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Porto Alegre, 26 a 30 de julho de 2009, Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural 1 DESENVOLVIMENTO VERSUS MODERNIZAÇÃO NO CEARÁ: O CASO DA BARRAGEM DO CASTANHÃO [email protected] Apresentação Oral-Desenvolvimento Rural, Territorial e regional FRANCISCA SILVANIA DE SOUSA MONTE; LUIZ ANTÔNIO MACIEL DE PAULA. UFC, FORTALEZA - CE - BRASIL. Desenvolvimento versus Modernização no Ceará: o caso da Barragem do Castanhão Grupo de Pesquisa: Desenvolvimento Rural, Territorial e Regional. Resumo Este trabalho tem como objetivo investigar se o processo de uso e controle das águas no Ceará, tendo como base a Barragem do Castanhão, contribuiu para levar o Estado a se transformar em paradigma da modernização e de desenvolvimento. Além de uma revisão sobre a evolução da política no Ceará, foi feita uma pesquisa documental sobre a política de águas e foram realizadas entrevistas com atingidos do meio rural e lideranças de movimentos sociais e religiosas. Concluiu-se que a “modernização hídrica” está desenhando uma nova configuração territorial, transformando o espaço geográfico em espaço da racionalidade técnica a serviço de interesses privados e que o desenvolvimento pretendido com a implantação da barragem ocasionou um processo de modernização excludente, principalmente dos mais diretamente atingidos pelas obras. Palavras-chaves: Desenvolvimento, modernização, reassentamento, atingidos, barragens. Abstract The objective of this study is to investigate if the process of use and control of waters in the State of Ceará, having as base the Barrage of the Castanhão, contributed to take the State to transform into paradigm of modernization and development. Beyond a review on the evolution of the politics in Ceará, a documentary research on the water policy was made and some interviews were realized with dam affected people and social movements leaders and religious leaders. It concluded that hydraulic modernization is drawing a new territorial configuration, transforming the geographic space in a space of technical rationality to serve private interest, and that the development intended by the dam construction resulted in a process of excluding modernization mainly to those directly affected by the dam. Key Words: Development, modernization, resettlement, affected, dam. 1. INTRODUÇÃO O “governo das mudanças”, instalado no Ceará em 1987, adotou uma diretriz de aperfeiçoamento da gestão pública, tendo como objetivo maior levar o estado a

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Porto Alegre, 26 a 30 de julho de 2009,

Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural

1

DESENVOLVIMENTO VERSUS MODERNIZAÇÃO NO CEARÁ: O CAS O DA BARRAGEM DO CASTANHÃO

[email protected]

Apresentação Oral-Desenvolvimento Rural, Territorial e regional FRANCISCA SILVANIA DE SOUSA MONTE; LUIZ ANTÔNIO MAC IEL DE

PAULA. UFC, FORTALEZA - CE - BRASIL.

Desenvolvimento versus Modernização no Ceará: o caso da Barragem do Castanhão

Grupo de Pesquisa: Desenvolvimento Rural, Territorial e Regional.

Resumo Este trabalho tem como objetivo investigar se o processo de uso e controle das águas no Ceará, tendo como base a Barragem do Castanhão, contribuiu para levar o Estado a se transformar em paradigma da modernização e de desenvolvimento. Além de uma revisão sobre a evolução da política no Ceará, foi feita uma pesquisa documental sobre a política de águas e foram realizadas entrevistas com atingidos do meio rural e lideranças de movimentos sociais e religiosas. Concluiu-se que a “modernização hídrica” está desenhando uma nova configuração territorial, transformando o espaço geográfico em espaço da racionalidade técnica a serviço de interesses privados e que o desenvolvimento pretendido com a implantação da barragem ocasionou um processo de modernização excludente, principalmente dos mais diretamente atingidos pelas obras. Palavras-chaves: Desenvolvimento, modernização, reassentamento, atingidos, barragens. Abstract The objective of this study is to investigate if the process of use and control of waters in the State of Ceará, having as base the Barrage of the Castanhão, contributed to take the State to transform into paradigm of modernization and development. Beyond a review on the evolution of the politics in Ceará, a documentary research on the water policy was made and some interviews were realized with dam affected people and social movements leaders and religious leaders. It concluded that hydraulic modernization is drawing a new territorial configuration, transforming the geographic space in a space of technical rationality to serve private interest, and that the development intended by the dam construction resulted in a process of excluding modernization mainly to those directly affected by the dam. Key Words: Development, modernization, resettlement, affected, dam. 1. INTRODUÇÃO

O “governo das mudanças”, instalado no Ceará em 1987, adotou uma diretriz de aperfeiçoamento da gestão pública, tendo como objetivo maior levar o estado a

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ingressar numa era de modernidade e de desenvolvimento (CEARÁ, 1987). Dentro desta estratégia, estava a implantação de uma nova política de águas, que se propunha a superar a vulnerabilidade das atividades econômicas e sociais em virtude da incerteza quanto à disponibilidade de água.

De acordo com Monte (2005), a implantação da nova política de recursos hídricos foi incluída no conjunto das macro-reformas, ao lado da reforma do Estado e dos ajustes fiscal e financeiro. A partir daí, gestões estaduais subsequentes vêm executando um ambicioso plano de oferta e disciplina do uso da água, tendo por base o argumento de que no passado não havia nenhuma preocupação, nem no estado nem na região, em se estabelecer uma estrutura capaz de ajudar a população das áreas rurais a lidar racionalmente com a escassez de água e promover o desenvolvimento.

A construção da Barragem do Castanhão passou a ser considerada o eixo central dessa nova política, sendo elemento essencial na gestão integrada das principais bacias e, por isso mesmo, tida como coração da política de águas do Estado. É também considerada elemento chave da transposição de vazões do Rio São Francisco para o Ceará, uma vez que servirá como reservatório pulmão e canal adutor da interligação de bacias. O açude está localizado na bacia hidrográfica do Rio Jaguaribe, principal rio cearense, cujo vale ocupa uma área de 72 mil quilômetros quadrados, metade do território do estado.

A barragem foi construída com a concepção de servir a usos múltiplos, com forte componente de desenvolvimento regional, cuja implementação, o governo espera representar fato de grande repercussão sócio-econômica. Segundo estimativas do Governo do Estado, o açude deve garantir o abastecimento urbano da Região Metropolitana de Fortaleza, e do Baixo Jaguaribe, além de assegurar o fornecimento de água para a área de influência do Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Terá, ainda, a dupla função estratégica de assegurar água durante os períodos críticos e conter as enchentes do Baixo Vale Jaguaribe nos anos especialmente chuvosos. Além disto, outra finalidade é aumentar a vazão regularizada do Rio Jaguaribe, permitindo o desenvolvimento hidroagrícola da região, e proporcionando a irrigação de 43 mil hectares de terras férteis, a piscicultura, o turismo, a recreação e o lazer.

Contudo, vale considerar que mesmo com todas as políticas públicas voltadas para o desenvolvimento do Ceará, constata-se ainda a persistência de indicadores que atestam o baixo nível de desenvolvimento do estado (COSTA, 1992; POCHMANN; AMORIM, 2004; LIMA, 2008). Vários estudos comprovam que a vertente hidráulica, que foi desencadeada no início do século passado, desviou o foco da questão elegendo a seca como vilã da História e priorizando a construção de barragens para a formação de reservatórios de água (MONTE, 2005; TAVARES, 2004b).

Outros estudos evidenciam que essa opção foi reforçada pelas políticas de modernização que tiveram início na segunda metade do século passado e se configuraram como “modernização conservadora”, por terem introduzido inovações tecnológicas, porém mantendo a estrutura agrária concentrada nas mãos daqueles que detêm o poder econômico e, por consequência, exercem o poder político (BURSZTYN, 1985; GRAZIANO DA SILVA, 1982).

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Outro aspecto relevante é o significado que essas políticas têm do ponto de vista da “possibilidade do desenvolvimento” na compreensão de Navarro (2001, p.83). O que dizer de um estado que ainda tem cerca 40% de sua população economicamente ativa ocupada na agricultura, quando se sabe que nos países desenvolvidos este percentual varia de 2 a 10%? De acordo com os resultados preliminares do Censo Agropecuário 2006 (IBGE, 2007), são 1 milhão e 143 mil pessoas ocupadas na agricultura do Ceará, produzindo cerca de 6% do Produto Interno Bruto (PIB). No Censo anterior, de 1995-1996, o Ceará contava com 1 milhão e 170 mil pessoas ocupadas na agricultura. Ou seja, não parece que as políticas de desenvolvimento econômico e social tenham contribuído para a transição histórica de pessoal ocupado que deixa a agricultura e migra para os setores industrial e de serviços, na dimensão que as teorias preconizam e as experiências de outros países demonstram.

O desenvolvimento rural como política pública existe no Nordeste desde o início do decênio de 1970 com o advento do Programa de Desenvolvimento de Áreas Integradas do Nordeste, mais conhecido como Polonordeste. Em seguida, nos anos 80, surgiu o Programa de Apoio ao Pequeno Produtor que inspirou, nos anos 90, o Programa de Combate a Pobreza Rural, mais conhecido no Ceará como Projeto São José. Por iniciativa do Governo do Estado, surgiram os Planos Indicativos de Desenvolvimento Rural do Ceará na segunda metade dos anos 90 e início dos anos 2000.

Portanto, torna-se relevante analisar a real efetividade das estratégias de mudanças sociais e econômicas propaladas. A modernização pode ser entendida como o incremento da racionalidade instrumental e representar um marco econômico e cultural da atualidade, sendo um critério necessário ao desenvolvimento econômico e estabelecendo o referencial obrigatório para qualquer política, conforme Lechner (1990). Neste caso, a política das águas pode ter contribuído para levar o estado a se transformar num paradigma da modernização, pelo menos a “modernização hídrica”, pensada nos seus aspectos puramente técnicos. Todavia, é preciso ainda entender até que ponto essa mudança pode ser considerada, efetivamente, desenvolvimento.

Neste trabalho, procurou-se responder questões relacionadas aos limites da modernização implementada pelo Governo do Ceará no contexto da política de águas, particularmente nos procedimentos utilizados na construção da Barragem do Castanhão, e às repercussões que essa estratégia teve no processo de desenvolvimento das comunidades atingidas. Em outras palavras, o objetivo deste estudo é investigar como e em que medida o processo de uso e controle das águas no Ceará, tendo como base a Barragem do Castanhão, contribuiu para levar o estado a se transformar em paradigma da modernização e de desenvolvimento.

Especificamente, buscou-se (a) examinar a estratégia de modernização e desenvolvimento do Governo do Estado, tendo como foco central as ações concernentes à implantação do Complexo Castanhão, e (b) analisar as manifestações de famílias reassentadas, em consequência da construção da barragem, e do Movimento de Atingidos por Barragens – MAB.

Além de uma revisão bibliográfica centrada na recuperação de análises sobre a evolução recente da política no Ceará, foi feita uma pesquisa documental sobre a política

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de águas e foram realizadas entrevistas com atingidos do meio rural e lideranças de movimentos sociais e religiosas. 2. A CONSTRUÇÃO DO “CEARÁ MODERNO”

Nas duas últimas décadas, o Estado do Ceará tem sido apresentado no cenário

nacional como expressão de transformação na estrutura tradicional de poder. Segundo Barreira (2002), foi sob o signo da ruptura, exemplificado no slogan “governo das mudanças”, que um grupo de empresários liderados por Tasso Jereissati, ocupou a cena política cearense, projetando o Ceará para o restante do país como um exemplo de estado moderno. Destaca-se na formulação deste discurso de mudança:

[...] a configuração de um ‘antes’ e um ‘depois’, – [...] (discurso) evocador de uma ‘nova era’, evidencia-se através de palavras como ‘modernidade’, ‘novo’, ‘racionalização’, ‘mudanças’, todas indicativas da instauração de um poder que busca sua singularidade através da negação radical com o passado (BARREIRA, Ibid., p.67).

Diógenes (2002) destaca que tivemos no Ceará, no final dos anos 80, a produção de novas imagens políticas que se estabeleceram no cenário local, baseadas na oposição e legitimação diante das chamadas oligarquias coronelísticas.

Em oposição ao coronelismo no Ceará, em 1985, temos uma correlação de forças políticas que se constroem na dualidade ‘velho/novo’: em 1986, com a eleição de Tasso Jereissati, verifica-se uma nova contraposição, simbolizada pela dualidade ‘tradicional (arcaico)/moderno’ (DIÓGENES, Ibid., p.108)

A construção de um Ceará moderno teve por base uma retórica das mudanças, com o governo estadual assumindo compromissos:

[...] com a superação de valores deformados, que colocavam o interesse de pequenos grupos acima dos interesses maiores da sociedade. Compromisso com o combate a todas as formas de clientelismo. Compromisso com a recuperação da moralidade do serviço público, onde o estado deve ser visto como instrumento para a realização do bem comum e não para o serviço das oligarquias. Compromisso com o combate à miséria e o respeito à cidadania como direito inalienável de todos os homens e mulheres do Ceará (CEARÁ, 1987, p.8).

O discurso de ataque aos “‘coronéis’” e ao “coronelismo” já havia sido anunciado anteriormente1, mas pela primeira vez, de acordo com Barreira (Op. cit.), tornara-se elemento fundamental da estratégia que deu suporte ao surgimento de novos 1 Este discurso foi utilizado na campanha de Maria Luíza à prefeitura de Fortaleza em 1985 (BARREIRA, 1993; BARREIRA, 2002) e também em campanhas para a Assembleia Legislativa no final da década de 1970 por candidatos de esquerda (LEMENHE, 1998).

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atores políticos. De acordo com a autora, a evocação às mudanças põe em destaque um capital político e simbólico que toma a forma de regras e legitimação de competências diferentes das até então existentes, de maneira que a herança partidária e laços de fidelidade foram substituídos por critérios que destacavam e priorizavam a formação intelectual e a experiência administrativa.

Para Abu-El-Haj (1997), a mudança política acontecida no Estado teve uma peculiaridade, por causa da existência de uma herança política tradicional, com muita frequência tachada de coronelista. Foi este tom anticoronelista que assinalou o “marketing político” do candidato Tasso Jereissati ao Governo do Estado nas eleições de 1986, facilitado pelas patentes militares de ‘coronéis’ de seus opositores políticos. Pode-se depreender isto da observação feita a seguir:

O tema das mudanças polarizou-se basicamente na promessa de transplante da racionalidade do moderno empresariado nordestino para o plano político administrativo, erradicando o clientelismo político e substituindo-o pela utilização asséptica e eficiente dos recursos públicos. A imagem ressuscitada nos meios de comunicação de massa foi a do velho e truculento ‘coronel’ defendendo os ‘currais eleitorais’ que as forças modernas se dispunham a romper (CARVALHO, 1987, p.204).

O Ceará passou de um Estado considerado miserável na imprensa nacional para se tornar exemplo de um Estado que deu certo; um modelo a ser seguido, ou para usar uma expressão muito em voga nas manchetes, para ser “uma ilha de prosperidade”. É fato que o PIB estadual cresceu, que aumentou a participação da renda estadual na renda nacional, que as contas públicas foram saneadas e que foi recuperada a capacidade de financiamento do Banco do Estado do Ceará (TEIXEIRA, 1995). Entretanto, para quem que ir além do discurso e das aparências das estatísticas, Teixeira (Ibid., p.7) faz perguntas instigantes:

[...] pode-se alegar, como o fazem os dirigentes atuais da coisa pública, do Estado, que todo este processo representa uma ruptura com o passado, com o tempo dos ‘coronéis’? Até que ponto esta propalada modernização corresponde a uma ruptura real? [...] podem estes dirigentes reclamar a autoria exclusiva dessas transformações como produto de seu jeito de fazer política, de governar? Há, de fato, uma ruptura com a economia passada, ao ponto de se julgar que o presente não guarda mais nenhuma relação com o passado?

Para um melhor entendimento desta questão faz-se necessário “analisar as coisas do âmbito de sua dialética interna [...] e perguntar pelos pressupostos de seu discurso” (Id, Ibid., loc. cit.). Para tanto, há a necessidade de entender o processo de formação da economia e da política cearense nas últimas décadas, desde a época em que, para usar uma expressão de Teixeira, (Ibid, p.8) “os assim chamados ‘coronéis’ tinham o poder político nas mãos”, chegando ao processo que levou os jovens empresários do

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Centro Industrial do Ceará (CIC) ao poder, sem esquecer o papel relevante que o Banco do Nordeste do Brasil (BNB) desempenhou na modernização do Ceará2.

A partir de 1987, com a posse de Tasso Jereissati no governo estadual, foram adotadas ações de melhoria da gestão pública do Estado, pretendendo corrigir distorções acumuladas e levar o Ceará a ingressar numa era de modernidade. O objetivo principal do Governo Estadual, tal como anunciado em seus planos de governo, passou a ser dotar o Ceará de uma economia desenvolvida no prazo de uma geração com a melhoria, em curto prazo, da qualidade de vida de todos os cearenses. A eleição de Tasso Jereissati ao governo do Estado levou ao poder uma nova elite, fortemente vinculada aos setores modernos da economia.

Para Gondim (2002), as mudanças ocorridas na sociedade cearense, a partir da eleição de Tasso Jereissati, aconteceram em função das mudanças estruturais que ocorreram na economia e na sociedade cearense desde a década de 1950 e que criaram as condições para a emergência destas novas elites.

Parente (2000), analisando as elites políticas no estado, defende que estas sempre apresentaram uma fragilidade estrutural causada pela situação de secas frequentes numa economia fortemente baseada no consórcio gado-algodão. Para o autor, a seca é “um fator importante na decomposição das elites políticas e econômicas cearenses, sobretudo numa situação em que as elites estão despreparadas para enfrentar as intempéries da natureza” (Id., Ibid., p.58).

Um outro fator desta fragilidade seria a desarticulação destas elites nas regiões Norte, Sul e Centro do próprio Estado, não existindo nem homogeneidade nem integração espacial entre elas (PARENTE, 2002, p.126). Dizer que estas elites são frágeis politicamente é, para o autor, dizer que “em situação de normalidade, não formam oligarquias fortes e permanentes como em Pernambuco, Paraíba e Bahia” (Id., Ibid., loc.cit.).

Ao mesmo tempo em que tornava frágeis as elites econômicas e políticas, a seca teria tido um papel importante no processo de modernização, uma vez que o seu aparecimento contribuía para o aparecimento de um quadro técnico e moderno, formado para interferir de forma racional nos seus efeitos (Id., Ibid.). Diversas iniciativas foram adotadas com o objetivo de aumentar o potencial técnico do estado, entre elas, a criação do Horto Florestal de Quixadá em 1911, com a finalidade de cultivar espécies resistentes à aspereza do solo e do clima; a criação da Fazenda Experimental de Lavoura Seca em 1913, que se transformou num campo de seleção de sementes mais resistentes; ainda em 1913, a criação da Escola Prática de Agricultura; em 1915 a criação do Posto Zootécnico, que contribuiu para o desenvolvimento da agropecuária na região central do Estado e a criação da Escola de Agronomia, em 1918, logo após a seca de 1915 (PARENTE, 2000, p. 73).

As elites cearenses sabiam que a modernidade era uma estratégia de sobrevivência política, sem a qual elas não se tornariam independentes dos efeitos

2 Utilizou-se para discutir este assunto os mesmos argumentos de Parente (2000), segundo os quais a modernidade cearense tem como base a criação do Banco do Nordeste do Brasil, a obstinação do Governador Virgílio Távora de transformar o Ceará no III Pólo Industrial do Nordeste e a elite do Centro Industrial do Ceará.

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climáticos. Essa convicção ter-se-ia evidenciado na década de 1950, com iniciativas tais como a criação do Banco do Nordeste do Brasil, órgão sem o qual não seria possível conceber a eficácia de uma política de modernização. “O BNB e a SUDENE foram instrumentos importantes na estruturação de um modelo de desenvolvimento regional que tornasse não só a região, mas sobretudo o Estado do Ceará, com mais condições de conviver com as secas” (Id., Ibid., p.135).

3. A POLÍTICA DE ÁGUAS DO “GOVERNO DAS MUDANÇAS”

A “questão das águas” passou a ser utilizada institucionalmente durante a construção do chamado Ceará moderno, seja justificando a industrialização como instrumento a ser utilizado para a superação das dificuldades advindas dos efeitos das secas – numa tentativa de modernizar o Estado –, como aconteceu no governo dos “coronéis”; ou justificando a implantação de ambiciosos programas hídricos, não apenas para resolver os problemas decorrentes das irregularidades climáticas, mas, principalmente, como instrumento para promover a industrialização e a consequente modernização do Estado.

Segundo Amaral Filho (2003, p.15), no primeiro Plano de Governo de Tasso Jereissati (1987 - 1991), ainda não havia uma “ideia clara” do modelo de gestão de água para o Estado, embora existisse a consciência da necessidade de se formular um modelo; orientado para o disciplinamento e a racionalização do uso dos recursos hídricos.

Considerando que as intervenções do governo contra os efeitos da seca eram emergenciais e de caráter assistencialista, com práticas de clientelismo, o Plano de Governo destacava que as soluções emergenciais deveriam ser abandonadas e deveriam ser estabelecidas soluções integradas, estruturais e permanentes. Amaral Filho (Ibid.) destaca que o governo do Estado depositou sua confiança na estratégia de desenvolvimento rural preconizada pelo Projeto Nordeste3, que seria financiado pelos governos federal e estadual e pelo Banco Mundial (Id., Ibid.)

No início de 1987 foram dados os primeiros passos na implantação da política estadual de recursos hídricos. Iniciou-se o estabelecimento de um aparato estatal e a implantação de políticas públicas para encaminhar a questão dos recursos hídricos, destacando-se a criação da Secretaria de Recursos Hídricos (SRH), em 1987, com a missão de promover o aproveitamento racional e integrado dos recursos hídricos do Estado, coordenar, gerenciar e operacionalizar estudos, pesquisas, programas, projetos e serviços tocantes a recursos hídricos, e promover a articulação dos órgãos e entidades estaduais do setor com os federais e municipais.

Outras medidas institucionais foram: a criação da Superintendência de Obras Hidráulicas do Estado (SOHIDRA), em 1987, com o objetivo de ser o braço técnico e executor das obras da Secretaria de Recursos Hídricos (SRH), e a vinculação da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (FUNCEME) ao sistema de recursos

3 O Projeto Nordeste continha alguns projetos específicos, tais como o Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural (PAPP/PDSFN), Programa de Irrigação Pública e Privada, Programa de Apoio às Micro e Pequenas Empresas no Interior, Programas de Educação Básica e Profissional do Meio Rural, Programas de Ações Básicas de Saúde no Meio Rural e Programa de Saneamento Básico no Meio Rural (AMARAL FILHO, 2003, p.16).

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hídricos. Desta forma, a SRH, a FUNCEME, a SOHIDRA e o Conselho de Recursos Hídricos passaram a compor Sistema de Recursos Hídricos do Estado (AMARAL FILHO, 2003).

A SOHIDRA foi criada, sob forma de autarquia, com sede e foro em Fortaleza e jurisdição em todo o Estado do Ceará, com as atribuições de: coletar e organizar as informações das contribuições hídricas das bacias e das demandas, com vistas ao controle permanente do balanço hídrico; executar estudos e projetos objetivando o aproveitamento de águas subterrâneas e superficiais; executar obras e serviços no campo de Engenharia Hidráulica; gerenciar os sistemas e fazer aproveitamento sócio-econômico das bacias hidráulicas públicas; monitorar a qualidade das águas subterrâneas e superficiais; realizar estudos, projetos e implantação de sistemas de irrigação no Estado do Ceará4.

Uma das providências adotadas pela SRH foi a elaboração do Plano Estadual de Recursos Hídricos (PERH), que lançou as bases da política adotada pelo setor. O plano teve início com um completo levantamento de informações a respeito da população, pluviometria, açudagem, poços e parâmetros climáticos, dentre outros, seguindo-se a análise de todos esses dados. O passo seguinte foi o estabelecimento de um Balanço Hídrico, abrangendo todo o território estadual. Mantendo a bacia hidrográfica como unidade hídrica e o município como unidade político – administrativa, o Plano introduziu o conceito de Unidade de Balanço, que resultou da superposição dos limites municipais com os da bacia hidrográfica.

Foi feita também a identificação das disponibilidades e das demandas, o que permitiu fazer uma avaliação da relação ‘oferta x demanda’ para dois cenários distintos (anos com pluviometria normal e anos secos) em horizontes decenais até 2020. A etapa intermediária da elaboração do plano foi a identificação das ações e da infra-estrutura necessárias para atender às necessidades futuras. Por último, o Plano propôs todo um aparato jurídico e institucional para o setor, além de promover a integração dos órgãos estaduais, federais e municipais, organizando-os no Sistema Integrado de Gestão de Recursos Hídricos (SIGERH)5.

O Plano Estadual de Recursos Hídricos, que levou quatro anos para ficar pronto, constitui o mais importante estudo técnico consolidado já realizado no Ceará e é a principal “fonte arquitetônica do atual modelo estadual de gestão dos recursos hídricos” (AMARAL FILHO, 2003, p.19).

Com a posse de Ciro Gomes, em 1991, houve continuidade no processo de implantação do novo modelo de gestão de recursos hídricos, de forma a permitir a propagação dos desdobramentos do Plano Estadual de Recursos Hídricos, elaborado no governo de Tasso Jereissati (Amaral Filho, Ibid.). O autor ressalta que, embora os 4 Lei estadual n.º 11.380, de 15 de dezembro de 1987. 5 O SIGERH foi instituído pela Lei 11.196 de 24 de junho de 1992, complementado pela Lei 12.217 de 18 de novembro de 1993 que cria a Companhia de Gestão de Recursos Hídricos – COGERH e pela Lei 12.245 de 30 de dezembro de 1993 que dispõe sobre o FUNORH – Fundo Estadual dos Recursos Hídricos. A sua composição reúne um conjunto de órgãos colegiados de coordenação e participação, deliberação e execução da política estadual de recursos hídricos. Congrega instituições estaduais, federais e municipais, que, de algum modo, se relacionam com recursos hídricos e com aqueles representativos dos usuários de água e da sociedade civil.

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princípios básicos da nova política já tivessem sido implementados pelo PERH, estes ainda não tinham penetrado no discurso político do novo governo.

A Política das Águas no Ceará, prevista no artigo 326 da Constituição Estadual, foi disciplinada pela Lei Estadual de Recursos Hídricos, de 1996, e visa proporcionar os meios para que a água, recurso essencial ao desenvolvimento sócio econômico, seja usada de forma racional e justa pelo conjunto da sociedade, em todo território do Ceará. A Lei tem como objetivos: assegurar o desenvolvimento sustentado compatível com a oferta de água; assegurar a oferta de água em quantidade e qualidade para as gerações atuais e futuras; planejar e gerenciar, de forma integrada, descentralizada e participativa, o uso múltiplo, controle, conservação, proteção e preservação dos Recursos Hídricos.

Para por em prática esta lei algumas diretrizes e princípios básicos devem ser respeitados: a prioridade máxima ao abastecimento humano; a proteção do meio ambiente, em especial dos cursos d’água; a articulação interinstitucional com órgãos que atuam na área de Recursos Hídricos; a definição da Bacia Hidrográfica como unidade de planejamento; tomada de decisões multilaterais e descentralizadas; e compreensão da água como bem público e econômico.

Logo após a implantação da Política de Recursos Hídricos, através da Lei 11.996, verificou-se que o SIGERH necessitava de um órgão especializado na gestão independente da infra-estrutura e do uso da água, deficiência esta que já havia sido detectada pela equipe do Banco Mundial. Assim, foi criada em 1993 a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará – COGERH6 (AMARAL FILHO, Ibid.), com a finalidade de: gerenciar a oferta dos recursos hídricos constantes dos corpos d’água superficiais e subterrâneos de domínio do Estado, e equacionar as questões referentes ao seu aproveitamento e controle, operando, para tanto, diretamente ou por subsidiária ou ainda por pessoa jurídica de direito privado, mediante contrato, realizado sob forma remunerada.

Desde novembro de 1996, a COGERH é responsável pelo fornecimento de água bruta para o abastecimento da Região Metropolitana de Fortaleza, com mais de dois milhões e meio de habitantes e onde estão concentradas as grandes indústrias do Estado. Para realizar essa atividade, a Companhia opera um sistema integrado pelos açudes Gavião, Riachão, Pacoti, Pacajús e Acarape do Meio e estações de bombeamento. O Canal do Trabalhador, com mais de 110 quilômetros de extensão, reforça o abastecimento da Região Metropolitana transportando água do rio Jaguaribe, que é perenizado pelos açudes Orós e Banabuiú.

Além da aprovação da Lei 11.996, Amaral Filho (2003) destaca mais três realizações do Governo Ciro Gomes: o aumento da capacidade de armazenamento e da oferta de água no Estado através da construção de açudes, barragens e canais; a realização de novas rodadas de estudos técnico-científicos que aconteceram no âmbito do Projeto

6 A COGERH foi criada pela Lei n° 12.217, de 18 de novembro de 1993, em conformidade com o artigo 326 da Constituição do Estado do Ceará como entidade da Administração Pública Indireta dotada de personalidade jurídica própria, organizada sob a forma de sociedade anônima, de capital autorizado.

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Áridas7, que contribuíram para ajudar a atualizar o Plano Estadual de Recursos Hídricos, ao mesmo tempo em que definiam os contornos da política de recursos hídricos do Ceará; fechamento de negociações com o Banco Mundial para obtenção de empréstimos para o financiamento do Programa de Desenvolvimento Urbano e Gerenciamento de Recursos Hídricos (PROURB).

O terceiro e o quarto governos de Tasso Jereissati (1995 a 2002) continuaram a política de recursos hídricos. O Plano de Governo do terceiro governo tomou como base as teses e propostas dos estudos do Projeto Áridas. Foram estes estudos, conforme Amaral Filho (2003), que deram visibilidade à Política Estadual de Recursos Hídricos, dando contornos mais precisos ao modelo, inclusive agregando o conceito de desenvolvimento sustentável.

Segundo o autor, a operação mais importante nesta fase foi a execução do modelo, quando o governo terminou de estruturar as regras específicas para o funcionamento do sistema e contou com o suporte financeiro do Banco Mundial.

4. A CONSTRUÇÃO DA BARRAGEM DO CASTANHÃO

A partir do início dos anos de 1980, a Barragem do Castanhão, passou a ser estudada pelo Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), no âmbito dos estudos de transposição das águas do Rio São Francisco para o Nordeste Semi-Árido, com a finalidade de desempenhar o papel de reservatório pulmão (TAVARES, 2004a). Em setembro de 1987, foi contratado o Consórcio Hidroservice/Noronha pelo DNOS, para elaboração dos Estudos Básicos, Anteprojeto, Projeto Básico e Projeto Executivo (ARAÚJO, 1997).

Com a extinção do DNOS, seu patrimônio e competências foram transferidos para o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), inclusive o futuro empreendimento Barragem do Castanhão. Desta forma, o Projeto do Castanhão só chegou ao conhecimento do DNOCS em dezembro de 1986 (TAVARES, Ibid.).

Em 1989, o DNOCS iniciou a contratação do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), o cadastramento das terras e benfeitorias e o remanejamento da população atingida. O Projeto Básico, devidamente aprovado, serviu de suporte para efetivação da Concorrência Pública nº 08/89-DGO/G, realizada em dezembro de 1989. A vencedora da licitação foi a Construtora Andrade Gutierrez S.A., porém o resultado esteve sub-judice por quase dois anos, em função de recursos interpostos por empresa concorrente. Em outubro de 1991, o Superior Tribunal de Justiça deu provimento a recurso interposto pela 7 O Projeto Áridas foi uma reflexão realizada por equipes estaduais integradas dos estados do Nordeste, com a finalidade de repensar o desenvolvimento da região tendo como referência o conceito de desenvolvimento sustentável. O Projeto Áridas nasceu na Fundação Esquel e teve o apoio da Secretaria de Planejamento, Orçamento e Coordenação da Presidência da República (SEPLAN/PR) e teve também a cooperação técnica e institucional do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA). A ideia original deste projeto aconteceu na Conferência Internacional sobre Impactos de Variações Climáticas e Desenvolvimento Sustentável em Regiões Semi-Áridas (ICID), realizada em Fortaleza no início de 1992, como base preparatória para a Conferência Mundial de Desenvolvimento e Meio Ambiente (Eco-92), para assuntos relacionados ao semi-árido, desertificação e meio-ambiente (AMARAL FILHO, 2003, p.27).

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Construtora Andrade Gutierrez, encerrando assim o processo licitatório, dando ganho de causa à empresa que apresentou o menor preço (ARAÚJO, Op. cit.).

As obras de construção da Barragem do Castanhão foram contratadas pelo DNOCS em 05 de dezembro de 1991, através do Contrato nº PGE 01/91, com a Construtora Andrade Gutierrez S.A., porém a 1ª Ordem de Serviço só foi emitida em 16 de novembro de 19958. A barragem principal é do tipo terra homogênea/concreto compactada a rolo, com 60m de altura do maciço acima da fundação, e o comprimento na parte superior de 3.400m. O volume total de terra é de 7.930.250m3. São 9 diques auxiliares com 4.205m de comprimento, 427.100m3 de volume de terra e altura máxima de 18m.

Três vezes e meio maior que o Açude Orós, o Castanhão tem capacidade para armazenar 6,7 bilhões de m3 de água. O reservatório tem um comprimento máximo de 48km, área inundada de 32.500ha na cota 100m (cota de sangria), de operação normal, e 60.000ha na cota da cheia máxima possível.

Segundo estimativas do governo, o açude deve garantir o abastecimento urbano, beneficiando 2.567.000 pessoas na Região Metropolitana de Fortaleza, e também no Baixo Jaguaribe, além de assegurar o fornecimento de água para a área de influência do Complexo Industrial e Portuário do Pecém9.

São consideradas áreas de influência funcional, segundo o Relatório de Impacto Ambiental do Castanhão, os municípios de Alto Santo, Aracati, Limoeiro do Norte, Russas, Tabuleiro do Norte, Quixeré, São João do Jaguaribe, Jaguaruana e Itaiçaba, os quais seriam beneficiados com a regularização das cheias; as áreas destinadas ao aproveitamento hidroagrícola; o sistema de abastecimento d’água da Região Metropolitana de Fortaleza e áreas periféricas ao reservatório que serão beneficiadas com o desenvolvimento da pesca, piscicultura e turismo.

As principais finalidades da barragem são aumentar a vazão regularizada do Rio Jaguaribe, de 22 para 57m3/s, permitindo o desenvolvimento hidroagrícola da região e proporcionando a irrigação de 43.000ha de terras férteis no Chapadão do Castanhão e derivação do Apodi (Sistema Jaguaribe-Apodi, na divisa com o Estado do Rio Grande do Norte), gerando 94.000 empregos permanentes; abastecimento d’água às populações ribeirinhas e derivação de água para abastecimento da Região Metropolitana de Fortaleza.

A construção da Barragem Castanhão atingiu diretamente uma população de 2.268 famílias no meio rural. Destas famílias, 1.515 foram consideradas reassentáveis, uma

8 Em julho de 1995, o DNOCS celebrou convênio com o Governo do Estado do Ceará, a fim de viabilizar ações decorrentes da construção da barragem, no que se refere ao envolvimento com populações, como a construção da cidade de Nova Jaguaribara e o Reassentamento da População Rural, bem como outras ações pertinentes à execução da obra. Em 22 de outubro de 1996, o DNOCS assinou o Contrato nº PGE 16/96 com o Consórcio Aguasolos/Hidroterra, vencedor da licitação para execução de serviços de consultoria para as obras da barragem. (ARAÚJO, Op. cit). 9 O Complexo Industrial e Portuário do Pecém, localizado no município de São Gonçalo do Amarante, distante 56 km de Fortaleza, no estado do Ceará, é uma obra de infra-estrutura que tem por objetivo dotar o estado de um núcleo de irradiação de desenvolvimento, a partir da implantação de novas e modernas instalações portuárias, permitindo dessa forma, maior integração da economia do estado com a região e redução do desemprego.

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vez que não tinham condições de restabelecer por sua própria conta, por serem simples moradores ou porque, sendo proprietários, receberam uma indenização que não lhes permitia se restabelecer dignamente. Para reassentar a população, foram criados projetos de irrigação, assentamentos de sequeiro, assentamentos na nova cidade de Jaguaribara, assentamento em áreas remanescentes das propriedades e um projeto de piscicultura.

O reassentamento das famílias da área rural afetadas pela Barragem do Castanhão sempre esteve cercado de problemas, desde a falta de percepção inicial por parte dos órgãos estatais envolvidos da necessidade do reassentamento rural – o que gerou uma série de outros problemas –, até à excessiva multiplicidade de atores envolvidos e, portanto, vários discursos e interesses no reassentamento urbano e rural das famílias atingidas pela Barragem do Castanhão.

No início de 2003, apenas os moradores da zona urbana de Jaguaribara tinham a situação de moradia resolvida, pois a cidade de Nova Jaguaribara foi inaugurada em agosto de 2002. Os assentamentos rurais de Caroba, Sossego, Alegre, Borges, Barra II, Santa Bárbara, Barra do Rio do Sangue e Velame foram implementados com vários problemas ainda por serem resolvidos, principalmente com respeito à infra-estrutura, e os projetos de irrigação ainda não haviam saído do papel. Tinham sido reassentadas 564 famílias rurais e 595 estavam aguardando reassentamento. Em março de 2004, tinham sido reassentadas famílias 917 famílias, faltando 217 a serem reassentadas.

A Construção da Barragem do Castanhão na Perspectiva dos Atingidos do Meio Rural

Cerca de 37% dos atingidos do meio rural pela construção da barragem e que foram transferidos para reassentamentos rurais10 tomaram conhecimento da obra e da necessidade de desocupação da área através dos técnicos do Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará – IDACE. Em segundo lugar, aparecem os meios de comunicação com 26,76%, seguidos de outras fontes de menor significado. No que diz respeito à reação da comunidade em relação à construção da barragem, 73,24% se manifestaram negativamente; destes 15,49% disseram que não queriam morar em outro lugar, 8,45% se mostraram revoltados, 12,67% declararam não ter gostado, 12,67% declararam-se conformados, 14,1% ficaram com medo ou apavorados, 1,41% ficaram preocupados, 1,41% mostraram insegurança com relação ao futuro, 7,04% duvidaram e 5,63% demonstraram profunda tristeza. Estes percentuais confirmam os relatos feitos pelas lideranças das organizações sociais quando discutiram se a obra trouxe mais benefícios do que prejuízos para a comunidade.

Os motivos para a reação da comunidade eram os mais variados possíveis. Iam desde o fato de que não queriam sair daquelas terras (12,68%) até à falta de informação (2,82%). O apego à moradia e a incerteza do destino aparecem em 8,45% das respostas. Da mesma forma, o medo e a incerteza do destino apareceram em 9,85% das manifestações. Por outro lado, 8,45% aceitaram a realocação das famílias, motivados, sobretudo, pela

10 Dados da pesquisa realizada em 1999 com uma amostra representativa da população dos Reassentamentos Caroba e Sossego e do Núcleo Malhada Vermelha.

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possibilidade de se tornarem proprietários, e 2,82% declararam que com o tempo as pessoas passariam a entender a situação.

De certa forma estas e outras reações refletem a questão da transferência involuntária de famílias do seu local de moradia. Como em outros casos de atingidos de barragens, os primeiros movimentos de luta são marcados pela revolta e pela aglutinação das pessoas em busca de informações que os esclareçam sobre o que está acontecendo (ARAÚJO, 1990).

Cerca de 25% dos entrevistados identificaram que os principais problemas levantados por ocasião das reuniões com os técnicos do IDACE diziam respeito à moradia, local de trabalho, escolas e postos de saúde. Na verdade, quando 14,08% dos agricultores declararam que o principal problema seria a realocação das famílias e 8,45% disseram que “não tinham para onde ir”, estes também manifestavam preocupações com a moradia e as condições de trabalho. A transferência do gado e a existência de pastos fizeram parte das preocupações de 5,63% dos entrevistados. Estes dados, aliados aos 2,81% que temiam a necessidade de mudarem as culturas já tradicionais para eles, demonstram os problemas com a quebra das atividades produtivas familiares.

As principais soluções apontadas para os problemas estão relacionadas a terras para o reassentamento, locais de moradia e condições de trabalho. Isto apenas demonstra uma coerência entre as soluções apontadas e os problemas. Apesar de 25,35% dos entrevistados terem declarado que as soluções saíram das reuniões, um número muito grande de agricultores não soube responder (19,72%) ou simplesmente não quis responder (45,97%). Isto pode significar que nem todos participaram das reuniões ou, ainda, que mesmo tendo participado não internalizaram o processo suficientemente a ponto de compreenderem sua dinâmica e seus resultados. Podem até ter clareza do conteúdo das soluções apontadas, mas não parecem seguros quanto ao processo que lhes foi apresentado pelos técnicos quando da aplicação da metodologia.11

Quando perguntados se haviam participado da definição de critérios de seleção das famílias a serem assentadas, 57,75% responderam positivamente. Esta resposta é surpreendente uma vez que os critérios foram previamente definidos pela instituição responsável pelo reassentamento.

É sintomático então o resultado confuso apresentado nas respostas sobre a forma de participação. Ao passo que 14,71% dos entrevistados declararam que participaram da escolha dos critérios em reuniões onde cada um deles podia escolher para onde ir, 25% disseram que os critérios foram expostos em reunião. Na verdade, é possível observar um mal entendido entre “elaboração dos critérios” e “seleção do local de reassentamento”. Ressalte-se ainda o percentual dos que não responderam de 38,02%. Com relação à indicação de área para o reassentamento, 60,56% dos entrevistados responderam positivamente.

Na perspectiva dos primeiros agricultores reassentados do Projeto Castanhão, também emerge fortemente o sentimento contra a construção da barragem. Reafirma-se aqui, a sensação de que as “âncoras” de sustentação de suas vidas – moradia, trabalho, escola etc. – estariam sendo retiradas involuntariamente. Questiona-se, ainda, se o processo foi participativo ou não, uma vez que as manifestações dos entrevistados são desencontradas, deixando dúvidas sobre o verdadeiro papel desses atores no processo.

11 Trata-se da metodologia Intervenção Participativa dos Atores (FURTADO e FURTADO, 2000).

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A Percepção do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) sobre a Construção da Barragem do Castanhão

Apesar de registros de participação dos moradores no 1º Encontro Regional de

Atingidos por Barragens, em Igarassu - PE, em 1989; no 1º Encontro Nacional dos Atingidos por Barragens, em Brasília, em 1991; no dia Nacional de Luta contra as Barragens, em Orocó - PE, em 1993; no II Encontro Regional dos Atingidos por Barragens no Ceará, em Iguatu, e na Assembleia de Atingidos por Barragens, em Limoeiro, em 1994; não havia uma ideia de movimento de atingidos na região até meados dos anos 90. A história do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Castanhão, enquanto movimento organizado de luta contra as barragens, iniciou a partir de 1993, quando um dos atuais líderes do movimento começou a participar das reuniões que aconteciam em Jaguaribara e em Fortaleza, e em São Paulo, em 199712:

Eu já participava dessas discussões e reuniões, em Fortaleza e aqui também na região a convite do conselho da igreja, então me convidaram para [participar de uma reunião] São Paulo e eu fui; ia pra lá, mas [sabia que] quando chegasse aqui não tinha como fazer o trabalho, já sabia quando chegasse aqui ia encontrar resistência e foi exatamente o que aconteceu [...]

Percebe-se, claramente no depoimento, que a ideia do movimento começou a

tomar forma a partir da insatisfação de como a questão da barragem estava sendo tratada pelas lideranças do Município de Jaguaribara, principalmente a Igreja.

Eu questionava muitas vezes coisas [...] No início destas reuniões do grupo de trabalho com alguns colegas, mas mais como pessoa até porque eu não tinha afirmação com o que sentia na comunidade, o respaldo de movimento e o trabalho que era feito pelas entidades. Eu sabia que era mais a partir de um certo momento, era mais de concordância com o governo do que discordância, então a gente ia questionar as coisas mais como pessoa, como uma pessoa com opinião e isso era ruim.

A falta de planejamento do Estado para os atingidos do meio rural foi um fato

que contribuiu para a organização do MAB na região:

No início do Castanhão, da construção, da discussão, não tinha planejamento para os atingidos da zona rural como um todo, eu participei algumas vezes de debates [...], em Fortaleza, nas audiências públicas que se faziam. Algumas pessoas aqui de Jaguaribara participavam, políticos e instituições religiosas, mas quando chegavam aqui não faziam a socialização do debate com a comunidade, com o povo. Alguns políticos aqui diziam que eram contra a construção da Barragem e lá nas discussões com os técnicos eram a favor, aí foram empurrando assim com a barriga, até que em dado momento a gente foi se dando conta que precisava organizar (Depoimento de um dos fundadores do MAB, em 2004).

12 Depoimentos dados por um dos fundadores e organizadores do MAB na região.

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Durante os anos de 1997 a 1999 intensifica-se a participação dessas novas

lideranças no Movimento Nacional de Atingidos por Barragens. Assim, em reuniões e congressos nacionais, assim como na audiência pública promovida pela Comissão Mundial de Barragens, em São Paulo, em agosto de 1999 se tomou conhecimento do que acontecia no resto do país e em outros países.

[...] quando a gente já estava sintonizando a comunidade do Alagamar, que é a nossa comunidade, tendo que criar uma associação, organizar o povo porque lá a comunidade é bastante numerosa e não se tinha uma ideia de reassentamento, também porque não se tinha um planejamento do governo nessa parte e também uma comunidade muito é [...], uma comunidade é muito dominada pela uma questão política e fazendeiro e tudo isso então havia uma luta também intensa e interna dentro da comunidade e eu era uma das pessoas que estavam naquele momento na frente, vamos dizer assim, nessa organização da comunidade, [...] então eu fui com todas essas dificuldades tanto repassar esse trabalho, como movimento da região.

Naquele momento, outras pessoas estavam ascendendo na comunidade, e um deles foi indicado para organizar o movimento, por ser uma pessoa que já estava participando na comunidade como liderança da associação.

Eu também senti que ele tinha condição de fazer uma situação de maior amplitude aqui na região, até porque ele não tinha emprego, ele já estava desempregado não tinha como desempregar ele (sic), e também senti que ele tinha coragem de enfrentamento.

Apenas no início de 2000 é que começou a se discutir a ideia de fortalecer o movimento da região; existia o contato de duas pessoas com o movimento, mas não havia a ideia na região como um todo. Dois principais líderes iam de bicicleta do Alagamar para Jaguaribara e para outras comunidades na tentativa de sensibilizar o pessoal de Jaguaribara, onde já existia um trabalho. Entretanto, segundo o depoente, o trabalho feito em Jaguaribara era um trabalho apenas paroquial e precisava ser um trabalho com os atingidos, independentes de serem oriundos dos municípios de Jaguaretama, Alto Santo ou Jaguaribe e Jaguaribara.

Foi muita dificuldade que a gente encontrou para criar de fato uma ideia de movimento na região, porque a barragem do Castanhão não é hidrelétrica, por conta disso é [...], as pessoas não podiam ser contra a água [...]

Com a proximidade das obras do Castanhão, começou-se a questionar o encaminhamento de um grande número de famílias para as áreas de sequeiro e para áreas muito ruins, onde não era feito sequer o estudo do solo da propriedade pra saber se naquela propriedade podia plantar e se havia condição de produzir, criar, se a propriedade podia comportar todas as pessoas.

Depois que a gente começou a questionar tudo isso, a fazer reuniões com eles, o pessoal do Governo, é que eles começaram a fazer os estudos, depois que as pessoas já estavam lá, reassentadas, sem energia, sem água, sem saúde, sem tudo isso [...]

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Por volta de 1999/2000 aconteceram vários enfrentamentos internos das novas lideranças, ligadas ao Movimento Nacional de Atingidos por Barragens e as organizações que já faziam um trabalho em Jaguaribara. Segundo o depoente, se olhassem para trás veriam que existiam mais problemas criados do que soluções alcançadas, como, por exemplo, reassentar o pessoal do sequeiro e achar que não existiam mais problemas.

O pessoal do governo passava número tal, tem tantas famílias, pois já estão encaminhadas, então não tem mais problemas. [...] Estava encaminhada mas tinha uma série de problemas para até que você chegasse lá, tivesse condição de produzir, condição de trabalhar, condição de morar [...], então foi-se desmascarando essa realidade e mostrando para o governo, as empresas que construíam casas, e também para as organizações como igreja, associações da área urbana que precisava se mudar e até ser mais agressivo com essa parte junto com o governo[...], o enfrentamento junto com os atingidos e com o governo [...] a partir de todas essas reuniões.

Estabeleceu-se, desta forma, uma clara disputa entre a Igreja e o MAB, que pode também ser

percebida no depoimento da freira Bernadete Neves, líder da organização da comunidade de Jaguaribara, quando perguntada sobre o trabalho de organização do MAB na região. Esta disputa também pode ser percebida pelo depoimento de um dos líderes do MAB na região:

Nós começamos com o MAB há muito tempo, nós é que começamos desde 85, nós fomos visitar Itaparica, entramos em contato com o pólo sindical de Médio São Francisco, que era do MAB. Eles fizeram visitas aqui [...] e nós íamos participar dos encontros regionais e também nacional e internacional. [...] então isso é uma coisa muito antiga, essa organização do MAB aqui na região, só que como existem muitas entidades e outras que davam apoio muito mais significativo [...] a gente nunca se colocou em nome do MAB. Então depois de 95, já [depois de] dez anos e meio de trabalho uma turma foi pra lá e resolveu assumir mesmo como o MAB. Aí começou o trabalho de uma proposta, eu vou dizer assim idêntica (Depoimento da Irmã Bernadete Neves). E pra nós, aqui é um movimento que achamos que ele tem se tornado um sujeito político na história regional dos atingidos, das famílias atingidas por barragem na luta concreta, nas reivindicações, nos questionamentos, na clareza, inclusive separando o que é, conseguindo identificar quem são quem (Depoimento de um dos líderes do MAB).

Quando perguntada sobre a avaliação do trabalho do MAB na região, Bernadete

Neves comentou: [...] Quando a gente fez encontro em nível nacional, a gente sentia que a visão do MAB era sempre como se toda barragem fosse hidrelétrica, [...] No semi-árido, a gente sempre acumula água, não nesse mundão que é o Castanhão [...] por isso nós pedimos dez barragens distribuídas, mas a gente não pode no semi-árido não querer água. Eu acho que tem tudo pra ser um bom trabalho pra coordenar a luta dos atingidos, [...] eu acho que tem tudo pra isso. [...] o que falta é só botar o MAB no semi-árido [...] aqui no Nordeste é diferente.

Provavelmente também em função desta disputa, os dirigentes do MAB

sentiram a necessidade de uma melhor organização, de conscientizar o povo para conquistar seus direitos, da convicção de que estando apenas no papel as coisas não eram garantidas; era necessário que as pessoas lutassem para melhorar as propostas que estavam apenas escritas. Houve muitas dificuldades para que o movimento conseguisse se

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estabelecer na região. Entretanto, aconteceram algumas conquistas no sentido de discutir com o governo ou com as empresas sobre a incorreção do processo e a falta de planejamento do reassentamento para as famílias.

Integrantes do MAB da Região do Sul vieram fazer um trabalho no sentido de fortalecer a ideia de organização, que até então só contava com duas pessoas. De acordo com o MAB, houve muitas dificuldades naquele momento para se fazer isso:

Posso recordar aqui em uma reunião que a gente teve no dia 31 de outubro, é dia das bruxas, [...] então eles chamaram a gente nesse dia para massacrar; o pessoal do Governo da área estadual e federal, junto com as organizações que faziam o trabalho para realmente sufocar a gente, quer dizer, expulsar da região os companheiros que estavam na região fazendo trabalho de organização [...] eles massacram demais a gente [... ]nesse sentido ideológico de discussão, e porque o que eles reconheciam e deixavam bem claro não era MAB na região, a ideia de MAB era de acabar, era apenas discutir alguma coisa a Igreja, a Igreja de Jaguaribara que é quem estava junto com eles é isso que ela que deixaram bem claro, nós não concordamos com isso.

Não houve avanço nenhum naquele momento, pois o Governo e as

organizações se comprometeram a fazer muitas coisas, mas estas não aconteceram. Então o movimento começou novamente a discussão e a pressionar, o que levou à mobilização de 14 de março de 2002, em Fortaleza, quando aconteceu a 43ª Assembleia de Governadores do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID):

Um grande número de pessoas foi, alguns com medo, mas foi, e a partir daí é que se conseguiu mostrar para o governo, mostrar para a sociedade, para imprensa que registrou o acontecimento, a mobilização, todos os erros do Castanhão, dos projetos que já estavam sendo implantados, dos que estão a espera de ser implantados...

Naquela ocasião, o MAB encaminhou um documento ao Diretor Geral do

DNOCS expondo a situação dos reassentados e reivindicando: melhoria da infra-estrutura em todas as casas; solução imediata dos problemas nos assentamentos de sequeiro; solução do grave problema de falta de abastecimento d’água para consumo humano; aquisição de áreas de terra próprias para agricultura; verba de manutenção para todas as famílias, reassentados ou não, que ainda não têm condições de auto-sustentabilidade; irrigação para todas as famílias; melhoria da infra-estrutura existente nos projetos de reassentamento; construção de adutoras, açudes e benfeitorias de apoio na área social; término das obras de infra-estrutura das áreas de irrigação; renegociação dos créditos para o reassentamento; capacitação técnica dos agricultores para esta nova realidade; linha de crédito especial para viabilização da produção agrícola; e, execução das medidas mitigadoras do impacto ambiental, criação de projetos de conservação ambiental para reposição da flora e fauna da região e cumprimento da legislação ambiental no que tange ao desmatamento da área inundada.

No início de 2002, a Comissão Municipal dos Atingidos pela Barragem do Castanhão apresentou um documento na Reunião do Grupo Multiparticipativo do Castanhão, apresentando a situação da população atingida naquela data. O documento

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denunciava que parte significativa da população atingida estava sendo excluída do direito ao reassentamento e de permanecer na sua terra natal por várias circunstâncias: 196 famílias residentes na zona rural pretendiam morar na cidade em virtude de não mais exercerem suas atividades na agricultura e 438 famílias já haviam migrado, vencidas pelo cansaço da espera e por não terem mais condições de sobrevivência dentro do município.

Outros aspectos destacados no documento diziam respeito aos não proprietários que iriam receber quantias inferiores a 20 mil reais, e que tinham sua indenização atrelada à do proprietário, o que dificultava a reorganização de suas atividades produtivas; aos comerciantes inquilinos que ainda não sabiam para onde iriam; a alguns proprietários da chapada do Alagamar que não tinham suas propriedades regularizadas; aos 215 proprietários ainda à espera de indenizações, a partir de 21 mil reais; aos cerca de 80% dos moradores da zona urbana que também não tinham escritura registrada de seus imóveis; e, algumas famílias que já receberam suas indenizações, mas ainda não encontraram terras a serem adquiridas e não têm recebido nenhum apoio neste sentido.

O movimento conseguiu colocar em discussão todas as entidades que estavam conduzindo o projeto, e a partir daí houve uma movimentação, uma mudança interna dos órgãos que faziam o trabalho do Castanhão. O IDACE, órgão encarregado de associar, cadastrar, de ver as propriedades, transferir o pessoal, e construir casas em convênio com o DNOCS, passou a sofrer severas críticas do movimento.

Segundo o depoente, o IDACE fez casas de má qualidade, com o reboco caindo, o piso cheio de buracos e não obedecendo às especificações dos projetos, tendo isto sido denunciado em documento pelo movimento. Em seguida, o Governo Federal retomou o processo de construção para o DNOCS, que contratou uma consultoria para fazer todas as checagens, um levantamento da realidade do Castanhão, de todos os projetos e do pessoal reassentado.

O movimento considera uma vitória que as discussões tenham começado a considerar a parte social, a moradia, a qualidade da terra e a possibilidade de fazer adutoras para as áreas de sequeiro. Houve discussão com os técnicos, com o governo, a partir da mobilização de Fortaleza, e, também com o Ministro da Integração, que se comprometeu a colocar o DNOCS pra fazer todo esse levantamento. Hoje existe um plano conjunto simplificado chamado de Reassentamento Rural Delineado, feito com base na realidade mostrada pelo movimento, e com indicações de empresas, observações e críticas ao trabalho que foi feito pelo IDACE nos reassentamentos.

A partir de 2002, foi adotada a metodologia de formação dos grupos de base do

MAB em cada reassentamento. O movimento incentiva a organização, através da ideia de que cada localidade deve ter uma associação, no sentido de fortalecer a luta local, numa escala pequena interna da comunidade e ao mesmo tempo fortalecer o propósito da luta geral. O desafio daqui para frente, enquanto movimento, é fazer com que todos os projetos passem a produzir, as pessoas passem a viver com dignidade e fortalecer os grupos de base, para consolidar o movimento na região.

5. CONCLUSÕES

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Ao contrário do verificado na “época dos coronéis”, o “governo das mudanças” utilizou a seca para justificar a implantação de ambiciosos programas hídricos, pensados principalmente, como instrumento não só para atrair indústrias, mas fundamentalmente para dar suporte a essas indústrias. A sobrevivência desta elite dependia agora de oferecer condições ideais para a industrialização que iria promover a modernização e o desenvolvimento do Estado.

Ressalte-se que a modernidade hídrica está desenhando uma nova configuração territorial no Ceará, de tal forma que, o espaço geográfico está sendo transformado no espaço da racionalidade técnica. Dentro deste contexto, insere-se a Barragem do Castanhão, considerada o eixo central da política de águas e elemento essencial na gestão das bacias.

O reassentamento dos atingidos do meio rural esteve cercado de problemas desde o início. O desenvolvimento ou modernização pretendido com a implantação da Barragem passa ao largo de um processo que eleve o padrão de vida, que reduza a pobreza e fortaleça o meio ambiente. Se nesta perspectiva de desenvolvimento, reassentamento e restabelecimento das condições de vida são domínios nos quais se afirmam os direitos humanos, estendendo a justiça social e promovendo a inclusão ao invés de exclusão proeminente nas agendas políticas, pode-se afirmar que aconteceu no Castanhão um processo de modernização excludente.

Se os componentes fundamentais que devem ser considerados nos processos de deslocamento, a fim de que alcançar o desenvolvimento são a ausência de pessoas sem terra e sem teto, desempregadas, marginalizadas, sofrendo de insegurança alimentar, com falta de acesso aos recursos comunitários e sem desarticulação dos laços comunitários, que modelo de desenvolvimento e de modernização é este que se propôs no Castanhão? Nota-se que faltou no Castanhão uma política clara para o reassentamento rural.

No que tange à participação da comunidade tão propagada pelo governo do Estado, cabe uma reflexão particular acerca da ação desenvolvida pelo Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará (IDACE), representante do governo estadual no processo de reassentamento. O trabalho do IDACE teve por base uma metodologia participativa que já vinha sendo utilizada em assentamentos de reforma agrária no Ceará, mas que se mostrou problemática no caso da Barragem do Castanhão, dado o pouco poder de decisão que tinham seus técnicos no processo de reassentamento e à forma em que se processou o reassentamento rural, sempre a reboque dos outros processos.

Quando se avalia o processo de implantação da barragem do Castanhão, constata-se a permanência de práticas que evocam as ações dos tempos dos “coronéis”. A modernização das práticas de planejamento e gestão de recursos hídricos em escala estadual se concretiza através de práticas tradicionais. Na verdade, seria mais justo dizer que se assiste no caso do Castanhão, uma combinação híbrida de alguns traços de formas modernas, planejadas e abertas, mesmo que de maneira incompleta, à participação; com formas em que se combinam traços de autoritarismo e exclusão política, onde o social ainda é moeda de troca.

Há que se considerar que o aprimoramento de práticas de gestão pública pode não necessariamente se adequar aos modelos de aperfeiçoamento da gestão típica do setor

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privado. No caso de programas e projetos públicos, a gestão social deve fazer parte da estratégia desde a sua concepção. Ou seja, modernizar procedimentos visando ganhos de eficácia e eficiência, não necessariamente implica em efetividade dos programas sociais. Se, como produto, o governo apresenta o açude construído, com um reservatório acumulando água suficientemente para suprir o estado conforme previsto, isto não implica em dizer que os resultados, do ponto de vista da melhoria das condições de vida das pessoas diretamente atingidas, foram satisfatórios.

No caso aqui analisado, claramente não foi. O processo de desapropriação e reassentamento das famílias rurais foi extremamente doloroso como se pôde ver nos relatos dos agricultores reassentados e dos líderes do movimento dos atingidos.

Parece claro que a concepção vigente confia na estratégia de modernização como sendo suficiente e não compreende (ou não aceita) que as questões estruturais – que ainda são as bases das desigualdades sociais – fazem com que a estratégia passe, necessariamente, pelas etapas de um processo de desenvolvimento. Ou seja, a inclusão das famílias atingidas pela barragem não pode ficar apenas no critério jurídico da desapropriação e nem no critério econômico das leis do mercado da busca por novas formas de ocupação. Antes de tudo, o processo exige compreensão e uso de práticas de desenvolvimento de comunidades para que aquelas pessoas de fato participem do processo como atores importantes e que a estratégia resulte na inserção delas, de forma pactuada, no processo produtivo – que advém da modernização –, mas também, na melhoria de vida que é o objetivo maior do desenvolvimento.

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Porto Alegre, 26 a 30 de julho de 2009,

Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural

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