desligue o projetor e espie pelo olho mágico · otÁvio (desligando o chuveiro) – que se alguém...

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Desligue o projetor e espie pelo olho mágico Texto de Hilton Have

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Desligue o

projetor e

espie pelo olho

mágico Texto de Hilton Have

PERSONAGENS

OTÁVIO – Estudante de Direito, idade entre 24 e 26 anos, com gestos

suaves e femininos, veste-se não muito discretamente.

ARMANDO – Estudante de Comunicações, usa barbas longas, idade

entre 25 e 27 anos, discreto no vestir-se, bastante comedido

e recatado, ficando sempre mais à vontade quando só ou na

presença de Otávio.

SUZANA – Prostituta vinda do interior do Paraná, cujo ideal é ser atriz,

idade entre 23 e 27 anos, veste-se de maneira indiscreta

porque gosta, usando roupas comuns apenas na presença

do pai ou quando lhe são impostas. De caráter duvidoso,

mas realista, está sempre pronta a revidar qualquer

argumento ou diálogo que não seja do seu agrado.

SEVERINO – Pai de Suzana, de aparência rude, reside no interior do

Paraná, preserva a moral da família, embora brincalhão e

simplório.

MARGÔ – Ex-atriz, mãe de Armando, veste-se sempre com muito mau

gosto e exagero. Veio recentemente do interior de

Pernambuco para morar no Rio de Janeiro. Seu sonho é

poder um dia voltar a ser atriz.

VANESSA – Irmã de Otávio, noviça de uma Irmandade, esconde um

passado que gostaria de esquecer. Aproximadamente 20

anos.

FERNANDO – Irmão de Armando, estudante de Comunicações, muito

extrovertido, de aproximadamente 20 anos, alegre e

brincalhão.

CENÁRIO

Apartamento comum, com certo conforto, mas não luxuoso,

contendo: uma pequena biblioteca, uma sala de visitas e de jantar

conjugadas, com a porta de entrada dando para esta sala, uma

janela com venezianas, uma cozinha pequena e duas portas

subentendendo-se que uma delas dará para o quarto e a outra para

o banheiro. A distribuição dos móveis e objetos de cada

compartimento ficará a critério do cenógrafo e da direção do

espetáculo, obedecendo sempre às necessidades do texto.

PRIMEIRO ATO

Pano abre. Entra Otávio.

OTÁVIO (Entrando com alguns livros debaixo do braço e alguns

cadernos na mão, coloca-os em uma estante próxima.

Quando passa por uma janela, que está aberta ouve

xingos, para imediatamente diante da janela aberta) – O

quê?... Ah! Vai você... Vai cuidar do seu feijão..., safadona!

(Fecha rapidamente a janela). Essa é boa!... (Vai em direção

ao banheiro, arrepende-se e para). Espera aí..., isso não

pode ficar assim. (Volta, abre a janela e grita). Bicha é a puta

que te pariu... É isso mesmo... Ah!... Vá... Vá... Vá... Vá: suas

piranhonas sem-vergonha... (Toma fôlego). Sapatão! (Fecha

imediatamente a janela). Agora sim, estou vingado. (Vai para

o banheiro, fecha a porta atrás de si e começa a cantar

uma música qualquer, de preferência antiga. Ouve-se o

barulho do chuveiro. Continua cantando). Nossa! Que água

gelada! No dia em que esse chuveiro esquentar eu viro Liza

Minelli.

ARMANDO (Entra com alguns livros e cadernos debaixo do braço,

um fichário na mão e os coloca na mesma estante. Está

vestindo paletó e gravata. Percebe os pertences de Otávio

na estante, olha para o banheiro, ouve o barulho do

chuveiro e Otávio cantando. Vai em direção ao banheiro.

Otávio continua cantando. Armando batendo na porta do

banheiro) – Oi, Tatá... Tudo bom?

OTÁVIO (Parando de cantar) – Armando?... Ué?... Você já chegou?

ARMANDO – Não: eu ainda estou na faculdade.

OTÁVIO (Com desdém) – Ah! Ah! Ah!... Que ótima essa piada! Agora

conta outra, Armando.

ARMANDO (Sorrindo, tira o paletó e a gravata e os coloca no

quarto, cuja porta deverá ser ao lado da porta do banheiro,

voltando em seguida. Otávio continua cantando. Armando

aproxima-se, novamente, do banheiro, batendo à porta) –

Você está tomando banho?

OTÁVIO – Não: estou estourando pipoca.

ARMANDO (Sorrindo, vai preparar uma bebida) – Sabe?... Eu hoje

saí da redação do jornal e, antes de ir pra faculdade, passei na

Fotótica e peguei os slides...

OTÁVIO (Gritando do banheiro) – O quê?... Fala mais alto!

ARMANDO (Mais alto) – Eu passei na Fotótica antes de ir pra

faculdade e peguei os slides...

OTÁVIO (Sai só com a cabeça para fora do banheiro, usando uma

touca bem feminina) – O que foi que você disse?

ARMANDO – Eu trouxe os slides que nós tiramos na viagem...

OTÁVIO – Ah! Sei... Ficaram bons?

ARMANDO – Eu sei lá! Só vendo.

OTÁVIO (Entrando no banheiro novamente) – Eu nunca vi ninguém

pagar slides sem saber se ficaram bons ou não. Só você

mesmo, Armando.

ARMANDO (Gritando) – O quê? (Otávio não ouvindo Armando,

continua cantando mais um pouco. Armando aproxima-se

até a porta do banheiro). O que você falou?

OTÁVIO (Desligando o chuveiro) – Que se alguém chegasse pra mim

e me perguntasse: (imitando) imagine só quem pagou uma

fortuna numa loja de São Paulo, pra revelar uns slides, sem

saber se eles ficaram bons ou não? (Sai do banheiro,

vestindo um roupão de banho, com uma toalha na mão).

Eu já responderia na hora, sem pensar: (categórico) o

Armando!

ARMANDO – Ah! Como você é trouxa mesmo, não?

OTÁVIO (Indo em direção à cozinha) – Ah! Sei... (Sarcástico). Tem

razão, querido, o esperto... É você!

ARMANDO – Não, não é isso! É que se não saiu legal, eles nem

revelam... (Vai atrás de Otávio na cozinha).

OTÁVIO – Tá bom, Armando. Logo mais você vai projetar e nós vamos

ver a obra-prima da fotografia brasileira. (Tempo). Você vai

tomar banho?

ARMANDO – Vou.

OTÁVIO – Então vá logo e veja se não demora que eu estou com fome.

(Começa a preparar o jantar).

ARMANDO (Indo para o banheiro) – Tá legal... (Tempo). O que foi que

você fez de janta?

OTÁVIO (Irritado) – Um banquete para 150 pessoas!

ARMANDO – Pô!... Mas que bicho te mordeu hoje?

OTÁVIO (Mais irritado, tentando controlar-se) – Nenhum... Não foi

mordida, foi chifrada.

ARMANDO (Parando na porta do banheiro) – Ei! Mas o que é que há?

OTÁVIO – Porra, Armando! Eu cheguei cinco minutos antes de você e

você vem me perguntar o que é que tem de janta?... (Tempo).

O que é que você sugere que eu responda?

ARMANDO – Bom... Eu não sou obrigado a adivinhar a hora que você

chegou..., ou sou? (Volta para a cozinha).

OTÁVIO – Claro que não! Mas se você pensasse um pouco, você veria

que se o jantar estivesse pronto, deveria ter, pelo menos, um

cheirinho de comida no apartamento..., ou não?

ARMANDO (Meio aborrecido) – Ah! Sei lá, Otávio... Você tem cada

coisa que... (indo para a janela), que realmente não dá pra

gente entender, (abre a janela) sabe?...

OTÁVIO (Imediatamente, gritando) – E não abra essa janela!

ARMANDO (Fechando rapidamente a janela) – Por quê? O que foi

que aconteceu? (Otávio arruma a mesa, nada

respondendo). O que é Otávio? Você está louco?... (Tempo).

Não me diga que você vai querer que eu fique dentro deste

apartamento com todas as janelas fechadas e com o calor que

está fazendo hoje?

OTÁVIO – Não..., não é isso..., é que..., eu briguei aí com uns

vizinhos..., e..., (continua arrumando a mesa, pondo pratos,

talheres, etc.).

ARMANDO (Sério) – Quando? Hoje?

OTÁVIO (Sempre arrumando a mesa) – É..., coisa simples...,

besteira...

ARMANDO – De manhã?

OTÁVIO – Não... (Receoso). Agora há pouco...

ARMANDO – Ah! Quer dizer que pra fazer o jantar você não teve tempo,

mas pra brigar com a vizinhança, houve tempo de sobra, né?

OTÁVIO – Bom, Armando... (Quebra ovos em um prato, batendo-os

em seguida, para fazer uma fritada). Não fui eu quem

provocou... (Armando olha furioso). Juro!... Pelo contrário!

Eu fui provocado, me xingaram! (Tempo). Aí eu xinguei

mesmo, você me conhece, né? Se me provocam, eu já logo...

ARMANDO (Irritado) – Mas você não disse que tinha chegado cinco

minutos antes de mim?

OTÁVIO – Disse. E cheguei mesmo! (Tempo). Ou você está achando

que eu estou mentindo?

ARMANDO – Não, não é isso! É que..., é que você é a única pessoa

neste mundo capaz de chegar em casa e em menos de cinco

minutos já estar brigando com os vizinhos...

OTÁVIO (Tentando sorrir, coloca os ovos batidos numa frigideira e

põe no fogo) – Bom... Mudando de assunto. (Tempo). Você

vai ou não vai tomar logo esse banho? Eu estou morrendo de

fome!

ARMANDO – Não vamos mudar de assunto, não senhor! (Tempo).

Quem são os vizinhos? (Otávio abaixando e levantando,

resmunga algo que ninguém entende). Quem? (Otávio,

novamente, abaixa-se e levanta-se, falando

inaudivelmente. Armando irritado). Otávio: eu não entendi.

OTÁVIO – As piranhas do AP 21.

ARMANDO – Eu tinha certeza disso... (Tempo). Puta merda! Quantas

vezes eu já disse pra você não falar com essas vaquinhas aí

de cima?

OTÁVIO – Mas eu não falei.

ARMANDO (Ironicamente) – Não.

OTÁVIO – Eu xinguei.

ARMANDO – O que é muito pior! Eu já disse pra você mais de mil vezes

que com esse tipo de gente não dá pra se levar papo. É uma g

ente sem escrúpulos, ignorante... (Tempo). Será que você não

entende? (Tempo). Bom..., eu vou tomar banho. (Vai indo

para o banheiro).

OTÁVIO – Mas foram elas que me provocaram...

ARMANDO (Indo para o banheiro, de costas para Otávio) – Mesmo

assim, poxa! Quando acontecer isso, você finge que não ouve

e pronto! É a melhor coisa.

OTÁVIO (Sem Armando ver, dá-lhe uma banana) – Tá legal. (Toca o

telefone. Armando, nesse momento vira-se para Otavio.

Otávio disfarçando a banana finge espantar mosquitos).

Nossa!... Este apartamento está cheio de mosquitos...

ARMANDO (Referindo-se ao toque do telefone) – Veja se não inventa

de sair hoje, tá?

OTÁVIO – Hum, hum! (Armando entra no banheiro. Otávio

atendendo ao telefone). Alô!... (Dá um número de telefone).

É... Oi, tudo bem?... Tudo bem... Ahn? Hoje?... Acho que não

vai dar..., não, não é frescura, é que o Armando trouxe os

slides de nossa última viagem e nós combinamos de passar

hoje... (Armando abre o chuveiro. Otávio percebe e fica

mais à vontade no telefone). Mas logo hoje? Hoje não vai

dar, ele já ficou nervoso aqui porque eu briguei com aquelas

piranhas do apartamento 21, sabe?... Não! Aquelas do andar

de cima e que a janela da minha sala dá de frente pra cozinha

delas... É... Puxa vida! Se são... Claro! Mas eu não deixei

barato, me xingou, eu xingo mesmo... De bicha... É... De

sapatão... Não, não deu tempo, eu xinguei de sapatão e já

fechei logo a janela na cara delas... Nossa! Se devem... Não,

agora só amanhã que eu vou saber... Se ficou? Nem queira

saber, falou uma porção de coisas, disse que é pra eu não me

meter com esse tipo de gente, que ele já está cansado de

avisar, que eu só vivo criando confusão... É, acha, ele acha

que eu devo fingir que não escuto... Claro que não, eu não sou

bobo, eu finjo que não vou mais brigar e ele acaba

acreditando. Pois sim, vai nessa!... Me admiro você dizer uma

coisa dessas. Você me conhece, você acha que eu sou de

ficar quieto?... Lógico: elas que venham me aporrinhar, que

elas vão ver só, não fica um vidro no apartamento delas!

Destruição total! Mas nem a bomba de Hiroshima destruiu

tanto... Mas não tenha dúvidas... (Armando desliga o

chuveiro. Otávio percebendo). Olha Cláudia: o Armando vai

sair do banho, depois eu te ligo, tá?... Claro que conto, conto

tudo... Lógico... Tá bom. Ah olha e obrigado pelo convite do

teatro, quem sabe amanhã, né? (Armando sai do banheiro

vestindo um roupão. Otávio continuando). Ótimo!

Combinado. Pra você também. E um beijão na tua mãe. Tá:

dou sim, obrigado. Tchau! (Desliga o telefone).

ARMANDO – Quem era? (Senta-se à mesa para o jantar).

OTÁVIO – A Cláudia. (Indo para a cozinha pegar a fritada).

ARMANDO – Que Cláudia?

OTÁVIO – O Cláudio que foi caso do César. (Vindo com a fritada na

frigideira e um prato na mão).

ARMANDO – Ah! O Cláudio. (Fica irritado). Que mania que você tem

de falar o nome dos homens como se fosse de mulheres!

OTÁVIO (Coloca a fritada no prato e põe à mesa) – Que homens?

Tudo bicha... Imagine! Nem vem que não tem, hein? (Corta a

fritada no meio, põe uma parte em cada prato).

ARMANDO – Você sabe que eu não gosto disso.

OTÁVIO – Olha! Tem um montão de coisas também que eu não gosto e

você faz. (Começa a comer).

ARMANDO – O que, por exemplo? (Comendo a fritada).

OTÁVIO (Sempre comendo) – Mil coisas.

ARMANDO – Mas me dá um exemplo!

OTÁVIO – Ah! Sei lá... Tem um montão...

ARMANDO – Um exemplo, sim?

OTÁVIO (Para, repentinamente, de comer, mostrando a comida no

prato) – Fritada de ovo. Eu detesto, mas faço porque você

gosta.

ARMANDO – Mas eu nunca obriguei você a comer fritada.

OTÁVIO – Mas eu como.

ARMANDO – Porque é burro. Faça outra coisa pra você.

OTÁVIO – Não faço.

ARMANDO – Por quê?

OTÁVIO – Porque tenho preguiça. E depois, detesto cozinhar! Por mim,

eu comeria sempre fora.

ARMANDO – É..., mas não vai comer fora, não senhor.

OTÁVIO – Eu sei disso. (Tempo). Tá contente agora?

ARMANDO – Contente com o quê?

OTÁVIO – Com o exemplo que eu dei. Eu disse que tinha mil exemplos

a dar. Pois bem! Tenho mais novecentos e noventa e sete.

ARMANDO – Novecentos e noventa e nove, burro!

OTÁVIO – Novecentos e noventa e sete, porque eu já matei três

coelhos com uma cajadada só. Numa frase, dei três exemplos:

(enumerando nos dedos) detesto fritada, detesto cozinhar e

adoro comer fora. (Tempo). E faço tudo ao contrário.

ARMANDO – Bom... (Terminando de jantar). Eu já acabei. (Tempo).

Só tem isso?

OTÁVIO – Só. Eu cheguei agora há pouco, não deu tempo pra fazer

outra coisa.

ARMANDO – Cadê a sobremesa?

OTÁVIO – Que sobremesa? (Começa a tirar a mesa).

ARMANDO – O doce de abóbora.

OTÁVIO – Acabou. (Tempo). Você comeu o restinho que tinha hoje no

almoço, esqueceu?

ARMANDO (Lembrando-se) – Ah! É verdade! (Tempo). Então traz o

café.

OTÁVIO – Não tem café. Acabou o pó e eu me esqueci de comprar.

ARMANDO – Então vai buscar.

OTÁVIO (Mais irritado) – Nem morta! Imagina! Tá louco?

ARMANDO (Nervoso) – Porra! Você sabe que eu gosto de tomar café

depois das refeições.

OTÁVIO – Eu também gosto, mas acabou o pó e o que é que eu vou

fazer?

ARMANDO (Gritando) – Relaxamento!

OTÁVIO (Cortando) – Ah! Vá à merda! Por que não comprou você?

ARMANDO – E eu lá vou saber se tem ou não tem pó de café?

OTÁVIO (Mais irritado) – E por que é que eu tenho que saber se tem

ou não tem?

ARMANDO – Porque é você quem cozinha.

OTÁVIO (Sempre irritado) – Porque você é um vagabundo.

ARMANDO (Nervoso) – Não, senhor! Porque eu trabalho fora e você

não.

OTÁVIO (Gritando) – E o que é que tem que ver o cu com as calças?

(Tempo). Eu não trabalho porque o meu pai me manda

mesada no fim do mês. (Tempo). Mas pago a metade de

todas as despesas, ou melhor, pago exatamente a mesma

quantia que o senhor. (Tempo). E se o senhor trabalha fora é

porque quer.

ARMANDO (Sempre nervoso) – Absolutamente! O senhor sabe

perfeitamente que eu trabalho porque preciso.

OTÁVIO – Azar o seu! Eu não tenho nada que ver com isso. (Tempo).

Ora, onde já se viu? Detesto cozinhar, cozinho só para você

fazer economia e ainda por cima me vem com exigências?

(Irritadíssimo. Tempo). Não tem café: vire-se! (Armando,

extremamente aborrecido, levanta da mesa, senta-se numa

poltrona e começa a folhear um jornal. Otávio, sempre

tirando a mesa. Quando percebe o aborrecimento de

Armando começa a se arrepender e tenta o diálogo). Você

nem perguntou o que o Cláudio queria. Sabe o que era? Ele

nos convidou para ir ao teatro. Sabe: estreou uma peça ótima

na semana passada. Comédia. Daquelas que você gosta.

(Tempo). Mas eu disse pra ele: (como se estivesse

conversando com o Cláudio) hoje não, o Armando foi buscar

os slides de nossa viagem e nós vamos vê-los esta noite.

(Tempo). Quem sabe amanhã? Né? (Tempo). Você vai

projetar os slides? (Tentando sorrir). Armando? Eu estou

falando com você! Você vai ou não vai passar os slides?

ARMANDO (Que permaneceu lendo o jornal durante todo esse

tempo, com essa pergunta de Otávio, desvia os olhos do

jornal e, timidamente, pergunta) – Você quer?

OTÁVIO (Suspira, levemente, sorrindo) – Quero.

ARMANDO (Fechando o jornal, coloca-o de lado) – Tá legal. Eu vou

pegar o projetor e os slides.

OTÁVIO (Alegre) – Ótimo! Então, enquanto você monta o projetor e

coloca os slides, eu vou dar um pulinho no ap. da Dona Marta.

ARMANDO – Que Dona Marta?

OTÁVIO – Aquela, do quarto andar, que tem o marido doente.

ARMANDO (Intrigado) – Qual?

OTÁVIO (Continuando a explicar, sem se alterar) – Aquela que usa

bengala...

ARMANDO – Ah! Sei. (Tempo). Mas o que é que você vai fazer lá?

OTÁVIO – Eu vou pedir pra ela me emprestar um pouco de pó de café.

ARMANDO (Meio sem graça) – Não... Besteira, deixa pra lá.

OTÁVIO – É rápido, dois minutos. (Tempo). E depois, amanhã eu vou

ter que comprar mesmo. Devolvo pra ela, tá? Eu volto já.

(Saindo). Tchau!

ARMANDO – Tchau! (Otávio sai. Observação: neste momento pode

haver um blecaute, com transição musical, ou então

Armando poderá realmente montar o projetor de slides,

ficando a marca dessa cena a critério da direção do

espetáculo. Quando o projetor já estiver montado, entra

Otávio).

OTÁVIO (Entrando com um copo cheio de café já coado em uma

das mãos e um pouco de café na outra) – Olha só, que

sorte, Armando. A Dona Marta, além de me emprestar o pó,

me deu um pouco de café já coado. É só esquentar um

minutinho, e pronto! (Vai para a cozinha e esquenta o café

em uma caneca).

ARMANDO (Enquadrando a tela do projetor na altura exata) – Então

não demora que aqui já está tudo pronto.

OTÁVIO (Da cozinha) – Tá. (Tempo). Ah! Armando: sabe a maior?

Quando eu bati na porta do ap. da Dona Marta, tinha uma

carta no batente da porta para o marido dela. E eu fiquei

horrorizado com o sobrenome deles. (Tempo). Sabe como é?

ARMANDO – Não. Como?

OTÁVIO – Imagine só! Carvão! (Ri). Você já pensou uma pessoa se

chamar Carvão? (Rindo). Ai! Deve ser de lascar, hein?

ARMANDO – Nem tanto... Combina com a cara dela (rindo) e com a

bengala, que ela usa também. (Tempo). Afinal de contas,

Otávio, você vem ou não vem?

OTÁVIO – Já... Já.

ARMANDO (Acende o projetor) – Então vem logo.

OTÁVIO (Tirando o café do fogo, coloca-o em duas xícaras) –

Prontinho! (Vindo para a sala com as xícaras, entrega uma

para Armando). Toma. Não vai queimar a língua.

ARMANDO (Toma um gole, vai até o interruptor e apaga a luz) –

Hum!... Tá uma delícia...

OTÁVIO – Não fui eu que fiz. (Senta-se).

ARMANDO – Eu sei. Por isso mesmo... Otávio: apaga a luz da cozinha.

(Otávio levanta-se, abre uma gaveta, pega um crochê já

começado, vai apagar a luz na cozinha, volta e senta-se

novamente. Durante o trajeto de Otávio, Armando continua

falando). Quanto você quer apostar que os slides saíram

bons?

OTÁVIO – Um jantar. (Tempo). Fora, naturalmente.

ARMANDO – Tá legal. (Começa a projetar os slides. Os dois

começam a comentar os slides).

OTÁVIO (Num determinado momento) – Nossa! Como eu fiquei

horrível nessa foto... (Acende um abajur próximo).

ARMANDO – Mas não precisa acender a luz para ver se está bem ou

não. Pelo contrário: com luz apagada é que se vê melhor.

OTÁVIO – É que no escuro não dá pra fazer crochê.

ARMANDO – Mas você vai fazer crochê ou ver os slides?

OTÁVIO – As duas coisas. Uma não depende da outra, onde já se viu?

ARMANDO – Hum!... Tá bem. (Observação: As fotos que se

sucedem deverão ser comentadas pelos dois

personagens, a critério da direção do espetáculo, embora

Otávio continue fazendo crochê. Em uma determinada foto

deverá aparecer Armando embaixo de uma escada ao lado

de um gato preto).

OTÁVIO – Ai, Armando: que ideia a sua de tirar essa foto.

ARMANDO (Espantado) – Ué: por quê?

OTÁVIO – Por quê? Por quê? (Tempo). Você não sabe que ficar em

baixo de escada dá azar? E ainda se não bastasse, com um

gato preto do lado! (Ouve-se um toque de campainha).

ARMANDO (Rindo) – Ai, Otávio! Você tem cada ideia...

OTÁVIO – Eu não. O mundo inteiro sabe que essas coisas dão azar.

(Outro toque de campainha).

ARMANDO – Você não está ouvindo a campainha tocar?

OTÁVIO – Estou.

ARMANDO – Então, abra a porta.

OTÁVIO – Espera um pouco... Vou terminar esta laçada, senão perco o

ponto. (Novo toque de campainha).

OTÁVIO (Gritando em direção à porta da rua) – Já vai... (Coloca o

crochê de lado e vai abrir a porta).

RAPAZ (Vestido como um porteiro de edifício) – Telegrama para o

senhor José Armando Motta Junior.

OTÁVIO – Ah! Obrigado. (Assina o recibo do telegrama e fecha a

porta na cara do porteiro). Desculpe, mas estou sem

trocado. (Abre o telegrama, lê e fica estarrecido). Não!

ARMANDO – Quem era?

OTÁVIO (Assustado) – Telegrama pra você... (Entregando o

telegrama para Armando).

ARMANDO – Quem deu ordem pra você abrir minha correspondência?

OTÁVIO (Perplexo, como se não tivesse ouvido nada) – Eu disse que

esse maldito slide ia dar azar...

ARMANDO (Meio assustado) – Mas o que é que diz o telegrama?

OTÁVIO – Leia!

ARMANDO (Lendo o telegrama) – E agora?

OTÁVIO – Caga na mão e joga fora.

ARMANDO – Ora, deixa de ser estúpido! Como é que você pode brincar

com uma situação destas?

OTÁVIO – E o que é que você sugere que eu faça?

ARMANDO – E eu sei lá? Dê alguma ideia, alguma sugestão. Faça

alguma coisa!

OTÁVIO (Pensando) – Deixe-me ver... (Tempo). Leia de novo o

telegrama. (Armando lê mentalmente). Em voz alta!

ARMANDO – Presta atenção: (lendo) querido filho. Chegarei em São

Paulo com seu irmão dia treze. Beijos, mamãe. (Tempo). Que

dia é hoje?

OTÁVIO – Treze.

ARMANDO – Então, danou-se.

OTÁVIO (Pausa) – Porra!... Mas o que é que essa bruxa vem fazer

aqui?

ARMANDO – Otávio: ela é minha mãe.

OTÁVIO – E daí? Nada impede de ser uma bruxa...

ARMANDO (Preocupado) – E agora? (Olha para Otávio). O que é que

eu faço Tatá?

OTÁVIO (Nervoso) – E não adianta olhar pra mim com essa cara de

sacristão de igreja, Armando, porque eu daqui não saio.

ARMANDO (Tentando convencer Otávio) – Puxa vida, Tatá. Você

bem que poderia...

OTÁVIO (Cortando, categórico e definitivo) – Nem morta! (Tempo).

Pense noutra coisa.

ARMANDO – Mas, então o quê?

OTÁVIO – E eu sei lá? Qualquer coisa... (Tempo). Ah! Já sei.

ARMANDO – O quê?

OTÁVIO – Vamos separar as camas.

ARMANDO – Como assim?

OTÁVIO – Vamos separar as camas. A gente deixa uma no quarto, põe

a outra na biblioteca e pronto. Já ficam dois quartos. É o único

jeito.

ARMANDO (Pausa) – É... Eu acho que o jeito é esse mesmo. (Tempo).

Que horas são?

OTÁVIO – Oito e meia.

ARMANDO (Pensativo) – A que hora será que ela vai chegar, hein?

OTÁVIO (Rápido) – Ah, meu filho, se vier de vassoura já está

chegando.

ARMANDO (Meio irritado) – Otávio: ela é minha mãe!

OTÁVIO – Você já disse isso, Armando.

ARMANDO (Nervoso) – Então vamos parar com isso, tá legal?

OTÁVIO – Está.

ARMANDO – Anda logo! Me ajuda a pegar a tua cama.

OTÁVIO (Nervoso) – A minha, não senhor: a tua cama. Porque eu, do

meu quarto, não saio. Imagina! Era só o que faltava! A bruxa

é... (Armando dá uma olhada para Otávio. Otávio

consertando, imediatamente), ou melhor, a mãe é tua e eu é

que tenho que me desacomodar? Nem pense nisso!

ARMANDO (Concorda meio sem vontade) – Tá legal. (Vai até a porta

do quarto).

OTÁVIO – Claro que está. Porque se não estiver, não tem outro jeito.

Vai ficar assim mesmo...

ARMANDO – Assim mesmo como?

OTÁVIO – Ora, Armando, não se faça de bobo. (Categórico). Eu pra

biblioteca não vou mesmo. (Tempo). O que é que você está

esperando? Anda logo, pega a cama. (Armando entra no

quarto. Otávio parando na porta do quarto). E o rebento?

Onde vai ficar?

ARMANDO (De dentro do quarto) – Que rebento?

OTÁVIO – O teu irmão, esqueceu? (Tempo). O telegrama estava bem

claro: (como se estivesse lendo um telegrama) “querido

filho. Chegarei São Paulo com seu irmão dia treze, beijos”

(tempo) assinado “Madame Mim”.

ARMANDO – Otávio: você quer parar com essa gozação?

OTÁVIO (Com voz bem fininha) – Sim querido.

ARMANDO (Irritado) – Otávio: eu estou falando sério, tá?

OTÁVIO (Com voz bem grossa) – Sim querido. (Tempo). Assim está

melhor? (Armando nada responde. Sai do quarto com a

cama. Otávio segurando do outro lado da cama). Ai: que

peso!

ARMANDO – Tá firme aí?

OTÁVIO – Tá. Pode ir puxando. (Ambos carregando a cama do

quarto para a biblioteca vão atravessando a sala, até que

chegam diante do projetor, que continua projetando na

parede o slide que causou toda a confusão. Otávio

olhando para a foto projetada na parede, solta

imediatamente a cama que vinha carregando). Armando:

essa coisa tenebrosa ainda continua projetada?

ARMANDO – E daí? Qual é o problema?

OTÁVIO (Ironicamente) – Ora, imagine! Nenhum problema... É tudo tão

simples, tudo tão rotineiro... (Tempo). Não é mesmo?

ARMANDO – Olha Otávio: sinceramente eu não acredito que você

esteja falando sério, juro!... (Tempo). Você acredita mesmo

que essa foto tenha causado tudo isso?

OTÁVIO (Categórico) – Não só acredito como também me recuso a

passar diante daquela luzinha que projeta esse horror na

parede (apontando ambas as referências).

ARMANDO (Rindo) – Tá legal. Eu desligo o projetor, mas então acende

a luz da sala, senão a gente vai ficar no escuro.

OTÁVIO – Pois não, com todo o prazer. (Acende a luz da sala).

ARMANDO (Desligando o projetor) – Ai Otávio! (Rindo). Você tem

cada uma... (Tempo). Isso foi coincidência.

OTÁVIO – É... Mas aconteceram coisas na minha vida por coincidências

que nem posso falar.

ARMANDO – Isso tudo é bobagem. (Pegando a cama).

OTÁVIO – Armando: será que dá pra trocar de lado? (Apontando). Esta

cabeceira já me acertou a cara uma porção de vezes.

ARMANDO – Tudo bem... (Colocando a cama no chão, dá a volta e

pega do outro lado). Tá pronto?

OTÁVIO – Tô.

ARMANDO – Então vamos. (Ambos carregam a cama em direção à

biblioteca).

OTÁVIO – E então, como é que a gente faz com o teu irmão?

ARMANDO – Depois a gente vê isso.

OTÁVIO – Depois não, tem que ser visto já. (Colocaram a cama na

biblioteca. Tempo). A minha querida sogra pode ficar aqui

mesmo neste sofá.

ARMANDO (Contestando) – Não. Então é preferível ela ficar na cama e

eu no sofá.

OTÁVIO (Sarcástico) – Ai: que extremoso... (Tempo). Como filho é

exemplar... (Armando fica desapontado). E o menino?

ARMANDO – Não sei Tatá. O que você sugere?

OTÁVIO – Atirar pela janela.

ARMANDO – Ah! Deixa de brincadeira, que o tempo tá passando.

(Tempo). E se ele ficasse com você, no teu quarto?

OTÁVIO (Sorrindo maldosamente) – Eu punha arsênico na mamadeira

dele. (Muda de tom). Ora, deixa de frescura: põe o menino lá

na sala. Bota umas almofadas no chão, um plástico em cima

para o caso dele mijar e pronto...

ARMANDO (Concordando) – É, tá legal, então. (Ambos vão saindo

da biblioteca para a sala). Ih! Outra coisa... E roupa de

cama?

OTÁVIO – Ah! Meu filho, isso é o que não falta. Existe um enxoval

completo no guarda-roupa.

ARMANDO – Então, tudo bem. Você já pode ir arrumando as camas.

OTÁVIO – Claro! Tinha que sobrar pra mim. (Vai para o quarto).

ARMANDO (Da sala e mais alto) – Eu vou preparar um uísque pra

mim. Você quer também?

OTÁVIO (Do quarto) – Com esse calor, uísque? Não. Pra mim não.

Prefiro um refrigerante. (Entra com roupas de cama).

ARMANDO – Soda ou guaraná?

OTÁVIO (Pausa) – Grapete. (Começa a arrumar a cama na sala).

ARMANDO – Não tem.

OTÁVIO (Sempre arrumando a cama, deve inclusive colocar

realmente um plástico em cima das almofadas) – Então

soda.

ARMANDO (Entregando a soda a Otávio) – Toma.

OTÁVIO (Pegando o copo) – Obrigado. (Toma um gole).

ARMANDO (Preocupado, senta-se em uma cadeira na sala) – Tatá?

OTÁVIO – Ahn?

ARMANDO – Tem uma coisa que está me preocupando, sabe?

OTÁVIO – Que coisa? (Toma mais um gole).

ARMANDO – A minha noiva.

OTÁVIO (Engasga-se com a bebida) – O quê?

ARMANDO – A Suzana...

OTÁVIO (Enfurecido) – Que Suzana?

ARMANDO (Tentando explicar) – Sabe: quando eu escrevo para a

minha mãe, eu sempre menciono a Suzana, dizendo que estou

noivo, que vou me casar e coisas assim, entende?

OTÁVIO – Não. (Enlouquecido). Não entendo não senhor! Que estória

é essa de Suzana, noivado e casamento? (Tempo). Eu sabia

que esse maldito slide ia destruir a minha vida.

ARMANDO – Calma, Otávio, tente compreender.

OTÁVIO (Fora de si) – Não consigo, Armando! Quero conseguir, mas

não consigo! Nem sob efeito de hipnose.

ARMANDO – Um momento, Otávio. (Pausa). Posso falar?

OTÁVIO – Deve! (Tempo). Aliás, já devia ter falado há muito tempo.

(Tempo). Olha: sejamos francos, Armando. (Com voz

trágica). Desde quando existe essa Suzana?

ARMANDO (Paciente) – Não, Tatá, não é nada disso que você está

pensando!

OTÁVIO (Irritado) – Ah! Não? Então o que é?

ARMANDO (Quase nervoso) – Claro que não! (Tempo). Afinal o que é

que você pensa que eu sou?

OTÁVIO (Imediatamente) – Um filho da puta!

ARMANDO – Otávio!

OTÁVIO – E isso ainda é pouco! Você é um indivíduo que...

ARMANDO (Grita cortando) – Otávio! (Pausa). Não existe Suzana

nenhuma.

OTÁVIO – Hein? Como assim?

ARMANDO – Não existe Suzana nenhuma.

OTÁVIO – Como não?

ARMANDO – Raciocine um pouco, Tatá. (Tempo). Quando eu escrevo

pra minha mãe, eu simulo um noivado que não existe, tá

entendendo?

OTÁVIO – Não sei... Continue.

ARMANDO – Pois bem. Então preste atenção: eu escrevi pra minha

mãe fingindo que estava namorando uma moça. Depois disso,

em outras cartas, eu falei que tinha ficado noivo, que ela se

chamava Suzana, que era de boa família..., essas coisas:

entende?

OTÁVIO – Mas com tanta coisa pra escrever, precisava tocar em

assunto tão repugnante?

ARMANDO – Bem, você não imaginava que eu escrevesse pra minha

mãe contando a nossa situação, não é mesmo?

OTÁVIO – Lógico que não. (Tempo). Mesmo porque se você tivesse

contado a verdade, seria masoquismo ficar carregando cama

para lá e para cá.

ARMANDO – Evidente.

OTÁVIO (Pausa) – Porra! E por que você não disse logo?

ARMANDO – Não consegui. (Tempo). Será que você não percebeu que

falou sem parar um segundo? Eu tentei explicar, mas você não

me deu chance.

OTÁVIO (Rindo) – Olhe..., até que vai ser divertido, né?

ARMANDO – O quê?

OTÁVIO – Essa estória. A bruxa vai chegar... (Para rapidamente.

Armando olha para Otávio furiosamente. Otávio conserta,

sorrindo). A tua mãe vai chegar e, logicamente, vai querer

conhecer a futura nora, a tão falada Suzana. E aí? Como é

que você vai se arranjar?

ARMANDO (Pensativo) – Não sei...

OTÁVIO (Sarcástico) – Eu posso me disfarçar de Suzana se você

quiser... (Ri muito).

ARMANDO – Não fala besteira! E de mais a mais, eu falo de você

também nas minhas cartas...

OTÁVIO – Não diga! É mesmo? Você escreve contando que eu lavo,

que eu passo, que eu cozinho, enfim, que eu sou a própria

escrava Isaura neste ap.?

ARMANDO – Você tá louco? Você acha que eu vou falar essas coisas?

OTÁVIO (Sempre irônico) – É: não fica bem você falar. (Tempo). Deixa

que quando ela chegar eu falo.

ARMANDO (Agarrando Otávio pelo pescoço) – Fala! Fala só pra ver o

que te acontece! Fala!

OTÁVIO (Desvencilhando-se de Armando, sorri) – Mentirinha, bobo...

(Tempo). E quando ela perguntar pela Suzana? O que é que

você vai dizer?

ARMANDO – Não sei ainda... Estou pensando...

OTÁVIO – Fala que ela morreu, vai ser um barato! (Ri). Diz que fui eu

que matei ela. (Tempo). Sem querer, é claro! (Narrando).

Você diz que ela veio aqui, me encontrou regando as plantas

na sacada e eu pedi pra ele medir quantos palmos tinha a

nossa samambaia de metro. (Sempre narrando). E que ela foi

medindo, medindo, medindo e..., bumba! Caiu de vez... (Ri.

Tempo). Depois você explica que a Suzana, embora de boa

família, era muito ingênua e burrinha... (Continuando). E que

foi por isso que ela caiu... (Ri mais ainda).

ARMANDO (Nervoso) – Cale essa boca!

OTÁVIO (Dócil) – Tá legal!...

ARMANDO – Estou num mato sem saída.

OTÁVIO – Não senhor! Tem uma sim. Agora não sei se você vai querer.

ARMANDO – Qual é?

OTÁVIO – Eu ligo pra Cláudia e digo pra ela que...

ARMANDO (Irritado) – Para o Cláudio, né?

OTÁVIO – É: tanto faz. Estamos falando da mesma pessoa. Mas tudo

bem! Eu ligo para o Cláudio e peço pra ele nos mandar uma

dessas vedetinhas de boate que ele conhece, ou então uma

piranha do prédio dele, mas que seja bonita e que, de

preferência, tenha postura fina. E aí... (Tempo). Ah! Sei lá! A

gente simula o noivado pelo tempo que durar a visita da tua

mãe e depois paga-se pra moça um dinheiro qualquer, por

serviços prestados; e pronto. Que tal?

ARMANDO – Não sei não... (Pensativo). E se não der certo?

OTÁVIO – Não deu. (Tempo). Mas pelo menos a gente tentou.

ARMANDO – Você acha tudo simples quando não é com você.

OTÁVIO – Ah! Não me enche! (Tempo). Bom, Armando, você não tem

escolha. Das duas uma: ou isso ou a estória da samambaia de

metro. Decida-se. (Pausa. Tempo). Eu disse que esse slide ia

dar azar.

ARMANDO (Pensativo) – Não sei não... Estou meio confuso,

amarrado...

OTÁVIO – É... Mas eu acho bom desamarrar logo, porque daqui a

pouco chega a tua mãe com o rebento e não se decidiu nada.

ARMANDO (Ainda pensativo) – É... Tem razão...

OTÁVIO (Animado) – E então?

ARMANDO (Pausa) – Tá legal: eu topo.

OTÁVIO – O quê? A queda de Suzana ou o noivado com a piranha?

ARMANDO – Claro que é o noivado!

OTÁVIO (Contente) – Oba!... E então? Ligo pra o Cláudio?

ARMANDO (Seco) – Liga.

OTÁVIO (Esfregando as mãos) – Deixa pra mim. (Vai para o telefone

e disca). Alô? De onde fala?... Ah! Por favor, o Doutor Cláudio

está?... É Otávio... (Afirmando)... Ele já sabe, obrigado. (Para

Armando). Ai! Vai ser ótimo: já estou adorando! (De novo ao

telefone). Alô? Quem está falando, por favor? Cláudia! Tudo

bom? Tudo... Não, não resolvemos ir ao teatro não. É coisa

muito melhor. (Tempo). Senta! Sentou?... (Armando sai da

sala e deita-se no sofá da biblioteca). Agora deita. Deitou?

Então escuta só: a mãe do Armando vai chegar hoje do Rio de

Janeiro com o irmãozinho dele. É. Não: espera aí! Ela estava

morando numa cidade de Pernambuco. Ahn?... Não. Que

Recife nada! Interior: uma cidade bem bundeira, não me

lembro agora o nome. É: deve ser. Mas acontece que faz

quinze dias que ela veio morar no Rio de Janeiro. Sei lá,

parece que quando ela escreveu a última vez, disse que vinha

pra o Rio por causa do estudo dos filhos. É claro, besteira de

bruxa. Bom, mas deixa eu te contar o porquê de eu te

telefonar. Acontece que quando o Armando escrevia pra mãe

dele, fingia que estava noivo. Não, claro que é mentira! Eu

nem sabia que ele andava escrevendo essas besteiras. Fiquei

sabendo hoje. Pois é. Agora a bruxa vai chegar e,

logicamente, vai querer conhecer a futura nora. Mas como não

existe nora nenhuma, resolvi apelar para você. Lógico, só você

pode resolver isso. Não: presta atenção, você pega uma

piranha qualquer que mora aí no teu prédio e convence ela a

fingir que vai ser noiva duma bicha. O quê? Não, por pouco

tempo. Uns dois ou três dias só, tá? Claro, a gente vai pagar.

Ah! Isso eu não sei. (Tempo). Quanto que pode custar? Não

faz mal, a gente paga o preço que for. (Tempo). Vê se você dá

uma pechinchada, né?... É lógico. (Tempo). Ah! Outra coisa:

diz pra ela que o nome dela aqui tem que ser Suzana. É.

Suzana, não vai esquecer, hein? Como? Claro: ela pode vir já,

se quiser, porque daqui a pouco a “Madame Mim” vai chegar.

(Toque de campainha. Tempo). Ih! Espera um pouco,

Cláudia, que estão tocando a campainha. (Gritando para

Armando). Armando: a campainha. (Novamente ao telefone).

Acho que é ela: espera aí!

ARMANDO (Que se levantou do sofá quando escutou a campainha,

abre a porta) – Oi, mãe! Tudo bom? (Dá um beijo na mãe).

MÃE DE ARMANDO – Oi, meu filho! (Beija-o). Como você está

magrinho!

OTÁVIO (Ao telefone) – É ela mesma. Só que não é a “Madame Mim”,

é a “Maga Patalógica”. Te conto depois. (Fala mais baixo).

Não se esquece da piranha, hein? Tá. Bye bye. (Desliga o

telefone e vai ao encontro da mãe de Armando).

ARMANDO (Meio confuso) – Mãe: este é que é o Otávio.

MÃE DE ARMANDO – Muito prazer, meu filho. Eu me chamo Margô. O

Armando escreve muito sobre você.

OTÁVIO – O prazer é todo meu, Dona Margô. O Armando é que é muito

gentil. (Entra o irmão de Armando, que deve aparentar uns

vinte anos, carregando duas malas).

IRMÃO DE ARMANDO (Entrando) – Oi gente! Tudo bom?

ARMANDO (Para o irmão) – Fernando: como vai?

FERNANDO (Colocando as malas no chão) – Olá! Seu malandro..., e

então? Como é que vai essa força?

ARMANDO – Bem. (Abraça o irmão). Tudo bem mesmo: e você?

FERNANDO – É, vai se levando... E a faculdade?

ARMANDO – Último ano.

FERNANDO – O quê! Então breve teremos um jornalista na família,

hein? E formado pela ECA! (Tempo). Eu também quero fazer

Comunicações, mas não Jornalismo. Prefiro Cinema.

ARMANDO (Para Otávio) – Otávio: este é o meu irmão Fernando.

OTÁVIO (Surpreso) – O quê? Eu pensei que ele fosse pequenininho!

FERNANDO – Ah! Então você que é o Otávio... (Abraça Otávio

fortemente). Muito prazer.

OTÁVIO (Falando para si próprio) – Nossa! Que impetuoso! (Para

Fernando). O prazer é todo meu, viu?

FERNANDO – Obrigado. (Para Armando). Mas viu, Armando, eu devo

vir para São Paulo no ano que vem. (Tempo). Se der tudo

certo, claro!

OTÁVIO (Animado) – Mas vai dar certo, tem que dar certo! (Meio sem

graça, para todos). Não é mesmo?

MARGÔ – Quem me dá um copo d’água? Estou com uma sede!...

OTÁVIO – Eu sirvo a senhora. (Vai para a cozinha).

MARGÔ – Obrigada. Eu vou com você. (Segue atrás).

OTÁVIO – A senhora prefere um refrigerante?

MARGÔ (Falando baixo) – Prefiro conhaque. (Armando e Fernando

vão para a biblioteca).

OTÁVIO (Percebendo uma das fraquezas de Margô) – Ahn... Sim...

Um momento que eu vou buscar. (Vai para a sala, pega o

conhaque, coloca-o em um copo, dá uma olhada para

Fernando e fala para si próprio). Fortíssimo. (Vai para a

cozinha com o copo de conhaque). Hoje está quente, não?

MARGÔ – Anda logo, me dá isso aqui. Se eles percebem ficam loucos

da vida.

OTÁVIO (Entregando o copo a Margô) – Tome.

MARGÔ (Bebendo tudo de uma vez só) – Obrigada. (Acende um

cigarro). O que faz você?

OTÁVIO – Tudo.

MARGÔ – Como assim?

OTÁVIO – Ah! Faço um montão de coisas.

MARGÔ – E na Escola, em que ano está?

OTÁVIO – Terceiro. (Dá uma olhada para a biblioteca).

MARGÔ – De quê?

OTÁVIO – De Direito.

MARGÔ – Onde?

OTÁVIO – Na São Francisco.

MARGÔ – Não diga!

OTÁVIO – Agora já disse. (Armando e Fernando saem da biblioteca).

FERNANDO (Para a cozinha) – Gente: eu volto já. Vou comprar

cigarros.

OTÁVIO (Indo para a sala) – Imagine! Nem pense nisso! Que

bobagem! Eu tenho cigarros aqui! (Apanha os cigarros em

cima de um móvel). Toma. Fume à vontade.

FERNANDO – Muito obrigado, Otávio, mas eu prefiro os meus.

(Tempo). Eu volto em seguida, tá?

OTÁVIO – OK. (Senta-se no sofá).

FERNANDO – Até já, então. (Sai).

TODOS – Até já.

MARGÔ (Sentando-se no sofá ao lado de Otávio) – Armando, sente-

se aqui. Me conta: e sua noiva, filho?

OTÁVIO – Pois é Armando..., e Suzana?

ARMANDO (Sentando-se no sofá) – Bem, ela...

MARGÔ – Não vejo a hora de conhecê-la.

OTÁVIO – Eu também.

MARGÔ (Para Otávio) – Você também não a conhece?

OTÁVIO – Não, não é isso, eu a conheço sim. É que eu quis dizer que

não vejo a hora da senhora conhecer a Suzana. (Ri).

MARGÔ (Para Armando) – Você gosta muito dela, meu bem?

ARMANDO (Seco) – Sim.

OTÁVIO (Sarcástico) – Nossa! Dona Margô: ele adora Suzana.

MARGÔ (Para Otávio) – E você?

OTÁVIO (Assustado) – Eu o que?

MARGÔ – Você namora?

OTÁVIO (Aliviado) – Ah!... (Caindo em si). O que?

MARGÔ – Eu perguntei se você namora?

OTÁVIO – Ah! Sei... (Tempo). Namoro, sim senhora. (Armando olha

para Otávio, intrigado).

MARGÔ – E como ela é?

OTÁVIO – Barbada.

MARGÔ (Assustada) – Como?

OTÁVIO (Sarcástico) – É... Ela tem uma barba comprida... (Tempo),

igualzinha à do Armando.

ARMANDO (Nervoso) – Otávio!

MARGÔ (Intrigada) – E como ela se chama?

OTÁVIO – Semíramis.

MARGÔ – Semíramis?

OTÁVIO – É sim senhora. (Tempo). Eu vou contar um segredinho pra

senhora. (Armando sem Margô perceber, faz gestos para

Otávio. Otávio percebendo os gestos de Armando). A

barba dela é postiça. Ela faz mulher-barbada do circo.

MARGÔ – Ah! Sei. Agora é que eu estou entendendo. Então ela é uma

artista?

ARMANDO – É mamãe. Ela é artista. (Tempo). Está sempre viajando,

sabe?

MARGÔ (Para Otávio) – Eu também sou artista.

OTÁVIO (Percebendo outra fraqueza em Margô) – Não! (Para

Armando). Armando: você nunca me disse que sua mãe “era”

artista.

MARGÔ (Irritada, levanta-se do sofá) – Era não: sou!

ARMANDO (Para Otávio) – Falta de oportunidade.

MARGÔ (Convencida) – Eu, modéstia à parte, trabalho muito bem.

OTÁVIO (Sarcástico) – Em que zona?

MARGÔ (Assustada) – Zona?

ARMANDO (Nervoso) – Otávio!

OTÁVIO – Eu perguntei se a senhora trabalha na zona norte ou na zona

sul do Rio de Janeiro.

MARGÔ (Aliviada) – Ah! Sim. (Convencida). Na zona sul é claro!

(Tempo). Aliás, espero que sim. Cheguei do norte faz só

quinze dias. (Toque de campainha. Em seguida entra uma

moça).

MOÇA – Boa noite pra todos: eu sou Suzana!

TODOS – Suzana?

SUZANA (Aproximando-se de Margô) – A senhora deve ser a...

(Tempo). Não diga nada! A mãe de Ar... Ar..., mando?

MARGÔ – Acertou... Puxa! Que moça inteligente!

OTÁVIO – Bravos! (Batendo palmas).

ARMANDO (Respira, aliviado) – Ufa!

SUZANA (Aproximando-se de Armando, faz cara de quem está na

dúvida, em seguida olha para Otávio e acredita ser este

último o seu noivo) – Oi! Meu bem... (Aproxima-se de

Otávio e lhe dá um beijo na boca).

OTÁVIO (Reage violentamente) – Ai! Mas o que é isso? (Limpando o

beijo). Nossa! (Dá uma cuspida no chão). Deus me livre! Oh

slide maldito!

MARGÔ (Para Armando) – Armando meu filho: o que deu na sua

noiva?

ARMANDO – Nada mãe. É que... (Extremamente nervoso), é que

Suzana e Otávio são muito amigos, (para Otávio e Suzana)

não é mesmo?

SUZANA (Percebendo o fora que acabou de dar) – Claro: muito

amigos... (Para Otávio). Não é Otávio?

OTÁVIO (Só para Suzana) – Nem tanto...

SUZANA (Vai para Armando) – E você, Armando, como vai, meu

amor? (Dá um longo beijo na boca de Armando. Margô

sorri, aprovando o gesto de Suzana).

OTÁVIO (Meio enfurecido) – Hum! Hum! Hum! (Armando e Suzana

continuam se beijando. Otávio tosse algumas vezes.

Armando e Suzana nada percebem).

MARGÔ (Meio orgulhosa, vai em direção ao banheiro) – Com

licença: eu vou ao banheiro. (Para Otávio). Onde fica?

OTÁVIO (Enfurecido, aponta a porta) – Lá!

MARGÔ – Obrigada. (Entra no banheiro).

OTÁVIO (Gritando) – Armando!

ARMANDO (Separando-se de Suzana calmamente) – Sim?

OTÁVIO – Que horas são?

ARMANDO (Olhando no relógio) – Dez e meia.

OTÁVIO – Então está na hora de regar as plantas. (Para Suzana).

Venha Suzana. Quero ver se você consegue medir quantos

palmos tem a nossa samambaia de metro...

ARMANDO – Otávio: não seja engraçadinho! (Vai para a biblioteca).

OTÁVIO (Para Suzana) – Olha aqui menina: acima de tudo,

compostura! (Tempo). E depois, você quase estragou tudo

quando me agrediu...

SUZANA – Bem: é que me disseram pra fingir que era noiva de uma

bicha...

OTÁVIO – E daí?

SUZANA – Daí que eu olhei para a cara dele (apontando para

Armando) e achei que ele não tinha cara de bicha.

OTÁVIO – Sei. (Tempo). E depois?

SUZANA – Bom, depois eu olhei pra você e já saquei logo de cara.

(Tempo). Só não percebe quem é trouxa, né? Aí, não tive

dúvida, fui logo beijando.

OTÁVIO – É... E quase põe tudo a perder.

SUZANA (Abismada) – Porra! Mas ninguém diz, viu?

OTÁVIO – O quê?

SUZANA (Apontando para a biblioteca) – Que aquele cara é bicha.

OTÁVIO – Mas é.

SUZANA (Pausa) – O que é a natureza, hein?

OTÁVIO – Olha aqui, Suzana, ou você modifica o seu...

SUZANA (Cortando) – Ei: sabe da maior? O meu verdadeiro nome

mesmo é Suzana...

OTÁVIO – Ótimo!

SUZANA – É sim, eu me chamo Suzana Alice dos Santos, mas sou

conhecida na boca, como Brigitte. (Tempo). É mais legal, né?

OTÁVIO – Não importa o nome que você tem: aqui você é Suzana e

todo o tempo que você estiver aqui, será chamada de Suzana,

entendeu bem?

SUZANA – Entendi.

OTÁVIO – Muito bem! Outra coisa: o irmão de Armando desceu para

comprar cigarros. (Tempo). Ele também não sabe de nada, e

quando ele chegar, veja se você se manca, hein?

SUZANA (Mostrando o dedão da mão) – Pode deixar! É comigo

mesmo. (Toque de campainha. Armando vai abrir a porta).

OTÁVIO (Para Suzana) – Eu acho que é ele. (Tempo). Já sabe né?

FERNANDO (Entrando sorridente) – Oi, pessoal! Tudo legal?

SUZANA – Tudo.

FERNANDO (Reparando em Suzana) – Ué? Você não estava aqui

ainda agora.

SUZANA – É... (Sorrindo). Sabe como é, né? É que eu estava na...

OTÁVIO (Para Suzana) – Fique quieta. (Para Fernando). Ah!

Fernando: esta aqui é Suzana, a noiva de Armando.

ARMANDO (Meio sem graça) – É... É a minha noiva.

FERNANDO – Muito prazer. (Aperta a mão de Suzana).

SUZANA – Oi, bicho. Tudo legal?

FERNANDO – Tudo.

MARGÔ (Saindo do banheiro) – Oi Fernando: você já voltou?

FERNANDO – Já mamãe... (Toque de campainha).

SUZANA – Podem deixar que eu abro a porta. (Tempo). Eu sou da

casa. (Vai para a porta).

OTÁVIO – Suzana: não abra a porta! Espie pelo olho mágico.

SUZANA – Tá legal. (Espiando). É uma freira.

OTÁVIO – É esmola. Pode deixar... (Vai até a cômoda e pega algum

dinheiro). Eu tenho uns trocados aqui. (Tempo). Mas vocês já

viram hoje em dia como andam as coisas? (Vai em direção à

porta). Essa é hora de freira pedir esmolas? (Abre a porta e

entrega o dinheiro para a freira). Olha aqui o dinheiro. (Leva

um enorme susto, abrindo a porta toda). Ahn? É minha

irmã! (Observação: o hábito de freira deve ser o mais

exagerado possível: o véu branco, engomado e

gigantesco; a saia longa e preta deverá cobrir os pés.

Deverá, a freira, usar, ainda, óculos com armação fora de

moda).

FIM DO PRIMEIRO ATO

SEGUNDO ATO

O pano abre. Aparece Fernando dormindo na

cama que Otávio fez na sala.

OTÁVIO (Vestindo um short, sai da cozinha, em direção à janela,

com uma mangueira d’água bem comprida na mão. No

percurso, Otávio não para de cantarolar. Ao se aproximar

da janela, tenta, algumas vezes, jogar uma das pontas da

mangueira para algum lugar, e, por fim, consegue) – Ufa!

Consegui. (Vai para a cozinha, pega a outra ponta a

mangueira e coloca na torneira, abrindo-a em seguida.

Depois, ele seca algumas xícaras com um pano de prato,

sempre cantarolando, mexe em algumas panelas no fogão,

etc.).

FERNANDO (Que acabou de acordar com o barulho que Otávio fez,

levanta-se, de pijama curto, e vai para a cozinha) – Bom dia

Otávio.

OTÁVIO (De costas para Fernando) – Bom dia. (Virando-se em

seguida). Nossa! (Tenta sorrir). Puxa vida!... Bom dia.

FERNANDO – Outra vez?

OTÁVIO – Outra vez o que?

FERNANDO – Você disse bom dia duas vezes.

OTÁVIO – É mesmo? Puxa! Nem reparei. É que eu fiquei meio

atordoado, de repente.

FERNANDO – Atordoado? Com o que?

OTÁVIO (Meio sem querer) – Com essas pernas.

FERNANDO (Surpreso) – Pernas. Que pernas?

OTÁVIO (Batendo em suas próprias pernas) – Estas pernas. Sei lá:

ficaram bambas. (Sorri).

FERNANDO (Aproximando-se de Otávio) – Otávio: você está se

sentindo bem?

OTÁVIO – Agora sim. Já passou o susto.

FERNANDO – Susto?

OTÁVIO – É. O impacto.

FERNANDO – Que impacto?

OTÁVIO – Nada: besteira. É que eu..., eu..., eu não tinha percebido a

sua presença..., e me assustei. Mas já passou.

FERNANDO – Bem, me desculpe. É que...

OTÁVIO – Ora imagine, não foi nada... (Tempo). Puxa! Você levantou

cedo, hein?

FERNANDO (Meio sem saber o que fazer) – É... Eu estou

acostumado.

OTÁVIO – Diferente do seu irmão. Só não perde a hora todo dia porque

eu chamo. E assim mesmo preciso sacudir ele umas dez

vezes, pelo menos.

FERNANDO – É... Ele puxou a minha mãe.

OTÁVIO (Meio nervoso) – Por quê? A sua mãe é igual?

FERNANDO – Oh! Se é! Igualzinha... Eu nunca tomo café da manhã

porque ela não acorda.

OTÁVIO – Coitado! (Tempo). Mas hoje você vai tomar. Eu já fiz.

(Tempo). Senta. (Fernando senta-se, sorridente. Tempo).

Ah! Mas aqui ela não vai ter essa moleza não. Daqui a pouco

eu vou lá e jogo os dois fora da cama, você vai ver. (Sorri).

FERNANDO (Rindo) – É... Acho que só assim mesmo.

OTÁVIO (Servindo o café para Fernando) – Mas não se preocupe: ela

vai sair daqui, na linha. (Sorri).

FERNANDO – Otávio: me diz uma coisa. Sua irmã é freira?

OTÁVIO – Ainda não. Ela está estudando pra ser, isto é, eu nem sei se

pra ser freira precisa estudar. O que eu sei é que por enquanto

ela é noviça.

FERNANDO – É uma pena. Ela é tão bonitinha...

OTÁVIO – Eu também acho. Aliás, eu não sei por que essa frescura de

ser freira. (Tempo). Era levada de pequena!

FERNANDO – É mesmo?

OTÁVIO – Oh! Se é! Quando criança foi do peru! Sapeca mesmo! Até

que inventou essa de ser freira. (Tempo). Mas pra mim foi

desgosto.

FERNANDO – Desgosto do que?

OTÁVIO (Tempo) – Come mais pão. Tem bolacha também. Olha: tem

torrada, você nem provou... (Tempo). Ah! Sei lá, desgosto, dor

de corno. Ela namorava um cara lá na minha cidade. Estava

firme mesmo, sabe? Ia até ficar noiva. Aí, não sei por que,

desmanchou tudo e veio essa de que queria ser freira, que

sempre teve vocação... (Tempo). Mas ninguém me tira da

cabeça que foi ele quem largou dela e ela então inventou essa

de ser freira. Pura dor de corno.

FERNANDO – Será?

OTÁVIO – Não sei não... Mas só pode ter sido.

FERNANDO – E os seus pais? O que disseram?

OTÁVIO – Nada. Falar o quê? Foi ela quem quis.

FERNANDO – E você? Você nunca perguntou pra ela quais os motivos?

OTÁVIO – Perguntei. E eu até uma vez...

FERNANDO (Cortando) – E o que foi que ela respondeu?

OTÁVIO – Vocação! (Fernando fica pensativo e chateado. Tempo). O

que é que você achou do café?

FERNANDO (Ainda aborrecido, sem ouvir o que Otávio perguntou)

– É... É uma merda!

OTÁVIO (Enfurecido) – O quê?

FERNANDO (Despertando de seus pensamentos) – Ahn...? Ah!

Desculpe... O que foi que você perguntou?

OTÁVIO (Com raiva) – Eu perguntei o que você achou do café?

FERNANDO (Sorrindo) – Ah! Do café? Uma delícia. (Brincando). Já

pode casar.

OTÁVIO (Com desdém) – Já casei.

FERNANDO – Hein?

OTÁVIO – Mentirinha, bobo. (Saindo da cozinha). Eu vou acordar sua

mãe e seu irmão para tomar café.

FERNANDO (Saindo atrás de Otávio) – E eu vou aproveitar para ir até

à casa de um colega meu. (Pegando umas roupas que estão

em cima de uma cadeira, na sala, e os sapatos, e vai em

direção ao banheiro). Quero ver se ele me empresta umas

apostilas de português. (Tempo). Ah! E obrigado pelo café.

(Entra no banheiro).

OTÁVIO (Falando só para si) – Obrigado é?...

FERNANDO (Saindo do banheiro com a roupa e os sapatos na mão)

– Ei, Otávio! O que é que a Suzana está fazendo aqui na

banheira?

OTÁVIO – Dormindo.

FERNANDO – Mas na banheira?

OTÁVIO – É. Não tem mais cama. (Tempo). Mas ela não liga pra isso.

FERNANDO – Ora, mas ela poderia ter dormido em outro lugar. Aqui na

sala, ou na biblioteca. Sei lá... (Tempo), mas na banheira?

OTÁVIO – É. Foi falta de ideia mesmo. Mas não faz mal, esta noite a

gente dá um jeito. (Tempo). Você que usar o banheiro, né?

FERNANDO – Bem..., eu queria..., mas...

OTÁVIO (Cortando) – Claro! Eu vou chamar a Suzana.

FERNANDO – Não: pode deixar. Eu...

OTÁVIO – Ora imagine: já está mesmo na hora dela acordar.

FERNANDO – Mas é cedo ainda, e...

OTÁVIO – Que cedo nada! (Entrando no banheiro. Fernando vai até a

banheira, dá uma olhada e senta-se na sala, longe do

banheiro. Otávio dentro do banheiro). Ei, Suzana! Acorda! Ô

menina! Shi: essa é daquelas que dão trabalho. Psiu!... Ô

perua: acorda logo... (Tempo). Acho melhor eu abrir a torneira.

SUZANA (Dentro do banheiro, dá um grito) – Ai! O que foi?... Ai, meu

Deus, onde estou?

OTÁVIO (Dentro do banheiro) – Psiu! Sem escândalo...

SUZANA (Dentro do banheiro) – Mas você me molhou...

OTÁVIO (Dentro do banheiro) – Claro: você não acorda...

SUZANA (Irritada, dentro do banheiro) – Mas eu não consigo levantar

antes do meio dia...

OTÁVIO (Dentro do banheiro, nervoso) – Mas aqui não é colônia de

férias! E trate de sair logo daí que o Fernando quer entrar no

banheiro.

SUZANA (Dentro do banheiro) – Tá legal. (Sai do banheiro de

camisola, passa por Fernando, cumprimenta-o

secamente). Bom dia.

FERNANDO (Tentando desculpar-se) – Bom dia. Olha eu... Me

desculpe, tá? Eu não queria acordá-la, mas o Otávio...

OTÁVIO (Dentro do banheiro solta um grito de horror) – Aiiii! (Sai do

banheiro carregando na mão um vaso de “comigo

ninguém pode” completamente murcho). Mas não é

possível! (Para Suzana). O seu bafo matou o meu comigo

ninguém pode...

FERNANDO (Rindo, entra no banheiro) – Com licença...

OTÁVIO (Para Suzana) – Vai ter baixo astral assim na casa do cacete.

SUZANA – Ah! Vá à merda!

OTÁVIO – Olha aqui: o café tá pronto. Se quiser tomar é só esquentar.

SUZANA (Sentando-se no sofá) – Tá.

OTÁVIO – Não esquece de lavar a xícara depois. (Tempo). Aproveita e

lava a loucinha que está na pia, tá?

SUZANA – Tá legal. (Deita-se no sofá e dorme).

OTÁVIO (Entrando na biblioteca, acorda Margô e Armando) –

Armando acorda, tá na hora... (Chacoalha Armando). Anda!

Tá na hora... (Chacoalha Margô). Como é que é? Vai acordar

ou não vai? (Para si mesmo). Ô meu Deus: parece castigo...

(Olhando para Margô). O pior é que a... , a estrela cadente

não dorme, desmaia. (Tempo). Mas aqui ela vai sofrer de

insônia. (Chacoalhando Margô novamente). Ô velha: acorda

logo. Tá na hora! (Margô resmunga alguma coisa). O que?

Ah, anda logo, ô Maga Patalógica! Tá na hora.

MARGÔ (Sentando-se na cama, irritada) – O que é?

OTÁVIO (Fingindo gentileza) – Bom dia dona Margô. Dormiu bem?

MARGÔ (Irritada) – Dormi? O senhor vem me perguntar se eu dormi?

Eu ainda estou dormindo... (Deita-se novamente).

OTÁVIO (Irritadíssimo) – Estava! (Puxando a coberta de Margô). E

podem ir tratando de levantar que hoje é dia de limpeza geral.

(Chacoalha Armando). Ô Armando: acorda! Você quer perder

a hora? (Armando resmunga algo).

MARGÔ (Ainda deitada) – Coitadinho! (Para Otávio). Não precisa

chacoalhar ele desse jeito...

OTÁVIO (Irritado) – Olha aqui, minha senhora: quer fazer o favor de

não se intrometer? Eu é que sei como é que ele deve ser

acordado, sim? (Sai da biblioteca e volta em seguida). E

façam o favor de se levantar. (Sai e volta, mais uma vez). Os

dois! (Sai).

FERNANDO (Saindo do banheiro) – Pronto. Já estou vestido.

OTÁVIO (Sorrindo) – É..., e muito bem vestido, por sinal.

FERNANDO – Obrigado.

OTÁVIO – Mudando de assunto, Fernando, qual é o seu prato predileto?

FERNANDO – De comida?

OTÁVIO – Claro, né?

FERNANDO – Bem... É strogonoff de camarão.

OTÁVIO (Para si mesmo) – Nada trouxa!

FERNANDO – Como?

OTÁVIO – Eu disse poxa... (Sorri).

FERNANDO (Sorrindo) – Por quê?

OTÁVIO – É que eu também gosto de strogonoff de camarão.

FERNANDO – Coincidência, né?

OTÁVIO – Nem fale! A maior de todas...

FERNANDO (Olhando para Suzana) – Pô: ela está com sono mesmo,

hein?

OTÁVIO – Se está! (Venenoso). Mas logo-logo ela acorda.

FERNANDO (Brincalhão) – Será?

OTÁVIO (Sorrindo) – Não tenha dúvida!

FERNANDO – Bem..., eu vou indo.

OTÁVIO – Já?

FERNANDO – É. Já está na hora, sabe?

OTÁVIO – Que pena! (Tempo). Você vem para o almoço?

FERNANDO – Depende. Eu tenho...

OTÁVIO (Cortando) – Depende do quê?

FERNANDO – Da hora de eu ficar livre.

OTÁVIO – Ah! Logo hoje? Vê se dá um jeitinho. (Tempo). Você vai

gostar do almoço.

FERNANDO – É mesmo? E pode-se saber o que é que vai ter hoje no

almoço de tão especial?

OTÁVIO – Strogonoff de camarão.

FERNANDO (Alegre) – Oba! Então eu venho. (Vai para a porta).

OTÁVIO – Estou esperando, hein?

FERNANDO – Pode esperar. (Tempo). Tchau! (Sai).

OTÁVIO – Tchau! (Grita). E um bom dia para você. (Fecha a porta).

É... É... (Dá um suspiro ligeiro, em seguida olha para

Suzana, que está dormindo, deliciosamente, no sofá). Não

é que a Cinderela tornou mesmo a pegar no sono? (Vai até

Suzana). Ô menina! (Sacudindo-a). Anda menina: acorda! Já

passou da hora.

SUZANA (Acordando) – Já tô indo...

OTÁVIO (Levantando Suzana, coloca-a sentada no sofá) – Já

acordou ou quer que eu jogue mais um pouquinho de água?

SUZANA – Eu já acordei: não tá vendo? E cadê o café? (Tempo). Olha

aqui: se for para eu fazer o café, nada feito!

OTÁVIO – Não. Não é pra você fazer... É pra você tomar... (tempo) ou

será que você estava pensando que eu ia te levar o café na

cama? Ou melhor, na banheira?

SUZANA (Levantando-se do sofá) – Não. Claro que não. (Vai para a

cozinha).

OTÁVIO – Ah, Suzana! Vê se dá pra você lavar aquela louça que está

na pia, (tempo) depois do café, claro!

SUZANA – Tudo bem.

OTÁVIO (Abrindo a gaveta da cômoda, pega algum dinheiro) –

Ótimo, então eu vou dar um pulinho no supermercado comprar

as coisas que estão faltando para o almoço. Trago o pó de

café e já aproveito e devolvo para Dona Marta Carvão o que

ela me emprestou ontem.

SUZANA – Marta Carvão? Quem é essa?

OTÁVIO – É uma vizinha que mora no quarto andar.

SUZANA – Porra! Mas que nome: Carvão!

OTÁVIO – É Suzana: Carvão! (Tempo). Bom, eu vou indo. Até já.

(Tempo). Ah Suzana: ia me esquecendo... Lave a louça no

tanque, não na pia, porque esta mangueira não pode sair

dessa torneira, tá?

SUZANA – Tá legal. (Tempo). Mas você vai sair assim?

OTÁVIO – Assim como?

SUZANA – De shorts.

OTÁVIO – Vou. Tá calor. Qual é o problema?

SUZANA – Nenhum...

OTÁVIO – Então tchau! (Sai).

SUZANA – Tchau! (Ficando só diz). Bicha é bicha mesmo... (Vai para

a cozinha esquentar o café).

OTÁVIO (Em curto espaço de tempo entra, novamente) – Suzana...

(Vai para a cozinha e abre a geladeira). Imagine só: esqueci

o principal! Depois que você lavar a louça, aproveita e limpa

este camarão para ir adiantando o almoço, tá?

SUZANA – Olha: sinceramente, eu não sei fazer isso. (Tempo). E se eu

estragar tudo?

OTÁVIO – Que estraga nada! É tão simples! É só tirar a casca, a

cabeça e o rabo. Depois você abre com uma faca, só um

pouquinho, e tira essa tripinha escura. (Tempo). Um por um,

tá?

SUZANA – Bom, eu posso tentar, né? (Cheirando o pacote de

camarões). Mas esse bicho fede, hein?

OTÁVIO (Maldosamente) – Não... É mais impressão.

SUZANA – Você me empresta depois uma água de colônia pra tirar

esse cheiro de peixe da minha mão?

OTÁVIO – Água de Colônia? Ora Suzana: que bobagem! Pra isso eu

tenho uma água muito melhor.

SUZANA – Que água?

OTÁVIO – Água Raz. (Tempo). Tchauzinho! (Sai. Suzana começa a

tomar o café).

IRMÃ DE OTÁVIO (Saindo do quarto, com um hábito de noviça, bem

menos exagerado do que o usado quando chegou, passa

pela cozinha e, vendo Suzana, resolve entrar) – Bom dia!

SUZANA – Bom dia, irmã! Dormiu bem?

IRMÃ DE OTÁVIO – Bem obrigada, e você?

SUZANA – Mais ou menos, irmã!

IRMÃ DE OTÁVIO – Como é que você se chama?

SUZANA – Brigitte. (Caindo em si). Não! Não! Eu me chamo Suzana.

Suzana Alice dos Santos.

IRMÃ DE OTÁVIO – Ah! Muito bem, Suzana. Só que eu ainda não sou

uma irmã de caridade. Eu, por enquanto, sou noviça.

SUZANA – Quer dizer que a senhora não é freira?

IRMÃ DE OTÁVIO – Ainda não, mas pretendo ser.

SUZANA – Que pena!

IRMÃ DE OTÁVIO – Pena por quê?

SUZANA – Ah! Sei lá... A senhora é tão bonita, tão moça...

IRMÃ DE OTÁVIO (Sorrindo) – Obrigada.

SUZANA – Se eu fosse a senhora...

IRMÃ DE OTÁVIO (Cortando) – Por favor, Suzana, me chame de você.

SUZANA – Tá legal. Mas se eu fosse você, desistiria de tudo isso...

(Tempo). Ainda está em tempo, não está?

IRMÃ DE OTÁVIO – Está.

SUZANA – Então, cai fora logo disso de uma vez.

IRMÃ DE OTÁVIO – Bem..., eu...

SUZANA – Como é o teu nome?

IRMÃ DE OTÁVIO – Ah: me desculpe, Suzana. Eu esqueci de me

apresentar. Eu sou chamada pelas irmãs, de Maria do Rosário.

SUZANA – Mas é esse o teu nome?

IRMÃ DE OTÁVIO (Pausa) – Não... O meu verdadeiro nome é Vanessa.

SUZANA – Então? Corta essa de Maria do Rosário! Vanessa é muito

melhor, muito mais legal.

VANESSA (Contente) – Você acha?

SUZANA – Claro pô! (Tempo). Maria do Rosário não tá com nada.

VANESSA (Pausa) – Bem, mas..., eu não posso, não devo... (Tempo).

Sabe: eu preciso me acostumar.

SUZANA – Não pode por quê? Deixa de ser boba! As minhas colegas

vivem me dizendo: (imita as colegas) a gente só deve se

arrepender das coisas que não fez. (Tempo). E eu acho que

elas têm razão. Por isso que eu te digo: desiste disso tudo

enquanto pode.

VANESSA – Por favor, Suzana... Você está me deixando confusa.

(Tempo). Vamos falar de outra coisa?

SUZANA – Vamos.

VANESSA (Respirando aliviada) – Ótimo. (Tempo). Do quê?

SUZANA – De homem.

VANESSA (Assustada) – Ahn?... De homem?

SUZANA – É... De homens, de namorados.

VANESSA (Confusa) – Não! Eu não saberia o que dizer. (Tenta sorrir).

Eu nunca tive namorados.

SUZANA – Não mesmo?

VANESSA – Não! (Pausa). Bem, na verdade, eu tive um, mas já faz

algum tempo e...

SUZANA – Um? (Pausa). Vanessa: um só?

VANESSA (Pensativa) – Alguns...

SUZANA – Ah! Já tá melhorando.

VANESSA – O que é que você quis dizer com isso?

SUZANA – Nada. Eu até acho... (tentando sorrir), acho isso tudo muito

natural.

VANESSA (Cortando) – Olha aqui Suzana:... Todo o mundo já teve um

namorado.

SUZANA – Claro! Um ou mais de um, não é?

VANESSA – Pois é. Eu tive alguns... (Tempo). Mas um foi o que na

verdade me marcou mais.

SUZANA – Por quê?

VANESSA – Ora! Sei lá... Acontece.

SUZANA – Amor?

VANESSA (Pausa) – Talvez!...

SUZANA – Talvez não, isso já era. (Tempo). Sim ou não?

VANESSA – Sim... Eu amei. (Pensativa). Mas um só homem.

SUZANA (Sacando) – Ahn? (Tempo). É legal, né?

VANESSA – O quê?

SUZANA – Amar alguém.

VANESSA – É... (Pausa). Foi.

SUZANA – Foi?

VANESSA (Rápida) – É. Foi. Passado. Acabou.

SUZANA – Outros virão...

VANESSA – O quê? Não, de forma nenhuma! Eu não quero mais saber

disso! (Tempo). Por favor, vamos mudar de assunto?

SUZANA (Como se não tivesse ouvido) – Esse cara te marcou muito,

né?

VANESSA (Pensativa) – Sim..., muito... (tempo), mas já acabou.

SUZANA – Ele... Ele te engravidou?

VANESSA (Afirma pensativa) – Hum! Hum!... E depois sumiu. (Cai em

si). Ô meu Deus!... O que é que eu estou dizendo? (Para

Suzana). Olha Suzana: isso ninguém sabe, ouviu bem?

Ninguém! Esqueça isso, por favor.

SUZANA (Fazendo um gesto com a mão na boca) – Pode deixar: eu

sou um túmulo.

VANESSA – Olha: eu gostaria de mudar de assunto.

SUZANA – Tá legal! (Tempo). Vamos falar... (pensativa)..., deixe-me

ver... (tempo), do Fernando?

VANESSA (Susto) – Hein? Não. (Recompondo-se). Bem, isto é, nós

não temos nada o que falar a respeito do Fernando. (Tempo).

Não é mesmo?

SUZANA (Aproxima-se de Vanessa e a segura nos ombros, por

trás) – Nós não. (Tempo). Você tem.

VANESSA – Não. (Grita). Não é verdade!

SUZANA (Imitando alguma colega) – “Não tente tapar o sol com a

peneira”... (Sorri). Sabe? Esse é outro ditado que as minhas

colegas vivem me dizendo. (Tempo). Olha: (pausa)...

Ninguém, nesta casa - melhor do que eu - percebe os olhares

entre um homem e uma mulher.

VANESSA – Não, Suzana, por favor... Eu não posso, compreende? Eu

não posso!

SUZANA – Não pode por quê?

VANESSA – Não me pergunte isso, Suzana, porque eu não posso te

responder.

SUZANA (Ironicamente) – Talvez eu possa!

VANESSA (Gritando) – Você não pode.

SUZANA – Claro que posso. (Tempo). Você namorou alguns caras,

conheceu alguém muito importante, teve um filho dele...

VANESSA (Gritando) – Não é verdade! (Tempo). Eu abortei...

SUZANA – Abortou?

VANESSA – Sim.

SUZANA – Ou provocou esse aborto?

VANESSA (Pausa) – Provoquei.

SUZANA – Não devia.

VANESSA – Mas eu não queria...

SUZANA – Não queria?

VANESSA – Não podia.

SUZANA – Não podia por quê?

VANESSA – Porque a minha família jamais iria...

SUZANA – E daí? Enfrentasse! Não foi você quem fez?

VANESSA – Você não compreende! Eu...

SUZANA – Claro que compreendo. (Tempo). Você teve medo. (Pausa).

Medo que soubessem, medo que falassem, medo de uma

porção de coisas. (Tempo). Foi o caminho mais fácil... Abortou

e inventou essa de convento. (Tempo). Não foi?

VANESSA – Foi...

SUZANA – E tá numa boa? Não tá! Sabe por quê? Não tem vocação,

porque é mulher. (Tempo). Deixa de ser boba! Corta essa!

(Tempo). O Fernando é bonitão e deu umas olhadas em você

ontem à noite...

VANESSA – Você acha? Mesmo?

SUZANA – Claro pô!

VANESSA – Mas e quando ele souber que eu...

SUZANA – E daí? Eu acho até que você fez um benefício pra ele.

VANESSA – Como assim?

SUZANA – Bem: poupou o exaustivo trabalho de abrir o caminho...

(Vanessa sorri). Ora: deixe de ser boba! Isso de virgindade já

era. (Tempo). O cara hoje em dia que só quer casar com

mulher virgem, fica solteiro pra o resto da vida. (Toca o

telefone. Tempo). Deixa que eu atendo. (Tempo). Olha: eu

não tenho nada com a tua vida, mas pensa bem no que eu te

disse, (tempo) e no Fernando, viu? (Vanessa faz um sim

com a cabeça e entra no quarto. Suzana vai atender ao

telefone e cruza com Margô que vai em direção ao

banheiro).

MARGÔ – Bom dia, Suzana. Desculpe não parar, mas é que estou

apertadíssima...

SUZANA – Vai Dona Margô. Vai depressa que senão não dá tempo...

(Atende ao telefone. Margô entra no banheiro). Alô? Aqui

é..., é... (Tempo). Ah! Eu não sei o número. Com quem o

senhor quer falar? Ah! Sim. É daqui mesmo. Um momento que

eu vou chamar. (Vai para a biblioteca e acorda Armando).

Armando! Oh! Armando! (Tempo). Telefone.

ARMANDO – Pra mim?

SUZANA – É.

ARMANDO – Mande o Otávio atender.

SUZANA – Ele saiu.

ARMANDO – Saiu? Onde é que ele foi?

SUZANA – No supermercado.

ARMANDO – Tá legal. Eu atendo, então. (Levanta-se). Quem é?

SUZANA – Não sei.

ARMANDO – E por que não sabe?

SUZANA – Porque eu quebrei a minha bola de cristal.

ARMANDO – Confiada.

SUZANA (Engrossando) – Viada não, hein? Olha lá como fala.

ARMANDO (Indo para a sala) – Eu disse confiada.

SUZANA – Ah bom!

ARMANDO (Atendendo ao telefone) – Alô... Sim, é ele mesmo. Ah! É

o senhor? Felizmente tudo bem, e o senhor? Estimo. Mas o

que é que manda? Viajar? Mas é claro que sim. Quanto

tempo? Perfeitamente. E qual é a matéria? Puxa vida! Mas era

exatamente o que eu estava esperando! Isso vai dar uma

reportagem fantástica! Claro que é importante, mas será que

eu teria capacidade? Não, eu digo de desenvolver esse

trabalho. Ah! Muito obrigado, Doutor Rezende. O senhor está

me dando uma oportunidade única. Eu nem sei como lhe

agradecer. (Tempo). Só que eu precisaria pedir dispensa na

faculdade esses dias. Bom, isso é verdade. O interesse é

deles também em me dar essa dispensa, mas de todo o jeito,

eu preciso comunicar a ECA. Olha: façamos o seguinte –

amanhã eu aviso o senhor o que eles me disseram e nós já

podemos marcar o dia da viagem, certo? Perfeito! Então mais

uma vez muito obrigado, Doutor Rezende. Ora, do quê! De o

senhor ter se lembrado de mim. Perfeito. Então ficamos assim.

Amanhã sem falta eu lhe comunico. Certo. Até amanhã então.

Obrigado. (Desliga o telefone). Poxa! Essa é a maior

oportunidade da minha vida! (Pausa). Xi! Mas será que o

Otávio vai topar?

SUZANA – Topar o quê? (Tempo). Quem era?

ARMANDO – Você quer fazer o favor de não ser intrometida?

SUZANA (Com demagogia) – Lembre-se de que eu sou a sua noiva e,

portanto devo estar a par de tudo o que você fizer, ou você

prefere que eu fique dando um fora atrás do outro?

ARMANDO – Não. Claro que não.

SUZANA – Então me conta.

ARMANDO – Bem... É que o meu patrão quer que eu faça um trabalho

fora de São Paulo. Esse trabalho não só servirá para nota na

faculdade, como me dará a chance de desenvolver uma

excelente matéria sobre o assunto no jornal onde eu trabalho.

SUZANA – Você é repórter?

ARMANDO – Jornalista.

SUZANA (Animada) – Jornalista?

ARMANDO – Bem, quer dizer, sou e não sou. Na verdade, até eu

terminar a faculdade, eu só posso trabalhar no jornal como

free-lancer, isto é, como estagiário.

SUZANA – E em que jornal você trabalha?

ARMANDO – O Estado de São Paulo.

SUZANA – Não! É mesmo? (Armando nada responde e vai em

direção à biblioteca). Então você vai quebrar um puta galho

pra mim.

ARMANDO – Que galho?

SUZANA – Publicar uma foto minha no jornal!

ARMANDO – Publicar uma foto tua? Para quê?

SUZANA – Sabe o que é Armando? É que o meu pai é viúvo e eu sou a

única filha. (Tempo). Isto é, eu tenho mais dois irmãos, mas de

mulher eu sou filha única. (Tempo). E eu sempre tive vontade

de ser uma artista famosa... Sei lá, chacrete, artista de cinema,

garota propaganda, qualquer coisa assim, sabe? Mas quando

eu contei isso pro meu pai e disse que vinha morar em São

Paulo, ele quase me matou de paulada. E meus irmãos

ajudaram a me bater. (Tempo). Depois disso eu resolvi fugir lá

de casa mesmo e vim pra cá sozinha. Mas como eu estava

sem dinheiro, fui forçada a trabalhar numa boate bem

vagabunda. (Tempo). Bom, depois disso eu tive que cair na

vida mesmo, sabe como é, né? (Tempo). Agora, se saísse

uma foto minha no Jornal dizendo que eu sou uma grande

artista, ou qualquer coisa assim, era bem capaz do meu pai

me receber em casa de novo. (Tempo). Você publica uma foto

minha? Por favor, vá? Quem sabe dá certo?

ARMANDO – Bom... Eu não posso prometer nada, mas eu tenho uns

colegas de faculdade que trabalham nas Notícias Populares.

Eu vou falar com eles. Se for possível, eles publicam tá?

(Otávio entra com uns pacotes de supermercado, mas

nem Armando nem Suzana percebem sua entrada).

SUZANA (Dando um beijo na boca de Armando em sinal de

agradecimento) – Puxa vida, Armando! Você é o cara mais

legal que eu conheci em toda a minha vida!

ARMANDO – Obrigado. (Tempo). Você também é muito bacana.

OTÁVIO (Bate palmas com sarcasmo. Armando e Suzana separam-

se bruscamente. Otávio continua batendo palmas) – Que

lindo! Mas que poesia! Soou nos meus tímpanos como um

canto gregoriano!

SUZANA – Sabe o que é Otávio? Eu vou te explicar.

OTÁVIO (Para Suzana) – Cala a boca! (Para Armando). Como eu ia

dizendo, chegou o momento de se esclarecer tudo. (Tempo).

Faça o favor de chamar a sua mãe que eu quero colocar os

pingos nos is.

SUZANA – Mas Otávio: isso foi um mal entendido!

OTÁVIO (Gritando) – Ai! (Para Armando). Tapa a boca dessa mulher!

Ou melhor, (para Suzana) quer fazer o favor de vir até aqui?

(Tira do pacote um rolo de esparadrapo e aplica uma tira

larga na boca de Suzana). Fala, fala agora que eu te atiro

esta lata de creme de leite na cabeça! Fala!

ARMANDO (Amedrontado) – Otávio: veja lá o que vai fazer, hein?

(Tempo). A minha mãe tem idade e se ela souber alguma

coisa sobre nós dois, ela pode morrer.

OTÁVIO (Nervoso) – Porra Armando! Eu já vi gente burra, mas como

você, tá pra nascer.

ARMANDO – Por quê?

OTÁVIO – Porque qualquer criança na idade pré-escolar sabe

perfeitamente que bruxa é imortal. Não morre nunca,

Armando.

MARGÔ (Sai vestida do banheiro, passando pela sala) – Oi gente!

(Para Suzana). O que é esse esparadrapo na sua boca, minha

filha? Você se machucou? (Suzana balbucia algo). Não

entendi.

OTÁVIO – Sabe o que é Dona Margô?

ARMANDO – Otávio!

OTÁVIO – É que a Suzana adora fingir que é um peixe carnívoro e se

empolga tanto com a brincadeira que morde a gente de

verdade.

MARGÔ – Ah bom!... (Sorri). Mas que espécie de peixe é esse?

OTÁVIO – Piranha.

MARGÔ (Dá uma gargalhada) – Ah, essa é boa! Esses jovens têm

cada uma! (Tempo). Bom, vocês vão me dar licença um

instante, que eu vou fazer umas comprinhas. (Tempo). Mas

volto pra o almoço, hein?

OTÁVIO (Irônico) – Evidente que volta.

MARGÔ – Tchauzinho, meus filhos. (Armando vai para a biblioteca e

pega um livro).

SUZANA (Tirando o esparadrapo) – Tchauzinho...

OTÁVIO – Adeus... (Margô sai. Otávio vai para a cozinha com os

pacotes, cantarolando alguma coisa, percebe que não

comprou algo que faltava). Ai, meu Deus do céu: esqueci de

comprar a cebola! (Armando com o livro, cruza a sala em

direção ao banheiro). E me toca voltar ao supermercado. (Sai

da cozinha. Quando passa pela sala vê Armando e

Suzana). Espera um pouco... (Tempo). Eu, ir ao

supermercado, e deixar vocês dois aqui sozinhos? Nem

pensar! Eu caio nessa uma vez só... (Para Suzana). Você vai

ao supermercado comprar a cebola que está faltando.

SUZANA – Tá legal. (Tempo). Cadê a grana?

OTÁVIO (Irritado) – Um momento, sim? (Para Armando). Armando: dá

o dinheiro para a cebola. (Armando tira algum dinheiro do

bolso e entrega a Suzana. Otávio avança no dinheiro que

está nas mãos dela). Um momento: deixa eu ver quanto tem.

(Conta o dinheiro e entrega-o para Suzana). Tem troco, viu?

(Suzana pega o dinheiro, guarda-o no sutiã e, sem

responder nada, vai saindo). Ouviu?

SUZANA (Gritando) – Ouvi. (Sai).

OTÁVIO – Armando: cadê aquele slide?

ARMANDO – Que slide?

OTÁVIO – O maldito. (Tempo). O que criou toda esta confusão.

ARMANDO – Tá guardado. Por quê?

OTÁVIO (Indo para a cozinha) – Porque eu só vou ter sossego no dia

em que eu botar ele dentro da soda cáustica.

ARMANDO (Sorrindo) – Deixa de ser bobo. (Vai indo para o

banheiro).

OTÁVIO – E faça o favor de não demorar aí, que o senhor tem que me

explicar a respeito do “canto gregoriano” que eu ouvi ainda há

pouco... (Armando entra no banheiro. Otávio pegando uns

tomates, sempre cantarolando, vai até a pia para lavá-los,

percebe que a mangueira ainda está na torneira). Ai! A

mangueira ainda está aqui! Que horas serão? (Vai até a porta

do banheiro). Armando: que horas são?

ARMANDO – Onze e quinze.

OTÁVIO – Onze e quinze? Ah! Então eu já posso recolher a mangueira.

(Rindo). Ai, que ótimo! Pelos meus cálculos a estas alturas o

apartamento das piranhas do 21 já deve estar todo alagado.

(Vai para a janela e começa a puxar a mangueira). Juro que

eu daria qualquer coisa só pra ver a cara delas na hora que

elas acordassem com o apartamento todo alagado...

(Recolhida a mangueira, fecha a janela). Missão cumprida!

(Vai para a cozinha, cantarolando e enrolando a

mangueira. Em seguida inicia o almoço).

ARMANDO (Saindo do banheiro, vai para a cozinha) – Acredite

você ou não, eu estava apenas fazendo um favor para a

Suzana.

OTÁVIO – Escuta aqui, Armando: afinal de contas, você tá querendo me

dizer que eu sou o quê? Eu me chamo Otávio, não otário, tá?

E tem mais: a mentira tem perna curta, e se essa história não

for verdade, mais cedo do que você pensa eu fico sabendo.

ARMANDO – Bom: se você não acredita, então vá à merda! (Tempo).

Eu tinha uma coisa pra te contar, mas não vou falar porra

nenhuma! (Sai da cozinha e senta-se na sala. Otávio dá de

ombros. Armando começa a folhear uma revista).

OTÁVIO (Se arrepende e vai até a soleira da porta) – O que é?

ARMANDO (Nervoso) – Nada.

OTÁVIO – Fala vá!

ARMANDO – Era uma novidade.

OTÁVIO – Boa?

ARMANDO – Ótima.

OTÁVIO – Então fala. (Tempo). A respeito do quê?

ARMANDO – Adivinha.

OTÁVIO (Pausa) – A tua mãe vai embora?

ARMANDO (Levantando-se do sofá, vai para a cozinha com Otávio)

– Não. Uma coisa que você sempre quis.

OTÁVIO – Aumento de salário?

ARMANDO (Afirmando) – Hum! Hum! Acertou.

OTÁVIO (Alegre) – Não! Graças a Deus! (Tempo). De quanto?

ARMANDO – Bom... Isso eu só vou saber depois que eu voltar.

OTÁVIO – Voltar de onde?

ARMANDO – Oh, Tatá... (Tempo). Da viagem...

OTÁVIO (Intrigado) – Que viagem?

ARMANDO – Olha: presta atenção, Tatá, que eu vou te contar tudo

direitinho. (Tempo). Senta aqui. (Tempo). Deixa essa louça

pra lavar depois.

OTÁVIO – Não senhor... Eu estou muito bem aqui lavando louça.

(Tempo). Quer fazer o favor de me explicar que história é essa

de viagem?

ARMANDO – Bom: é o seguinte..., o redator-chefe do jornal me

telefonou hoje, e me disse...

OTÁVIO (Intrigado) – Hoje? A que horas?

ARMANDO – Você tinha ido ao supermercado.

OTÁVIO – Ahn... Sei!... E daí?

ARMANDO – Daí que ele me ofereceu a chance da maior oportunidade

da minha vida.

OTÁVIO (Seco) – E em que consiste essa chance?

ARMANDO – Bem, todo aluno de jornalismo se interessa por uma boa

matéria, não é mesmo?

OTÁVIO (Irritado) – É.

ARMANDO – Então.

OTÁVIO – Então, o quê?

ARMANDO – O redator me escolheu pra fazer essa matéria. (Tempo).

Não é maravilhoso?

OTÁVIO – Bem... Depende...

ARMANDO – Depende do quê, Tatá?

OTÁVIO – Do local. (Tempo). Você não disse que tinha uma viagem

nessa história? Então: depende do local onde deve ser

executada essa matéria. Armando: ... (tempo) qual é o local?

ARMANDO (Receoso) – No Piauí.

OTÁVIO (Balançando negativamente a cabeça) – Tsc... tsc... tsc...

(Afirma). Você não vai.

ARMANDO – Por quê?

OTÁVIO – Porque não.

ARMANDO – Mas eu não entendo você, Tatá!

OTÁVIO (Irritado) – Ora: não se faça de idiota! Você pensa que uma

viagem dessas pro Piauí fica barata? E o tempo? Você acha

que em dois dias dá pra você ir e voltar?

ARMANDO – Mas as despesas serão todas pagas pelo jornal.

OTÁVIO (Ironicamente) – E de quantos dias será essa viagem?

ARMANDO – Vinte dias só.

OTÁVIO (Contendo a raiva para não estourar) – Armando: é melhor

você sair daqui antes que eu te arrebente uma garrafa na

cabeça.

ARMANDO – Mas é a grande chance da minha vida!

OTÁVIO (Calmo) – Tem lugar pra mim nessa viagem?

ARMANDO – Claro que não.

OTÁVIO – Então você acabou de perder a grande chance da tua vida.

ARMANDO – Mas você não vive dizendo que era preciso ter aumento?

OTÁVIO (Quase gritando) – Aumento de salário é uma coisa. Agora

aumento de férias pra você e aumento de serviço pra mim, que

fico o dia inteiro aqui dentro, lavando, passando, fazendo

pulôver de crochê pra você fazer economia do seu dinheiro, é

muito diferente! Porque o senhor sabe muito bem, que eu

detesto fazer o serviço de casa, bem como odeio fazer crochê!

E faço! (Tempo). E os meus estudos? Eu também tenho

trabalhos pra fazer e um livro de Direito Penal (mostrando)

deste tamanho pra decorar!

ARMANDO (Desapontado) – Bom... Então, como ficamos?

OTÁVIO (Irritado) – Como sempre estivemos. Aqui em São Paulo e

assunto encerrado.

ARMANDO (Indo para a sala) – Muito bem, mas saiba que foi você

quem decidiu.

OTÁVIO (Da cozinha) – Armando! Quer fazer o favor de vir aqui que eu

ainda não acabei?

ARMANDO (Vindo até a cozinha) – Ué? Você não disse assunto

encerrado?

OTÁVIO (Cortando) – Um deles. (Tempo). Eu tenho outros a tratar, e

urgentes!

ARMANDO – Então, fala logo.

OTÁVIO – O canto gregoriano com a Suzana. Você acabou não

explicando o que era.

ARMANDO – Porra! Ela me pediu um favor, eu já disse.

OTÁVIO – Que favor?

ARMANDO (Explica irritadamente) – Ela me pediu que intercedesse

junto aos jornalistas das Notícias Populares, para publicarem

uma foto dela no jornal. E eu disse que, na medida do

possível, iria tentar. Aí ela ficou agradecida e me beijou.

(Tempo). Foi isso. Acredite se quiser: tá? (Sai para a sala).

OTÁVIO – Armando!... Eu ainda não terminei.

ARMANDO (Volta para a cozinha e grita) – O que é desta vez?

OTÁVIO – Faça o favor de dizer pra “estrela cadente” da tua mãe que

aqui não é hotel e muito menos colônia de férias, se é o que

ela está pensando.

ARMANDO – Mas quem te disse que a minha mãe está pensando isso?

OTÁVIO – Porra Armando! Mas ninguém precisa me dizer. Eu vejo, não

sou cego! (Tempo). Uma mulher que dorme até a hora que

bem entende, não levanta uma palha do chão nem por

misericórdia, e ainda por cima, sai para fazer (imitando a

Margô) “umas comprinhas”, (tempo) mas volta para o almoço!

(Pausa). Será que não passa pela cabeça dela quem é que vai

fazer o almoço?

ARMANDO (Calmamente) – Sinceramente não, Otávio. (Tempo).

Minha mãe nunca cozinhou e nunca se preocupou com isso.

Na verdade, nós sempre tivemos cozinheira em casa. E

quando acontecia de faltar a cozinheira, nós comíamos em

restaurante ou em pensão, dependendo das posses da

ocasião. (Vanessa sai do quarto, sem o véu de noviça e, se

possível, com um hábito mais simples do que o anterior.

Otávio faz um gesto de silêncio para Armando).

OTÁVIO – Psiu! A minha irmã... (Vai até o batente da porta e pergunta

para Vanessa). Bom dia Vanessa... Você quer café ou chá?

VANESSA – Obrigada, Otávio. Eu... Eu estou fazendo jejum pela

manhã.

OTÁVIO (Insiste) – Então, só um cafezinho.

VANESSA – Bem, um cafezinho eu aceito. Aliás, pensando bem, o

jejum é uma besteira mesmo.

OTÁVIO (Para Armando) – Toma. (Entrega uma xícara com café). Vai

levar pra ela.

ARMANDO (Levando o café para Vanessa) – Bom dia: dormiu bem?

VANESSA – Bem, obrigada, e você?

ARMANDO – Eu também... (Sorri).

VANESSA – E a senhora sua mãe..., e o seu irmão? Dormiram bem?

ARMANDO – Olha: para ser sincero, o meu irmão, eu não sei. Quando

eu levantei, ele já tinha saído. Parece que levantou muito

cedo. Agora minha mãe dormiu bem, sim, ela saiu pra fazer

umas compras, mas já deve estar de volta.

VANESSA – Eu também me levanto muito cedo.

ARMANDO – Bem... (olhando no relógio), mas, então, hoje...

VANESSA (Cortando) – Hoje também eu levantei cedo. Acontece que a

hora em que eu me levantei você ainda estava dormindo. Se

não me engano, apenas o Fernando, o Otávio e a Suzana

tinham se levantado.

OTÁVIO (Gritando da cozinha) – Eu já te falei, Armando, os dois

únicos vagabundos nesta casa são você e a estrela cadente.

ARMANDO (Gritando) – Cala essa boca! (Para Vanessa). Não repare:

nós brincamos muito, sabe?

SUZANA (Entrando com pacotes) – Olá pessoal!

ARMANDO – Oi Suzana!

VANESSA – Onde você foi, hein?

SUZANA – Comprar cebolas.

OTÁVIO (Da cozinha) – Quer fazer o favor de trazer logo essa cebola,

que eu já estou atrasado.

VANESSA (Levantando-se, fala da sala) – Otávio: você quer ajuda?

OTÁVIO (Da cozinha) – Não, imagine... Era só o que faltava! (Tempo).

Você aqui é visita, meu anjo!

VANESSA – Bom, se é assim... (Para Suzana). Suzana: vem aqui no

meu quarto um pouco. Eu tenho uma coisa pra te mostrar.

SUZANA – Claro pô! É pra já! (Suzana e Vanessa entram no quarto).

ARMANDO (Vai para a cozinha) – Quer dizer que a sua irmã pode ser

visita. Agora a minha mãe não, né?

OTÁVIO (Tentando sorrir) – Não, Armando... Não é bem assim, sabe?

É que a minha irmã, coitadinha, quase não sai daquele

convento e... (Toca a campainha. Otávio, gentilmente, para

Armando). Vai ver quem é.

ARMANDO (Vai abrir a porta) – Oi! É você?

FERNANDO (Entrando) – Pois é: já cheguei. (Sentindo o cheirinho da

comida). Hum! O cheirinho está bom. (Passando na porta da

cozinha). Como é: a boia está pronta?

OTÁVIO (Sorridente) – Quase..., quase... (Tempo). E então? Como foi

o seu dia hoje?

FERNANDO – Foi tudo bem... Deu tudo certo!

OTÁVIO – Viu? Eu não disse? Eu tinha certeza! (Toca a campainha).

FERNANDO – Podem deixar que eu vou abrir. (Vai até a porta).

MARGÔ (Entrando cheia de bonitos pacotes) – Olhem só o que eu

comprei no shopping aqui em baixo! Um presente para cada

um!

OTÁVIO (Vindo da cozinha) – Eu não acredito. Só vendo...

MARGÔ (Entregando para Armando uma enorme caixa) – Este é

para você.

ARMANDO – Ora mamãe! Que besteira: não precisava se incomodar...

MARGÔ – Imagine: não é incômodo algum. (Entrega para Fernando

outra caixa de igual tamanho). Este é para você.

FERNANDO – Obrigado mamãe.

MARGÔ (Entrega para Otávio uma gravata desembrulhada e uma

margarida) – Isto é pra você... E esta margarida é pra sua

irmã.

OTÁVIO (Depois de uma pausa, fala ironicamente) – Por falar em

gravata, me ocorreu uma ideia. (Tempo). Vocês já ouviram

dizer que dia a dia aumenta o número de pessoas

assassinadas com gravatas?

ARMANDO (Pegando Fernando pelo braço, leva-o para a biblioteca)

– Venha Fernando: eu tenho uma matéria que gostaria muito

de discutir com você.

FERNANDO – Claro, claro! Me deixe ver. É sobre o que?

MARGÔ – Com licença, Otávio. Eu vou ao banheiro.

OTÁVIO – Não esqueça de puxar a descarga, viu?

MARGÔ – Ora imagine! Mas é claro! (Entra no banheiro).

OTÁVIO (Indo para o telefone) – Essa velha está me provocando...

Mas isso não vai ficar assim! (Disca um número). Alô! De

onde fala? Ah, por favor, o Doutor Cláudio está? É o Otávio.

Sim: aguardo. (Enquanto aguarda, cantarola). Alô! Cláudia?

(Falando baixo). Você sabe o que a bruxa me fez? (Toque de

campainha). Espera um pouco que estão batendo. (Vai até a

porta e destranca-a, sem ver quem estava batendo. Em

seguida volta para o telefone). Mas, viu? Imagine só o que a

jararaca teve a coragem de me aprontar? (Outro toque de

campainha). Um momentinho só, Cláudia! (Gritando para a

porta). Entra: a porta está aberta. (A porta se abre e entra

um homem muito forte, aparentando uns 50 anos, com

botas de vaqueiro, cara rude e fumando charuto).

HOMEM – Bom dia! A Suzana está?

OTÁVIO (Ainda com o telefone na mão, pergunta para o homem) –

Quem é o senhor?

HOMEM – Bem..., eu, na verdade, sou o...

OTÁVIO (Tapando a boca do homem com a mão) – Já sei! Nem

precisa dizer. Aliás, está na cara! (Tempo). É o cafetão dela,

né? (Para o telefone). Cláudia querida: o cafetão da piranha

chegou. Te ligo mais tarde. Bye bye... (Desliga o telefone. O

homem, no mesmo momento, agarra Otávio e o levanta

para o alto. Otávio grita desesperadamente). Socorro!...

Estúpido... Ai! Me acudam!... (Todos aparecem na sala,

desesperados com os gritos de Otávio).

SUZANA (Olhando para o homem, assustada e espantada) – Papai!

O senhor aqui?

FIM DO SEGUNDO ATO

TERCEIRO ATO

O pano abre. Aparecem sentados na sala Armando, Suzana e o pai

de Suzana.

SUZANA – Mas claro pai: eu já disse pra o senhor mais de mil vezes! O

Otávio é brincalhão, ele não quis ofender. Foi só uma

brincadeira.

ARMANDO – É verdade Seu..., Seu... (Tempo). Como é mesmo o nome

do senhor?

PAI DE SUZANA – Severino Antonio dos Santos, a seu dispor.

ARMANDO – Pois é Senhor Severino. O Otávio é assim. Ele adora fazer

brincadeiras com as pessoas.

SEVERINO – É, mas ele deve aprender que nem todas as pessoas

gostam de brincadeiras. E eu sou uma delas! Principalmente

este tipo de brincadeira!

SUZANA – Tá legal, pai. (Tempo). Eu vou falar com ele.

ARMANDO – Claro Senhor Severino! O senhor pode ficar sossegado

que isso não vai acontecer de novo.

SEVERINO – Bom. Também, se acontecer, o azar vai ser dele, porque

eu amasso a cara dele. (Suzana e Armando se entreolham.

Tempo). Falei claro?

SUZANA – Tudo bem, pai, tudo bem.

SEVERINO (Tempo) – Afinal de contas, Suzana, o que é que você está

fazendo aqui?

SUZANA (Assustada) – Como assim?

SEVERINO – Por que você dormiu aqui esta noite?

SUZANA – Bom, é que..., que eu já estou dormindo aqui há alguns dias,

e eu...

SEVERINO – A troco de quê?

SUZANA – Mas eu só vou ficar uns dois ou três dias no máximo.

(Tempo). E sabe, pai, a gente vai se casar!

SEVERINO – A gente quem?

SUZANA (Indo para Armando) – Eu e o Armando...

ARMANDO (Engasgando-se) – Pois é... Nós estamos noivos.

SEVERINO – E isso dá o direito de ocês dormir na mesma casa?

ARMANDO – Bom, não é bem assim... É que...

SEVERINO – É o quê?

SUZANA – Oh, pai! Vê se o senhor entende. (Tempo). Como é que o

senhor veio parar aqui?

SEVERINO – Bom... Sempre que ocê me escrevia, ocê mencionava o

lugar que tava morando, né?

SUZANA – É. E o senhor nunca respondeu as cartas que eu escrevi.

SEVERINO – Eu não tinha vontade.

SUZANA – E como é que o senhor veio parar aqui? (Tempo). Pai:

aconteceu alguma coisa?

SEVERINO – Não, não aconteceu nada. É que o patrão pediu pra mim

vir aqui em São Paulo comprar uns remédios pra passar no

gado e eu resolvi aproveitá e te visitá. (Tempo). Mas quando

eu cheguei no endereço que ocê me deu, tinha um papel na

porta dizendo que ocê tava neste outro endereço. Aí eu vim

até aqui.

ARMANDO (Tentando sorrir) – Ora, claro! O senhor fez muito bem.

SEVERINO – Mas eu não entendo o que é que você tá fazendo aqui.

(Tempo). Noivo e noiva só dormem na mesma casa depois de

se casar.

SUZANA (Pensando) – Sabe o que é pai? É que... É que... (Tempo). É

que no meu apartamento tão passando Cascolac.

ARMANDO (Aliviado) – É. É isso! Cascolac! Sabe como é, né?

SEVERINO – Não. (Intrigado). Cascolac? O que é isso?

SUZANA – É uma cera permanente, pai. Pra toda a vida.

SEVERINO (Não entende) – Cera?

ARMANDO – Olha: Cascolac tem um cheiro muito forte. Então, quando

ele é aplicado numa casa, as pessoas, que morarem dentro

dela terão que sair, porque senão, ficarão intoxicadas,

envenenadas com o cheiro desse produto. (Tempo).

Compreende?

SUZANA – Tá vendo, pai? Por isso que eu tô aqui. Mas é provisório.

Ficando pronto o Cascolac, eu já volto pra aquele endereço.

SEVERINO – E por que você não foi dormir no hotel comigo, esta noite?

SUZANA (Meio sem graça) – É: foi falta de ideia. (Tempo). Mas a Dona

Margô, a minha sogra, também está dormindo aqui e ela não

deixa a gente sozinhos um minuto, pai!

SEVERINO – Ahn! Sei. Tô entendendo. (Tempo). Mas quando vai ser o

casamento?

ARMANDO – Que casamento?

SEVERINO – O de ocês, diacho! (Tempo). Não tão noivos?

ARMANDO (Tentando sorrir) – Ah, sim! Estamos sim. (Tempo). O

casamento? Bem, na verdade nós ainda...

SUZANA (Cortando) – Daqui a três meses, pai.

SEVERINO (Pausa) – Puxa vida! Os seus irmãos e o pessoal lá da

cidade nem vão acreditar. (Tempo). Vamos fazer uma coisa:

ocês vão se casar lá na Igreja da minha cidade.

ARMANDO – Cidade! Mas que cidade?

SEVERINO – Jandaia do Sul, ora.

ARMANDO – Jandaia do Sul?

SEVERINO – É. Assim o pessoal não vai ter o que dizer.

ARMANDO – Bem... Na verdade nós estávamos pensando em...

SUZANA (Cortando) – Em fazer isso mesmo, pai. Só que a gente não

sabia se o senhor ia concordar. (Para Armando). Não é

mesmo, Armando?

ARMANDO (Desolado) – É.

SEVERINO – Ora que bobagem, meninos. (Tempo). Então já tá

resolvido. Daqui a três meses vocês se casam lá e pronto.

(Toque de campainha).

ARMANDO (Para Severino) – Um momento: eu vou abrir a porta. (Vai

até a porta e abre).

OTÁVIO (Entrando com um bonito pé de Comigo Ninguém Pode,

plantado em outro vaso) – Ai! Que peso! Venho carregando

isto desde o mercado. (Para todos). Oi gente! (Para

Severino). Nossa! O senhor já está aqui?

SEVERINO – É... Cheguei cedo.

OTÁVIO (Colocando o vaso no chão, continua falando

ironicamente) – Veio pra o almoço, né?

SEVERINO – Vim. Eu...

OTÁVIO – Claro!

SUZANA – Pra que esse vaso, Otávio?

OTÁVIO – Pra substituir aquele que você matou.

SUZANA – Eu? Mas eu nem me encostei na planta!

OTÁVIO – Eu sei que não. (Tempo). Foi o seu baixo astral. (Tempo).

Mas este aqui não vai morrer nunca, porque eu já plantei

arruda, guiné e alecrim em volta.

SUZANA (Nervosa com Otávio) – Olha aqui: eu não sei onde eu estou

que eu...

ARMANDO (Acalmando Suzana) – Meu amor: você já conhece o

Otávio. (Faz gestos de repreensão). Ele adora brincadeiras,

não é?

SUZANA (Disfarçando) – É: tem razão.

OTÁVIO (Para Severino) – E o senhor? Dormiu bem no hotel que eu

indiquei?

SEVERINO – Mais ou menos. (Tempo). Você sabe que lá não é mais

hotel?

OTÁVIO (Fingindo surpresa) – Não? É mesmo?

SEVERINO – Pois é. Agora é uma hospedaria.

OTÁVIO (Sarcástico) – Puxa vida! Isso é uma surpresa para mim.

(Tempo). Mas duvido que não tenha quebrado o seu galho.

SEVERINO – Ah! Bom... Isso quebrou!

OTÁVIO – Ótimo! Fico satisfeito. (Para todos). E o resto do pessoal?

SUZANA – O Fernando e a Vanessa foram dar uma volta.

OTÁVIO – Hum!... Isso tá me cheirando a namoro.

ARMANDO – Cheirando? Isso é namoro firme.

SEVERINO – Pelo jeito que eles saíram daqui, vai dar casório e dos

bons. (Todos riem, menos Otávio).

OTÁVIO (Sério) – Ai, que coisa engraçada! Se vocês contarem outra

piada desse tipo eu tenho um ataque (pausa ligeira) de riso.

(Pegando o vaso do chão). Ai: que peso!...

SEVERINO – É bom fazer um pouco de força. (Tempo). O levantamento

de peso é ginástica.

OTÁVIO (Corta) – Na sua cidade. Porque aqui o levantamento de peso

se chama halterofilismo (faz um gesto de musculatura): sobe

em cima e desce em baixo (fazendo outro gesto. Tempo). E

a estrela cadente? Tá dormindo, né?

ARMANDO – Não, Otávio, não está não. Ela levantou cedo, logo depois

que você saiu.

OTÁVIO – Sério?

SUZANA – É sim. Ela reclamou a noite toda. Disse que naquele sofá

não cabia eu e ela. (Tempo). Acho que foi por isso que ela

levantou cedo.

SEVERINO – Levantar cedo só faz bem.

OTÁVIO – Também acho. (Tempo). Eu tinha certeza que aqui ela ia

perder esse hábito, mas afinal de contas, onde é que ela foi?

SUZANA – Foi fazer compras.

OTÁVIO – Mas vem pra o almoço?

ARMANDO – Não sei Tatá. Talvez venha.

OTÁVIO – Mas que santa ingenuidade a sua! (Tempo). Vem sim, claro

que vem! Aliás, (coloca o vaso de novo no chão) eu acho

até que vou abandonar os meus estudos de Direito e abrir um

pensionato neste recinto. Eu já andei até pensando em pôr

uma placa na Portaria do prédio: (tempo) AP 12 –

PENSIONATO O CU DA MARIA JOANA. (Pega o vaso que

estava no chão e entra no banheiro).

SEVERINO (Rindo) – É. Ele é engraçado mesmo, mas tem uma boca

suja!

SUZANA – Eu não disse pai? Ele é engraçado, né?

ARMANDO (Irritado) – Ele é ótimo! Mas a hora que eu puser as mãos

nele, (tenta sorrir) ele vai ficar melhor ainda.

SEVERINO – Quem é essa estrela cadente?

SUZANA – É a minha futura sogra, pai, a Dona Margô.

SEVERINO – E por que estrela cadente?

ARMANDO – É que quando minha mãe era mais moça, ela era atriz.

SUZANA (Animada) – É sim, pai. Ela me disse que foi estrela de

cinema, (tempo) mas agora ela tá um pouco afastada, sabe?

SEVERINO – Ah! Então é por isso! (Tempo). Mas ela é bonitona ainda...

(Otávio sai do banheiro). E tem muita lenha pra queimar.

OTÁVIO – E pode-se saber aonde vai ser esse incêndio?

SEVERINO (Rindo) – Ai! Essa é boa!... Nós estávamos falando da Dona

Margô.

OTÁVIO – Não! Da Dona Margô? Verdade? Ai! Meu Deus! Não acredito.

Será que eu vou me transportar pra Idade Média? (Tempo).

Mas vai ser maravilhoso voltar pra o tempo da Inquisição, onde

essas bruxas eram queimadas em enormes fogueiras. (Ri.

Severino e Suzana também riem muito).

ARMANDO (Enfurecido) – Otávio! Isso já está passando dos limites!

(Otávio joga um beijo para Armando, sem que os outros

vejam).

SEVERINO (Rindo) – Esse Otávio tem cada uma!

SUZANA – Ele é um barato hein, pai?

OTÁVIO (Para Severino) – Otávio não. (Pausa). Doutor Otávio.

(Armando dá uma gargalhada de deboche).

SEVERINO – Ué! Você não falou agora mesmo que ia largar os

estudos? (Brincalhão). Então é porque você não é Doutor.

OTÁVIO (Sarcástico) – Já que o senhor é tão esperto, (tempo) quem

sabe o senhor consegue medir quantos palmos têm a minha

samambaia de metro, hein?

SEVERINO – Ah, depois... (Tempo). No momento eu quero saber mais

a respeito da Margô. (Olhando para Armando, tenta

disfarçar). Isto é: da Dona Margô.

OTÁVIO – Você viu só, Armando? Isso me parece amor à primeira vista.

ARMANDO – Deixa de ser bobo! Ele está fazendo apenas um

comentário.

OTÁVIO (Para Severino) – O senhor aceita um cafezinho?

SEVERINO – Não obrigado.

OTÁVIO – E um aperitivo?

SEVERINO – Ah, isso eu aceito!

OTÁVIO – Ótimo. E que drink o senhor prefere?

SEVERINO (Não entendendo) – O quê?

OTÁVIO (Mais alto) – O que é que o senhor quer beber?

SEVERINO – Ah! Sim... (Tempo). Uma cachaçinha até que vai bem.

OTÁVIO – Isso não tem.

SEVERINO – Não?

OTÁVIO – Não.

SEVERINO – Bem, então...

OTÁVIO – Pode deixar. (Para Armando). Armando: prepara uma

bebida para o senhor Severino. (Tempo). Mas bem reforçada.

SEVERINO (Para Armando) – É meu rapaz! Prepara uma bebidinha

aqui pra o seu futuro sogro.

ARMANDO (Levantando-se, finge gentileza) – Como todo o prazer,

senhor Severino. Pode deixar por minha conta. (Vai para a

cozinha).

OTÁVIO (Para Severino, com espanto) – Que história é essa de

sogro?

SEVERINO (Contente) – Eles vão se casar (tempo) você não sabia?

SUZANA – Claro, papai, o Otávio sabe sim. (Tempo). Ele vai até ser o

nosso padrinho. (Para Otávio). Não é mesmo?

OTÁVIO – Ah! Sim! O casamento... (Tempo). Claro, claro que eu vou

ser o padrinho.

SEVERINO – Então...

OTÁVIO – Pois é. (Para Suzana). Vai minha filha: acompanha o seu

noivo.

SUZANA (Levanta-se e vai atrás de Armando na cozinha) – Tá legal.

OTÁVIO (Para Severino) – Psiu! Psiu! O senhor está a fim da coroa?

SEVERINO – Do quê?

OTÁVIO – Do quê não, de quem? Da estrela cadente.

SEVERINO – Bem, sabe como é... Eu sou um homem pobre.

OTÁVIO – Porra! Eu perguntei se o senhor está ou não a fim da velha.

SEVERINO – Tô.

OTÁVIO – Ótimo.

SEVERINO – Mas sabe como é: eu sou pobre e...

OTÁVIO – Mas muito pobre?

SEVERINO – Muito! Sabe: eu sempre fui muito pobre. Lutei a vida toda,

nunca deu pra juntar nada. Minha mulher morreu de parto e

tudo que eu ganhei foi sempre pra os meninos. (Tempo). E ela

deve ser rica, né?

OTÁVIO – Ah! Isso é verdade. Ela é riquíssima!

SEVERINO – Então é quase impossível.

OTÁVIO – Mas não de todo...

SEVERINO (Surpreso) – Ahn?

OTÁVIO – O senhor quer que eu dê um jeitinho?

SEVERINO (Alegre) – Mas será que vai dar certo?

OTÁVIO – Ô meu Deus! (Irritado). O senhor quer fazer o favor de

responder apenas o que eu pergunto? (Tempo). O senhor

quer ou não quer que eu dê um jeitinho?

SEVERINO – Claro que quero!

OTÁVIO – Então deixa comigo. (Tempo). Mas o senhor terá que fazer

tudo o que eu disser, certo?

SEVERINO – Certo.

OTÁVIO – Muito bem. (Tempo). Primeiro: bebe logo esse drink, (tempo)

esse aperitivo que o Armando vai trazer e fala que precisa sair

pra fazer umas compras.

SEVERINO – Mas eu já comprei o que precisava.

OTÁVIO – Não faz mal. Finge: sei lá. Finge que esqueceu alguma coisa.

SEVERINO – Tá bom.

OTÁVIO (Corta) – Segundo: não diga pra velha em hipótese alguma

que o senhor é pobre.

SEVERINO – Mas e se ela perguntar?

OTÁVIO (Desolado) – Tal pai, tal filha. (Tempo). O senhor e louco? O

senhor acha que ela vai perguntar: (imitando Margô) o senhor

é rico ou é pobre?

SEVERINO – Bem, nunca se sabe né?

OTÁVIO (Afirmando) – Claro que não! (Tempo). Ela é grossa, mas

nem tanto! (Armando chegando com o drink na mão).

SEVERINO – O quê?

OTÁVIO – Psiu! Nada. (Baixo). Já sabe né? Bebe logo e cai fora.

ARMANDO – Aqui está. Não sei se o senhor vai gostar.

OTÁVIO – Vai gostar, sim.

SEVERINO (Pegando o drink) – Com certeza. (Tempo). Obrigado.

(Bebe tudo de um gole só). Ufa! (Ficando sem fôlego).

Bem... (recompondo-se), eu preciso ir andando. (Levanta-

se).

SUZANA – Onde é que o senhor vai, pai?

OTÁVIO (Falsamente) – Ora senhor Severino: fique mais um pouco. É

tão cedo.

SEVERINO (Não entendendo Otávio) – Mais um pouco? (Senta-se

novamente). Bom, se é assim, então eu fico mais um pouco.

ARMANDO (Para Severino) – O senhor está se sentindo bem?

SEVERINO – Claro! (Pegando o copo). Isso esquenta um pouco, mas

eu estou bem. Aliás, eu na verdade estou ótimo!

OTÁVIO (Para Armando) – Abre a janela. Acho que ele não está se

sentindo bem não... (Armando corre para abrir a janela.

Otávio para Suzana). Abana ele, menina. (Suzana pegando

uma revista; abana o pai).

SEVERINO – Eu não tenho nada! Eu estou bem. (Otávio quando

Armando e Suzana estão de costas, faz gestos para

Severino ir embora. Severino percebe Otávio). Bom, a

conversa tá muito boa, mas eu preciso ir andando.

SUZANA – Andando pra onde, pai?

ARMANDO (Voltando) – Não... Espere um pouco.

SEVERINO – Eu volto já. Eu só vou comprar uma coisa que eu esqueci

e volto em seguida.

SUZANA – Espera aí, pai, eu vou com o senhor. Um momentinho só, eu

só vou buscar minha bolsa. (Vai para o quarto).

ARMANDO – O senhor tem mesmo certeza de que está bem?

SEVERINO – Claro! Não se preocupe. Eu posso estar velho, mas ainda

estou em forma. (Tempo). E depois, um aperitivozinho antes

do almoço só pode fazer bem.

OTÁVIO – Ai, meu Deus! O almoço. (Para Severino). Com licença. (Vai

para a cozinha).

SEVERINO (Para Otávio) – Tem toda. Fique à vontade. (Para

Armando). Meu rapaz, em Jandaia do Sul vai haver a maior

festança daqui a três meses.

ARMANDO – Não me diga? (Tempo). É o aniversário da cidade?

SEVERINO – Que nada menino! É o seu casamento. (Dá uma

gargalhada).

ARMANDO (Tenta sorrir) – Ah! É verdade...

SUZANA (Saindo do quarto) – Pronto, pai, vamos indo.

SEVERINO – Vamos minha filha. (Para Armando). Até daqui a pouco.

(Para Otávio, mais alto). Até já, Otávio.

OTÁVIO (Da cozinha, gentilmente) – Até logo, senhor Severino.

(Severino sai).

SUZANA (Dando um beijo na boca de Armando) – Tchauzinho, meu

bem. (Tempo). Cuide-se, hein? (Para Otávio, mais alto).

Tchau Otávio. (Otávio da cozinha faz um gesto de deboche.

Suzana sai).

ARMANDO (Fica um instante perplexo na porta, em seguida vai

para a cozinha) – Você ainda não sabe da maior.

OTÁVIO (Fazendo o almoço) – O que é?

ARMANDO – O velho quer que a gente se case daqui a três meses.

OTÁVIO – A gente? A gente quem?

ARMANDO – Eu e a Suzana.

OTÁVIO – Ah! Bom. (Tempo). Eu não te disse que aquele slide era

maldito? (Tempo). E você?

ARMANDO – Eu o quê?

OTÁVIO – O que foi que você falou?

ARMANDO – Nada. (Tempo). O que é que você queria que eu

dissesse?

OTÁVIO – E eu sei lá? (Tempo). Qualquer coisa, porra! Você devia ter

dito que está sem dinheiro, que hoje em dia tudo é caro, que

as igrejas pediram um preço muito alto e que assim que você

puder você...

ARMANDO – Não. Ele quer que o casamento seja feito na cidade dele.

OTÁVIO – E onde ele mora? (Sempre fazendo o almoço).

ARMANDO – Jandaia do Sul.

OTÁVIO – Jandaia do Sul? Porra! Que lugar é esse? Eu nunca ouvi

falar nesse lugar.

ARMANDO – Eu já ouvi sim. E se não me engano fica no interior do

Paraná.

OTÁVIO – Então não tem jeito. (Pausa). A não ser que você queira...

(Para). Não. Não adianta. Você não vai concordar nunca!

(Tempo). Sei lá: vire-se!

ARMANDO – Fala. O que é? Quem sabe eu concordo?

OTÁVIO – Será?

ARMANDO – Não sei, ué! Fala!

OTÁVIO – Lembra ontem? (Armando reage desconhecendo). Quando

você veio me propor ir pra o Piauí?

ARMANDO (Lembrando) – Ah lembro: (tempo) mas você não

concordou.

OTÁVIO – Pois é: mudei de ideia.

ARMANDO (Contente) – É mesmo?

OTÁVIO – Com uma condição.

ARMANDO – Qual?

OTÁVIO – Uma empregada.

ARMANDO – O que?

OTÁVIO – Quero uma empregada e paga por você. Daquelas que lava,

passa, que arruma a casa toda e que principalmente cozinha!

Porque de fazer a Escrava Isaura todo o dia, eu já estou até

aqui! (Faz um gesto com a mão na testa). Olha!

ARMANDO – Não. Você sabe perfeitamente que o dinheiro que eu

ganho não dá.

OTÁVIO – Mas você não disse que se fosse pra o Piauí fazer esta

matéria ia ter o tão sonhado e decantado aumento de salário?

ARMANDO – Bem, disse... (Tempo). Pelo menos foi o que ele me

prometeu.

OTÁVIO – Então?

ARMANDO (Pausa) – Não. De maneira nenhuma.

OTÁVIO – Por quê?

ARMANDO – Porque você já está cansado de saber que eu não quero

gente estranha dentro de casa.

OTÁVIO – Tudo bem. Você é quem sabe: sem empregada, sem Piauí.

ARMANDO – Bom, mas o que é que tem isso a ver com o fato de eu

escapar do casamento que o velho quer que eu faça daqui a

três meses?

OTÁVIO – Teria, se você concordasse.

ARMANDO – Como assim?

OTÁVIO – Pois é, se você tivesse concordado; você poderia ir para o

Piauí amanhã mesmo. (Tempo). Você falava pra o velho que

se casaria daqui a três meses, conforme ele quer e...

ARMANDO (Cortando) – Taí! Tá vendo? (Tempo). Eu continuo me

casando daqui a três meses.

OTÁVIO – Espera... Eu não terminei ainda.

ARMANDO – Tá legal. Continua.

OTÁVIO – Você vai ficar fora uns vinte dias, não vai?

ARMANDO – Mais ou menos.

OTÁVIO – Então. (Tempo). Durante este tempo, eu procuro um outro

ap., nem que seja provisório. Alugo, mudo, escrevo pra você

ou pra o jornal, dando o novo endereço e pronto. (Tempo).

Quando que o velho vai descobrir você?

ARMANDO – É muito fácil. É só ele ir ao jornal.

OTÁVIO – Você pede transferência.

ARMANDO – Pra onde?

OTÁVIO – Pra o Jornal da Tarde, sei lá. Ou pra outro jornal qualquer.

(Tempo). O importante é que a gente mude de ap. (Tempo). E

depois, o velho é muito burro, não vai te achar nunca.

ARMANDO – É: podemos pensar.

OTÁVIO – Mas não se tem o que pensar! É o único jeito.

ARMANDO – E pra minha mãe, o que é que eu digo?

OTÁVIO – Ah! Isso é o de menos. Diz que desmanchou, que descobriu

coisas. (Sarcástico). Ou então, inventa a história da

samambaia de metro. (Armando coçando a cabeça,

pensativo, dá um suspiro). E então? Concorda ou não?

ARMANDO (Depois de uma pausa, decisivo) – Concordo.

OTÁVIO (Cantando) – Aleluia! Aleluia! (Tempo). Legal! (Tempo). Posso

ligar então?

ARMANDO – Ligar pra onde?

OTÁVIO – Pra agência de empregadas.

ARMANDO (Pausa) – Pode né? Que remédio!

OTÁVIO (Pega o telefone e disca) – Alô! De onde fala, por favor? Ah!

Sim. Por gentileza, será que o senhor pode me mandar uma

empregada? Mas que seja cozinheira também. (Continua em

mímica. Entram Fernando e Vanessa, de mãos dadas, e

muito contentes).

FERNANDO – Armando, o porteiro do prédio pediu pra entregar isso pra

você (entrega um envelope fechado) e disse pra você subir

imediatamente ao apartamento do síndico.

ARMANDO – Obrigado. (Abre o envelope).

VANESSA (Sentando-se no sofá) – Puxa! Nunca pensei em me divertir

tanto na minha vida, como hoje.

FERNANDO – Pô! Você é incrível, sabia? (Senta-se ao lado de

Vanessa. Vanessa fica imóvel, olhando para Fernando.

Fernando aproxima-se de Vanessa e lhe dá um beijo).

OTÁVIO (Desligando o telefone) – Pronto. Tudo arranjado.

ARMANDO (Terminando de ler a carta) – Não! Era só o que faltava!

OTÁVIO – O que foi? (Aproxima-se de Fernando). O que é que você

fez com a minha irmã? Hein, menino?

FERNANDO – Eu? Nada. Por quê?

VANESSA – O que é isso, Otávio? Ele não me fez nada.

OTÁVIO (Apontando para Armando) – E o que é então que essa

múmia tá resmungando que era só o que faltava?

ARMANDO – Oh, Otávio... Você parece bobo. Eu me referi ao que está

escrito aqui.

OTÁVIO – E o que é que está escrito?

ARMANDO (Entregando a carta para Otávio) – Toma: leia. (Otávio

começa a ler). Mas, não é possível...

FERNANDO (Para Vanessa) – Vamos lá na biblioteca?

VANESSA (Concordando) – Hum! Hum! Vai indo você, eu já volto.

(Entra no banheiro).

OTÁVIO (Terminando de ler) – Mas isso é uma calúnia!

ARMANDO – Claro que é. (Tempo). Você tá vendo? Eu cansei de te

avisar pra ignorar essas putinhas. Essa gente só cria

confusão.

FERNANDO – O que é que foi?

OTÁVIO – Nada. Assunto interno. (Tempo). Mas isso é uma mentira

muito grande! Que culpa temos nós se o apartamento delas

ficou alagado? (Tempo). Deixa que eu vou falar com o síndico,

isso é assunto pra mim.

ARMANDO – Você tá louco! Você vai me criar mais encrenca ainda.

OTÁVIO – Não senhor! Você é um songa-monga. É bem capaz de

concordar com tudo só pra evitar problemas. (Tempo). Nem

pensar! Eu vou.

ARMANDO – Otávio! Eu já disse que você não vai. Quem vai sou eu.

Pode deixar que eu sei o que faço. Eu vou ter uma conversa

com o síndico e explico pra ele o nível dessas meninas aí da

frente. (Tempo). Deixe comigo. Você vai ver: no fim tudo se

arranja e ele ainda vai me pedir desculpas.

OTÁVIO – Duvido muito. Enfim... (Dá de ombros).

FERNANDO – Eu vou com você, Armando.

ARMANDO – Então vamos. (Pegando a carta da mão de Otávio). Me

dá aqui essa carta. (Vai para a porta da rua com Fernando).

Eu volto já.

OTÁVIO – Armando! Não concorde nem afirme nada. Lembre-se de que

elas não têm prova alguma contra nós.

ARMANDO – Claro. Pode deixar. (Saem os dois).

OTÁVIO (Abrindo a janela e xingando) – Oh! Suas filhas da puta! O

quê? Espera aí... (Vai até a biblioteca e pega um livro de

direito, volta para a sala folheando o livro, procurando

algo. Vanessa sai do banheiro e vai para a biblioteca.

Otávio encontrando o que procurava). Tá aqui. (Vai para a

janela). Presta atenção, sua micheteira sambada. (Lê algo

com respeito às penalidades de calúnia, a critério da

direção do espetáculo). Você ouviu bem? Eu vou te pôr em

cana, sapatão! O quê? Que lei? Lei? (Tempo). O que é que

você entende de lei? Ah! Vá à merda!

VANESSA (Para Otávio) – Onde é que está o Fernando?

OTÁVIO (Não ouvindo a pergunta de Vanessa, continua xingando

as vizinhas) – Aqui ó! (Faz um gesto característico).

VANESSA – Aqui onde?

OTÁVIO (Fechando a janela) – O quê?

VANESSA – Cadê?

OTÁVIO (Impaciente) – Cadê o quê?

VANESSA – O Fernando.

OTÁVIO – E eu sei lá do Fernando? (Pausa). Ah: sei sim! Saiu com o

Armando.

VANESSA – Com o Armando? Mas onde é que eles foram?

OTÁVIO – Falar com o síndico da Portaria do prédio.

VANESSA – Ah! Então eu também vou.

OTÁVIO – Não precisa. Ele já vem vindo.

VANESSA – Acontece que eu quero ir. (Tempo). Dá licença? (Vai

saindo).

OTÁVIO – Vai, vai, vai. (Fechando a porta). Quando chegou aqui tinha

uma cara de fada. (Tempo). Safada... (Toca o telefone).

OTÁVIO (Atendendo ao telefone) – Alô? (Dá um número de

telefone). Sim. É ele mesmo. Ah! Pois não. Mas ela cozinha?

Não faz mal, o importante é que ela cozinhe. Ela sabe fazer

pratos variados? Então pergunta meu senhor. Espero.

MARGÔ (Entrando com alguns pacotes) – Ai! Estou morrendo de

cansaço e de fome. (Para Otávio). Você já fez o almoço?

(Senta-se no sofá).

OTÁVIO (Para Margô) – Estou fazendo. (No telefone). Alô! Ah!

Perfeito. Então já fica acertado, manda essa mesma. Certo.

Muito obrigado. Até logo. (Desliga o telefone).

MARGÔ – E pode-se saber o que é que você está fazendo para o

almoço?

OTÁVIO (Irritado) – Cacete à milanesa!

MARGÔ – Nunca ouvi falar nesse prato.

OTÁVIO – Ah! Dona Margô! Por falar em cacete, eu tenho uma ótima

surpresa pra senhora.

MARGÔ – Pra mim? O que é? Ah! Já sei. Esta noite eu vou dormir na

sua cama.

OTÁVIO – Nada disso. Tire essa ideia da cabeça!

MARGÔ – Olha, mas que foi muito cacete foi. (Tempo). Eu passei a

noite inteira em claro, Otávio.

OTÁVIO – Também pudera: a senhora e a Suzana num sofá tão

pequenininho, né?

MARGÔ – Então. Eu estou toda quebrada.

OTÁVIO – É Dona Margô, mas não é nada disso não. É uma coisa

muito melhor.

MARGÔ – O que é? Ai, eu estou tão curiosa!

OTÁVIO – O senhor Severino...

MARGÔ – Quem?

OTÁVIO – O pai de Suzana.

MARGÔ – Ah! Sei.

OTÁVIO – Ele tem muito dinheiro, sabia?

MARGÔ – Não. (Tempo). Quero dizer: o Armando quando me escreveu,

me contou que a Suzana era de muito boa família, mas isso

não quer dizer que ela pertença a uma família rica, não é?

OTÁVIO – Pois bem: pertence. (Tempo). O senhor Severino é

fazendeiro de gado, riquíssimo, viúvo e ficou muito interessado

na senhora.

MARGÔ – Ai! Você está brincando.

OTÁVIO – Não. É sério. (Tempo). Eu disse pra ele que a senhora é uma

atriz muito talentosa e ele logo se interessou em montar uma

peça pra senhora. Só pra senhora fazer o papel principal.

MARGÔ – É mesmo?

OTÁVIO – É sim. Ele é um amante das artes.

MARGÔ – Que coisa maravilhosa! Parece um sonho! Eu, de estrela?

OTÁVIO (Para si) – Cadente.

MARGÔ – O quê?

OTÁVIO – Permanente. Estrela permanente da Companhia que ele

pretende formar.

MARGÔ – Mas quando ele disse isso?

OTÁVIO – Hoje, depois que a senhora saiu. Assim que ele chegou.

MARGÔ – Eu sabia. Eu tinha certeza!

OTÁVIO – Do quê?

MARGÔ (Sonhadora) – Não sei... Assim que eu o vi ontem, eu pensei:

esse homem vai mudar a minha vida.

OTÁVIO – E vai mesmo.

MARGÔ – Graças a Deus! (Tempo). Muito obrigada, Otávio.

OTÁVIO – Ora imagine...

MARGÔ – Eu nem sei como te agradecer. (Tempo). Mas quando vai ser

isso?

OTÁVIO – Não sei.

MARGÔ – Ele vai vir hoje aqui novamente?

OTÁVIO – Vai. Daqui a pouco.

MARGÔ – Ai, meu Deus! Então vou me arrumar. (Levanta-se).

OTÁVIO – Agora não. Primeiro a senhora tem que escutar tudo o que

deve fazer. (Tempo). Sente-se. (Margô senta-se). Primeiro:

não diga em nenhum momento que a senhora não tem

dinheiro. Finja sempre que tem posses e que é uma pessoa

privilegiada, certo?

MARGÔ – Certo.

OTÁVIO – Ótimo! Segundo: arrume-se o melhor que puder e quando ele

chegar eu faço as apresentações. (Tempo). Agora o resto é

com vocês.

MARGÔ – Mas e se ele não me quiser?

OTÁVIO – Claro que quer. Ele já me disse. (Tempo). Agora: não

comente com ninguém, principalmente com o Armando, tá?

MARGÔ – Tá. (Tempo). Eu vou me arrumar, então. (Indo para o

banheiro). Por favor, Otávio, pega uma mala xadrez que está

no seu quarto, sim? (Tempo). Ah: guarda essas compras

também.

OTÁVIO – Pois não. (Pega as compras e entra no quarto. Margô

entra no banheiro. Suzana e Severino entram na sala).

SUZANA – O senhor tem que voltar pra Jandaia hoje, pai?

SEVERINO – É claro, menina.

SUZANA – Mas não dá pra o senhor ficar mais uns dois dias? Ou pelo

menos um?

SEVERINO – Não. Não dá mesmo. (Tempo). Mas antes do seu

casamento eu volto.

OTÁVIO (Saindo do quarto com a mala de Margô) – Oi gente: tudo

bom? (Entra no banheiro. Suzana e Severino não ouvem

Otávio. Otávio saindo do banheiro). Como é: tudo bem?

SEVERINO (Alegre) – Tudo.

SUZANA – Cadê o pessoal?

OTÁVIO – Eles não estão na Portaria do prédio?

SUZANA – Não.

SEVERINO – Lá só tá o porteiro.

OTÁVIO – Então o Armando tá lá no apartamento do síndico com o

Fernando e a Vanessa.

SUZANA – E o resto?

OTÁVIO – Que resto, menina? (Tempo). A Dona Margô tá tomando

banho e eu cozinhando, como sempre!

SEVERINO (Alegre) – A Dona Margô chegou, é?

OTÁVIO – Já, sim senhor. (Para Suzana). Ah! Suzana! O Armando

pediu pra você ir se encontrar com ele assim que chegasse.

Sem falta!

SUZANA – Onde?

OTÁVIO (Irritado) – No Coliseu de Roma. (Tempo). Não acabei de falar

que eles estão no apartamento do síndico?

SUZANA – E onde fica?

OTÁVIO – Nono andar, ap. 94.

SUZANA – Tá legal. (Dá um beijo no pai). Eu já volto viu, pai?

SEVERINO – Vai filha! Não se preocupe.

SUZANA – Tchau! (Sai).

SEVERINO (Para Otávio) – E então? Falou com a Margô?

OTÁVIO – Já. Tudo arranjado. Assim que ela sair do banheiro, eu faço

as apresentações.

SEVERINO – Ótimo! (Tempo). Escuta aqui, Otávio: você não tem nada

aí para eu beber? Sabe como é: pra criar coragem.

OTÁVIO – Tenho, é claro. (Sorrindo). Menos a cachaçinha.

SEVERINO – Não faz mal. Qualquer coisa.

OTÁVIO – Então vem. (Prepara algo para Severino). O senhor gosta

de conhaque? É uma bebida um pouco forte, mas anima.

(Entrega-lhe o copo).

SEVERINO – Obrigado. (Bebe de um só gole). Tomara que dê certo.

(Margô sai do banheiro com maquiagem exageradíssima,

por ser de manhã, um vestido extremamente escandaloso,

com enorme decote nas costas e uma piteira).

OTÁVIO – Psiu! Ela já saiu do banho. (Tempo). Vem: eu vou te

apresentar a ela.

MARGÔ (Toda sorridente) – Bom dia! (Senta-se no sofá).

SEVERINO – Bom dia!

OTÁVIO – Dona Margô, este é o Coronel Severino Antonio dos Santos,

um riquíssimo criador de gatos do interior do Paraná.

MARGÔ (Levanta-se sorrindo) – Oh! Coronel...

OTÁVIO (Continuando a farsa) – Coronel Severino, esta é Margô, uma

ex-atriz.

MARGÔ (Dando a mão para Severino beijar) – Muito pra... (Retira a

mão rapidamente e fala para Otávio). Ex-atriz é a puta que

te pariu!

SEVERINO – Ahn?...

MARGÔ (Tentando recompor-se) – Sabe como é né, meu senhor?

(Ajeitando o cabelo). A gente não está morta, não é mesmo?

(Sorri amavelmente).

SEVERINO (Meio sem graça) – Bem, isso é...

OTÁVIO (Rindo muito) – Se vocês me permitem, e vou até o

apartamento do síndico ver o que acontece por lá. (Tempo).

Com licença. (Sai).

MARGÔ (Esticando a mão para Severino, que a beija) – Muito prazer,

Coronel...

SEVERINO – O prazer é todo meu, Dona. (Tempo). Então a senhora já

foi atriz, hein?

MARGÔ – Fui não, eu sou atriz! (Tempo). Isso foi apenas uma

brincadeira do Otávio. Aliás, eu sou considerada uma

excelente atriz. (Tempo). Pelos críticos, naturalmente.

SEVERINO – Não diga Dona?

MARGÔ – O senhor gosta de artes?

SEVERINO – Muito!

MARGÔ – Oh! Mas que homem encantador! Então venha, vamos

apreciar estas telas. (Severino acompanha Margô. Deve

haver várias telas no apartamento, da sala de jantar até a

biblioteca). Que tal esta? Tem linhas arrojadas, não é mesmo,

Coronel?

SEVERINO (Chegando bem perto de Margô) – Arrojadíssimas,

Madame.

MARGÔ (Desvencilhando-se) – Ai! Senhor Severino: que susto o

senhor me pregou! (Sorri).

SEVERINO (Brincalhão) – Sustinho bom, né?

MARGÔ (Vai para outra tela) – Bem... Não deixou de ser, mas...

SEVERINO (Agarrando Margô) – Eu sabia...

MARGÔ (Desvencilhando-se) – Senhor Severino, por favor! Pode

chegar alguém! (Vai para outra tela). E esta aqui, o que é que

o senhor acha?

SEVERINO – Belíssima: Dona! Assim como a senhora!... (Agarra

Margô novamente).

MARGÔ – Ai!... Hum!... (Dengosa). Não! (Separa-se mais

vagarosamente). Severino: assim você me encabula... (Vai

para outra tela).

SEVERINA – Que recatada, meu Deus! Oh, mulher maravilhosa!

MARGÔ (Bastante dengosa) – Severino: você gosta desta tela?

SEVERINO – Gosto.

MARGÔ (Vai para outra tela) – E desta?

SEVERINO – Gosto.

MARGÔ (Em outra tela) – E desta?

SEVERINO – Gosto de você! (Beijando Margô). Que pureza!

MARGÔ (Quase se entregando) – É hoje! Hmmmm! (Tenta recompor-

se. Severino também se recompõe. Margô vai para outra

tela).

SEVERINO (Beijando Margô em vários pontos da nuca) –

Margozinha? Meu docinho de coco...

MARGÔ – Hmmmm! Ai! Severino... Mais... Mais... Mais...

SEVERINO (Levando Margô para outra tela) – Vem, meu amor. E esta

tela? O que é que você acha, hein? (Beijando Margô nos

ombros e costas).

MARGÔ (Nem olha para a tela e se joga nos braços de Severino) –

Um devaneio! Uma loucura! Hmmmm! (Blecaute, com

transição musical. Ao acender as luzes, novamente estão

em cena: Margô e Severino, sentados um em cada canto

do sofá, tentando disfarçar o namoro. Armando e

Fernando na biblioteca, conversando baixo. Suzana e

Vanessa lavando louça na cozinha e Otávio regando a

samambaia de metro na janela) Que almoço, meu Deus!

Nunca comi tanto como hoje!

SEVERINO – Eu também. Tô empanturrado!

MARGÔ – Por que será que quando a gente come fora de casa tem

mais apetite?

SEVERINO – Isso eu não sei, mas que tem, tem. (Rindo).

OTÁVIO (Acabando de regar) – Eu sei o que é.

MARGÔ – E o que é, hein Otávio?

OTÁVIO (Com o regador na mão) – É que não foi a gente que fez.

SEVERINO – É. Eu acho que é isso mesmo. (Rindo. Otávio entra com

o regador na cozinha).

SUZANA (Na cozinha, falando para Vanessa) – Vai, pode ir. Deixa

isso aí que eu termino.

OTÁVIO (Enchendo novamente o regador) – Ir pra onde?

VANESSA – Eu vou ao cinema com o Fernando.

OTÁVIO (Com deboche) – Ah! Sei. Pensei que fosse pra o convento!

VANESSA – Não, eu mudei de ideia. Não quero mais ser freira.

SUZANA – Isso mesmo, Vanessa. É isso aí.

OTÁVIO – Claro né? Isso já tava na cara. (Vai regar a planta de novo).

VANESSA (Para Suzana) – Tchau Suzana! E obrigadão, hein?

SUZANA – Deixa de ser boba. Divirta-se.

VANESSA – Tchau!

SUZANA – Tchau! (Fica lavando louça).

VANESSA (Saindo da cozinha, vai para a biblioteca) – Vamos, hein,

Fernando?

FERNANDO – Vamos. (Para Armando). Depois a gente fala, mas eu

ainda acho que é meio arriscado, sabe?

ARMANDO – Tá legal. A gente discute isso depois, então.

FERNANDO – Tchau, pessoal.

TODOS – Tchau! (Fernando e Vanessa saem. Severino e Margô

trocam carinhos escondidos).

ARMANDO (Só para Otávio) – E esse velho, quando é que vai

embora?

OTÁVIO – Hoje. Daqui a pouco. (Tempo). E a tua mãe?

ARMANDO – Me disse o Fernando que vão amanhã. (Tempo). E a tua

irmã?

OTÁVIO – Não vai mais.

ARMANDO – O quê?

OTÁVIO – Não vai mais ser freira.

ARMANDO – Ah! Isso eu já sabia. Eu quero saber quando é que ela vai

embora daqui.

OTÁVIO – Bom, se o teu irmão vai embora amanhã, ela também deve ir.

Afinal de contas, o que é que interessa pra ela continuar aqui

se o Fernando está no Rio?

ARMANDO (Sorrindo) – É. É um raciocínio lógico.

OTÁVIO – Escuta! Se mal lhe pergunto, quem te disse que a minha irmã

não ia mais ser freira?

ARMANDO – O Fernando.

OTÁVIO – Mas esse Fernando é um dedo duro filho da puta.

ARMANDO (Agarrando Otávio) – Otávio: qualquer dia eu... (Solta em

seguida).

OTÁVIO (Gritando muito) – Ai! Estúpido! (Tempo). Você viu o que

você me fez?

ARMANDO (Assustado) – Eu? Eu não te fiz nada...

OTÁVIO – Como não? Me fez cair o regador lá pra baixo.

MARGÔ (Para Otávio) – Otávio!

OTÁVIO (Irritado) – O que é?

MARGÔ – Eu estava dizendo aqui pra o Coronel que a janela do seu

quarto tem uma bela vista. Não é verdade?

OTÁVIO – É.

SEVERINO – Será que nós podemos ver esta vista?

OTÁVIO – Podem. (Irônico). Mas não me amarrote muito a cama, hein?

(Sai. Margô e Severino vão para o quarto de Otávio).

SUZANA (Na cozinha) – Pronto. Terminei. (Tira o avental). Até que

enfim! (Vai para a sala).

ARMANDO (Percebe que está só na sala, com Suzana) – Oi!

SUZANA – Oi!

ARMANDO – Até que tá sendo fácil, né?

SUZANA – É. Até aqui tá. Pelo menos até aqui.

ARMANDO – A gente nem sabe como te agradecer.

SUZANA – Agradecer? Como assim?

ARMANDO – Por tudo o que você fez, ou melhor, tá fazendo. Você tá

sendo maravilhosa.

SUZANA – Ôpa! Espera aí! Não vem que não tem, hein? (Tempo).

Agradecer, essa não! O que vocês têm é que me pagar. O

trato foi esse (tempo), ou já se esqueceu?

ARMANDO – Não, claro. Não esqueci não. Trato é trato, mas eu quis

dizer que além de pagarmos o seu serviço, mesmo assim, a

gente ainda fica te devendo.

SUZANA (Enfurecida) – Não senhor! Nada de prestação. Eu quero tudo

duma vez só. (Pausa). E tem mais! Eu vou querer essa grana

hoje. (Tempo). Pensa que eu não sei que a tua mãe vai

embora? Eu tô sacando, bicho. Mas na Brigitte Ponta de Faca

aqui, ninguém passa peito não! (Tempo). Tá ouvindo bem?

ARMANDO (Baixo) – Brigitte, não. (Tempo). Aqui você é Suzana.

SUZANA – Não muda o papo, não. Eu quero hoje essa grana.

ARMANDO – Tudo bem. Você vai receber o seu dinheiro. (Tempo).

Acontece que eu estava tentando dizer outra coisa.

SUZANA – Que coisa?

ARMANDO – Nada..., nada. (Tempo). Sem condições. E esqueça tá?

SUZANA – Tá. (Pausa). E a grana? Vem ou não vem?

ARMANDO – Quanto é?

SUZANA – Dez mil pratas.

ARMANDO (Susto) – Quanto?

SUZANA – Dez mil.

ARMANDO – Você enlouqueceu? Por três dias?

SUZANA – Tá legal: paga oito então, e tudo bem.

ARMANDO – Nem oito...

SUZANA – Ei! Escuta aqui: você tá me achando com cara do quê, hein?

ARMANDO – É muito dinheiro, Suzana.

SUZANA – Muito dinheiro? (Tempo). Eu tiro você duma puta encrenca,

fico três dias sem faturá na rua e você ainda me vem com esse

papo de muito dinheiro? Corta essa!

ARMANDO – Oh! Suzana: entenda a minha situação. Eu...

SUZANA – Entender? Entender o cacete! (Tempo). Ou passa logo essa

grana ou então entrego tudo pra tua mãe. (Tempo). Você

quem sabe.

ARMANDO – Tá bom. Então espera o Otávio chegar que eu só tenho

seis mil.

SUZANA – Pode ir dando esses seis mesmo antes que alguém veja.

Depois, quando o Otávio chegar, você me dá o resto.

ARMANDO – Um momento. Eu vou buscar. (Vai até uma gaveta na

biblioteca. Suzana tenta espiar onde ele está pegando o

dinheiro. Armando pega o dinheiro e entrega a Suzana).

Toma. Confere. (Dando para Suzana uma a uma 12 notas

de quinhentos cruzados). Quinhentos, mil, mil e quinhentos,

dois, dois e meio, três, três e meio, quatro, quatro e meio,

cinco, cinco e meio, seis. Certo?

SUZANA – Tá legal. (Coloca o dinheiro dentro do sutiã). Mas tá

faltando mais dois, hein? Quando a bicha chegar eu vou

querer essa grana.

ARMANDO – E se o Otávio não tiver?

SUZANA – Eu quero que ele se foda! (Tempo). Pede emprestado.

ARMANDO – Ah sim. (Tenta sorrir). Tem razão. É verdade...

OTÁVIO (Entra cantando a música de costume) – Olha o que você

fez! (Mostrando para Armando um regador de plantas todo

amassado). Veja só! Amassou tudo. Destruiu o regador.

(Tempo). E agora? Molho as plantas com o quê?

SUZANA – Quer um conselho? Mija em cima.

OTÁVIO (Para Suzana) – Por que você não vai pra puta que te pariu,

hein? (Tempo). Quando eu quiser um conselho de puta, vou

na zona, tá?

SUZANA – Bom. Vamos deixar de lero-lero. E passa logo essa grana.

OTÁVIO (Assustado) – Que grana?

ARMANDO (Tentando contornar) – Tatá: será que você pode me

emprestar dois mil cruzados?

OTÁVIO – Pra quê?

ARMANDO – Oh, Tatá!... Pra pagar a Suzana. (Tempo). O serviço dela.

OTÁVIO – Serviço? Que serviço?

SUZANA – Não se faça de bobo, não. Você tá sabendo muito bem.

(Tempo). Anda logo! Passa esses dois mil, que é pra inteirar

aqui com os seis que ele já me deu.

OTÁVIO (Deixa cair o regador) – Seis mil? (Olha furioso para

Armando).

ARMANDO (Amedrontado) – Tatá: tente compreender.

OTÁVIO (Para Suzana) – Deixa eu ver esses seis mil.

SUZANA (Batendo no peito) – Tá aqui, ó! (Tempo). Não tem nada que

ver, não. E passa logo esses dois que estão faltando.

OTÁVIO (Percebe que Suzana não mostrará o dinheiro. Faz outro

jogo) – Seis mil cruzados? Só seis mil? Eu não acredito. (Para

Armando). Você teve coragem de só pagar seis mil cruzados

pra essa santa criatura? (Para Suzana). Suzana: jura que ele

só te deu seis mil cruzados?

SUZANA – Juro.

OTÁVIO (Para Armando) – Mas você é o pior caráter que eu conheci

em toda a minha vida! (Tempo). Eu não consigo acreditar... Só

vendo, mesmo! (Para Suzana). Suzana! Você está sendo

sincera? Ele só te deu seis mil?

SUZANA – Só. (Tempo). Ele me disse que só tinha seis mil.

OTÁVIO – Me deixa ver esse dinheiro, que eu não estou acreditando.

(Tempo). Eu não posso acreditar que ele tivesse a coragem

de... (Tempo). Me deixa ver? (Suzana começa a pegar o

dinheiro. Otávio percebe que Suzana caiu na sua conversa

e continua). Ele tá cheio de dinheiro guardado. (Para

Suzana). Você viu quando ele telefonou hoje antes do almoço

pra o jornal, marcando a viagem pra o Piauí. Não viu? Você

acha que quem vai pra o Piauí só tem seis mil cruzados?

SUZANA – Olha aqui. São ou não são seis mil? (Mostra o dinheiro).

OTÁVIO (Pegando o dinheiro, começa a contar nota por nota) –

Deixa eu ver... (Tempo). Quinhentos, um, um e meio, dois,

dois e meio, três, três e meio, quatro, quatro e meio, cinco,

cinco e meio... (Pausa). Seis. (Para Armando). Canalha!

(Pausa). Eu me matando de trabalhar, me sacrificando,

fazendo economia do seu dinheiro, para o senhor pegar seis

milhões e dar pra uma puta? (Empurra com a mão a cabeça

de Armando). Onde é que o senhor está com a cabeça?

SUZANA (Investindo em Otávio) – Me dá aqui o meu dinheiro!

OTÁVIO (Empurrando Suzana) – Sai pra lá, menina. Isto aqui é

assunto de família. (Para Armando). Vamos: me responda.

Onde é que o senhor está com a cabeça?

ARMANDO – Tatá! Tente compreender. Eu estou num...

OTÁVIO (Gritando) – Não vou compreender porra nenhuma! (Tempo).

Quem você pensa que é? Virou o Cyborg agora? O homem

que caga seis milhões de dólares?

SUZANA – Me dá o meu dinheiro.

OTÁVIO (Para Suzana) – Eu vou dar o teu dinheiro. Não se preocupe

que eu vou te dar. Mas não seis mil! (Contando dinheiro).

Toma: eu vou te dar mil cruzados. E já tá muito bem pago!

(Tempo). Não se esqueça que você comeu e bebeu do bom e

do melhor e ainda por cima dormiu três dias às minhas custas.

SUZANA (Muito nervosa) – Bicha filha da puta! Eu vou te entregar...

ARMANDO – Tatá: dá esse dinheiro pra ela. Ela vai contar tudo pra

minha mãe.

OTÁVIO – Conta nada.

SUZANA – Conto sim, seu viado escroto.

OTÁVIO – Que conta porra nenhuma! (Tempo). Se contar o azar vai ser

seu. Não se esqueça de que o seu pai também vai ficar

sabendo que você é puta, micheteira, sambadona! (Tempo).

E, pelo que me parece, você gostaria muito que ele não

soubesse desse seu negro passado. Aliás, se não me engano,

foi você mesma quem falou que gostaria muito de poder voltar

pra casa do seu pai um dia. (Tempo). Não foi?

SUZANA (Pensativa, para si mesma) – Puta que pariu! O que é que eu

tinha na cabeça?

ARMANDO (Sorrindo para Suzana) – Eu publico uma foto tua no

jornal, Suzana.

OTÁVIO (Para Armando) – Cala essa boca! Já fez muita cagada hoje.

(Tempo). Quer fazer mais uma é?

SUZANA – Bicha é uma merda mesmo. (Tempo). Que é que eu tinha

que me meter com bicha?

OTÁVIO (Para Suzana) – Você não conta nada e nós também não

contamos nada pra o teu pai! Uma mão lava a outra, meu bem!

SUZANA – Mas isso não vai ficar assim, não... Pode ter certeza que eu

vou-te foder! Eu vou!

OTÁVIO – Que vai nada! (Tempo). Ou melhor, o que é que você vai

fazer?

SUZANA – Não sei, ainda não pensei. (Tempo). Mas pode esperar que

eu vou-te ferrar. (Fernando e Vanessa entram na sala).

FERNANDO – Sabem da última? Na hora de tirar os ingressos no

cinema, eu me lembrei que não peguei o paletó. E o dinheiro

tava nele, é claro.

VANESSA – E o pior é que eu também fui sem bolsa.

FERNANDO (Para Armando) – Cadê a mamãe?

ARMANDO – Tá no quarto.

VANESSA – Que quarto?

ARMANDO – No meu. (Engasga). Quer dizer: no do Otávio.

FERNANDO – Tá dormindo?

SUZANA – Tá conversando com o meu pai.

OTÁVIO (Irônico) – Conversando... (Margô e Severino saem do

quarto, dando risadas).

SEVERINO – Bom pessoal: eu vou ter que ir andando.

MARGÔ (Para Fernando e Vanessa) – Ué? Vocês não foram ao

cinema?

FERNANDO – Fomos. Mas a gente esqueceu de pegar o dinheiro.

MARGÔ – Ai, essa é ótima! (Para Severino). Essa juventude é avoada,

Coronel!...

SEVERINO – Bom: então ficamos assim. (Para Armando). Quando

você voltar do Piauí, nós marcamos a data certa. (Tempo).

Combinado?

ARMANDO – Claro senhor Severino. Combinado.

MARGÔ – Eu achei ótima essa ideia de vocês casarem no Paraná. Vai

ser uma oportunidade para conhecermos a Fazenda do

Coronel.

SUZANA – Pai?... Antes de o senhor ir, eu queria dizer uma coisa...

SEVERINO – Pode dizer minha filha!

SUZANA – Eu não sei como dizer, pai. Tô sem coragem...

MARGÔ – Ora: deixe de bobagem, menina! O seu pai fará todos os

seus desejos. (Tempo). Não é mesmo, Coronel?

SEVERINO – Claro Margô. (Para Suzana). Diz minha filha. O que é que

é?

SUZANA – É que..., é que eu tô grávida do Armando, pai.

TODOS (Assustados) – O quê? Como? Repete...

SUZANA (Pausa) – Eu estou esperando um filho do Armando, pai. Já

tem dois meses...

SEVERINO (Para Armando, tirando um revólver) – Então, você não

vai mais pra o Piauí. Vai comigo pra o Cartório, agora! (Para

todos). Ou melhor: vamos todos. Lá, na hora, a gente escolhe

quem vai ser os padrinhos.

OTÁVIO – Aquele slide maldito destruiu a minha vida... (Tempo). E

agora, meu Deus, o que é que eu faço?

ARMANDO (Para Severino) – Não é verdade, senhor Severino.

SUZANA (Corta) – É verdade sim, pai! (Tempo). Eu até acho que ele tá

querendo ir pra o Piauí pra fugir do compromisso!

OTÁVIO (Extremamente nervoso, quase à beira de um colapso

nervoso) – Meu Deus! Que sacanagem! (Vai para Severino

e, de tão nervoso, não consegue pronunciar nenhuma

palavra, apenas gesticula muito. Vai para Suzana com a

mesma reação, ficando cada vez mais agitado, até que cai

no chão, duro de nervoso, estrebucha um pouco e, em

seguida, fica imóvel).

ARMANDO (Correndo até Otávio no chão) – Otávio! Otávio!

(Batendo-lhe no rosto). Otávio! (Esfrega os pulsos de

Otávio). Puxa vida! Eu nunca soube que o Otávio era

epiléptico.

OTÁVIO (Imediatamente senta-se no chão, gritando) – Eu não era!

(Cai de novo no chão, estrebuchando até parar de vez.

Blecaute com música de transição. Observação – Os

personagens saem todos, ficando em cena somente

Armando e Otávio, que devem trocar de roupa

rapidamente, enquanto vão sendo projetados na parede

novos slides que vão sendo projetados, normalmente,

como se nada tivesse acontecido. Quando estiverem

prontos, tomam a posição inicial do Primeiro Ato. Otávio,

acendendo o abajur, está fazendo crochê. Armando e

Otávio vão comentando cada novo slide, a critério da

direção da montagem, até que aparece o mesmo slide que

criou toda a confusão do Primeiro ato. Otávio gritando).

Pelo amor de Deus, Armando! (Tempo). Você já esqueceu da

confusão do ano passado? (Toque de campainha. Armando

e Otávio ficam paralisados com a campainha. Otávio grita

mais alto). Armando: desligue o projetor e espie pelo olho

mágico!

FIM