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Desejo e prazer Gilles Deleuze
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Desejo e Prazer
Gilles Deleuze
DELEUZE, Gilles. Dsir et plaisir. Magazine Littraire. Paris, n. 325, oct, 1994, pp. 57-65.
A
Uma das teses essenciais de Vigiar e Punir1 dizia respeito aos dispositivos de poder. Ela me
parecia essencial sob trs aspectos:
1) Em si mesma e em relao a certo esquerdismo, notei a profunda novidade poltica dessa
concepo de poder, por oposio a toda teoria do estado.
2) Em relao a Michel, ela era essencial, pois lhe permitia ultrapassar a dualidade das
formaes discursivas e das formaes no-discursivas, que subsistia em A Arqueologia do
Saber, e explicar como os dois tipos de formaes se distribuam ou se articulavam
segmento por segmento (sem que um fosse reduzido ao outro, sem que fossem levados a
se assemelharem etc.). No se tratava de suprimir a distino, mas de encontrar uma razo
de suas relaes.
3) Ela era tambm essencial graas a uma conseqncia precisa: os dispositivos de poder
no procediam por represso e nem por ideologia. Havia, portanto, ruptura com uma
alternativa que era mais ou menos aceita por todo mundo. Em vez de represso ou
ideologia, VP formava um conceito de normalizao e de disciplinas.
B
Parecia-me que essa tese sobre os dispositivos de poder tinha duas direes, de maneira
alguma contraditrias, mas distintas. De qualquer modo, esses dispositivos eram
irredutveis a um aparelho de Estado. Porm, de acordo com uma direo, eles consistiam
numa multiplicidade difusa, heterognea, a dos microdispositivos. De acordo com a outra
1 As referncias bibliogrficas das obras de Foucault e suas respectivas abreviaturas utilizadas ao longo dessas notas (AS, VP e VS) esto especificadas no final.
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direo, eles remetiam a um diagrama, a uma espcie de mquina abstrata imanente a todo
o campo social (o panoptismo, por exemplo, definido pela funo geral de ver sem ser
visto, aplicvel a uma multiplicidade qualquer). Eram como duas direes de microanlise,
igualmente importantes, pois a Segunda mostrava que Michel no se contentava com uma
"disseminao".
C
O livro A vontade de saber d um novo passo em ralao a VP. O ponto de vista
permanece exatamente este: nem represso, nem ideologia. Porm, e para diz-lo em
poucas palavras, os dispositivos de poder no se contentam em ser normalizantes, mas
tendem a ser constituintes (da sexualidade). Eles no se contentam em formar saberes, mas
so constitutivos da verdade (verdade do poder). J no mais se referem a "categorias",
apesar de tudo negativas (loucura, delinqncia como objeto de confinamento), mas a uma
categoria dita positiva (sexualidade). Este ltimo ponto confirmado pela entrevista dada a
La Quinzaine Littraire (FOUCAULT, Michel. Les rapports de pouvoir passent l'interieur
des corps. La Quinzaine Littraire, n 247, p. 4-6, 1-15/jan. 1977. Entrevista com Luccete
Finas). A esse respeito, portanto, creio ter havido na VS um novo avano na anlise. Eis o
perigo: ser que Michel retorna a um anlogo a um "sujeito constituinte", e por que
experimenta ele a necessidade de ressuscitar a verdade, mesmo fazendo dela um novo
conceito? Penso que essas falsas questes, que no so minhas, sero levantadas enquanto
Michel no tiver explicado mais.
D
Para mim, uma primeira questo era a natureza da microanlise que Michel estabelecia
desde VP. Entre "micro" e "macro", a diferena no era evidentemente de tamanho, no
sentido em que microdispositivos seriam concernentes a pequenos grupos, pois a famlia,
por exemplo, no tem menos extenso que qualquer outra formao. Trata-se menos ainda
de um dualismo extrnseco, pois h microdispositivos imanentes ao aparelho de Estado,
assim como h segmentos de aparelho de Estado que penetram tambm os
microdispositivos. No h dualismo extrnseco, mas imanncia completa das duas
dimenses. Seria ento preciso compreender que a diferena de escala? Uma pgina de
VS (p. 132) recusa explicitamente essa interpretao. Mas essa pgina parece remeter o
macro ao modelo estratgico e o micro ao modelo ttico. Isso incomoda, pois me parece
que os microdispositivos, para Michel, tm toda uma dimenso estratgica, sobretudo se
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leva-se em conta que esse diagrama do qual so eles inseparveis. Uma outra direo seria a
das "relaes de fora", vistas como aquilo que determina o micro (cf., notadamente, a
entrevista publicada em La Quinzaine). Mas Michel, creio eu, no desenvolveu ainda esse
ponto; sua concepo original das relaes de fora, o que ele denomina relao de fora,
deve ser um conceito to novo quanto todo o resto.
Em todo caso, h diferena de natureza, heterogeneidade entre micro e macro, o que de
modo algum exclui a imanncia dos dois. Mas, no limite, minha questo seria a seguinte:
essa diferena de natureza permite que se fale ainda em dispositivos de poder? A noo de
Estado no aplicvel no nvel de uma microanlise, pois, como diz Michel, no se trata de
miniaturizar o Estado. Mas seria mais aplicvel a noo de poder? No tambm ela a
miniaturizao de um conceito global?
Chego, assim, a minha primeira diferena com Michel, atualmente. Se com Flix Guattari,
falo em agenciamento de desejo, por no estar seguro de que os microdispositivos
possam ser descritos em termos de poder. Para mim, agenciamento de desejo marca que o
desejo jamais uma determinao "natural", nem "espontnea". Por exemplo, a feudalidade
um agenciamento que pe em jogo novas relaes com o animal (o cavalo), com a terra,
com a desterritorializao (a corrida do cavaleiro, a Cruzada), com as mulheres (o amor
cavalheiresco)... etc. Agenciamentos totalmente loucos, mas sempre historicamente
assinalveis. De minha parte, diria que o desejo circula nesse agenciamento de
heterogneos, nessa espcie de "simbiose": o desejo une-se a um agenciamento
determinado; h um co-funcionamento. Seguramente, um agenciamento de desejo
comportar dispositivos de poder (poderes feudais, por exemplo), mas ser preciso situ-
los entre os diferentes componentes do agenciamento. Conforme um primeiro eixo, pode-
se descobrir nos agenciamentos de desejo os estados de coisas e as enunciaes (o que
estaria em conformidade com a distino feita por Michel dos dois tipos de formaes ou
de multiplicidades). Conforme um outro eixo, seriam distinguidas as territorialidades ou
reterritorializaes e os movimentos de desterritorializao que desencadeiam um
agenciamento (por exemplo, todos os movimentos de desterritorializao que arrebatam a
Igreja, a cavalaria, os camponeses). Os dispositivos de poder surgiriam em toda parte em
que se operam reterritorializaes, mesmo abstratas. Logo, os dispositivos de poder seriam
um componente dos agenciamentos. Mas os agenciamentos tambm comportariam pontas
de desterritorializao. Em suma, no seriam os dispositivos de poder que agenciariam ou
que seriam constituintes, mas os agenciamentos de desejo que disseminariam formaes
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de poder segundo uma de suas dimenses. Isso me permitiriam responder a seguinte
questo, necessria para mim, mas no para Michel: como o poder pode ser desejado?
Portanto, a primeira diferena seria esta: para mim o poder uma afeco do desejo
(reafirmando-se que jamais o desejo uma "realidade natural"). Tudo isso muito
aproximativo: h relaes mais complicadas, que no aponto, entre os dois movimentos, de
desterritorializao e de reterritorializao. Mas nesse sentido que o desejo me pareceria
ser primeiro, apresentando-se, assim, como elemento de uma microanlise.
E
No deixo de seguir Michel num ponto que me parece fundamental: nem ideologia, nem
represso; por exemplo, os enunciados, ou, sobretudo as enunciaes, nada tm a ver com
ideologia. Os agenciamentos de desejo nada tm a ver com represso. Mas, evidentemente,
em relao aos nossos dispositivos de poder, no tenho a mesma firmeza de Michel; fico
indeciso, visto o estatuto ambguo que eles apresentam para mim. Em VP, Michel diz que
eles normalizam e disciplinam, eu diria que eles codificam e reterritorializam (e suponho
que haja ai algo mais que uma distino de palavras). Mas, visto que afirmo o primado do
desejo sobre o poder, ou o carter secundrio que tomam para mim os dispositivos de
poder, as operaes destes guardam um efeito repressivo, pois esmagam no o desejo
como dado natural, mas as pontas dos agenciamentos do desejo. Tomo uma das teses mais
belas da VS: o dispositivo da sexualidade assenta a sexualidade sobre o sexo (sobre a
diferena de sexos... etc.; e a psicanlise est inteiramente vontade na tentativa desse
rebatimento). Vejo ai um efeito de represso, precisamente na fronteira do micro e do
macro: a sexualidade como agenciamento de desejo historicamente varivel e
determinvel, com suas pontas de desterritorializao, de fluxo e de combinaes ser
assentada sobre uma instancia molar, "o sexo". Mesmo que os procedimentos desse
rebatimento no sejam repressivos, o efeito (no ideolgico) repressivo, uma vez que os
agenciamentos so rompidos no s em suas potencialidades, mas em sua microrrealidade.
Desse modo, os agenciamentos s podem existir como fantasmas, que os mudam ou os
desviam completamente, ou como coisas vergonhosas... etc. Eis um pequeno problema que
muito me interessa: por que certos "perturbados", ao contrrio do enurxico e do
anorxico, por exemplo, so mais passveis e at mesmo dependentes da vergonha? Tenho
pois, necessidade de certo conceito de represso sobre uma espontaneidade, mas porque,
tendo os agenciamentos coletivos muitas dimenses, os dispositivos de poder seriam
somente uma delas.
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F
Eis outro ponto fundamental: creio que a tese "nem represso nem ideologia" tem um
correlato, e talvez ela prpria dependa desse correlato. Um campo social no se define por
suas contradies. A noo de contradio global, inadequada, e que j implica
cumplicidade dos "contraditrios" nos dispositivos de poder (por exemplo, as duas classes,
a burguesia e o proletariado). Com efeito, parece-me que uma grande novidade da teoria do
poder, em Michel, seria ainda a seguinte: uma sociedade no se contradiz, ou se contradiz
muito pouco. Mais eis sua resposta: ela se estrategiza, ela estrategiza. Acho isso muito bom;
vejo bem a imensa diferena (estratgia - contradio), e eu precisaria ler Clausewitz sob
esse aspecto. No me sinto vontade nessa idia.
De minha parte, diria o seguinte: uma sociedade, um campo social no se contradiz, mas
ele foge, e isto primeiro. Ele foge de antemo por todos os lados; as linhas de fuga que
so primeiras (mesmo que primeiro no seja cronolgico). Longe de estar fora do campo
social ou dele sair, as linhas de fuga constituem seu rizoma ou cartografia. As linhas de fuga
so quase a mesma coisa que os movimentos de desterritorializao: elas no implicam
qualquer retorno natureza; elas so as pontas de desterritorializao nos agenciamentos de
desejo. O que primeiro na feudalidade so as linhas de fuga que ela supe; o mesmo pode
ser dito dos sc. X-XIII; da formao do capitalismo. As linhas de fuga no so
forosamente "revolucionrias", podendo ocorrer o contrrio disso, mas so elas que os
dispositivos de poder vo colmatar, vo atar. Por exemplo, todas as linhas de
desterritorializao que se precipitam em torno do sculo XI: as ltimas invases, os
bandos de pilhagem, a desterritorializao da Igreja, as emigraes camponesas, a
transformao da cavalaria, a transformao das cidades, que abandonam cada vez mais os
modelos territoriais, a transformao da moeda, que se injeta em novos circuitos, a
mudana da condio feminina com temas do amor corts, que desterritorializam at
mesmo o amor cavalheiresco... etc. A estratgia s poder ser Segunda em relao s linhas
de fuga, s suas conjugaes, s suas orientaes, suas convergncias e divergncias.
Encontro tambm a o primado do desejo, pois o desejo est precisamente nas linhas de
fuga, na conjugao e dissociao de fluxo. O desejo se confunde com elas.
Parece-me, ento, que Michel encontra um problema que no tem o mesmo estatuto para
mim. Com efeito, se os dispositivos de poder so de alguma maneira constituintes, s pode
haver contra eles fenmenos de "resistncia", e a questo incide sobre o estatuto desses
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fenmenos. Sem dvida, eles sero menos ainda ideolgicos e anti-repressivos. Da a
importncia das duas pginas de VS, nas quais Michel afirma: que no me faam dizer que
esses fenmenos sejam um engodo... mas, qual estatuto vai lhes dar ele? H vrias direes
aqui: 1) aquela da VS (p. 126-7), na qual fenmenos de resistncia seriam como uma
imagem invertida dos dispositivos; teriam eles as mesmas caractersticas, difuso,
heterogeneidade... etc.; eles estariam frente a frente. Mas essa direo parece-me bloquear
as sadas tanto quanto encontrar uma. 2) A direo apontada na entrevista relativa funo
poltica do intelectual: se os dispositivos de poder so constitutivos de verdade, se h uma
verdade do poder, deve haver a, como contra estratgias, uma espcie de poder da verdade
contra os poderes. Donde, em Michel, o problema do papel do intelectual, donde sua
maneira de reintroduzir a categoria de verdade, o que me leva a perguntar o seguinte:
renovando completamente essa categoria, ao faze-la depender do poder, ele encontrar
nessa renovao uma matria retornvel contra o poder? Mas aqui no vejo como.
preciso esperar que Michel, no nvel da microanlise, diga essa nova concepo de verdade.
3) A terceira direo a dos prazeres, do corpo e seus prazeres. Tambm aqui, mesma a
expectativa para mim: como os prazeres animam contrapoderes, e como ele concebe essa
noo de prazer?
Certos problemas que se colocam para mim no se colocam para Michel, porque eles so
de antemo resolvidos pelas pesquisas que so prprias dele. Inversamente, para encorajar-
me, digo-me que outros problemas no se colocam para mim e se colocam para ele por
necessidade de suas teses e sentimentos. As linhas de fuga, os movimentos de
desterritorializao, como determinaes coletivas histricas, no me parecem ter
equivalente em Michel. Para mim, no h o problema de um estatuto dos fenmenos de
resistncia: j que as linhas de fuga so determinaes primeiras, j que o desejo agencia o
campo social, so, sobretudo os dispositivos de poder que se acham produzidos por esses
agenciamentos, ao mesmo tempo em que esmagam ou os colmatam. Compartilho do
horror de Michel por aqueles que se dizem marginais: acho cada vez menos suportvel o
romantismo da loucura, da delinqncia, da perverso, da droga. Mas para mim, no so
criadas pelos marginais as linhas de fuga, isto , os agenciamentos de desejo. Ao contrrio,
elas so linhas objetivas que atravessam uma sociedade, na qual os marginais instalam-se
aqui ou ali para fazer um crculo, um circuito, uma recodificao. No tenho, pois, a
necessidade de um estatuto dos fenmenos de resistncia, uma vez que o primeiro dado de
uma sociedade que nela tudo foge, tudo se desterritorializa. Da porque o estatuto do
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intelectual e o problema poltico no serem os mesmos para Michel e para mim. Tentarei
dizer ainda agora como vejo essa diferena.
G
Na ltima vez que nos vimos, Michel, como muita gentileza e afeio, disse-me mais ou
menos o seguinte: no posso suportar a palavra desejo, mesmo que voc a empregue de
outro modo, no posso impedir-me de pensar ou de viver que desejo = falta, ou que desejo
se diz reprimido. Michel acrescentou: ento, para mim o que chamo de prazer talvez seja
o que voc denomina desejo de qualquer modo, tenho a necessidade de outra palavra
que no desejo.
Evidentemente, mais uma vez, trata-se de outra coisa e no de uma questo de palavra,
embora, de minha parte, suporte muito pouco a palavra prazer. Mas por qu? Para mim,
desejo no comporta qualquer falta. Ele no um dado natural. Est constantemente unido
a um agenciamento que funciona. Em vez de ser estrutura ou gnese, ele , contrariamente,
processo. Em vez de ser sentimento, ele , contrariamente, afeto. Em vez de ser
subjetividade, ele , contrariamente hecceidade (individualidade de uma jornada, de uma
estao, de uma vida). Em vez de ser coisa ou pessoa, ele contrariamente, acontecimento.
O desejo implica, sobretudo a constituio de um campo de imanncia ou de um corpo
sem rgos, que se define somente por zonas de intensidade, de limiares, de gradientes, de
fluxos. Esse corpo tanto biolgico quanto coletivo e poltico; sobre ele que os
agenciamentos se fazem e se desfazem; ele o portador das pontas de desterritorializao
dos agenciamentos ou linhas de fuga. O corpo sem rgos varia (o da feudalidade no o
mesmo do capitalismo). Se o denomino corpo sem rgos, porque ele se ope a todos os
estratos de organizao, tanto aos da organizao do organismo quanto aos das
organizaes de poder. So precisamente as organizaes do corpo, em seu conjunto, que
quebraro o plano da imanncia e imporo ao desejo um outro tipo de plano,
estratificando a cada vez o corpo sem rgos.
Se digo tudo isso de maneira to confusa, porque vrios problemas colocam-se para mim
em relao a Michel: 1) No posso dar ao prazer qualquer valor positivo, porque o prazer
parece-me interromper o processo imanente do desejo; o prazer parece-me estar do lado
dos estratos e da organizao; no mesmo movimento que o desejo apresentado como
submetido de dentro lei e escandido de fora pelos prazeres; nos dois casos, h negao de
um campo de imanncia prprio do desejo. Digo a mim mesmo que no por acaso que
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Michel atribui certa importncia a Sade, e eu, ao contrrio, a Masoch. No seria suficiente
dizer que sou masoquista e que Michel sdico. Poderia ser conveniente dizer isso, mas
no verdadeiro. O que me interessa em Masoch no so as dores, mas a idia de que o
prazer vem interromper a positividade do desejo e a constituio de seu campo de
imanncia; assim tambm, mas de outro modo, h no amor corts a constituio de um
plano de imanncia ou de um corpo sem rgos, no qual o desejo, que de nada carece,
resguarda-se tanto quanto possvel de prazeres que viriam interromper seu processo.
Parece-me que o prazer o nico meio para uma pessoa ou sujeito "reencontrar-se" num
processo que o transborda. uma reterritorializao. Do meu ponto de vista, da mesma
maneira que o desejo relacionado lei da falta e norma do prazer.
2) Em compensao, essencial a idia de Michel segundo a qual os dispositivos de poder
tm com o corpo uma relao imediata e direta. Mas, para mim, ela essencial se se
considera que esses dispositivos impem uma organizao aos corpos. O corpo sem rgos
est ligado ao agente de desterritorializao (e, por ai, ao plano de imanncia do desejo), ao
passo que todas as organizaes, todo o sistema daquilo que Michel chama de "biopoder",
opera reterritorializaes do corpo.
3) Poderia eu pensar em equivalncias do tipo: o que para mim o "corpo sem rgos -
desejos" corresponde ao que, para Michel, "corpo - prazeres"? Posso relacionar a
distino "corpo-carne", da qual falava Michel, com a distino "corpo sem rgos -
organismo"? H uma pgina muito importante em VS (p.190) sobre a vida apresentada
como o d um estatuto possvel s foras de resistncia. Essa vida, para mim, aquela
mesma de que fala Lawrence, de modo algum a Natureza; ela justamente o plano de
imanncia do desejo, plano varivel atravs de todos os agenciamentos determinados.
Relaciono a concepo de desejo em Lawrence com as linhas de foras positivas. (Pequeno
detalhe: a maneira pela qual, no final de VS, Michel se serve de Lawrence oposta
maneira pela qual, eu me sirvo deste).
H
Ser que Michel avanou no problema que nos ocupava, qual seja, o de manter os direitos
de uma microanlise (difuso, heterogeneidade, carter parcelar) e, todavia, encontrar uma
espcie de princpio de unificao que no seja do tipo Estado, partido, totalizao,
representao?
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Primeiramente, do lado do prprio poder, retorno s duas direes de VP: de um lado,
carter difuso e parcelar dos microdispositivos, mas, de outro lado, tambm diagrama ou
mquina abstrata cobrindo o conjunto do campo social. Parece-me que a relao entre
essas duas instncias da microanlise permanecia como um problema em VP. Creio que a
questo muda um pouco em VS: aqui, as duas direes da microanlise sero, sobretudo as
microdisciplinas, de um lado e, de outro, os processos biopolticos (pp 183 e ss.). Foi o que
eu quis dizer no item C destas notas. Ora, o ponto de vista de VP sugeria que o diagrama,
irredutvel instncia global do Estado, operava talvez uma microunificao dos pequenos
dispositivos. Ser preciso compreender agora que os processos biopolticos que tero essa
funo? Confesso que a noo de diagrama me parecia muito rica: ser que Michel a
reencontrar nesse novo terreno?
Mas do lado das linhas de resistncia, ou daquilo que denomino linhas de fuga, como
conceber as relaes ou as conjugaes, as conjunes, os processos de unificao? Eu
diria que o campo de imanncia do coletivo, onde em dado momento se fazem os
agenciamentos e onde eles traam suas linhas de fuga, tambm um verdadeiro diagrama.
preciso, ento, encontrar o agenciamento complexo capaz de efetuar esse diagrama,
operando a conjuno das linhas e das pontas de desterritorializao. nesse sentido que
eu falava de uma mquina de guerra totalmente diferente do aparelho de Estado e das
instituies militares como tambm dos dispositivos de poder. De um lado, portanto,
teramos Estado-diagrama do poder, sendo o Estado o aparelho molar que efetua os
microdados do diagrama entendido como plano de organizao; de outra parte, teramos
mquina de guerra-diagrama das linhas de fuga, sendo a mquina de guerra o agenciamento
que efetua os microdados do diagrama entendido como plano de imanncia. Paro neste
ponto porque isso colocaria em jogo dois tipos de planos muito diferentes, uma espcie de
plano transcendental de organizao contra o plano imanente dos agenciamentos, e porque
tornaramos a cair nos problemas precedentes. E aqui j no sei como situar-me em relao
s pesquisas atuais de Michel.
(Adio: o que me interessa nos dois estados opostos do plano ou do diagrama seu
confronto histrico sob formas muito diversas: num caso, tem-se um plano de organizao
e de desenvolvimento que oculto por natureza, mas que d a ver tudo o que visvel; no
outro, tem-se um plano de imanncia, onde h to-somente velocidades e lentides, no-
desenvolvimento, e onde tudo visto, ouvido... etc. O primeiro plano no se confunde
com o Estado, mas est ligado a este; o segundo, ao contrrio, est ligado a uma mquina
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de guerra, a um devaneio de mquina de guerra. No nvel da natureza, por exemplo, Cuvier
e tambm Goethe concebem o primeiro plano; Hlderlin, em Hyprion, e mais ainda,
Kleist concebem o segundo tipo. De pronto, dois tipos de intelectuais, e convm comparar
o que Michel diz a esse respeito com o que ele prprio diz sobre a posio do intelectual.
Ou ento, em msica, onde se confrontam as duas concepes do plano sonoro. Pergunto
se o liame poder-saber, tal como Michel o analisa, poderia ser assim exemplificado: os
poderes implicam um plano-diagrama do primeiro tipo [por exemplo, a cidade grega e a
geometria euclidiana]; mas, inversamente, do lado dos contrapoderes e mais ou menos em
relao com mquinas de guerra, h o outro tipo de plano, espcie de saberes menores [a
geometria arquimediana, ou a geometria das catedrais, que ser contrabatida pelo Estado].
Todo um saber apropriado a linhas de resistncia e que no tem a mesa forma do outro
saber?)
Referncias Bibliogrficas
FOUCAULT, Michel (1969). Larchologie du savoir. Paris: Gallimard. (AS)
_____ (1975). Surveiller et punir naissance de la prison. Paris: Gallimard (VP)
_____ (1976a). La volont de savoir. Paris: Gallimard (VS)
_____ (1976b). La fonction politique de linctellectuel. Politique Hebdo, 29 de novembro 5 de
dezembro.
_____ (1977). Les rapports de pouvoir passent linterieur des corps. (entrevista com Lucette
Finas). La Quinzaine Littraire, n. 247: 4-6, 1-15 jan.