desde os avÓs atÉ os netos: conflitos territoriais … · mensagem divina a eles revelada por...

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1 DESDE OS AVÓS ATÉ OS NETOS: CONFLITOS TERRITORIAIS NO CONTEXTO DA AUTODEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA MBYÁ GUARANI TEKOÁ MIRIM FÁBIO DO ESPÍRITO SANTO MARTINS 1 1 Introdução A severa realidade vivenciada pelos Mbyá Guarani da Terra Indígena Tekoá Mirim foi diretamente e em “lócus” narrada para o autor por eles próprios, como processo constituinte da etnografia que caracterizou parcialmente a elaboração desta pesquisa. Já, que “(...) nada poderia substituir a observação direta (...), pois é frequentemente sob a inocência de um gesto semiesboçado, de uma palavra subitamente dita, que se dissimula a singularidade fugitiva do sentido” (CLASTRES, 1995, p.11). Assim, tal perspectiva passa a ser apresentada e problematizada em relação àquilo que se refere às dificuldades enfrentadas por esta população indígena desde o seu deslocamento da localidade que anteriormente habitavam, a saber, a aldeia localizada em Pariquera-açu, área também localizada no litoral sul do estado de São Paulo, para poder estabelecer-se, e se manter, de acordo com o seu modo tradicional de existência cultural determinada por sua cosmologia, e que se concretiza em sua ocupação e utilização do espaço social, isto é, seu Nhanderekó. Que “com um claro sentimento de singularidade falam dele, (...) como a expressão mais cabal da sua identidade e de sua diferença” (MELIÁ, 1989: 293). Pois bem, as narrativas que foram colhidas juntamente aos Mbyá Guarani da Tekoá Mirim, e que se constituíram como nexos das reflexões e problemáticas a serem apresentadas e desenvolvidas, derivaram em sua maioria das conversas com o Xeramo’i Karaí Mirim (Maurício) e com o cacique Karaí Ñee’re (Edmilson), respectivamente representante espiritual e representante político daquela Tekoá, além de serem pai e filho. Entretanto, uma série de outras conversas com os demais integrantes daquele grupo populacional compõem o material coletado para a concretização deste trabalho. Assim, a aldeia Tekoá Mirim e o grupo Mbyá protagonista dessas considerações, se instalaram em novembro de 2010 em área circunscrita pelo município de Praia Grande, litoral do estado de São Paulo; especificamente, a concretização da aldeia se efetivou no interior do 1 UNESP/Araraquara. Doutorando do PPGCSO (Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais). CNPq.

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DESDE OS AVÓS ATÉ OS NETOS: CONFLITOS TERRITORIAIS NO CONTEXTO

DA AUTODEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA MBYÁ GUARANI TEKOÁ MIRIM

FÁBIO DO ESPÍRITO SANTO MARTINS1

1 Introdução

A severa realidade vivenciada pelos Mbyá Guarani da Terra Indígena Tekoá Mirim foi

diretamente e em “lócus” narrada para o autor por eles próprios, como processo constituinte

da etnografia que caracterizou parcialmente a elaboração desta pesquisa. Já, que “(...) nada

poderia substituir a observação direta (...), pois é frequentemente sob a inocência de um gesto

semiesboçado, de uma palavra subitamente dita, que se dissimula a singularidade fugitiva do

sentido” (CLASTRES, 1995, p.11).

Assim, tal perspectiva passa a ser apresentada e problematizada em relação àquilo que

se refere às dificuldades enfrentadas por esta população indígena desde o seu deslocamento da

localidade que anteriormente habitavam, a saber, a aldeia localizada em Pariquera-açu, área

também localizada no litoral sul do estado de São Paulo, para poder estabelecer-se, e se

manter, de acordo com o seu modo tradicional de existência cultural determinada por sua

cosmologia, e que se concretiza em sua ocupação e utilização do espaço social, isto é, seu

Nhanderekó. Que “com um claro sentimento de singularidade falam dele, (...) como a

expressão mais cabal da sua identidade e de sua diferença” (MELIÁ, 1989: 293).

Pois bem, as narrativas que foram colhidas juntamente aos Mbyá Guarani da Tekoá

Mirim, e que se constituíram como nexos das reflexões e problemáticas a serem apresentadas

e desenvolvidas, derivaram em sua maioria das conversas com o Xeramo’i Karaí Mirim

(Maurício) e com o cacique Karaí Ñee’re (Edmilson), respectivamente representante

espiritual e representante político daquela Tekoá, além de serem pai e filho. Entretanto, uma

série de outras conversas com os demais integrantes daquele grupo populacional compõem o

material coletado para a concretização deste trabalho.

Assim, a aldeia Tekoá Mirim e o grupo Mbyá protagonista dessas considerações, se

instalaram em novembro de 2010 em área circunscrita pelo município de Praia Grande, litoral

do estado de São Paulo; especificamente, a concretização da aldeia se efetivou no interior do

1 UNESP/Araraquara. Doutorando do PPGCSO (Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais). CNPq.

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Parque Estadual da Serra do Mar. Devendo, portanto, tais processos de deslocamento e

fixação espaciais deste grupo, serem vistos e compreendidos a partir da perspectiva de

concepção mitológico-religiosa e político-social, enfim cosmológica, aos Mbyá Guarani.

Portanto, o deslocamento espacial, tão caro aos Mbyá, como história e como projeto,

constitui um traço característico dos Guarani. Concretiza-se, mediante a vivência cultural da

sua estrutura mitológica. “Como estrutura do modo de pensar do guarani, dá forma ao

dinamismo econômico e a vivência religiosa que lhes são tão próprios (...) é a síntese histórica

e prática de uma economia vivida profeticamente e de uma profecia realista, com os pés no

chão” (MELIÁ, 1989, p.294). Assim, este autor manifesta a percepção sobre a espacialidade,

como sendo na contemporaneidade, o elemento seminal do Tekó (modo de ser) Guarani, e,

que ela seria concretizada como movimentação da busca por lugares, tanto geográfica quanto

espiritualmente, pré-concebidos. Se concretizando, portanto, esta busca, de maneira

simultânea, pela procura de “novos” solos (para que sejam sanadas as demandas

socioeconômicas) e pelo manifestar-se de inspirações divinas.

Contudo, de maneira complementar ao entendimento a respeito das motivações da

mobilidade e dos deslocamentos característicos entre os Mbyá; se pretende evidenciar

também, em decorrência da etnografia realizada, as motivações de ordem pragmática,

inseridas de modo a permearem e distribuírem-se no plano do cotidiano daquela realidade.

Assim, na experiência contemporânea dos Mbyá, em que o problema da terra se caracteriza de

forma premente, há a consequência imediata, que tal processo histórico age de modo a

transformar as concepções e usos do espaço entre essa população. Nesse sentido, “Almeida &

Mura (2004) propõem que a noção nativa de “tekoha” seja compreendida como elaboração

indígena produzida nos contextos de relacionamento intercultural, (...) e não como categoria

já determinada, que se conservaria a despeito das alterações das suas condições de existência”

(PISSOLATO, 2007, p.116). Segundo estes autores, deve-se entender “o tekoha como

resultado e não como determinante” das formas de concepção e organização da espacialidade.

Além de se considerar também neste trabalho, as dinâmicas políticas internas àquele

grupo; os aspectos da estrutura do parentesco; a emergência de novas lideranças que passam a

se tornar o novo centro gravitacional onde passa a orbitar e a se concentrar grande parte das

demandas de um grande número de membros do grupo, assim como, a progressiva

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incompatibilidade de que na mesma composição espacial haja a prática compartilhada, quanto

à atuação de mais que uma liderança espiritual e religiosa, todas importantes variáveis

constituintes da realidade pragmática do cotidiano Mbyá e que contribuem, portanto, para

uma apreensão mais correta do complexo conjunto das motivações da mobilidade espacial

antecessora à constituição da Tekoá Mirim.

Desta maneira, a análise a respeito das motivações geradoras do processo de

mobilidade Mbyá, por sua vez, causadora do deslocamento que viria a constituir a Tekoá

Mirim, será aqui tratada, de modo a considerar o contexto de complementariedade que

assumem as suas variações cosmológicas e míticas, assim como, aquelas que caracterizam as

instabilidades políticas peculiares, definidoras do pragmatismo cotidiano, concretizadas no

convívio do grupo indígena em questão.

2 Uma síntese cosmológica como impulso para o deslocamento Mbyá na constituição da

Tekoá Mirim.

De maneira específica, as reflexões que irão ser apresentadas nesta análise se referem

ao fato de que os Mbyá ao se estabelecerem para a concretização da Tekoá Mirim, o

executaram em plena manifestação de concretude da sua cosmologia, mesmo esta sendo

ressignificada. Ressignificação, claro, derivada dos dinâmicos processos que caracterizaram a

historicidade peculiar desta situação. Pois, a história da fundação da Tekoá Mirim foi narrada,

como consequência de um contexto em que a mobilização de um grupo de parentes, isto é,

uma família extensa ou parentela, passou a ocupar determinado lugar após um sonho que o

teria indicado à liderança espiritual e religiosa do grupo. Neste caso, ao Xeramo’i Karaí

Mirim (Maurício). Assim, vê-se mantida na práxis cotidiana dos Mbyá, a reminiscência

cosmo-mitológica que compreende as “Terras sonhadas (por xamãs), tekoa porã, que devem

possibilitar a vida social e ritual dos indivíduos em sua plenitude, lugares onde se tornaria

possível a vida harmoniosa, que compreende as relações sociais e o respeito ao sistema

antigo” (PISSOLATO, 2007, p.115). Já, que ao longo das coletas e registros referentes à

historicidade da Tekoá Mirim, junto ao Xeramo’i, sempre prevaleceu na sua narrativa, o

amparo na concepção cosmo-mitológica de que as principais e reais motivações do

deslocamento de sua parentela, para o início do núcleo que se constituiria de fato, como a

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“nova” aldeia, devia-se as sua inspirações divinas que lhe haviam sido entregues em seus

sonhos por Nhanderú.

Portanto, o percurso de deslocamento que fundaria a Tekoá Mirim, se iniciou como

concretização de uma jornada pautada pela cosmologia Mbyá, a partir da aldeia em que o

protagonista deste contexto, isto é, o Xeramo’i Karaí Mirim, vivia com seus demais parentes

em Pariquera-açú, também no litoral paulista. Assim, quando questionado a repeito das

motivações que o impeliu a deixar a aldeia em que viviam, e se deslocarem até o local devido

para a sua fixação, o Xeramo’i relata a explicação que segue transcrita:

“Principal motivo, foi que eu começava a ficar ruim, incomodado. Não conseguia

mais ter sono bom, não dormia mais. Também passou a não comer mais, comia e já

vomitava. Ficava só triste. Toda hora triste, ficava muito mal, toda hora, o tempo intero. Daí

passei a rezar muito. Ficava todo o tempo em Opy’i, comecei dormir e acordar lá. Na hora

da reza, do m’boraí tinha muita força. E também, o Petynguá, eu fumava muito o Petynguá.

Outra coisa é a comida. Deixei pra mim só a comida Guarani, awati (milho), mandió

(mandioca), jyty (bata-doce), pindó (palmito), Ka’a (chimarrão) e não comia carne de jeito

nenhum. Eu sabia que tinha problema muito grande, muito sério né.

Então, comecei a rezar muito, cada vez mais. Pedia ajuda pra Nhanderú, precisava

saber o que tinha de errado. Foi daí então que aconteceu, eu tinha ficado uma noite inteira e

um dia também, ele todo, numa reza muito forte, ouvindo Nhanderú dizer pra eu dormir, que

aí vinha a solução. E trabalho foi assim, quando acabo o trabalho, tava muito cansado, eu

nem lembro, mas me contaram que eu fiquei lá na Opy’i dormindo, mais de um dia. Daí tudo

resolveu, foi sim, no sonho, Nhanderú me mostrou que problema era lá, não era mais pra fica

lá, tinha que vê e depois achá o lugar, a nossa Tekoá. Nós tinha que ir embora pra lá. Foi

Nhanderú que veio ajudá, mostra qual era o problema e dá pra nóis a solução. No sonho.

E foi depois de muitos trabalhos e de muita reza na Opy’i, feita nos outro dia, que em

outro sonho, é quando eu sonhava que Nhanderú me mostrou o lugar da Tekoá, o lugar pra

onde nos tinha que ir. Ir para lá, pra a nossa Tekoá, lá é que nós tinha que ficá. E Nhanderú

já tinha me mostrado onde. E mostro no sonho”.

Assim, a realização da análise interpretativa sobre a transcrição exposta acima, revela

a partir da perspectiva própria da liderança espiritual e religiosa do grupo indígena estudado,

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de modo literal, como se caracterizou o complexo processo de inspiração divina que o

acometeu, e, que, portanto, desencadeou o “start” ao que se refere à composição e a

articulação dos preceitos cosmo-mitológicos Mbyá, que segundo a sua perspectiva, se

constituem como o principal motivo de explicação para a mobilidade territorial do seu grupo

de parentes que vieram a constituir o primeiro núcleo populacional da Tekoá Mirim. Pois,

afinal tudo que se compõe, mesmo que parcialmente, enquanto experiências dos vivos

mantendo-os como tal, depende do que os Mbyá identificam como “a vontade de Nhanderu, a

quem sempre se deve “pedir” (jejure), “perguntar” (porandu), “escutar” (endu). De que se

pode obter, o “fortalecimento” (mbaraete) ou a “coragem” (py’a guaxu) para continuar na

Terra” (PISSOLATO, 2007, p.228). E mais ainda, já que “na sua definição de povo a

mensagem divina a eles revelada por Nhanderu e por eles cumprida, a de que devem procurar

seus verdadeiros lugares (...)” (LADEIRA, 2007, p.23).

Portanto, todo o processo de concretização das condições que vieram a determinar o

deslocamento ritual (Oguatá), deu-se como consequência da reprodução, no cotidiano, da

mitologia Mbyá. Sua motivação então derivara de questões míticas e religiosas, culturalmente

peculiares deste grupo indígena. Desta forma, a composição cosmológica em que esta se

expressa mediante a “antevisão onírica”, ou seja, a motivação ritualisticamente percebida e a

demonstração da nova localidade a se fixar, ocorridas em um sonho, assim como, a inspiração

dada por Nhanderu, foram todas elas etapas vivenciadas, e apresentadas nas transcrições dos

depoimentos dados pelo Xeramo’i Karaí Mirim.

Desta forma, esta análise passa também a revelar, a extrema relevância que o sonho

concentra na cultura Mbyá. Tornando evidente, que em alguns contextos, seriam propiciadas

especiais experiências perceptivas, onde a concentração de dinâmicas subjetivas,

implicitamente os preencheriam. Fica assim, bastante evidente o elevado grau de importância

que o sonho possui. Importância esta, que permanece ainda na contemporaneidade, mantida e

circunscrita pelo complexo cosmo-mitológico, ou seja, relacionada àquelas significações que

orientam os processos de mobilidade intensa dos grupos Mbyá, determinadas pela busca

milenar e incessante da “Terra sem Mal”, através de suas “Belas Caminhadas”, sempre

conduzidas pela liderança espiritual e religiosa do grupo que se desloca.

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Assim, ficou evidente nas análises e interpretações realizadas a partir dos depoimentos

cedidos pelo Xeramo’i, que a composição cosmológica, mítica e religiosa, peculiares aos

Mbyá, foi de fato, coimpulsionadora do processo de mobilidade da parentela indígena que sob

a sua condução deslocou-se norteada pela perspectiva de constituição de uma “nova” Tekoá,

capaz de circunscrever a concretização do seu Nhanderekó.

Desta maneira, como indicou Ladeira (2007), se constata que “a história Mbyá é

resgatada cotidianamente”. Porque “(...) para os Mbyá, especialmente os que ainda não têm

definido um lugar para um assentamento mais duradouro, “viver os mitos”, não se distingue

da vida cotidiana, pois o cotidiano está impregnado de relações míticas com o universo”

(LADEIRA, 2007, p.77). Neste sentido, “O mito é uma história verdadeira porque se refere

sempre a realidades” (ELIADE, apud LADEIRA, 2007, p.76).

Contudo, os motivos responsáveis por impulsionarem à mobilidade o grupo Mbyá aqui

tratado, até o local específico e pré-determinado pelo contexto e práticas rituais já descritas,

não devem ser compreendidos como os únicos impulsos responsáveis por este deslocamento.

Assim, processos e dinâmicas relativas às interrelações próprias dos Mbyá, questões dispostas

no âmbito da política, pragmática e cotidiana, constituídas entre as famílias extensas, ou seja,

as parentelas, e mesmo as relações de contato com a sociedade envolvente, são tão relevantes

quanto às determinações cosmológicas, para um correto entendimento das causas que

impulsionam os grupos indígenas Mbyá na concretização do seu contexto de mobilidade

espacial tão característico a eles. Portanto, consideramos na elaboração deste trabalho,

relevância similar e complementarmente composta, entre a cosmologia e a práxis, a

religiosidade e a historicidade Mbyá, como articulação necessária para uma plena e correta

apreensão das motivações dos seus deslocamentos espaciais.

3 A práxis e o pragmatismo político cotidiano dos Mbyá: outros impulsos a motivar o

deslocamento para a constituição da Tekoá Mirim.

Pois bem, passaremos às discussões que se dirigem às análises e interpretações

realizadas sobre os registros etnográficos colhidos a partir dos depoimentos do cacique Karaí

Ñee’re (Edmilson), assim como, o do seu irmão mais velho Werá Pyty (Edson). Pois, como é

pretendido nesta análise, os informantes acima mencionados, propiciam em decorrência das

análises das suas falas, uma exposição e consequentemente, um entendimento,

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complementares às motivações do deslocamento Mbyá aqui em questão. Ou seja, suas falas

apesar de denotarem extrema importância aos aspectos cosmológicos e míticos que

caracterizaram os principais motivos de impulso a detonar o processo de mobilidade espacial

entre os Mbyá que estabeleceram a Tekoá Mirim e que puderam ser claramente apreendidos

através das análises realizadas sobre as falas do Xeramo’i Karaí Mirim, revelam nas

entrelinhas, quando minuciosamente tratadas como objeto de análise atenta, que fatos,

dinâmicas e processos característicos da convivência cotidiana entre parentelas distintas que

coabitam, dividindo uma mesma limitação territorial, isto é, uma mesma Tekoá, produzem

cismas quanto àquelas relações, que associadas às limitações materiais e práticas, quanto à

acessibilidade de condições às vezes elementares para a sobrevivência, também tornam

concretas motivações que impulsionam os processos de deslocamentos territoriais entre os

Mbyá.

Devendo então, serem associadas, como causas pragmáticas de motivação da sua

mobilidade espacial, as complexas relações destes com a sociedade envolvente, em seus

múltiplos aspectos, sejam eles políticos, sociais e econômicos.

Desta forma, segue a transcrição das falas do cacique Karaí Ñee’re ao responder os

questionamentos acerca dos motivos que causaram a mobilização do seu grupo de parentes, e

que os impulsionaram a deixarem a localidade que já viviam, ou seja, a Tekoá de Pariquera-

açú.

“Nós conversava muito, eu e o meu pai, o Xeramo’i, lá na aldeia de Pariquera tava

muito difícil. Começô a ficá muito problema. Nós chegamo lá depois, eu, minha família, meu

pai, mãe, meus irmão e irmã, os meu sobrinho e outros parente. A aldeia já existia e era

outras família que já tava lá. É tudo parente nosso, nós tudo é parente. E nós no começo vivia

tudo bem. Mas daí foi passando o tempo foi ficando mais difícil. Lá já tinha outro Xeramo’i

também.

Nós organizava pra plantá, cuidava pras casa nossa fica limpa. E toda noite, meu pai

rezava, mas não era na Opy’i, o outro Xeramo’i é que rezava lá. O meu pai só ia até a Opy’i

depois, quando ela tava vazia. Mais começou ir cada vez mais parente no trabalho do meu

pai, na hora das conversa pra trabalho de todo mundo junto também.

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E também, começô a cresce a aldeia, começo a ficá com muita gente, aí era difícil o

espaço, a aldeia era pequena, ficô difícil a água. Começô muita gente não se entende mais.”

Assim, a transcrição de algumas das falas do cacique Edmilson, registradas acima, e,

circunscritas ao contexto das análises e interpretações propostas aqui, evidenciam, a

verificação de outras motivações e impulsos que estimularam o deslocamento do grupo

indígena Mbyá que viria a constituir a Tekoá Mirim.

Pois bem, inicialmente cabe ressaltar que a parentela a qual o cacique Karaí Ñee’re

fazia parte compunha um núcleo familiar, isto é, uma família extensa diferente em relação

àquela, que, já antes deles, viviam na Tekoá de Pariquera-açu. Portanto, apesar da intensa

solidariedade e cooperação que permeiam todas as relações entre os indivíduos, parentelas e

grupos Mbyá; inevitavelmente, a partir daquele momento se estabeleciam divergências

latentes a respeito das intenções, dos interesses e das perspectivas de cada um daqueles

grupos.

Também, deve-se estar atento às passagens da fala do cacique quando ele se refere a

seu pai, o Xeramo’i Karaí Mirim, e, sobretudo, ao fato de que ele na condição de liderança

espiritual, chegava a uma Tekoá cuja função social já era ocupada e desempenhada por outro

Xeramo’i. Constatações estas, que derivadas das análises e interpretações realizadas sobre os

registros etnográficos produzidos em campo, evidenciam a proximidade desta situação com as

conclusões já consagradas de P. Clastres (1978) e H. Clastres (1978). Conexões que se

efetuam no sentido de que as reflexões do primeiro autor, apresentam os processos de diluição

do poder entre os ameríndios em condições específicas; sendo que esta diluição, como foi

articulada pelas reflexões da autora em questão, se concretizaria pela ação dos líderes

religiosos, em contextos de desmembramentos e fragmentação das sociedades indígenas.

Nota-se ainda, como outro possível impulso para o deslocamento da parentela do

cacique Karaí Ñee’re da Tekoá de Pariquera-açú, o processo de aumento do seu prestígio

junto aos demais habitantes daquela aldeia, já que o ainda jovem Xondáro passava a atrair à

sua órbita de influência, enquanto liderança, uma grande quantidade de indivíduos.

Então, entende-se aqui, que tais questões ao expressarem rivalidades políticas, de

disputas pela predominância na condução do contexto ritual e religioso e mesmo as que

atestaram as limitações físicas quanto à utilização da espacialidade da Tekoá de Pariquera-açú

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frente ao aumento demográfico na mesma, e que se apresentam de modo bastante claro nas

falas do cacique Karaí Ñee’re, concretizam, portanto, o entendimento de que outros motivos

complementares àquele circunscrito a cosmologia e que foram tratados anteriormente,

também estão diretamente caracterizados como impulsos da mobilidade dos Mbyá. Podendo,

por sua vez, tornar-se mais explicito este contexto, ao se analisar a transcrição de algumas das

falas de mais um dos importantes informantes Mbyá que colaboraram decisivamente para a

elaboração desta investigação. Trata-se do irmão mais velho do cacique, ou seja, Werá Pyty

(Edson).

Ainda vivendo com a sua parentela na Tekoá de Pariquera-açu, Werá Pyty, havia

praticado várias atividades que lhe valiam um tratamento bastante ambíguo por parte de seus

parentes, mesmo após já terem se passado alguns anos e estas atividades não serem mais

realizadas. Tais atividades tratavam-se de que por um determinado período, Werá Pyty,

assumira na Tekoá de Pariquera-açú a ocupação de Agente de Saúde Indígena e de

coordenador para a implementação dos serviços de saneamento. Contexto este, que o

aproximava da instância estatal exógena à dinâmica da aldeia, e que era responsável pelas

questões relativas à prestação dos serviços para a saúde e ações sanitárias junto aos povos

indígenas, isto é, a Funasa (Fundação Nacional de Saúde). Assim, este contato direto que

Werá Pyty adquirira junto a Funasa, garantindo-lhe a possibilidade de articular diretamente

com ela, além de salário e da atribuição de definir como os demais membros da aldeia

deveriam trabalhar nas questões relativas à implantação dos serviços de saneamento,

ocasionando aos olhos dos demais Mbyá, a percepção de que ele passava a ser um catalisador

dos conflitos latentes que existiam entre as parentelas da Tekoá de Pariquera-açu. Pois, junto a

sua parentela, o “cargo” que ocupara era encarado como um facilitador para a superação de

múltiplos problemas que enfrentavam: tanto para a superação de demandas essenciais para a

manutenção da vida, já que lhes garantiam alguma renda em um contexto de dificuldades

materiais e quase fome; passando pela maior possibilidade de articularem os seus interesses

junto aos profissionais representantes do Estado; até a maior aproximação que passou a se

concretizar por parte de muitos outros indivíduos de outras parentelas junto a eles, fato que

lhes aumentava o prestígio na aldeia.

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Porém, frente às outras famílias extensas da Tekoá de Pariquera-açú, Werá Pyty e a

sua parentela passaram a ser vistos e tratados com alguns senões, pois, segundo aqueles, a

renda de Werá Pyty e sua parentela, passava a interferir diretamente em aspectos basilares da

convivência Mbyá, tais quais a reciprocidade e a comensalidade. Também passava a

concretizar interferências na ordem política daquela Tekoá, pois a atribuição de atividades dos

membros da aldeia, quando caracterizadas como de benefício coletivo, assim como a

articulação dos problemas e disputas entre os indivíduos e parentelas, tanto quanto o

estabelecimento de contatos e a mitigação de problemas entre a Tekoá e a sociedade

envolvente são ações de responsabilidade direta do cacique, do Xeramo’i e demais lideranças,

posicionamentos sociais estes, que não caracterizavam as atribuições nem de Werá Pyty e

nem de nenhum de seus parentes diretos.

Portanto, as dinâmicas expostas acima, que caracterizaram parcialmente o contexto de

convivência entre as parentelas da Tekoá de Pariquera-açú, em um período imediatamente

anterior ao deslocamento do grupo Mbyá que viria a constituir a Tekoá Mirim, somadas às

análises a serem realisadas a seguir, a partir da transcrição de partes das falas de Werá Pyty,

contribuem claramente para a proposição aqui assumida, ou seja, de que processos

pragmáticos que permeiam o cotidiano Mbyá, e articulam suas dinâmicas políticas internas e

externas, devem ser caracterizados quanto a sua complementariedade às questões de ordem

cosmológicas. Propiciando assim, mesmo na contemporaneidade, uma correta apreensão e

entendimento dos motivos que impulsionam o tão peculiar processo de mobilidade deste povo

indígena.

Assim, segue a transcrição de parte do depoimento de Werá Pyty quando fora

questionado sobre os impulsos causadores do deslocamento da sua parentela.

“Lá na aldeia, em Pariquera? Ah, era muito difícil, tava tudo complicado. Ninguém

tava entendendo o outro, os parente tava sem entende os outro.

Daí também, tava crescendo aldeia, ficava cada veiz menos espaço pra plantá. O que

saia da roça não dava prá todo mundo. E a água era pouco também, não era boa. Também,

aldeia tava muito suja, cheia de bicho das doença, tinha muito lixo, rato, baratinha, deixava

as criança tudo doente.

Não tinha comida todo dia, as criança tinha fome né. Era muito difícil.

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Então meu pai falo com Nhanderú, pediu pra ele ajuda nóis, fez trabalho, acerto tudo,

e nóis saiu. Foi assim que nóis saiu de lá”.

Desta forma, ao se efetuarem as análises e interpretações sobre a transcrição de partes

da fala de Werá Pyty, torna-se bem evidente a predominância dos aspectos práticos e

materiais, presentes no cotidiano dos Mbyá que habitavam a Tekoá de Pariquera-açú antes de

ter início o deslocamento da sua parentela, sendo então possível compreender os mesmos

como impulsos complementares à sua cosmologia, no contexto da mobilidade territorial de

sua família extensa. Também os conflitos políticos internos àquela Tekoá, como os

relacionamentos com a sociedade envolvente, tal como se estabeleceram historicamente, são

elementos também a se considerar. Assim, “Se constata, de esse modo, que esos indígenas al

variar las condiciones de acceso al território y cambiar lãs relaciones políticas entre lãs

famílias extensas, pueden también definir y redefinir lós lugares donde realizan su modo de

ser, es decir, el tekoha contemporâneo” (ALMEIDA & MURA, apud, PISSOLATO, 2007,

p.117).

Entretanto, é também bastante perceptível na fala de Werá Pyty, que por haver a

conclusão de que as causas elementares que detonaram o processo de migração da sua

parentela, mesmo que tenham sido elementos cotidianos, de ordem econômica e política,

juntamente as dinâmicas sociais que caracterizam a historicidade presente dos Mbyá, ou seja,

os contextos de contato com a sociedade envolvente, e, constituintes, portanto, da sua práxis,

este posicionamento não anula a relevância atribuída à cosmologia e aos processos rituais e

religiosos peculiares a cultura Mbyá, para o pleno entendimento dos impulsos causadores da

mobilidade territorial do seu povo.

4 O deslocamento entre a Tekoá de Pariquera-açú e a Tekoá Mirim. A mobilidade Mbyá

propriamente dita.

Pois bem, assumida a convicção, neste trabalho, que os impulsos motivadores do

processo que impeliu ao deslocamento a parentela do Xeramo’i Karaí Mirim, desde a Tekoá

de Pariquera-açu no litoral sul de São Paulo, até a localidade definida por ele a ser o ponto de

fixação do grupo e da constituição da Tekoá Mirim, área esta, localizada no município de

Praia Grande, também no sul do litoral paulista, como sendo consequência de um complexo

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processo sociocultural, onde concepções e práticas cosmológicas, rituais e religiosas,

interpenetraram-se a alguns aspectos derivados da vida imediatamente prática dos Mbyá, ou

seja, situações derivadas das condições socioeconômicas, das relações políticas internas e do

contato com a sociedade envolvente que concretizavam a práxis daquele grupo. Pretende-se,

pois, a partir de então, passar à discussão que de modo específico circunscreve as questões

relacionadas ao processo de mobilidade espacial, propriamente dito, dos Mbyá, isto é, como

se concretizou o deslocamento do grupo indígena estudado, levando-se em conta para tais

análises, circunstâncias de caráter sociais, políticas e econômicas, assim como, contextos

cosmológicos, rituais e religiosos; culturais enfim, entre o ponto de partida e o local de

fixação para o estabelecimento da sua Tekoá Mirim.

Então, após já estarem concretizadas as circunstâncias que caracterizaram a inspiração

divina realizada nos sonhos do Xeramo’i, e que lhe foi entregue por intermédio de Nhanderú,

determinando que devesse conduzir seus parentes, na jornada mítica do Oguatá, para

constituírem uma nova localidade de habitação, isto é, outra Tekoá. Pois, que é preciso levar

em conta que, “a escolha do lugar onde possam viver “conforme os nossos costumes”

(ñandereko) parece hoje constituir-se na motivação básica das “andanças” (oguatá) Mbyá”

(AZANHA & LADEIRA, 1988, p.23). E mais, que “Incluem na sua definição de povo a

mensagem divina a eles revelada por Nhanderu e por eles cumprida, de que devem procurar

seus verdadeiros lugares, por meio de caminhadas (guatá)” (LADEIRA, 2007, p.23).

Então, com relação, aos fatos e processos que se seguiram ao contexto acima

apresentado e que se relacionam de maneira direta com as discussões já realizadas,

passaremos a transcrição colhida em conversas junto ao Xeramo’i Karaí Mirim, e que se

ocupam de modo específico, de apresentarem o contexto posterior à sua inspiração ocorrida

em sonho e que alertava sobre a necessidade de se transferirem da localidade em que viviam.

“Depois do meu sonho, eu entendi porque tava tudo ruim, porque tava muito difícil

pra nóis vive lá em Pariquera. Foi Nhanderú que explico, ele mostro pra mim, eu vi no

sonho. Não era mais pra nóis ficá lá. Tinha que ir pra outro lugar, outra Tekoá, que nóis é

que tinha que achá. Nhanderú ia mostrá. Onde era. Como fazia pra chegá lá. Mais agora

tinha que prepará tudo.

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Depois disso tudo então, tinha que reza muito, mbora’i. Pra Nhanderú me mostrá. Fui

rezando muito, toda noite, bastante tempo, até Nhanderú mostrá”.

Desta forma, segundo as informações coletadas, se iniciaram uma série de trabalhos

diários, que começavam sempre ao anoitecer e se estendiam por muitas horas, várias vezes até

horas avançadas da madrugada. E não raras as vezes que se estendiam até o amanhecer

seguinte. E à medida que se sucediam ao longo das noites, as presenças nestes trabalhos

passaram a ser restritas ao Xeramo’i Karaí Mirim, e a sua esposa Pará Pyty, quando eram

entoados ininterruptamente sucessivos mbora’i (cantos/rezas sagrados) pelo Xeramo’i, que

era acompanhado pelas músicas que sua esposa tocava no Mbaraká (violão), períodos estes,

que eram intercalados a outros períodos onde se fumava de maneira intensa o Petynguá

(cachimbo).

Então, seguiam-se trabalhos com grande intensidade das rezas, dias de orações, jejuns,

cantos e danças sagradas. Até que ao longo da realização de uma seção de trabalhos, em que

apenas participavam o Xeramo’i e sua esposa, foi então indicado a ele, por Nhanderú, em

inspiração ritual e uso do Petynguá, que em breve ocorrer-lhe-ia a inspiração que lhe

indicaria, exatamente o novo local a se instalarem e se fixarem em nova Tekoá. Pois, segundo

Pissolato (2007, p.319): “A bem da verdade, dizem os Mbyá que a qualquer hora do dia ou

lugar em que se esteja, pode-se ter alguma percepção de algo que Nhanderu conta (...)”.

Portanto, aproximadamente um mês depois de iniciadas estas sessões sucessivas de

trabalhos xamânicos que objetivavam a inspiração divina, para que o Xeramo’i pudesse “ver”

a localidade exata para onde deveria conduzir o deslocamento de seus parentes no processo de

estabelecimento de uma “nova” Tekoá, é que este fato viera a se concretizar. E, finalmente

fora revelado para o Xeramo’i Karaí Mirim a nova área a ser ocupada em seu ancestral

território. Assim, depois de antevisto em contexto ritual, onde a inspiração dada por Nhanderú

ao Xeramo’i se concretizara, passaria então a ter início o processo de deslocamento

propriamente dito, daquele grupo Mbyá.

Por conta de todo este processo, se iniciou ainda na Tekoá de Pariquera-açu, uma série

de reuniões entre o Xeramo’i, e os demais membros da sua parentela. Nestas reuniões,

caracterizadas pela peculiar oratória Guarani, eram apresentados os contornos daquela

situação que os impelia a se deslocarem em busca da sua “nova” Tekoá. Buscava-se o apoio e

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a garantia de participação dos seus parentes. Mas, a adesão imediata dera-se apenas por parte

de alguns jovens casais. O que passou a demandar um maior esforço do Xeramo’i e do seu

filho Karaí Ñee’re, para o convencimento dos seus demais parentes. Processo, portanto, que

se estenderia por mais algumas semanas.

Contudo, como afirmara Karaí Ñee’re em algumas conversas, simultaneamente

àqueles momentos em que buscavam o convencimento de seus parentes, também os trabalhos

do Xeramo’i continuavam a ser realizados diariamente. E neles, se intensificava a percepção

de que a partida da Tekoá de Pariquera-açu, e o consequente deslocamento do grupo deveria

se iniciar o quanto antes. Então, mediante a incerteza do grupo, em um acordo, o Xeramo’i

Karaí Mirim e o seu filho Karaí Ñee’re, decidiram que inicialmente, apenas eles partiriam

para realizarem a localização exata daquela espacialidade a ser estabelecida a sua nova Tekoá.

Dinâmica esta, que se concretizaria inteiramente determinada, através da prática de rituais,

que revelariam as inspirações divinas propiciadas por Nhanderú.

Assim, o Xeramo’i e o seu filho partiam da Tekoá de Pariquera-açu em uma jornada

ritual que imersa em um contexto de ressignificação tempo espacial, por se concretizar na

contemporaneidade, reproduzia a Oguatá Porã (Bela Caminhada), milenarmente executada

por seus ancestrais.

Desta forma, sempre guiados pelos trabalhos realizados todas as noites pelo Xeramo’i,

os dois viajantes distanciavam-se da Tekoá de Pariquera-açu em direção ao norte, viajaram a

pé, por entre as matas da Serra do Mar, através de trilhas centenárias, mas às vezes se

utilizaram dos ônibus circulares. Passaram pelas aldeias Guarani de Itanhaém, de Mongaguá,

até cruzarem o limite de município com Praia Grande, onde penetraram no interior do

território da Serra do Mar, mantenedora de ampla cobertura vegetal de Mata Atlântica ainda

bastante preservada. Nesta noite, segundo o relato de Karaí Ñee’re, o trabalho realizado por

seu pai, resultara na “visão” inspirada que tanto aguardavam, isto é, fora-lhe apresentado por

Nhanderú, a localidade exata em que deveriam fixar-se, e com seus parentes constituírem a

sua aldeia.

Estando, portanto, exatamente determinado o local para o “novo” estabelecimento da

parentela do Xeramo’i, ele e seu filho retornam à Pariquera-açu, para a Tekoá em que os seus

parentes os aguardavam. Assim, após a chegada de ambos, e descrito minuciosamente, através

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da peculiar oratória Mbyá Guarani, o contexto ocorrido em sua viagem, com facilidade

realizara-se o convencimento de uma significativa parte de seus parentes.

Então, se iniciara o deslocamento do grupo Mbyá em questão, e, que concretizariam a

aldeia Tekoá Mirim. Desta forma, como já fora registrado, a determinação quanto à

espacialidade exata de onde deveria se concretizar a fixação do grupo Mbyá, ou seja, onde se

daria o momento final de sua jornada, mitologicamente concebida e tornada real através da

prática do Oguatá Porã, a sua “bela caminhada”, deu-se após se deslocarem de maneira

similar pelo mesmo percurso que o Xeramo’i Karaí Mirim e seu filho Karaí Ñee’re haviam

transposto anteriormente, sendo, portanto, definida pelos contextos mítico-religiosos que

caracterizaram para estas situações a ação ritual, que ao longo do período em que esteve

sendo revivido o processo ritual secular da Oguatá, esteve atuando como aquele que durante

este processo torna-se quem concentra o poder político frente a todo o grupo, somando-o a

posse do já anterior, poder espiritual/religioso. Portanto, todo o processo de deslocamento

ritual (Oguatá) deu-se como consequência da reprodução, no cotidiano, da mitologia Mbyá

Guarani. Sua motivação, derivada de questões míticas (a busca da “Terra sem Mal”),

religiosas (a incompatibilidade de mais de um Xeramo’i em cada um dos grupos Mbyá), até

questões culturalmente peculiares deste grupo indígena, que se especificam e concretizam nas

relações políticas, espirituais e sociais.

Portanto, na localidade definida mediante complexos processos rituais que

concretizaram na realidade contemporânea, parcialidades ressignificadas da ancestralidade

cosmológica, mítica e religiosa Mbyá, constituía-se este novo núcleo sociocultural a ser

ocupado por representantes daquele povo, ou seja, pelos membros da parentela do Xeramo’i

Karaí Mirim.

Assim, naquela “nova” Tekoá, fixaram-se inicialmente alguns indivíduos que

compunham parcialmente a família extensa do Xeramo’i Karaí Mirim, a saber, o próprio

Xeramo’i (Maurício) e sua esposa Pará Pyty (Marta), seu filho Karaí Ñee’re (Edmilson) e a

sua esposa Pará Yry (Venância) e este casal com seus dois filhos, que tinham a época, Karaí

Jecupe (Edicleison) e Kwaraí Papá (Juca). Ainda formavam aquele grupo, seis netos do

Xeramo’i Karaí Mirim, todos menores de idade, além de outros dois sobrinhos seus, estes,

maiores de idade e casados. Sendo que o primeiro casal vinha acompanhado de dois filhos

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menores de idade, enquanto o segundo casal, com seus quatro filhos, todos também, menores

de idade.

Determinava-se assim, portanto, o início da constituição da Tekoá Mirim.

Considerações Finais

Percebe-se, portanto, como ambas as concepções acerca do deslocamento territorial

interpenetram-se e se concretizam de maneira complementar, assim como, se define a

proposição deste trabalho, para a realização acertada da apreensão e entendimento deste

peculiar processo cultural dos Mbyá. Pois que, o “ethos caminhante” deste povo envolve

necessariamente a busca por lugares, mas esta busca não aparenta ser motivada por um ideal

plenamente determinado de vida e lugar, já dados antecipadamente. Desta maneira, ao buscar

lugares, parece que justamente, se busca um modo mais apropriado para se viver, num

mundo, como afirmam os Mbyá, em que lugar realmente bom e adequado não existe. Então,

mesmo que a argumentação faça-se paradoxal, é exatamente a plena consciência a respeito

desta condição precária que torna contínuo o deslocamento e a busca por contextos melhores

para se viver.

Desta forma, a “antevisão onírica”, da efetuação da Oguatá, ou seja, a motivação

ritualisticamente percebida, a demonstração da nova localidade a se fixar “vista” em um

sonho, a inspiração dada por Nhanderú, foram todas elas etapas vivenciadas pelo Xeramo’i.

Como também, o local compreendido como aquele que lhe foi revelado e indicado pela

divindade para ser concretizado como sua nova Tekoá. Neste caso, a área da Serra do Mar

presente no território do município de Praia Grande, litoral sul de São Paulo. Localidade esta,

que teve também, sobreposta a si a decisão estatal que a deixou circunscrita ao Parque

Estadual da Serra do Mar. Entretanto, para os Mbyá, esta espacialidade fora confirmada,

quanto a constituir-se como a localidade exatamente correta, em relação a sua presença e

permanência, por uma série de rituais realizados pelo Xeramo’i Karaí Mirim com esta

finalidade específica. Reproduzindo-se desta maneira, na contemporaneidade, as

complexidades que caracterizam, talvez, o principal aspecto desta cultura milenarmente

mantida naquela área geográfica, isto é, a sua mobilidade espacial, a constituição incessante

de diversas Tekoá, que apenas quando compreendidas em suas interrelações e interatividade

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características, passa-se a real percepção do entendimento que de modo correto define a

territorialidade Mbyá Guarani.

Referências

AZANHA, G. & LADEIRA, M. I. Os índios da serra do mar. São Paulo. Ed. Nova Stella.

1988.

CLASTRES, H. A Terra Sem Mal. (trad.) RIBEIRO, R. J. São Paulo. Ed. Brasiliense. 1978.

CLASTRES, P. A Sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. (trad.)

SANTIAGO, T. Rio de Janeiro. Ed. Francisco Alves. 1978.

____________ Crônicas dos Índios Guayaki. O que sabem os Aché, caçadores nômades do

Paraguai. (Trad.) LIMA, T. S. & CAIAFA, J. Rio de Janeiro. Ed. 34.1995.

MELIÀ, B. A experiência religiosa Guarani. (In): O Rosto Índio de Deus. (trad.) CLASEN,

J. A. São Paulo. Ed. Vozes. 1989.

PISSOLATO, E. A Duração da Pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya

(guarani). São Paulo. Ed. UNESP: ISA; Rio de Janeiro: NuTI. 2007.

LADEIRA, M. I. O Caminhar sob a Luz: território Mbyá à beira do oceano. São Paulo. Ed.

UNESP/FAPESP. 2007.