desenvolvimento e aglomeraoão populacional · clássico morte e vida das grandes cidades. em seu...

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25/01/12 [116] 1/3 www.]eeli.pro.br/old_site/Textos/Estadao2001/116.htm [116] Desenvolvimento e aglomerao populacional [Economias locais resultam de relações sinérgicas entre atividades urbanas e rurais] [Em países ricos a maioria vive em local relativamente ou essencialmente rural] A tragédia de 11 de setembro não comprometerá a posição de Nova York como capital econômica dos EUA. A prova é que nenhuma das grandes cidades do Japão arrasadas pelos bombardeios americanos do final da 2 a . Guerra Mundial deixou de recuperar seu lugar anterior na hierarquia urbana do país. Um fenômeno extremamente robusto, que foi explicado com o habitual didatismo por Paul Krugman, em artigo publicado anteontem neste espaço. As economias das grandes cidades são sustentadas por um processo de auto-reabastecimento que parece ³uma espécie de círculo virtuoso´: as pessoas e as empresas nelas se fixam por causa das oportunidades criadas pela presença de outras pessoas e empresas (³ NoYa York ferida´, Estado 4/10). Bem mais difícil é entender o outro lado da moeda. Se esse círculo virtuoso dá tanta força à economia da grande cidade, como explicar que as economias mais desenvolvidas do planeta não sejam inteiramente organizadas por esse tipo de aglomeração urbana ? Por que certas regiões que não possuem grandes cidades chegam a se mostrar até mais dinâmicas ? Por que razão um número tão significativo de pessoas e empresas dos países do Primeiro Mundo estão em regiões classificadas pela OCDE como relativamente ou essencialmente rurais, como mostra a tabela ? Por que não foram tragadas pelo fortíssimo processo de auto-reabastecimento das grandes cidades? Qualquer tentativa de responder a estas perguntas rapidamente sugerirá que o argumento de Krugman é simples sofisma. Pois a permanência de muitas pessoas e empresas fora das grandes cidades também se deve a oportunidades criadas pela presença de outras pessoas e empresas. A diferença está na natureza dessas oportunidades e em suas respectivas vantagens comparativas. A cidade, seja qual for a sua dimensão, oferece equipamentos e serviços que facilitam muito, tanto a vida cotidiana das pessoas, quanto o funcionamento das empresas. Do transporte às telecomunicações, passando por serviços públicos essenciais como saneamento, energia, educação, ou coleta de lixo, é óbvia a superioridade da infra-estrutura urbana sobre a rural. Além disso, as amenidades urbanas, que se manifestam principalmente na oferta concentrada de bens culturais e esportivos, também atraem mais gente que as amenidades rurais, mais ligadas à oferta de bens naturais, como silêncio, ar puro, belas paisagens, ou contato com animais. Participação relativa da população em patses da OCDE (em porcentagens)

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Page 1: Desenvolvimento e aglomeraoão populacional · clássico Morte e vida das grandes cidades. Em seu mais recente livro - A nature]a das economias (São Paulo: Beca, 2001) ± ela faz

25/01/12 [116]

1/3www.zeeli.pro.br/old_site/Textos/Estadao2001/116.htm

[116]

Desenvolvimento e aglomeração populacional

[Economias locais resultam de relações sinérgicas entre atividades urbanas e rurais]

[Em países ricos a maioria vive em local relativamente ou essencialmente rural]

A tragédia de 11 de setembro não comprometerá a posição de Nova York como capitaleconômica dos EUA. A prova é que nenhuma das grandes cidades do Japão arrasadas

pelos bombardeios americanos do final da 2a. Guerra Mundial deixou de recuperar seulugar anterior na hierarquia urbana do país. Um fenômeno extremamente robusto, quefoi explicado com o habitual didatismo por Paul Krugman, em artigo publicadoanteontem neste espaço. As economias das grandes cidades são sustentadas por umprocesso de auto-reabastecimento que parece “uma espécie de círculo virtuoso”: aspessoas e as empresas nelas se fixam por causa das oportunidades criadas pelapresença de outras pessoas e empresas (“Nova York ferida”, Estado 4/10). Bem mais difícil é entender o outro lado da moeda. Se esse círculo virtuoso dá tantaforça à economia da grande cidade, como explicar que as economias maisdesenvolvidas do planeta não sejam inteiramente organizadas por esse tipo deaglomeração urbana ? Por que certas regiões que não possuem grandes cidades chegama se mostrar até mais dinâmicas ? Por que razão um número tão significativo de pessoase empresas dos países do Primeiro Mundo estão em regiões classificadas pela OCDEcomo relativamente ou essencialmente rurais, como mostra a tabela ? Por que não foramtragadas pelo fortíssimo processo de auto-reabastecimento das grandes cidades? Qualquer tentativa de responder a estas perguntas rapidamente sugerirá que o argumentode Krugman é simples sofisma. Pois a permanência de muitas pessoas e empresas foradas grandes cidades também se deve a oportunidades criadas pela presença de outraspessoas e empresas. A diferença está na natureza dessas oportunidades e em suasrespectivas vantagens comparativas. A cidade, seja qual for a sua dimensão, ofereceequipamentos e serviços que facilitam muito, tanto a vida cotidiana das pessoas, quantoo funcionamento das empresas. Do transporte às telecomunicações, passando porserviços públicos essenciais como saneamento, energia, educação, ou coleta de lixo, éóbvia a superioridade da infra-estrutura urbana sobre a rural. Além disso, as amenidadesurbanas, que se manifestam principalmente na oferta concentrada de bens culturais eesportivos, também atraem mais gente que as amenidades rurais, mais ligadas à ofertade bens naturais, como silêncio, ar puro, belas paisagens, ou contato com animais.

Participação relativa da população em países da OCDE(em porcentagens)

Page 2: Desenvolvimento e aglomeraoão populacional · clássico Morte e vida das grandes cidades. Em seu mais recente livro - A nature]a das economias (São Paulo: Beca, 2001) ± ela faz

25/01/12 [116]

2/3www.zeeli.pro.br/old_site/Textos/Estadao2001/116.htm

REGIÕES

Países Essencialmente

Rurais

Relativamente

Rurais

Essencialmente

Urbanas

Suécia 49 32 19

França 30 41 29

Estados Unidos 36 34 30

Espanha 19 46 35

Canadá 33 23 44

Itália 9 44 47

Austrália 23 22 55

Suíça 14 25 61

Alemanha 8 26 66

Reino Unido 15 17 68

Holanda 0 15 85Notas: “Essencialmente Rurais” são regiões onde mais de 50% da população vive em localidades rurais. “RelativamenteRurais” são regiões onde entre 15% e 50% da população vive em localidades rurais. “Essencialmente urbanas” sãoregiões onde menos de 15% da população vive em localidades rurais.

Fonte: OCDE, Territorial indicators of employment, Paris, 1996

Sondagens de opinião vêm revelando de forma sistemática que quase todo nova-iorquino adoraria viver em algum lugar da Califórnia ou da Flórida, e que quase todoparisiense gostaria de mudar para Toulouse ou Grenoble. Muito mais do que climáticas,essas são preferências por um estilo de vida que permite que se usufruamsimultaneamente as vantagens decorrentes da infra-estrutura urbana e as inúmerascombinações possíveis entre amenidades urbanas e rurais. E não pode ser meracoincidência o fato de ocorrerem justamente em cidades de pequeno ou médio porte deregiões relativamente rurais esses focos de eficiência coletiva e de inovação que oseconomistas têm chamado de “clusters industriais”, “distritos industriais”, “sistemasprodutivos locais”, ou simplesmente “arranjos produtivos”. Também é difícil que seja mera coincidência o fato dos agricultores serem maisprósperos nas redondezas desse tipo de núcleo urbano que lhes oferece oportunidadesde tocar simultaneamente outros negócios, além de outros empregos para seusfamiliares. É verdade que nos espaços rurais dificilmente ocorrem os processosflexíveis de inovação e de improvisação que dependem da concentração, dacontigüidade e da diversidade que caracterizam as economias urbanas. Mas toda regiãorural tem um ou mais centros urbanos que exercem as funções de pólos gravitacionais.Daí a importância de entender que as economias locais resultam de relações sinérgicasentre atividades urbanas e rurais. Não foi esse tipo de abordagem territorial que dominou a ciência econômica no séculopassado. Infelizmente, mesmo a pesquisa em economia regional, que não deveriadiscriminar categorias espaciais ou setores econômicos, foi vítima de uma completa

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25/01/12 [116]

3/3www.zeeli.pro.br/old_site/Textos/Estadao2001/116.htm

distorção urbano-industrial. Mas um estimulante sinal de que se aproxima a ruptura comesse modelo pode ser encontrado na revisão proposta por Jane Jacobs, a autora doclássico Morte e vida das grandes cidades. Em seu mais recente livro - A natureza daseconomias (São Paulo: Beca, 2001) – ela faz uma fascinante comparação entre ashistórias de Detroit e de São Francisco com o objetivo de explicar aos jovenseconomistas que a virtude está na diversificação das economias locais. Não naespecialização induzida pelas economias de escala.

José Eli da Veiga é professor titular da FEA-USP e secretário do Conselho Nacional de

Desenvolvimento Rural Sustentável (CNDRS).www.fea.usp.br/professores/zeeli/