, é importante aceitarmos o testemunho infantil como fonte de pesquisa.
Devemos considerar que a questão da ética é um aspecto fundamental nesse
processo, pois garante à criança o direito de consentir ou não em participar de nossas
pesquisas. O nosso maior desafio, como pesquisadora da infância, é o descobrir quem
70
são essas crianças, o que fazem, o que pensam, sobre o que dialogam; é também
desafiar o que a cultura sabe, o que quer saber.
4- DESAFIOS METODOLÓGICOS EM UMA PESQUISA COM CRIANÇAS
Na pesquisa é fundamental descrever densamente qual o lugar de onde eu (pesquisador) falo e escuto e como explicito esses lugares. E de qual lugar falam ou agem os sujeito pesquisados. O lugar de onde faço a observação interfere naquilo que eu observo e, assim, é importante expor qual o lugar social e político de onde faço observação, para além do lugar físico,
71
explicitando relações de forças, poder, desigualdade e modos de exercício da autoridade (KRAMER, 2005, p. 54).
Em se tratando de pesquisa com crianças, a participação delas envolve uma mudança
na ênfase dos métodos e assuntos de pesquisa. Reconhecer as crianças como sujeitos,
em vez de objetos de pesquisa, acarreta na compreensão de que elas podem revelar
as suas experiências.
Desse modo, em nossa investigação, fizemos uso da observação participante, ao
recolhemos informações, pois, “[...] não há modo de realizar a observação de contextos
de ação que não seja, num certo sentido, sempre participante” (SARMENTO, 2003, p.
160).
Gostaríamos de destacar algumas considerações apresentadas por Manuel Sarmento
(2003) quanto à observação participante. A primeira delas é que a presença de um
pesquisador na escola introduz um cenário de complexificações e a observação pode
ser interpretada pelos professores e por outros atores educativos como a avaliação das
práticas, fato que afeta as condições colaborativas da investigação. Quando essa
dimensão é entendida, o trabalho investigativo é bem aceito no grupo.
Nossa entrada no campo investigativo é marcada por um intenso diálogo com os
professores, os pais e as crianças: “Ela agora não está como tia, ela vem ouvir o que
nós temos a dizer sobre ser crianças, o que fazemos na escola, ela agora faz outra
coisa“ (GAB, 5 anos).
Gab faz essa colocação, pois, em um outro momento, fomos sua professora na escola.
Ele percebe a nossa entrada no campo investigativo, faz a distinção de pesquisadora e
professora. Ora, se estamos fazendo observação e apontamentos cotidianamente, ou
por perceber-nos em diferentes espaços e tempos da escola, algo diferente para ele
estava acontecendo. Gostaríamos de destacar que a nossa entrada no campo é
permeada pela conquista e pela conversação mesmo sendo uma integrante desse
grupo de professores. Assim, a dimensão colaborativa dos funcionários, professores e
72
pais expressou o quanto eles eram informantes privilegiados sobre a escola e a ação
educativa. Fato esse que aconteceu na medida em que as conversas nos corredores,
nas reuniões de pais e professores e com as crianças foi ocorrendo.
Mediante a organização de pequenos grupos de discussão com as crianças, nas rodas
de conversas, nas conversas nos diferentes espaços e tempos, foi possível, na medida
em que a conversa foi se desenrolando, levantar particularidades e cuidados,
permitindo seguir “[...] devagar as derivas da conversa e percorrendo com atenção os
seus espaços de silêncio” (SARMENTO, 2003, p.163).
O que nos desafiou foi produzir uma investigação com elas e não sobre elas. Desde o
início da pesquisa, nós a consideramos capazes de produzir conhecimentos e
procuramos respeitar suas opiniões e pontos de vista.
Investigar no próprio espaço de trabalho foi um desafio, pois os sujeitos, atores,
autores, com suas histórias, medos e incertezas, nos possibilitaram mergulhar no
cotidiano escolar.
Permanecemos no campo nove meses e o procedimento metodológico que utilizamos
com maior freqüência foi um diário de campo em que registramos sistematicamente as
ações e as narrativas infantis.
Organizamos, conjuntamente com os pedagogos e professores, de acordo com o
cotidiano da escola, a nossa participação nos grupos. Nossa intenção era observar os
diferentes espaços e tempos escolares em que os sujeitos transitavam. O horário de
observação foi das 7h às 12h. O CMEI, no turno matutino, tinha 13 turmas do Berçário
1 ao Pré-escolar.
Precisamos do outro e, no processo de pesquisa, é necessário considerar o lugar em
que observamos, escutamos, falamos, avaliamos _ a exotopia _ entendendo que o
objeto a ser pesquisado, tanto quanto o pesquisador, é sempre sujeito implicado,
interessado e situado (SILVA; BARBOSA; KRAMER, 2005). Para tanto, fizemos uso de
73
documentos, plano de ação, horário de pátio, projeto institucional e de um diário de
campo permitindo a elaboração de nosso quadro de análise.
Como expusemos, o início desta pesquisa é marcada por uma reunião pedagógica, ao
conversarmos com a equipe de professores, pedagogos e estagiários sobre o trabalho
investigativo. Fizemos um pedido de autorização aos professores (Apêndice A) para
realizarmos a pesquisa em suas salas de aula com os seus alunos e também definimos
o envio de um bilhete de “Consentimento e esclarecimento da pesquisa para os
pais” (Apêndice B). Todos os dias os professores falavam das diferentes reações dos
pais, seus medos, ansiedades, angústias. Observamos que houve todo um
envolvimento da escola desde os professores aos pais, portanto, toda a equipe escolar
aceitou a proposta:
”Professora, por que vocês vão pesquisar as crianças?Isso é importante?” A professora
responde: “É sim, pois vamos ouvir o que as crianças têm a dizer sobre ser criança, o
que pensam da escola , da gente”. As professoras, a todo o momento, afirmavam: “É
difícil ouvir o que as crianças têm a dizer, eu estou tentando”. O desafio assim foi
lançado. Em uma turma, fomos convidada a prestar esclarecimento sobre a pesquisa:
“O bilhete que chegou lá em casa, eu não entendi, explica pra mim” (MÃE da turma de
Jardim I). Nesse momento, algo ficou claro para nós, mesmo com protocolos de
pesquisas tão bem elaborados, seria necessário um contato maior com os pais para
esclarecer com uma linguagem mais acessível ao grupo. Esse trabalho teve a
dimensão da colaboração dos próprios professores, pois prestamos esclarecimento e
os professores também se mostraram dispostos a ajudar, pois eram 13 turmas.
“A investigação etnográfica da escola é uma interpretação de
interpretações” (SARMENTO, 2003, p.171). Em nosso caso, a nossa inserção no
campo é marcada por essa colaboração, tal como apontamos, pois as crianças, os pais
e os professores já nos conheciam há cinco anos. É importante destacar que, por ser
uma pesquisa que escuta as vozes das crianças, o grupo demonstrou um grande
interesse em ouvir também essas vozes e, em muitos momentos, os educadores nos
74
convidavam para acompanhar atividades, passeios, apresentações culturais, nos
diferentes momentos de brincadeiras na sala e no pátio.
Para ouvir essas vozes, optamos por utilizar as primeiras siglas dos nomes de nossos
sujeitos, mantendo, assim, a autoria, a voz criativa. Entendemos que somos autor-
criador, isto é, quem dá forma ao conteúdo: “[...] ele não apenas registra passivamente
os eventos da vida [...], mas, a partir de uma certa posição axiológica,7 recorta-os e
reorganiza-os esteticamente” (FARACO, 2005, p.39). Desse modo, “[...] o autor deve
colocar-se à margem de si, vivenciar a si mesmo não no plano em que efetivamente
vivenciamos a nossa vida; [...] ele deve tornar-se outro em relação a si mesmo, olhar
para si mesmo com os olhos do outro” (BAKHTIN, 2003, p.13).
Segundo o referencial teórico-metodológico que nos tem orientado neste estudo, a
criança é sujeito da cultura, da história e do conhecimento, portanto alguém que possui
uma linguagem própria. Recuperar a noção de “ator social” é considerar as condições
sociais da subjetividade, num esforço de superar as teorias estruturalistas que
condenavam a possibilidade de ação subjetiva. Reconhecer as crianças como atores
sociais requer uma (re)significação do nosso olhar para elas.
Assim, acreditamos que com as metodologias participativas se recupera a presença da
criança como parceira no trabalho interpretativo, resultando a ação da criança em todo
o processo.
[...] a participação não é uma campanha política que coloca as crianças em primeiro lugar, tal como propõem os teóricos da libertação, mas sim um processo de construção de uma sociedade inclusiva para cidadãos mais novos (MILNE, 1996, apud SARMENTO, 2004, p. 8).
A investigação é, assim, vista como um processo de participação social, em que é
fundamental considerar um equilíbrio possível de autonomia, cooperação e hierarquia
7 Produção de sentidos, de valores.
75
com e entre as pessoas, sendo a tomada de decisão partilhada entre todos os parceiros
do processo investigativo.
Em nosso processo investigativo, foi “[...] necessário delinearmos uma metodologia
que nos ajudasse a evitar projetar o nosso olhar sobre as crianças, colhendo delas
aquilo que é reflexo dos seus próprios preconceitos e representações” (SARMENTO;
PINTO, 1997, p. 26). Esse exercício pareceu-nos, em várias situações, difícil, pois
temos, em nossa história, as marcas de uma infância linear e sem voz. Desmistificar
tais tabus e preconceitos foi um exercício diário para possibilitar-nos ouvir as crianças.
Autores como Boyden e Ennew (apud SARMENTO, 2004) têm nos ajudado nas
metodologias de pesquisa com crianças. Ambos afirmam que a investigação deve
encarar a participação das crianças com princípios éticos que a influenciam e não
devem estar previamente estabelecidos, mas considerados num processo contínuo de
construção, atendendo à idade das crianças, ao seu grau de experiência, ao contexto
sociocultural e, ainda, ao gênero. Defendem também que as ferramentas e as opções
metodológicas terão de estar em permanente diálogo com a diversidade das interações
que se estabelece à medida que a investigação se vai desenvolvendo.
Investigar a infância, portanto, requer do pesquisador conhecimento da história e da
condição social da criança. Certamente, interpretar as representações sociais das
crianças permite ao pesquisador ir além do acesso (físico), à infância como categoria
social. Diante dessa realidade,
[...] o uso e a recolha da voz da criança é condição fundamental no conhecimento da cultura infantil. Mas, para além da recolha da voz da criança e dos procedimentos utilizados para tal, o que se persegue é uma ‘autonomia conceptual’ que, ‘supõe o descentramento do olhar adulto como condição de percepção das crianças e inteligibilidade da infância’. Conhecer a escola em sua realidade atual é colocarmos uma lente de aumento na dinâmica das relações que constituem o seu dia-a-dia (SARMENTO; PINTO, 1997, p. 26).
76
A focalização, em partir das crianças para o estudo das realidades de infância, significa
duas coisas na seguinte ordem:
Uma primeira, que o estudo da infância constitui esta categoria social como o próprio objeto de pesquisa, a partir do qual se estabelecem as conexões com os seus diferentes contextos e campos de acção; em segundo lugar, que as metodologias utilizadas devem ter por principal escopo a recolha da voz das crianças, isto é, a expressão da sua acção e da respectiva monitoração reflexiva (SARMENTO; PINTO, 1997, p. 24).
Dessa forma, além da técnica, o sentido da reflexibilidade investigativa8 se constituiu
como um princípio metodológico central para que a nossa investigação não projetasse
apenas o seu olhar sobre as crianças, colhendo delas apenas aquilo que é o reflexo
conjunto dos seus próprios preconceitos e representações.
Posto isso, fez-se necessário pontuarmos alguns aspectos importantes para a
organização da investigação com as crianças de uma forma participada e informada
eticamente.
Acreditamos que a etnografia pode ser apresentada como recurso metodológico para
esse tipo de investigação, na qual o pesquisador e o pesquisado necessitam construir
vínculos bastante distintos. Ao desenvolver uma pesquisa qualitativa de abordagem do
tipo etnográfica, estaremos concordando com Sarmento (2000, p. 247) que diz “[...] a
etnografia impõe uma orientação do olhar investigativo para os símbolos, as
interpretações, as crenças e valores que integram a vertente cultural [...] das dinâmicas
da ação que ocorrem nos contextos escolares”.
A abordagem do tipo etnográfica nos permite captar as relações do cotidiano,
estabelecer um diálogo entre as teorias revisadas e a prática na realidade percebida.
Embora a etnografia seja um instrumento clássico de investigação antropológica, ela
vem sendo utilizada nas pesquisas educacionais a fim de descrever e interpretar a
8 Para Sarmento (2000, p. 35), “[...] reflexibilidade investigativa significa que esse conceito tem uma dimensão epistemológica e exige do investigador um olhar analítico sobre si mesmo como condição de produzir o conhecimento desejado. Trata-se de uma metodologia que combina a indução com a dedução mediante a qual a empiria se esclarece pela teoria, ao mesmo tempo em que a fecunda”.
77
realidade cultural. Por isso, afirma André (1995), os educadores, ao adaptarem a
etnografia à educação, não fazem pesquisa puramente etnográfica, mas realizam
estudos do tipo etnográfico.
É verdade que a investigação com a participação das crianças tem exigido do
investigador a compreensão dos elementos metodológicos decorrentes de uma
orientação etnográfica. Destacamos que, em uma investigação sobre a infância, tais
elementos devem estar em consonância com o que sintetiza Linda Smith (apud
SARMENTO, 2000, p. 152-153) em seis passos:
1- a permanência prolongada do investigador no contexto estudado, de forma que possa, pessoalmente, recolher as suas informações, por meio da observação participante e da entrevista aos membros que lá residem, trabalham ou atuam;2- o interesse por todos os traços e pormenores que fazem o quotidiano, tanto quanto pelos acontecimentos importantes que ocorrem nos contextos investigados;3- o interesse dirigido tanto para os comportamentos e atitudes dos atores sociais, quanto para as interpretações que eles fazem desses comportamentos e para os processos e conteúdos de simbolização do real;4- o esforço para produzir um relato bem enraizado nos aspectos significativos da vida dos contextos estudados, de tal modo que ele recrie de forma vivida esses fenômenos; 5- o esforço para ir, progressivamente, estruturando o conhecimento obtido, de tal modo que o processo hermenêutico resulte da construção dialógica;6- uma apresentação final que seja capaz de casar criativamente a narração/descrição dos contextos com a conceptualização teórica.
É importante ressaltar que esses elementos metodológicos foram destacados em nosso
percurso investigativo. Outra autora que também contribuiu para a (re)definição de uma
diretriz metodológica é Sonia Kramer (2005). Para ela, uma diretriz metodológica que
parece interessante para a pesquisa com crianças tem que ter origem no conceito
bakhtiniano de linguagem. Em nossa investigação, conforme já explicitamos, para
Bakhtin (2004), a palavra é signo ideológico. Como signo, a palavra (o discurso) adquire
diversos sentidos, depende das histórias de quem fala, de acordo com a História que a
circunda.
Podemos concluir que, no processo investigativo, também com crianças, devemos “[...]
colocar como elemento fundamental a análise dos discursos, das interlocuções tanto
78
nas entrevistas quanto nas situações de interação” (SILVA; BARBOSA; KRAMER,
2005, p. 55). É no cotidiano da escola que emergem os discursos atravessando as
diversas sínteses de nossas experiências culturais e sociais.
É um desafio trazer a narrativa e seus elementos da discursividade. “É preciso que o
pesquisador se coloque no ponto de vista da criança e veja o mundo com os olhos da
criança, como se estivesse vendo tudo pela primeira vez! “(KRAMER; SILVA;
BARBOSA, 2005, p. 52), somente assim descentralizaremos o olhar de adulto para
entendermos, por meio das falas das crianças, os mundos sociais e suas culturas
infantis.
Nesta pesquisa, gostaríamos de destacar que, dentre inúmeros acontecimentos,
selecionamos alguns eventos que consideramos como fatos notáveis para nossa
análise.
Neste trabalho utilizaremos o conceito de evento que segundo Sobral (2005), pode ser
o processo de irrupção de entidades, ou objetos, no plano histórico concreto, como a
presentificação, ou apresentação, dos seres de consciência viva, isto é, situada no
concreto. O evento ocorre num dado lugar e num dado espaço; os fatos por ele gerados
permanecem no tempo e no espaço. A partir de um olhar mais atento, vê tanto do
aspecto singular como o aspecto universal de cada evento ou objeto. O evento é um
ato concreto e dinâmico de instauração do ser no mundo, de apresentação do ser à
consciência dos sujeitos e ainda abarca vários atos da atividade do homem ao longo
desse diálogo permanente com a vida.
Tendo em vista que nossas observações nos possibilitaram perceber que o que se vê é
diferente do que se observa com método e sistematicidade, apresentaremos, a seguir,
eventos que registram o cotidiano da Educação Infantil, no sentido de retomarmos a
discussão da natureza infantil expressa nas suas culturas.
79
5 A CRIANÇA NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL
[...] o estudo das crianças a partir de si mesmas permite descortinar uma outra realidade social, que é aquela que emerge das interpretações infantis dos respectivos mundos de vida. O olhar das crianças permite revelar fenômenos sociais que o olhar dos adultos deixa na penumbra ou obscurece totalmente [...] (PINTO; SARMENTO, 1997, p. 27).
80
Gostaríamos de retomar a questão central de nossa pesquisa: em que medida a
concepção de natureza infantil vem sendo (re)produzida no cotidiano da Educação
Infantil, tendo em vista conhecer os modos como as crianças manifestam suas culturas
no contexto escolar? Desde a chegada à saída das crianças, procuramos conhecer o
seu dia-a-dia, suas brincadeiras e, em especial, ouvir suas narrativas. Para isso, por
meio do estudo etnográfico, procuramos compreender esses e outros fenômenos
educativos.
Longe de uma simples sucessão diária de acontecimentos, o cotidiano da Educação
Infantil extrapola os limites físicos e demonstra elementos constitutivos da/na formação
de seres sociais, históricos e culturais: “A vida cotidiana não está fora da história, mas
no centro do acontecer histórico: é a verdadeira essência da substância
social” (HELLER, 1992, p. 20). É no cotidiano da escola, com a entrada das crianças, o
desjejum, a hora de ir ao pátio, o banho, a troca de roupas, o almoço, o descanso, os
“cantinhos”, as brincadeiras, os passeios, as apresentações culturais até a saída.
Enfim, perceber um universo infantil marcado pela diversidade, compartilhado ou não
pelos adultos.
Foi nesse cotidiano que entramos no universo da pesquisa. Crianças chegando,
correndo pelas rampas, brincando na sala de aula, conversando nas rodas de
conversas, fazendo suas atividades, lanchando, almoçando e brincando no pátio. Pátio
tão desejado pelas crianças e também pelos professores. Ali buscavam suas energias.
Em outros momentos, os educadores burlavam o cotidiano e iam para lá em um breve
momento para descansar. Pátio cheio de contradições. Espaço e tempo de muitos
significados, interações, lugar em que a natureza infantil também se manifesta. Um
cotidiano marcado de significações.
O cotidiano é abrangente e refere-se a um espaço e tempo fundamental para a vida
humana, pois é nele que acontecem as atividades repetitivas, as rotinas, como também
é o lugar onde o inesperado pode acontecer. Pais (apud BARBOSA, 2005) afirma que
81
não se pode reduzir o cotidiano ao rotineiro, ao repetitivo e ao a-histórico, pois o
cotidiano é o cruzamento de múltiplas dialéticas. A rotina é apenas um dos elementos
que integram o cotidiano.
Segundo Agnes Heller (1992), os seres humanos já nascem inseridos em uma
cotidianeidade e, por viverem em grupos sociais, necessitam, desde seus primeiros
anos de vida, aprender os costumes, as regras e as tradições do grupo cultural a que
pertencem. As crianças, desde pequenas, em meio às suas experiências, apropriam-se
de elementos sociais e culturais. Em nossa sociedade, por exemplo, é preciso aprender
a comer com talheres, a escovar os dentes, a definir e a compartilhar brinquedos, entre
outras aprendizagens.
Para Heller (1992) é na vida cotidiana que a vida dos sujeitos se constituem por inteiro,
na qual eles participam com todos os aspectos de sua individualidade: todos os seus
sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades, seus sentimentos,
suas paixões, idéias e ideologias. São partes orgânicas da vida cotidiana: a
organização do trabalho e da vida privada, os lazeres e o descanso, a atividade social
sistematizada, o intercâmbio e a purificação. É quando adquirimos todas as habilidades,
conhecimentos, práticas imprescindíveis para vivermos em sociedade.
No cotidiano da Educação Infantil, a relação com os pares, as brincadeiras, as
diferentes atividades, as diferentes linguagens que atravessam esse cotidiano estão
sendo tecidas por todos e praticadas por aqueles que estão ali imersos. Somos
usuários múltiplos desse cotidiano, reinventando-o de mil maneiras a cada dia.
A pesquisa com crianças deve ser um processo criativo, principalmente considerando a
distância entre adultos e crianças. Temos que construir, continuamente, “[...] maneiras
novas e diferentes de ouvir e observar as crianças e de recolher traços físicos de suas
vidas” (DELGADO; MÜLLER, 2005). É um desafio a nós lançado, pois compreender
suas culturas, sermos um deles requer uma escuta sensível e, para isso, é preciso nos
colocarmos como um deles no grupo.
82
Nesse sentido, nosso trabalho envolveu várias situações em que tivemos que nos
desvencilhar de nossos “pré-conceitos” já formados sobre a infância e a sua natureza
infantil. Ouvir o que elas têm a nos dizer foi um exercício diário. (Re)significar o nosso
olhar que, em muitas situações, é adultocêntrico, e é necessário aprender com as
crianças, na medida em que elas mostram suas posições, o que acreditam, seus
questionamentos, seus modos próprios de organização.
5.1 O CENÁRIO DA PESQUISA
O Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) onde a pesquisa foi realizada faz parte
do Sistema Municipal de Ensino de Vitória – ES. Está situado em um bairro que, no
período de 1940 a 1960, foi marcado pela ocupação da região por meio de invasões.
Por estar localizado em um morro da Grande Vitória, somente esse CMEI atende a seis
comunidades. Os alunos que o freqüentam são da classe popular, e muitos de seus
familiares trabalham de biscate e/ou serviços esporádicos.
A comunidade onde a escola está inserida é assistida, na área da educação, também
por outras três escolas públicas; na área da saúde, há um posto de atendimento. Conta
também com alguns estabelecimentos comerciais e de serviços em geral. Como
opções de lazer, a comunidade tem uma pequena praça, bares, igrejas, projetos
sociais, projetos que incentivam o trabalho e a geração de renda e manifestações
culturais, como blocos de quadrilha e capoeira, entre outras (Foto 1).
Em sua história, retrata a luta dos moradores que, em 1990, organizaram uma grande
manifestação reivindicando a construção de uma nova creche, pois essa já não mais
atendia às necessidades da população. O bairro necessitava de um espaço maior e
mais seguro.
Quanto ao espaço físico, atualmente, encontra-se assim distribuído:
83
No primeiro pavimento, tem uma área externa coberta, para apresentações culturais
das crianças e reuniões diversas; uma secretaria que atende ao público interno e
externo; uma sala da direção; um depósito para materiais de limpeza e higiene; dois
banheiros (masculino e feminino); uma biblioteca. Os pavimentos são interligados por
rampas (Foto 2).
No segundo pavimento, tem um refeitório de uso coletivo (atende, em média 60,
crianças por vez); um pátio externo (comporta 60 crianças por vez); dois banheiros
infantis (masculino e feminino); uma sala de movimento (Foto 3); uma sala de
informática; uma cozinha devidamente equipada; um bebedouro adaptado ao tamanho
infantil; uma lavanderia, com máquinas e tanques; dois banheiros de uso dos
funcionários de apoio e limpeza.
Já no terceiro pavimento, estão as 13 salas de aula, sendo três adaptadas para
atendimento de crianças do berçário (um e dois anos); um fraldário, que atende a uma
criança por vez; um solário para as crianças de berçário (um e dois anos); um pátio
para crianças de um a três anos (Foto 6); um refeitório para crianças de um a três anos,
com uma sala adaptada com uma divisória; uma cozinha para preparo e distribuição
dos alimentos; uma sala dos pedagogos; um banheiro para professores e funcionários;
dois banheiros infantis (feminino e masculino); um almoxarifado para os materiais
didáticos; uma sala de professores com um bebedouro; e um pequeno salão interno
(Foto 4) utilizado para as crianças fazerem apresentações culturais e assistirem ao
vídeo nos dias de chuva.
Contamos com o corpo técnico da escola, denominado de Corpo Técnico-
Administrativo, formado por dois pedagogos por turno, uma diretora, três assistentes
técnico-administrativos. Quanto ao corpo docente: dois professores dinamizadores; 40
professores nos dois turnos e cinco estagiárias.9
9 As estagiárias são alunas do Curso de Pedagogia. Duas estão nas turmas de maternais e em uma turma de Jardim II como apoio pedagógico; e as outras duas estão com os alunos com Necessidades Educacionais Especiais.
84
No período de realização da pesquisa, de março/2006 a fevereiro/2007, não
registramos nenhum trabalho realizado pelos professores na biblioteca e na sala de
informática, pois os professores alegaram que os computadores estavam quebrados e
a biblioteca sem material. No segundo semestre, a biblioteca foi revitalizada com novos
livros e prateleiras, conforme o Plano de Ação.
Quanto à disposição das salas, é bem variada. Em alguns momentos, conta com três
ambientes divididos por “cantinhos”: centro de artes, centro de jogos, centro dos
brinquedos e cantinho da leitura. Na sala, observamos um espelho e um tapete na
frente para o momento da roda de conversa, que acontece na hora da entrada. É a hora
dos combinados e explicitação das atividades a serem desenvolvidas no dia.
Destacamos que essa rotina é flexível, pois o professor tem disponibilidade de planejar
de acordo com a sua proposta de trabalho. Observamos que, em todas as turmas, há
uma freqüência de ações e também destacamos que, em todos os grupos são
praticadas rodas de conversas em que as crianças e os educadores compartilhavam
seus conhecimentos, saberes e fazeres tecidos nesse cotidiano. São crianças e adultos
(des)naturalizando seus conhecimentos, mitos, preconceitos, ações. Um lugar de um
intenso compartilhar, um desejo em aprender e ensinar.
O horário de atividades no pátio é bastante diversificado. Cada turma tem dois horários
de pátio por semana e, na hora do recreio, mais vinte minutos. Percebemos que a
rotina da escola ainda é muito cronometrada, entre horário de pátio, desjejum, almoço,
aula com o professor dinamizador e apresentações culturais. As crianças
questionavam: “Tia, agora é hora de ir para o pátio? A turma do Pré já foi? O pátio
demonstra ser o local de desejo das crianças. Nos dias de chuva, observamos o quanto
elas ficavam entristecidas e diziam: “Hoje não tem pátio. Que pena! Tá chovendo muito,
nós vamos assistir vídeo do lado fora da sala”.
É prática da escola, nos dias de chuva, as crianças assistirem ao vídeo coletivamente.
Registramos cerca de 60 crianças por vez. No pátio, há quatro balanços, um
85
escorregador, um gira-gira, uma árvore e um jardim, com quatro mesas. Ele é de
cimento com grama sintética, pois a areia foi retirada no ano de 2003. Próximo ao
jardim, tem um buraco que foi cavado pelas próprias crianças para brincar com a areia
que ficou no fundo do aterro. Aqui presenciamos a inventividade da criança em trazer à
brincadeira uma marca cultural. Quanto ao pátio, assim dizem as crianças: “Gosto de
brincar de corda e deveria ter mais balanço. Queria mais bola no pátio. Gosto de
brincar no pátio, correr, brincar de futebol”. O pátio é o lugar de liberdade na escola. No
pátio, as crianças brincam, correm, pulam e se organizam.
Registramos, na sala de aula, uma conversa das crianças sobre o pátio:
Professora _ Agora nós temos brinquedos no pátio.Crianças _ É tem corda, maquete de madeira, raquete, pinos.Lui _ Não tem bola.Pesquisadora _ Na sala tem bola?Win _ A gente não leva, a professora não deixa.Professora. A gente não leva, porque eu não gosto de ver vocês correndo atrás da bola. Nós vamos colocar no pátio uma cesta de basquete e aí levamos a bola.Vit _ Ah! Mas no pátio eu ainda corro.
As crianças deixam suas marcas. Nessa narrativa, elas expressam o seu
descontentamento quanto a não ter a bola no pátio e, mesmo que a bola apareça, elas
querem é correr com a bola. Nas observações feitas no horário de pátio, as turmas que
brincavam com a bola corriam livremente e organizavam-se em times de futebol ou
queimada. Em outra situação, compramos duas bolas para a turma de Jardim II, e eles
próprios se organizavam: “Vamos guardar essas bolas aqui no armário”. Todos os dias,
quando iam para o pátio, sempre se organizavam: “Uma bola para as meninas, a outra
para os meninos”. Já no momento do pátio: “Tia, Fab pegou a bola das meninas. Os
meninos não querem deixar as meninas jogarem futebol”. Mas, no final, as meninas
brincavam com os meninos de futebol e as duas bolas ficavam com ambos os grupos.
A organização entre pares é presentificada. Não importava as questões relacionadas
com gênero, é das meninas ou é dos meninos, eles se reorganizavam e buscavam
estratégias diferenciadas para as brincadeiras.
86
Quanto à arquitetura do pátio, ele foi reorganizado no ano de 2004. A princípio, não
havia brinquedos, tais como: balanço, escorregador, gira-gira, ponte móvel. Tudo isso
foi viabilizado pelo Conselho de Escola no decorrer daquele ano. Nessa época, também
foi desenvolvido pelo grupo escolar um projeto intitulado “Aprender brincando”, com a
intenção de promover a revitalização do espaço do pátio (Foto 5).
Nas redondezas da instituição, presenciamos cenas de muita violência originárias de
problemas associados ao tráfico, o que leva as famílias a sentirem muito medo e
insegurança, conforme foi narrado em uma reunião de pais:
A minha filha falta às vezes, pois fico com medo de mandar ela e não tê-la de volta. Policiamento é como turismo (MER, mãe de aluno).
O problema é quando não podemos trazer nossos filhos na escola por causa da violência, com medo das balas perdidas (MAR, mãe de aluno).
A rua lateral à escola é um ponto de encontro do tráfico de drogas. Freqüentemente,
temos conhecimento de mortes de pessoas nesse local. Mesmo sendo uma área de
violência, de medo, de tráfico de drogas, a rua é (re)velada como espaço de vivências
lúdicas, de sociabilidades e descobertas, em que as crianças brincam de pique e soltam
pipas. A rua não é apenas vista como o local da marginalidade, mas também como um
local possível de desvelar as culturas infantis.
Ao analisarmos os documentos da escola, constatamos que muitos pais têm renda
muito baixa, deixando as suas crianças no CMEI por conta da alimentação e dos
cuidados das professoras. Ainda persiste, na fala dos familiares, a idéia de creche
como assistência e não como um lugar marcado pelo conhecimento. Mesmo com a
presença da rua na escola, pela proximidade das casas, do som das músicas, do
depósito de lixo, ela é (re)significada pelas crianças nas suas vivências, como soltar
pipa, correr, comprar picolé, conversar com os vizinhos.
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Foto 1- Região da unidade escolar
Foto 2 – Rampa da escola
Foto 3 - Sala de movimento
Foto 4 - Salão interno
Foto 5 - Pátio externo
Foto 6 – Pátio interno
“Eu não quero ir no pátio, eu quero ver televisão...”
As crianças estavam brincando na sala de aula com vários brinquedos. Estavam
brincando com os telefones sem fio, carrinhos, bonecas. A disposição dos materiais
pedagógicos dentro da sala-de-aula é por “cantinhos”, o que possibilitava às crianças
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brincarem com os brinquedos. Nesse dia, a estagiária estava com o grupo, porque a
professora estava de licença médica. Ela estava sentada em uma cadeira observando
as crianças brincando e fez um “combinado” com as crianças: ”Acabando a brincadeira
na sala, nós vamos para o pátio e depois nós vamos assistir à televisão”.
As crianças se dirigem até a mim e me chamam para brincar de telefone.
Thi _ Alô.Pes. _ Quem é?Thi _ É meu pai (sussurra)Pes. _ É, eu vou falar para ele que você vai para o pátio.Thi _ Eu não quero ir no pátio, eu quero ver televisão.Estagiária _ Pessoal, vamos guardar os brinquedos e vamos para o pátio.Thi _ Olha para mim [(com espanto] Thi guarda o telefone e vai para a fila dos meninos em direção ao pátio (DIÁRIO DE CAMPO-novembro/2006).
Havia uma trajetória a ser seguida na rotina proposta pela estagiária: “[...] primeiro
vamos ao pátio e depois vamos assistir à televisão”. Mediante o brincar, Thi
demonstrou que não queria ir ao pátio, mas sim assistir à televisão.
A criança aprende a viver na escola, sujeita seus próprios desejos à vontade do
professor e submete suas próprias ações em função da maioria. Ela aprende a ser
passiva e aceita uma rede de normas, regras, regulamentos e rotinas em que está
imersa. Aprende a tolerar as pequenas frustrações e a aceitar os planos e as políticas
das autoridades superiores, mesmo quando sua justificação permanece sem explicação
e seu significado obscuro.
Uma das frases recorrentes nas salas de aula pesquisadas era “Pessoal, vamos
guardar os brinquedos...” Palavras que se repetem todos os dias e que acabam se
transformando numa ação rotineira.
Refletir sobre essas práticas na instituição de Educação Infantil e sobre sua aparente
naturalização ao longo do dia não é tarefa das mais fáceis.
Em nossa observação, destacamos que, no dia-a-dia da escola, muitos adultos ainda
cobravam das crianças silêncio total, organização e ordem, como uma forma de
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legimitar a sua ação como educador. Nesse evento, pode-se observar o quanto Thi quis
burlar o que está sendo imposto, naquele momento, pela estagiária.
A condição a que muitas vezes são submetidas as crianças faz com que criem,
algumas vezes, suas próprias alternativas de extrapolá-las, numa clara demonstração
de que o poder do adulto não é, a todo o momento absoluto, pois elas encontram
maneiras para transpô-lo provisoriamente.
Thi extrapola o real e traz, no plano do imaginário, do faz-de-conta, a situação de não
aceitar ir para o pátio, como foi delimitado pelo adulto. Ao verbalizar o que deseja, traz
a vontade, naquele momento, que poderia ser ouvida e problematizada no grupo,
conjuntamente com as outras crianças.
Muitos “combinados” feitos são práticas utilizadas pelos professores de Educação
Infantil e, conforme observamos neste estudo, na maioria das vezes, permanece o
discurso do adulto sem um diálogo com a criança. Thi, ao chamar pelo seu pai, traz a
dimensão de que, naquele momento, outro adulto também pode intervir nessa situação,
e alguém que precisa de um diálogo, para expor suas idéias.
Poderíamos dizer que seria uma sabotagem das estratégias das crianças pelos
adultos, seria sua inobservância dos mundos criados por elas como alternativas de
afirmação de seus interesses, de seus direitos, impressão de suas marcas, o que o
adulto desconhece justamente porque lhe fizeram acreditar que a história já está escrita
e que, portanto, outras inscrições não são possíveis.
Por meio da ludicidade, Thi transcendeu os limites do real que lhe apresentava
promovendo uma realidade, ampliando, assim, seus elementos imaginários, conforme
Kramer (1992, p.120 - 121):
Imaginação. Fantasia. Descoberta. Sonho. É isto o que se apresenta em qualquer atividade ou experiência humana que não se limita a reproduzir fato ou impressões vividas, mas que as combina produzindo novos objetos, novas imagens, novas ações.
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As crianças estão atrás de seus sonhos, ainda que interrompidos pelos adultos. Elas
resistem às hierarquias e as têm verbalizado e representado.
“Por que nós viemos aqui? Nós não vamos subir?”
Em uma visita ao Convento da Penha,10 as turmas do Jardim II e Pré tinham como
objetivo conhecer alguns pontos turísticos da cidade de Vitória e Vila Velha. Esse
passeio fez parte da estratégia pedagógica do desenvolvimento do Projeto
Institucional11 NOSSA GENTE, NOSSA TERRA, previsto no Plano de Ação12 da escola
para o ano de 2006.
Pela a locomoção, o ônibus da Prefeitura não chega até o portão. As crianças se
organizaram com os seus crachás, em fila ou dando as mãos para descerem alguns
bons metros para chegar até a porta de uma escola de Ensino Fundamental para
tomarem o ônibus. Nesse dia, optamos por observar o movimento de chegada das
crianças ao ônibus. Elas ficaram eufóricas, contentes, cantando várias músicas:
“Vamos cantar a música que vocês mais gostam? Vamos! E qual é?”. Diz a professora.
Os alunos afirmam: É BORBOLETINHA:
Borboletinha tá na cozinha, fazendo chocolate para madrinha,rebola, bola, perna de pau,olho de vidro,nariz de pica-pau-pau-pausubi no morro escorregueicai de bunda mas não machuqueimamãe falou que é pecado andar de braço dado com o namorado, pelado, safado.
Quando entrei nesse CMEI, o que me chamou a atenção, nessa música, foi a
criatividade e inventividade das crianças que cantavam trazendo as marcas culturais de
10 O Convento de Nossa Senhora da Penha é um dos santuários mais antigos do Brasil e se localiza no município de Vila Velha, região da Grande Vitória. 11 Projeto pedagógico desenvolvido pela equipe de profissionais do CMEI em 2006.12 Plano de Ação da escola no ano de 2006, traçando metas pedagógicas, administrativas, educativas, políticas.
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seu entorno, como a localização, a relação familiar e a sexualidade. Destacamos que,
quanto ao repertório musical, em todos os passeios que acompanhávamos, sempre que
as professoras pediam para cantaram uma música conhecida, as crianças iniciavam
com BORBOLETINHA. A escola vem demarcando um território em que essa música é
“música da escolinha”, mas, na verdade, mesmo sendo uma marca da cultura escolar,
as crianças a reinventam utilizando marcas de seus entorno cultural.
Em outros momentos, observamos que, para cada situação do dia-a-dia da criança na
escola, havia uma música. Durante o passeio, as crianças cantaram várias vezes essa
música e depois passaram a cantar outras, como: Perdi o meu anel no mar, de Bia
Bedran e também cantavam músicas de Kely Key, por insistência da professora.
Embora cantassem o que a professora pedia, elas traziam as marcas de um
conhecimento de que se apropriavam fora da escola. A professora havia combinado
com o motorista sobre a possibilidade de fazermos um turismo pela cidade. Seria sair
da escola e irmos até ao Centro da cidade mostrando as belezas da cidade, o Palácio
do Governo, o porto, o relógio da Praça Oito, o Penedo, o Shopping Vitória (nesse
momento muitas crianças afirmaram que nunca foram ao shopping) e, ao avançarmos o
caminho pela Terceira Ponte,13 muitas crianças também falaram que nunca haviam
atravessado a Terceira Ponte.
Já em Vila Velha, vimos o Convento lá no alto. As crianças se lembraram da lenda
capixaba “O fantasma do Convento” (uma vez que essa turma estava desenvolvendo o
projeto “Lendas capixabas”), do autor capixaba Rodrigo Campaneli. Elas quiseram
chegar até o alto também, mas, quando chegamos, ficamos sabendo que não teria
condições de o ônibus subir. Elas ficaram frustradas e as professoras desistiram de
subir até o alto a pé, pois alegavam que era difícil para as crianças.
As professoras decidem, portanto, fazer um piquenique em um parque próximo ao pé
do morro. Nesse momento, as crianças começam questionar:
13 A ponte está situada no perímetro urbano de Vitória, ligando a Capital do Estado de Espírito Santo, localizada na Ilha de Vitória, à cidade vizinha de Vila Velha no continente.
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Lea _ Tia, por que nós viemos aqui? Nós não vamos subir?Bru _ É nós só vamos lanchar. Nós, que somos crianças, não podemos subir a pé. É muito alto. O carro tem que ir até lá. E o ônibus não vai.Pesq. _ Vocês não podem subir porque são crianças.Lea _ É, só os adultos podem subir.(O descontentamento é total de Lea por não subir ao Convento.Lea _ Eu nem vou conhecer lá (refere-se ao Convento).(DIÁRIO DE CAMPO _ agosto/2006)
As crianças são as mesmas que sobem e descem morros, correm e brincam nas ruas,
questionam os adultos e trazem marcas de seu contexto. Quando Lea verbaliza,
contrapondo-se ao que está instituído, não subir, ele afirma que, para ele, o subir não
teria problema, uma vez que ele vive nessa região de morro e sempre sobe primeiro ou
depois dos adultos que o levam para a escola. É claro que não podemos generalizar,
pois, para Lea, seria fácil, mas para Bru, mesmo morando também nesse contexto, ela
preferiu ficar com a voz dos adultos, não subir. Bru se conforma e reafirma isso como
uma forma de perpassar a voz da sociedade “Nós somos crianças,não podemos subir a
pé”. Assim, há o limite de ser criança para Bru. Uma afirmativa que carrega, naquele
momento, as vozes dos adultos e, ao mesmo tempo, apresenta a sua marca social,
perpassando as vozes do desejo, da condição de criança que também tem direito a
subir a pé.
As crianças formulam interpretações da sociedade, do pensamento, dos sentimentos,
dos fazeres de modo distinto dos adultos. Com o reconhecimento de uma linguagem
que lhes é própria, mediada pelo o outro, perpassando vozes polifônicas.
“Não é hora de conversar”
Ao observarmos a turma de Maternal, percebemos que há uma rotina a ser
desenvolvida durante o dia-a-dia da escola de Educação Infantil. No horário de entrada
das crianças, elas lancham na sala de aula. Ao terminarem de lanchar, começam a
brincar com os brinquedos que estão em grandes caixas nos cantos da sala. Num dia
de observação, a professora pede para guardar os brinquedos e argumenta que não é
hora de brincar, é hora de conversar. Ela pega as fichas dos nomes feitas em papel
cartão, escritas em letras de forma, e começa a trabalhar a grafia dos nomes:
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Prof. _ De quem é este nome?Cri _ De Car.Prof. _ E esse?Ayu _ De Cri...E assim segue sucessivamente a apresentação de todos os nomes...
Nesse momento, as crianças se sentam em círculo para iniciar uma roda de conversa,
mas Ayu começa uma conversa paralela comigo, enquanto a professora continua
falando os nomes. Ayu diz:
Ayu _ Tia, eu vou ganhar um sapato do Papai do céu.Pesq. _ Quem é o Papai do céu? Ayu _ É o Papai Noel.Prof. _ Menino, isso não é hora de conversar sobre estas coisas. Ela veio aqui observar o que vocês fazem na sala. Prof. _ Acabando a história que eu vou contar, vocês podem brincar aqui na sala com os brinquedos.
As crianças correm e pegam brinquedos, fantoches, jogos de encaixe e brincam até a hora do almoço.(DIÁRIO DE CAMPO-Novembro/2006)
Observamos que, primeiramente, a professora afirma que não é hora de brincar, é hora
de conversar. Se a conversa das crianças sai do foco desejado pela professora, elas
não podem mais conversar. Percebemos que, naquele momento, elas queriam
conversar sobre o que elas estão vendo na mídia. Era mês de novembro e o marketing
do Natal já estava acontecendo na mídia, nos shoppings, nas ruas, outdoors. As
conversas das crianças na escola giravam em torno de seus presentes, seus sonhos,
seus brinquedos, “o que meu pai vai me dar? Eu quero uma sandália da Hotwills”, enfim
as marcas de uma cultura que socialmente está instituída em meio ao mercado
globalizado do consumo. Quando Ayu burla a proposta da professora e começa a
conversar comigo, ela traz, em sua narrativa, um questionamento de quem é Papai do
céu e quem é o Papai Noel. É necessário destacar que Ayu quer conversar sobre
outras questões que, naquele momento, não é o escola vem instituindo. As regras, as
rotinas têm sido freqüentes no cotidiano da educação. Burlar essas questões é o que as
crianças demonstraram em vários momentos de nossa investigação.
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Observamos nesse evento e em outros, que demarcavam uma rotina atrelada ao tempo
cronometrado: não era “Hora de...”, mas minutos para as crianças realizarem atividades
pedagógicas, brincarem, irem ao pátio, comerem, correrem, etc.
Encontramos, ainda, como pano de fundo, a concepção de natureza infantil a ser
considerada: “Menino isso não é hora de conversar sobre estas coisas. Ela veio aqui
observar o que vocês fazem na sala”. Essas falas e questionamentos são algumas
vozes que atravessam o cotidiano dessa escola, demarcando, em alguns momentos, o
território da não linguagem, fazendo com que as crianças não falem sobre os seus
desejos, conquistas, sonhos, liberdades. O momento de entrada, recreio, alimentação,
até o sono era limitado: “Só podem dormir no fim do meu dia de trabalho, porque eu
vou embora e com quem eles vão ficar? Depois do almoço é melhor para os integrais
dormir” (PROFESSORA DO MATERNAL).
As rotinas estão presentes em quase todas as propostas pedagógicas de Educação
Infantil, tal como afirmou Barbosa (2005). Se as rotinas são universalizantes, não
consideram a infância, não reconhecem as crianças como diferentes, que são nascidas
e criadas imersas em uma cultura, uma história e uma sociedade e que produzem
linguagens próprias, demarcando o seu espaço tempo, “[...] é no campo das relações
sociais que a criança cresce e se constitui como sujeito (QUINTEIRO, 2005, p. 3). Por
isso é que se pode afirmar que a participação das crianças no processo educativo não
se limita aos aspectos exclusivamente psicológicos, mas sociais, econômicos, políticos
e históricos.
“Criança brinca com coisas de criança; adulto trabalha, criança não trabalha”
Numa roda de conversas com a turma de cinco anos, aqui denominada de Jardim II, as
crianças começaram a dialogar sobre o que pensavam a respeito da escola. Enquanto
um grupo terminava uma atividade proposta pela professora, o outro estava sentado no
chão, próximo ao quadro-negro. Win faz algumas considerações sobre ser criança.
Lembra-se por que era criança, diz que é criança, pois se lembrava de tudo. Ele referiu-
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se à escola como um lugar em que tinha possibilidade de estudar, ler, fazer as letras do
alfabeto. Win segue o diálogo com seus amigos sobre ser criança e ser adulto dizendo:
Win _Nós gostamos de ser criança.A criança se diverte. O adulto vai brincar de outra coisa. O adulto vai ser uma vida diferente de quando é criança. Criança brinca com coisas de criança. Adulto trabalha, criança não trabalha.Kar _ A criança pode trabalhar. Pode começar com os adultos a trabalhar. Eu lavo a louça para a minha mãe.Kar _ Ser criança é brincar, estudar, escorregar, balançar.Win _ Criança faz coisas de criança.
As crianças reconhecem a escola como o lugar social em que várias aprendizagens
estão presentes. Nesse caso, Win afirmou que a escola era o lugar para aprender a ler
e escrever. Essa resposta foi unânime da parte de todas as crianças. É interessante
como o aluno Win faz uma distinção entre o que a criança pode e o que não pode,
quando afirma “A criança se diverte” e “[...] a criança não trabalha”. Ele reconhece que
o adulto continua brincando, vemos aqui a relação intergeracional.
Win, ao se reportar à idéia de que “adulto brinca de outra coisa”, nesse momento, ele
está (re)significando. Ele percebe que o adulto é capaz de brincar, mesmo sendo
adulto. Em outro momento de conversa com essa turma, aparece a seguinte fala de
Win: ”O adulto pode brincar, sim, a minha mãe brinca comigo”. Aqui temos a marca
geracional em reconhecer que a infância é uma categoria que não se desmonta. Nós a
temos, nos constituímos e a (re)significamos.
Quando a aluna Kar. afirma : “A criança pode trabalhar. Pode começar com os adultos
a trabalhar. Eu lavo a louça para a minha mãe.”, as crianças, ao realizarem seus
afazeres, estão produzindo cultura, quando fazem uma atividade,14 brincam, se
organizam na sala para realizar algum trabalho. A relação entre crianças e adultos é
apontada por Kar do mesmo modo as marcas da cultura também a serem perpassadas
pelas gerações.
14 Entendemos aqui como atividade aquilo que o ser humano é capaz de produzir como cultura. Verificamos que, muitas vezes, o momento da atividade na sala de aula é um momento de apenas delimitar o tempo para a criança produzir algo que muitas vezes não entende. A atividade seria, portanto, uma atividade somente pedagógica, a fim de didatizar o próprio termo atividade.
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A criança tem uma prática discursiva como sujeito e uma capacidade de reconstruir,
(re)significar. Ela reconstrói a partir de suas experiências, portanto, fala a partir do que
ela vive como estratégia de sobrevivência. Nesse evento, a dimensão social é
perpassada na fala de Kar, ao afirmar que ela pode começar a trabalhar com os
adultos. E isso a escola não pode desconsiderar, pois é um conhecimento já apropriado
por ela na sociedade. Ela compreende o quanto as gerações são importantes no
processo de apropriação do conhecimento. A dimensão do humano não se perde. Ao
desnaturalizar o seu olhar quanto ao trabalho, ela nos instiga, nos aproxima no que ela
realmente delimita em seu cotidiano.
“Eu tenho que brincar a vida toda...”
A turma do Pré, logo após a festa de encerramento no mês de dezembro, enquanto
todos faziam uma atividade sobre o que achavam da festa no dia anterior, verbalizava
suas impressões sobre a festa e não deixava de comentar sobre a ida para a Escola de
Ensino Fundamental. Os alunos afirmavam que, na EMEF, não teriam muito tempo
para brincar.
Ale _ Eu tenho que brincar a vida toda. Quando eu for adulto, eu volto a brincar com os filhos. Mas só brinco quando tem tempo. Se você está ocupado, não dá para brincar.Pesq. _Vocês acham que criança é igual ao adulto?Cin _ A criança brinca muito.Ale _ Adulto é bravo e valente, às vezes [fica pensando]. Bravo porque briga com a mulher e valente porque cuida dela (DIÁRIO DE CAMPO -dezembro/2006)
Quando Ale. apresenta que ser adulto é ser “bravo e valente”, argumenta, fala-nos de
algo de que já se apropriou no contexto social. Fala-nos das relações de gênero, que o
homem é aquele que tem a força, briga com a mulher. Outro fato interessante é que,
em nenhum momento, ele afirma ou nega que criança é igual ao adulto. Nesse evento,
ele está fazendo uma reflexão sobre o fato de o adulto também brincar, mas relaciona
isso com o tempo. O tempo aqui tomado, a princípio, é o tempo chronós, o tempo
cronológico, linear, que quantifica, mensura. Para ele, o adulto não tem tempo de
brincar, porque está enredado nos seus afazeres e se comporta como alguém que já
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passou a etapa de ser criança. A dimensão do vir-a-ser, do estar desenvolvendo está
relacionada com o tempo. A infância é, antes de uma etapa, uma condição de
experiência humana. É a busca de linguagem. Ela não é apenas uma questão
cronológica, mas uma condição da experiência, portanto é preciso ampliar os
horizontes da temporalidade.
Ao afirmar: “Eu tenho que brincar a vida toda. Quando eu for adulto, eu volto a brincar
com os filhos. Mas só brinco quando tem tempo. Se você está ocupado não dá para
brincar,” a dimensão histórica do brincar está presente. Brincar é uma atividade para
toda a vida, mesmo sendo adulto, eu vou brincar. A idéia de um retorno do adulto ao
brincar é importante, porque traz a marca geracional. Em suas narrativas, a geração, a
tradição está presente. “Brincar não é exclusivo das crianças, é próprio do homem e
uma das suas atividades sociais mais significativas” (SARMENTO, 2004, p. 25). As
brincadeiras são aprendidas pelas crianças no contexto social, tendo como suporte um
mediador, em nosso caso, profissionais ou crianças mais velhas.
Desse modo, a brincadeira é uma atividade cultural e pode ser apropriada de diferentes
formas no interior de diferentes culturas. Nela, a criança (re)significa as relações sociais
que se desenvolvem entre os adultos. A imaginação é um dos elementos da ação
lúdica, mas não é o seu elemento desencadeador. Sabemos que a linguagem é
mediadora das relações entre os seres humanos. Portanto, quando as crianças
brincam, elas fazem uso da linguagem, vivenciam situações por meio das ações
lúdicas, nas quais precisam se enunciar constantemente.
“Na escola, nós ficamos exibidos, inteligentes...”
Numa roda de conversas com a turma do Pré sobre a EMEF, Ale disse:
Ale _ Lá a gente estuda muito... nós ficamos exibidos, inteligentes e somos bem recebidos. A gente fica se quiser. Lá, nós vamos fazer muito dever para ficar inteligente, espero... Lá não vai ter tempo para brincar, é só dever. Brincar pouco, brincar é em casa, depois do dever de casa. Eu tenho que brincar a vida toda (DIÁRIO DE CAMPO – dezembro./2006).
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O que leva uma criança de seis anos a dizer que espera fazer muito dever para ficar
inteligente na escola? Que escola é a que essa criança se refere? É o espaço da
EMEF, que deve ser reconhecido somente como a escola? E o CMEI não é um espaço
escolar? Será a Educação Infantil somente espaço para brincar e não do aprender? A
EMEF seria, então, o único espaço para o conhecimento? “Lá na EMEF a gente estuda
muito. Lá na escola da minha irmã. Eles dão até caneta, nós vamos levar os materiais.
No CAIC, eu posso até levar lanche. E comprar na cantina“ (DIÁRIO DE CAMPO –
dezembro/2006).
Observamos que a discussão do tempo e do espaço da criança no CMEI e na EMEF é
freqüente nas turmas de Pré (seis anos). As crianças demonstravam ansiedades,
desejos. Uma delas disse:
Gostamos da creche para poder brincar. O tempo em que fiquei aqu,i gostei de pintar e brincar. Nós gostamos do recreio, do pátio e assistir o vídeo. Lá [referindo-se à EMEF] eu posso levar mochila nova e caneta. Na escola eu posso brincar, mas pouco. Na escola, eu vou aprender a ler e a escrever.
Recorreremos à Sonia Kramer (2003) no texto intitulado: Direitos da criança e projeto
político-pedagógico da Educação Infantil para dialogarmos um pouco sobre a relação
da Educação Infantil e do Ensino Fundamental ao longo do contexto dos anos 70 e 80,
em que o discurso oficial passou a propagar a idéia de educação compensatória,
divulgando um ideário que considerava que a pré-escola podia salvar a escola por
antecipação, preparando o desempenho escolar de meninos e meninas, prevenindo
supostamente o seu esperado fracasso na escola.
Naquele momento, ela defendeu a idéia de que a Educação Infantil tinha uma função
pedagógica,15 expressão que para ela “deu pano para mangas”. Ao longo de seus
estudos, Kramer (2003) entendeu que ambas as esferas, Educação Infantil e Ensino
Fundamental, se tornam dicotômicas a partir do momento em que deixam de fora um
eixo, que seria a cultura, como capaz de articular saber e experiência.
15 Para a autora, a educação da criança pequena, a chamada pré-escola, embora não tivesse o poder de salvar a escola de suas mazelas, de prevenir os problemas escolares futuros, tinha uma função pedagógica, entendida como compromisso com a escola de Ensino Fundamental. A função pedagógica foi proposta, então, como alternativa crítica para a abordagem da privação cultural.
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E diz:
Trago essa reflexão porque tenho lido textos que postulam que na Educação Infantil temos criança e no ensino fundamental alunos! Ora, temos- ou precisamos ter- crianças sempre. Se perdemos de vista a perspectiva cultural no seu sentido mais amplo, ou seja, no sentido de que as pessoas precisam se reconhecer na cultura, que são sujeitos da história e da cultura, além de serem por elas produzidas; se não percebemos essa perspectiva e reduzimos as crianças, as 21 milhões de crianças de zero a seis anos, a alunos, passamos a ter uma visão de que o pedagógico é algo instrucional e visa ensinar coisas (KRAMER, 2003, p. 62-63).
O cuidado, a atenção, o acolhimento precisam estar presentes na Educação Infantil. A
alegria e a brincadeira também. Em nosso evento, ao mesmo tempo em que as
crianças demonstram ansiedade em ir para a EMEF, expressam que o tempo em que
estão na sala de Pré é um tempo de espera para a 1ª série: “Eu espero ir para a 1ª
série logo”.
As vozes narram um Ensino Fundamental como o lugar da escola que se constitui
como mundo da razão e, como tal, tem suas relações pautadas no pensamento
científico e conceitual, em lógica e seriação. Fundamentada na razão instrumental, tem
se caracterizado como “o lugar do conhecimento”, com hora e lugar para cada coisa:
hora da entrada, hora da saída, do recreio, da Matemática, do pátio, da Educação
Física. Corpo no pátio. Mente na sala. Acabou a brincadeira, hora do dever. Dever. As
vozes que demarcam são as vozes multifacetadas da sociedade.
No que se refere à Educação Infantil, o lugar de onde estão falando, as crianças têm o
direito de brincar, criar e aprender. E isso elas estão dizendo, pois, mesmo com as
vozes naturalizadas da sociedade, em dizer: “A creche é lugar de brincar. Aqui na
creche eu brinco, na escola eu estudo. Tia, agora eu vou comprar uma mochila porque
na 1ª série eu vou para a escola,” as crianças vêem o CMEI como o local em que se
transita o conhecimento. E isso constatamos em várias turmas observadas:
Win _ Este ano eu gostei de ler. Ler faz bem pra mente. Ler é uma coisa boa.Joa _ Eu gosto de ouvir histórias.Gab _ Eu gosto de escrever, faz a gente aprender a fazer muitas coisas.Bea _ Eu gosto de escrever.Leo _ Eu de fazer dever.Wil _ E eu gosto de comer chocolate.
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Win _ Nós gostamos de vim pra escola. Pra estudar, ler e fazer as letras do alfabeto.Ale _ Gosto de brincar, de vim pra escola. Os alunos são legais pra mim. Eu gosto da escola. Gosto da tia, da pedagoga, de fazer dever (DIÁRIO DE CAMPO - dezembro/ 2006).
Tanto o CMEI quanto a EMEF são espaços privilegiados para a apropriação do
conhecimento. Quanto ao brincar, essa é uma condição do ser humano. Nas práticas
realizadas, as crianças aprendem. No que diz respeito à escola, é preciso que essa
instituição imposta e obrigatória atue em liberdade para assegurar a apropriação do
conhecimento por todos. No que se refere à Educação Infantil, é preciso garantir o
acesso de todos os que assim desejarem a vagas em creches e pré-escolas,
assegurando o direito a brincar, criar e aprender. Nos dois casos, é preciso enfrentar
dois desafios: o de pensar a creche, pré-escola e a escola como instâncias de formação
cultural; e o desafio de pensar as crianças como sujeitos de cultura e da história,
sujeitos sociais. Portanto é pensar a Educação Infantil e o Ensino Fundamental como
dois espaços que, independente de suas diferenças, são escolas nas quais os
conhecimentos historicamente inventados pela humanidade são trabalhados.
“Nós gostamos do Pré para poder ler e escrever”
Procuramos acompanhar as primeiras semanas das crianças das turmas de pré-escola.
Observamos o seu entusiasmo ao chegarem à turma, ao reverem seus colegas e terem
contato com a professora. A expectativa das crianças era muito grande. Certo dia, em
uma roda de conversa, as crianças começaram a falar sobre: “O que mais estavam
gostando de fazer no Pré? ”.
Win _ Nós gostamos da escola, da tia, de brincar, de fazer dever. Nós gostamos do Pré, para poder ler e escrever; Joa _ Fazer dever.Kar _Para ler e escrever;Est _ Eu espero ir para a 1ª série logo (DIÁRIO DE CAMPO - fevereiro/2007).
Observamos que os familiares demonstravam muita ansiedade com os seus filhos que
estavam na turma da pré-escola e verbalizavam: “O Pré é antes da primeira série e eles
agora têm que começar a ler e escrever”. Em todas as turmas que observamos,
101
perguntamos sobre o que as crianças mais gostavam de fazer no CMEI? Muitas
responderam: “De brincar, de ir ao pátio, de lanchar, de fazer dever, de ouvir histórias
e de ler e escrever”. Na maioria das turmas, as crianças responderam que gostavam de
ir para a escola.
Esse grupo carrega as marcas de uma narrativa socialmente construída, que entende a
escola com um papel social na formação do indivíduo e não somente com a função de
ler e escrever. Na turma do Pré, a questão da leitura e da escrita é mais forte pela
cobrança dos pais e até mesmo dos professores da escola. É claro que isso é mais
intenso por conta de ser a última turma do CMEI, pois é a transição para o Ensino
Fundamental. Muitas crianças apontavam que estar na turma de Pré é um momento de
espera para o Ensino Fundamental.
Quanto a ler e escrever, não foi somente a turma de Pré que afirmou querer ler e
escrever. Desde as turmas de Maternal, elas demonstravam um grande interresse em ir
para a escola para ler e escrever. Nas turmas menores, vivenciamos situações
direcionadas pelos próprios professores, pois tinham um desejo maior em verem seus
alunos todos alfabetizados.
Se entendermos que a alfabetização tem uma função social e cultural que não se reduz
apenas a codificar/decodificar sons e letras ou à representação de um processo
deslocado das experiências e das manifestações infantis; que as nossas crianças vivem
esse processo diariamente, compreendemos que elas têm uma história que precisa ser
levada em conta, que estão imersas em uma realidade social e cultural, que vivem em
um universo de linguagens, e que é papel da escola proporcionar esse conhecimento.
Assim, em suas narrativas, ao afirmarem que o Pré é esse espaço para aprender a ler e
a escrever, trazem consigo a dimensão da cultura escolar e a preocupação de irem
para o Ensino Fundamental atravessando vozes sociais.
“Ele está doente, tem que ficar em casa...”
102
Fab sempre chega à escola apanhando de sua irmã que o agride com uma borracha de
pneu de bicicleta. Irritado pela situação, certo dia, ao ser contrariado por uma colega de
sala na hora da atividade, ao querer uma canetinha para pintar, jogou a canetinha e a
tesoura de plástico no chão. Ficou muito nervoso, o que o levou a bater em vários
alunos e a jogar várias cadeiras pelo chão. As crianças, nesse momento, são retiradas
da sala e a pedagoga Ana leva-o para uma conversa fora da sala de aula, o que faz
Fab subir em uma grade de ferro. Ao tentar acalmá-lo com um banho, ele morde o
braço da pedagoga. Vários professores saem de suas salas dizendo: “Esse menino não
pode ficar aqui na escola. Ele está doente, tem que ficar em casa. A mãe é quem tem
que se envolver na escola. Ela é quem tem que cuidar dele”. A crise termina quando a
diretora chama o irmão mais velho e a diretora conversa com ele (DIÁRIO DE CAMPO
– maio/ 2006).
O desencadeamento da crise de Fab foi o seu grito indicando que é criança e que se
encontrava, em seu entorno familiar, negligenciada. Registramos a seguinte fala de
uma estagiária sobre a sua vida fora da escola: “Ele passa a noite inteira acordado.A
família dele passa a noite inteira gritando”. Em sua representação, traz suas marcas,
colocando a escola em xeque, questionando-nos: “O que vocês podem fazer por mim?”.
A pedagoga, ao retirá-lo da sala, está sensibilizada a essa escuta e tenta acalmá-lo,
mas é agredida. Logo após essa crise, Fab se tranqüiliza, como se nada estive
acontecendo, o que nos chamou atenção. O desequilíbrio gera nos professores a
sensação de impotência: “Eu não tenho condições de dar conta disso sozinho”. É
verdade, sozinhos não chegaremos a nenhum lugar. Precisamos, no conflito, gerar uma
rede de intervenções a fim de promovermos articulações dentro da escola e em seu
entorno. Uma rede que não pode ser tecida somente pela escola. A escola precisa das
outras instâncias para poder realizar o seu trabalho.
Com o desencadeamento dessa representação de Fab, ele passa a ter crises num
período de dois meses, o que nos leva a promover articulações da escola com outras
103
instâncias (SEME, SEMUS, SEMCID), refletindo que ele não era somente aluno de uma
sala, mas ele era aluno da escola:
Hoje ele está com ela [referindo-se a professora], amanhã estará com vocês. Se mudarmos ele de local, de escola, o problema continua. Se mudarmos ele de professor o problema continua. O que vamos fazer por este aluno? Ele é uma criança que tem direito sim a educação, ele não pode ficar fora da escola(ANA – Junho/2006).
Foi articulada com outras Secretarias Municipais a possibilidade de atendimento a essa
família, uma vez que ele era irmão de sete pessoas com diferentes deficiências e sentia
segurança em sua irmã que apresentava distúrbios mentais. Depois de muita
insistência, a família foi atendida pela SEMUS, que encaminhou uma assistente social à
sua casa e garantiu um acompanhamento psicológico a ele e à sua mãe.
Uma escuta sensível precisa ser desenvolvida dentro de nossas escolas. Rotular
nossos alunos de terríveis, hiperativos, agitados, difíceis são atitudes que perpassam
no cotidiano da escola que precisam ser revistas. Muitas vezes, nossos alunos estão
pedindo ajuda, mas não os estamos ouvindo e, na grande maioria das vezes, não
temos formação para lidar com essas situações.
A invisibilização de Fab como sujeito de direitos que tem um lugar, sim, na escola é
fortemente percebida no grupo. Mesmo com vontade de entender que ele tem direito à
escola, o grupo passa a querer delegar o que ele pode ser na escola. A escola não
conseguia perceber Fab. Alguns professores tentavam, mas seus mitos, preconceitos,
tabus falavam mais alto. A grande maioria não reconhecia que Fab era aluno dela, que
pertencia a um sistema municipal de ensino. Alguns diziam que ele era aluno daquela
professora, então era ela que tinha que “dar jeito”. O grupo de pais também
pressionava, pois ele, freqüentemente, batia nas crianças.
Desse modo, na narrativa dos adultos, percebemos que, para eles, Fab continua como
aquele que não é capaz de estar em grupo, de estar com seus pares e vimos que ele
burla ao organizar o grupo de crianças nas brincadeiras, nas atividades e por se
destacar em apresentações culturais.
104
“Nós gostamos do passeio...”
O grupo do Jardim I e II teve a oportunidade de visitar a exposição gênesis no Parque
da Pedra da Cebola, no mês de maio. Durante o período da pesquisa, ambos os grupos
sempre relembravam a visita.
Gus _ Nós gostamos do passeio, lá nós vimos tartaruga, passarinho, macaco, peixe, pingüim [ele se reporta ao passeio à exposição Gênesis ‘fotos de Sebastião Salgado’].Win _ Eu gostei do passeio, também.
Nessa visita tiveram a oportunidade de conhecer a exposição de fotos da região de
Galápagos; conheceram o habitat dos pingüins; baleias, tartarugas etc. Esse foi um
momento importante para o grupo, pois os alunos ampliaram o seu conhecimento sobre
vários animais e houve uma interlocução da cultura local com a global.
Fotos exposição Gênesis
105
Foto 7 - Crianças observando fotos de Sebastião Salgado
Foto 8 - Crianças conversando com o monitor
Foto 9 - Crianças na exposição
106
Foto 10 - Crianças fazendo perguntas
Ao serem perguntados pela professora, no final do ano, como avaliação, sobre o
passeio mais legal que fizeram no ano, as crianças responderam que foi o do Parque
da Pedra da Cebola.
Os diferentes modos de organização e utilização dos tempos e espaços dos CMEIs
devem proporcionar espaços que reconheçam as crianças como produtoras de cultura.
Nesse evento, a visita a uma exposição fotográfica parte de uma concepção de arte
como atividade humana que reflete e faz refletir sobre a vida a partir de elementos
estéticos.
“Tia , eles estão brincando de cheirar”
No final de uma manhã, os alunos Mat, Fab e Hig estavam brincando na sala de aula.
Os três pegam o giz-de-cera que se encontrava no armário ao alcance deles e
começam a brincar. Mat busca uma pequena caixa de madeira, chama Fab e
escondem-se ao lado de um armário com prateleiras. “Escondidos”, quebram todo o
giz-de-cera e começam a repartir entre eles, um pouco para cada um. Mat pega o giz-
de-cera em pedacinhos, coloca-os na mesa e, com as mãos, faz uma “carreirinha”.
107
Logo, pega um giz-de-cera inteiro coloca no nariz e faz o movimento de cheirar. As
outras crianças da sala estavam próximas em uma roda de conversas quando
observam:
Hig_ Tia , eles estão brincando de cheirar. Pes. _ Cheirar o quê? Lea responde_ Cheirar pó.Mat _ Não é, não. Não estamos cheirando, não.Hig _ Tá simPesq. _ O que é cheirar pó para vocês?Mat _ É separar de pouquinho em pouquinho, Assim, oh...[mostra com as mãos na mesa e cheira como se estivesse cheirando em linha reta uma ‘carreirinha de pó’].Pesq. _ E é legal usar drogas?Lea _ Não é! É usar drogas. Eles estão brincando de droga.Mat _ Não tô, não.
As outras crianças passam a opinar:
Lea _ É usar drogas, sim. Lá no morro tá cheio de bandido. Eles estão brincando de bandido. Isso não é legal, você morre!
Neste momento os meninos deixam a caixa em cima da mesa e vão para a porta de saída, pois os seus pais estão chegando para buscá-los (DIÁRIO DE CAMPO – maio/2006)
Nesse evento, observamos que, mediante as brincadeiras, as crianças reproduzem as
práticas sociais em que estão inseridas, mostrando, assim, suas formas de organização
entre os seus pares, o que acontece em seu entorno familiar e social. A experiência do
brincar cruza diferentes tempos e lugares, passados, presentes e futuros. A criança,
pelo fato de se situar em um contexto histórico e social, ou seja, em um ambiente
estruturado a partir de valores, significados, atividades e artefatos construídos e
partilhados pelos sujeitos que ali vivem, incorpora experiência social e cultural do
brincar por meio das relações que estabelece com os outro, adultos e crianças.
Dito isto, em nossa análise, Mat traz em sua brincadeira as marcas culturais do que ele
vivencia, representa aquilo que não é, mas que gostaria ser. Brincando, ele faz uso do
contexto social e cultural que vivencia, compartilha com os outros colegas, que, mesmo
ao brincar, denunciam o que eles estão fazendo. Observamos, em nossa pesquisa,
que, em algumas situações, quando o jogo de faz-de-conta trazia em sua
108
representação cenas de violência, as professoras preferiam dizer: “Menino, pára com
isso. Isso é coisa de vagabundo”. Ou: “Só podia ser ele, também é filho de quem”.
Compartilharemos, neste momento, com o autor Manuel Sarmento (2002), em seu
texto: Imaginário e culturas da infância, quando faz uma reflexão importante sobre a
imagem do jogo trazendo consigo o contexto de guerra para apresentar-nos que os
estudos das crianças em situação de guerra “[...] nos contam uma forma de conseguir
criar um mundo outro, nas condições da mais dura adversidade, por meio do jogo e da
ficção de uma existência onde em que o horror aparece transmudado em projeção
imaginária de uma realidade alternativa” (SARMENTO, 2002, p.1).
Trazemos essa reflexão para dizer que, nesse evento, mesmo as crianças brincando,
representando uma situação vivenciada hoje pelo tráfico de drogas, elas não perderam
a dimensão humana de brincar. É para isso que a reflexão de Sarmento (2002) chama-
nos a atenção.
A situação de Fab, Hig, Mat e Lea não é diferente. Mesmo nessas condições de
adversidade, eles (re)significam o brincar. A questão que nos é colocada em xeque é
que, como educadores, não podemos ignorar a infância e a condição em que essas
crianças estão nos falando de suas situações como seres humanos. Nesse momento,
precisava de uma intervenção, da mediação do educador. É um “estranhamento” com a
situação que precisamos perceber em nosso dia-a-dia.
“Eu apanhei isso em casa e é do meu irmão...”
De acordo com os combinados da professora do Pré com as crianças, ficou acordado
que, durante o ano, no dia de sexta-feira, elas poderiam levar um brinquedo de sua
casa para a escola.
Numa sexta-feira, as crianças levaram seus brinquedos para a escola e Luc chamou a
atenção da professora, pois levara um frasco plástico com algumas pedrinhas
109
envolvidas em papel alumínio. A experiência dessa professora possibilitou que ela
identificasse o que Luc levava para a escola. Ele compartilhou com os seus colegas,
mostrando e brincando com o que trouxera. Mas logo a professora verificou e
comprovou que havia de 24 a 25 pedras de crack dentro do frasco. A professora levou-
o para a sala do pedagogo e fez algumas perguntas. Acompanhemos o relato do
pedagogo sobre esse dia na turma do Pré, conforme o livro de ata da escola.
Nesta data a professora Reg [Pré A] percebeu que seu aluno Luc trouxera um frasco de plástico para a sala de aula. Ela questionou: ‘Luc, o que tem aí dentro desta latinha?’ Ele disse: ‘Eu apanhei isso em casa e é do meu irmão. A professora ao abrir o recipiente, foi constatado que eram 24 ou 25 pedras de crack’ (LIVRO DE OCORRÊNCIA - maio/2006).
Segundo a criança, as pedrinhas estavam embrulhadas parecendo papel de bala.
Algum tempo depois, a mãe de Luc. compareceu à escola para buscar o material, dizendo que ele pertence ao seu outro filho. O pedagogo e a professora orientaram para estar atenta e não deixar que o Luc. tenha acesso novamente a tais materiais, pois são tóxicos (LIVRO DE OCORRÊNCIA -maio/2006).
Por mais que Luc represente, mediante o brincar, cenas de seu cotidiano, ele não perde
a dimensão da ludicidade. Ao levar para a escola esses tipos de materiais, Luc também
questiona o conhecimento, que não tem em sua casa, pois esse material é manipulado
somente pelos adultos.
A questão que encontramos aqui é o “estranhamento” do professor que, ao perceber a
situação, deve problematizar com as crianças. Quando falamos de “estranhamento”,
nos referimos ao momento em que o professor tem a percepção do que está
acontecendo em seu contexto escolar. Luc, com o seu conhecimento cotidiano,
atravessa a escola e busca algumas respostas pela cultura escolar para as suas
indagações, curiosidades. É verdade que a criança cria situações inesperadas e, nesse
momento, quando o professor percebe, é a hora de intervir. Portanto questionamos:
estaria a escola atenta à inventividade das crianças? As crianças não são sujeitos
passivos. Elas são capazes de burlar algumas regras e normas dos adultos e criam
entre elas verdadeiros sistemas culturais de apreensão dos significados do mundo.
110
“Tá liberado, vocês podem ir...”
Mat, Fab, Luc e Ale estavam na sala de aula brincando de polícia e ladrão. Mat chama
os três meninos para se encostarem na parede para serem revistados. Ele representa a
polícia e as outras três crianças, os ladrões. Assim, diz: “Eu sou policia e vocês são os
ladrão [caminha com as mãos na cintura]”. Mat é uma criança muito pequena. Ele
freqüentava poucas vezes o CMEI. Chegou a ficar um mês sem ir à escola, pois a mãe
alegava que a “guerra do tráfico”16 a prejudicava em levar seu filho à escola.
Nesse jogo de faz-de-conta, a criança revista as outras como se fosse um policial e os
outros três ladrões. As crianças abrem os braços na parede. Fab. pega um pedaço de
EVA17 e bate nos colegas (como se fosse um chicote). Mat. pede que as crianças abram
os seus braços. Ele apalpa as crianças de cima para baixo, várias vezes. Quando
termina a revista, ele libera as crianças dizendo: “Tá liberado, vocês podem ir”.
O que leva uma criança de cinco anos a representar tal cena? Em muitas narrativas,
escutamos dos pais seu descontentamento com a violência local: “A gente nem pode
sair de noite no quintal, porque pode ter bala perdida. A polícia entra mesmo porta
adentro em nossas casas”.
Quando Fab pega o pedaço de EVA e bate em seus colegas, ele está representando o
que vive em seu dia-a-dia, pois sua irmã, portadora de necessidades educacionais
especiais, leva-o para a escola sempre com uma câmara de ar de bicicleta em suas
mãos batendo em Fab até a escola. Por meio da brincadeira, ele representa o que vive
na vida real ao golpear os outros colegas.
16 A “Guerra do tráfico”a que a mãe se refere é a condição em que essa comunidade vem vivenciando com o tráfico de drogas. A comunidade afirma ter uma guerra da parte baixa do morro com a parte mais alta pelo comando do espaço de venda das drogas. Em 2006, muitos foram os confrontos nos horários vespertinos e noturnos.17 Emborrachado utilizado para confecção de materiais pedagógicos, artesanatos e outros.
111
Certa vez, recebemos uma aluna do Jardim I aos prantos, pois não queria ficar na
escola, com medo do tiroteio.18 Quando, na comunidade local, há intervenção da polícia,
as crianças chegam no outro dia na escola transformadas, representando nas
brincadeiras cenas de muita violência que vivenciaram em seu mundo local.Nessas
brincadeiras, bastante agressivas, tapas na cabeça, esbarrões, socos e pontapés são
comuns, mas eles mantêm-se firmes, pois logo pensam: “Eu sou menino e não posso
chorar”. Algumas vezes as lágrimas aparecem em seu semblante mais não
esmorecem, continuam brincando.
No evento descrito acima, verificamos que, por parte dos adultos, há um olhar
naturalizado sobre essa forma como as crianças estão brincando. Nas brincadeiras,
elas vêm transportando o fantástico para o real e, na maioria das vezes, estão
invisibilizadas em diferentes espaços da escola. Em muitos momentos de observação,
não só na sala de aula, mas também no pátio, verificamos que as crianças brincavam e
representavam muitas cenas: de violência, de situações familiares, de intrigas, de
alegrias, de brincadeiras de roda, porém o olhar do adulto estava voltado para uma
conversa com o outro adulto, ora recortando papéis, montando atividades, preocupado
com o seu tempo de pátio, com o tempo para lanchar, o tempo de seu lanche,. Não
estavam atentos a uma observação com um olhar mais investigativo.
Verificamos que as crianças, em contrapartida, apropriam-se de elementos do mundo
do adulto, trazendo para o universo infantil outros significados, inventando suas
próprias brincadeiras e formas de brincar, recriando, no mundo da ordem do adulto,
outra ordem, porém, num tempo e espaço definido por elas, revelando, nas suas
interações, a existência de uma especificidade no modo de ser criança, defendida aqui
como produção cultural infantil, pois, como confirmam Sarmento e Pinto (1997, p. 22):
“As culturas infantis não nascem no universo simbólico exclusivo da infância, este
18 Esse tiroteio foi no início de 2005, em que um helicóptero sobrevoou o morro em que se localiza a escola no turno matutino. Muitos pais saíram correndo de suas casas e foram até a escola para buscar seus filhos. O medo, o assombro, o desespero estavam em seus semblantes. Pedimos para as crianças que ficassem na escola como um lugar de proteção naquele momento, mas os pais não deixaram. Percorreram ruas, casas, o bairro com seus filhos até chegar às suas casas, no meio do confronto.
112
universo não é fechado – pelo contrário, é, mais do que qualquer outro, extremamente
permeável – nem lhes é alheio a reflexibilidade social global”.
Em muitos momentos em nossa investigação, observamos que as crianças relatavam
sua experiência social vivida fora da escola e demonstravam com o corpo como esse
fenômeno estava presente em suas vidas. São cenas que nos chocam, mas o
imaginário infantil está presente, e é uma característica das formas específicas de
relação das crianças com o mundo.
“Você não é criança e não pode ter uma boneca”
Na turma de Maternal (crianças de três anos), as crianças estavam brincando nos
“cantinhos.19 Elas se organizavam em vários espaços utilizando vários brinquedos.
Algumas vezes brincavam com telefones sem fio, bonecas, maquiagem. Nesse grupo,
havia cantinhos da beleza, dos brinquedos, dos jogos, da leitura. Nesse dia, a
professora regente não estava na escola e quem estava com o grupo era a estagiária
da turma.
Um grupo de crianças se aproxima e começa a conversar comigo:
Raf _ Eu te conheço. Você me conhece?Pesq. _ Sim, eu te conheço [No ano anterior, fui professora desta turma num período de cinco meses].Raf _ Minha mãe vai comprar uma boneca que fala assim: Você quer passear comigo?Gui _ Minha mãe vai comprar um carrinho.Jea _Meu pai vai trabalhar e vai comprar uma sandália do Hotwills.Raf _ Minha mãe vai comprar uma Barbie.Déb _ Eu tenho uma BarbiePesq. _ Eu também tenho uma Barbie.Raf _ Mentira, você não é criança e não pode ter boneca.Pesq. _ Eu posso sim, por que não?Raf _ Porque você é adulto e adulto não tem boneca. Você está grávida. Fica em pé para eu ver o seu tamanho?Pesq. _ [fica de pé].Raf _ O que você tem é um neném na barriga. Você é adulto.
19 Os cantinhos são bastante usados pelos educadores como estratégia pedagógica de organização da sala.
113
Esse grupo chama-nos a atenção, pois eram crianças que sempre estavam brincando
nos cantinhos e constatamos que era a sala com mais quantidade de brinquedos da
escola, o que possibilitava o desenvolvimento de várias linguagens.
Em nossa análise, primeiramente, atentamos para o fato da disposição da sala.
Percebemos que a professora separa jogos de brinquedos (cantinhos dos jogos e
cantinho dos brinquedos), pois imagina que jogos são para fins didático pedagógicos e
brinquedos são uma produção cultural reproduzida pela sociedade e podem ser
manuseados pelo grupo em um momento determinado.
O segundo ponto de nossa análise é o fato de as brincadeiras infantis produzirem
modos culturais relacionados com a cultura contemporânea de um mundo globalizado,
vista sobre a lógica do consumo.
A autora Ângela Meyer Borba (2005,) no texto intitulado: Infância e cultura nos tempos
contemporâneos: um contexto de múltiplas relações, apresenta as relações entre
infância e cultura contemporânea. Busca traçar um panorama dos principais aspectos
que configuram a penetração da cultura do consumo e da cultura de massa no
cotidiano das crianças e procura apontar as mediações existentes nessa relação e a
potencialidade da criança e das culturas infantis.
Para Borba (2005), há uma tendência para a concentração de poder nas mãos de
poucas e, cada vez mais corporações maiores e a formação de cartéis funcionam como
blocos de poder dominante, que têm total liberdade para produzir qualquer tipo de
cultura infantil lucrativa. E tal contexto passou a exigir a incorporação de um novo
segmento no mercado para a sua publicidade: as crianças.
A criança que brinca de Barbie, ou melhor, que possui os diferentes tipos/versões da Barbie, que tem os bonecos ou os cards Pokémon, que tem patinete, que tem os bonecos Power Ranger, que lê Harry Potter, que assistiu ao mais último filme da Disney, enfim, que tem as mais últimas novidades do mercado é uma boa consumidora, ou melhor, é ‘feliz’. É possível ser feliz nessa busca desenfreada pelas novidades e na rápida velocidade com que os objetos de consumo passam a ser descartados e perdem seu valor? Que
114
interações as crianças estabelecem com esses objetos de consumo e os meios de comunicação de massa? (BORBA, 2005, p.3).
O que importa é estar na “moda” ou ser identificado pelos últimos bens de consumo
impostos pela mídia. Ser equivale a ter. As pessoas são valorizadas pelo que possuem,
são identificadas pelos símbolos da sociedade.
Com essas considerações, em nosso evento, as crianças trazem as marcas da cultura
infantil lucrativa, pois, quando falam o que desejam ganhar no Natal, costumam citar
algo que já foi proposto por algum outro adulto e que, naquele momento, a mídia traz
com grande influência, levando as crianças a reproduzem esses significados: “Eu quero
um carrinho, uma boneca Barbie, uma sandália Hotwells”.
Desse modo, na sala de aula, representavam e verbalizavam a influência do marketing,
um marketing marcado pela competição; quem tem e que não tem; “Eu posso ter e
você não pode ter”(RAF, 3 anos).
Assim,
[...] as noções tradicionais de infância como um tempo de inocência e de dependência do adulto estão sendo transformadas pelas mudanças nas condições de existência das crianças e de suas famílias. Hoje, as crianças são representadas não somente como consumidoras, mas também deixaram de ser inocentes, [...], pois passaram a consumir tudo aquilo que antes era reservado ao mundo adulto, como assuntos relacionados com sexo e violência (BORBA, 2005, p. 5).
Conforme dito, a infância é plural e atualmente existe um profundo processo de
transformação, a partir de múltiplas representações sociais cruzando diferentes
espaços e tempos.
Contudo, é importante levar em consideração que a criança, tal como a concebemos,
não é uma receptora passiva dos produtos culturais, é alguém capaz de (re)significar
pelo entrecruzamento de culturas e de significações construídas nas relações com os
seus pares.
115
Eu chorei muito ontem...
Um dia, após a festa de encerramento do Pré, um grupo de crianças estava
conversando com a professora sobre a festa. Relembravam o que tinha para comer,
beber, o que cantaram, quem veio à festa e começaram a verbalizar sobre o que mais
gostaram de fazer na escola durante o tempo em que estiveram por lá. Acompanhemos
uma conversa da professora com as crianças.
Pro _O que vocês acharam da festa ontem?Ale _Legal, bonita e gostosa.Prof _ O que vocês mais gostaram de fazer na escola?Joa_ Gosto da escola, da tia, de brincar, brincar com o baú que é cheio de brinquedos.Vin_ Andar de bicicleta, brincar.Lor _ Brincar de panelinha
Ale _Eu chorei muito ontem, porque eu gosto de vocês.Eu não quero ir para o Caic.Prof _ Por quê? Ale _Porque lá tem ovadaAle _ Se fosse no OE eu ia, por que tem ovada só de manhã e eu vou estudar de tarde.Ale _ Eu gosto dessa tia, porque ela perguntas as coisas pra gente.[ Ale está fazendo referência a mim].Prof _ É uma pena que eu conversei pouco com vocês. Perguntei pouco sobre vocês, neste ano (DIÁRIO DE CAMPO - dezembro/2006).
O sentimento de angústia é revelado por nossas crianças, ao se referirem à transição
para o Ensino Fundamental. Em nosso estudo, tivemos a oportunidade de acompanhar
a movimentação das crianças para as escolas de Ensino Fundamental.
Antecipadamente, é feito um questionário e entregue à família perguntando para qual
escola seus filhos vão no próximo ano. No questionário, é apresentada a opção de três
escolas. As famílias marcam a escola e o turno e depois a escola organiza os grupos
de escola e faz um sorteio encaminhando as crianças conforme a vaga disponível na
EMEF.
Observamos que, no mês de novembro e dezembro, muitas crianças ficam angustiadas
com o processo de matrícula na EMEF. Escutamos as crianças dizendo que tinham
sonhos com as escolas para as quais iriam no ano seguinte.
116
Constatamos que, no ano de 2004, nessa região, muitas crianças não tinham escolas a
serem encaminhadas, o que levou o Sistema Municipal de Educação a comprar uma
nova escola para atender à demanda em 2005. No ano desta pesquisa, a situação já
estava mais bem organizada.
As crianças, em suas narrativas, trazem o que é mais significativo do tempo em que
estiveram no CMEI. Quando Ale afirma que chorou muito ontem, ele estava se referindo
à festa de despedida do Pré, que foi o momento em que ele tomou consciência do que
estava acontecendo.
O que nos chama a atenção nesse episódio é o relato da professora ao dizer que
poderia ter conversado mais com eles, ouvir mais o que eles têm a dizer sobre a
escola, sua vida, sua infância.
O trabalho desse grupo é marcado pelas conversas dessa professora que entrou no
mês de junho e procurou desenvolver parcerias com as crianças em várias atividades:
apresentações culturais, confecção de painéis, organização da sala. Ela sempre
contava com a participação das crianças. Na disposição da sala, havia materiais ao
alcance delas: lápis preto, borrachas, apontadores, lápis de cor; canetinhas, folhas
brancas, brinquedos, fantoches, jogos de encaixe, cadernos, livros de história etc.
Esse grupo contava com 22 crianças. Havia na turma um aluno autista, Hig, muito
querido pelos colegas. Quando Hig errava de sala, sempre ia um colega para buscá-lo
a pedido da professora. Havia uma preocupação do grupo com ele. Para desenvolver o
trabalho de sala, a professora contava com uma estagiária da Educação Especial.
As crianças têm capacidade de incluir umas as outras sem fazer distinções de gênero,
raça, etnia. Existem momentos em que não querem a participação daqueles que
destoam do grupo, mas fazem reflexões que permitem a inclusão do outro.
117
Essa é uma R-15...
Sempre após a atividade, a turma de Maternal brinca livremente nos diversos espaços
da sala de aula. A professora diz: “Quem terminou a atividade, agora pode brincar”.
Elas começam a se organizar, reúnem-se em grupos, as meninas vão em direção às
bonecas, aos brinquedos de um salão de beleza; os meninos em direção aos legos e
carrinhos. Após alguns minutos, começam a se organizar entre seus pares
representando situações de seu dia-a-dia.
Nesse dia, Gui estava brincando solitariamente com um jogo de lego e uma maquete de
arquitetura no chão. Bastante nervoso, ele se aproxima da professora e diz:
Gui _ Meu pai falou que vai quebrar o Luc [Luc é um colega de fora da escola. Foi o menino que o empurrou e levara a quebrar o dedo].Gui _Vou colocar isso aqui [Gui faz com o lego vários modelos de armas e coloca-as no corpo por dentro da bermuda].
A professora aproveita esse momento e pergunta para Gui sobre o que ele está
fazendo com os legos e madeiras no corpo por dentro da bermuda. Gui responde:
Gui _ Meu pai tem um monte dessas aqui [aponta para o brinquedo]. Ele guarda na casa da mãe dele. Lá tem um monte arma, tem ‘R-15’.Essa é uma ‘R-15’.
Ele continua caminhando pela sala com os legos e as madeiras na cintura. Neste
momento, a professora pede que ele guarde e brinque de outra coisa. Ele traz um
conhecimento fora do contexto escolar e espera por uma resposta dos adultos em
dizer-lhe o que é uma arma, para que serve, e mais, nesse momento, ele representa a
situação da qual ele vem se apropriando, fazendo com que seja natural a presença de
armas em seu convívio, pois tenta nomear os tipos de armamento de que escuta falar,
podendo até ter contato com essas armas.
Nas cenas de brincadeiras, sempre perpassam a condição social, a representação do
meio em que estão inseridas as nossas crianças. Muitas situações são duras e difíceis
118
de serem mediadas pela professora, pela escola, por conta da sua complexidade.
Quantas vezes observamos cenas em que as crianças montavam os seus legos, blocos
de madeira e saíam correndo brincando de pega-pega para matar o bandido ou até
mesmo a polícia.
Em nosso estudo, essas cenas surgiam em diferentes espaços da escola, no pátio, nas
rampas, na sala, nos banheiros. Certa vez uma professora da turma do Jardim II, em
uma conversa no refeitório, relatou sobre as representações das crianças dentro de sua
sala de aula e dizia: “Eu não quero naturalizar o meu olhar, eu não posso achar que
isso tudo que elas representam é natural. Com o passar dos anos, dentro da educação,
eu não posso me conformar com isso” (PROFESSORA - Jardim II).
Na voz dessa professora, ela apresenta elementos importantes, pois não se
conformava com a situação que muitas vezes é banalizada por vários educadores
dentro de nossas escolas. Percebemos a sensibilidade de um olhar mais crítico, no
sentido de não cair na mesmice, na rotinização, na pedagogização.
Nesse sentido, quando Gui traz esse conhecimento, ele o faz porque presencia essa
atividade e, na busca de compreensão desse mundo cultural, constrói atividades
lúdicas que lhe permitem inserir-se nessa esfera, portanto, a fim de compreendê-la.
Nessa perspectiva, a brincadeira é uma atividade cultural, podendo adquirir diferentes
formas no interior de diferentes culturas, pois, nela, a criança reconstitui as relações
sociais que se desenvolvem entre os adultos. A necessidade de viver/compreender as
relações sociais estabelecidas no mundo dos adultos produz a brincadeira. Cabe,
portanto, ao professor mediar essa situação, não se esquecendo de que precisa
estabelecer um diálogo com as crianças, o que seria “tensionar”, estabelecer um
conflito com o intuito de ampliar o conhecimento.
119
Tia, Gui “fez dedo”...
No pátio interno da escola, as crianças brincavam no carrossel, nas bicicletas, no
escorregador, na casinha. Chegamos no horário do pátio do Maternal. Normalmente
esse horário é revezado com outro professor, pois é momento de lanche dos
professores. É prática da escola colocar dois maternais num mesmo espaço para cada
uma das professoras lanchar. Nesse dia, Gui está chorando no pátio, pois ele não
queria calçar os seus sapatos. Com a nossa presença, as crianças se aproximam e
dizem:
Fra _ A tia colocou ele de castigo por que não queria por o sapato...Prof _ Gui levanta, lava o rosto e volta para o mesmo lugar e pára de chorar.[ele continua chorando com os sapatos nas mãos].Gui _ Deixa seus sapatos, se levanta vai em direção ao tanque. Lava seu rosto e volta para o mesmo lugar.Fra – Tia, Gui fez dedo.Prof _ Menin,o isso é coisa de vagabundo, não pode fazer isso (DIÁRIO DE CAMPO - setembro/2006).
A palavra castigo parece bem incorporada por essas crianças. Elas sabem que, quando
diferentes adultos dentro da escola falam: “Vai sentar aqui um pouquinho para pensar
no que você está fazendo”, associam isso a um castigo.
Por não ter direito à fala, Gui utiliza-se de outra linguagem, a gestual, e é denunciado
pelo seu amigo. É comum as crianças utilizarem gestos, quanto não têm o direito à fala.
Nesse caso, Gui faz uso disso mesmo “obedecendo” ao que foi proposto pela
professora. Não sabemos se Fra também provocou essa situação, fazendo com que
externalizasse dessa forma. Essa relação de poder é presente no cotidiano da
Educação Infantil.
Certa vez o aluno Fab, do Jardim II estava batendo nas crianças, pois elas não faziam
“os seus desejos”, tais como: deixar a bola somente para ele, pintar somente com uma
canetinha. Qualquer novidade que fosse levada à sala de aula, ele queria ser o primeiro
e não deixava as outras crianças participar.
120
Com o passar dos dias, as crianças sempre choravam, brigavam com ele, mas Fab
sempre controlou bem a situação, fazendo com que ele conseguisse o que queria.
Certo dia, na roda de conversas, as crianças começaram a dizer: “Né, tia, que, se Fab
continuar assim, ele não vai para o passeio? É mesmo, ele é muito chato e bate em
todo mundo”. Mas dentro do grupo uma criança disse: “Né, se ele ficar quietinho, ele vai
no passeio”. Passaram-se alguns dias, Fab continuava batendo, a conversa voltou ao
seu ponto de discussão: Fab irá ou não ao passeio? A professora aproveita esse
momento de conflito e diz: “Você querem que Fab vá ao passeio?”. Alguns disseram
que sim outros disseram que não. Mas um aluno levanta a seguinte proposição: “Acho
que ele pode, sim, quem sabe ele indo, ele fica mais calmo”. As crianças continuaram a
discussão e decidiram: “Tia, então ele pode ir, o passeio vai ser muito legal”. A
professora expôs Fab, determinando o que ele deveria fazer, e ao pedir as crianças
para definirem, ela quer ser democrática ao ouvir a opinião dos colegas, mas o seu
posicionamento já estava tomado. No dia do passeio, a mãe não deixou Fab ir à escola
e alegou que ele era muito agitado para sair. Ele foi até o ônibus (nesse dia não estava
conosco na escola, estava pelas ruas com a irmã correndo de um lado para o outro),
viu o grupo saindo para o passeio, saiu correndo e continuou pelas ruas.
Nessas duas situações, contrapõem-se as vozes dos adultos e as das crianças num
mesmo tema: a permissão, a relação de poder, a autoridade. Dos adultos em não
permitirem que as crianças fossem capazes de se posicionar; e das crianças ao
incluírem o colega no grupo, mesmo com a possibilidade de a professora dizer que ele
não iria. Mas mediaram à situação, levaram para o debate e concluíram que ele
pertencia a esse grupo e deveria participar dele. Quantas vezes falamos de inclusão e
esquecemos que a criança é que precisa ser incluída. A própria família precisa ser
chamada para esse debate. Nesse episódio, o grupo espera a presença dele, mas a
mãe não permitiu.
Araújo (2005, p.73) nos diz:
[...] sofremos as mesmas conseqüências de uma história que produziu a criança como mera abstração; desqualificada, portanto, nas relações sociais mais amplas. No histórico processo de institucionalização da criança,
121
juntamente com os asilos, rodas de expostos e as prisões, a escola serviu como exemplo modelar. [...]Se a versão pós-moderna de escola já conseguiu superar grande parte do pesado legado de uma escola autoritária e excludente, outras formas de exclusão ainda adquirem força no imaginário escolar.
E ainda nos questiona: uma educação inclusiva para a infância ou uma educação que
inclua a criança? A autora nos diz que a naturalização desses dois modos de pensar a
infância não nos surpreenderia em nada, já que a infância é uma categoria há muito
tempo presente no universo escolar. Porém, ao questionarmos como a infância foi
incluída ou o quanto/quando e como ela é incluída no contexto escolar, a imagem antes
naturalizada começa a ser interpelada por outras significações.
Quando Araújo (2005, p.73) traz essa questão, coloca em xeque que, se infância e
educação inclusiva podem nos remeter a termos diferenciados sem nenhuma relação
direta pelo modo como se apresentam, “[...] por uma educação que inclua a infância,
supõe, no mínimo, duas tensões reflexivas: uma que a infância nunca foi incluída, de
fato, na educação; a outra é que se faz necessário construir uma educação inclusiva
para a infância, a partir da criança e com a criança”.
Essa perspectiva última é a que as crianças nos apresentam, levando-nos a mudar o
nosso foco de análise para uma educação que deseja ser inclusiva e, sobretudo,
reconhecê-las como sujeito de direitos, não apenas pela sua incompletude ou falta de
linguagem.
Brincar pra ser feliz
Win é um aluno que se destaca em suas narrativas no grupo do Pré. Ele tem costume
de ler em casa com auxílio de sua mãe. Gosta de recitar poesias, faz considerações
interessantes no grupo e sempre fala da dimensão do brincar dentro da escola e na
vida. Em uma de nossas observações, as crianças estavam conversando sobre suas
férias e aproveitaram e falaram sobre o que gostavam de brincar. Win faz algumas
considerações:
Win _ Eu gosto de brincar com os irmãos, amigos, primos. É ser feliz. Brincar pra ser feliz!
122
Vit _ Eu gosto de pular corda.Wil _ Eu de montar.Pes _Vocês acham que somente as crianças podem brincar?Vit _ Não. O meu pai brinca comigo.Edi _ Meu pai também.Wil _ Eu brinco debaixo da mesa.Win _Minha mãe brinca comigo.Vit _ A tia brinca com a gente.Win_ Ela brinca de casinha, de dançar, de música, de igrejinha, pula-corda.Prof _ No pátio agora nós temos brinquedos.Vit _ É tem corda, maquete de madeira, raquete.Lu _ Não tem bola.
Percebemos que, na rotina da escola, o espaço do pátio é muito desejado pelas
crianças. Por ser o lugar mais amplo da escola, as crianças têm oportunidade de
brincar, correr, pular corda. Observamos que as professora das turmas do Pré têm o
costume de brincar com as crianças nos seus momentos de pátio. Pulam corda,
brincam de dançar, morto-vivo etc. Nas narrativas das crianças, essa prática aparece.
Nesse momento, os professores são mediadores no processo de ensino-aprendizagem.
As crianças brincam, os adultos brincam e as gerações se encontram. Em nossas
observações, percebemos o quanto esse espaço é desejado por todos, tanto crianças,
quanto os adultos, por diversos motivos. Em muitas situações, brincamos também com
as crianças, pois, se o brincar é uma atividade humana, aqui vemos as suas
manifestações culturais.
123
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A trajetória de uma pesquisa é um caminho cheio de mistérios, incógnitas, desejos,
medos, anseios e descobertas, muitas vezes solitariamente.
Durante o período de observação, coletamos um volume imenso de dados. A pesquisa
e sua análise é um momento solitário em que nos enredamos em meio a livros,
reflexões, eventos. No momento da análise, tentamos, freqüentemente, organizar o
disperso que se amontoa na enormidade de dados coletados. A busca por um caminho
mais proveitoso é também um momento importante na análise.
Ao rememorarmos os passos de um processo investigativo, na tentativa de
encontrarmos respostas para o problema formulado e, assim, alcançarmos os objetivos
propostos, voltamos ao procedimento oficial, caracterizado pelo fato de investigarmos
em que medida a concepção de natureza infantil vem sendo (re)produzida no cotidiano
da Educação Infantil tendo em vista conhecer os modos como as crianças manifestam
suas culturas no contexto da escola.
Esta construção contemplou-nos inicialmente com uma apresentação sobre a
concepção de infância na história e um diálogo sobre a natureza infantil; levando-nos
ao debate sobre o devir-criança, a temporalidade.
Dito isso, logo após essas reflexões defendemos que a criança é um sujeito histórico,
social, produtor de/na cultura e que é alguém capaz de apropriar-se da cultura mediante
a linguagem e a ludicidade.
Nas narrativas das crianças, em nossa estratégia metodológica, observamos que a
infância é uma categoria social, as crianças demonstraram uma organização própria em
seus afazeres na escola; debatiam e questionavam as ações “pedagogizantes” do
professor, o que evidenciou que elas têm modos de governos próprios, que conseguem
124
viver com o processo de naturalização dos adultos. Em muitos momentos, vimos essa
criança subvertendo a ordem, criando e questionando a visão adultocêntrica.
Destacamos, ainda, que, nas narrativas das crianças, elas mostram o quanto têm a
contribuir com o nosso trabalho em sala de aula. A criança dá sentido ao mundo em
que vive fazendo diferentes leituras das realidades sociais em que estão inseridas. É
alguém que, no decorrer da vida, “[...] não só tem a possibilidade de aprender como
também de contribuir para a constituição de um novo momento histórico social, feito da
diversidade cultural e na singularidade dos sujeitos” (MÜLLER, REDIN, 2007, p. 17).
Já nas narrativas dos pais e dos profissionais da escola, percebemos que as escolas
ainda são concebidas para disciplinar as crianças, para que aprendam apenas a ler e
escrever, a guardar seus brinquedos e materiais, com um tempo marcado
cronologicamente, como um currículo prescrito linearmente.
Ainda é difícil para o adulto perceber que a criança possuí sensibilidade, que é capaz
de realizar coisas, de falar sobre seus desejos e anseios, de ver a infância como uma
categoria intergeracional, em que a criança se relaciona com o adulto (re)significando
suas brincadeiras e sua condição de produzir cultura.
O que ainda persiste nas escolas é um olhar naturalizado quanto às práticas das
crianças no universo escolar, resultando em uma negação do seu direito à fala, à
manifestação de sua cultura e de sua história nos diferentes espaços e tempos
escolares.
Desse modo, baseados em uma concepção de infância em vias de desenvolvimento, os
adultos não reconhecem a criança como alguém capaz de se desenvolver no/com o
mundo, mediada pela linguagem, pela atividade, pelos signos e pelos outros sujeitos.
Assim, nas práticas pedagógicas, na maioria das vezes, ainda persiste na Educação
Infantil uma obsessão por atividades e desenvolvimento de projetos voltados para o
125
olhar do adulto e ainda há poucos momentos de uma escuta mais sensível a esse aluno
com possibilidades e dificuldades a serem trilhadas.
Observamos que as relações de autoritarismo presentes nas relações pedagógicas não
vêm permitindo que a criança construa o seu próprio universo infantil, estabelecendo a
negação do seu direito à palavra. “Esta imagem dominante da infância remete as
crianças para um estatuto pré-social: as crianças são “invisíveis” porque não são
consideradas como seres sociais de pleno direito” (SARMENTO, 2000, p.148).
Quando falamos em (des)naturalização da criança, é porque acreditamos que é uma
construção social, e afirmamos que, mesmo com inúmeras linguagens expressas em
nosso cotidiano, precisamos (re)significar a temática infância, valorizando suas culturas
infantis e reconhecendo-as como sujeitos de direitos. Acreditamos, assim, ser o nosso
maior desafio como pesquisadoras/es, pois, anunciando as vozes infantis, anunciamos
seus modos de vida que são próprios, desenraizamos posicionamentos teóricos e
metodológicos presentificados no cotidiano da Educação Infantil.
Portanto, o nosso trabalho pedagógico deve fortalecer a experiência da criança como
sujeito histórico e produtor de cultura em todos os tempos e espaços da instituição e
não ser pensado somente para elas, mas a partir delas e com elas. Ouvi-las é uma
premissa importante nesse contexto atual no qual estamos inseridos.
Nessa direção, reafirmamos que a noção de infância não é categoria natural, mas
profundamente histórica e cultural, que a produção de conhecimento acerca da infância
está ligada ao lugar que a criança ocupa em relação ao outro e cabe, também, à
Educação Infantil refletir sobre a sua função social e cultural, reconhecendo a criança
como esse ser social, trazendo para o ambiente escolar a compreensão de infância e
de seu desenvolvimento com possibilidades de ação, tanto para a escola quanto para a
criança.
Conceber a criança como sujeito de direitos é reconhecê-la como artífice na construção de um mundo compartilhado no qual sua ação sua palavra, sua
126
cultura, sua história são respeitadas e ouvidas como síntese de uma experiência social, compartilhada, atravessada pela condição de classe, etnia, gênero, etc. (ARAÚJO, 2005, p. 69).
Assim, construir uma educação a partir infância da/com a criança é um desafio,
conforme nossa análise, para garantirmos uma escola inclusiva. Utilizaremos aqui o
termo inclusão para pensarmos além, considerando que, a princípio, esta criança deve
ser incluída não apenas fisicamente na escola, no sentido de seu acesso e
permanência, mas, sobretudo, é preciso garantir a legitimidade dessa inclusão que se
dá a partir de reconhecimento dela como sujeito de direitos e não a partir de suas faltas,
de suas incompletudes. Pensar numa escola que inclua a infância e a criança como
sujeito de direitos, com vez e voz própria, esse, sim, é um dos nossos maiores desafios.
Portanto, proporcionar outras vivências é uma condição importante, uma vez que
reconhecemos as crianças como partícipes da história e da cultura.
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140
142
APÊNDICE A - CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIMENTO I
Em cumprimento ao protocolo de pesquisa, apresento aos profissionais (sujeitos da
pesquisa) do --------------------------------------------------------- da unidade da Rede Municipal
de Ensino de Vitória-ES, o projeto de pesquisa “(DES) NATURALIZANDO A INFÂNCIA
NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL”, de autoria da mestranda Sumika Soares
de Freitas Hernandez- Piloto, como recomendação para a realização do Mestrado em
Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), da Universidade
Federal do Espírito Santo – UFES.
O objetivo da pesquisa é investigar a concepção de infância e criança presente no
cotidiano da Educação Infantil, entre crianças de seis meses a seis anos e adultos a
partir de situações enunciativas que ocorrem. Como instrumentos de pesquisa, serão
utilizados observação participante em diferentes espaços e tempos com gravações em
vídeo, fotografias e registros em diário de campo. Solicita-se, ainda, às famílias
consentimento para a participação das crianças na pesquisa.
Para garantir o tratamento ético dos dados, o nome do CMEI será mantido em sigilo e
serão utilizadas apenas as iniciais dos nomes das crianças. As filmagens serão
efetuadas sem comprometimento da ação educativa do professor e dos alunos,
preservando, sobretudo, a integridade do grupo. Por isso, solicitamos autorização para
que a mestranda Sumika Soares de Freitas Hernandez-Piloto possa desenvolver seu
trabalho acadêmico de acordo com os objetivos propostos, no período de dezembro de
2006 a novembro de 2007.
Na expectativa de uma resposta o mais breve possível,
Atenciosamente
Drª Vânia Carvalho de Araújo
143
APÊNDICE B - CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIMENTO II
Em cumprimento ao protocolo de pesquisa, apresento aos pais/responsáveis das
crianças/sujeitos da turma ......... do ......................................, o projeto de pesquisa
“(DES) NATURALIZANDO A CRIANÇA NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL”,
de autoria da mestranda Sumika Soares de Freitas Hernandez-Piloto, como
recomendação para a realização do Mestrado em Educação do Programa de Pós-
Graduação em Educação (PPGE), da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
O objetivo da pesquisa é investigar a concepção de infância e criança que permeia o
cotidiano da Educação Infantil, com crianças de seis meses a seis anos e profissionais
apontando as situações enunciativas que ocorrem. Como instrumentos de pesquisa,
serão utilizados observação participante em sala de aula com gravações em vídeo e
registros em diário de campo.
Para garantir o tratamento ético dos dados, o nome da escola será mantido em sigilo,
serão utilizadas apenas as iniciais dos nomes das crianças e as filmagens serão
efetuadas sem comprometimento da ação educativa do professor e dos alunos,
preservando, sobretudo, a integridade do grupo. Os dados/resultados da pesquisa
serão apresentados na dissertação e poderão ser utilizados para publicação. Por isso,
solicitamos sua autorização, por meio da assinatura deste termo de consentimento.
Eu,________________________________________________________,responsável
pelo aluno (a) ____________________________________________, do ..........
autorizo sua participação no projeto de pesquisa “ (DES)NATURALIZANDO A
CRIANÇA NO COTIDIANO NA EDUCAÇÃO” de autoria da mestranda Sumika Soares
de Freitas Hernandez-Piloto- PPGE/UFES, concordando com os procedimentos acima
apresentados.
Assinatura: ________________________________________RG:_____________
144
APÊNDICE C - ROTEIRO DO FORMULÁRIO PARA CARACTERIZAÇÃO DA ESCOLA
Instrumento de pesquisa a ser utilizado para coletar informações destinadas à escola-
campo.
1. Nome da escola:__________________________________________________
2. Histórico:____________________________________________________________
3. Endereço:_______________________________________________________
4. Dados da comunidade:_____________________________________________
5. Bairros de origem da clientela:
6. Aspecto físico:
a) Número de salas de aula: ___________________________________________
b) Condições das salas de aula: ________________________________________
c) Possui biblioteca?____________ Condições de funcionamento:_____________
d) Possui sala ambiente? _______________ Quais? _______________________
________________________________________________________________
e) Possui sala de professores, sala de direção, coordenação pedagógica secretaria?
________________________________________________________
f) Possui refeitório? __________________________________________________
a) Possui área livre? Parquinho? Como são utilizados? _____________________
7. Organização das turmas
a) Média de alunos por turma:__________________________________________
b) Número de alunos por turno: Matutino:____________ Vespertino:___________
c) Número de turmas por turno: Matutino:____________ Vespertino:___________
d) Organização das turmas: Matutino Vespertino
0 a 2 anos: _______ _________
3 anos: _______ _________
4 anos: _______ _________
5 anos: _______ _________
145
6 anos: _______ _________
8. Recursos humanos
a) Número de professores por turno: Matutino:__________ Vespertino:_________
b) Composição do corpo técnico-administrativo: ___________________________
_______________________________________________________________
c) Estagiários:___________________________________Quantos?____________
d) Faxineiras e merendeiras: __________________________________________
e) Pessoal de apoio: ________________________________________________
f) Professores dinamizadores:_________________________________________
9. Recursos materiais
a) Tipo de material pedagógico existente na escola: ________________________
__________________________________________________________________
_________________________________________________________________
b) Recursos audiovisuais: ____________________________________________
__________________________________________________________________
10.O tempo e o espaço escolar:
a) A chegada das crianças na escola: ___________________________________
__________________________________________________________________
__________________________________________________________________
b) O recreio: _______________________________________________________
__________________________________________________________________
c) O momento da saída: ______________________________________________
__________________________________________________________________
d) Outras atividades: _________________________________________________
__________________________________________________________________
e) Eventos: ________________________________________________________
_________________________________________________________________
146
APÊNDICE D - FOLHA DO DIÁRIO DE CAMPO
O diário de campo será utilizado para registro das observações realizadas em sala de
aula.
Escola: _________________________________________________________
Data: __________________________________________________________
Período de observação (horário): ____________________________________
Turma:_________________________________________________________
1. Observações: