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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL
DESCONSIDERAÇÃO E DESCONSTITUIÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NAS RELAÇÕES DE
TRABALHO
José Marcelo Pinheiro Filho
Fortaleza - CE Novembro, 2009
JOSÉ MARCELO PINHEIRO FILHO
DESCONSIDERAÇÃO E DESCONSTITUIÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NAS RELAÇÕES DE
TRABALHO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito Constitucional, sob a orientação da Prof. Dr. José Júlio da Ponte Neto.
Fortaleza - Ceará 2009
___________________________________________________________________________ P654d Pinheiro Filho, José Marcelo. Desconsideração e desconstituição da personalidade jurídica nas relações de trabalho / José Marcelo Pinheiro Filho. - 2009. 107 f. Dissertação (mestrado) – Universidade de Fortaleza, 2009. “Orientação: Prof. Dr. José Júlio da Ponte Neto.” 1. Pessoa jurídica. 2. Relações de trabalho. 3. Direito do trabalho. I. Título. CDU 347.19 _________________________________________________________________________
JOSÉ MARCELO PINHEIRO FILHO
DESCONSIDERAÇÃO E DESCONSTITUIÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NAS RELAÇÕES DE
TRABALHO
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________
Prof. Dr. José Júlio da Ponte Neto Universidade de Fortaleza – UNIFOR
__________________________________________________________________
Profª. Drª. Maria Lirída Calou de Araújo e Mendonça Universidade de Fortaleza – UNIFOR
__________________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Tarciso Leite Universidade de Fortaleza – UNIFOR
Dissertação aprovada em 29/10/2009
Aos meus pais, que continuam comigo compartilhando da alegria desse momento, mesmo em outro estágio da vida. Às minhas irmãs, Socorro, Fátima e Valéria, incansáveis na luta contra a enfermidade que os acometeu.
AGRADECIMENTOS
Ao meu amigo e orientador, Professor Doutor José Júlio da Ponte Neto, contemporâneo
do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará, meu professor no Curso de
Especialização em Direito Empresarial pela ESAF em parceria com a Universidade Estadual
do Ceará.
À professora doutora Maria Lirída Calou de Araújo e Mendonça, que como
coordenadora na especialização em direito empresarial já me indicava o mestrado como
sequencia para o trabalho desenvolvido.
À professora doutora Lília Maria de Moaris Sales, que como coordenadora, introduziu
uma dinâmica nova no Curso de Pós-graduação em Direito Constitucional capaz de propiciar
a todos os integrantes da Turma VIII a conclusão desse Mestrado.
RESUMO
O tema “Desconsideração e Desconstituição da Personalidade Jurídica nas Relações de Trabalho” foi escolhido em decorrência da inexistência de norma específica no âmbito do Direito do Trabalho que possibilite a Desconsideração da Personalidade Jurídica por não serem cumpridas as obrigações decorrentes das relações de trabalho transitadas em julgado. A importância dessa pesquisa visa não só ao aluno que ora se lança no mundo da pesquisa jurídica, a ter um conhecimento mais profundo sobre a matéria, ainda não muito difundida academicamente, mas a propiciar também um maior discernimento a advogados atuantes, administradores e entidades que desconhecem as possibilidades de desconsideração da pessoa jurídica admitida no Código Civil Brasileiro de 2002. O trabalho faz uma análise dessa teoria, com o estudo de doutrinadores europeus desde o início do século XIX, sendo pioneiro no Brasil o iminente jurista paranaense Rubens Requião, reconhecidamente o maior contribuidor para a recepção da desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico pátrio. Enfoca, ainda, a inserção dessa teoria em leis especiais, como no Código Tributário Nacional, Consolidação das Leis do Trabalho e Código de Defesa do Consumidor, até desaguar no Código Civil de 2002, com o princípio básico de que o que se busca com a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica não é a despersonalização, ou seja, a dissolução da pessoa jurídica, mas coibir práticas abusivas ou fraudulentas por meio da superação em casos concretos, para que seja possível alcançar e responsabilizar pessoas físicas ou jurídicas que se ocultaram sob o manto da pessoa jurídica que teve sua função por elas desviada. Em pesquisa realizada nas varas do trabalho em Fortaleza-CE, chegou-se à conclusão de que dentre dez processos de execução, em apenas dois se encontram bens disponíveis da empresa executada, sendo que no restante somente se chega à satisfação do crédito do empregado, através da existência de bens em nome dos sócios dessas executadas. No sentido de dar maior razão à Desconstituição da Personalidade Jurídica e sua aplicação nas relações oriundas dos contratos de trabalho, buscou-se na interpretação da Norma Jurídica e nos princípios que norteiam essas relações a justificativa legal e principiológica para a aplicação do artigo 1.026 do atual Código Civil Brasileiro. A dissertação faz ainda a diferenciação entre desconsideração e desconstituição da personalidade jurídica e os benefícios que o instituto poderá trazer às relações de trabalho, fazendo uma conclusão pessoal sobre a evolução desse instituto no ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-chave: Desconsideração e Desconstituição da Personalidade Jurídica.
ABSTRACT
The theme "Disregard and Deconstitution of Legal Personality in Labor Relations" was chosen because the absence of specific provision under the Labor Law which allows the disregard of personality because they are not fulfilled the obligations of employment relationships have become final . The importance of this research is aimed not only to the student who now is cast into the world of legal research, to have a deeper knowledge on the subject, not yet widespread academically, but also provide a greater understanding of lawyers acting, directors and entities know about the possibilities of disregard of the legal entity admitted to the Civil Code of 2002. The study examines this theory with the study of European scholars since the early nineteenth century, a pioneer in Brazil, Paraná imminent jurist Rubens Requião, admittedly a major contributor to the receipt of the disregard of legal personality in the native legal system. Special focus is also the insertion of the theory of special laws, such as the National Consolidation of Labor Laws and Code of Consumer Protection, before flowing into the Civil Code of 2002, with the basic principle that what is sought with the application of the disregard of legal personality is not the depersonalization, or the dissolution of the corporation, but curb abuse or fraudulent conduct by overcoming individual cases, so you can reach and empower individuals or entities that are concealed under the mantle of legal entity that played a role for them diverted. A survey carried out in the sticks work in Fortaleza, it was found that out of ten processes running on only two are available assets of the company performed, and the rest only do you get the satisfaction of the claim of the employee, through the existence of assets on behalf of members of those executed. In order to give more reason to deconstitution of Legal Personality and its application in the relations arising from contracts of employment, we sought the interpretation of the rule of law and the principles that guide these relationships a legal justification and set of principles for the application of Article 1026 of the current Civil Code. The dissertation also makes a distinction between deconstitution and disregard of legal personality and the benefits that the institute could bring to the employment relationship, making a personal conclusion about the evolution of this institute in the Brazilian legal system.
Key-word: Disregard and Deconstitution of Legal Personality
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11
1 A PESSOA JURÍDICA ....................................................................................................... 13
2 CLASSIFICAÇÃO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS ................................................. 17
2.1 Sociedade em nome coletivo ........................................................................................ 18
2.2 Sociedade em comandita simples ................................................................................. 19
2.3 Sociedade anônima ....................................................................................................... 20
2.4 Sociedade em comandita por ações .............................................................................. 21
2.5 Sociedade por cota de responsabilidade limitada ......................................................... 21
3 TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA .................... 24
3.1 Origem .......................................................................................................................... 24
3.2 A desconsideração da personalidade jurídica no brasil ................................................ 27
3.3 A diesgard doctrine no ordenamento jurídico brasileiro .............................................. 32
3.3.1 A teoria da desconsideração no direito comercial ............................................... 34
3.3.2 A teoria da desconsideração no direito tributário ................................................ 35
3.3.3 A teoria da desconsideração no direito do trabalho ............................................ 37
3.3.4 Teoria da desconsideração no direito do consumidor ......................................... 37
3.5 A desconsideração da personalidade jurídica no código civil brasileiro de 2002 ........ 39
4 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA FASE DE EXECUÇÃO NO DIREITO PROCESSUAL DO TRABALHO ........................................................................... 40
4.1 Patrimônio próprio da pessoa jurídica. ......................................................................... 41
4.2 Patrimônio dos sócios da pessoa jurídica ..................................................................... 42
4.3 A disregard doctrine nos grupos de empresas .............................................................. 43
4.4 O enunciado da súmula 205 do TST ............................................................................. 44
4.5 A penhora on-line ......................................................................................................... 46
4.5.1 Do sistema renajud .............................................................................................. 50
4.5.2 Do sistema infojud .............................................................................................. 51
5 DIFERENÇA ENTRE DESCONSIDERAÇÃO E DESCONSTITUIÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA ........................................................................................................................... 53
5.1 O artigo 1.026 do código civil de 2002 ........................................................................ 56
5.2 Da aplicação do artigo 1.026 nas execuções trabalhistas ............................................. 57
6 A INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS ........................................................ 59
6.1 Classificação da interpretação ...................................................................................... 59
6.1.1 Método lógico-sistemático .................................................................................. 60
6.1.2 Histórico-teleológico ........................................................................................... 60
6.1.3 Método voluntarista da teoria pura do direito ..................................................... 61
6.1.3.1 Interpretação autêntica e não-autêntica ................................................. 62
6.1.3.2 O direito a aplicar como uma moldura .................................................. 64
6.1.3.3 A interpretação como conhecimento e como vontade .......................... 65
6.1.3.4 O significado exemplar da hermenêutica jurídica: o momento da aplicação da norma ................................................................................................ 66
6.2 A interpretação do direito do trabalho .......................................................................... 67
7 A FORÇA DA PRINCIPIOLOGIA CONSTITUCIONAL ................................................. 69
7.1 O princípio protetor no direito do trabalho ................................................................... 76
7.1.1 Princípio da igualdade no Direito do Trabalho ................................................... 76
7.2 Princípios peculiares ao Direito do Trabalho ............................................................... 78
7.3 O princípio protetor como direito fundamental ............................................................ 78
7.3.1 Princípio “in dubio pro operario” ........................................................................ 81
7.3.2 Princípio da condição mais benéfica do trabalhador ........................................... 82
7.3.3 Princípio da norma mais favorável ...................................................................... 83
CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 85
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 88
INTRODUÇÃO
As execuções no Processo Trabalhista muitas vezes se tornam difíceis de serem
concluídas. Em alguns casos pela inexistência de bens da executada ou, existindo, os bens são
gravados de ônus; em outros, os sócios habilmente conseguem desviar seu patrimônio a outra
empresa, criada no intuito de fraudar as execuções. Diversas são as fórmulas encontradas por
administradores de grupos econômicos que conseguem transferir bens de uma empresa para
outra do mesmo grupo, visando a dificultar o processo executório ou mesmo torná-lo ineficaz.
Vislumbra-se, em algumas relações de emprego postas à apreciação da Justiça do
Trabalho, que empresas são criadas já no intuito de fraudar o pagamento das verbas oriundas
das relações empregatícias, como em alguns casos das prestadoras de serviços terceirizados.
Pessoas se unem, formam uma empresa de prestação de serviços com capital fictício e,
quando do término de seus contratos firmados, não pagam seus funcionários, induzindo-os até
a procurar a Justiça do Trabalho na certeza de que os acordos serão compensadores, às vezes,
até, somente com a liberação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e do Seguro
Desemprego.
Essas dificuldades “impostas”, muitas vezes, levam o processo trabalhista,
principalmente o executório, a ter vida longa e cansativa. Em alguns casos, desestimulam a
parte a prosseguir no feito, levando o magistrado da Justiça do Trabalho a determinar o
arquivamento do processo por falta de interesse processual da parte exequente.
No decorrer do Curso de Mestrado em Direito Constitucional, vários foram os temas em
diversas disciplinas ministradas, “que me saltaram aos olhos”, mas, nenhum deu tanto alento
quanto a desconsideração e desconstituição da personalidade jurídica, a partir de cada enfoque
doutrinário que era encontrado em relação aos direitos fundamentais introduzidos na Carta
Constitucional Brasileira, principalmente no que dizia respeito às garantias constitucionais do
trabalhador, relacionando-os com as disposições dos artigos 50 e 1.026 do atual Código Civil
Brasileiro.
A responsabilidade da sociedade, dos sócios e administradores abordados em capítulo
exclusivo no Código Civil Brasileiro de 2002 traz uma série de novas implicações, devendo
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ser analisados os vários tipos societários, as responsabilidades limitadas ou ilimitadas de seus
sócios no ordenamento jurídico brasileiro, sempre focando dentro da relação trabalhista.
Nessa reflexão, perguntas emergem constantemente: O crédito trabalhista oriundo de
sentença transitada em julgado pode ser objeto para a desconsideração da pessoa jurídica,
alcançando “cotas” de sócio da reclamada em outra empresa? Se o parágrafo único do art.
1.026 do novo Código Civil Brasileiro pode ser aplicado na esfera trabalhista sem um
procedimento ordinário? Se a desconstituição da pessoa jurídica só pode ser requerida
posterior à aplicação da teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica? Admitida no
novo Código Civil Brasileiro, pode haver a desconstituição da pessoa jurídica decorrente das
relações empregatícias, sendo aplicada subsidiariamente no Direito do Trabalho? Logo, nota-
se que o tema é polêmico. Polêmico e agradável de pesquisar.
Dessas considerações, nascem os objetivos da pesquisa, que são: identificar as fontes
doutrinárias que possibilitaram a introdução desse instituto no ordenamento jurídico
brasileiro; Analisar a existência da Teoria da Desconsideração da Pessoa jurídica, e se pode o
Magistrado do Trabalho aplicá-la diretamente, quando do não cumprimento das decisões
judiciais transitadas em julgado. Justificar o ideal de Justiça contido no instituto da
desconsideração da personalidade jurídica; Enfocar o art. 2o da CLT no que tange à
constituição de grupos econômicos e à responsabilidade solidária de suas empresas nas
relações empregatícias.
Nesse sentido, faz-se importante saber como está sendo tratada esta questão, que
encaminhamento está sendo dado por juízes e doutrinadores, qual a posição da jurisprudência,
como está sendo apurada a responsabilidade dos sócios com o advento do novo Código Civil
e finalizar com uma crítica sobre a aplicação desses institutos nas relações empregatícias
postas à apreciação do Poder Judiciário do Trabalho e nos benefícios futuros de credibilidade
que tal aplicação possa trazer ao trabalhador.
1 A PESSOA JURÍDICA
Para se analisar o tema da desconsideração e desconstituição da personalidade jurídica,
obrigatoriamente deve-se tomar como ponto de partida o instituto da pessoa jurídica focado
de maneira sucinta, visando a dar uma visão global desse instituto, buscando não visualizar a
pessoa jurídica em seus mínimos detalhes, mas fornecer a quem venha a ler esta dissertação
uma noção geral até chegar às delimitações do tema escolhido. A questão da natureza da
pessoa jurídica é complexa e tormentosa, haja vista as variedades de teorias formuladas e
reformuladas a respeito. Observando-se os diversos autores que tratam do assunto, percebe-se
que, em sua maioria, não se chegou a um consenso sobre a conceituação desse instituto.
Nesta dissertação, que tem como delimitação do tema: “A desconsideração e
desconstituição da personalidade jurídica nas relações de trabalho”, não há necessidade de se
pesquisar profundamente a natureza da pessoa jurídica, que ensejaria um trabalho mais
detalhado, o que não é o caso, mas, importa frisar, ao menos alguns conceitos de pessoa jurídica
que foram formulados ao longo do tempo, relatados na obra de Elizabeth Cristina Campos
Martins de Freitas (2002, p. 28). Consoante Giorgio Giorgi (apud FREITAS, 2002, p. 28):
pessoa jurídica consiste em uma coletividade humana organizada, estável, para uma ou várias finalidades de utilidade pública ou privada, sendo distinta dos membros que a compõem, dotada de capacidade de possuir e de exercitar adversus omnes os direitos patrimoniais, compatíveis com a sua natureza, com o subsídio e o incremento do Direito Público.
Já para Francesco Ferrara (apud FREITAS, 2002, p. 28): “as pessoas jurídicas podem
definir-se como associações ou instituições formadas para a consecução de um fim e
reconhecidas pela ordenação jurídica como sujeitos de direito.”
A expressão pessoa jurídica, atualmente entendida, em geral, como o ente incorpóreo
que, como as pessoas físicas, pode ser sujeito de direitos, adotada pelo Código Civil de 1916,
foi divulgada em princípio por Savigny, um dos primeiros a empregá-la. Pode-se conceituar o
termo pessoa jurídica como a entidade a que a lei empresta personalidade, capacitando-a a ser
sujeito de direitos e obrigações, tendo como sua principal característica a autonomia da pessoa
jurídica com relação à pessoa dos sócios.
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É possível classificar as pessoas jurídicas atendendo-se a sua estrutura ou a suas
funções, capacidade e atuação. Podem ser associações e fundações ou instituições, públicas e
privadas, nacionais, estrangeiras ou internacionais. Há, então, a possibilidade de a pessoa
jurídica ser de direito público interno ou externo ou de direito privado, conforme estabelecem
os artigos 41 a 44 do Código Civil.
Entende-se como de direito público interno: a União; os Estados e o Distrito Federal; os
Municípios; as Autarquias e demais entidades de caráter público.
Existem pessoas de direito público externo, muito embora tenha ficado omisso a
respeito o Código Civil Brasileiro, como, por exemplo: a OEA - Organização dos Estados
Americanos-, a ONU - Organização das Nações Unidas -, Santa Fé, dentre outras.
As pessoas jurídicas de direito privado são as sociedades civis, religiosas, morais,
científicas ou literárias, as associações de utilidade pública, as fundações e as sociedades
mercantis.
Conforme disposto no art. 44 do Código Civil, as sociedades mercantis são regidas
pelas leis comerciais. Entende-se, dessa forma, por comercial, uma sociedade quando firmada
por meio de contrato entre duas ou mais pessoas que contribuem para a formação do capital
social, com o intuito de exercer o comércio, sendo essas pessoas jurídicas essenciais para o
desenrolar desta dissertação.
Começa a existência da pessoa jurídica de direito privado com a inscrição de seus atos
constitutivos no registro público, ou seja, para as sociedades simples no Registro Civil de
Pessoas Jurídicas, para as sociedades empresárias, no Registro Público de Empresas
Mercantis (Juntas Comerciais), assim dispondo o art. 45 do Código Civil:
Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.
A pessoa jurídica fica obrigada pelos atos praticados por seus administradores, desde
que exercidos nos limites de seus poderes expressos em contrato social ou estatuto, conforme
determina o artigo 47 do Código Civil de 2002: “Obrigam a pessoa jurídica os atos dos
administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo.”
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Sobre o nascimento da pessoa jurídica, Caio Mário da Silva Pereira (2000, p. 185), com
maestria sintetizou em três requisitos, sua formação:
Para a constituição ou o nascimento da pessoa jurídica é necessária a conjunção de três requisitos: a vontade humana criadora, a observância das condições legais de sua formação e a licitude de seus propósitos. Quando duas ou mais pessoas se congregam e desenvolvem as suas atividades ou reúnem os seus esforços, trabalhando em companhia ou conjugando suas aptidões para o mesmo fim, nem por isso dão nascimento a uma entidade personificada. Frequentemente indivíduos labutam de parceria. Mas não nasce daí uma personalidade jurídica autônoma. Para que isso ocorra é mister a conversão das vontades dos participantes do grupo na direção integrativa deste em um organismo. [...], O segundo requisito está na observância das prescrições legais relativas a sua constituição. É a lei que determina a forma a que obedece aquela declaração de vontade, franqueando aos indivíduos a adoção de instrumento particular ou exigindo o escrito público. É a lei que institui a necessidade de prévia autorização do Governo para certas categorias de entidades funcionarem. É ainda a lei que estipula a inscrição do ato constitutivo no Registro Púbico como condição de aquisição de personalidade. É a lei, em suma, que preside a conversão formal de um aglomerado de pessoas naturais em uma só pessoa jurídica. Um terceiro requisito ainda é exigido, sem o qual não poderá haver pessoa jurídica, ainda que se agreguem pessoas naturais e se encontrem presas pelo encadeamento psíquico. Se a justificativa existencial da pessoa jurídica é a objetiva ao das finalidades a que visa o propósito de realizar mais eficientemente certos objetivos, a liceidade destes é imprescindível a vida do novo ente, pois não se compreende que a ordem jurídica vá franquear a formação de uma entidade, cuja existência é a projeção da vontade humana investida de poder criador pela ordem legal, a atuar e proceder em descompasso com o direito que lhe possibilitou o surgimento.
No que diz respeito à extinção da Pessoa Jurídica, a teoria da desconsideração da
personalidade jurídica não visa a sua extinção; pelo contrário, fundamenta-se justamente na
intenção de mantê-la intacta, não obstante o mau uso de seu representante legal ou
administradores. Isso porque a função social que toda sociedade comercial possui é latente
aos olhos de quem analisa o tema, seja pelo desempenho do mercado, seja pelo contingente de
trabalhadores que emprega, seja pelos tributos que arrecada.
Justamente por esses motivos, a extinção da pessoa jurídica não tem grande importância
para esta dissertação, mas vale enumerar as situações de sua extinção, como forma ilustrativa
deste trabalho.
Artigo 21 do CC. Termina a existência da pessoa jurídica: I – pela sua dissolução, deliberada entre os seus membros, salvo o direito da minoria e de terceiros; II – pela sua dissolução quando a lei o determine; III – pela sua dissolução em virtude de ato do governo, que lhe casse a autorização para funcionar, quando a pessoa jurídica incorra em atos opostos aos seus fins ou nocivos ao bem jurídico.
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A existência da sociedade finda pela dissolução e liquidação. Pode ser consensual ou
judicial. Quando a sociedade se extingue pelo consenso dos sócios, diz-se que há distrato. A
dissolução consensual ocorre também com a expiração do prazo, uma vez que a determinação
prévia de duração foi admitida voluntariamente no contrato constitutivo. Termina, ainda, a
existência da sociedade por outras causas, tais como, consecução do fim social, verificação de
sua enexequibilidade, morte ou incapacidade de um dos sócios, insolvência e extinção do
capital social.
2 CLASSIFICAÇÃO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
Necessário se faz, para uma melhor compreensão sobre a desconsideração e
desconstituição da pessoa jurídica, que se tenha uma noção básica sobre a classificação das
sociedades comerciais e a responsabilidade dos sócios e administradores.
Parte-se do pressuposto de que o fim a que se propõem as sociedades deve ser lícito e
que cada sócio contribui com a formação do capital social através de dinheiro, bens ou
trabalho. Os sócios tornam-se obrigados com a sociedade a partir da formalização do contrato
ou estatuto até a sua dissolução, desde que satisfeitas as responsabilidades sociais.
A classificação das sociedades comerciais, a partir do Código Civil de 1916 e do
Código Comercial, estabelecia responsabilidades ilimitada, limitada e mista. As sociedades
em que todos os sócios respondem ilimitadamente são denominadas de sociedade de
responsabilidade ilimitada, tendo como exemplo típico as sociedades em nome coletivo.
Nas sociedades de responsabilidade limitada, todos os sócios responsabilizam-se
limitadamente pelas obrigações por elas assumidas. É o caso da sociedade anônima e da
sociedade por cotas de responsabilidade. Nas sociedades de responsabilidade mista, apenas
alguns sócios respondem ilimitadamente, tendo como exemplo a sociedade em comandita
simples, a sociedade de capital e indústria, a sociedade em comandita por ações e a sociedade
em conta de participação.
No Brasil, até antes da vigência do novo Código Civil (Lei Nº. 10.406, de 10 de janeiro
de 2002), existiam sete espécies de sociedades comerciais. Três reguladas por leis especiais:
Sociedade Anônima, Sociedade em Comandita por Ações e Sociedade por Cota de
Responsabilidade Limitada; e quatro reguladas pelo Código Comercial de 1850: Sociedade de
Capital e Indústria, Sociedade em Comandita Simples, Sociedade em Conta de Participação e
Sociedade em Nome Coletivo.
Para o estudo pretendido, será necessário individualizar cada tipo societário em
comentários sucintos, visando a não se estender em demasia e perder o foco central do
trabalho, que é a desconsideração da pessoa jurídica nas relações de trabalho buscando a
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responsabilidade de seus sócios. Mas, vale salientar que dos tipos societários acima, apenas a
sociedade de capital e indústria não foi reconhecida pelo novo Código Civil Brasileiro, sendo
mais relevante estabelecer a responsabilidade dos sócios em relação à sociedade e a terceiros.
O Código Civil trouxe um grande avanço no que diz respeito à responsabilidade dos
sócios em decorrência das obrigações assumidas com terceiros. Tratando no Livro II – Direito
de Empresa – e no Subtítulo II, relaciona todas as sociedades personificadas, iniciando-se no
Capítulo I, com a maior inovação, que é a sociedade simples, desde a sua formação com o
contrato escrito, particular ou público (art. 997); os direito e obrigações dos sócios; a forma de
administração; as relações com terceiros; a resolução da sociedade em relação a um sócio, até
a dissolução no art. 1.033.
Essa inovação é de tamanha importância, pois serve subsidiariamente às outras
sociedades personificadas, bastando observar na análise individual a seguir.
2.1 Sociedade em nome coletivo
A sociedade em nome coletivo, antes disciplinada nos arts. 315 e 316 do Código
Comercial, agora regulamentada em capítulo próprio do Código Civil (Capítulo II do Livro
II), sofreu poucas modificações em relação à codificação anterior. O art. 315 do Código
Comercial dispõe que não podem fazer parte da firma social nomes de pessoas que não sejam
comerciantes, o que hoje está revogado, uma vez que não mais se exige que os sócios das
sociedades comerciais sejam comerciantes. Aliás, a palavra comerciante não é mais referida
em nenhum dos dispositivos do novo Código Civil, na parte que trata do direito de empresas.
A característica fundamental dessa espécie societária é a responsabilidade ilimitada de
todos os seus sócios. Assim, na falta ou deficiência do patrimônio da sociedade, o sócio
responde com o seu patrimônio individual pelas obrigações sociais contraídas.
Mas algumas inovações foram introduzidas. Primeiro, regulamentou o art. 1.039, segundo
o qual somente pessoas físicas podem tomar parte na sociedade em nome coletivo, suprindo
uma falta na legislação anterior, que era omissa sobre esse aspecto, ocasionando dúvida nos
doutrinadores sobre a possibilidade de pessoa jurídica fazer parte desse tipo societário.
Segundo, que o parágrafo único desse artigo possibilita aos sócios, no ato constitutivo da
sociedade, ou em unânime convenção posterior, limitar entre si a responsabilidade de cada um,
mas sem prejuízo da responsabilidade perante terceiro. Isso significa dizer que as
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responsabilidades pelos atos praticados na gestão da empresa podem ser divididas entre seus
sócios, mas a responsabilidade ilimitada permanece para cada um deles. Terceiro, que a
sociedade em nome coletivo, regulamentada em capítulo próprio do novo Código Civil,
estabelece no art. 1.040 que, no caso de omissão ocorrida nesse capítulo, reger-se-á a sociedade
pelas normas do capítulo antecedente, que é justamente concernente à sociedade simples,
abrindo, assim, um vasto campo para a formação empresarial, os direito e obrigações dos
sócios, a administração e a relação com terceiro e a própria dissolução da sociedade.
2.2 Sociedade em comandita simples
Nessa espécie de sociedade, há sócios que respondem ilimitada, subsidiária e
solidariamente, e sócios cuja responsabilidade limita-se aos fundos que aplicarem na
sociedade, ou seja, ao capital que subscreverem. Os primeiros são chamados de sócios
comanditados e os segundos de sócios comanditários.
Poucas inovações foram introduzidas também nesse tipo societário pelo Código Civil de
2002. O art. 311 do Código Comercial reportava-se à necessidade de um dos sócios ser
comerciante, hoje revogado. Comerciante pode ser hoje considerado, dentro do direito
empresarial, como uma característica do empresário, podendo esse se inserir em qualquer
ramo empresarial.
No que o art. 1.045 é taxativo é que o sócio comanditado deve ser pessoa física,
resguardando à outra categoria de sócio, por omissão do artigo, o direito de participarem
como sócios comanditários as pessoa jurídicas.
Outra inovação, talvez querendo o legislador ampliar a responsabilidade dos sócios, é
que abre um precedente muito grande, quando afirma no art. 1.047, segunda parte, que: “[...],
não pode o comanditário praticar qualquer ato de gestão, nem ter o nome na firma social, sob
pena de ficar sujeito às responsabilidades do sócio comanditado.” Esse precedente facilitará a
ampliação dos sócios comanditados e abrirá caminho para a jurisprudência atribuir
responsabilidade aos sócios comanditários, visto que basta que eles exerçam funções de
gestão dentro da empresa.
Também na sociedade em comandita simples, regulada no Capítulo III, do Livro II do
Código Civil, aplicam-se as normas da sociedade em nome coletivo, desde que compatíveis
com as do mesmo Capítulo (art. 1.046 CC);
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2.3 Sociedade anônima
“A sociedade anônima rege-se por lei especial, aplicando-se-lhe, nos casos omissos, as
disposições deste código”. Assim rege o artigo 1.089 do Código Civil de 2002, do que se
depreende que a sociedade anônima continua sendo regida pela lei Nº. 6.404, de 15 de
dezembro de 1976.
Na sociedade anônima ou companhia, o capital é dividido em ações, obrigando-se cada
sócio ou acionista somente pelo preço de emissão das ações que adquirir ou subscrever.
Mesmo com essa limitação, é importante observar o que dispõe o art. 158 da lei das
sociedades anônimas (Lei nº 6.404/76):
O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder: I – dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa e dolo; II – com violação da lei ou do estatuto.
Observa-se, a priori, que o administrador é pessoal e civilmente responsável pelos
prejuízos que causar à sociedade, quando proceder com culpa ou dolo e quando violar a lei ou
o estatuto. Esses pressupostos constituem-se na “mola mestre”, segundo a maioria dos
doutrinadores, para caracterizar a responsabilidade dos sócios e administradores perante
terceiros, viabilizando, inclusive, a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, e
que será focado com maior precisão no decorrer deste trabalho.
No caso que o administrador agir em conformidade com as normas legais e estatutárias
aplicáveis e no âmbito de seus poderes, a configuração do ilícito civil dependerá de
comprovação da culpa ou do dolo. Na hipótese de o administrador infringir o estatuto social
ou a legislação aplicável, a ocorrência da culpa ou do dolo, não é questionável, presume-se.
De novidade, em relação à sociedade anônima, o novo Código Civil traz apenas as
disposições do art. 1.089, as quais estabelecem que nas omissões da Lei Nº. 6.404/76, aplica-
se-lhes as disposições do mesmo diploma legal. A princípio, dá-se pouca importância a essa
disposição, mas ela tem um grande significado, pois nas omissões da lei, a responsabilidade
do sócio recai, principalmente, no que couber, nas sociedades limitadas e nas disposições das
sociedades simples, bem mais significativas no que concerne à responsabilidade dos sócios.
21
2.4 Sociedade em comandita por ações
A sociedade em comandita por ações continua sendo regida pela lei das sociedades
anônimas, como resguardado no art. 1.090 do novo Código Civil, tendo o capital dividido em
ações, operando sob firma ou denominação, seguida das palavras comandita por ações.
Assim como na sociedade em comandita simples, a responsabilidade dos sócios é mista,
eis que além dos sócios de responsabilidade limitada, dispõe de sócios com responsabilidade
ilimitada e solidária pelas obrigações sociais. Somente o acionista tem qualidade para
administrar a sociedade e, como diretor, responde subsidiária e ilimitadamente pelas
obrigações da sociedade.
Os gerentes ou diretores, nomeados no ato constitutivo da sociedade e sem limitação de
tempo, só podem ser destituídos dessa função por deliberação de acionistas que representem
no mínimo 2/3 do capital social. Eles respondem pela administração da sociedade e
emprestam seus nomes à razão ou firma social, que será sempre acompanhada da designação
“comandita por ações”.
2.5 Sociedade por cota de responsabilidade limitada
Na Europa, após a primeira grande guerra mundial e com o desenvolvimento industrial,
surgiu a necessidade da criação de um tipo societário que não oferecesse as dificuldades da
criação da sociedade anônima, que só se justificava, na maioria das vezes, para a formação de
grandes empresas.
Com a expansão industrial ocorrida na Europa, diversos grupos de pessoas se reuniram
com o intuito de produzir e expandir seus ramos de negócios. A formação societária
disponível era basicamente a sociedade anônima, que necessitava de formalidades legais e
despendia muito tempo para sua criação, sem contar que o poder acionário sempre ficava
restrito a uma classe dominante e mais abastarda.
A opção foi a criação de um tipo de empresa que limitasse a responsabilidade de todos
os sócios, de fácil elaboração contratual. Assim, decorrente da necessidade imposta pela
expansão do comércio, da indústria e da colonização no fim do século XIX, mais
precisamente em 1892, foi pioneiramente criada na Alemanha e posteriormente incluída na
legislação portuguesa em 1901.
22
Na Inglaterra, primeiro país a adaptar as regras da sociedade anônima para atender aos
pequenos e médios empreendedores, somente veio a instituir esse tipo societário em 1907.
Formada por no mínimo duas pessoas, todas subsidiariamente responsáveis
solidariamente, foi introduzida na legislação brasileira por Inglês de Sousa, que a apresentou
em projeto e não convertido em lei do Código Comercial de 1912.
Seis anos mais tarde, foi tomado como base do projeto de lei apresentado pelo deputado
Gaúcho Luiz Joaquim Osório, instituído posteriormente como Decreto Nº 3.708, de 10 de
janeiro de 1919. Tal projeto, mesmo depois de aprovado, não sofreu nenhuma alteração até a
promulgação do novo Código Civil brasileiro, em janeiro de 2003.
O decreto é repleto de imperfeições, a começar pela responsabilidade limitada dos
sócios ao capital subscrito, o que, com o passar dos anos, possibilitou a formação de diversas
empresas com o intuito de fraudar credores, recebendo de Fran Martins o seguinte
comentário:
O Dec. No. 3.078 de 10 de Janeiro de 1919 está eivado de imperfeições, não atendendo, com precisão, ao objetivo da sociedade por cota, Os diversos dispositivos de que se compõe são mal articulados, servindo por isso para constantes discussões doutrinárias. Por outro lado, a jurisprudência pouco se tem manifestado sobre as sociedades por ele reguladas, agravando-se assim, as indecisões sobre pontos capitais relativos às essas sociedades. Em vista disso, e dando o impulso notável que as sociedades por quotas tomaram, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, constantemente tem sido pedida ao legislador uma reforma da lei básica dessas sociedades, o que, até o presente, não foi atendido;
Esse comentário de Fran Martins já não surte os mesmos efeitos, em razão de o Código
Civil brasileiro ter recepcionado a sociedade por cota de responsabilidade limitada em
capítulo próprio.
A sociedade por quotas de responsabilidade limitada tem sido, desde o Decreto
3.078/19, até a vigência do Código Civil de 2002, a forma societária mais adotada, na prática,
pelas pequenas, médias e até grandes empresas. O motivo dessa preferência pela legislação
anterior deve-se a sua simplicidade, à possibilidade de limitar a responsabilidade de cada
sócio ao total do capital social e pelo fato de ser uma sociedade contratual, na qual os sócios,
desde que observadas as cláusulas básicas exigidas pela lei, têm plena liberdade de contratar
as demais cláusulas, inclusive sobre a repartição de lucros.
23
Com a entrada em vigor do novo Código Civil, em 11 de janeiro de 2003, passou a
denominar-se apenas sociedade limitada e a ser regida pelas normas dos artigos 1.052 a 1.087.
Cláudio Camargo Fabretti (2004, p. 112), ao comentar sobre a proteção do sócio
minoritário, não corrobora com opinião da maioria dos doutrinadores, que acreditam na
moralização da sociedade limitada a partir do novo Código Civil, assim se manifestando:
O NCC, embora com o louvável intento de proteger os sócios minoritários, não foi feliz ao estabelecer novas normas destinadas a viabilizar essa garantia. Essas novas regras desfazem a simplicidade anterior, tornando-a muito parecida com a S. A, cujas regras são muito mais complexas e importam aumento de burocracia e despesas para cumpri-las integralmente, especialmente no que se refere à publicação de convocações e de atas das assembléias, demonstrações contábeis, informação de fatos relevantes, bem como escrituração de novos livros societários;
Esquece Cláudio Camargo Fabretti (2004) que a intenção do legislador não foi desfazer
a simplicidade na formação das Sociedades por Quotas, mas moralizar o instituto, que vinha
sofrendo “investidas” de fraudadores e comerciantes de má fé, pondo em risco inclusive a
autonomia da personalidade jurídica.
3 TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Na condução do presente estudo, vale ressaltar que a aplicação da disregard doctrine
gira em torno das sociedades de responsabilidade limitada. As pseudossociedades, onde não
há a personalização da pessoa jurídica, ou aquelas onde os sócios, mesmo que só parte deles
responda solidária e ilimitadamente pelas responsabilidades da sociedade, não causam
divergências de entendimentos.
3.1 Origem
A partir do início do século XIX, portanto, quase cem anos antes de surgir na Alemanha
em 1892 (final do século XIX) a sociedade por quotas limitadas, já se tornava preocupante
para a doutrina e a jurisprudência a utilização crescente do instituto da pessoa jurídica, pelo
fato de esse instituto, muitas vezes, servir como instrumentos para pessoas atingirem fins
diversos daqueles considerados pelo legislador, conforme o direito.
A má utilização da pessoa jurídica, muitas vezes prejudicando credores, e a inexistência
de dispositivo legal específico sobre a matéria que pudesse ser usado para coibir essa prática
abusiva, possibilitaram a busca de meios idôneos capazes de reprimir os desvios ocorridos por
meio da utilização da pessoa jurídica.
Em diversos autores pesquisados e que tratam da disregard doctrine, segundo também
Suzy Elizabeth Cavalcante Koury, A DISREGARD DOCTRINE, (2002, p. 63), é unânime a
concepção de que a desconsideração da personalidade jurídica tem como precedente a teoria
da soberania elaborada por Hausmann, na Alemanha, e desenvolvida também na Itália por
Mossa, que visava a imputar ao controlador de uma sociedade de capitais as obrigações
assumidas pela sociedade controlada e por ela não satisfeita, relevando-se assim a substância
das relações em detrimento de sua estrutura formal.
Mesmo demonstrando um grande avanço para reprimir os abusos cometidos no âmbito
da sociedade de capitais, não logrou êxito, nem repercussão nos meios jurídicos, mas já era
25
uma base sólida para o desenvolvimento de outras teorias que possibilitassem obstar
manobras fraudulentas e não prejudicar terceiros de boa fé.
Segundo Elizabeth Cristina Campos Martins de Freitas, em sua tese de mestrado –
Desconsideração da Personalidade Jurídica – Análise à Luz do Código de Defesa do
Consumidor e do Novo Código Civil, editora Atlas, 2002/52, e Suzy Elizabeth Cavalcante
Koury – também tese de mestrado – A DISREGARD DOCTRINE -, foi no âmbito da
common law, especialmente a norte-americana, que a teoria da desconsideração da
personalidade jurídica pôde desenvolver-se, inicialmente na atuação dos juízes, por meio de
decisões jurisprudenciais. No início do século XIX, no ano de 1809, o Juiz Marshall conheceu
de uma causa entre o Bank of United States e Deveaux, na qual suscitava questão sobre a
jurisdição das Cortes Federais. Salienta, ainda, que mesmo não cabendo aqui discutir o mérito
da decisão, que, segundo notícias, foi repudiada por uma parcela significativa da doutrina,
importa salientar o fato de que, já em 1809, as Cortes norte-americanas empenhavam-se em
erguer o véu para alcançar e considerar as características dos sócios individuais.
Alguns autores divergem sobre a origem da Diresgard doctrine, aludindo sobre o
famoso caso Inglês Salomon v. Salomon & Co., que segundo Suzy Elizabeth Cavalcante
Koury, somente foi julgado em 1897, oitenta e oito anos após a primeira manifestação da
jurisprudência americana, dando portanto à comonn law americana a origem da disregard
doctrine.
A maioria dos doutrinadores acredita que a teoria da personalidade jurídica teve sua origem na Inglaterra, no caso Salomon v. Salomon & Co. Ltd., de 1892. A sociedade era composta de 20.007 ações, sendo uma ação para o Sr. Aaron Salomon, uma para a mulher, cinco para os filhos e 20.000 ações pela transferência do fundo de comércio de que Aaron era o único proprietário. Aaron sendo ainda credor pela diferença com garantia real. As primeiras instâncias aplicaram a teoria da desconsideração, enquanto, a última instância negou sua aplicação. Entretanto, a primeira manifestação de que se tem notícia nos EUA foi no caso Bank of United States v. Deveneaux, julgado pelo juiz Marshall em 1809. O juiz Marshall, para preservar a jurisdição dos tribunais sobre as sociedades anônimas proclamou os acionistas como parte integrante e seus direitos e deveres como cidadãos reconhecidos para serem alcançados pela jurisdição, aplicando-se a teoria da desconsideração. (SILVA, 1999, p.780/49).
O certo é que, em 1912, o jurista americano Maurice Wornser já trabalhava com o tema
da desconsideração da personalidade jurídica, conhecida pelos tribunais norte-americanos
como disregard of legal entity, ou também como lifiting the corporate veil, versando em seu
estudo e procurando delinear seu conceito sobre a matéria, postulando que, nas hipóteses em
que a pessoa jurídica (corporate entity) é utilizada como meio para defraudar os credores, para
26
eximir-se a uma obrigação existente, para desviar a aplicação de uma lei, para constituir ou
conservar um monopólio ou para proteger velhacos ou delinquentes, haveria a possibilidade
de os tribunais prescindirem da personalidade jurídica e considerarem ser a sociedade um
conjunto de homens que participam ativamente de tais atos para que se possa fazer justiça
entre pessoas reais.
Tomando-se por base o conceito de fraude, ponto de partida para o enunciado de
Wornser, os tribunais americanos caminharam no sentido de alargá-lo, alcançando também os
casos de ocorrência de abuso de direito, mas sempre analisando o caso concreto, e quando da
aplicação da Diresgard Doctrine, em geral, salientam que tal medida tem caráter excepcional,
e a regra geral continua sendo a da distinção entre a pessoa jurídica e os sócios que a
compõem. Desse modo, a regra é a autonomia da pessoa jurídica. E a exceção, a Disregard.
Na doutrina alemã repousa uma das melhores contribuições para a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica, abordada pelo prof. Doutor Rolf Serik, da Faculdade
de Direito da Universidade de Heidelbrg, considerado por muitos como o precursor da Teoria
Durchgriff, a Teoria da Penetração da Pessoa Jurídica. Para o autor, a doutrina da
desconsideração consiste no enfrentamento de casos extremos em que se faz necessário
verificar em quais hipóteses é possível prescindir da estrutura formal da pessoa jurídica, para
que a decisão penetre até o próprio substrato, alcançando especialmente seus membros.
Podem-se extrair de sua obra grandes ensinamentos, principalmente de que o
desconhecimento da forma da pessoa jurídica em casos de fraude à lei não passa de aplicação
específica do princípio geral, segundo o qual um instituto jurídico não pode jamais ser
tutelado pelo ordenamento jurídico, se servir de instrumento para fraudar a lei.
Sintetizando a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, esse mestre alemão
propôs quatro princípios básicos: o abuso do direito, a ilicitude, o paralelismo com a pessoa
natural e o próprio direito objetivo.
Analisando esses quatro princípios, Elizabeth Cristina Campos Martins de Freitas,
(2002, p. 57), sintetiza-os da seguinte forma:
1. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem cabimento quando houver utilização abusiva da pessoa jurídica, com o objetivo de se furtar da incidência da lei ou de obrigações contratuais, ou causar danos a terceiros de forma fraudulenta;
27
2. A autonomia subjetiva da pessoa jurídica pode ser desconsiderada quando for necessário para coibir a violação de normas de direito societário que não possam ser violadas nem mesmo por via indireta; 3. As normas que tiverem por base atributos, capacidade ou valores humanos à pessoa jurídica podem ser aplicadas se, entre a finalidade de tais normas e a função da pessoa jurídica à qual são as mesmas aplicadas, não se detectarem contradições. Importa salientar que, para se determinarem os pressupostos normativos, é possível considerar as pessoas físicas que agem por intermédio da pessoa jurídica; 4. No caso de a pessoa jurídica servir de instrumento para ocultar o fato de que as partes envolvidas no negócio são, na prática, os mesmos sujeitos, a autonomia da pessoa jurídica pode ser afastada, se for necessário aplicar a norma embasada sobre a efetiva diferenciação, não sendo possível ampliar tal entendimento à diferenciação ou identidade apenas jurídico-formal;
Observa-se claramente da leitura desses princípios básicos defendidos por Serick, que é
possível haver a separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus membros, constituindo-
se um princípio jurídico válido e justo, só podendo ser desprezado pelo Judiciário em
determinadas situações caracterizadas pelas excepcionalidades. A desconsideração da pessoa
jurídica não se constitui um instrumento jurídico para acabar com a pessoa jurídica, sendo, na
verdade, um mecanismo jurídico para protegê-la contra fraudes e abusos, oferecendo-lhe
critérios para tanto.
3.2 A desconsideração da personalidade jurídica no brasil
No Brasil, apesar da desconsideração da personalidade jurídica ainda não ser tratada
com a devida atenção, já existem alguns trabalhos significativos, de modo que se trata de um
instituto de suma importância para a moralização e credibilidade da pessoa jurídica, pois visa
não a sua extinção, mas a sua permanência no ordenamento jurídico de forma segura para
todos os investidores, principalmente no mundo globalizado, onde os investimentos são feitos
de forma célere e já, há muito tempo, por meio da computação. Observe-se bem que, se não
houver credibilidade no instituto da pessoa jurídica, se não houver segurança nas aplicações
financeiras e nos investimentos comerciais, como permanecerá vivo o instituto da pessoa
jurídica, facilmente manipulada por pessoas de má fé e fraudulentas?
Já em 1919, com a criação no Brasil da Sociedade por Quota de Responsabilidade
Limitada, deu-se um avanço muito grande com a formação de um número acentuado de novas
empresas, que não precisavam preencher todas as formalidades das Sociedades Anônimas, e
também decorrente da possibilidade de formação de uma sociedade comercial, em que a
responsabilidade seria limitada ao capital social investido, resguardando os bens pessoais de
seus sócios.
28
Essas facilidades não só possibilitaram a criação de novas empresas, como também
fizeram surgir pessoas eivadas de má fé que, usando a pessoa jurídica, conseguiam fraudar as
transações comerciais, eximindo-se dos pagamentos e prejudicando terceiro.
O Judiciário, sendo chamado a intervir nessas relações, não tinha um dispositivo
legalmente codificado para dirimir os conflitos, tendo que ir buscar na doutrina os
ensinamento mais coerentes, quando então começou a ser introduzida no Brasil a Teoria da
Desconsideração da Personalidade Jurídica, inicialmente com os ensinamentos dos mestres
que, já há um século, a estudavam na Europa (HAUSSMANN; MOSSA; WORMSER;
SERIK), sempre decididas com a análise do caso concreto, formando-se então uma corrente
jurisprudencial.
No direito brasileiro, a disregard doctrine desenvolveu-se com base na obra de Rubens
Requião - ASPECTOS MODERNOS DE DIREITO COMERCIAL – ampliando-se com
trabalhos de juristas como Clovis Ramalhete, Fábio Konder Comparato, Marçal Justen Filho,
Fábio Ulhoa Coelho, dentre outros, devendo-se ressaltar que todos esses estudos acerca da
Desconsideração da Personalidade Jurídica tiveram como foco central a necessidade de
combater o uso indiscriminado da pessoa jurídica.
O Ordenamento Jurídico brasileiro tratava a personalidade jurídica como um dogma,
dissociando a pessoa jurídica de seus sócios à medida que adquiria personalidade jurídica
distinta e individualizada.
Foi com esse pensamento que o artigo 20 do Código Civil de 1916, estabelecendo que
as pessoas jurídicas tenham existência distinta das de seus membros, e o art. 350 do Código
Comercial surgiram. Também o art. 10 da Lei Nº. 3.708/19 (Lei das Sociedades por Cotas de
Responsabilidade Limitada), salienta ainda que os sócios da limitada não respondam pelas
obrigações da Pessoa Jurídica.
Os tribunais pátrios, não obstante o valor absoluto com que era tratada a temática da
personalidade jurídica, acabaram por ter que paulatinamente romper com a barreira do dogma,
para tentar atender às necessidades sociais emergentes, passando a orientar-se no sentido de
que a personalidade jurídica não pode ser entendida como um direito absoluto.
A introdução doutrinária da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica no
ordenamento jurídico brasileiro deve-se em boa parte ao jurista e professor da Universidade
29
Federal do Paraná, Rubens Requião, que em conferência intitulada “Abuso de direito e fraude
através da personalidade jurídica”, posteriormente incluída, em 1969, no primeiro volume de
sua obra Aspectos Modernos de Direito Comercial, onde esse conceituado jurista já afirmava
não haver lembrança de ter encontrado em seus estudos qualquer referência na doutrina
nacional sobre a desconsideração da personalidade jurídica, evidenciando-se como um marco
na legislação pátria.
Para desenvolver o estudo sobre a disregard doctrine, esse jurista paranaense baseou-se
nas obras do professor italiano Piero Verrucoli, Il superamento della personalitá giuridica
delle società di capitali nella comommon law e nella civil lew; na obra do professo germânico
Rolf Serik, sob o título Aparencia y realidad en la sociedades mercatiles – el abuso de
derecho por medio de la persona juridica, além de vários outros em evidência na Europa,
além do norte-americano Wormser. Em sua obra, o mestre paranaense afirma:
diante do abuso do direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deve desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos.
Fortaleceu ainda nacionalmente a corrente de pensamento de que a doutrina da
desconsideração da personalidade jurídica negava o pensamento jurídico nacional de que a
personalidade jurídica seria um “véu” impenetrável.
Foi Rubens Requião quem traduziu a designação conhecida como “disregard of legal
entity the corporate veil” para o idioma pátrio, sugerindo as expressões desconsideração da
personalidade jurídica, ou, ainda, desestimação da personalidade jurídica, sendo ainda o
responsável pela sugestão à Comissão encarregada de elaborar o projeto do Código Civil de
2002, para a inclusão da disregard doctrine nesse texto legal, sendo consagrada hoje no artigo
50.
Assim, nas hipóteses em que a personalidade jurídica é utilizada como instrumento ideal
de fraudadores e desonestos, é a desconsideração da personalidade jurídica, medida jurídica
hábil para evitar resultados injustos e contrários ao direito, desde que aplicada com cautela e
em casos excepcionais. Enfim, como mesmo conclui Requião (1969, p. 13, RT/410):
a desconsideração da personalidade jurídica não pretende a anulação da personalidade jurídica em toda a sua extensão, e sim a declaração de sua ineficácia para determinado efeito, em caso concreto, em virtude de o uso legítimo da
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personalidade ter sido desviado de sua legítima finalidade (abuso de direito) ou para prejudicar credores ou violar a lei (fraude).
Diversos outros autores contribuíram para fortalecer a Teoria da Desconsideração da
Personalidade Jurídica no ordenamento jurídico nacional. Fábio Konder Comparato (1983),
traz grande contribuição para solidificar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica
no ordenamento jurídico brasileiro, desenvolvendo uma conceituação diferenciada da
inicialmente formulada por Serik.
A base teórica de Comparato em relação à desconsideração da personalidade jurídica é
que a separação patrimonial, como o efeito fundamental da personalização, precisa ser
desprezada em determinadas situações. Inovando em relação ao conceito original da
disregard, Comparato formulou uma nova teoria da desconsideração. O cerne da questão
estaria em se entender tal teoria não como simples meio para se coibirem fraudes ou abusos
de direito, o que significaria encará-la não contra o controlador, mas também a seu favor.
Além disso, constroi-se um novo conceito de pessoa jurídica no qual já constaria a ineficácia
episódica do ato constitutivo, que seria a desconsideração da personalidade jurídica, como um
dos elementos da pessoa jurídica.
Esclarece ainda Comparato (1983, p. 280) que toda pessoa jurídica é constituída de dois
elementos essenciais: a finalidade e os poderes para consegui-la. Demonstrou a importância
de se fazer a distinção entre despersonalização e desconsideração da personalidade jurídica,
quando afirma:
[...] na primeira, a pessoa coletiva desaparece como sujeito autônomo, em razão da falta original ou superviniente das suas condições de existência, como, por exemplo, a invalidade do contrato social ou a dissolução da sociedade. Na Segunda, subsiste o princípio da autonomia subjetiva da pessoa coletiva, distinta da pessoa de seus sócios ou componentes; mas essa distinção é afastada, provisoriamente e tão só para o caso em concreto.
Enfoca ainda que a desconsideração da personalidade jurídica decorre de um desvio de
função ou desfunção, em geral fruto de abuso ou fraude, mas que nem sempre constitui um
ato ilícito.
Abordou também, e com louvor, que o instituto da disregard encontra-se diretamente
relacionado à multiplicação dos grupos econômicos, em que há perda da autonomia de gestão
empresarial, ou melhor, em que frequentemente, se não sempre, há o sacrifício de cada
sociedade ao interesse global do grupo.
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Fábio Ulhoa Coelho (1989, RT) salienta o desenvolvimento da Teoria da
Desconsideração da Personalidade Jurídica, por meio do Alemão Rolf Serik e do italiano
Piero Verrucoli, e aborda o receio do judiciário brasileiro de enfocar as questões que
envolvem o instituto da pessoa jurídica, no que diz respeito ao uso indevido da autonomia
patrimonial, pela falta de dispositivo legal apropriado, assim se manifestando:
Em muitos casos, o Poder Judiciário, com receio de pôr em questão o instituto da pessoa jurídica, deixa de coibir o uso indevido da autonomia patrimonial, justamente por faltar-lhe um instrumento que possibilite a sanção do ilícito sem comprometimento da existência ou da validade da própria sociedade comercial. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica visa, principalmente, a criar as condições para que isso ocorra, para que seja possível responsabilizar-se o sócio pela obrigação assumida pela sociedade, sem atingir os demais interesses que gravitam em torno da empresa mercantil (empregado, consumidores, comunidade etc.).
Preocupou-se também no sentido de clarear na doutrina que a aplicação da
desconsideração da personalidade jurídica não visa a prejudicar o instituto da pessoa jurídica,
mas fortalecê-lo, moralizando-o no sentido de manter e cumprir as relações assumidas pela
pessoa jurídica, como ressalta Fábio Ulhoa Coelho (1994, p. 216):
a teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica não é uma elaboração doutrinária na perspectiva de questionamento do instituto da pessoa jurídica, ao contrário, visa mesmo o seu aperfeiçoamento. Os receios da punição do abuso só incomodam ao abusador ainda que potencial.
Suzy Elizabeth Cavalcante Koury (1998), chegou à conclusão de que a desconsideração
da personalidade jurídica consiste em meio hábil e eficaz para impedir o divórcio entre o
direito e a realidade, pois permite ignorar os efeitos da personalidade jurídica em todos
aqueles casos em que o respeito a ela levaria a soluções contrárias à sua função e aos
princípios consagrados pelo ordenamento jurídico.
A autora, tomando por base os ensinamentos precursores de Ascareli, Wormser e
Serick, chega à conclusão de que a existência de uma sociedade não pode servir para alcançar
um escopo ilícito, a existência de uma sociedade não pode servir para burlar as normas e as
obrigações que dizem respeito aos seus sócios; a existência de uma coligação de sociedades
não pode servir para burlar as normas e as obrigações que dizem respeito a uma das
sociedades coligadas.
Fazendo uma análise da doutrina e da jurisprudência dos vários direitos da “família”
romano-germânica, sobre o receio da aplicação da disregard doctrine, a autora se manifesta,
sintetizando:
32
Exatamente porque nesses direitos o princípio da separação entre sociedade e sócios tem sido consagrado claramente e é, muitas vezes, tido como um dogma, intocável, razão pela qual, mesmo em ocorrendo fraudes e simulações através da pessoa jurídica, os doutrinadores, juízes e os tribunais acham-se frequentemente, tolhidos pelo respeito cego à idéia de pessoa jurídica, não sendo suficiente a referência à fraude ou à simulação praticadas para levá-los a superar essa idéia e solucionar as questões com justiça. (KOURY, 1998).
Quanto à finalidade da desconsideração da personalidade jurídica, a autora também
segue a corrente de que, em determinadas circunstâncias, sócios, administradores e gerentes
podem responder por dívidas da sociedade, tendo essa medida caráter excepcional e visando a
punir aqueles que tenham agido com excesso de poderes ou de maneira contrária à lei ou aos
estatutos.
Vários doutrinadores pátrios debruçam-se sobre o tema da desconsideração da
personalidade jurídica, principalmente agora, posterior à publicação do atual Código Civil, em
que a matéria foi inserida no artigo 50, e facilmente facilitará a que juízes e tribunais
legalistas possam tomar novo direcionamento sobre o tema.
Discernir sobre suas obras dentro desta dissertação tornaria o trabalho longo e perderia
o objetivo da pesquisa, mas vale especificar alguns, como José Lamartine Corrêa de Oliveira,
professor de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná e autor da obra A Dupla Crise
da Pessoa jurídica; João Casilo, professor da Faculdade de Direito de Curitiba e da
Universidade Católica do Paraná; Marçal Justen Filho, autor da obra Desconsideração da
Personalidade Societária no Direito Brasileiro; Flávia Lefèvre Guimarães, Desconsideração
da Personalidade Jurídica no Código do Consumidor.
3.3 A diesgard doctrine no ordenamento jurídico brasileiro
O ordenamento jurídico brasileiro, antes da vigência do Código Civil de 2002,
consagrava o princípio da separação entre sociedade e sócios, expresso no artigo 20 do CC de
1916, o que levava o magistrado a julgar a personalidade jurídica como impenetrável, um
direito absoluto.
Com o trabalho de Rubens Requião, a Disregard Doctrine no Brasil passou a ser objeto
da apreciação e estudo de vários doutrinadores e consequentemente aplicada por Juízes e
Tribunais, além de ter sido diretamente consagrada pelo legislador, em alguns casos em
legislação específica.
33
Segundo Suzy Elizabeth Cavalcante Koury, (1998, p. 140), ao estudar a aplicação da
Disregard Doctrine pelos tribunais pátrios e a formação da jurisprudência a respeito da
matéria, já afirmava em sua obra que antecede a vigência do Código Civil de 2002:
Como já tivemos oportunidade de observar, não nos parece comprometer a segurança e a justiça o fato de deixar-se a cargo de juizes e tribunais o exame das circunstâncias do caso concreto para a aplicação da desconsideração. Ao contrário. A jurisprudência é elemento de formação e aperfeiçoamento do direito, ao demonstrar que a lei não pode mais adaptar-se às exigências sociais do presente e, desse modo, prepara as reformas legislativas, mas sempre inspirada por aquilo que é previsto no ordenamento jurídico.
Antes da vigência do atual Código Civil, a jurisprudência já tinha consciência disso, aliás,
já era corrente preponderante nos tribunais brasileiros, o fato de haver necessidade de se conter
a onda desenfreada em que diversas pessoas usavam a pessoa jurídica como forma de esconder
suas atuações espúrias, prejudicando uma sensível parte da sociedade brasileira, como
empresários, empregados, fisco municipal, estadual e federal, até as instituições financeiras.
MANDADO DE SEGURANÇA – PENHORA DE BENS DOS SÓCIOS – Verificada a inidoneidade da empresa - executada para fazer frente ao crédito trabalhista fixado por sentença, legítima a apreensão do patrimônio particular de pessoa física envolvida na sociedade. Aplicação do princípio da desconsideração da personalidade jurídica. (TRT 2ª R. – MS 11027 – (2004000900) – SDI – Relª Juíza Maria Aparecida Duenhas – DOESP 20.02.2004) (Ementas no mesmo sentido) CITADA A PESSOA JURÍDICA – SOCIEDADE COMERCIAL LIMITADA – Para a execução e verificada a sua inidoneidade para fazer frente ao crédito trabalhista fixado por sentença, incide na hipótese o princípio da desconsideração da personalidade jurídica, legitimando-se a apreensão do patrimônio particular das pessoas físicas envolvidas na sociedade, mesmo as que dela já se tenham já retirado, desde que a compusessem à época da relação material ensejadora do crédito. Segurança que se denega. (TRT 2ª R. – MS 10610 – (2003032981) – SDI – Relª Juíza Maria Aparecida Duenhas – DOESP 13.01.2004) (Ementas no mesmo sentido) MANDADO DE SEGURANÇA – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – PENHORA EM CONTA CORRENTE DE ACIONISTA DE SOCIEDADE ANÔNIMA - A desconsideração da personalidade jurídica aplicada pelo d. magistrado tem amparo no art. 28 da Lei nº 8078/90 e art. 1024 do Código Civil, permitindo que a execução avance no patrimônio dos sócios para satisfazer as dívidas trabalhistas quando a executada assim não fizer. No caso de sociedade anônima a falta de pagamento dos créditos de natureza alimentar significa infração de Lei, justificando a responsabilidade do acionista. Assim, é perfeitamente lídima a execução sobre patrimônio dos acionistas, os quais seguramente se beneficiaram do trabalho realizado pela ora litisconsorte à época do contrato de trabalho. (TRT 2ª R. – MS 10842 – (2003033031) – SDI – Rel. Juiz Marcelo Freire Gonçalves – DOESP 13.01.2004) JCDC. 28 JCCB.1024 BENS DE SÓCIO – É possível afastar-se, provisoriamente, a personalidade jurídica para investir-se diretamente contra o patrimônio do sócio, na hipótese de fraude, por aplicação da teoria ‘disregard of legal entity’ ou da desconsideração da personalidade jurídica. (TRT 5ª R. – AP 02024-2002-461-05-00-9 – (613/04) – 1ª T. – Rel. Juiz Valtércio de Oliveira – J. 15.01.2004) EMBARGOS DE TERCEIRO – RESPONSABILIDADE DO SÓCIO PELOS DÉBITOS DA PESSOA JURÍDICA – 1. O fato da embargante, ser apenas sócia ou ex-sócia da executada, não elide a sua responsabilidade, ante a desconsideração da personalidade jurídica. A desconsideração da personalidade jurídica representa um
34
avanço doutrinário e jurisprudencial de grande valia, como forma de se aceitar a responsabilidade patrimonial e particular dos sócios, em função dos débitos sociais das empresas em que são membros. Pode e deve o Judiciário como um todo, desconsiderar o véu da personalidade jurídica, para que se possa imputar o patrimônio pessoal dos sócios, como forma de se auferir elementos para a satisfação dos créditos, notadamente, dos empregados da sociedade. De acordo com Fábio Ulhoa Coelho, há duas maneiras para se formular a teoria da desconsideração da personalidade jurídica: a) a primeira a maior, quando o juiz deixa de lado a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, coibindo-se a prática de fraudes e abusos; b) a segunda a menor, em que o simples prejuízo já autoriza o afastamento da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. O fato da embargante não constar do pólo ativo do processo de conhecimento, não exime a sua responsabilidade, pois, na ação de execução tem-se a oportunidade da sua legitimação passiva ordinária superveniente. De fato, o sócio ou o ex-sócio, para elidir a imputação do seu patrimônio, deve indicar onde estão os bens livres e desembaraçados do devedor originário (pessoa jurídica). Contudo, a embargante não o fez. Rejeito o apelo da embargante. 2. A impenhorabilidade dos bens - Por ser matéria de ordem pública (a impenhorabilidade ou não dos bens, objeto da constrição), entendo que essa matéria pode e deve ser aduzida juntamente com as razões dos embargos de terceiro. A embargante alega que o valor penhorado em sua conta corrente I originário da pensão alimentícia recebida por seu filho e dos seus rendimentos como dentista. Consoante o exame de fls. 18/23, os valores são depositados, mês a mês, não sendo sacados, constituindo-se, assim, uma poupança. Se não ocorrem saques, os valores deixam de ter o caráter alimentar desejado pela embargante, constituindo-se, assim, um patrimônio mobiliário, o qual justifica a imputação executiva, via ato de penhora. (TRT 2ª R. – AP 00058 – (20030581170) – 4ª T. – Rel. Juiz Francisco Ferreira Jorge Neto – DOESP 07.11.2003).
Mesmo já existindo na jurisprudência uma corrente quase que unânime, no sentido da
aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, já existe no Direito brasileiro
hipóteses da aplicação dessa teoria legalmente previstas, como, por exemplo, a do art. 2o,
parágrafo 2o, da CLT, a do art. 117, alínea f, da Lei 6.404/76, a do art. 28 da Lei 8.078/1990.
Assim, faz-se necessário, para se chegar à conclusão deste trabalho, examinar os
diferentes ramos do direito, os princípios e normas diversos que regem cada um deles.
3.3.1 A teoria da desconsideração no direito comercial
Na Lei das Sociedades Anônimas, nº 6.404/76, o legislador estabelece responsabilidade
ao acionista controlador pelas infrações aos artigos 116 e 117. Esses artigos prescrevem padrões
de comportamento para o acionista controlador, o qual deve usar o poder para a companhia
realizar o seu objeto e cumprir a sua função social, além de dever respeitar os demais acionistas,
os trabalhadores e a comunidade em geral. Desobedecendo a esses padrões, o controlador
responde por danos causados pelos atos praticados, ou seja, pelo abuso de poder.
No artigo 117, o acionista controlador responde pelos danos causados por atos
praticados com abuso de poder e, na alínea f, especifica que: “contratar com a companhia,
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diretamente ou através de outrem ou de sociedade na qual tenha interesse, em condições de
favorecimento ou não eqüitativas.”
Nesse dispositivo o legislador prevê o abuso de poder por parte do acionista controlador
quando praticar os atos vedados através de uma sociedade na qual tenha interesse. Dessa
forma o controlador utilizaria a personalidade jurídica de uma sociedade, na qual tivesse
interesse, para realizar aquilo que lhe fosse diretamente vedado.
Esse dispositivo, embora não enfoque diretamente a Disregard doctrine de forma
legalizada, traz implícito o seu conteúdo, pois o legislador subestima a personalidade jurídica
da sociedade, para penetrar-lhe o substrato e, verificando a existência de interesse comum
entre ela e o controlador, que pode ser uma outra sociedade, formando-se assim um grupo,
afirma haver aí abuso de poder de controle, responsabilizando o controlador. Nesse mesmo
sentido, sintetiza Requião (1969, p.296):
Tão logo se verifique ou evidencie que, nas suas relações com terceiros – acionistas ou credores -, o grupo societário se queira valer da autonomia das sociedades isoladamente consideradas que o compõem para, através dessa autonomia, obter vantagens indevidas ou descabidas, deve a personalidade ser desconsiderada, para se tratar o grupo como uma unidade econômica, sem distinções, como de fato o é.
Ficava evidente, antes da vigência do atual Código Civil, uma deficiência não só na
legislação acionária brasileira, como em vários outros ramos do direito positivado, o que
tornava mais relevante a necessidade de aplicação de soluções na linha da Disregard
Doctrine, o que levou à conclusão de Suzy Elizabeth Koury (1998, p.156):
Face a essas ponderações, pode-se afirmar que, ao verificar que a finalidade que o ordenamento jurídico visa a alcançar, através da distinção entre a pessoa jurídica e os seus membros, está sendo desviada, ou que, se consagra, levaria a soluções injustas, os juízes e tribunais devem cumprir suas funções e ‘desconsiderar’ tal distinção, a fim de atenderem ao seu compromisso com a justiça.
3.3.2 A teoria da desconsideração no direito tributário
O direito tributário não poderia ignorar a teoria da desconsideração da personalidade
jurídica, e não o fez, demonstrando em vários momentos a relatividade do princípio da
separação do patrimônio entre a pessoa jurídica e seus gestores, perante os débitos tributários,
dispondo com muita clareza essa responsabilidade no artigo 135 do CTN:
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Art. 135: São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração da lei, contrato social ou estatuto; [...]; III - os diretores, gerentes ou representante de pessoa jurídica de direito privado.
A corrente jurisprudencial reinante sobre essa matéria é no sentido de que, por
substituição, o sócio responsável pela administração e gerência de sociedade limitada é
objetivamente responsável pela dívida fiscal, contemporânea ao seu gerenciamento ou
administração, constituindo violação à lei o não recolhimento de dívida fiscal regularmente
constituída e inscrita. (BRASIL. STJ, Rec. Esp. 33.731-1-MG, DJ de 06/03/95, p. 4.318).
Esta dissertação não visa a discutir a responsabilidade objetiva dos diretores ou gerentes
da pessoa jurídica, da qual se discorda. Ninguém pode ser responsabilizado objetivamente por
um ato de gerência, sem que sua culpa, mesmo incidentalmente, seja apurada. O que se busca
neste momento mostrar, é que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, mesmo
implicitamente, já foi recepcionada pelo Código Tributário Nacional. Como bem salienta
Suzy Elizabeth Cavalcante Koury (1998, p. 163):
patente, portanto, que, sempre que o contribuinte abuse de uma determinada forma jurídica para obter uma evasão tributária, autoriza-se o emprego do método da interpretação econômica. Para que isso ocorra, é indispensável a adoção de uma forma jurídica anormal, atípica e inadequada, embora permitida pelo direito privado, além de só admitir-se o emprego desse método em cada caso concreto, para corrigir situações anômalas artificiosamente criadas pelo contribuinte.
Para a respeitável jurista, nada impede que as mesmas ponderações sejam aplicáveis aos
grupos de empresas, de tal forma que comprovada a existência de interesse comum dos
membros de um mesmo grupo na situação que constitua o fato gerador, pode o intérprete,
baseado no art. 124, I, do CTN, e analisando o substrato econômico subjacente, afirmar serem
todas as empresas integrantes do grupo solidariamente responsáveis pelas obrigações
tributárias.
Conclui-se que a desconsideração da personalidade jurídica já foi recepcionada pelo
Código Tributário Nacional e que seus pressupostos são taxativos no artigo 135 do CTN, ou
seja: para que haja responsabilidades de seus sócios ou gestores, há a necessidade de que os
atos por eles praticados resultem de excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou
estatuto.
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3.3.3 A teoria da desconsideração no direito do trabalho
O direito do trabalho, que tem como princípio básico tutelar as relações de emprego e
trabalho, sendo favorável em muitos aspectos ao obreiro, pelos desníveis sociais existentes no
País, não poderia deixar de recepcionar, já em 1943, a teoria da desconsideração da
personalidade jurídica, deixando de consagrar a autonomia das empresas integrantes de
grupos, coibindo através da Diesregard Doctrine, a utilização indevida do “véu” da
personalidade jurídica pelas empresas agrupadas para lesarem os empregados em seus
direitos.
A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT -, Decreto-Lei Nº 5.452, de 1o de maio de
1943, já estabelecia, em seu artigo 2o, parágrafo 2o, que:
Sempre que uma ou mais empresas, tendo embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas.
A intenção, neste tópico, é demonstrar que a desconsideração da personalidade jurídica,
mesmo implicitamente, já havia sido introduzida no ordenamento jurídico nacional, muito
antes da vigência do atual Código Civil. Isso se deveu a estudos diversos de vários
doutrinadores, que já haviam percebidos a utilização de grupos empresariais no sentido de
burlar suas obrigações para com os empregados. O fortalecimento da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica no direito laboral, também se deu de forma lenta e
foi alcançada através da jurisprudência, principalmente aplicando-se o princípio da primazia
dos fatos sobre as formas.
Esse tema será abordado com maior ênfase, em capítulo próprio, quando então se
entrará no âmago desta dissertação, analisando a aplicação da desconsideração da
personalidade jurídica na fase de execução no direito processual do trabalho.
3.3.4 Teoria da desconsideração no direito do consumidor
Antes de tecer qualquer consideração em relação à aplicação da Teoria da
Desconsideração da Personalidade Jurídica no direito do consumidor, enseja-se que, antes de
tudo, se reflita sobre o fato de que o Código de Defesa do Consumidor tem vida própria e foi
instituído como subsistema autônomo que tem vigência no Sistema Constitucional Brasileiro.
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Nas palavras de Elizabeth Cristina Campos Martins de Freitas (2002, p. 148): “O Direito do
Consumidor é disciplina jurídica autônoma e constitui norma de ordem pública e de interesse
social, geral e principiológico. Dessa forma prevalece sobre todas as normas anteriores
especiais que conflitarem com ela.”
art. 28 do CDC: O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatuto ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica, provocados por má administração. ........................................................................................................................................
Parágrafo 5o – Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
Não há necessidade aqui de se analisar intrinsecamente o conteúdo do art. 28 do Código
de Defesa do Consumidor. É importante, para o estudo que se desenvolve, que o Código de
Defesa do Consumidor, Lei Nº 8.078/90, recepciona, de forma legal, no ano de 1990, o
Instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica no ordenamento jurídico brasileiro,
abrindo um precedente muito grande, para os legalistas, que só admitiam, de forma errônea, a
aplicação da Disregard Doctrine, quando esse instituto estivesse positivado.
O que é louvável é se perceber que a Disregard Doctrine, desde o início do século XIX,
com Hausmann, Mossa, Wormser, Serik, sendo introduzida no Brasil por Rubens Requião,
manteve socialmente o objetivo de resguardar e proteger as relações jurídicas, sob o prisma de
que um instituto jurídico não pode jamais ser tutelado pelo ordenamento jurídico, se servir de
instrumento para fraudar a lei.
Assim, depois de muitas ponderações e esforços de doutrinadores do “quilate” de
Rubens Requião, foi finalmente recepcionada, de forma legal pelo ordenamento jurídico
pátrio, a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, recebendo de Elizabeth
Cristina Campos Martins de Freitas (2002, p.170) o seguinte comentário:
Apesar da obscuridade em pontos tão importantes para a interpretação do dispositivo, tem-se entendido que o efeito prático da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é que, ocorrendo os pressupostos do art. 28 – abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, em detrimento do consumidor -, o juiz está autorizado a desconsiderar a pessoa jurídica e responsabilizar civilmente o sócio-gerente, o administrador, o sócio majoritário, o acionista controlador etc., alcançando-lhes os respectivos patrimônios, devendo adotar o mesmo procedimento na hipótese de falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica decorrente de má administração e até mesmo, de forma genérica,
39
quando a personalidade jurídica for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
3.5 A desconsideração da personalidade jurídica no código civil brasileiro de 2002
A inclusão do instituto da desconsideração da personalidade jurídica na nova legislação
civil não consiste verdadeiramente em uma inovação, pois além de ele já ter sido consagrado
em outros textos de lei, como o Código de Defesa do Consumidor, não se pode esquecer que a
Disregard independe de fundamento legal.
Mas alguns doutrinadores e juristas, resistindo à aplicação dessa teoria, sob a ótica de
que a autonomia da personalidade jurídica especificada no artigo 20 do Código Civil de 1916
deveria ser resguardada, e por ser tradição jurídica brasileira a romano-germânica, entendiam
só ser possível a aplicação da Disregard Doctrine quando houvesse texto legal que a
consagrasse explicitamente.
Assim, com a inclusão do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no
ordenamento pátrio, facilita-se sua aplicação, tendo em vista a existência de um fundamento
jurídico explícito. Não se pode esquecer que o que se busca com a aplicação da
desconsideração da personalidade jurídica não é a despersonalização, ou seja, a dissolução da
pessoa jurídica, e sim coibir práticas abusivas ou fraudulentas por meio da superação em
casos concretos. Isso se dá para que seja possível alcançar e responsabilizar pessoas físicas ou
jurídicas que se ocultaram sob o manto da pessoa jurídica que teve sua função por elas
desvirtuada. Seus efeitos são meramente patrimoniais e referentes a obrigações determinadas.
4 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA FASE DE EXECUÇÃO NO DIREITO PROCESSUAL DO TRABALHO
As execuções no Processo Trabalhista muitas vezes se tornam difíceis de serem
concluídas. Em alguns casos, pela inexistência de bens da executada, ou, existindo, os bens
são gravados de ônus, em outros, os sócios habilmente conseguem desviar seu patrimônio
para outra empresa, criada no intuito de fraudar as execuções. Diversas são as fórmulas
encontradas por administradores de grupos econômicos que conseguem transferir bens de
uma empresa para outra do mesmo grupo, visando a dificultar o processo executório ou
mesmo torná-lo ineficaz.
Vislumbra-se, em algumas relações de emprego postas à apreciação da Justiça do
Trabalho, que empresas são criadas já no intuito de fraudar o pagamento das verbas oriundas
das relações empregatícias, como em alguns casos das prestadoras de serviços terceirizados.
Pessoas se unem, formam uma empresa de prestação de serviços com capital fictício e quando
do término de seus contratos firmados, não pagam seus funcionários, induzindo-os até a
procurar a Justiça do Trabalho, na certeza de que os acordos serão compensadores, às vezes,
até somente com a liberação do FGTS e do Seguro Desemprego.
Essas dificuldades “impostas”, muitas vezes, levam o processo trabalhista,
principalmente o executório, a ter vida longa e cansativa. Em alguns casos, desestimula a
parte a prosseguir no feito, levando o magistrado da Justiça do Trabalho a ter que arquivar o
processo por falta de interesse processual da parte exequente.
Não há razão para uma análise sobre a aplicação da desconsideração da personalidade
jurídica em fase de instrução processual no processo do trabalho, porque essa só deve ser
aplicada em fase de execução de sentença trabalhista.
Um dos princípios fundamentais do direito trabalhista é o da primazia da realidade; isso
significa que, em caso de discordância entre o que ocorre na prática e o que emerge de
documentos ou acordos, deve-se dar preferência ao primeiro, isto é, ao que sucede no terreno
dos fatos. Esse princípio dá ao magistrado da justiça do trabalho um poder discricionário
muito grande, quando da análise das questões trabalhistas, principalmente quando tiver que
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decidir sobre a satisfação da prestação jurisdicional já determinada e em fase de conclusão de
sentença com a expropriação de bens ou valores.
Não há dentro do ordenamento jurídico brasileiro necessidade maior de aplicação da
desconsideração da personalidade jurídica, do que na Justiça do Trabalho. O volume diário de
reclamações trabalhista é algo assustador, num país como o Brasil, onde a recessão e o
desemprego “vivem a galope”.
O processo trabalhista, regido pelo princípio da oralidade e da celeridade processual,
rapidamente passa pela instrução processual, principalmente agora que, com aplicação do rito
sumaríssimo, chega à fase de execução, onde se inicia a fase expropriatória, com base nos artigos
880 a 883 da CLT, sendo aplicado no que couber e de forma subsidiária às normas do CPC.
4.1 Patrimônio próprio da pessoa jurídica.
Não há dúvida de que a execução deve recair inicialmente sobre os bens da executada.
O patrimônio da sociedade é inicialmente constituído pelas contribuições advindas de cada
sócio. A totalidade de contribuições dos sócios constitui o capital social, elemento básico do
patrimônio da sociedade.
À medida que se instalam e se iniciam as negociações, a sociedade vai
progressivamente conquistando bens móveis e imóveis, fortalecendo seu patrimônio.
Observe-se que esse patrimônio é da sociedade, que o construiu, e não de seus sócios
individualmente, e é o que vai responder perante terceiros pelas obrigações que a sociedade
assumir.
Ocorre que todo tipo de sociedade responde de forma ilimitada com a totalidade de seu
patrimônio pelas obrigações assumidas, sendo, por outro lado, concedido aos sócios, quando
da formação da sociedade, a possibilidade de limitar sua responsabilidade perante terceiros,
conforme regulamentação do tipo societário escolhido.
É esse patrimônio próprio que a pessoa jurídica tem que responder por suas obrigações,
podendo, para garantir as execuções, serem penhorados, consequentemente leiloados, até
garantir a totalidade do débito. É pacífico, não existe dúvida. A execução inicia-se sobre os
bens da executada e, somente na sua inexistência, é que o magistrado pode analisar outros
pedidos, como a desconsideração da personalidade jurídica para atingir bens de seus sócios,
cujo tema será abordado a seguir.
42
4.2 Patrimônio dos sócios da pessoa jurídica
Partindo-se do pressuposto de que a regra é a autonomia patrimonial da personalidade
jurídica, não resta dúvida de que o processo executório no direito do trabalho inicia-se com a
constrição dos bens da executada, devendo o magistrado tomar todos os cuidados possíveis
para que essa regra seja mantida, sempre em benefício da unidade patrimonial da pessoa
jurídica, sendo ela pessoa de direito responsável pelas suas obrigações assumidas.
Somente na hipótese de inexistência de bens da executada e a requerimento da parte
interessada, é que pode o magistrado, analisando o caso em concreto, determinar que sejam
atingidos os bens dos sócios da pessoa jurídica, aplicando, assim, o já solidificado instituto da
desconsideração da personalidade jurídica. Para que isso não leve a arbitrariedades, ao
realizar o direito na decisão dos casos em concreto, o juiz deve fazê-lo de acordo com os
princípios fundamentais do ordenamento jurídico, com a Constituição ou buscando a sua
correspondência em regulamentações legais efetivamente existentes.
Princípios fundamentais do ordenamento jurídico e sua correspondência em
regulamentações legais efetivamente existem. Aqui repousa uma base sólida, contra aqueles
que não aceitam a aplicação da Desregard Doctrine nas execuções trabalhistas. Só o fato de
não ter sido cumpridas as obrigações decorrentes da relação de emprego, resguardadas no
artigo 7o da Constituição Federal, já é motivo suficiente de descumprimento da lei e passível
de fundamentação legal pelo juiz que preside o processo de execução para a aplicação da
desconsideração da personalidade jurídica. Esses são direitos e garantias fundamentais do
cidadão, título maior da Carta Magna.
Leve-se em conta, ainda, que com o desenvolvimento da desconsideração da
personalidade jurídica, principalmente de forma jurisprudencial, a legislação especial foi se
solidificando e vários institutos a recepcionaram de forma normativa, como, por exemplo, o
Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 28, que mantém os pressupostos básicos da
Disregard Doctrine, que são: abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato
ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, que podem ser usados supletivamente no
direito do trabalho.
Dessas inserções na legislação especial, “foi um pulo” para sua solidificação no art. 50
do novo Código Civil brasileiro, dado o trabalho pioneiro de Rubens Requião. Dessa forma,
não mais se aplica a desconsideração da personalidade jurídica com apoio exclusivo na teoria
43
desenvolvida por Hausmann, Mossa, Serik, Wormser e, aqui no Brasil, por Requião, mas de
forma codificada no ordenamento jurídico pátrio. Assim, o Juiz não decide segundo suas
convicções pessoais ou seu arbítrio, mas sempre no âmbito global da ordem jurídica.
Em pesquisa pessoal realizada nas varas do trabalho em Fortaleza-CE, chegou-se à
conclusão de que dentre 10 processos de execução, em apenas 2 se encontram bens
disponíveis da empresa executada, sendo que, no restante, somente se chega à satisfação do
crédito do empregado, através da existência de bens em nome dos sócios dessas executadas.
Conclui-se que a não aplicação da Disregard Doctrine tornaria a Justiça do Trabalho um
depósito de reclamações trabalhistas sem conclusão, levando-a ao descrédito total da
população obreira no Brasil.
4.3 A disregard doctrine nos grupos de empresas
Há uma tendência jurídica de se resguardar o menos favorecido nas relações
consumeristas e trabalhistas, devido aos desníveis sociais existentes no País, compensando,
assim, a inferioridade econômica. Dessa forma, não se poderia consagrar a autonomia das
empresas integrantes de grupos, devendo-se coibir através da Disregard Doctrine a utilização
indevida do “véu” da personalidade jurídica pelas empresas agrupadas para lesarem os
empregados em seus direitos.
Já em 1943, quando a teoria da desconsideração da personalidade jurídica só era
conhecida no ordenamento jurídico brasileiro através da jurisprudência decorrente do
posicionamento dos doutrinadores europeus, o Decreto-lei Nº 5.452, de 1o de maio de 1943,
promulgava a Consolidação da Leis do Trabalho, não ignorando esse princípio,
estabelecendo, no seu artigo 2o, parágrafo 2o, que:
Art. 2o, parágrafo 2o – Sempre que uma ou mais empresas, tendo embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas.
Seguindo essa disposição legal, restou como dificuldade a distinção e conceituação de
grupos de empresas no direito do trabalho, bem como a determinação de suas formas típicas.
A doutrina divide-se em dois grupos: um que é favorável a uma interpretação estrita
desse dispositivo, exigindo uma quase rígida hierarquização do grupo para sua aplicação, e
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outro que sustenta uma interpretação extensiva. Egon Felix Gottschalk (1946, p. 6), que
defende a interpretação estrita, afirma que:
Nem todas as formas de coligação, consórcio ou combinação de empresas econômicas constituem grupos, no sentido da presente norma legal. É necessária a existência de uma empresa principal e uma ou mais empresas subordinadas, com ou sem personalidade jurídica própria [...]
Mozart Victor Russomano (1982, p. 8-9), mesmo reconhecendo que a CLT adotou um
critério restritivo, defende uma interpretação mais ampla:
Não nos parece que, sempre, se deva pressupor uma organização piramidal de empresas, no vértice delas atuando, na plenitude de seu poder de controle, a empresa líder. É preciso pensar-se em outras possibilidades que a prática pode criar e que, resultando das variadas formas de aglutinação de empresas, nem por isso desfiguram a existência de grupo.
Suzy Elizabeth Cavalcante Koury (1998), comentando sobre a matéria e fazendo
referência à obra de Roberto Santos conclui que:
Percebe-se, então, que a verificação da existência de uma convergência e unidade de interesse entre as diversas empresas componentes do grupo é elemento decisivo para a sua configuração, razão pela qual ROBERTO SANTOS considera haver grupo empresarial sempre que as mais importantes decisões técnicas, comerciais, administrativas e financeiras sejam tomadas em função dos interesses de lucro do conjunto e não necessariamente de cada empresa em particular;
O reconhecimento do grupo como empregador único acarreta uma série de efeitos
importantes no direito do trabalho, como, por exemplo: a contagem do tempo de serviço para
apuração da duração do contrato de trabalho resultante da transferência de empregados de
uma para outra empresa do grupo, não permitindo manobras fraudulentas no sentido de evitar
o pagamento dos direitos trabalhistas dos empregados.
4.4 O enunciado da súmula 205 do TST
Esse enunciado por anos prejudicou o desenvolvimento da desconsideração da
personalidade jurídica no ordenamento jurídico pátrio, no que diz respeito aos grupos nas
relações empregatícias: “O responsável solidário, integrante do grupo econômico, que não
participou da relação processual como reclamado e que, portanto, não consta no título
executivo judicial como devedor, não pode ser sujeito passivo na execução.”
Alguns juízes, mal informados doutrinariamente e não acompanhando o
desenvolvimento jurisprudencial no País, até hoje, ainda deixam de aplicar a Desregard
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Doctrine, não só em relação aos grupos, mas também em relação aos sócios, sob a ótica de
que os mesmos não fizeram parte da relação processual em fase de cognição.
Percebe-se claramente que esse enunciado limitava o alcance do artigo 2o, parágrafo 2o,
da CLT, trazendo enorme prejuízo ao trabalhador nacional, no momento em que criava um
obstáculo na ordem social à parte menos favorecida e possibilitava a maquinação de milhares
de artifícios por parte de organizações empresariais ao formarem seus grupos econômicos.
Reconhecendo as injustiças que esse enunciado criou nas relações empregatícias
envolvendo os grupos empresariais, os tribunais já se manifestam contrários, gerando um
entendimento unânime a respeito, como se observa nos julgados a seguir, os quais são
transcritos nessa dissertação para dar um sentido na evolução jurisprudencial dos tribunais
brasileiros até chegar à desconsideração da personalidade jurídica:
EXECUÇÃO – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – POSSIBILIDADE – Atualmente, os grupos de empresas constituem um dos procedimentos concentradores mais apropriados para se obter maior produtividade e maiores lucros com menores custos, pois, através deles, submetem-se à unidade de poder diretivo empresas juridicamente independentes. Porém, a existência de uma unidade de gestão em relação a uma pluralidade de empresas formalmente autônomas tem servido como elemento ideal para fraudadores e desonestos, que vêm se utilizando da personalidade jurídica das empresas, isoladamente, para negarem a existência do grupo e, assim, eximirem-se de responsabilidades. Ad cautelam deve o empregado propor a ação contra a empregadora e a outra empresa do grupo que repute idônea a responder pela execução. Porém, havendo quebra na fase executória, não significa que somente a empresa contratante (sujeito aparente) deva responder pelos encargos da execução. Outras empresas do grupo devem ser trazidas à lide para dar suporte à execução, pois o art. 2º, § 2º, da CLT prevê solidariedade econômica e não processual. (TRT 15ª R. – Proc. 6367/03 – (9803/03) – 2ª T. – Rel. Juiz Luís Carlos Cândido Martins Sotero da Silva – DOESP 15.04.2003 – p. 15) JCLT. 2 JCLT.2.2 EMBARGOS DE TERCEIRO – PENHORA – GRUPO ECONÔMICO – Evidenciado o envolvimento da embargante e da empresa executada, integrantes do mesmo grupo econômico, considerando a identidade de seu diretor presidente, além da relação de coordenação entre elas, ante a afinidade dos fins e objetivos sociais dirigidos a produção de ferro gusa e ferro esponja, num mesmo patrimônio, não há se falar em irregularidade decorrente da não inclusão da agravante no título executivo, em face do princípio da desconsideração da personalidade jurídica do empregador, que aderiu de modo particular ao Direito do Trabalho e ao Processo do Trabalho, sendo desnecessária a formação de vários litisconsórcios em sede de processo de conhecimento para que se dê plena eficácia ao título executivo judicial, em virtude da norma inscrita no art. 28, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, aplicável subsidiariamente ao processo do trabalho, nos termos do art. 769, da CLT. Portanto, a embargante, empresa integrante do mesmo grupo econômico que a executada, é parte legítima para sofrer os efeitos da execução. (TRT 3ª R. – AP 2907/02 – 4ª T. – Rel. Juiz Júlio Bernardo do Carmo – DJMG 06.07.2002 – p. 07) JCLT. 769 PENHORA SOBRE PATRIMÔNIO DE OUTRA EMPRESA DO MESMO GRUPO – DESCONSTITUIÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – POSSIBILIDADE EM FACE DO EXAURIMENTO DAS VIAS DE EXECUÇÃO SOBRE BENS DA EXECUTADA – ‘A despeito da falta de regras mais claras, o
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direito do trabalho dispõe de antídotos eficazes contra as mais criativas manobras societárias em que tenha por escopo frustar a execução. Vale lembrar que, na presença de qualquer situação em que se caracterize a inexistência de bens patrimoniais da empresa a garantir a execução, pode o julgador, despersonificando o sujeito passivo das obrigações laborais, determinar que a execução racaia sobre bens de seus sócios. Portanto, a justiça do trabalho deve despir-se de conceitos arraigados trazidos do processo comum, especialmente no que tange à contensão dos limites subjetivos da coisa julgada, e retomar sua atenção aos dispositivos legais próprios que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica do empregador e que constituem, em verdade, posição de vanguarda no direito brasileiro. Neste sentido, afigura-se correta a penhora efetuada sobre bem do sócio, que tem legitimidade para responder pela execução, ainda que seu nome não tenha constado no polo passivo no processo de conhecimento.’(Juiz ANTÔNIO UMBERTO DE SOUSA JÚNIOR). Demonstrado o exaurimento das vias executórias em relação à executada nos autos do processo principal, a qual revelou não possuir bens passíveis de constrição, a penhora sobre bens de outra empresa do grupo revela-se lícita e adequada aos princípios que norteiam o processo trabalhista, mormente porque infirmada a tese da identidade e distinção de patrimônio entre as empresas defendida pela agravante através da oferta voluntária, pela executada, de bem pertencente a outro ente do conglomerado. Recurso a que se nega provimento. Vistos e relatados os autos em que são partes as identificadas em epígrafe. (TRT 10a R. – AP00129-3a T. – Rel. Juíza Márcia Mazoni Cúrcio Ribeiro – DJU 04.04.2003).
4.5 A penhora on-line
A Justiça do Trabalho em todo o território brasileiro sempre foi regida pelo princípio da
celeridade processual, mesmo quando somente era aplicado o rito ordinário, quando a
instrução processual se desdobrava em várias audiências: uma para a conciliação, outra para a
ouvida das testemunhas do reclamante, outra para as oitivas das testemunhas da reclamada e,
quando as razões finais não eram remissivas ao que foi apurado na fase de cognição, marcava-
se outra audiência para apresentação das razões finais, sendo em seguida proferida a sentença.
O processo seguia seu iter processual com as fases de recursos, culminando com o
trânsito em julgado da decisão, chegando finalmente à fase de execução onde o sofrimento do
trabalhador aumentava consideravelmente. Como encontrar bens da executada depois de todo o
desenrolar da demanda? Como o reclamante, já desempregado, poderá empregar meios capazes
de descobrir algum bem da executada livre de qualquer ônus? Assim o número de processos em
fase de execução aumentava consideravelmente sem se chegar a uma conclusão satisfatória.
O dinamismo da Justiça do Trabalho, fator preponderante para o deslinde das causas que
lhe são postas à apreciação, tornou-se mais evidente com a introdução no ordenamento pátrio da
Lei No. 9.957 de 02 de janeiro de 2000, que deu eficácia ao rito sumaríssimo nas demandas
trabalhistas que não ultrapassassem aos 40 (quarenta) salários mínimos vigentes no país,
passando o juiz do trabalho a fazer toda a instrução processual em uma só audiência, sendo a
sentença prolatada logo em seguida. Esse procedimento, logicamente posterior ao trânsito em
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julgado da decisão, propiciou um aumento significativo nos processos em fase de execução,
superlotando as varas do trabalho, não tendo o magistrado de primeiro grau uma alternativa para
a finalização dessa execução, principalmente em decorrência das dificuldades impostas pelas
executadas e seus sócios que “escondiam” seus bens sob o manto da pessoa jurídica.
Diante de todas essas dificuldades, viu-se a Justiça do Trabalho inoperante na fase
executória de seus processos, necessitando de um remédio jurídico que lhe propusesse
solucionar o impasse. Dentro desse contexto, surge como alternativa o convênio entre o
Banco Central do Brasil e o Tribunal Superior do Trabalho, denominado de BACEN-Jud,
sendo regido e fundamentado pelos artigos 25, caput, e 116 da Lei Nº 8.666, de 21 de Julho
de 1993, e pelo regulamento anexo à circular /BACEN Nº 2.717, de 3 de setembro de 1996.
O convênio firmado tem como objetivo permitir ao Tribunal Superior do Trabalho e aos
Tribunais Regionais do Trabalho, dentro de suas áreas de competência, o acesso via internet e
encaminhar às instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo
BACEN, ofícios eletrônicos contendo solicitações de bloqueio e desbloqueio de contas
envolvendo pessoas físicas e jurídicas clientes do sistema financeiro nacional.
São de responsabilidade do Banco Central, na conformidade da cláusula IV do
Convênio, a entrega de senha ao fiel de cada tribunal e o repasse às instituições do sistema
financeiro nacional, as solicitações encaminhadas pelo usuário do sistema, bem como conferir
junto ao processamento do sistema BACEN-Jud os procedimentos necessários à manutenção
da segurança e do sigilo das informações.
O acesso ao sistema BACEN Jud se dá através de senhas, na conformidade da cláusula
VII do convênio mencionado, assim determinando:
Cláusula Sétima – O acesso ao sistema BACEN Jud se dará por meio de senha, após o cadastramento de usuário efetuado pelo fiel do respectivo tribunal. Haverá duas formas de autorização de usuários: a primeira, de exclusividade do juiz, poderá solicitar e efetivar pedidos, e somente o titular dessa senha poderá autorizar o envio dos ofícios eletrônicos ao BACEN; A segunda será concedida a funcionário do tribunal ou das varas do trabalho para proceder a digitação dos dados.
A fiscalização no curso da execução dos serviços caberá ao Banco Central, sem prejuízo
da fiscalização exercida pelo TST e pelos tribunais signatários do termo de adesão, dentro das
respectivas áreas de competência, sendo o prazo de vigência inicialmente de 2 (dois) anos,
prorrogável por tempo indeterminado (cláusula IX), estando no momento prorrogado
indeterminadamente.
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Além das responsabilidades previstas nesse convênio, os participantes se obrigam a
manter sigilo acerca dos sistemas de segurança utilizados, bem como as informações de que
os envolvidos na execução tiverem conhecimento.
De imediato, vários segmentos da sociedade se indispuseram contra esse convênio, sob
a alegativa de ser inconstitucional, de infringir normas processuais, principalmente normas
jurídicas que tutelam o devedor quando da execução para que esta seja menos gravosa e que
não há no ordenamento jurídico dispositivo específico que tutele esse convênio.
Criticar o Convênio BACEN-Jud sob a ótica de que não respeita o princípio processual
de que a execução recaia de forma menos gravosa ao devedor, trazendo para a discussão
norma contida no Código de Processo Civil em detrimento do procedimento executório
próprio do processo trabalhista e confrontando diretamente com o princípio protetor, hoje
modelado à realidade contemporânea, não pode surtir o efeito desejado pelos sindicados dos
empregadores, pelos advogados que trabalham diretamente com as empresas reclamadas e por
quem tem interesse em diminuir o alcance social dos direitos dos trabalhadores,
principalmente porque a criação do convênio em comentário tem por suporte básico atender
ao princípio basilar do ordenamento jurídico pátrio, que é o da dignidade humana,
consubstanciado no recebimento de verbas trabalhistas que têm cunho alimentar.
Louve-se ainda que o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal assegura como
cláusula pétrea os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Logo, não há porque
direcionar a interpretação do mencionado convênio como inconstitucional ou ser contrária e
incompatível com o princípio da execução menos gravosa ao devedor, princípio esse em
desuso no ordenamento jurídico pátrio, principalmente posterior à última reforma do Código
de Processo Civil Brasileiro, que recepcionou a penhora on line, a qual será comentada em
tópico próprio adiante nesta dissertação.
A constrição patrimonial praticada sobre contas bancárias já era efetuada muito antes da
celebração do Convênio entre o Banco Central e o Poder Judiciário, decorrente da construção
jurisprudencial sobre a desconsideração da personalidade jurídica, que gradualmente
solidificou o instituto com o advento do Código Civil Brasileiro de 2002, com a inserção dos
artigos 50 e 1.026.
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A alegativa de que não há lei que permita a celebração do convênio entre o TST e o
BACEN também é infrutífera; é afirmativa decorrente da falta de uma pesquisa jurídica mais
detalhada, como se pode observar na afirmativa de Marly A. Cardone (2005, p.175-179):
Defesa do executado – Equívocos se sucedem no que se convencionou chamar de penhora on line. Acontece que só o bloqueio de dinheiro do executado é on line, não a penhora, que deve ser feita mediante a expedição de mandado de penhora, avaliação e depósito, em papel, pela secretaria da vara, e é o que tem acontecido na prática. Podemos alinhavar os seguintes argumentos contra o sistema de bloqueio on line: - Não há lei que permita a celebração do convênio entre o TST e o BACEN. - Desrespeito ao devido processo legal (CF. art. 5º , LV) - Abuso do Poder Judiciário com a quebra do sigilo bancário - Bloqueio de diversas contas, para um mesmo valor executado. Excesso de penhora. - Penhora de conta-salário - manutenção de todo o bloqueio para poder recorrer, inclusive por meio de mandado de segurança. - Em mandado de segurança, o executado é que deve provar que houve oneração excessiva.
Dado o devido respeito à pesquisa realizada e ao posicionamento tomado, com ela não se
pode concordar. O bloqueio on line que se realiza em contas bancárias dos executados e/ou seus
sócios não é um procedimento isolado, tendo atingido esse estágio após anos de solidificação
jurisprudencial fortalecido pela teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
A Lei Complementar Nº 105, de 10 de Janeiro de 2001, que dispõe sobre o sigilo das
operações de instituições financeiras e dá outras providências, estabelece no artigo 3º que:
Serão prestadas pelo Banco Central do Brasil, pela Comissão de Valores Mobiliários e pelas instituições financeiras as informações ordenadas pelo Poder Judiciário, preservado o seu caráter sigiloso mediante acesso restrito às partes, que delas não poderão servir-se para fins estranhos à lide.
Esse dispositivo, por si só, já é suficiente para contrapor os argumentos levantados
contra o bloqueio determinado pelo juiz e também contra a alegação de que não existe lei que
permita a celebração do convênio entre o TST e o Banco Central do Brasil.
O direito, segundo Maria Helena Diniz (2000, p. 434-435), “é uma realidade dinâmica,
que está em perpétuo movimento, acompanhando as relações humanas, modificando-as às
nossas exigências e necessidades da vida”.
Devido a essa dinâmica do direito, no sentido de dar celeridade processual às execuções
trabalhistas e atender aos anseios da sociedade, principalmente a classe trabalhadora, já
oprimida pelas dificuldades dos processos trabalhistas, foi que o TST firmou o convênio com
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BACEN, respaldado na jurisprudência dominante no Brasil que, de forma gradual,
recepcionou o instituto da desconsideração da personalidade jurídica. Referido instituto
solidificou-se com a Lei Complementar Nº 105/2001, e logo em seguida com o advento do
Código Civil de 2002, mais precisamente nos artigos 50 e 1.026.
4.5.1 Do sistema renajud
Seguindo a mesma dinâmica do BACEN-JUD e buscando a conclusão da prestação
jurisdicional determinada na sentença transitada em julgado, sempre em atenção ao princípio
da celeridade processual, o Judiciário, diante das dificuldades na busca de bens dos
executados que garantissem a execução trabalhista, principalmente em relação a veículos
automotores, cujos ofícios direcionados aos DETRANs normalmente demoravam tempo
suficiente para que seus proprietários transferissem esses veículos, causando transtornos ao
processo executório, visto que, para sanar tal irregularidade, era necessário enfrentar um
incidente processual de fraude à execução, deu, o Judiciário, um salto providencial e, com
inteligência e habilidade, criou o RENAJUD – sistema eletrônico que possibilita a
interligação imediata entre o Judiciário e o Departamento Nacional de Trânsito –
DENATRAN.
Esse sistema foi desenvolvido mediante acordo de cooperação técnica entre o Conselho
Nacional de Justiça, o Ministério das Cidades e o Ministério da Justiça, possibilitando a
efetivação de ordens judiciais de restrição de veículos cadastrados no Registro Nacional de
Veículos Automotores – RENAVAM, em tempo real.
Por meio desse novo sistema, os magistrados e servidores do Judiciário procedem à
inserção e retirada de restrições judiciais de veículos na Base Índice Nacional – BIN, do
sistema RENAVAM, sendo essas informações repassadas aos DETRANs onde estão
registrados os veículos, para registro em suas bases de dados. Essa alternativa eletrônica
possibilita a visualização das respostas na tela e oferece recursos úteis para a tomada de
decisão da autoridade judiciária, sendo, portanto, mais um instrumento de garantia e
moralização do processo executório, não só trabalhista, mas como um todo.
A adoção da padronização e automação dos procedimentos envolvidos na restrição
judicial de veículos via RENAJUD, no âmbito dos Tribunais e Órgãos Judiciais, tem como
principal objetivo a redução significativa do intervalo entre a emissão das ordens e o seu
cumprimento, comparativamente à tradicional prática de ofícios em papel.
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4.5.2 Do sistema infojud
A burocracia que se seguia ao requerimento de informações cadastrais e de cópias das
declarações de rendas dos executados pela Receita Federal mediante ofícios dos magistrados
era tanta que, em muitos casos, possibilitava a paralisação processual e, em consequência,
abria o precedente para que esses ofícios fossem renovados dependendo da iniciativa do
exequente e a execução se prolongasse indefinidamente.
Sanando tal dificuldade, o Poder Judiciário, através do Conselho Nacional de Justiça, e
a Receita Federal, através da Coordenação Geral de Tecnologia e Segurança da Informação e
Divisão de Sistemas Corporativos Tributários, criaram o INFO-JUD – Sistema de Informação
ao Judiciário, tendo como objetivo atender à solicitação do Poder Judiciário. Essas
solicitações serão efetuadas diretamente pelo magistrado, ou por serventuários previamente
cadastrados especificamente com essa finalidade, em substituição ao procedimento anterior de
fornecimento de informações cadastrais e de cópias de declarações pela Receita Federal
mediante o recebimento prévio de ofícios.
Esse serviço de informação da Receita Federal é disponibilizado aos representantes do
Poder Judiciário – magistrados e serventuários por eles designados – somente mediante o uso
de Certificação Digital dentro do Centro Virtual de Atendimento ao Contribuinte – Ecac -,
sendo esse certificado emitido por Autoridade Certificadora integrante do ICP – Brasil.
O sistema permite o registro de solicitação de dados cadastrais (CPF e CNPJ) e de
declarações de pessoas físicas (DIRPF e DITR) e de pessoas jurídicas (DIPJ, PJ Simplificada
e DITR) à Receita Federal, em substituição ao procedimento de envio de ofícios em papel.
O sistema permite consulta ao número de inscrição no cadastro CPF e CNPJ da
Secretaria da Receita Federal através de alguns critérios de seleção prévia: para CPF – nome,
nome da mãe, data do nascimento, UF e Município; para CNPJ – nome empresarial, nome de
fantasia, CPF do responsável, UF e Município.
É importante informar ainda que o resultado de toda a solicitação efetuada sempre será
enviado para a caixa postal do magistrado responsável pela referida solicitação, preservando-
se o sigilo fiscal.
Nesses dois últimos sistemas comentados – RENAJUD e INFOJUD –, o suporte legal
segue o mesmo do BECENJUD, ou seja, sendo regido e fundamentado pelos artigos 25,
52
caput, e 116 da Lei Nº 8.666, de 21 de julho de 1993, e a Lei Complementar Nº 105, de 10 de
janeiro de 2001, que dispõem sobre o sigilo das operações de instituições financeiras, e os
artigos 50 e 1.026 do Código Civil Brasileiro.
5 DIFERENÇA ENTRE DESCONSIDERAÇÃO E DESCONSTITUIÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Etimologicamente, são dois institutos diversos: desconsideração significa desrespeito,
desacato, juridicamente falando, e usando a desinência da palavra, significa não respeitar, não
acatar, não considerar, sendo esse o sentido da palavra dentro do contexto legal.
Desconsiderar a personalidade jurídica no que concerne à autonomia da pessoa jurídica em
relação aos bens que compõem seu patrimônio, para atingir bens particulares de seus sócios,
que lesaram terceiros de boa fé agindo com abuso de direito, excesso de poder, infração da lei,
fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.
Já desconstituir, significa desfazer, desmembrar. Observe-se que é de vital importância
para este estudo que o termo aqui empregado não significa desfazer completamente a pessoa
jurídica, tornando-a inexistente, mas desfazer uma parte de sua estrutura formal, para atingir
uma parcela de seu patrimônio e satisfazer obrigações assumidas por um ou vários de seus
sócios, e que não foram cumpridas. Trata-se, como se verá a seguir, de uma medida extrema,
mas moralizadora, das relações jurídicas existentes no ordenamento jurídico brasileiro.
Vários doutrinadores, juízes e tribunais, até bem pouco tempo, confundiam esses dois
institutos quando da aplicação em casos concretos visando a coibir a atuação de
administradores e sócios de empresas que a usavam no sentido de fraudar credores,
escondendo-se sob o manto da autonomia da pessoa jurídica. Isso é justificável, pois nenhum
desses dois institutos era recepcionado pelo Código Civil de 1916. A própria Disregard
Douctrine passou quase dois séculos aprimorando-se e sendo estudada, desde o seu
aparecimento no início do século XIX até a publicação do Código Civil Brasileiro de 2002.
O surgimento da desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico
pátrio já trazia dúvidas em relação à desconstituição da pessoa jurídica. Como já
anteriormente reportado, Rubens Requião foi o primeiro jurista brasileiro a tratar do assunto
em sua conferência publicada na RT 410/12. Como defensor da doutrina, enviou sugestão à
comissão encarregada da elaboração do Projeto do novo Código Civil, com o objetivo da
inclusão da Disregard of legal entity como medida legal viável.
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A comissão, mesmo acolhendo sua proposta, inicialmente não conseguiu dar ao tema o
tratamento acertado, impondo sanção de dissolução da sociedade, o que não era o objetivo da
Disregard Douctrine, pois essa visa a manter a pessoa jurídica como forma de expansão
comercial e financeira, moralizando-a nessas relações e não permitindo que seus sócios e
administradores desvirtuem a autonomia da personalidade jurídica.
Em texto normativo do anteprojeto do Código Civil, extraiu-se o seguinte sobre a
desconsideração da personalidade jurídica, já havendo dúvidas sobre os dois institutos:
Art. 49. A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins que determinaram a sua constituição, para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso em que caberá ao juiz, a requerimento do lesado ou do Ministério Público, decretar-lhe a dissolução. Parágrafo único. Nesse caso, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, responderão conjuntamente com a pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante que dela houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros da administração.
Esse texto normativo sofreu várias críticas dos estudiosos sobre a desconstituição da
personalidade jurídica, pronunciando-se Miguel Reale na edição de 1973 do anteprojeto, o
que resultou em novo texto, e reformando-o para o art. 48, assim alterado:
Art. 48. A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins estabelecidos no ato constitutivo, para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso em que poderá o juiz, a requerimento de qualquer dos sócios ou do Ministério Público, decretar a exclusão do sócio responsável, ou, tais sejam as circunstâncias, a dissolução da entidade [...]
Tal dispositivo não consagrava a Disregard Douctrine. Observe-se que neste, além de
haver a sanção da dissolução da sociedade, acrescenta-se a exclusão do sócio responsável pelo
desvio, o que não é na verdade a meta da desconsideração da personalidade jurídica, que visa,
precipuamente, a manter a pessoa jurídica em funcionamento, sem exclusão de seus sócios.
Na Câmara dos Deputados, perante a Comissão Especial do Código Civil, Rubens
Requião (1969, p.19) levantou duas críticas:
Não se deve conferir legitimidade ao Ministério Público – o problema é totalmente de interesse privado – nem aos sócios, mas sim aos credores insatisfeitos; a doutrina da desconsideração deve ser acolhida em sua pureza: não se trata de dissolver a sociedade, mas de deixar de levar em conta, no caso concreto, a sua autonomia..
Requião (1969, RT/410) em contrapartida, apresentou sua própria proposta de redação
para o dispositivo, consistindo em que:
55
A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins que determinaram a sua constituição, para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos ou abusivos de sócios. Nesse caso, o juiz, desconsiderando a existência da personalidade jurídica, a pedido do credor dos sócios, poderá permitir a efetivação de sua responsabilidade sobre os incorporados na sociedade para a sua participação no capital social.
Tal proposta não consagrava a teoria da desconsideração em sua forma habitual, que é a
de desconsiderar a autonomia da sociedade para atingir patrimônio de sócio fora do que foi
constituído. Observe-se que, na proposta de Requião, possibilitava-se apenas atingir os bens
incorporados pelo sócio na sociedade. Dessa forma, mesmo reconhecendo a importância do
trabalho de Rubens Requião, reconhecidamente o pioneiro no estudo da Disregard Douctrine
no País, tal proposta não chegou a satisfazer as expectativas, muito embora tenha sido
recepcionada, com maior ênfase, no art. 1.026, que trata da desconstituição.
Concluiu-se desse texto do anteprojeto que não correspondia, de nenhum modo, às
idéias básicas da teoria da desconsideração. Em verdade, o artigo misturava coisas distintas,
ou seja, a desconsideração com a desconstituição, o que levou ao comentário de Elizabeth
Cristina Campos Martins de Freitas (2002, p. 264):
Consoante o disposto pela teoria da desconsideração e de tudo o que já foi exposto anteriormente, não se objetiva, com a superação, alcançar a validade do ato constitutivo, não pregando, de forma alguma, a dissolução da sociedade que foi utilizada de forma desvirtuada de seus fins primeiros, a pessoa jurídica não entra em processo de liquidação. Ocorre, na realidade, o contrário, já que sua principal vantagem é possibilitar a coibição do uso fraudulento ou abusivo da personalidade jurídica, sem, no entanto, dissolver a sociedade, resguardando, assim, de forma ampla, os demais negócios e atividades exercidas por essa sociedade que não afrontem a lei.
Diante de tal quadro, o referido dispositivo sofreu novas alterações e, através da emenda
ER Nº 375, elaborada pelo relator Bernardo Cabral, que se baseou nas análises jurídicas
realizadas por juristas como Rubens Requião, José Lamartine Corrêa de Oliveira e Fábio
Konder Comparato, resultou o Parecer Final Nº 749, de 1977, ficando assim redigida e
sacramentada, no art. 50 do novo Código Civil Brasileiro, a desconsideração da personalidade
jurídica:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidas aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
56
5.1 O artigo 1.026 do código civil de 2002
Conclui-se que a diferença entre os dois institutos – desconsideração e desconstituição –
consiste em que, no primeiro, a pessoa jurídica não entra em processo de liquidação. Ocorre,
na realidade, o contrário, já que sua principal vantagem é possibilitar a coibição do uso
fraudulento ou abusivo da personalidade jurídica, sem, no entanto, dissolver a sociedade. Já
no segundo, há a possibilidade de dissolução da sociedade, não querendo dizer que seja esse o
objetivo do legislador, que só deve ser aplicado em casos extremos.
Com os estudos realizados para a inserção da Disregard Douctrine no novo Código
Civil Brasileiro, abriu-se uma lacuna no ordenamento jurídico brasileiro, qual seja: com a
aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, possibilitando atingir bens do sócio
que agiu de forma fraudulenta, com desvio das finalidades estabelecidas no contrato social ou
pela confusão patrimonial, há a possibilidade de não se encontrar bens desse sócio para
garantir as obrigações assumidas e não cumpridas, lesando os terceiros de boa fé.
A pergunta que mais atormenta nesse momento é a seguinte: se não há bens do sócio
que agiu com abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela
confusão patrimonial na forma estabelecida no artigo 50 do Código Civil Brasileiro, como
poderá o credor receber o que lhe é de direito, já que a desconsideração da personalidade
jurídica não visa à extinção da sociedade?
O Código Civil não ficou inerte a esse respeito. Foi mais além da Disregard Douctrine,
inserindo no Livro II (Direito de Empresa), mais precisamente no artigo 1.026, a
Desconstituição da Pessoa Jurídica, que não significa, frise-se bem, a dissolução total da
pessoa jurídica.
A regra continua sendo a autonomia da pessoa jurídica, as exceções, a desconsideração e
a desconstituição, o que fez a elaboração e aprovação do artigo 1.026 do Código Civil de 2002:
Art. 1.026. O credor particular de sócio pode, na insuficiência de outros bens do devedor, fazer recair a execução sobre o que a este couber nos lucros da sociedade, ou na parte que lhe tocar em liquidação. Parágrafo Único. Se a sociedade não estiver dissolvida, pode o credor requerer a liquidação da quota do devedor, cujo valor, apurado na forma do art. 1.031, será depositado em dinheiro, no juízo da execução, até 90 (noventa) dias após aquela liquidação.
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Alguns doutrinadores acreditam que a aplicação desse artigo na forma literal como é
compreendido possibilitará um golpe mortal no instituto da pessoal jurídica, que tem como
princípio básico a autonomia da pessoa jurídica, com o que não se compartilha. O art. 50 do
atual Código Civil Brasileiro, como comentado, não visa à dissolução da pessoa jurídica; pelo
contrário, objetiva que a mesma permaneça intacta, inclusive com o sócio que praticou o ato
irregular, permitindo, apenas, que se atinja seu patrimônio particular para resguardar direito
de terceiros. Mas há a possibilidade de que não exista esse patrimônio particular.
Compreendendo o legislador que o instituto da pessoa jurídica não possa ser instrumento para
que se pratiquem atos ilícitos, possibilita que os bens desse devedor, que compõem o
patrimônio da sociedade, sejam liquidados para garantir direitos de terceiros. É um ato
extremo, mas moralizador das relações jurídicas, e que dá maior credibilidade às relações
comerciais, financeiras e principalmente trabalhistas.
Observe-se, mais, que em momento algum se postula o descrédito ou mesmo o
aniquilamento do instituto da pessoa jurídica; pelo contrário, reconhecem-se a todo momento
a importância e a necessidade dessa figura jurídica para a economia do país, mas há a
necessidade de se moralizar esse instituto, para que pessoas eivadas de má fé não o usem
como instrumento de fraudes e outros atos ilícitos.
Da mesma forma que o art. 50, o art. 1.026 não visa a acabar a pessoa jurídica; pelo
contrário, tenta solidificar a credibilidade desse instituto, possibilitando extrair da sua
composição a parte do patrimônio que colocava em risco toda a vida da sociedade, ao mesmo
tempo em que possibilita a satisfação do crédito de terceiro de boa fé. É como um mal que
atinge parte do corpo de uma pessoa, enquanto não for retirado, não há cura.
Observe-se que, na conformidade do parágrafo único do art. 1.026 do Código Civil de
2002, a liquidação da quota do devedor pode ser requerida, e o valor apurado, na forma do art.
1.031, pode ser depositado no juízo da execução até 90 (noventa) dias após a liquidação, sem,
contudo, que isso signifique a dissolução da sociedade. Ocorrerá, sim, uma redução no capital
social se os demais sócios não suprirem o valor da quota liquidada, mas não é a sociedade
dissolvida, como é a interpretação do parágrafo 1o do mesmo art. 1.031 do Código Civil.
5.2 Da aplicação do artigo 1.026 nas execuções trabalhistas
A matéria enfocada no artigo 1.026 do Código Civil – Desconstituição da Personalidade
Jurídica não é aplicada normalmente na esfera trabalhista, divergindo da aplicação da
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Disregard Douctrine, comumente aplicada por juízes e solidificada jurisprudencialmente
pelos tribunais. Por ser criação do vigente Código Civil Brasileiro, decorrente dos estudos
iniciados por Rubens Requião, que abriu o precedente que não foi atingido pelo art. 50, que é
a possibilidade de não se encontrar bens livres do patrimônio individual dos sócios, não é
ainda encarada com o devido respeito pelos magistrados, pelo receio de se atingir a autonomia
da pessoa jurídica, ao ponto de criar um elo para o descrédito desse instituto.
A aplicação do art. 1.026 do Código Civil pode até ser requerida dentro do processo de
execução trabalhista, mas deverá desenvolver-se em processo autônomo, precisando
principalmente observar-se a situação patrimonial da sociedade em balanço especialmente
levantado, como estabelecido na parte final do art. 1.031 do mesmo diploma legal.
Nos casos em que uma sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado. Parágrafo 1º. O capital social sofrerá a correspondente redução, salvo se os demais sócios suprirem o valor da quota. Parágrafo 2º. A quota liquidada será paga em dinheiro no prazo de noventa dias, a partir da liquidação, salvo acordo, ou estipulação em contrário.
Há que se observar, nesse momento, o que deve ser resguardado. Os direitos
constitucionais do trabalhador consubstanciados no art. 7º da Constituição Federal fruto de
secular luta do trabalhador brasileiro, ou manter intacta a pessoa jurídica encobrindo fraudes,
descumprimento ao contrato social, enriquecimento ilícito de sócios que se escondem por
baixo do manto da pessoa jurídica, antes inatingível.
Qual valor jurídico deve ser elevado para a aplicação da norma jurídica? Partindo-se
dessa premissa, a interpretação da norma jurídica e os princípios do direito do trabalho que
garantem a aplicação do art. 1.026 do CPC nas execuções trabalhistas devem ser analisados
dentro desta dissertação, dando um sentido valorativo para que o magistrado possa também
aplicar a desconstituição da pessoa jurídica, garantindo o crédito trabalhista.
6 A INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS
A interpretação, no sentido clássico de Savigny, é a reconstrução do sentido da lei, sua
elucidação, de modo a operar-se uma restituição de sentido ao texto viciado e obscuro. Trata-
se de uma operação lógica, mediante a qual se investiga o significado exato de uma norma
jurídica. Busca, portanto, a interpretação estabelecer o sentido objetivamente válido de uma
regra de direito.
A interpretação é antes de tudo uma atividade criadora. Em toda a interpretação existe,
portanto, uma criação de direito. Trata-se de um processo no qual entra a vontade humana, em
que o intérprete procura determinar o conteúdo exato de palavras e imputar um significado à
norma. Nesse sentido, a interpretação é uma escolha entre múltiplas opções, fazendo-se
sempre necessária por mais bem formuladas que sejam as prescrições legais. A atividade
interpretativa busca, sobretudo, reconstruir o conteúdo normativo, explicitando a norma em
concreto em face de determinado caso. Pode-se afirmar, ainda, que a interpretação é uma
atividade destinada a expor o significado de uma expressão, mas pode ser também o resultado
de tal atividade.
Não há norma jurídica que dispense interpretação. Essa assertiva depõe contrária ao
aforismo romano “in claris non fit interpretatio”. Quando se diz que não há norma jurídica
que dispense interpretação, essa afirmativa se acerca deveras daquela que entende que toda
aplicação de lei já representa por si mesma um ato interpretativo. Em se tratando de
interpretação constitucional, acha Hesse (1970, p.7), porém, contrariando semelhante
entendimento, que só se pode falar de interpretação se houver uma questão ou um problema
jurídico constitucional a ser respondido.
6.1 Classificação da interpretação
Segundo Paulo Bonavides (1996, p. 399), “O tratamento didático da interpretação
costuma distingui-la quanto às fontes, sujeitos ou agentes de onde procedem; quanto aos
meios que emprega e, finalmente quanto aos resultados que alcançam.” Neste trabalho,
levando-se em consideração à delimitação do tema, não se tratará de distinguir a
interpretação, quanto a sua fonte, sujeitos ou agentes de onde procedem, quanto aos meios e
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aos resultados que alcançam, mas se fará um breve relato sobre os métodos modernos de
interpretação, originados que foram dos métodos tradicionais, como o metodológico-
sistemático, o histórico-sistemático e, ainda, o método voluntarista da teoria pura do direito de
Hans Kelsen.
Dos métodos tradicionais de interpretação brotaram métodos modernos, como o lógico-
sistemático, o histórico-teleológico e o da escola pura do direito, volvidos todos primeiro para
o espírito do que para a letra da lei.
6.1.1 Método lógico-sistemático
A interpretação começa naturalmente onde se concebe a norma como parte de um
sistema – a ordem jurídica, que compõe um todo ou unidade objetiva, única a emprestar-lhe o
verdadeiro sentido, impossível de obter-se se fosse considerada insulada, individualizada,
fora, portanto, do contexto das leis e das conexões lógicas do sistema. Sua atenção recai sobre
a norma jurídica, tomando em conta a íntima conexão do preceito, do lugar em que se acha e
da sua relação com os demais preceitos, até alcançar os laços que unem todas as regras e
instituições num todo coerente. Na conceituação de Paulo Bonavides (1996, p. 406), elogia-se
esse tipo de interpretação afirmando-se que:
Graças a esse método, que assenta objetivamente sobre relações ou interconexões de normas, pôde a hermenêutica jurídica extrair diversas regras ou cânones interpretativos fundados em argumentos lógicos (a fortiori, a contrario, sedes materiae e ad absurdo), cujo emprego é freqüente da parte de quantos abraçam na interpretação das leis o critério lógico-sistemático.
6.1.2 Histórico-teleológico
Segundo alguns autores, dentre eles Paulo Bonavides (1996, p. 406), é possível, em
determinados casos, passar do método lógico-sistemático ao método histórico-teleológico,
sem quebra de continuidade.
Por um de seus elementos - o histórico – o método traça toda a história da proposição legislativa, desce no tempo a investigar a ambiência em que se originou a lei, procura enfim encontrar o legislador histórico, a saber, as pessoas que realmente participaram na elaboração da lei, trazendo à luz os intervenientes fatores políticos, econômicos e sociais, configurativos da occasio legis.
A conexão histórico-teleológica prosperou consideravelmente na moderna hermenêutica
jurídica, sobretudo em consequência de seu emprego pelos juristas da chamada escola da
jurisprudência de interesses. Esse método, em alguns juristas modernos e contemporâneos,
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costuma aparecer também debaixo da designação de interpretação evolutiva ou progressiva,
com que se consubstancia ou caracteriza uma interpretação mais ou menos livre, consentida a
uma autoridade, especialmente ao juiz, a fim de adaptar o conteúdo da norma a exigências
práticas surgidas depois da emanação da própria norma.
6.1.3 Método voluntarista da teoria pura do direito
Dentre as modernas contribuições oferecidas no campo da hermenêutica jurídica, avulta
como das mais relevante e significativa a dos juristas da Teoria Pura do Direito, capitaneados
por Hans Kelsen.
O traço de originalidade de Kelsen no estudo da interpretação da norma jurídica flui
quando ele entende que a interpretação é em essência um ato de decisão, um ato volitivo, daí
originando-se o chamado método voluntarisa, e não um ato de cognição, um ato intelectivo,
de sorte que, na hermenêutica jurídica, quando se interpreta uma norma, o intérprete, ao
eleger um de seus possíveis significados, guia-se mais pela vontade do que pela inteligência,
ou seja, pesa mais sobre a escolha a primeira do que a segunda.
Entende a interpretação como um procedimento espiritual que acompanha o processo de
produção do direito em seu curso, desde o grau mais alto ao grau mais baixo, processo em que
o grau inferior aparece sempre condicionado ou determinado pelo grau superior na escala de
hierarquia normativa.
Para kelsen e a Teoria Pura do Direito, a interpretação é mais um ato de vontade que de
cognição, e quando o juiz se decide por uma das diversas possibilidades interpretativas, essa
eleição ou preferência se dá fora da esfera teórica, no âmbito da política do direito. As
reflexões de Kelsen acerca da interpretação reforçam, enfim, consideravelmente, a
importância da função que cabe ao juiz na ordem judicial.
As principais considerações de Kelsen em relação à interpretação da norma jurídica são
encontradas em sua mais famosa obra, Teoria Pura do Direito, onde desenvolve o capítulo
VIII, iniciando com a distinção entre as chamadas interpretações autêntica e não-autêntica,
passando pela indeterminação presente no ato de aplicação do direito e retomando a distinção
do ato de interpretação enquanto ato de conhecimento e ato de vontade.
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6.1.3.1 Interpretação autêntica e não-autêntica
Segundo o pensamento kelseniano (1988, p. 387), para a aplicação do direito por um
órgão jurídico, aos quais a lei confere competência para aplicar o direito, é necessário que este
fixe o sentido das normas que vai aplicar, sendo necessária sua interpretação:
Quando o direito é aplicado por um órgão jurídico, este necessita de fixar o sentido das normas que vai aplicar, tem de interpretar essas normas. A interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior.
Nota-se, a priori, que a concepção da interpretação como aplicação da norma abstrata,
gerando uma norma concreta, está umbilicalmente ligada à noção kelseniana de Ordenamento
Jurídico enquanto um sistema escalonado de normas superiores e inferiores.
A esta interpretação, enquanto aplicação do direito pelos agentes autorizados pela
ordem jurídica, Kelsen chama de interpretação autêntica, já que o ato de interpretação, neste
caso, gera direito novo, ainda que mais específico e concreto que o anterior. Cria-se uma nova
norma jurídica (inferior) pela aplicação de uma pré-existente (superior).
A interpretação para Kelsen não está restrita aos agentes normativos, ou seja, àqueles
que detêm competência para criar normas. Também aqueles que devem observá-las precisam
interpretar os enunciados da lei, até para poderem se conduzir conforme os anseios do
legislador, utilizando-a como motivação para uma conduta. Nesse caso, Kelsen denomina a
interpretação de não-autêntica e nela engloba toda interpretação feita por quem não seja um
agente competente para a criação de normas. Sob essa denominação, ficam englobadas todas
as interpretações levadas a cabo pelos leigos e pela ciência do direito.
Autêntica, para a teoria kelseniana, é apenas a interpretação feita pelo juiz ou tribunal, na
medida em que esta é sempre obrigatória, porque produz norma jurídica, predicado ausente na
interpretação levada a cabo pela ciência do direito, que não produz efetividade jurídica, e na
interpretação feita pelos indivíduos em geral, aos quais se impõe tão-só a observância do direito.
Kelsen concebia o sistema jurídico como um conjunto de normas escalonadas, no qual a
norma superior regula a forma de criação e o conteúdo possível da norma inferior. A relação
entre um escalão superior e um escalão inferior da ordem jurídica é uma relação de
determinação ou vinculação. A norma do escalão superior regula o ato através do qual é
produzida a norma do escalão inferior ou o ato de execução, quando deste somente se tratar.
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Esta determinação nunca é completa, tem sempre que ficar uma margem, ora maior, ora
menor de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em
relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou
moldura a preencher por esse ato, propiciando ao aplicador da norma uma pluralidade de
determinações a fazer.
Kelsen distingue a indeterminação do ato de aplicação do direito em dois momentos
distintos: a indeterminação intencional, em que se estipulam expressamente as opções do
aplicador, quer dizer, estar na intenção do órgão que estabeleceu a norma a aplicar; e a
indeterminação não-intencional, em que o agente deve preencher o conteúdo de uma norma
cuja indeterminação decorre da vagueza de seu significado.
Dentro da indeterminação intencional do ato de aplicação do direito, ficam as normas
gerais (superiores) que ao regularem a criação de outras normas (inferiores), colocam
expressamente opções possíveis ao aplicador, devendo o mesmo escolher dentre elas, segundo
critérios estabelecidos no direito positivo. Tal indeterminação seria consciente, pois o
legislador sabe que não pode prever todo e qualquer acontecimento.
Sob o enfoque de Kelsen (1988, p. 389), na indeterminação intencional há uma seriação
escalonada ou gradual das normas jurídicas. A norma geral estabelece os parâmetros em que a
norma individual deverá ser aplicada, sendo dado ao aplicador uma certa discricionariedade
no ato de aplicação do direito:
Assim, o estabelecimento ou fixação de uma norma simplesmente geral opera-se sempre – em correspondência com a natureza desta norma geral – sob o pressuposto de que a norma individual que resulta da sua aplicação continua o processo de determinação que constitui, afinal, o sentido da seriação escalonada ou gradual das normas jurídicas.
O exemplo dado por Kelsen (1988, p.389), bem explica essa espécie de indeterminação:
A lei penal prevê, para a hipótese de um determinado delito, uma pena pecuniária (multa) ou uma pena de prisão, e deixa ao juiz a faculdade de, no caso concreto, se decidir por uma ou pela outra e determinar a medida das mesmas – podendo, para esta determinação, ser fixado na própria lei um limite máximo e um limite mínimo.
A indeterminação do ato jurídico não-intencional se dá não em função da vontade da
autoridade que pôs a norma superior, mas em decorrência da pluralidade de significações de
uma palavra ou de uma sequência de palavras em que a norma se exprime, admitindo várias
interpretações possíveis. Sintetiza Kelsen (1988, p. 389) que: “O sentido verbal da norma não
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é unívoco, o órgão que tem de aplicar a norma encontra-se perante várias significações
possíveis.” Nesse mesmo grupo de indeterminação entram os casos de antinomia, em que
existem duas normas a serem aplicadas, onde o ato jurídico que efetiva ou executa a norma
pode ser conformado por uma ou outra das duas normas que se contradizem ou por forma a
decidir como se as duas normas em contradição se anulassem mutuamente.
6.1.3.2 O direito a aplicar como uma moldura
Conforme comentado, a determinação contida na norma jurídica superior nunca é
completa, há sempre uma determinação que pode resultar intencional ou não. Porque a norma
jurídica nunca é totalmente determinada é que há, segundo Kelsen, a necessidade da
interpretação, que compreende a utilização de mecanismos adequados não só à identificação
das possibilidades admitidas pelo direito, mas também ao controle do espaço deixado,
intencionalmente ou não, pelo legislador ao intérprete.
Nesse contexto, o ato jurídico que efetiva ou executa a norma pode ser conformado de
maneira a corresponder a uma ou outra das várias significações verbais da mesma norma, de
modo a corresponder à vontade do legislador. Assim, segundo Kelsen (1988, p. 390):
O direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível.
Não há, no entendimento de Kelsen, uma única solução como sendo a única correta
ditada pela lei; a interpretação poderá, pois, conduzir a várias possibilidades, de acordo com o
grau de determinação deixado pelo legislador. Não cabe ao intérprete do direito a definição da
única solução correta, que estaria contida na letra da lei, já que todos os significados
possíveis, desde que dentro da moldura, podem ser aplicados aos casos concretos, sem que se
possa qualificar um como melhor que o outro.
Na linguagem jurídica, dizer que uma sentença judicial está fundada na lei significa
para Kelsen que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa; não significa
que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser
produzidas dentro da moldura da norma geral.
Há casos, porém, em que será possível que uma significação que esteja, a princípio, fora
do quadro, seja nele incluída pela atividade judicial. Embora a decisão que o faça seja, em
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tese, anulável, a manutenção da significação fora do quadro somente ocorre com o fenômeno
da coisa julgada que, consoante brocardo romano, pode “transformar o preto no branco”.
Assim, embora a interpretação não-autêntica limite os significados da norma, é possível que a
atividade judicial se afaste do quadro, de forma a, inovando, chegar inclusive a influenciar a
largura do quadro, ampliando-lhe a abrangência. Assim sintetiza Kelsen (1988, p. 394-395):
A propósito importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa. [...] Através de uma interpretação autêntica deste tipo pode criar-se direito, não só no caso em que a interpretação tem caráter geral, em que, portanto, existe interpretação autêntica no sentido usual da palavra, mas também no caso em que é produzida uma norma jurídica individual através de um órgão aplicador do direito, desde que o ato deste órgão já não possa ser anulado, desde que ele tenha transitado em julgado. É fato bem conhecido que, pela via de uma interpretação autêntica deste tipo, é muitas vezes criado direito novo – especialmente pelos tribunais de última instância.
6.1.3.3 A interpretação como conhecimento e como vontade
A interpretação que é feita por todos aqueles que não detenham competência para criar
normas será interpretação não-autêntica, ou seja, uma interpretação como ato de
conhecimento. Do mesmo modo, sempre que a interpretação for realizada por alguém
autorizado pelo ordenamento jurídico a criar normas, será uma interpretação autêntica, ou
seja, interpretação como ato de vontade.
Através do ato de vontade se distingue a interpretação jurídica feita pelo órgão aplicador
do direito de toda e qualquer outra interpretação, especialmente da interpretação levada a cabo
pela ciência jurídica. A interpretação feita pelo órgão aplicador do direito é sempre autêntica.
Ela cria direito.
Nos tópicos que se seguem, o trabalho visa a mostrar que não se quer comparar o trabalho
de Kelsen, no qual ele desenvolve uma teoria geral do sistema normativo, com a qual abarcou
dois sistemas normativos distintos: o sistema estático, constituído da norma que se deduz de
outra superior, e o sistema dinâmico, constituído da norma que confere competência a
determinado órgão para a produção da norma inferior. Visa, sim, a mostrar o momento da
aplicação da norma jurídica pelo órgão aplicador do direito e o trabalho elaborado pelo jurista
italiano Emílio Betti, como forma de solidificar a teoria elaborada por Hans Kelsen. A
hermenêutica de BETTI é uma hermenêutica normativa, no sentido de que dá regras para a
66
interpretação, que dizem respeito quer ao objeto quer ao sujeito da interpretação, estabelecendo
cânones. Mostra ainda a diferença entre o juiz como aplicador do direito e o jurista prático.
O juiz está investido de uma autoridade institucional, estando-lhe cometido um “espaço
de conformação”. Ele atua o sistema de regulação no caso concreto. Já o jurista prático parte
da necessidade de resolver um caso concreto, segundo o critério vinculante da lei, entendido
este em confronto com os interesses em conflito.
6.1.3.4 O significado exemplar da hermenêutica jurídica: o momento da aplicação da norma
“No direito trata-se de raciocinar de um particular a outro particular, por meio de um
universal (o enunciado normativo). Evidencia-se, assim, na hermenêutica jurídica, a
centralidade da applicatio.” (LAMEGO, p.177).
Para a jurisprudência, há uma rejeição para a aplicação da norma com base exclusiva no
preceito legal, sendo necessária a interpretação estar ligada constitutivamente ao caso
concreto, desenvolvendo-se sucessivas concretizações. A interpretação não é somente um
conhecimento conceitual, mas uma experiência que envolve uma análise entre o caso concreto
e o espírito da norma, consubstanciando uma situação entre passado e presente, pondo-se em
evidência que o sentido do texto está constitutivamente ligado à particularidade da situação,
ao caso concreto a julgar.
Apresenta ainda a hermenêutica um caráter exemplar, que é a pré-compreensão, uma
antecipação de sentido, evidenciando que o intérprete tenha um conhecimento generalizado
do ordenamento jurídico como base para desenvolver a análise do caso concreto e chegar ao
espírito que a lei emana. Implica uma relação com o texto posto, positivado, em que o
intérprete não ascende simplesmente a um objeto que lhe é exterior, mas estende-se a partir da
sua situação. Todo o ato de interpretação constitui um aditamento de sentido do texto.
Para Gadamer, a interpretação do texto equivale a um diálogo entre o autor e o
intérprete sobre aquilo que no texto é mencionado. Nesse diálogo o intérprete apropria-se do
discurso expresso no texto e prossegue a elaboração intelectiva do objeto feita pelo autor,
considerando sempre a autonomia do objeto.
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Necessária se faz uma distinção entre a interpretação em função de aplicação que é
realizada pelo juiz e a interpretação para fins doutrinários, ao considerar, em ambos os casos,
o momento da applicatio.
O juiz está investido de uma autoridade institucional, estando-lhe cometido um “espaço
de conformação”. Ele atua o sistema de regulação no caso concreto, sendo o seu ponto de
vista radicalmente interno, ou seja, é o ponto de vista do participante. O jurista prático parte
da necessidade de resolver um caso concreto, segundo o critério vinculante da lei, entendido
este em confronto com os interesses em conflito e aprofundado o seu sentido mediante as
interpretações dos enunciados normativos proporcionadas pela doutrina e pela jurisprudência.
Perante o texto legal, a determinação poderá ser dogmática ou histórica. No primeiro
caso, trata-se da hermenêutica jurídica, em que o jurista compreende o sentido da lei, o
critério normativo nela objetivado a partir do problema e sobre a necessidade de lhe dar
solução. Na segunda hipótese, que é a hermenêutica histórica, a determinação do sentido do
texto legal não é suscitada pela necessidade de decidir uma questão controvertida, não se parte
do problema para averiguar a intenção regulativa que flui do texto legal; antes se procura
determinar o sentido da lei, considerando construtivamente a globalidade da sua aplicação.
6.2 A interpretação do direito do trabalho
O Direito do Trabalho visa a proteger os interesses das categorias profissionais e o
interesse individual do trabalhador, desde que o interesse de classe ou individual não contrarie
o interesse coletivo. Visam à paz social, impondo ao empregador as obrigações mínimas para
com o empregado e a este seus deveres de empregado subordinado.
Segundo Francisco Meton Marques de Lima (1997), o objetivo último de criação desse
ramo do Direito foi salvar o capitalismo, ou seja, adaptar as relações de trabalho ao
neocapitalismo, de maneira que se mantém calado o operário e subsistente o sistema
econômico, sendo esse o caráter retórico do direito operário, chegando à conclusão de que a
proteção se destina ao patrão, no sentido global, e ao operário, no sentido individual ou de
classe. Portanto, trata-se de um direito patronal quanto ao motivo de sua institucionalização e
proletário quanto a sua destinação imediata. O segundo aspecto se contém dentro do primeiro
e a ele tem de se manter fiel. (LIMA, 1997, p. 66).
68
A interpretação das leis trabalhistas se faz amplamente. A maioria dos autores defende
que se devem empregar os métodos sociológicos, com indagação subordinada somente à
melhor solução do conflito, sem, contudo, desaguar no direito livre.
Amauri Mascaro Nascimento leciona que o Direito do trabalho deve ser interpretado
segundo a jurisprudência axiológica ou de valores. Afirma ainda que a jurisprudência de
valores no direito do trabalho encontra bons fundamentos na Escola do Direito Livre, pois o
juiz do trabalho é um legislador secundário e, às vezes, até mesmo primário. A jurisprudência
trabalhista é entendida não somente como sancionadora, mas também constitutiva, não só por
meio de sentenças normativas, mas também nas decisões proferidas em dissídios individuais.
A lei é um dos instrumentos de que o juiz do trabalho se vale para fazer justiça. Nem sempre a
técnica gramatical conduzirá o juiz a um resultado justo. (NASCIMENTO, 1981).
Como concluiu o professor Francisco Meton Marques de Lima (1997, p.67), com o qual
se concorda, todos os métodos e técnicas de interpretação têm aplicação ao direito do
trabalho, que é apenas um direito especial e não excepcional. A tomada de posição por
qualquer um dos métodos depende da formação cultural do intérprete. Entretanto, é
aconselhável a desvinculação subalterna a qualquer escola ou técnica. Preferível é o respeito a
todos os métodos e técnicas como úteis e necessários, mas não como dogmas, e sim como
simples auxiliares no esclarecimento da lei no sentido que a atualidade social lhe exige.
Como o direito do trabalho tem uma base social e está constantemente se adequando aos
anseios da classe trabalhadora, é certo que as considerações de natureza sociológica devem presidir
a interpretação do direito do trabalho dado à proeminência dos fatos em sua base constitutiva.
Nesse sentido, Mozart Victor Russomano (1995), comentando o artigo 8º da CLT, afirma
que a lei trabalhista aplicável ao caso deve ser interpretada e aplicada não apenas dentro dos
processos estritamente jurídicos de análise dos textos, mas também sob a influência do chamado
critério sociológico. É esse método que revela os aspectos econômicos, políticos e sociais que se
escondem por detrás dos fenômenos jurídicos da vida trabalhista.
Como ramo do direito, o direito do trabalho interpreta-se segundo as regras de
hermenêutica jurídica e as técnicas empregadas na interpretação do direito em geral.
Entretanto, sua qualidade de direito especial exige adaptações das regras gerais da
hermenêutica tradicional, resultando numa técnica quase própria de interpretação de suas
normas.
7 A FORÇA DA PRINCIPIOLOGIA CONSTITUCIONAL
A Constituição Federal de 1988, denominada popularmente de Constituição Cidadã,
representa um marco jurídico de transição democrática e da institucionalização dos direitos
humanos no País. Introduz o texto constitucional avanço extraordinário na consolidação dos
direitos e garantias fundamentais.
Desde o seu preâmbulo, a Carta de 1988 projeta a construção de um Estado
Democrático de Direito, “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais,
a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos [...]”.
O valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico e informador de
todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação
e compreensão do sistema constitucional.
Considerando-se que toda constituição há de ser compreendida como uma unidade e
como um sistema que privilegia determinados valores sociais, pode-se afirmar que a
Constituição de 1988 elege o valor da dignidade humana como um valor essencial que lhe dá
unidade de sentido. Isto é, o valor da dignidade humana informa a ordem constitucional de
1988, imprimindo-lhe uma feição particular.
No Estado-Liberal havia um culto ao legalismo, um apego exagerado às regras, pois se
objetivava impedir uma atuação mais livre do magistrado, tendo este a função, apenas, de
aplicar o direito que se encontrava “fechado” em regras bem definidas. Com o advento do
Estado Social, surge a força dos princípios como nortes a serem seguidos pelos operadores do
direito, sendo tais princípios de caráter “aberto” e flexível, permitindo um maior campo de
ação integrativa da norma aos fatos sociais. Daniel Sarmento (2004) enfoca essas mudanças
de forma clara e bem compreensível, quando afirma:
Posta nestes termos a distinção entre princípios e regras, cumpre frisar que existe a necessidade indeclinável de que a Constituição empregue esses dois tipos de normas. Os princípios são muito importantes porque, pela sua plasticidade,
70
conferem maior flexibilidade à Constituição, permitindo a ela que se adapte mais facilmente às mudanças que ocorrem na sociedade. Além disso, por estarem mais próximo dos valores, eles ancoram a Constituição no solo ético, abrindo-a para conteúdos morais substantivos.. É principalmente através dos princípios que vai se operar o processo de constitucionalização do Direito Privado [...]. Na verdade a primazia axiológica dos princípios e os efeitos irradiantes que lhes é inerente permitem que estes penetrem no Direito Privado, impondo mudanças ou novas exegeses dos seus institutos tradicionais. (SARMENTO, 2004, p 87-88).
Como forma ilustrativa do trabalha realizado, vale lembrar inicialmente que os
princípios são, em sua essência, genéricos, não se reportando diretamente a qualquer fato em
particular. Não são absolutos e a pluralidade de valores que encerram deve ser
compatibilizada diante de um conflito concreto. Disso resulta que apenas um ou mais
princípios sofrem atenuação naquele caso específico, configurando na análise do caso
enfocado não um conflito de princípios, mas uma compatibilidade entre os princípios,
dependendo da natureza e complexidade da questão, sempre se observando que a dignidade
humana é o embrião de todos os outros princípios.
A convivência entre os princípios adotados para o julgamento de qualquer caso em
particular leva o julgador a fazer uma limitação ou redução de validade entre eles, de forma a
torná-los compatíveis. Nas palavras de Maria Cristina Biazão Manzato (2005, p. 174), devem
ser “sopesados”:
Os princípios em estado de tensão deverão ser ‘sopesados’, cumprindo ao julgador decidir em que medida um deverá prevalecer e em que medida outros terão sua eficácia diminuída. A solução mais adequada é a manutenção da convivência entre os princípios, introduzindo-se tão-somente limitação e redução da validade de forma a compatibilizá-los.
Na solução mais adequada para a convivência entre os princípios na análise de um
mesmo caso jurídico, surge o princípio da proporcionalidade, pelo qual se deverá decidir qual
será privilegiado. A aplicação da proporcionalidade como princípio gera entre os
doutrinadores uma disputa salutar. Alguns acham tratar-se de um superprincípio; outros, de
um método. Para Paulo Bonavides (1996), no ordenamento constitucional brasileiro, não deve
a proporcionalidade permanecer encoberta. Em se tratando de princípio vivo, elástico,
prestante, protege ele, o cidadão, contra o excesso do Estado e serve de escudo à defesa dos
direitos e liberdades constitucionais, tratando-se daquilo que há de mais novo, abrangente e
relevante em toda a teoria do constitucionalismo contemporâneo e sintetizando seu
pensamento no constitucionalismo brasileiro da seguinte forma:
71
No Brasil a proporcionalidade pode não existir enquanto norma geral de direito escrito, mas existe como norma esparsa no texto constitucional. A noção mesma se infere de outros princípios que lhe são afins, entre os quais avulta, em primeiro lugar, o princípio da igualdade, sobretudo em se atentando para a passagem da igualdade-identidade à igualdade-proporcionalidade, tão característica da derradeira fase do Estado de direito. (BONAVIDES, 1996, p. 394).
Maria Cristina Biazão Manzato (2005, p.175), traduz o pensamento de Luiz Virgílio
Afonso da Silva, no qual informa ser “regra de proporcionalidade” o termo mais apropriado
para a interpretação e não princípio da proporcionalidade, afirmando que:
A proporcionalidade não pode ser considerada um princípio, pelo menos não com base na classificação de Alexy, pois não tem como produzir efeitos em variadas medidas, já que é aplicada de forma constante, sem variações. Entretanto, conforme a mesma classificação de Alexy pode ser a proporcionalidade enquadrada como regra, pois somente as regras são aplicadas por subsunção.
Para Rizatto Nunes (2003, p.309), o chamado princípio da proporcionalidade é antes de
tudo um método adotado para solução do caso concreto:
O chamado princípio da proporcionalidade é antes um método que um princípio propriamente dito. Um método para fazer justiça no caso concreto, como instrumento para a resolução de conflitos aparentes entre princípios, derivado do princípio da dignidade humana.
Independentemente da linha de fundamentação adotada, é certo que a Constituição é um
sistema aberto de princípios no sentido de absorver os valores que afloram no meio social,
podendo ocorrer fenômenos de tensão entre vários princípios, havendo a necessidade de uma
ponderação consoante o “peso” de cada princípio e as circunstâncias do caso concreto. Nessa
análise de ponderação é que surge o princípio da proporcionalidade como forma de solução de
conflito de princípios, de modo a decidir qual deverá ser privilegiado.
Como posição doutrinária, acompanha-se o pensamento de Paulo Bonavides (1996),
que entende ser o princípio da proporcionalidade um princípio vivo, protegendo o cidadão
contra o excesso do Estado e servindo de escudo à defesa dos direitos e liberdades
constitucionais, não existindo no Brasil enquanto norma geral de direito escrito, mas existindo
como norma esparsa no texto constitucional.
A Constituição de 1988 é um parâmetro jurídico da transição democrática e da
institucionalização dos direitos humanos no Brasil, podendo-se afirmar que ela elegeu o valor
da dignidade humana como um valor essencial que lhe dá unidade de sentido e maior grau de
fundamentalidade na ordem jurídica como um todo. Ao eleger o valor da dignidade humana
72
como essencial à ordem jurídica nacional, a Carta de 1988 inova realçando uma orientação
internacionalista traduzida nos princípios da prevalência dos direitos humanos, da
autodeterminação dos povos, do repúdio ao terrorismo e ao racismo e da cooperação entre os
povos para o progresso da humanidade, passando o Estado brasileiro a ratificar relevantes
tratados internacionais de direitos humanos.
No que se refere à posição do Brasil em relação ao sistema internacional de proteção
aos direitos humanos, cabe realçar que, somente após o processo de democratização do país,
deflagrado em 1985, e a partir da Constituição de 1988, é que o Estado brasileiro passou a
ratificar relevantes tratados internacionais de direitos humanos.
Os tratados internacionais, principalmente as convenções da Organização Internacional
do Trabalho – OIT – são importantes meios de abrir caminho para resguardar os direitos
humanos, principalmente naqueles Estados em que as convenções são ratificadas e que a
dignidade da pessoa humana é fator preponderante.
As convenções 111 e 117 da OIT são importantes na análise desta dissertação, porque
propicia discorrer sobre a Emenda Constitucional Nº 45/2004, que possibilita introduzir
dentro do ordenamento jurídico pátrio princípios relevantes sobre a dignidade da pessoa
humana, sendo ratificados pelo Brasil e que, dentro da delimitação do trabalho, pode servir de
parâmetro para a fundamentação e aplicação do artigo 1.026 do Código Civil Brasileiro nas
execuções trabalhistas.
A Convenção 111 da OIT considera que a discriminação constitui uma violação dos
direitos enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, devendo ser abolida
toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política,
ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de
oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão (art. 1º, letra “a” da
Convenção).
A letra “b” do art. 1º vai mais além quando especifica: “qualquer outra distinção”, que
poderá ser especificada pelos Membros interessados depois de consultadas as organizações
representativas de empregadores e trabalhadores.
A Convenção 117 da OIT considera que o desenvolvimento econômico deve servir de
base ao progresso social, estabelece o princípio de que toda e qualquer política deve tender em
73
primeiro lugar ao bem-estar e ao desenvolvimento da população, assim como ao encorajamento
das suas aspirações com vista ao progresso social e à melhoria dos níveis de vida, sendo
considerada como o principal objetivo dos planos de desenvolvimento econômico.
Esta dissertação toma por base essas duas convenções ratificadas pelo Brasil e que
foram inseridas no ordenamento constitucional brasileiro, o que leva à necessidade de se
analisar as inovações decorrentes da reforma do Poder Judiciário, introduzidas pela Emenda
Constitucional Nº 45/2004, no que se refere especialmente à hierarquia e à incorporação dos
tratados internacionais de proteção dos direitos humanos na ordem jurídica brasileira.
A Constituição de 1988 é um parâmetro jurídico da transição democrática e da
institucionalização dos direitos humanos no país, podendo-se afirmar que ela elegeu o valor
da dignidade humana como um valor essencial que lhe dá unidade de sentido e maior grau de
fundamentalidade na ordem jurídica como um todo.
Ao eleger o valor da dignidade humana como essencial à ordem jurídica nacional, a
Carta de 1988 inova realçando uma orientação internacionalista traduzida nos princípios da
prevalência dos direitos humanos, da autodeterminação dos povos, do repúdio ao terrorismo e
ao racismo e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, passando o
Estado brasileiro a ratificar relevantes tratados internacionais de direitos humanos.
O art. 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal de 1988 consagra uma cláusula
constitucional aberta ao estabelecer que: “os direitos e garantias expressos na Constituição
não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Diante de tal dispositivo,
várias correntes interpretativas acerca da hierarquia dos tratados internacionais de proteção
dos direitos humanos sustentam quatro posições diversas: a) a hierarquia supraconstitucional
desses tratados; b) a hierarquia constitucional; c) a hierarquia infraconstitucional, mas
supralegal; e d) a paridade hierárquica entre tratado e lei federal.
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, ainda não é pacífico o entendimento de eleger
uma só corrente interpretativa, muito embora haja no momento uma posição majoritária
defendendo a paridade hierárquica entre tratado e lei federal defendida pelo Ministro Celso de
Melo, em contrapartida da hierarquia constitucional dos tratados de proteção dos direitos
humanos adotada pelo Ministro Carlos Veloso no julgamento do Hábeas Corpus Nº.
74
82.414/R, conhecido como o “caso Ellwanger”, e da hierarquia supralegal, adotada pelo
Ministro Sepúlveda Pertence (apud D’AVILA, 2006, p. 277).
À luz do art. 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal, entende-se que os direitos
fundamentais podem ser classificados em três categorias: 1) a dos direitos expressos na
Constituição; 2) a dos direitos implícitos, decorrentes do regime e dos princípios adotados
pela Carta Constitucional; e 3) a dos direitos expressos nos tratados internacionais subscritos
pelo Brasil. Ao efetuar tal incorporação, a Constituição está a atribuir aos direitos
internacionais uma natureza especial e diferenciada de norma constitucional ou
infraconstitucional, dependendo da natureza da matéria enfocada no tratado.
Diante dessa incorporação dos tratados internacionais ao ordenamento jurídico nacional,
conclui-se que o direito brasileiro faz opção pelo sistema misto, que combina regimes jurídicos
diferenciados, sendo um regime aplicável aos tratados internacionais de direitos humanos e
outro aplicável aos tratados internacionais tradicionais. Por força do art. 5º, parágrafo 2º, os
tratados internacionais de proteção dos direitos humanos apresentam hierarquia constitucional,
os demais tratados internacionais apresentam hierarquia infraconstitucional.
A aplicação imediata dos direitos humanos decorrentes dos tratados internacionais gera
polêmica, tanto de ordem jurisprudencial, como doutrinária. Procurando responder a essa
polêmica, a Emenda Constitucional Nº 45/2004 acrescentou o parágrafo 3º ao artigo 5º da
Constituição Federal, dando aos tratados internacionais força de norma constitucional, desde
que formalmente atinjam ao quorum estabelecido para as emendas constitucionais: “Os
tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados, em cada casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros,
serão equivalentes às emendas à Constituição”.
Diante dessa Emenda à Constituição, gera-se a polêmica doutrinária em torno do
entendimento de que todos os tratados de direitos humanos já ratificados pelo Brasil seriam
recepcionados como lei federal, pois não teriam obtido o quorum qualificado de três quintos
demandados pelo parágrafo 3º. Não é esse o entendimento da Professora do Doutorado da
PUC/SP, Flávia Piovesan, quando afirma que por força do art. 5º, parágrafo 2º, todos os
tratados de direitos humanos, independente do quorum de sua aprovação, são materialmente
constitucionais.
75
Nesse sentido, o quorum qualificado previsto pelo parágrafo 3º está tão somente a reforçar tal natureza constitucional, ao adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados. Na hemenêutica emancipatória dos direitos há que imperar uma lógica material e não formal orientada por valores, a celebrar o valor fundamental de prevalência da dignidade humana. (PIOVESAN apud D’AVILA, 2006, p.279).
Sob essa ótica, todos os tratados internacionais de direitos humanos são materialmente
constitucionais por força do art. 5º, parágrafo 2º. Com o advento do parágrafo 3º, surge uma
nova categoria de tratado de direito humano, o material e formalmente constitucional, que não
pode ser denunciado - ato unilateral pelo qual um Estado se retira de um tratado.
Por fim, tendo como base o parágrafo 1º do art. 5º, que prevê a aplicabilidade imediata
das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, sustenta Flávia Piovesan a
incorporação automática dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento
pátrio, bastando o ato de ratificação para que o tratado de direitos humanos tenha
aplicabilidade no âmbito internacional e interno, assim afirmando:
Nessa temática, o parágrafo 3º do art. 5º tão somente veio a fortalecer o entendimento em prol da incorporação automática dos tratados de direitos humanos. Isto é, não parece razoável, a título ilustrativo, que após todo o processo solene e especial de aprovação do tratado de direitos humanos (com a observância do quorum exigido pelo art. 60, parágrafo 2º), fique a incorporação do mesmo no âmbito interno condicionada a um decreto do Presidente da República. (D’AVILA, 2006, texto: Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos e a Reforma do Poder Judiciário - PIOVESAN, p.282).
Tal posicionamento é contrário ao entendimento do STF, como é observado na Adim
1.480-DF, rel. Min. Celso de Melo:
O decreto presidencial que sucede à aprovação congressual do ato internacional e à troca dos respectivos instrumentos de ratificação, revela-se – enquanto momento culminante do processo de incorporação desse ato internacional ao sistema jurídico doméstico - manifestação essencial e insuprimível, especialmente se considerados os três efeitos básicos que lhe são pertinentes: a) a promulgação do tratado internacional; b) a publicação oficial do seu texto; e c) a executoriedade do ato internacional, que passa, então, e somente então, a vincular e obrigar no plano do direito positivo interno (informativo do STF, No. 109, DJU de 13/05/1998).
Divergindo de Flávia Piovesan e acompanhando o posicionamento do STF, Maurício
Andreiuolo Rodrigues observa que os tratados internacionais sobre direitos humanos só têm
cabimento se alcançarem efeito densificador, explicitador dos direitos fundamentais. Não
obterão êxito caso proponham derrogar preceito constitucional com eles conflitante. Chama
ainda a atenção sobre o fato de que os atos internacionais funcionam de forma a garantir
76
maior efetividade aos princípios já existentes, e não para sabotar a estrutura da Constituição.
Conclui assim seu pensamento:
Dessa forma, os tratados internacionais de direitos humanos devem ser acolhidos, sim, mas desde que não ofereçam obstáculos às ordens constitucionais já existentes. Pois bem, se houver conflito de fonte constitucional com outra internacional, valerá a primeira, que só será alterada através dos meios ordinários nela prevista (emenda constitucional – art. 60). (RODRIGUES apud D’AVILA, 2006, texto: Os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos e a Constituição- p.301).
7.1 O princípio protetor no direito do trabalho
A ideia de igualdade advém de uma realidade jurídico-constitucional, justamente por
estar presente na maioria das constituições e por possuir implicações práticas nos
ordenamentos jurídicos que a consagram.
O modelo clássico liberal de igualdade jurídica destaca a ideia de igualdade como se
fossem todos os cidadãos iguais perante a lei e que, em consequência, a lei deve ser igual para
todos, sem distinção, nem privilégios, nas características da generalidade do ato normativo.
A evolução doutrinária mudou essa concepção. O conceito de igualdade (igualdade
material) baseia-se, no sentido de admitir tratamento diferenciado de situações fáticas
desiguais, ou seja, o princípio da igualdade deve atribuir tratamento diferenciado em situações
concretas dessemelhantes, com o único objetivo de evitar dimensionar ainda mais as
desigualdades fáticas, reais. Com isso, denota-se que o princípio em questão procura, na sua
essência, proteger e defender os interesses reais dos indivíduos desfavorecidos (tanto social
como economicamente), a fim de se atingir um equilíbrio social e econômico.
O grande objetivo da aplicação do princípio da igualdade, em todo o processo histórico
mundial, é o de promover a igualdade real, alicerçada na eliminação das desigualdades
econômicas, sociais e culturais, mediante discriminações positivas.
7.1.1 Princípio da igualdade no Direito do Trabalho
Guilherme Machado Dray (1999, p. 112) assim comenta:
Foi, pois, com base no reconhecimento da sua situação de inferioridade substancial (e não apenas como uma forma de ‘contemporização ideológica’) que a Constituição admitiu atribuir aos trabalhadores, enquanto grupo social perfeitamente caracterizado, determinados direitos que visam compensar uma tendencial situação de inferioridade em que se encontram, quer do ponto de vista negocial, quer do ponto de vista
77
econômico, social e jurídico. (Pareceres da Comissão Constitucional V(78), 1979, p.109/110, In: O Princípio da Igualdade no Direito do Trabalho, p. 112)
O ordenamento jurídico trabalhista brasileiro admite de forma expressa a existência de
princípios de Direto do Trabalho, em seu art. 8º, que assim dispõe:
Art. 8º As autoridades administrativas e a jurídica do trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. Parágrafo único. O Direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste.
Desse artigo se extraem as fontes e os meios de integração do direito do trabalho. As
fontes são facilmente identificáveis: a lei, o contrato, a jurisprudência, os princípios gerais do
direito, o direito comparado, os usos e os costumes.
A analogia e a equidade, a rigor, não constituem fonte, mas sim meio de integração do direito.
Orlando Gomes e Elson Gottschalk especificam como fontes do direito do trabalho as
primárias ou voluntárias e as imperativas. A fonte primária é a vontade das partes na fixação
das cláusulas contratuais: fonte voluntária. Essa fonte tem sua capacidade limitada pelas
fontes imperativas, que penetram nas disposições contratuais independentemente da vontade
dos contratantes. Classificam as fontes imperativas em fontes de produção estatal, fontes de
produção profissional, fontes de produção mista e fontes de produção internacional. De
produção estatal é a lei em sentido amplo; de produção profissional são a Convenção Coletiva
de Trabalho e o regulamento da empresa; de produção mista são a convenção-lei e a sentença
normativa; de produção internacional são os convênios e convenções internacionais oriundos
da Organização Internacional do Trabalho. (GOMES; GOTTSCHALK, 1978, p.53- 54).
Observa-se que o parágrafo único do artigo 8º da CLT diz que o direito comum será
fonte subsidiária do direito do trabalho naquilo em que não for incompatível com os
princípios fundamentais deste. Tudo isso está limitado àquilo que não contrarie os princípios
fundamentais do Direito do Trabalho. Logo, a aplicação do direito comum está condicionada
a uma compatibilidade com as normas trabalhistas.
A própria legislação celetista admite a incidência dos princípios gerais ou fundamentais
de Direito do Trabalho como fonte formal de aplicação do Direito do Trabalho. Dentre outros
78
apontados pela doutrina, vários são os princípios peculiares ao Direito do Trabalho, onde se
destacam os da proteção, da primazia da realidade, da irrenunciabilidade, da continuidade, da
boa-fé, da autodeterminação coletiva. Nessa dissertação, decidiu-se ater-se apenas à análise
do princípio da proteção, pelo fato de ser este seu objetivo central para dar respaldo à
desconstituição da personalidade jurídica.
O princípio da proteção subdivide-se em três regras, quais sejam: in dúbio pro operário,
norma mais favorável e condição mais benéfica.
7.2 Princípios peculiares ao Direito do Trabalho
Os princípios peculiares ao Direito do Trabalho advêm de normas (linhas diretrizes ou
postulados) que regulamentam as relações de trabalho e que não são encontradas em outros
ramos do Direito e, sim, apenas do Direito do Trabalho.
A finalidade precípua do Direito do Trabalho é a de melhoria da condição do
trabalhador, tanto no Direito Coletivo, quanto no Direito Individual do Trabalho. Américo Plá
Rodriguez (1978 p. 30) comenta que: “os princípios gerais do direito não se podem identificar
com os princípios próprios de uma disciplina. O próprio qualitativo ‘gerais’ indica-nos a nota
de amplitude, de compreensão de todos os ramos de extensão e aplicação a todo o direito.”
O autor defende o argumento de que os princípios de Direito do Trabalho se aplicam
somente aos direitos trabalhistas, até por definição, e por isso não se aplicam a outros ramos
do Direito. Enquanto os princípios gerais do Direito podem ser aplicados, em certos casos, a
qualquer ramo do Direito, inclusive ao Direito do Trabalho.
7.3 O princípio protetor como direito fundamental
O princípio protetor é um direito fundamental exclusivo dos trabalhadores. E, para
fundamentar esta asserção, há que se superar o não reconhecimento expresso da norma
protetora na Carta Magna.
Para Ruprecht (1995, p. 9-114), o objetivo primordial deste princípio é basicamente o
de “criar uma norma mais favorável ao trabalhador, a fim de compensar as desigualdades
econômicas e sua fraqueza diante do empregador.” Alice Monteiro de Barros (2005, p. 169)
aborda o assunto:
79
O princípio da proteção é consubstanciado na norma e na condição mais favorável, cujo fundamento se subsume à essência do Direito do Trabalho. Seu propósito consiste em tentar corrigir desigualdades, criando uma superioridade jurídica em favor do empregador, diante da sua condição de hipossuficiente.
Na prática, o Direito não protege qualquer dos sujeitos da relação social. O que ocorre é
a concessão dada à parte em posição desfavorável, como: garantia, vantagem ou benefício
capaz de compensar o que lhe é precário.
O problema está em alguns juristas aceitarem o princípio protetor como norma
constitucional, isto porque não há no Texto Constitucional qualquer referência expressiva a
este princípio.
O princípio protetor, na verdade, pode ser induzido das disposições de direitos
fundamentais sociais constitucionais. Isto porque é necessária a presença do Estado para
dirimir e equilibrar uma situação materialmente desigual, ou seja, a relação laboral. Mesmo se
tratando de uma relação contratual, baseada na liberdade dos indivíduos, faz-se necessária a
intervenção do Estado para equilibrar a situação materialmente desigual. Há que se atentar
para o fato de que o princípio da autonomia privada coletiva não se encontra expresso na
Constituição Federal. Não se pode considerar, contudo, que somente as disposições escritas
na Carta Maior possam ser consideradas normas de direito fundamental. A interpretação deve
ser extensiva e não limitada.
Responde-se à questão, sinalizando que o princípio protetor aparece como norma fundada
em valores constitucionalmente garantidos – quais sejam – a dignidade humana e o valor social
do trabalho – pelos princípios expressos no art. 1º da Constituição Federal de 1988.
O princípio de proteção ao trabalhador é inerente ao Direito do Trabalho e tem como
objetivo principal compensar a debilidade do trabalhador diante do empregador, a fim de
possibilitar a igualdade entre as partes.
O princípio protetor é válido tanto nos primórdios tempos em que o Direito Laboral era constituído de poucas e rudimentares normas, como nos tempos contemporâneos, quando as regras se multiplicam e se aperfeiçoaram. Pois a função desse princípio não é substituir a função do legislador, mas, sim, agir conforme seus mandamentos e, nos casos duvidosos, atuar conforme o espírito da lei, de acordo com a própria razão de ser do direito do trabalho que se manteve inalterada no passar dos anos. (CREPALDI, 2004).
80
Acrescenta, ainda, Luiz de Pinho Pedreira da Silva (1999, p. 25-26):
A proteção ao trabalhador, que consiste esse princípio, é a própria razão de ser do Direito do Trabalho. Nasceu ele da necessidade de transformar a liberdade e a igualdade formais nas relações de trabalho entre empregadores e empregados em liberdade e igualdade reais, o que se tornou possível mediante a técnica de contrabalançar a debilidade econômica dos trabalhadores com privilégios jurídicos. Assim, suprimir do Direito do Trabalho o objetivo da proteção é arrebatar-lhe o espírito, é transformá-lo num corpo sem alma.
Os juristas que estudam o Direito Trabalhista divergem quanto à classificação dos
princípios juslaboralistas, mas o princípio da proteção é praticamente unânime. Plá Rodriguez
(1978) sintetiza essa ideia de que o fundamento do princípio da proteção está ligado à própria
razão de ser do Direito do Trabalho. Plá Rodriguez (1978, p.36) explica que
Enquanto no direito comum uma constante preocupação parece assegurar a igualdade jurídica entre os contratantes, no Direito do Trabalho a preocupação central parece ser a de proteger uma das partes com o objetivo e, mediante essa proteção, alcançar-se uma igualdade substancial e verdadeira entre as partes.
O princípio da proteção do trabalhador, segundo Alexandre Ramos (2000, p.606):
Apesar de poder ser inferido das normas de ‘proteção’ ao trabalho, ele é a própria razão de ser do Direito do trabalho. Equivale a dizer que são sua premissa, seu pressuposto, os interesses social e econômico (sem se pretender entre eles estabelecer hierarquia) que geraram a intervenção do Estado na relação do trabalho, a fim de tutelar a parte mais fraca – o trabalhador subordinado. Por isso, oportuno tratar, ainda que sucintamente, do Princípio da Proteção, visto que fundamento de todas as garantias constitucionais fundamentais do trabalhador. O caput do art. 7º da Constituição Federal, ao prescrever que ‘são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social’, encerra o princípio de Proteção, cuja garantia deve ser efetivada quando da aplicação das normas inferiores.
O princípio protetor, apesar de não escrito de forma expressa na Constituição Federal de
1988, nela se encontra a base jurídica para considerá-lo um direito constitucional dos
trabalhadores. A dignidade da pessoa humana, princípio fundamental do Estado Democrático
de Direito, está intimamente ligada à dignidade do trabalhador, visto que a sociedade exige
um nível mínimo de cidadania para todos, inclusive para o trabalhador, o que justificaria a
ação protetora do Estado. O princípio protetor seria um dos instrumentos para a concretização
de uma sociedade digna, na qual o trabalho representasse um valor social e não apenas
valoração econômica, como um elemento a mais no processo produtivo.
O princípio da proteção subdividiu-se em três regras: in dúbio pro operario, norma mais
favorável e condição mais benéfica. Ambas não se confundem, possuindo cada uma suas
especificidades, apenas tendo em comum a derivação do princípio da proteção.
81
7.3.1 Princípio “in dubio pro operario”
Trata-se de um princípio fundamental do Direito do Trabalho, conforme o qual, dentre
várias interpretações que comportem uma norma, deve ser escolhida a que for mais favorável
ao trabalhador.
A regra in dubio pro operario foi transformada do princípio do in dúbio pro reo,
oriundo do ramo de Direito Penal romano, bem como o “favor debitaras” existente no Direito
Civil, em que o devedor deverá ser protegido contra o credo.
Nas relações civis ou comerciais, em geral, o devedor é o mais fraco e necessitado. Já
nas relações laborais, ocorre o inverso, haja vista ser o trabalhador o debilmente fraco perante
o empregador, o que constitui o pressuposto básico do Direito Laboral.
No Direito Social, como sistema legal de proteção dos economicamente fracos, ou seja,
os hipossuficientes, em caso de dúvida, deve o aplicador do Direito ser a favor do
economicamente fraco, que, neste caso, é o empregado, se estiver em litígio com o
empregador.
A aplicação da regra do princípio in dubio pro operario suscita algumas dificuldades,
haja vista o fato de sua aplicação poder ser realizada de forma generalizada e incontida.
Devem ser observadas certas condições para a aplicação do referido subprincípio.
Plá Rodriguez expressa menção aos ensinamentos de Devealli, apresentando duas
condições para a aplicação da regra in dubio pro operario, quais sejam: a) somente quando
exista dúvida sobre o alcance da norma legal; e b) sempre que não esteja em desacordo com a
vontade do legislador.
A aplicação da regra in dubio pro operario não deve ser operada de forma absoluta,
haja vista que, em vez de igualar os desiguais, pode acarretar uma desigualdade ainda maior e,
portanto, sua aplicação requer discernimento e ponderação dos operadores do direito, diante
de situação concreta, para que não incidam em decisões arbitrárias em favor de quem não faz
jus à tutela jurisdicional pleiteada. Alice Monteiro de Barros (2005, p.173) assim opina a
respeito da temática:
Outro desdobramento do princípio da proteção consiste na aplicação do in dubio pro operario. Já sustentamos que só se deve decidir em favor de emprego quando houver fundada dúvida a respeito do alcance da lei e nunca para suprir deficiência da
82
prova, cujo ônus lhe competia, tampouco quando implicar sacrifício do interesse público em função do interesse particular.
Arnaldo Sussekind (2000) relata, em breves palavras, o que se diz acerca do princípio
in dubio pro operario e, para tanto, aconselha o intérprete a “escolher, entre duas ou mais
interpretações viáveis, a mais favorável ao trabalhador, desde que não afronte a nítida
manifestação do legislador, nem se trate de matéria probatória.”
7.3.2 Princípio da condição mais benéfica do trabalhador
O princípio da condição mais benéfica é manifestação da garantia do direito adquirido,
no sentido de que, quando um trabalhador aufere uma vantagem, esta se incorpora ao seu
patrimônio jurídico, não lhe podendo ser mais suprimida.
A condição mais benéfica destina-se a proteger situações pessoais mais vantajosas que
se incorporam ao patrimônio de empregado, por força do contrato que celebrou com a
empregadora, expressa ou tacitamente, e que não podem ser dele retiradas, sob pena de
violação ao art. 468 da CLT e que se reveste do caráter de direito adquirido, conforme art. 5º,
XXXVI, CF/88.
Maurício Godinho Delgado (2004) sugere que a melhor expressão técnica a ser utilizada
é “princípio da cláusula mais benéfica”, pois o princípio referido abrange as cláusulas
contratuais, sejam elas tácitas ou expressas, sejam oriundas do próprio pacto ou do
regulamento da empresa.
O limite extrínseco diz respeito ao surgimento de norma posterior mais vantajosa do que
a condição benéfica, o que anula a condição benéfica. O outro limite extrínseco refere-se à
não-cumulação das vantagens.
No Direito individual do Trabalho, o princípio da proteção continua auxiliando o
intérprete no processo de integração da legislação trabalhista, conforme se denota nas
Súmulas do TST na sequência transcritas, a primeira de número 51, alterada pela Resolução
nº 129/2005, publicada no Diário da Justiça de 20/04/2005, e a segunda de número 288,
concernente à complementação dos proventos de aposentadoria:
Nº 51 NORMA REGULAMENTAR . VANTAGENS E OPÇÕES PELO NOVO REGULAMENTO. ART.468 DA CLT. (incorporada a Orientação Jurisprudencial nº 163 da SDI-1) – Res. 129/205- DJ 20.08.2005
83
I - As cláusulas regulamentares, que revoguem ou alterem vantagens deferidas anteriormente, só atingirão os trabalhadores admitidos após a revogação ou alteração do regulamento. (ex-Súmula nº 51 – RA 41/73, DJ 14.06.1973) II - Havendo a Coexistência de dois regulamentos da empresa, a opção do empregado por um deles tem efeito jurídico de renúncia às regras do sistema do outro. (ex-OJ nº 163 – Inserida em 26.03.1999) Histórico: Redação original – RA 41/73, DJ 14.06.1973 Nº 51 Vantagens As cláusulas regulamentares, que revoguem ou alterem vantagens deferidas anteriormente, só atingirão os trabalhadores admitidos após a revogação ou alteração do regulamento. Nº 288 COMPLEMENTAÇÃO DOS PROVENTOS DA APOSENTADORIA A complementação dos proventos da aposentadoria é regida pelas normas em vigor na data da admissão do empregado, observando-se as alterações posteriores desde que mais favoráveis ao beneficiário do direito. (Res. 21/1988, DJ 18.03.1988).
7.3.3 Princípio da norma mais favorável
O princípio da norma mais favorável, conforme a própria denominação sugere, significa
que, havendo mais de uma norma a ser aplicada ao caso concreto, deve-se sempre eleger
aquela que favoreça o obreiro. É o princípio que vincula o aplicador do Direito do Trabalho à
escolha da norma que mais beneficia a situação do trabalhador. Este princípio é entendido da
seguinte forma:
Havendo pluralidade de normas, com vigência simultânea, aplicáveis à mesma situação jurídica, deve-se optar pela mais favorável ao trabalhador. O princípio da norma mais favorável é o mais amplo, em termos de proteção, e o único incontestavelmente específico do Direito do Trabalho, pois em nenhuma outra disciplina jurídica e em nenhum caso, ao menos com desprezo da hierarquicamente superior. (SILVA, 1999, p.65).
Embora podendo ser confundido com o princípio in dubio pro operatorio, há que se
observar existir, entre ambos, características próprias e diferenciadas.
No princípio in dubio pro operatorio, existe apenas uma norma, embora susceptível de
vários significados; no princípio da norma mais favorável, existem várias normas aplicáveis a
uma mesma situação jurídica. Conforme ressalta ainda Pinho Pedreira (1999, p.65),
A aplicação do princípio da norma mais favorável está condicionada a que se conjuguem os seguintes pressupostos: a) pluralidade de normas jurídicas; b) validade das normas em confronto, que não devem padecer de vícios de inconstitucionalidade ou ilegalidade (abstraída naturalmente a questão da conformidade de norma com a hierarquicamente superior); c) aplicabilidade das normas concorrentes ao caso concreto; d) colisão entre aquelas normas; e) maior favorabilidade, para o trabalhador, de uma das normas em cotejo.
Outro ponto de relevo a destacar diz respeito à hierarquia das normas jurídicas, ou seja,
se esta estaria sendo respeitada com a aplicação do princípio da norma mais favorável ao
84
trabalhador. Alguns autores defendem o argumento de que, no vértice da pirâmide das normas
trabalhistas, a norma mais favorável está situada no cume da pirâmide, assim como defendem
Amauri Mascaro Nascimento e Sérgio Novais Dias. Outros já são concordes em que a
aplicação do princípio da norma mais favorável não modifica a clássica ordenação hierárquica
das normas jurídicas, assim como Plá Rodriguez (1978).
CONCLUSÃO
Quase dois séculos se passaram desde o surgimento dos primeiros estudos sobre a
desconsideração da personalidade jurídica na Europa, sendo lenta e gradativa a solidificação
desse instituto nos ordenamentos jurídicos e tendo como fonte geradora principal a
jurisprudência, que com o passar dos tempos passou a nortear as decisões dos magistrados no
sentido de que a personalidade jurídica deve, em determinados casos, ser desconsiderada para
que se atinjam bens de seus sócios para garantir as relações jurídicas assumidas sob o
“manto” da pessoa jurídica.
A desconsideração da personalidade jurídica é uma exceção à regra de que a pessoa
jurídica não se confunde com as pessoas físicas que a compõem, só sendo admitida em casos
específicos, determinados legalmente para inibir a fraude e o abuso de direito, ou melhor, o
desvirtuamento da pessoa jurídica. Percebe-se, a priori, que a desconsideração da
personalidade jurídica só deve ser aplicada quando não houver outros meios legais de se obter
o resultado procurado.
O objetivo principal com a superação da personalidade jurídica é alcançar os bens
pessoais dos sócios que se mantinham protegidos sob o “manto” da pessoa jurídica
perfeitamente constituída, porém desvirtuada de sua finalidade.
Moralizar. Esse é o verbo correto capaz de transformar o caminho árduo a que vinha
percorrendo os tribunais pátrios, que procuravam coibir a ação de fraudadores que usavam a
pessoa jurídica como um “manto” para encobrir suas atividades ilícitas e prejudicar credores
de boa fé. Com a inserção do artigo 50 no Código Civil de 2002, esse caminho tornou-se
ameno e de fácil percurso, principalmente para aqueles magistrados legalistas, que baseavam
suas decisões em dispositivos codificados. Sua importância aumentou consideravelmente,
exigindo do operador do direito consciente conhecimento, ao menos de seus fundamentos,
para que sua aplicação possa ser efetiva.
Tanto a personalidade jurídica, como a desconsideração da personalidade jurídica,
dentre outros institutos jurídicos, devem ser entendidos como asseguradores de direitos. Não
visa a desconsideração acabar, extinguir, ou mesmo, prejudicar o instituto da pessoa jurídica,
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mas a lhe dar credibilidade, fortalecendo-a contra atos de sócios e administradores de má fé,
possibilitando ao credor ter a certeza de que seus investimentos e negócios podem ter o
retorno desejado.
Com a introdução do artigo 50 do Código Civil Brasileiro, legalmente se estabeleceu a
Desconsideração da Personalidade Jurídica no ordenamento jurídico pátrio, não havendo mais
motivo para que juízes legalistas deixassem de aplicar tal instituto no sentido de garantir os
créditos trabalhistas. Mas, ao se observar com mais clareza, chegar-se-á à conclusão que
somente a desconsideração pode não ser suficiente. Haverá situações em que mesmo se
aplicando a Desconsideração da Personalidade Jurídica, ainda assim, poderá não se encontrar
bens suficientes para garantir os créditos trabalhistas, como nos casos em que alguns sócios
preferirem transferir seus lucros para o capital social de outra empresa, através de suas cotas
ou adquirindo ações em nome dessa empresa.
No que diz respeito ao foco central do trabalho, que é a satisfação dos créditos
trabalhistas, esse fato tornou-se comum. Empresários inescrupulosos abrem empresas,
mantêm vínculos empregatícios com empregados, não cumprem as obrigações daí
decorrentes, não respeitam sequer os direitos fundamentais do cidadão ao salário digno pelo
trabalho produzido, consubstanciando, assim, afronta inclusive ao princípio maior que norteia
o ordenamento jurídico brasileiro, que é a dignidade da pessoa humana, pois a
contraprestação pelo trabalho realizado significa verba de cunho alimentar. Como um
trabalhador poderá alimentar sua família se sequer é respeitado o princípio básico do direito
do trabalho, que é o pagamento pela força desprendida na realização do trabalho? Daí
facilmente o lucro é transferido para compor o capital social de outra empresa ou é distribuído
em ação, possibilitando o enriquecimento ilícito desse empresário fraudador e não cumpridor
dos contratos celebrados.
O legislador, no que concerne a esse pormenor, foi astuto: “enxergou longe”. Como
socialmente o que se buscava no momento era moralizar as relações comerciais, já que se
abriu dentro do Código Civil Brasileiro um capítulo para tratar exclusivamente do direito
empresarial, nada mais promissor do que a fonte de credibilidade para estabelecer garantias
máximas aos créditos de terceiros, possibilitando inclusive a Desconstituição da
Personalidade Jurídica de forma parcial, visando a alcançar as cotas dos sócios que lesaram
terceiros de boa-fé. Alguns juristas veem a impossibilidade de aplicação da Desconstituição
da Personalidade Jurídica, por causar um tumulto muito grande e abrir uma ferida no instituto
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da Pessoa Jurídica capaz de desacreditar as relações empresariais no país, não sendo esse
entendimento do pesquisador.
A moralização da Personalidade Jurídica dentro do ordenamento jurídico brasileiro
começa com a formação da sociedade com pessoas capazes e honestas. A sociedade
empresarial é aberta, as pessoas passam a produzir dentro de princípios de boa fé, cumprindo
seus compromissos, o que as tornam respeitáveis dentro das relações empresariais e a
consequência é, naturalmente, o progresso.
É nesse contexto que o legislador vê o Direito Empresarial brasileiro, com credibilidade
capaz de sedimentar as relações e abrir a certeza de que o crédito, não importando a sua
natureza, se de consumo, se fiscal ou trabalhista, será honrado, seguindo um caminho que vai
da responsabilidade da sociedade empresarial, passa pela Desconsideração da Personalidade
Jurídica ,e se for necessário, atinge a Desconstituição da Personalidade Jurídica na forma
preceituada pelo artigo 1.026 do Código Civil Brasileiro.
As garantias do trabalhador inseridas na Constituição de1988 não surgiram somente
com a sua promulgação, foram objetos de incansáveis lutas operárias e movimentos sindicais,
passaram da escravidão à semiescravidão e hoje ainda lutam contra a opressão do sistema
capitalista que somente visa ao lucro exacerbado. Os direitos humanos desaguaram no
ordenamento jurídico pátrio como uma forma de proteção ao hipossuficiente,
consubstanciando como direitos fundamentais, tendo como suporte maior a dignidade da
pessoa humana.
Deve-se levar em consideração para essa dissertação que a dignidade da pessoa humana
é suporte elementar para a aplicação de qualquer dispositivo que vise a garantir os direitos do
trabalhador, principalmente quando essa verba tiver cunho alimentar. Não há
desenvolvimento social quando o trabalho desenvolvido por um trabalhador não lhe for
recompensado. Não se vive mais em um regime de escravidão, muito embora uma parte
minoritária do empresariado brasileiro, aqueles que se escondem por baixo de véu da pessoa
jurídica, pense dessa forma.
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