desafios para a atividade de inteligência no século xxi (2004)

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PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO E ESTUDOS INSTITUCIONAIS Brasília Setembro - 2004 III ENCONTRO DE ESTUDOS DESAFIOS PARA A ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA NO SÉCULO XXI

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Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI (2004)Autor: Armando Amorim Ferreira VidigalSecretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais / GSI / PR

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PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICAGABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL

SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO E ESTUDOS INSTITUCIONAIS

BrasíliaSetembro - 2004

III ENCONTRO DE ESTUDOS

DESAFIOS PARA A ATIVIDADE DEINTELIGÊNCIA NO SÉCULO XXI

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REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASILPresidente: Luiz Inácio Lula da Silva

GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONALMinistro: Jorge Armando Felix

SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO E ESTUDOS INSTITUCIONAISSecretário: José Alberto Cunha Couto

Edição: Secretaria de Acompanhamento e Estudos InstitucionaisEndereço para correspondência:Praça dos Três PoderesPalácio do Planalto, 4° andar, sala 130Brasília - DF CEP 70150 - 900Telefone: (61) 3411 1374Fax: (61) 3411 1297E-mail: [email protected]

Criação e editoração eletrônica: CT Comunicação LtdaImpressão: Santa Clara Editora - Produção de Livros Ltda A presente publicação expressa a opinião dos autores dos textos e não reflete necessariamente a posição do Gabinete de Segurança Institucional.

E56 Encontro de Estudos: Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI (Brasília : 3. : 2004 ). III Encontro de Estudos: Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI. Brasília: Gabinete de Segurança Institucional; Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais, 2004.153 p.

I. Inteligência. II. Inteligência - controle. III. Agência Brasileira de Inteligência. IV. Segurança Nacional - Brasil. V. Democracia. CDD - 327.12

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

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IInteligência e Interesses Nacionais ................................................. 05 Armando Amorim Ferreira Vidigal

IIA Importância da Inteligência no Processo Decisório ................. 51 Jorge da Silva Bessa

IIIPerspectivas para a Inteligência Externa do Brasil ....................... 73 Alexandre Martchenko

IVSíntese do III Encontro de Estudos ................................................... 99

Sumário

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INTELIGÊNCIA E INTERESSES NACIONAIS

Armando Amorim Ferreira Vidigal

Vice-Almirante (Reformado), membro do Centro de Estudos Estratégicos e Políticos da Escola de Guerra Naval e do Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP.

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As relações internacionais e a competitividade entre as na-ções são importantes na definição das áreas de atuação da Inteli-gência. Este é o ponto de partida, portanto, para o nosso estudo. O fim da Segunda Guerra Mundial (2ª GM) e logo o iní-cio da Guerra Fria marcam a predominância de uma perspectiva nas relações internacionais, dita realista, que veio substituir a perspectiva liberal vigente até o início da 2ª GM, que herdara do projeto iluminista a fé quase absoluta na razão humana, elemento essencial para as transformações que imaginavam indispensáveis na área social.1

A teoria realista pressupõe o caráter permanentemente anárquico do sistema internacional, com os Estados condenados a uma condição de insegurança constante pela falta de qualquer autoridade ou poder coercitivo capaz de obrigá-los ao cumpri-mento de certas regras de convivência como, por exemplo, a que torna ilegítimo o uso da força para a solução dos conflitos inter-Estados. O fracasso da Liga das Nações em impedir a eclosão da 2ª GM – apesar do Pacto Brian-Kellog, que condenava a guerra como instrumento da política, ter sido assinado por quase todos os países que se envolveriam no conflito – contribuiu para reforçar a teoria realista em detrimento da liberal. Os princípios realistas influenciaram os estudos de segu-rança porque, num ambiente de tanta insegurança, os Estados procurariam, pelo menos, se proteger das ameaças percebidas, reais e imaginárias, mas, muitas vezes, iriam além, procurando aumentar a sua influência e poder no sistema internacional.

1 As considerações que se seguem sobre as vertentes tradicional, abrangente e crítica baseiam-se no trabalho A Contribuição da Escola de Copenhague aos Estudos de Segurança Internacional, de Grace Tanno.

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A vertente tradicional, na área da segurança internacional, incorpora as premissas teóricas realistas, restringindo seus estudos praticamente às questões militares e mantendo o Estado como o objeto básico da análise. As limitações óbvias desta vertente levaram ao surgimento da vertente abrangente (do inglês widener) que, embora mantendo o Estado no papel central do sistema – ela ainda é estadocêntrica –, sustenta que a análise deve incorporar não só as ameaças mili-tares, como as oriundas das áreas política, econômica, ambiental e societal. Esta é a posição da Escola de Copenhague, surgida em 1985, da qual o grande arquiteto é Barry Buzan. A crítica de Buzan deixa clara a posição da Escola: “Estados eram vistos como presos a uma luta de poder, e a segurança era facilmente vista como uma derivada do poder, especialmente do poder militar”.2

Como, para Buzan, a “força” do Estado é diretamente pro-porcional ao seu nível de coesão político-social – a qualidade da dinâmica entre esses elementos determina a condição do Estado forte ou Estado fraco – foi possível à Escola analisar a influência das variáveis domésticas na conformação dos ambientes interna-cionais de segurança; acontecimentos a nível doméstico ajudariam a explicar mudanças no sistema internacional. A principal crítica à Escola de Copenhague veio da ver-tente crítica, associada à Escola de Frankfurt, que considera que as pesquisas de segurança devem colaborar para o permanente desenvolvimento da espécie humana e, em conseqüência, outros valores devem ser priorizados, além da segurança, como a liber-

2 Citado em A Contribuição da Escola de Copenhague aos Estudos de Segurança Internacional, op.cit.

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dade e a fraternidade. A segurança pessoal seria mais importante do que a do Estado. Esta vertente tem uma forte tendência liberal e internacionalista. Qualquer que seja a visão adotada para os princípios que regem as relações internacionais – a tradicionalista, a abrangente ou a crítica – o papel da Inteligência é a avaliação das ameaças à segurança, embora o significado deste termo comporte diferentes interpretações, e ao desenvolvimento nacionais. Acreditamos que a visão da Escola de Copenhague, temperada em parte pelas críticas da Escola de Frankfurt, é um bom ponto de partida para a definição das áreas de atuação da Inteligência. Assim sendo, a área de atuação da Inteligência é quase ili-mitada, tanto no campo interno como no externo, sendo necessária delimitá-la em função de diversas variáveis: as ameaças percebidas, o nível de coesão social existente, o grau de presença internacional pretendido, os recursos disponíveis para a área e muitas outras. A atuação dos órgãos de Inteligência no campo interno é absolutamente imprescindível, e independe do regime de governo, autoritário ou democrático. Os movimentos sociais, de qualquer tendência, mas especialmente os que atuam muitas vezes em des-compasso com a lei, devem ser acompanhados pelos serviços de Inteligência de modo a permitir a ação preventiva do Estado. O fato de que o Estado autoritário possa usar o seu Serviço de Inteligência para perseguir grupos políticos que se opõem aos interesses de governo, não deve coibir a ação do Estado Democrático de Direito de agir sempre que pessoas ou grupos atuem contra os interesses do Estado, identificados pelo estatuto legal. Movimentos sociais, por mais legítimos que sejam, não podem fugir a esta regra. No Brasil, cabe à Política Nacional de Inteligência estabe-lecer os parâmetros de atuação dos órgãos de Inteligência.

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Quando da instituição do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) e da criação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), em 19993, ficou claro que o Sistema Brasileiro de Inteligência está fundamentado na vertente abrangente, mas tendo levado em conta a vertente crítica: as atividades da Agência devem estar “voltadas para a defesa do Estado Democrático de Direito, da sociedade, da eficácia do poder público e da soberania nacional”.4 Não é apenas o Estado o objeto de preocupação do serviço mas, também, a so-ciedade. É digno de registro que as atividades da Agência devem estar voltadas para “a defesa da eficácia do poder público”, o que parece uma preocupação específica com a corrupção dentro do sistema público, já que o papel da Inteligência não deve ser a avaliação da competência administrativa de qualquer órgão do Governo. Há um outro ângulo que deve ser explorado para a definição das áreas de atuação dos serviços de Inteligência. É incontestável que o mundo está mais interligado. A efici-ência na movimentação de bens e produtos e a transmissão eletrô-nica de informações e de dinheiro criaram um ambiente propício à proliferação de atividades transnacionais – legais ou ilegais. O crime organizado, em especial o tráfico de drogas e o contrabando de armas, as atividades financeiras ilegais, entre as quais a lavagem de dinheiro, são objetos da preocupação dos go-vernos e representam um desafio para os Serviços de Inteligência de qualquer país. Incontestavelmente, um eficaz Serviço de Inte-

3 Lei n° 9.883, de 07 de dezembro de 1999. O Sisbin foi regulamentado, inicialmente, pelo Decreto n° 4.376, de 13 de setembro de 2002, e depois pelo Decreto nº 4.872, de 06 de novembro de 2003.4 Agência Brasileira de Inteligência (Abin), www.abin.gov.br.

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ligência, capaz de prover as informações necessárias, é a melhor arma para o combate ao crime organizado.

Depois dos ataques terroristas ao World Trade Center e ao Pentágono um outro problema veio se somar ao do crime organi-zado: o terrorismo. Embora o Brasil não seja um alvo preferencial do terrorismo internacional, tem a responsabilidade de proteger em seu território os bens e os nacionais dos demais países, bem como de impedir que propriedade nacional – embarcações, aeronaves, contêineres, etc – possam ser usados como veículos para ataque ao território dos países-alvo. Também neste caso, as informações são absolutamente indispensáveis, sendo, sem sombra de dúvida, o meio mais eficaz de combate ao terrorismo quando associadas às medidas políticas corretas.

Sendo esses crimes transnacionais, a comunidade interna-cional tem procurado – por meio de acordos bi ou multinacionais – estabelecer regras comuns para o trato dessas questões. Estão nessa categoria os acordos para o combate ao tráfico de drogas, à lavagem de dinheiro, à pirataria (no que diz respeito ao direito de patentes e direitos autorais), etc. Com relação ao terrorismo, algumas medidas têm sido tomadas coletivamente ou, de forma individual, por um Estado que se sinta particularmente ameaça-do. Assim, em dezembro de 2002, a Organização Marítima In-ternacional (IMO), por pressão dos EUA e outros países, adotou emendas à Convenção Marítima Internacional para Salvaguarda da Vida Humana no Mar – Convenção Solas – que, inter alia, introduziram o Código Internacional para a Proteção de Navios e Facilidades Portuárias (Código ISPS), com o propósito de proteger embarcações, portos e terminais de ataques terroristas e, conco-mitantemente, impedir que as embarcações e suas cargas possam

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servir de veículo para atos terroristas. O Código está em vigor desde 1° de julho de 2004.5

De forma unilateral, os EUA criaram a Lei do Bioterrorismo, que obriga todos os exportadores de alimentos para aquele país, sejam destinados ao uso humano ou animal, a identificar todas as partes in-tervenientes no processo de produção e comercialização do produto. Ainda nos EUA, foi criada a Iniciativa para a Proteção de Contêineres (CSI) que implica a realização de um acordo bilateral entre os EUA e qualquer outro país, para permitir que um contêiner, uma vez fiscalizado por americanos no porto de origem, tenha liberação mais fácil e mais rápida no porto americano de destino. A atuação em conjunto dos Serviços de Inteligência de países envolvidos no combate ao crime organizado ou ao terrorismo é essencial para o sucesso dessas ações. É importante, porém, que na relação entre países de poderes nacionais muito díspares, a cooperação não se faça em termos da subordinação do mais fraco, com o comprometimento de sua soberania. A transnacionalização do crime organizado e do terrorismo cria um outro problema: o relacionamento entre os órgãos voltados para o

5 Como em português – aliás, em quase todas as línguas latinas – só existe uma palavra para traduzir secu-rity e safety – segurança – por decisão unânime do Grupo de Trabalho instituído pela Autoridade Marítima para a aplicação do Código Isps aos navios, o security foi traduzido por proteção para que, a bordo dos navios, não fosse confundido com a segurança. Por exemplo, a bordo, desde a instituição do Código ISM – para gerenciamento da segurança nos navios – existe o oficial de segurança do navio (safety); o novo código Isps exige a criação de um oficial de security que, para que não fosse confundido com o de safety, passa a ser o oficial de proteção do navio. Entretanto, o Grupo de Trabalho instituído para a aplicação do Código Isps aos portos e terminais, por não ter o mesmo problema, está usando a palavra “segurança” para traduzir o safety, o que vai trazer alguns problemas futuros na inevitável interface entre navios e portos. A padronização parece indispensável e ela deveria ser feita padronizando-se, no caso da aplicação do Código Isps, a tradução de security por proteção. A ressalva é feita porque, em outras situações, já há expressões padronizadas – como é o caso de Segurança Nacional que traduz o National Security – que dificilmente serão modificadas.

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serviço de inteligência e os órgãos responsáveis pela repressão ao crime, órgãos que exercem o direito de polícia. As áreas de interesse dessas duas comunidades sobrepõem-se crescentemente: como o crime organizado e o terrorismo constituem-se em ameaças à segurança nacional são, cada vez mais, objeto de interesse dos Serviços de Inteligência. O problema surge porque as duas comunidades têm regras e objetivos diferentes, bem como dispõem de fontes de informação e usam métodos diferenciados e, ainda, têm padrões diferentes de avaliação das informações que coletam. Em geral, as Agências de Inteligência buscam informações para os for-muladores da política do país enquanto os investigadores dos órgãos po-liciais procuram informações que permitam a montagem de um processo judicial que leve ao julgamento e punição dos culpados. A Comunidade de Inteligência colhe enorme quantidade de informações com base num conjunto complexo de necessidades e exigências estabelecidas pelos formuladores de políticas e estas informações, freqüentemente, são pro-curadas simplesmente para esclarecer um assunto e não, necessariamente, como etapa inicial de uma ação; diferentemente da Inteligência colhida pelos órgãos de repressão ao crime, muitos dados obtidos pelos Serviços de Inteligência são de confiabilidade questionável e não são destinados ao conhecimento público – a informação coletada é revista e avaliada por analistas que definirão a sua acuracidade e confiabilidade.6

Esta interferência entre os órgãos de Inteligência e os órgãos de repressão ao crime têm sido crescente nos EUA, envolvendo a Central Intelligency Agency (CIA) e o Federal Bureau of Investigation (FBI), e o critério para evitar as dificuldades criadas é dar prioridade para co-ordenação ao órgão voltado para o exterior sempre que o foco da ação

6 “IC-21: The Intelligence Community in the 21st Century, part XIII, Intelligence and Law Enforcement.

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está fora do país e, pelo contrário, se o foco estiver no próprio país, a coordenação ficará por conta dos órgãos aos quais compete à repressão ao crime. O combate ao crime organizado, ainda quando restrito ao terri-tório nacional, pode trazer problemas entre as agências de Inteligência e os órgãos policiais, pelas mesmas razões já apontadas em relação ao crime transnacional. Impõe-se aqui uma clara definição das respectivas responsabilidades e das formas de cooperação entre as duas comunida-des. No Brasil, eventuais problemas poderiam ocorrer entre a Abin e a Polícia Federal.

O SISTEmA DEmOCRáTICO E A INTELIGÊNCIA

Ao fim do ciclo dos governos militares no Brasil, uma parte da sociedade, a mais atuante na oposição durante aquele período, fez uma associação indevida entre a existência de um Serviço de Inteligência e o autoritarismo: alguns por ignorância, outros por má fé ou sob a influência de uma ideologia, repudiaram os Serviços de Inteligência como incompatíveis com o sistema democrático de governo. A meu ver, houve – e em setores restritos ainda há – uma certa confusão entre o papel dos serviços de Inteligência e o dos serviços de repressão aos ilícitos identificados. Na seção anterior mostramos as características diferentes das duas comunidades. Para qualquer governo, é essencial a posse de informações que lhe permitam, no campo interno, identificar a existência de problemas que possam vir perturbar a ordem pública, a paz social ou prejudicar a economia, e, no campo externo, identificar as ameaças que possam se contrapor aos interesses nacionais.

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Cabe ainda ao governo se proteger contra os serviços de Inteligência estrangeiros – não apenas governamentais – não só no que se refere a assuntos militares mas, também, em relação à matéria não-militar, como, por exemplo, segredos industriais: a Contra-Inte-ligência. O Brasil vem resistindo a um tipo de inspeção da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) – ou assim insinuam certos elementos da mídia internacional – não por se rebelar contra as dis-posições do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), mas para proteger o segredo industrial das suas centrífugas que podem vir a ser um importante fator na entrada do País no rico mercado internacio-nal de urânio enriquecido (a razão, entretanto, pode ser unicamente política, isto é, forçar a adesão do Brasil ao Protocolo do TNP, mais exigente em termos de visitas do que o Tratado). Os EUA – indubitavelmente de uma enorme tradição demo-crática – dedicam anualmente no orçamento US$ 40 bilhões para as Agências de Inteligência, o que demonstra a importância que atribuem a esse serviço.7

Num estudo de 1996, feito pelos membros do Comitê Perma-nente do Congresso dos Estados Unidos sobre Inteligência, a impor-tância dos serviços de Inteligência, mesmo após o fim das tensões geradas pela Guerra Fria, é destacada:

“Os Estados Unidos continuam a precisar de uma Comunidade de Inteligência (IC) forte, altamente eficaz e crescentemente flexível. Esta necessidade não diminuiu com o fim da Guerra Fria. Na verdade,

7 “9/11 Panel Is Said To Urge New Post for Intelligence”, Philip Shenon.

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a atual situação internacional é, de muitas maneiras, mais complexa e mais difícil de lidar do que era du-rante a relativamente estável bipolaridade da Guerra Fria. Portanto, embora julguemos a nossa segurança nacional menos ameaçada, as exigências de inteligên-cia persistem. O foco da nossa segurança nacional mudou, mas a missão da comunidade de inteligência não: prover, na hora certa, informações confiáveis aos formuladores civis e militares de políticas; apoiar as operações militares e outras – inclusive ações encobertas – conforme determinado por pessoal le-galmente competente para isso”. [trad. nossa]8

Esta colocação foi feita bem antes dos atentados de 11 de setem-bro de 2001 e, embora defina as preocupações de uma superpotência, ela é válida para qualquer país, em qualquer época, ainda que, em alguns casos, com menor ênfase no campo externo. Para um país como o Brasil, que procura assumir uma posição de relevo no campo externo, cresce a importância de Sistemas de Inteligência e de Contra-Inteligência efica-zes. Apesar das considerações feitas sobre o Estado democrático e os Serviços de Inteligência, não julgamos que o emprego da Inteligência não comporte riscos, principalmente quando o Estado democrático enfrenta sistemas totalitários – no passado recente o fascismo e o comunismo – ou

8 “IC-21: The Intelligence Community in the 21st Century. 9 The CIA and the Cult of Intelligence, Victor Marchetti & John D. Marks, Introdução de Marchetti. Este é o primeiro livro que levou os EUA a apelarem à Justiça a fim de levá-lo à censura pela CIA antes de sua publicação. Todas as partes que, depois de longa batalha judicial, foram vetadas, foram deixadas em branco no texto.

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está engajado numa luta de morte contra algo como o terrorismo, não relacionado especificamente a um determinado Estado nacional. Entre os perigos, há o de imitar os métodos do inimigo e, portanto, colocar em risco a própria democracia que se está pretendendo defender.9

A discussão sobre o Estado Democrático e os Serviços de In-teligência leva, naturalmente, à questão das relações entre a Ética e a Inteligência. Num governo democrático é extremamente importante assegurar a manutenção de um padrão ético pelos órgãos de Inteligência. Esta é, indiscutivelmente, uma questão difícil mas inarredável numa discussão pública. O primeiro debate que se faz necessário diz respeito às relações entre o governo e os órgãos de Inteligência, estes totalmente dependen-tes daquele. Serem independentes na dependência – no sentido de que os serviços de Inteligência devem estar voltados para os interesses do Estado e não necessariamente do governo – eis o grande desafio. O uso pelo governo dos Serviços de Inteligência para investigar e perseguir desafetos políticos, como parte de uma luta pelo poder, é inaceitável sob o ponto de vista ético. Sendo o objetivo dos Serviços de Inteligência a segurança nacional e o bem público, o seu emprego para a manutenção do poder não se justifica, por não se coadunar com o sistema democrático de governo. O caso Watergate, que acabou por levar o Presidente Nixon à renúncia, é um exemplo recente do uso da Inteligência com propósitos político-partidários. O espectro das possibilidades de ingerência indevida do governo sobre a Comunidade de Informações é, porém, ainda mais amplo. As justificativas dos EUA para irem à guerra contra o Iraque, e as do Reino Unido para apoiá-los, basearam-se em informações que atribuíam ao Iraque a posse de armas químicas e biológicas e o desenvolvimento ace-

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lerado de armas nucleares, bem como ligações estreitas com o terrorismo internacional – especificamente a Al Qaeda – responsável pelos atentados contra os EUA. Posteriormente, todas essas informações mostraram-se infundadas, não se encontrando as armas de destruição em massa e comprovando-se a inexistência de qualquer ligação de Saddam Hussein com Osama Bin Laden. O relatório apresentado pelo ex-chefe do grupo de inspeção ame-ricano relativo a armas de destruição em massa no Iraque, David A. Kay, da CIA, critica os Serviços de Inteligência pelos erros cometidos.10

Uma pergunta, porém, se impõe: erro grosseiro dos sistemas de inteligência ou uma gigantesca fraude dos governos americano e britânico para justificar uma agressão militar cuja verdadeira causa era o petróleo? A Comissão do Congresso americano que investigou as causas do 11 de setembro de 2001, constituída por democratas e republicanos em igual número, encontrou “profundas falhas institucionais” que criaram as condições para o ataque terrorista, mas como foram encontradas falhas tanto durante o Governo Clinton como o Governo de W. Bush, não foram apontados os responsáveis, o que, especialmente num ano eleitoral, foi conveniente para os dois partidos. Com isso, deixaram de ser apurados os erros, esses de exclusiva responsabilidade de Bush, que levaram os EUA à guerra contra o Iraque.11

Nem todos concordaram que as agências americanas e britânicas tenham sido incompetentes a ponto de alimentar a Casa Branca e Downing Street com tantas e reiteradas informações falsas. Acusar os órgãos de In-

10 “Ex-Inspector Says C.I.A. Missed Disarray in Iraq Arms Program”, James Risen e, Ex-Arms Monitor Urges an Inquiry on Iraqui Threat, Richard W. Stevenson e Tom Shanker.11 “Choque, mas não surpresa”, O Globo.

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teligência é muito conveniente aos interesses eleitorais de Bush e de Blair que alegam terem agido de boa fé, não tendo motivos para desconfiar dos dados que lhes foram apresentados. A atribuição da responsabilidade a su-bordinados protegidos pelo anonimato é altamente conveniente, mas não é totalmente convincente. Alguns importantes jornalistas americanos, como Paul Krugman e Nicholas D. Kristof, acusam o Governo Bush de manipular informações sobre as armas de destruição em massa do Iraque, encomendando relatórios – a acusação é feita também contra Blair – que dessem apoio à decisão já tomada de atacar o Iraque.12

Fontes dos Serviços de Inteligência dos EUA acusaram o vice-presidente Dick Cheney e seus assessores de terem feito várias visitas à CIA para questionar os analistas sobre o programa de armas do Iraque, constrangendo-os quando os relatórios não concordavam com os pontos de vista oficiais. Antigos Agentes da Inteligência declararam ter sido continu-amente pressionados, não só por Cheney, mas também por Paul Wolfowitz, Subsecretário de Defesa, e George J. Tenet, Diretor da CIA, para produzirem relatórios que ajudassem o governo a mostrar a necessidade urgente de um ataque preemptivo ao Iraque.13

Parece difícil negar que tanto o Governo americano quanto o britâ-nico pressionaram seus órgãos de Inteligência nesse sentido ou, pelo menos, distorceram os relatórios, interpretando-os de acordo com suas conveni-ências: “A filosofia central do trabalho de inteligência – a de que deve ser resguardado de considerações políticas – foi profundamente ferida”. 14

12 “O procedimento padrão do governo Bush” e “Negação e Fraude”, de Paul Krugman, e “Pentágono torna submissas agências de inteligência”, Nicholas D. Kristof.13 “As visitas de Cheney à CIA”, Walter Pincus e Dana Priest.14 Kristof, op.cit.

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A legislação brasileira estabelece que os conhecimentos ad-quiridos pelos Serviços de Inteligência, em momento algum, poderão ter utilização de caráter pessoal ou em favor de grupos, diversa de seu fim específico.15

Há outros aspectos da ética que devem ser discutidos. O primeiro deles diz respeito às operações encobertas dos Servi-ços de Inteligência. Um ex-funcionário da CIA que trabalhou na Agência por 14 anos, Victor Marchetti, pergunta:

Deveria a CIA funcionar da maneira inicialmente proposta – como uma agência coordenadora respon-sável pela coleta, avaliação e preparo das informações oriundas do estrangeiro para o uso dos formuladores de políticas governamentais – ou deverá ser permi-tido que ela funcione, como tem feito durante anos – como um braço operacional, um instrumento da Presidência e de um punhado de homens poderosos, totalmente independente do acompanhamento públi-co, cuja principal finalidade é interferir nos assuntos domésticos de outros países (e talvez do nosso) por meio de agentes infiltrados, propaganda, intervenções paramilitares encobertas e de uma quantidade de outros truques sujos?16

Para o autor, essas operações clandestinas ilegais e antiéticas, que

15 Agência Brasileira de Inteligência, op. cit.16 Marchetti & Marks, op. cit., p. 11-2.

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são realizadas a pretexto das necessidades da Inteligência e justificadas pelos governos de forma dúbia, são questionáveis, tanto em termos morais como de benefícios práticos para a nação.17 Marchetti e Marks concluem: “... no longo prazo, a não interferência e a correção de atitudes irão aumentar a posição e o prestígio internacional...”18

Sem dúvida, este é um aspecto ético de grande complexidade, que põe em dúvida uma parte substancial das tarefas da Inteligência. Segurança e Ética são conceitos conciliáveis? Talvez o velho ditado britâ-nico de que “o serviço secreto é um jogo sujo demais para ser executado por outra pessoa que não um gentleman”, embora não respondendo à pergunta, exponha o dilema. A interferência de um Estado nos negócios domésticos de outro – para conseguir controlar ou influenciar o governo desse país, muitas vezes contra a vontade majoritária da sociedade – é, inegavelmente, condenável sob o ponto de vista da Ética, mas dificilmente um país, que vê nessa interferência um benefício substancial para si, deixará de atuar nesse sentido. Mormente se é poderoso. O caso dos EUA é esclarecedor: o papel que eles se auto-im-puseram de árbitros das mudanças sociais, econômicas e políticas dos países emergentes da Ásia, África e América Latina os têm levado a usar quaisquer métodos clandestinos que tenham à sua disposição.19

A respeito diz o já citado Marchetti:

[A CIA] engaja-se em espionagem e contra-espio-nagem, em propagando e desinformação (a circu-

17 Ibidem, p. 11.18 Ibidem, p. 373.19 Ibidem, p. 4.

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lação deliberada de falsa informação), em guerra psicológica e atividades paramilitares. Ela penetra e manipula instituições privadas e crias as suas próprias organizações (chamadas“proprietaries”) quando necessário. Recruta agentes e mercenários; suborna e chantageia servidores estrangeiros para executarem as suas tarefas mais detestáveis.Faz qualquer coisa que seja necessária para atingir seus objetivos, sem qualquer consideração ética ou das conseqüências morais de suas ações. Como o braço secreto da política externa americana, a mais poderosa arma da CIA é a intervenção encoberta nos negócios internos dos países que o governo dos EUA deseja controlar ou influenciar.[trad. nossa]20

Hoje, sob a justificativa do combate ao terrorismo as ações en-cobertas ganharam novo ímpeto, o que sugere, especialmente para os países emergentes, a importância de um eficaz serviço de Contra-Inteli-gência. Um outro desses aspectos envolvendo a Ética, diz respeito à coleta de informações. Uma distinção deve ser imediatamente feita: a coleta no campo interno e no campo externo. No que concerne ao campo interno, julgo que a Ética implica o estrito cumprimento da legislação nacional pertinente. Impõe-se total observância dos direitos civis e dos direitos humanos: escuta telefônica,

20 Ibidem, p. 5. Proprietaries, de proprietary corporation, são instituições ostensivamente privadas e negó-cios que são de fato financiados e controlados pela CIA (p. 534).

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quebra de sigilos bancário, fiscal e postal, por exemplo, só poderão ser feitas com autorização judicial e os resultados, enquanto inconclusivos, não poderão ser divulgados; interrogatórios deverão ser conduzidos sem violência física ou mental – acredito que seguir o estabelecido na Convenção de Genebra para prisioneiros de guerra é um parâmetro útil para qualquer situação. No caso brasileiro, a legislação existente é categórica a respeito, especificando que as Atividades de Inteligência serão desenvolvidas, no que se refere aos limites de sua extensão e ao uso de técnicas e meios sigilosos, com irrestrita observância dos direitos e garantias individuais, fidelidade às instituições e aos princípios éticos que regem os interesses e a segurança do Estado. A infiltração de agentes em organizações ou grupos que devem ser acompanhados – aqui há a sobreposição de interesses entre a Comuni-dade de Inteligência e a de repressão ao ilícito penal – e o agenciamento de informantes, que prestam serviço em troca de recompensa financeira ou de outra natureza, são procedimentos valiosos que não podem ser ignorados pela Inteligência, passíveis ainda de um tratamento ético. A atuação de agentes fora do país exige outro tipo de considera-ções. Aqui só trataremos do que diz respeito à busca de informações e não de agentes encarregados de sabotagem, assassinato seletivo e outros atos agressivos, entre os quais, matéria já aqui tratada, a interferência nos negócios domésticos de outro país, com o objetivo de influenciar ou controlar o seu governo, embora esses tipos de operações venham crescendo, principalmente as mais violentas. Além de Israel, os EUA vêm empregando assassinato e sabo-tagem: a criação pela CIA do Grupo de Operações Especiais (SOG), constituído por mercenários contratados para o assassinato de terroristas, para a destruição de instalações militares, inclusive nucleares, e outras atividades não-convencionais, comprova a difusão do método. A prova

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de que o Grupo está ativo é a morte em uma emboscada, nas cercanias de Shkin, no Afeganistão, de dois veteranos das forças especiais ameri-canas, engajados, na qualidade de mercenários, numa operação do SOG não especificada; recentemente, Bush renovou a autorização presidencial para ações desse gênero.21 Também a China demonstra uma preocupação grande com este tipo de operação. Eles identificam três tipos de operações de guerra: as operações militares de combate (as operações de guerra convencional), as operações militares de não-combate (o equivalente aproximado das “operações militares que não-guerra” dos americanos e ao “emprego político do poder militar” brasileiro) e as operações não-militares de não-combate, algo como assassinato, sabotagem e outras ações, como ação de hackers, etc.22

Todo o pessoal diplomático, em geral, procura obter informações do interesse do seu país de forma ostensiva, através da leitura de jornais e revistas, da conversação com pessoas bem informadas e, em alguns casos, solicitando as informações a membros do governo do país – é um procedimento comum aos adidos militares quando as informações não são sigilosas.

21 James Risen, op. cit., Stevenson & Shanker, op. cit. e Modern modes of assassination, Daniel Schorr.Em 1976, o Presidente Ford assinou uma ordem executiva dizendo que, ninguém trabalhando para os EUA “engajar-se-á ou conspirará em assassinato”, em decorrência de uma investigação do Senado que apontou a ocorrência de seis tentativas de assassinato de Fidel Castro e a existência de planos em diversos estágios para o assassinato de líderes de esquerda em países do Terceiro Mundo: Lumumba, no Congo; Duvalier, no Haiti; Sukarno, na Indonésia e Trujillo, na República Dominicana, entre outros.Ao longo dos anos, a proibição foi sofrendo “interpretações” como a de que líderes envolvidos em ações de terrorismo não estariam incluídos na proibição: Reagan autorizou o bombardeio da residência de Kadafi, em 1986, e Bush (pai) o bombardeio do palácio de Saddam, em 1991. Em 1998, Clinton, após um fracas-sado ataque com mísseis a um campo no Afeganistão contra Osama Bin-Laden, autorizou o uso de “força letal” contra a Al-Qaeda. O atual presidente Bush apresentou à CIA uma lista de cerca de duas dúzias de terroristas aos quais não se aplicará a proibição de assassinato. Em novembro de 2002, mísseis Hellfire, lançados por um avião teledirigido Predator, mataram um líder da Al-Qaeda quando ele estava dirigindo numa faixa de deserto no Iêmen. Cinco outros pessoas no carro foram mortas, talvez inocentes.22 Unrestricted Warfare, Qiao Liang & Wang Xiangsui

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O tenente-general Reinhard Gehlen, um dos primeiros tecnocratas da informação, que serviu a Hindenburg, a Hitler, à CIA e, finalmente, durante 26 anos, à República Federal da Alemanha como chefe do Ser-viço de Informações anti-soviéticas, dizia com muita propriedade:

Um Chefe de Órgão de Informações deve fazer tudo ao seu alcance para desfazer a heresia de que o serviço secreto só deve se ocupar de fontes secretas e não dar atenção ao material ostensivo, que se encontra livremente à disposição em jornais e livros por todo o mundo.23

Também Marchetti destaca a importância das informações co-letadas através de canais diplomáticos e fontes ostensivas, como jornais e revistas.24

O agente encoberto, que na literatura policial aparece com o “es-pião”, que usa a ação sigilosa para a obtenção de informações, procurando vencer as dificuldades criadas pela contra-inteligência local, representa um dos aspectos das relações internacionais que pouco tem a ver com a Ética, embora suas ações não envolvam – nas nossas considerações restritas apenas à busca de informações – sabotagem, assassinato ou in-terferência nos negócios domésticos de outro país. A ilegalidade de suas operações – segundo o ponto de vista dos espionados – necessariamente não fere os direitos civis ou os direitos humanos das pessoas envolvidas, embora possa envolver suborno e corrupção. Talvez a evolução tecnoló-

23 “O Serviço Secreto”, Reinhard Gehlen, p. 68-69.24 Marchetti & Marks, op. cit. p. 9.

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gica possa contribuir para a eliminação dos procedimentos menos éticos da Inteligência. Sobre essas operações, os comentários de Marchetti e Marks são pertinentes:

Em tal operação encoberta mas não-paramilitar, o agente tende a manter as suas mãos limpas de san-gue, e os seus crimes são do tipo do colarinho branco – conspiração, suborno, corrupção. Seu fracasso ou sua exposição são, em geral, punidos apenas com a sua expulsão do país onde ele está operando. Em última análise, ele está meramente engajado num jogo de cavalheiros. O agente envolvido em ações para-militares, pelo contrário, é um gângster que trabalha com a força, o terror, a violência, ... [trad. nossa]25

No mundo de alta tecnologia atual, o agente secreto tem à sua disposição equipamentos de grande sofisticação que facilitam o cum-primento de suas tarefas: micro-câmeras, aparelhos de escuta de alta sensibilidade, sistemas de comunicação ultrapotentes, etc. Diz Gehlen:

Os progressos científicos nos campos da eletrônica, cibernética e automação tornam necessários novos meios para se obter informações; mas, também, dão ao inimigo novos meios para guardar seus segredos.

25 Marchetti & Marks, op. cit., p. 108-9

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Um verdadeiro arsenal de aparelhagem sofisticada tem sido acrescentado aos instrumentos convencio-nais do passado. Há necessidade de se dedicar uma atenção especial aos novos métodos científicos de busca de informes.26

Há, ainda, uma outra conseqüência do desenvolvimento tec-nológico que não pode ser esquecida: o agente encoberto vai sendo paulatinamente substituído pelo emprego da alta tecnologia – satélites espiões, sistemas de interceptação e escuta de comunicações, localização a laser, etc. No já citado relatório de David Kay, a CIA é severamente criticada por ter se tornado excessivamente dependente desses meios, bem como de espiões estrangeiros, que agem por dinheiro ou por convicção político-ideológica, pouco confiáveis quando comparados aos agentes nacionais.27

A história de espionagem na 2ª GM comprova a pouca confiabi-lidade de espiões estrangeiros – eu diria, de qualquer espião – devido à sua duplicidade, em geral servindo aos dois lados. Parece uma caracte-rística inerente à própria natureza do serviço: a clandestinidade encoraja a amoralidade profissional e daí à duplicidade é um passo apenas. Na vida real, contudo, infelizmente as coisas não são nem tão simples nem tão claras no que concerne à Ética. A legislação, por boa que pareça, está sujeita a inúmeras interpretações ou, se não houver rigoroso controle, pode simplesmente ser ignorada. Se Bush e Blair, no caso do Iraque, mesmo tendo forçado justificativas falsas, agiram não por inte-

26 Gehlen, op.cit., p. 17727 Risen, op. cit., e Stevenson & Shanker, op. cit.

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resses pessoais, mas pelo que consideravam o legítimo interesse de seus países, o seu procedimento poderia ser justificável? Estaria o interesse nacional acima da Ética? É possível dar um tratamento ético às ações encobertas? Quando o valor da informação é muito grande – pode, por exemplo, salvar milhares de vidas, talvez inocentes – o interrogador tem o direito de abusar física ou mentalmente do interrogado, ou, em nome dos direitos humanos, respeitar o interrogado arriscando muitas vidas inocentes? São questões aparentemente difíceis. Cabe aqui uma reflexão de Hannah Arendt:

Somos talvez a primeira geração a adquirir plena consciência das conseqüências fatais de um modo de pensar que nos força a admitir que todos os meios, desde que sejam eficazes, são permissíveis e justifi-cados quando se pretende alcançar alguma coisa que se definiu como um fim.28

A atual política de Ariel Sharon para enfrentar o terrorismo palestino – o uso de “assassinatos seletivos” dos líderes terroristas, as punições impostas aos parentes dos homens-bomba, a construção do muro para separar os dois povos invadindo terra palestina, etc – tem se mostrado, até o momento que escrevo estas linhas, eficaz na redução dos atentados terroristas.29 A questão ética, porém, persiste.

28 “A Condição Humana”, Hannah Arendt.29 No final de agosto, dois ataques terroristas destruíram dois ônibus em Israel, com a morte de dezesseis pessoas. O Hamas responsabilizou-se pelos atentados. Como seria de esperar, a estratégia de Sharon não é a adequada para dar uma solução definitiva ao problema. Só uma paz justa dará fim ao terrorismo palestino.

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A tão decantada afirmação de que “os fins justificam os meios” serve hoje, como sempre, para justificar as maiores violências contra o homem. As ideologias redentoras têm sido responsáveis pelos piores crimes contra a humanidade: as guerras religiosas do passado, o fascismo, o nacional-socialismo alemão, o comunismo e, agora, o terrorismo e o antiterrorismo. A possibilidade de estarmos em erro é, talvez, um antídoto, o melhor, contra a violência. O problema talvez esteja ligado às características do Serviço:

Profundamente incorporada à mentalidade clandesti-na está a crença de que a ética humana e as leis sociais não têm nada a ver com as operações clandestinas ou com os homens que as executam. A profissão da inteligência, devido ao seu arrogante objetivo ‘a segurança nacional’, está livre de todas as restrições morais. Não há necessidade de enfrentar tecnicalida-des legais ou julgamentos quanto ao certo e ao errado. Os fatores determinantes nas operações secretas são totalmente pragmáticos: o trabalho precisa ser feito? Pode ser feito? Pode ser mantido em segredo (ou é plausível o seu desmentido)? [trad. nossa]30

Os exemplos recentes, envolvendo um dos países cuja tradição liberal é indiscutível – os Estados Unidos da América – não são anima-dores.

30 Marchetti & Marks, op. cit., p. 249

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Logo após os atentados de 11 de setembro, numa clara tentativa de dar uma resposta rápida à sociedade, os EUA prenderam 762 suspeitos de en-volvimento com o terrorismo, muitos dos quais presos porque apresentavam alguma irregularidade em relação às leis de imigração. Esses presos, segundo o Inspetor Geral do Ministério da Justiça, foram submetidos a “um padrão de abusos físicos e verbais” – tais como a manutenção das celas iluminadas noite e dia durante meses, transferências com algemas e grilhões, ausência de qualquer acusação formal, negativa de acesso a advogados, etc – numa clara violação dos seus direitos.31 Não havia nenhuma evidência contra a maioria desses presos: eles, simplesmente, estavam irregulares no país. Tanto isso é verdade que, posteriormente, foram apenas deportados. Também nas prisões do Afeganistão, há claras violações dos direi-tos dos presos: num centro secreto de interrogatórios que a CIA montou na base aérea de Bagram, ao norte de Cabul, dois afegãos presos morreram de “traumatismo craniano causado por força bruta”; um outro preso foi morto numa pequena prisão do exército nas imediações de Asadabad, província de Konar, na região leste do país.32

Com relação ao Iraque, a situação é ainda pior. Uma série de fotografias veio a público, evidenciando abusos contra presos na prisão de Abu Ghraib. A comissão de investigações de alto nível do Exército dos EUA, estabelecida para apurar os abusos, concluiu que membros da Inteligência militar tiveram um papel importante, estando envolvidos em, pelo menos, 44 casos de abusos entre julho de 2003 e fevereiro de 2004.33

Muitos desses abusos foram cometidos durante interrogatórios

31 “EUA admitem que guerra ao terror maltratou presos”, Philip Shenon, e “Relatório aponta abusos nos EUA”, ibid.32 “EUA investigam a morte de afegãos”, José Meirelles Passos.33 Abuses at Prison Tied to Officers in Intelligence, Eric Schmitt.

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e tinham o propósito de arrancar informações dos prisioneiros; com re-lação a outros abusos praticados, nem essa desculpa pôde ser alegada: tratava-se apenas de puro sadismo.

O relatório do Exército veio confirmar o de um painel indepen-dente, chefiado por James R. Schlesinger, ex-Secretário de Defesa, no que diz respeito à responsabilidade pelos abusos: esta não foi apenas dos que efetivamente os cometeram mas de toda a cadeia de comando, do Golfo Pérsico até os altos escalões de comando em Washington. Para o senador republicano, da Carolina do Sul, membro do Comitê das Forças Armadas no Senado, Lindsey Graham:

“Quando esses relatórios são vistos em conjunto, há uma clara mensagem de que o sistema falhou de forma generalizada”.34

Também o relatório do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (ICRC) sobre o tratamento, pelas Forças da Coalizão, dos prisioneiros de guerra no Iraque, e outras pessoas protegidas pela Convenção de Genebra, é taxativo:

De acordo com as alegações colhidas pelo ICRC, maus tratos durante interrogatório não eram sistemá-ticos, exceto no caso de pessoas presas em conexão com suspeita de crimes contra a segurança ou que se supunha terem valor para a ‘inteligência’. Nesses ca-sos, pessoas privadas de sua liberdade sob supervisão da Inteligência Militar ficaram sob grande ameaça de serem submetidas a uma variedade de tratamentos duros, que iam desde insultos a ameaças, tanto de

34 Ibidem.

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coerção física como psicológica, e a humilhações, que, em alguns casos, eram equivalentes à tortura, a fim de forçar à cooperação com os seus interroga-dores. [trad. nossa]35

O mais grave problema da violação dos direitos humanos diz respeito aos presos na base americana de Guantánamo, em território cubano. Submetidos a condições desumanas desde o fim da campanha contra o Afeganistão, isolados completamente do mundo exterior, submetidos a maus tratos, privados de qualquer assistência jurídica e sem qualquer acusação formal, esses presos têm recorrido, cada vez com maior freqüência, ao suicídio.36

O governo dos EUA não os reconhece como prisioneiros de guerra e, como não são cidadãos americanos e estão presos fora do território dos EUA, alega-se que eles não têm diretos constitucio-nais:“A qualificação dos elementos da ‘Milícia Talibã’, levados para a Base de Guantánamo, como ‘combatentes ilegais’ (nem terroristas, nem criminosos e nem prisioneiros de guerra) visou a evadir-se às normas da Convenção de Genebra”.37

O PROfISSIONAL DE INTELIGÊNCIA

Pelo que até agora foi dito, não há um Profissional de Inteli-gência, mas uma série de qualificações indispensáveis para o Serviço

35 Report of the International Committee of the Red Cross (Icrc).36 Guantánamo: desespero e desejos de morte, Carlotta Gall e Neil Lewis.37 O Ataque ao Iraque no Contexto do Pós-Modernismo Militar, Marcos Henrique Camilo Côrtes.

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de Inteligência, que terão de ser atendidas por diferentes profissionais, com características e formações diversificadas. Sem dúvida, o analista de informações é o que exige a maior gama de conhecimentos para o exercício de sua tarefa. Conhecimentos de ciência política, sociologia, psicologia, história, etc – em síntese, uma sólida cultura geral – parecem requisitos indispensáveis. É neces-sário aliar uma grande capacidade de leitura à reflexão. O analista, na grande maioria das vezes, não é formado pelos Órgãos de Inteligência; ele é recrutado já com as qualificações essenciais, só necessitando ser orientado paras as peculiaridades do Serviço de Inteligência e sobre os parâmetros estabelecidos pela Política Nacional de Inteligência. Para o mestre Gehlen:

O conhecimento não cai do céu como um maná. Ele é recomposto, peça por peça, a partir de um grande número de fatos individuais, que têm de ser reunidos e relacionados mutuamente, com base em sólido conhecimento geral e absoluta percepção da própria situação e da de outros aliados, bem como da dos inimigos reais e em potencial.38

O trabalho de análise é um processo contínuo ao longo do tempo e sistemático para garantir que todas as informações tenham sido con-sideradas:

A ausência de um processo de análise contínuo e sistemático, que trabalhe em conjunto com todas

38 Gehlen, op. cit., p. 26

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as fontes de informes, pode conduzir a que alguns itens possam ser grosseiramente superestimados e outros completamente ignorados.39

Tendo em vista a amplitude e diversidade das matérias do interesse da Segurança Nacional, conforme já apontado, seria alta-mente recomendável, no meu entender, que as análises de informa-ções fossem da responsabilidade de um grupo multidisciplinar, com especialistas nas áreas política, econômica, societal, ambiental e militar. Já a coleta de informações exige outro tipo de habilidades que, em boa parte, dependem da forma como a informação vai ser buscada: no exterior, ou no próprio país, através do exame de documentos, de entrevistas pessoais, por infiltração nos órgãos ou grupos a serem investigados, através de informantes, do interrogatório de presos, de maneira ostensiva ou encoberta, etc. A definição das qualificações dos coletores de informações será dada em função das necessidades identificadas. Cursos específicos – que incluirão inclusive técnicas relativas aos métodos que serão utilizados pelos coletores e prática de equipamentos disponíveis para a coleta de informações – são indis-pensáveis. É importante que os selecionados conheçam os parâmetros éticos fixados pela agência para a sua atuação. Além de analistas e coletores de informações, outros elementos são necessários numa Agência de Inteligência: técnicos em cripto-grafia, em sistemas de comunicação e computação, etc. Técnicos em propaganda e desinformação são, comumente,

39 Ibidem, p. 67

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usados nas Agências de Inteligência, e necessitam de qualificação especial para esse tipo de atividade: jornalistas e publicitários têm os conhecimentos básicos para essa função mas necessitam de cursos específicos para atuarem na área de Inteligência. A respeito do assunto, cabe aqui dizer que as sociedades não-democráticas são mais sujeitas à ação da propaganda e desinforma-ção:

Tendo como alvo uma sociedade fechada, o sim-ples fato de ser prover informações e notícias que o governo quer manter fora do conhecimento de seu povo pode ter um efeito significativo. Se, além disso, alguma desinformação puder ser inserida, tanto melhor. Os ouvintes, vendo que muito do que estão ouvindo é verdadeiro, tendem a acreditar que tudo que lhes é dito é correto. [trad. nossa]40

Deve-se observar, porém, que a difusão de notícias falsas ofe-rece risco para o próprio Serviço, pois outras agências podem tomar as notícias por verdadeiras e basear suas análises nelas.41

Um dos pontos de maior relevância para o Serviço de Inteli-gência é a existência de um sistema eficaz para organizar, armazenar, transmitir e fazer uso das informações colhidas. A correta avaliação de uma situação, fator essencial para a to-mada de decisão, depende disso: “Um dos elementos essenciais para a

40 Marchetti & Marks, op. cit., p. 15941 Ibidem, p. 160

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tomada de decisões é o fornecimento rápido, imediato e consciencioso de informações sobre a situação... A correta avaliação de uma situação só pode ser baseada num fluxo rápido e seguro de informações”.42

Se uma informação não pode ser rapidamente recuperada ela é absolutamente inútil e, em geral, o volume de informações neces-sárias torna esta uma tarefa de grande complexidade. Para Gehlen, o acúmulo em grande escala de uma infinidade de minúsculos detalhes – que em si mesmos nada tem de importante ou valioso – pode produzir inestimáveis e vibrantes dividendos em termos de informações, uma vez que tenham passado pelo crivo de profissionais experimentados, capazes de compor um todo bastante significativo das miríades de peças, como num quebra-cabeça.43

É fora de dúvida, porém, que o excesso de informações, pode ser prejudicial por entupir o sistema, tornando difícil para os analistas separar o que é realmente importante e produzir material suficiente-mente maturado para os formuladores de políticas. Uma superabun-dância de informações coletadas resulta num excesso de informes acabados, muitos, de pouco uso para a formulação de políticas; acaba por existir demasiado número de informes, sobre demasiado número de assuntos, de tal forma que as pessoas a quem eles se dirigem são incapazes de usá-los convenientemente.44

Esta conclusão, apontada num dos inúmeros relatórios apre-sentados por comissões nomeadas nos EUA para procurar melhorar a eficiência dos Serviços de Inteligência (de 1967), foi corroborada por outra comissão (de 1970):

42 Gehlen, op. cit., p. 121.43 Gehlen, um gênio da informação, Charles Whitting, p. 80.44 Marchetti & Marks, op. cit., p. 96 e 209.

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Acredito que o Pentágono sofre de um excesso de inteligência. Ele não pode usar o que tem porque demasiado foi coletado. Quase seria melhor que eles não tivessem esses dados porque é difícil determinar o que é importante.45

A informática é um poderoso instrumento para o estabeleci-mento de um eficiente sistema de arquivo. Embora em todas as Áreas da Inteligência a confiança seja requisito indispensável, o controle e arquivo das informações exige não só pessoal altamente qualificado mas de absoluta confiança do encarregado da agência. A Contra-Inteligência, embora deva fazer parte da cultura de todos os que trabalham no Serviço de Inteligência, requer que o pes-soal específico da atividade tenha uma boa experiência pregressa na Área de Inteligência. Agentes que tenham atuado por tempo razoável em Ações de Inteligência e tenham demonstrado sua aptidão nas fun-ções, são os mais adequados para o trabalho de Contra-Inteligência, em especial no que diz respeito à proteção da própria agência, de seus métodos de trabalho e de seu pessoal. No campo mais amplo – que envolve determinadas instalações industriais, áreas onde se desenvolvem certas atividades que não se querem conhecidas ou que envolvem conhecimentos sensíveis, etc, cuja proteção normal está a cargo das pessoas públicas ou privadas que as operam – caberá à Contra-Inteligência instruir os seus operadores para que adotem procedimentos corretos de proteção. No Brasil, a Abin desenvolveu o Programa Nacional de Pro-

45 Ibidem, p. 100.

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teção ao Conhecimento (PNPC) onde procura sensibilizar segmentos da sociedade brasileira sobre as ameaças ao desenvolvimento e à segurança nacionais, representadas pelas ações de espionagem em alvos econômicos, industriais e científico-tecnológicos.46 Sendo ne-cessária uma mudança cultural radical nos hábitos nacionais, o êxito de tal programa só pode ser visualizado a longo prazo se a Agência persistir nos seus esforços tanto no setor público como no privado. O recrutamento de analistas, agentes e técnicos não pode seguir as regras normais do setor público. Há que se estabelecer critérios específicos, que mantenham a discrição indispensável nesses casos. É ainda Gehlen que ensina:

Um Serviço de Inteligência nem sempre pode ser dirigido da mesma maneira adotada para outras agências governamentais. Estas exercem uma função puramente administrativa e uma Agência de Informações tem a função vital de obter e ava-liar informações; os aspectos administrativos e financeiros da Agência são de menor importância. É nesse particular que um Órgão de Informações difere dos outros setores do executivo, para os quais as funções administrativas e reguladoras são as mais importantes... É preferível administrar um Órgão de Informações por especialistas de Informações com experiência do Serviço Público, do que por funcionários comuns, com tendência a

46 “A Agência Brasileira de Inteligência”, op. cit.

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tolher, por motivos administrativos, as operações de Informações.47

Ressalta assim a importância de controles interno e externo para o Serviço de Informações. Há, evidentemente, que casar essa necessi-dade de controle com a necessidade de discrição e esta é uma questão difícil. De acordo com a lei que criou a Abin, no Brasil o controle e fiscalização internos, no âmbito do próprio Executivo, são feitos por dois órgãos – a Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional, que supervisiona a execução da Política Nacional de Inteligência, e a Secretaria de Controle Interno da Presidência da República (Ciset), que inspeciona a aplicação das verbas orçamentárias – e os externos, a cargo do Poder Legislativo, são exercidos pelo Tribunal de Contas, no que concerne à gestão de recursos orçamentários, e pela Comissão Mista do Congresso Nacional, com respeito à execução da Política Nacional de Inteligência.48

Um dos controles, tanto interno como externo, tem a ver com a aplicação das verbas, e o outro, também interno e externo, tem a ver com o enquadramento das ações da Abin às disposições da Política Nacional de Inteligência. Neste ponto cabe uma outra observação de Gehlen:

O dinheiro posto à disposição de uma Agência de Informações deve ser destinado a produzir frutos e não para o custeio de uma estrutura gigantesca

47 Gehlen, op. cit., p. 16548 “A Agência Brasileira de Inteligência”, op. cit.

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e dispendiosa. Se isso se der, haverá o risco desse órgão tender a obedecer a Lei de Parkinson, tor-nando-se um fim em si mesmo.49

Os controles, porém, não podem tirar a necessária flexibilidade da Agência:

É de fundamental importância preservar a flexibi-lidade com que uma Agência de Informações pode aplicar seus meios técnicos e financeiros, de modo a poder colocar imediatamente em atividade suas decisões operacionais.50

Além dos analistas, coletores de informações e técnicos in-dispensáveis ao Serviço de Inteligência, há ainda que considerar o pessoal administrativo necessário para que as atividades burocráticas tenham o seu curso normal – secretárias, serviços de copa, etc. Este pessoal, que não precisa ter conhecimentos especializados sobre In-teligência, pode ser recrutado no funcionalismo público, embora seja essencial uma cuidadosa verificação da sua confiabilidade, através da checagem de sua vida particular e de entrevista por pessoal para isso credenciado e qualificado. Além dos controles interno e externo, é absolutamente impres-cindível que o Serviço de Inteligência tenha o seu autocontrole, isto é, um sistema da própria Agência capaz de fiscalizar o seu funcio-

49 Gehlen, op. cit., p. 16050 Ibidem, p. 165

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namento administrativo bem como todos os seus integrantes, o que Gehlen chamou de Segurança Orgânica, com a ênfase específica na segurança:

A Segurança Orgânica é talvez a tarefa mais ingrata de um Serviço de Informações. Se se pode dizer dos serviços secretos em geral que eles trabalham por trás de portas fechadas, não devendo esperar o reconhecimento do público, isto é muito mais verdadeiro no que diz respeito às suas seções para a Segurança Orgânica. Como o goleiro no time de futebol, esta seção leva toda a culpa quando ocor-rem fracassos na segurança. E, paradoxalmente, quando o serviço lavra um tento como esse, trata-se mesmo como a admissão de uma derrota, pois fica estabelecido que, até o momento de sua descoberta, o elemento detectado pôde desenvolver, desper-cebidamente, sua traição... O bom funcionamento de uma Seção de Segurança Orgânica acentuará a eficiência do Órgão de Informações; sua influência é sentida em toda a máquina; ela afeta o desen-volvimento posterior da estrutura da organização, desempenhando um importante papel no bem-estar e no recrutamento do pessoal interno.51

51 Ibidem, p. 231

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LEGISLAçãO

Cabe ao governo dar uma clara definição do que espera do Serviço de Inteligência nos campos interno e externo. Devido à abrangência da área de atuação desse serviço, é preciso escolher criteriosamente os setores de maior interesse para a segurança nacional e proteção da sociedade, selecionando as ameaças mais significativas. A limitação de recursos – sempre se recebe muito menos do que se quer – determinará o que é possível fazer, dentro das prioridades estabelecidas pelos formuladores de políticas. A existência de uma Política Nacional de Inteligência é, pois, fun-damental mas é imperioso reconhecer que nenhuma legislação é, por si só, suficiente, mormente nesta área delicada, para garantir a eficácia do Sistema de Inteligência. A legislação, em geral, é redigida em termos que permitem diversas interpretações ou pode ser simplesmente ignorada, em especial se os sistemas de controle e fiscalização internos e externos e, ainda mais, o sistema de autocontrole da Agência, não são eficazes. É a qualidade dos homens que compõem o Serviço que mais importa, sua lealdade ao país e ao sistema, sua independência em relação às pressões políticas ou de qualquer natureza que não se coadunem com a finalidade pre-cípua do Sistema. Alguns princípios devem servir de base para orientar a elaboração da legislação pertinente e o comportamento de todo o pessoal do Serviço de Inteligência. A relação que se segue não é exaustiva e deve ser encarada apenas como um ponto de partida para uma discussão completa do problema:

● uma agência nacional de Inteligência única deve coordenar as ações de inteligência interna, externa e militar;● um serviço de Inteligência voltado para o campo interno é indispensável, independentemente do sistema de governo, autocrático ou democrático;

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● as ações da Inteligência no campo interno têm de se coadunar com as leis do país, no que concerne à Ética, e isso é que faz a diferença entre um sistema autoritário e um democrático;● o produto final do Serviço de Inteligência deve ser balanceado em pers-pectiva, isto é, não pode ser tendencioso, e objetivo na sua apresentação. Em nenhuma circunstância, a Inteligência deve sugerir uma linha de ação parti-cular. A função da Inteligência, quando feita apropriadamente, é estritamente informativa.52

● os Serviços de Inteligência devem servir aos interesses do Estado e não a certas conveniências do governo e não podem ser usados para atender a inte-resses pessoais ou de grupos; ou, noutras palavras, “os sumários e as análises do Serviço de Informações devem ser, estritamente, apartidárias e objetivos”53, ou, ainda, “a independência de um Serviço de Informações ante interferências político-partidárias deve ser salvaguardada por Lei”54;● controles internos e externos, estes envolvendo o Legislativo, são imprescin-díveis, além de um auto-controle do qual fará parte a Segurança Orgânica;● “um Serviço de Informações tem necessidade de um mínimo de proteção contra a curiosidade do público, se quiser cumprir convenientemente sua missão”55; ou de forma ainda mais incisiva: “É princípio cardinal e imutável que os Serviços de Informações devam gozar de toda a discrição, para que possam levar a cabo suas missões. As exigências de segurança são uma razão óbvia para essa orientação, e, além disso, seria ilusório esperar que tal tipo de serviço pudesse ser supervisionado por funcionários civis leigos no assunto”56; porque não há dúvida de que “se a organização do Serviço de Informações,

52 Marchetti e Marks, op. cit., p. 29553 Gehlen, op. cit., p. 22554 Ibidem, p. 23055 Ibidem, p. 2756 Ibidem, p. 213

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for um segredo aberto a quem está do lado de fora, em pouco tempo o inimigo chegará até dentro dela.”57;● “por questão de Segurança, deve-se manter o número de elementos operacionais em um nível mínimo, pois quanto menor a estrutura, mais fácil será mantê-la sob vigilância e maior será a chance de detectar, rapidamente, os ‘vazamentos’”;58

● a segurança do Sistema está na adoção do princípio de “compartimen-tos estanques” de forma que “nenhum membro de qualquer rede deve conhecer alguém pertencente ao Serviço de Informações, que atue fora de seu respectivo Órgão de Informações”;59 ou “por si só, as conside-rações de segurança exigem que a estrutura interna de um Serviço de Informações possua tantos compartimentos estanques, que, em certas ocasiões, problemas podem ser mantidos sob minuciosa observação por dois órgãos diferentes. Estes, agem de maneira totalmente independente e desconhecendo-se mutuamente, como interessados no mesmo problema, para que se possa, dessa forma, fazer luz sobre possíveis erros;”60

● também o setor externo da organização de Informações, o que trabalha no campo, deve ser organizado com grande número de células peque-nas e não em poucas redes de grandes proporções: “as grandes redes se ressentem da flexibilidade necessária. Quanto menores e mais versáteis as agências, maior será a sua segurança;”61

● o uso de material ostensivo, que se encontra em livros, revistas e jor-nais, é uma fonte preciosa de informações;● é fundamental a existência de um processo contínuo e sistemático

57 Ibidem, p. 22858 Ibidem, p. 16059 Ibidem, p. 17760 Ibidem, p. 22861 Ibidem, p. 228

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que trabalhe com as informações recebidas de todas as fontes dispo-níveis;● “a obtenção de informações exige sempre que ela seja orientada para fins específicos;”62

● uma burocracia excessiva prejudica inevitavelmente o Serviço de Inteligência;63

● é fundamental que haja estreita cooperação entre a Comunidade de Inteligência e a Comunidade a quem cabe a repressão aos delitos; o crime organizado, o terrorismo, etc, estão levando a uma sobreposição dos interesses e responsabilidades dos dois serviços;● a transnacionalidade do crime organizado, do terrorismo, de certos problemas ambientais, etc, torna imperativo a cooperação entre os órgãos de Inteligência dos países envolvidos numa operação conjunta; essa cooperação não pode comprometer a soberania dos países envol-vidos na operação;● esta mesma transnacionalidade agrava a sobreposição das comunida-des de Inteligência e de repressão de um mesmo país, quando envolvidas numa operação envolvendo outros países, sendo necessário uma clara definição do papel de cada uma nas diversas circunstâncias;● “... os resultados de um esforço conjunto entre várias Agências de Informações excederão de muito a soma dos esforços singulares dessas Agências. Além disso, considerando uma troca regular de informações, os fatos podem ser verificados duas ou mais vezes, as conclusões errô-neas poderão ser evitadas e serem reduzidas a um mínimo as chances de que o inimigo se infiltre numa determinada Agência”; 64

62 Ibidem, p. 12163 Ibidem, p. 16564 Ibidem, p. 209

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● a coleta de informações no exterior por métodos não-ostensivos deve ser usada de forma limitada, quando circunstâncias especiais o exigirem, e, mesmo assim, devem se restringir a ações não-parami-litares;● “as razões de Estado não permitem ao Chefe do Serviço de Infor-mações e aos seus subordinados esperar apoio ou aprovação pública para suas ações ... Todo Governo precisa contar com a oportunidade de dissociar-se, publicamente, de incidentes em que os Serviços de Informações excedam sua discrição”;65 (talvez Bush e Blair tenham interpretado como “legítima” a atribuição da culpa aos seus Serviços de Inteligência pelas ações que tomaram em relação ao Iraque);● “a informação deve ser capaz de melhorar ou modificar as premis-sas sobre as quais o Governo baseia suas decisões; mas, jamais deve ser utilizada como a única base para decisões, e sim, apenas como uma fonte de ponderações especiais e novas, que podem , em certas circunstâncias, ser suficientes para inclinar a balança decisória para um ou outro lado;”66

● “os Governos devem dar aos Chefes de seus Serviços de Informações inteira liberdade para organizar suas máquinas e realizar suas funções da maneira que acharem mais conveniente”,67 o que implica inter alia que eles tenham “toda liberdade para decidir sobre questões de pes-soal, administrativas e organizacionais, necessárias para a eficiência do serviço”;68 embora as diretrizes gerais para o Serviço de Informa-ções venham do governo, “a direção especializada do Serviço, desse

65 Ibidem, p. 21366 Ibidem, p. 22567 Ibidem, p. 22968 Ibidem, p. 230

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momento em diante, deverá ser reconhecida como atribuição única e exclusiva de seu Chefe.”69

● países subdesenvolvidos devem dar especial atenção à Contra-Inteli-gência porque “essas nações, subdesenvolvidas e muitas vezes corruptas, parecem feitas por encomenda para as operações clandestinas” de outros países; “seus governos são menos organizados e têm uma menor cons-ciência de segurança; e há uma tendência para que nesses países haja uma maior dispersão, real ou potencial, de poder entre partidos, regiões, organizações e indivíduos que não estão no governo” e, portanto, “nas freqüentes lutas pelo poder dentro desses governos, todas as facções são gratas por assistência externa” de modo que “somas de dinheiro, relati-vamente pequenas, entregues diretamente a forças locais ou depositadas (para os seus líderes) em contas em bancos suíços, podem ter um efeito quase mágico em mudar lealdades políticas voláteis.”70

69 Ibidem, p. 23770 Marchetti & Marks, op. cit., p. 26-7

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Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI

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A ImPORTÂNCIA DA INTELIGÊNCIA NO PROCESSO DECISÓRIO

Jorge da Silva Bessa

Ex-Oficial de Inteligência dos diferentes Órgãos de Inteligência do Governo Federal, tendo atuado nas áreas de Contra-espionagem, Contra-Terrorismo, Crime Organizado, terminando por assumir as fun-ções de Coordenador-Geral de Contra-Inteligência. Atualmente é Diretor da empresa M&B – Inteligência Competitiva Consultoria.

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A Importância da InteligêncIa no Processo Decisório

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INTRODUçãO

O tema Inteligência é grandemente discutido e analisado nos pa-íses mais desenvolvidos, tanto nos meios acadêmicos como nos círculos de defesa nacional ou segurança pública. Esta atividade é tão importante que atravessa a História desde o Egito antigo até a atualidade, aparecendo sempre, concomitantemente com o poderio militar, como um instrumento fundamental de poder.

No Brasil – devido às deformações sofridas ao longo do regime militar e à falta de estudos e discussões sérias sobre os seus reais objeti-vos – a Inteligência ficou marcada negativamente como uma atividade policialesca, voltada para intrigas e perseguições de adversários políticos do regime, e que colocava em um plano inferior os interesses do Estado e da sociedade.

Mais recentemente, graças às discussões realizadas no Congresso Nacional, em novembro de 2002, durante o Seminário “Atividades de Inteligência no Brasil: Contribuições para a Soberania e a Democracia” que visava à discussão da atividade de inteligência e do papel da Agên-cia Brasileira de Inteligência (Abin), e em razão do surgimento e rápido desenvolvimento da chamada “Inteligência Competitiva” ou “Business Intelligence”, essa atividade começa a ser mais bem conhecida, apre-sentando-se como um importante instrumento à disposição do processo de tomada de decisões.

Nos dois últimos anos, a partir dos atentados terroristas no World Trade Center, no coração da nação mais poderosa do mundo, o termo Inteligência voltou ao centro das discussões. Para alguns, os atentados ocorreram por falhas nos órgãos de Inteligência; outros, ao contrário, passaram a cobrar maiores poderes para a Inteligência norte-americana. O debate estabeleceu-se em todos os jornais, revistas, círculos acadêmi-cos e governamentais, o que levou a uma reformulação da estrutura e do

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desenvolvimento das atividades de Inteligência naquele país.No Brasil, face ao crescimento das atividades das organizações

criminosas organizadas, que já desafiam a autoridade do próprio Estado nos morros cariocas e nas periferias pobres de São Paulo, criando zonas liberadas onde os agentes do Estado não conseguem entrar, já se começa a ouvir aqui e ali, declarações favoráveis ao fortalecimento dessa atividade nas polícias Militar e Federal de forma que elas consigam combater mais eficientemente essa modalidade criminosa.

Isso já é muito bom, uma vez que até recentemente, as raras re-ferências à atividade de Inteligência eram crivadas de muito desconhe-cimento e preconceitos por parte de quem as formulava. Diferentemente dos Estados Unidos da América (EUA), onde dezenas de livros são lançados anualmente e o papel da atividade de Inteligência é discutido profundamente, os meios acadêmicos brasileiros não dispensam muito interesse a esse tema, o que revela uma visão míope e acanhada, haja vista a importância cada vez maior do Brasil no contexto internacional, o que exige cada vez mais Inteligência de boa qualidade e discussões maduras sobre o papel a ela reservado.

O objetivo deste trabalho é mostrar, de forma sintética, a impor-tância da Atividade de Inteligência para o processo decisório no âmbito dos governos, organizações e empresas, e a necessidade de que ela seja melhor compreendida pelos diferentes segmentos da sociedade, parti-cularmente àqueles que mantêm uma atitude de eterno preconceito e desconfiança em relação a ela

A INTELIGÊNCIA: O QUE É, E PARA QUE SERVE

Nada é mais crucial no processo de tomada de decisões do que

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as relações entre as informações e a política, ou, num sentido mais amplo, entre o conhecimento e a ação. Em um mundo cada vez mais globalizado, onde a mídia apresenta instantaneamente fatos importantes que ocorrem em diferentes partes do planeta e onde somos inundados por milhões de informações fornecidas pela Internet, cada vez mais os decisores precisam de informações especiais, necessárias para a melhor condução dos negócios públicos ou privados, e que possam fazer pender, em seu favor, a balança dos eventos futuros. Essa informação especial chama-se Inteligência.

Sherman Kent, professor da Universidade de Yale, em seu livro “Inteligência Estratégica” (1967), aborda a Inteligência sob três diferentes significados: um tipo especial de informação, uma atividade especial e uma organização também especial. Veremos a seguir, com mais detalhes, cada um deles.

Inteligência como Informação ou Conhecimento

Enquanto conhecimento, Kent define a Inteligência como “... os conhecimentos que nosso Estado deve possuir em relação aos outros Estados a fim de assegurar que nem sua causa, nem suas iniciativas fa-lhem, devido ao fato de seus estadistas e soldados planejarem a agirem na ignorância”. Entende ele ainda, que a “Inteligência é mais do que um simples conhecimento. É o conhecimento adquirido, isto é, houve intenção e esforço para obtê-lo”.

Já o professor Washington Platt, em seu livro “A produção de Inteligência Estratégica” - clássico que inspirou o ensino na extinta Escola Nacional de Informações (Esni), e em várias outras escolas de Inteligência norte e sul-americanas - define Inteligência como “... um termo específico e significativo, derivado de informação, informe, fato ou

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dados que foi selecionado, avaliado, interpretado e finalmente expresso de forma tal que evidencie sua importância para determinado problema de política nacional corrente”. Quando se refere à Inteligência Estratégi-ca, Platt define-a como “... o conhecimento referente às possibilidades, vulnerabilidades e linhas de ação prováveis das nações estrangeiras”.

Já para o acadêmico Ariel Levite (1987) da Columbia University, conforme citado em seu livro “Intelligence and Strategic Surprise”, Inteligência é “... o tipo de conhecimento que os decisores políticos devem ter para fazer frente às possíveis ameaças”.

Para Angelo Codevila - “Informing Statecraft Intelligence for a New Century” (1992), a Inteligência é “... um instrumento de conflito. É composta de palavras, números, imagens, sugestões, avaliações e estímulos”.

Josias Carvalho, em seu livro “A Informação” (1963), define informação (no sentido de Inteligência) como “o produto resultante do processamento de informes e informações através de um processo de elaboração mental”.

De acordo com Robert Steele, presidente da Open Source Solutions e um dos maiores especialistas norte-americanos nessa matéria, Inteligên-cia é “a informação trabalhada para dar suporte a uma decisão específica, para uma pessoa específica, sobre um tema específico de um determinado tempo e lugar”.

O almirante William Raborn, ex-diretor da CIA definia Inteligên-cia como “a informação que foi cuidadosamente avaliada quanto à sua exatidão e significado”.

A definição mais amplamente difundida pode ser encontrada no “Dictionary of the United States Military Terms for Joint Usage”, segundo o qual “Inteligência é o produto resultante da coleta, avaliação, análise, integração, e interpretação de todas as informações disponíveis, relativas

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a um ou mais aspectos de nações estrangeiras ou de áreas de operações e que é imediata ou potencialmente importante para os planejadores”.

Para Abraham Shulsky, em seu livro “Guerra Silenciosa: Comprensión del Mundo de la Inteligencia”, o termo se aplica a certos tipos de informação, atividade, ou organização. Enquanto in-formação, a Inteligência é definida como “a informação importante para a formulação e instrumentação governamental que permita me-lhorar seus interesses de segurança nacional e enfrentar as ameaças e os interesses provenientes dos adversários potenciais”.

O Dicionário de Termos Político-Militares da Junta Interame-ricana de Defesa traduz a Inteligência como “informações ministeriais integradas, que englobam os aspectos principais da política e segurança nacionais”. Quanto à Inteligência Estratégica, assim está definida: “conhecimento referente à capacidade e vulnerabilidades de nações estrangeiras, e que é necessário aos planejadores para a estruturação da defesa nacional adequada em tempo de paz, e forma a base para as operações militares projetadas para tempos de guerra”.

O Dicionário Francês de Espionagem e Contra-Espionagem, de autoria de Geoffroy d’Aumalé (1998), utiliza o termo “Renseignement”, o equivalente de Intelligence, sempre no sentido de informações trabalhadas que visam a atender as necessidades do processo decisório. O mesmo signi-ficado pode ser encontrado no Dicionário Britânico de Termos Militares.

De acordo com a doutrina brasileira de Inteligência, a atividade de Inteligência é o exercício permanente de ações direcionadas para:

● A obtenção de dados e avaliação de situações que impliquem ameaças, veladas ou dissimuladas, capazes de dificultar ou impedir a consecução dos interesses estratégicos do Brasil;● A obtenção de dados e a avaliação de situações que representem opor-

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tunidades para a consecução dos interesses estratégicos do país;● A identificação, avaliação e neutralização da espionagem promovida por serviços de Inteligência estrangeiros;● A identificação, avaliação e neutralização de ações adversas promovidas por organismos ou pessoas, vinculados ou não a governos;● A salvaguarda dos conhecimentos e dados que, no interesse da segu-rança do Estado e da sociedade, devam ser protegidos.

Passando agora para a aplicação da Inteligência ao mundo dos negócios, a chamada Inteligência Competitiva, vejamos algumas defi-nições:

Para Leonard Fuld, Inteligência Competitiva é “a informação analisada sobre os concorrentes que tem implicação no processo de tomada de decisão da empresa”.

Johnn Herring define Inteligência Competitiva como “... o conhecimento do ambiente competitivo da organização e de seu ma-cro-ambiente, aplicado a processos de tomada de decisão, nos níveis estratégico e tático”.

Bevin Wigan, professor da Queensland University, da Austrália, define a Inteligência Competitiva como produto e como processo. O pro-cesso envolve a “atividade mental voltada para estabelecer o significado de fenômenos no mundo corporativo e suas repercussões”. O produto decorrente desse processo é a Inteligência.

O professor Phillipe Baumard, da Université de Versailles Saint Quentin, classifica a Inteligência Competitiva como l’Intelligence Economique, que, para ele é “o esforço continuado de coleta, análise e disseminação de informações.” De acordo com Carrol, M. (1997), professora da mesma universidade “a essência da inteligência é coletar dados e deles extrair informações úteis. No que se refere ao mundo dos

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negócios, significa conhecer o mercado e conhecer os competidores”.Para Arik Johnson (1998), consultor de Inteligência Competitiva

e diretor da Aurora WDC “a Inteligência Competitiva está relacionada principalmente com as análises sobre o competidor, seus objetivos fu-turos, sua estratégia atual, e sua capacidade”.

Seria muito longa a lista de definições e de visões sobre Inteligên-cia, seja ela competitiva, econômica, militar ou governamental. O que interessa destacar, de todas essas definições, são os seguintes pontos:

● A maioria dos autores entende a Inteligência como um produto final, um produto refinado, destinado ao assessoramento;Fundamentalmente a Inteligência deve servir como suporte ao processo decisório e ao planejamento estratégico;● É baseada em uma metodologia de coleta e interpretação de dados e informações;● Destina-se a atender uma necessidade específica dos planejadores e decisores;● Deve ser pró-ativa;● O esforço da Inteligência Competitiva vai ser o meio-ambiente em-presarial, os competidores, suas potencialidades e fraquezas, as ameaças que podem representar, etc.;● É voltada para a decisão, para a ação;● Deve avaliar a capacidade atual, a potencialidade futura, e intenções de potências estrangeiras, exércitos ou competidores.

Inteligência como Atividade

Como atividade especial, deve-se entender que, em boa medida, a Inteligência irá atuar em um ambiente onde o sigilo é uma arma fun-

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damental por parte daqueles que não desejam que seus conhecimentos, atividades ou ações sejam descobertos.

Em relação a isso se convencionou dizer que o que distingue a atividade de Inteligência de outras atividades é exatamente a busca do dado negado, o que exige o emprego de métodos e equipamentos espe-ciais. Obviamente essa assertiva é válida apenas para a Inteligência go-vernamental, pois, no ambiente coorporativo, a Inteligência Competitiva preconiza a utilização de fontes abertas e desaconselha-se o emprego da espionagem, ou de qualquer ação ilegal.

Assim sendo, pelo amplo espectro de sua atuação, a Inteligência necessita de profissionais especialmente preparados, já que o adversário irá se proteger por todos os meios através de Contra-Espionagem e outras medidas de Contra-Inteligência.

Felizmente parece que a sociedade começa a entender a seriedade e o alcance do trabalho desses profissionais, diferentemente da ignorân-cia ou má-fé usada por alguns setores que procuram desacreditá-los, de todas as formas, referindo-se a eles sob a denominação depreciativa de “arapongas”, como se exercessem atividades ilegais, antidemocráticas ou trapalhonas. Assim, em Seminário sobre a atividade de Inteligência realizado no Congresso Nacional, referências elogiosas ao trabalho desses profissionais foram feitas por vários palestrantes despidos de contami-nações ideológicas, sendo as mais enfáticas as realizadas pelo Deputado Aldo Rebelo, então presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional.

Por outro lado, infelizmente, à medida que a atividade vai se firmando junto à sociedade, o termo vai sendo promiscuído por parte de alguns órgãos que querem, a todo custo, dizer que fazem Inteligência. Assim é comum se ouvir, nos noticiários da mídia, informações referen-tes a atividades de pura investigação policial que são anunciadas como atividade de Inteligência.

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Ao mesmo tempo, membros de outros setores que mais tradicio-nalmente trabalham com a Inteligência como o segmento militar, não admitem que exista Inteligência fora da esfera de atuação do Estado. Segundo essa linha de pensamento a atividade de Inteligência Compe-titiva é um modismo passageiro e não tem nada a ver com verdadeira Inteligência que, segundo eles, é monopólio de Estado a exemplo do monopólio do uso da força pelas organizações policiais.

A despeito do que pensam setores mais conservadores, o fato é que essa atividade cada vez mais ganha adeptos no mundo corporativo como instrumento fundamental para se vencer a guerra da competitividade na Era da Informação e da Globalização, o que foi comprovado pela maci-ça presença de profissionais no 5º Workshop Brasileiro de Inteligência Competitiva e Gestão do Conhecimento, realizado em Brasília, no final de outubro de 2004. Sobre ela falaremos um pouco, mais adiante.

Inteligência como Organização

Finalmente, a Inteligência como organização aponta na direção de uma aparente contradição das democracias: um órgão do Estado baseado no segredo e cujo produto, embora reverta em favor da sociedade, não está acessível a ela. Exatamente para evitar o perigo que representa uma orga-nização de Inteligência sem o controle da sociedade é que são criadas as Comissões de controle da atividade de Inteligência, geralmente exercidas pelo parlamento, o que garante que o poder conferido pelas informações não seja utilizado contra a sociedade ou contra a democracia.

Outra característica dessas organizações é que elas são conhecidas mais pelas suas falhas, que são episódicas, do que pelos acertos. De nada adianta décadas de bons serviços se ocorre um atentado como o do World Trade Center, que foi entendido como falha das diferentes organizações de Inteligência norte-americanas, embora os políticos não reconheçam

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suas responsabilidades ao restringirem a ação dessas organizações, o que lhes reduz a eficiência.

Longe vão os tempos de Sun Tzu, grande general chinês que en-tendia e utilizava perfeitamente a atividade de Inteligência, louvando seus profissionais como a nata que toda a sociedade deveria ter e se orgulhar. A sina de quase todas as organizações de Inteligência de Estados demo-cráticos é a de sempre contar com a desconfiança da sociedade, embora empregue os melhores esforços de seus profissionais para garantir as liberdades democráticas, o desenvolvimento econômico e a paz social.

Por tudo que foi visto fica claro que as funções da Inteligência contemplam uma ampla variedade de atividades governamentais ou empresariais, relacionadas com a segurança e com as políticas desenvol-vidas pelo governante, no primeiro caso, e com a necessidade de dispor de vantagens competitivas, no segundo.

Assim, deve-se reconhecer a Inteligência como um produto aca-bado, cujo valor está na eficiente coleta de informações, na adequada e profissional interpretação das mesmas, e sua rápida e eficaz difusão aos decisores.

No que diz respeito ao processo decisório, seja no plano federal, estadual, ou empresarial a Atividade de Inteligência tem por objetivo subsidiar as decisões, alertando para a presença real ou potencial de obstáculos à consecução ou manutenção dos objetivos do governo ou das empresas. Neste sentido, a Inteligência tem um caráter preventivo.

O mais importante papel da Inteligência, em última análise, é de proporcionar conhecimentos antecipados e suprir as necessidades do seu usuário. Assim, o planejamento e a direção da Atividade de Inteligência envolve a administração de todos os esforços visando identificar os dados e informações necessárias ao decisor. Esse processo pode ser iniciado por solicitação direta da autoridade decisória – Presidente da República,

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Ministros, Governadores, ou Secretários de Governo, etc. Em muitos casos, tais solicitações já foram institucionalizadas por meios dos “Planos de Inteligência”, em que cada um dos diversos órgãos do governo fixará suas necessidades próprias de Inteligência, de modo que seus dirigentes possam tomar decisões sobre planos e programas.

Uma preocupação constante da sociedade em relação à Atividade de Inteligência diz respeito a possíveis desvios que possam ocorrer e que venham a colidir com a democracia. Em relação a isso, a autoridade decisória deve se pautar pelo respeito ao arcabouço jurídico existente, de forma que essas atividades se desenvolvam em um contexto de legalidade e em obediência irrestrita aos parâmetros de um Estado Democrático de Direito.

A Inteligência, além de ser apartidária, deve ter por princípios a neutralidade e o claro respeito às leis. O mandato estipulando as atri-buições da atividade deve ser aprovado pelo povo, por meio dos seus representantes no Legislativo, de forma a assegurar equilíbrio entre sigilo e transparência, oferecendo-se àqueles o papel fiscalizador.

Para o século XXI as preocupações da Inteligência também devem ser estar além daquelas tradicionalmente ligadas à segurança nacional, incluindo temas como o aprofundamento da democracia, o desenvolvi-mento econômico sustentável e a justiça social. As políticas de segurança devem englobar uma ampla e complexa gama de questões, que abordem as vulnerabilidades da sociedade, buscando a promoção de um ambiente estável e no qual todos possam gozar dos frutos da civilização e de uma existência próspera.

Um moderno conceito de segurança deve abranger os setores econômico, ambiental, tecnológico, social, político e militar. Um com-pleto entendimento de cada um desses setores só pode ser obtido se os correlacionarmos uns com os outros, uma vez que as tentativas de tratar segurança isoladamente podem levar a sérias distorções.

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Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI

Para evitar isso, a Lei nº 9.883/99 de criação da Abin estipula que “os órgãos e entidades da Administração Pública Federal que, direta ou indiretamente, possam produzir conhecimentos de interesse das ativida-des de Inteligência, em especial aqueles responsáveis pela defesa externa, segurança interna e relações exteriores, constituirão o Sistema Brasileiro de Inteligência, na forma de ato do Presidente da República”.

O Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) é o responsável pelo processo de obtenção, análise e disseminação da informação necessária ao processo decisório do Poder Executivo, bem como pela salvaguarda da informação contra o acesso de pessoas ou órgãos não autorizados, podendo as Unidades da Federação compor o referido Sistema através de convênios e ajustes específicos.

As prioridades para um Sistema de Inteligência de países do porte do Brasil deveriam ser:

● Determinação das Ameaças Externas – inclui a determinação das possíveis ameaças imediatas de fronteiras ou regionais, incluindo os fatores militares, políticos, econômicos e psico-sociais. Atualmente avultam de importância as ameaças representadas pelo terrorismo e pelas organizações criminosas transnacionais. Além disso, deve ser prioridade a análise do desenvolvimento político, econômico e militar dos países do Cone Sul.● Determinação das Ameaças Internas – o modelo de Inteligência brasileiro concentra em uma só organização a responsabilidade pelos campos interno e externo. Cumpre ressaltar que a determinação das ameaças internas é um ponto altamente sensível, haja vista a experi-ência recente do Sistema Nacional de Informações (SNI). No entanto, parece cristalino que na determinação dessas ameaças deva se levar em conta as atividades de pessoas, grupos, organizações e movimentos que

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atuem contrariamente aos dispositivos constitucionais e contra o Estado Democrático de Direito.● Determinação das Oportunidades – é uma área geralmente negligen-ciada pela Inteligência. No entanto, a história mostra que os países que crescem e se desenvolvem são aqueles que adotam políticas estratégicas ativas, e não reativas, buscando as oportunidades e a liderança. Assim, é de grande importância para os decisores a obtenção de informações sobre como melhorar suas posições econômica, política ou militar, quando for o caso.● Inteligência Circunstancial – existem situações que não se enquadram nas categorias de ameaças ou oportunidades mas que são importantís-simas para o processo decisório e para a governabilidade, de forma que a ação governamental lhes retire o potencial de conflito ou de ameaça. Nesta categoria podemos alinhar os conflitos de terra, questões indígenas, ambientais, infra-estruturais, ineficácia dos órgãos públicos, atividade de organizações criminosas locais e transnacionais, narcotráfico, espionagem econômica e tecnológica, biopirataria, problemas raciais, movimentos separatistas, conflitos entre estados-membros, etc. Enfim, esta categoria compreende todos os óbices reais ou potenciais ao pleno atingimento das políticas nacionais de desenvolvimento e paz interna.

Finalmente, creio que em um contexto onde as demandas são grandes e os recursos são limitados, o funcionamento harmônico e eficaz de uma Comunidade de Inteligência e o êxito dessa atividade será decorrência da definição clara dos papéis, missões e prioridades de cada um dos membros dessa comunidade. Um planejamento realista e cooperativo será o eixo central para o sucesso.

Assim, é grande a responsabilidade daqueles que possuem a incumbência de proporcionar o bem-estar político, social e econômico

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Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI

a seus jurisdicionados, em um mundo que sofre céleres e profundas transformações. Em conseqüência, os decisores, em todos os níveis da estrutura político-administrativa, necessitam de informações de boa qua-lidade, que lhes permitam conhecer os fatores econômicos, ambientais, tecnológicos, sociais, políticos, militares, capacidades, possibilidades, limitações e vulnerabilidades, naquilo que possam comprometer ou favorecer as políticas de governo delineadas.

A SOCIEDADE DA INfORmAçãO E INTELIGÊNCIA COmPETITIVA

O grande crescimento que a chamada Inteligência Competitiva vem obtendo, no Brasil, nos últimos anos, exige que façamos uma peque-na referência a ela, neste trabalho, de forma que aumente a compreensão da sociedade sobre a sua origem e desenvolvimento no País, particular-mente depois da criação da Associação Brasileira dos Profissionais de Inteligência Competitiva (Abaic).

Em 1980, o escritor Alvin Tofler, em seu livro A Terceira Onda, anunciou o advento da chamada “Era da Informação”, também conhecida como “Sociedade da Informação”, e “Economia da Informação”, em substituição ao paradigma vigente na Segunda Revolução Industrial.

Esse novo paradigma afeta a vida de todas as sociedades, influen-ciando os aspectos políticos, culturais, sociais e econômicos, sendo, portanto, da maior importância que os planejadores estratégicos dos governos, das empresas e de outras organizações compreendam bem os seus significados e conseqüências, visando obter os melhores proveitos para seus negócios e, em última análise, para seus países.

A Era da Informação é decorrência dos avanços tecnológicos em micro-eletrônica, telecomunicações, biotecnologia, novos materiais e energias alternativas, bem como do processo de globalização da econo-

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mia. Sua principal característica é o uso intensivo da informação pelo cidadão comum, bem como a compreensão de que a informação passa a se constituir em uma vantagem competitiva para o trabalhador, para a empresa e para a nação, no plano da concorrência global.

Nessa nova sociedade, a expectativa é que a divisão internacional passe a contemplar países ricos e países pobres em informação. As na-ções mais desenvolvidas, entendendo que a informação se constitui em um bem intangível e um recurso fundamental, passam a desenvolver a infra-estrutura necessária para tornar suas sociedades intensivas no uso da informação, de forma a obter o sucesso econômico através do incentivo à habilidade das pessoas em explorar as tecnologias da informação e do acesso rápido e fácil às informações.

A partir daí passam a surgir novos conceitos, como operário do conhecimento (Knowledge Worker); organizações voltadas para o aprendizado (Learning Organizations) e nações inteligentes (Intelligent Nations).

O conhecimento passa a ter uma função de importância decisiva para o processo decisório e para o planejamento estratégico, surgindo daí o termo “actionable knowledge” – ou conhecimento para a ação - o que não é nenhuma novidade para os militares e planejadores estratégicos.

Relatórios da Organization for Economic Cooperation and Deve-lopment (OECD) dão conta que os setores intensivos em conhecimento são responsáveis por cerca de metade do PIB dos países ricos. As vagas para os chamados “trabalhadores do conhecimento” se constituíram em 80% dos novos empregos. Somente nos Estados Unidos, 90% dos empregos gerados nos últimos 20 anos foram no setor de serviços do conhecimento; em contraste, nos setores industrial e agrícola, mais de 6 milhões de empregos foram perdidos e a expectativa é que esse número continue aumentando.

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Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI

A expansão da Internet, permitindo acesso rápido e fácil às infor-mações, produz o fenômeno da hiper-informação, ou seja, um excesso de informações disponibilizadas para o acesso de qualquer pessoa, gerando a necessidade da formação de profissionais capazes de coletar, analisar e agregar valor às informações, transformando-as em um produto acabado – tradicionalmente chamado de Inteligência – e de fundamental impor-tância para o processo de tomada de decisão.

Surge assim a Inteligência Competitiva, em franco crescimento no Brasil, que faz uso intensivo das chamadas fontes abertas – informações publicamente disponibilizadas – em contraposição ao modelo vigorante nas agências estatais de Inteligência que valoriza prioritariamente as informações de fontes secretas.

A utilização de fontes abertas tem a vantagem de evitar os custos econômicos e políticos decorrentes da espionagem política ou econômi-ca, além de permitir que as informações nelas baseadas possam ser mais amplamente difundidas, diferentemente de quando se utilizam fontes secretas, que restringem a difusão do conhecimento.

Assim, a Inteligência deixa de ser uma questão relativa à penetra-ção de segredos e passa a ser uma questão de como capturar, de forma rápida, legal e barata, todas as informações necessárias à decisão, seja no âmbito das empresas ou do governo. Se no passado o secretismo e a restrição ao conhecimento representavam vantagem, no novo padrão a abertura e a flexibilidade passam a ser a nova regra do jogo.

Também, o papel do Analista de Inteligência é afetado, pois o seu valor estará relacionado à sua capacidade em coletar e trabalhar infor-mações abertas, integrando-as e desvelando-lhes o significado oculto. Ao invés de habilidades técnicas ou de coragem para realizar ações clandestinas, o novo analista deve apenas entender como o conhecimento circula em uma sociedade aberta; sua grande arma passa a ser o domínio de diversos idiomas.

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Ao mesmo tempo em que a Era da Informação oferece oportuni-dades fantásticas, principalmente para as nações mais pobres através da democratização da informação, ela faz surgir uma ameaça à privacidade do cidadão e à segurança do Estado e da sociedade, ameaça essa repre-sentada pela Information Warfare – a InfoWar (Guerra da Informação), onde o poder do conhecimento e da informação fazem sombra ao poder militar tradicional.

A InfoWar está disponível para qualquer um que seja possuidor de um computador e tenha um objetivo definido, criminoso ou não, conhe-cidos como hackers, crackers ou informations warriors (guerreiros da informação). O computador pode se transformar em uma arma altamente ofensiva, que utiliza artifícios variados como munição (vírus - Cavalo de Tróia, bomba-relógio, etc.).

Nessa guerra os alvos podem estar divididos nos seguintes níveis:Pessoal – uma vez que os nossos dados pessoais se encontram

distribuídos em centenas de computadores ou bancos de dados – públicos ou privados – com pouco ou nenhum controle e sujeitos à modificação criminosa, liberação não autorizada ou mesmo destruição.

Corporativo – onde a espionagem eletrônica se torna um instru-mento útil na condução dos negócios através do ataque aos sistemas de informação das empresas concorrentes, e também para a sabotagem eletrônica.

Global - no pensamento de segurança tradicional as preocupa-ções dos estrategistas estão voltadas para a defesa dos bens tangíveis, quantificáveis e que possuam um valor concreto. Na Infowar os ataques serão contra a infra-estrutura nacional podendo redundar em paralisação dos serviços essenciais como abastecimento de água, energia elétrica, telefonia, sistema bancário, etc.

As ações da InfoWar compreendem o furto, modificação e destrui-

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ção das informações ou da capacidade de processamento de informações, efetivadas, normalmente, através da intrusão ilícita nos computadores em busca de dados de valor, por exemplo, através da interceptação de Eletronic Mail (e-mail).

Pelo seu baixo custo, segurança, simplicidade e comodidade, a InfoWar pode ser utilizada pelo crime organizado, por terroristas, narco-traficantes, investigadores particulares, grupos de ação política, compe-tidores comerciais nacionais ou internacionais, grupos fundamentalistas radicais e governos de Estados-párias.

É de fundamental importância que o Governo Federal se es-force para construir as bases para o desenvolvimento da sociedade da informação no País, propiciando a todos as vantagens decorrentes das tecnologias da informação e de comunicações, o que, juntamente com o desenvolvimento da Inteligência Competitiva, redundará em ganhos para as empresas, para a construção da cidadania e para a competitividade do País. É o que estão realizando os países desenvolvidos.

Por outro lado, faz-se necessário que os setores estratégicos, militares e de Inteligência do país promovam debates públicos com especialistas, visando adequar o conceito de defesa à essa nova ameaça, intangível e perigosa, de forma a se estabelecer uma política que garanta a privacidade, a segurança das informações e a proteção da infra-estrutura nacional. Também deve ser analisado o papel dos hackers e crackers, que podem ser bandidos ou mocinhos, podendo estes últimos serem aproveitados com inteligência pelo Estado, caminho trilhado por vários países – Israel é um exemplo. O importante é o debate com a sociedade no sentido de esclarecê-la, ajudando-a a se defender e recebendo dela as sugestões adequadas.

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CONCLUSãO

A Inteligência é parte das funções normais desenvolvidas pelos governos, organizações e empresas constituindo-se em um instrumento que permite aos decisores administrar conflitos e superar eventuais obs-táculos à ação governamental ou empresarial. Ademais, a Inteligência não deve se ater apenas às ameaças, mas também vislumbrar as opor-tunidades que se apresentem ao governante para a consecução dos seus interesses estratégicos.

Ao profissional de Inteligência das organizações estatais não é permitido ter uma agenda própria; ele é um servidor do povo e da Constituição, que deve ter por linha-mestra o interesse da sociedade e do Estado.

A Inteligência seja a estatal, ou a competitiva, deve cooperar na promoção de Democracia, Estabilidade, Desenvolvimento Nacional, Paz e Harmonia Social.

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PERSPECTIVAS PARA A INTELIGÊNCIAEXTERNA DO BRASIL

Alexandre Martchenko

Ex-Oficial de Inteligência, tendo chefiado vários segmentos da área de formação (EsNI) e análise (AC/SNI), culminando com a função de direção geral nacional da atividade como Subsecretário de Inteligência da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), posteriormente Casa Militar, hoje Gabinete de Segurança Institucional (GSI). É um dos próceres da criação da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Foi, também, Presidente do Conselho Nacional de Imigração (CNIg). Atualmente é Professor/Assessor de Relações Internacionais e Coordenador de Estratégia na Graduação e Pós-graduação da Uni-versidade Católica de Brasília (UCB).

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ANTECEDENTES HISTÓRICOS

Desde os tempos imemoriais aparecem registros da presença da atividade de Inteligência – então caracterizada como reconhecimento, espionagem e informação – como aspecto inerente ao desenvolvimento da humanidade. A própria Bíblia apresenta exemplos no relacionamento en-tre várias etnias em formação, raças em evolução e povos em dominação. As grandes conquistas foram palmilhadas por episódios fortalecidos pela presença dessa importante atividade tornando-a inerente à consolidação de um Estado em formação.

Assim, as conquistas romanas e a expansão grega no Mundo Antigo, bem como o espraiamento das hordas mongóis, do Império Otomano e do crescimento do domínio russo na Eurásia, foram respal-dadas em reconhecimento prévio, e sua sustentação por longos períodos foi garantida pelo aprimoramento do aparato de informações. Aliás, o primeiro serviço de inteligência de que se tem notícia no mundo con-temporâneo, foi criado por Ivan, o Terrível, para consolidar seu domínio sobre os boiardos, senhores feudais russos da época. A Era Napoleônica na Europa, bem como o domínio colonizador inglês no mundo, ocorreram em grande parte através do aperfeiçoamento dos sistemas de captação de dados, controle e antecipação das iniciativas dessas frentes. É o sistema inglês o paradigma mais tradicional para os estudiosos dessa importante área do conhecimento humano.

Cumpre salientar que tanto para consolidar sua atuação no campo interno como para qualquer política de expansão internacional, todos os Estados sempre tiveram, na área de Inteligência, uma preocupação primordial com a Inteligência externa.

No continente americano, ou assim chamado Novo Mundo, além da peculiaridade das conquistas dos europeus no início da colonização, na medida em que as sociedades foram se aperfeiçoando e a concepção de

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governo e Estado tomando forma, a assessoria de informações, segurança e defesa foi crescendo em importância. Segundo alguns historiadores, a própria libertação e secessão norte-americana tiveram influência marcante da, então incipiente, atividade de Inteligência. Ademais, o governo dos EUA, após a Segunda Guerra Mundial, quando, apesar das vitórias, foi, em muitas oportunidades, surpreendido por ausência de informação ou pela falta de análise e interpretação correta dos dados obtidos, criou uma comunidade (sistema) centralizada de Inteligência, com ramificações nas áreas sensíveis da estrutura do Estado. Esse estamento vem apoiando o desenvolvimento do país tanto na seara interna como no âmbito inter-nacional, apesar de sofrer grande reestruturação pós 11 de setembro de 2001 com a criação do Homeland Security.

Na América do Sul, a origem e o desenvolvimento das principais estruturas de Inteligência sofreram forte influência da doutrina norte-americana. Sob o apanágio da contenção do Movimento Comunista Internacional, essas organizações foram fortemente marcadas e, em al-guns casos, funcionaram como sucursais do sistema norte-americano em prol dos seus interesses estratégicos, com reflexos nos campos político e econômico. Tal situação não deixava de ser uma espécie de sistema internacional. Nos fins dos anos sessenta e década de 70, em especial, assistiu-se à escalada de movimentos subversivos de inspiração marxista, fato que contribuiu para a derrocada das ainda incipientes democracias sul-americanas e a conseqüente instalação de regimes militares fortes, chegando em muitos casos nos extremos ditatoriais.

Cumpre ressaltar que o alinhamento quase automático desses governos com a doutrina norte-americana – uma vez que a cúpula militar em grande parte havia realizado cursos nos EUA - aliado ao interesse estratégico do então governo de Washington acarretou a criação de diver-sas doutrinas de segurança nacional, as quais exigiam a criação de uma organização de informações para dar-lhes sustentação. Em conseqüência,

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assistiu-se ao surgimento de diversos Serviços de Informações em países latino-americanos, com atuação preponderante no campo interno, com a finalidade precípua de combate à subversão.

O Brasil não ficou à parte desse processo, incorrendo no mesmo caso com o extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), que, apesar de ter atribuições na produção de informações externas de contra-espio-nagem, pautou sua atuação, desde o surgimento em 1964, principalmente, na produção de informações do campo interno. No entanto, demonstra-va maior autonomia do que os demais serviços e, onde também foram empreendidas iniciativas de grande visão no campo externo, após a consolidação inicial do movimento.

Como curiosidade é interessante observar que a concentração dessas três atividades em uma única estrutura, com preponderância para o controle interno, até algumas décadas atrás, era típica de regimes totalitários, como no caso o Comitê de Segurança do Estado (KGB), da então União Soviética e de seus congêneres do Pacto de Varsóvia, no Leste Europeu. Essa estrutura, oriunda daquela primeira organização citada anteriormente, caracterizava sobremaneira o caráter sistêmico e também expansionista para o exterior de suas atividades, uma vez que, era o chamado braço armado para a exportação da ideologia pelo mundo, um dos ditames fundamentais do regime soviético.

O desmoronamento do Império Soviético e o conseqüente desa-parecimento do inimigo comum do Ocidente, acarretando o fim da Era da Guerra Fria e de uma ordem internacional bipolar, promoveu uma completa reformulação das políticas de defesa em todo o mundo, com reflexos significativos na atuação dos serviços de inteligência. A socie-dade, por sua vez, também passou a questionar, a participar de definições quanto à validade e aos novos objetivos para nortear a atuação desse importante segmento de governo.

No início deste século, com o episódio do atentado às torres gê-

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Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI

meas, em Nova York, nova guinada ocorreu na atividade de Inteligência em todo o mundo, com ênfase na necessidade de reestruturação e forma-ção de sistemas com amplo intercâmbio entre os Estados-Nação para se contrapor à nova ameaça no cenário internacional: o terrorismo.

Assim, o mundo assistiu, ao longo dos tempos, à criação de vários organismos ligados à atividade hoje conhecida como Inteligência, os quais mesmo que voltados precipuamente para a área interna, terminavam por atuar na externa, na maioria das vezes em caráter sistêmico, até para a sua própria sobrevivência.

PRImÓRDIOS DA ATIVIDADE NO BRASIL

Há controvérsias quanto à criação efetiva do primeiro estamento de Inteligência no Brasil. Alguns citam 1927, com o estabelecimento do Conse-lho de Defesa Nacional (CDN), no Governo Washington Luis. O órgão teria sido criado pelo receio do crescimento do Movimento Comunista Interna-cional, e após o Levante de 1922, do movimento em São Paulo, em 1924, e a Coluna Prestes em 1925/27. A crítica incide sobre o papel desempenhado pelo CDN, de pouca participação na deposição do Presidente Washington Luis, bem como no episódio Júlio Prestes e eleição de Getúlio Vargas. No entanto, a maioria dos analistas destaca o papel preponderante durante o Estado Novo, como sustentáculo da chamada ditadura de então, mas sem ainda uma caracterização real de assessoria de Inteligência.

A maioria dos experts, no entanto, estipulam 1946, com o Serviço Federal de Informações e Contra-Informações (SFICI) e a data de 06 de setembro, como marco inicial da Inteligência no País. É bom lembrar a situação de pós-guerra vivida pelo mundo na época, e o início da bipolari-dade que caracterizou boa parte do século passado, conforme já citado na introdução.

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Perspectivas para a Inteligência Externa do Brasil

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Em 1955, após o suicídio de Vargas e a frutificação do pensamento liberal, notadamente nas escolas militares Escola Superior de Guerra (ESG), Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), etc, começam a surgir as idéias preliminares de uma doutrina de informa-ções, que teve seu ápice com a criação do SNI, após o movimento de 64. No entanto, alguns acontecimentos fizeram com que a ênfase dada pela Inteligência - inicialmente maior para o campo interno, e após sua consolidação conforme já citado - tivesse seu foco diversificado.

No Governo Costa e Silva, a iniciativa de participação na produ-ção de artefatos atômicos para fins pacíficos, por exemplo, bem como as mudanças de ênfase na política externa, direcionando-a para a Europa e África, foram posturas importantes na auto-afirmação do país no cená-rio internacional, sempre acompanhadas pela ainda incipiente área de Inteligência externa.

Foi no Governo Geisel, a grande guinada ascensional da senóide para a área externa e, por conseguinte, na atividade de Inteligência. A postura moderna, mais independente, tanto ao denunciar o acordo com os EUA como nas múltiplas iniciativas ao redor do mundo, ensejou maior participação e apoio por parte do estamento de Inteligência.

Assim, o envolvimento no conflito de Angola, visando cobrir os embates entre o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) versus a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita) e abrindo caminho para a participação de empresas nacionais na tentativa de construção do país, teve grande participação de membros da Inteligência. O mesmo ocorreu em Moçambique no caso da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo).

As negociações comerciais com o Iraque, desde 1978/79, onde foi instalado um posto de Inteligência, abriram boas perspectivas para a indústria de armamento brasileira, entre outras. A venda de armas para a Líbia e as negociações com o Egito também caracterizaram essa fase

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Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI

de importantes dividendos e autonomia no campo externo.O Governo Figueiredo deu continuidade e aperfeiçoou esse in-

tento. Assessorado pelo General Medeiros (Octávio Aguiar de Medeiros) de notável visão e iniciativa, a área externa da Inteligência começou a plantar os alicerces para sua atuação no mundo contemporâneo. Foram aprofundados estudos e participação in loco em atividades da área da então Cortina de Ferro e da Europa em geral. A criação do posto em Ge-nebra serviu como centralizador dessas iniciativas. Foram incrementadas as ligações com países que apresentavam similaridades: África do Sul, México, Coréia do Sul e outros asiáticos.

Nas vizinhanças sul-americanas procurou-se consolidar o rela-cionamento e criar anteparo para o surgimento preocupante das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). A abertura de posto de Inteligência no Peru – onde havia uma crescente presença soviética no fornecimento de armamento e equipamento militar – como também no Suriname, ponto estratégico de crescente importância no continente, principalmente após as intervenções dos EUA no Panamá, Granada e outras situações semelhantes de instabilidade na América central, (como Nicarágua e El Salvador), também foram importantes para a afirmação da Inteligência brasileira no exterior.

Como ponto crítico nesta fase, ou seja, uma adversidade ou relação negativa no tocante aos insucessos, pode-se alinhavar a surpresa com a eclosão da Guerra da Malvinas, em 1982, fato que acelerou a criação do posto na Argentina, que depois passaria a ser muito importante nas iniciativas para o surgimento do Mercosul em 1985.

Em contrapartida, pode ser citado como vitória, ou exemplo de sucesso do serviço de Inteligência da época, o acompanhamento e as análises prospectivas das possíveis decorrências da situação no Leste Europeu. Tanto nas atividades na área, principalmente em apoio à em-baixada brasileira em Moscou, como principalmente no fornecimento de

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dados, isentos e frutos de acompanhamento de várias fontes (informantes, entrevistas, contatos e operações com dissidentes, via-satélite, e in loco etc.) para a tomada de decisões governamentais, esse foi um setor que se fortaleceu e passou a ser ponto de excelência da Inteligência brasileira.

A situação no Médio Oriente no final da década de 80, a situa-ção do Kuaite no início de 90 e a conseqüente operação Tempestade no Deserto, em 91, com os desdobramentos para o novo enfoque para a In-teligência, conforme será comentado mais à frente, provaram a validade da participação da área de Inteligência para melhor acompanhamento das evoluções e decorrências.

EVOLUçãO RECENTE DA INTELIGÊNCIA NO BRASIL

O processo de redemocratização do Brasil e o surgimento de nova Constituição, onde os direitos e garantias individuais ganharam força, fizeram com que práticas usualmente empregadas na primeira fase do SNI fossem reenquadradas, ou em alguns casos, coibidas. Tais práticas estiveram mais ligadas ao campo interno e a transformação ocorreu, tanto pelas mudanças no quadro político institucional interno e externo como, também, pela falta de respaldo na legislação em vigor. Aliás, em particular, causou espécie durante essa transformação quando agentes do então serviço foram instados a acompanhar os efeitos de um dos planos econômicos do governo, “contando boi no pasto” literalmente, para coibir a alta de preços na entressafra, num total desvirtuamento da atividade-fim.

No início do Governo Collor, a criação do Departamento de Inte-ligência (DI), atrelado à Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), não impediu, no entanto, que setores importantes da sociedade, em especial a imprensa, continuassem a ver o novo órgão como um instrumento de

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repressão política ou mesmo de uma entidade ligada à perseguição dos cidadãos e de quase nenhuma utilidade para o País. Cumpre ressaltar que a ênfase das críticas repousava nas atuações do órgão no campo interno extrapolando suas atribuições institucionais, não sendo abordada a atuação externa por natural falta de conhecimento.

O ato de criação do Departamento de Inteligência, em 1990, foi um ato tão ou mais drástico que a criação do SNI, em 1964. O serviço foi criado por projeto de lei e, a despeito do clima favorável gerado pelo fervor “revolucionário” da época, não se deu senão após intenso debate no Congresso Nacional. A criação do Departamento de Inteligência, em contrapartida, responsável pelas atividades de Inteligência, deu-se por Medida Provisória (nº 150, de 15 de março de 1990). A medida não explicitou o entendimento de “inteligência”, apesar de ser um conceito absolutamente novo no léxico brasileiro, utilizado em substituição a “informações”, e uma corruptela da expressão inglesa “intelligence activities” que nas democracias liberais diz respeito a ações de espiona-gem contra interesses estrangeiros e pressupõe a existência de delicado mecanismo de supervisão e controle, além de caracterizar a existência de redes ou sistemas. Assim, a julgar pela evolução da situação, o Congresso aprovou algo que sequer sabia o que significava efetivamente.

Tratava-se de fugir da conotação negativa e mesmo pejorativa que o vocábulo “informação” acabou por catalisar como síntese das re-ações no período dos governos militares. O estratagema funcionou, pois o Serviço de Informações deixou de freqüentar as páginas dos jornais, e, aparentemente, também houve efeitos internos e a nova organização passou a oferecer um perfil mais palatável às estruturas democratizantes do País. Não se tratava apenas de mais um neologismo em moda, mas da utilização de um termo de largo emprego, inclusive internacional, e exclusivo para a atividade de Inteligência com caráter sistêmico.

O problema residia menos em onde colocar a estrutura de Inteli-

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gência e mais em saber “o que colocar”, ou seja, em definir a atividade de Inteligência sob padrões que assegurassem sua legalidade, legitimidade e racionalidade a serviço do Estado brasileiro.

Na prática, a atividade cingiu-se à atuação interna, como caracte-riza a ênfase dada ao acompanhamento de assuntos internos conjunturais, indevidamente acoplados com maior prioridade à organização.

Assim, a criação da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), no que tange à área de Inteligência, deveria ser observada vis-à-vis à extinção do SNI e da Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional (Saden). A SAE deveria incorporar as tarefas das duas organizações ex-tintas e conforme um tópico de campanha do então candidato a Presidente que viria a ser deposto, caracterizar a desmilitarização da Presidência da República.

A SAE, no entanto, embora tenha efetivado com alarde e sem critério profissional esse último ponto, não fez corretamente a transição de “informações”, como dito acima, para “inteligência”, como também, deixou de assumir algumas responsabilidades importantes decorrentes das atribuições herdadas da extinta Saden. De acordo com a Lei 8.183, de 11/04/91, cabia à SAE executar as atividades permanentes necessá-rias ao exercício da competência constitucional do Conselho de Defesa Nacional, ou seja, desempenhar o papel anteriormente afeto à Saden. Pouco foi feito para cumprir essa determinação legal. Como decorrên-cia, não havia um Conceito Estratégico de Defesa efetivo e nem uma política de defesa como exige o mundo moderno, para fazer face a todas as gigantescas modificações recentes nos perfis de conflito e interesses das relações internacionais.

Embora, aparentemente, a intenção inicial dos reformadores tenha sido a de transformar o DI precipuamente em um órgão de Inte-ligência externa - a exemplo de seus congêneres nos principais países desenvolvidos como França, Inglaterra, Alemanha, EUA etc – a con-

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juntura à época, principalmente no que tange à inexperiência e falta de escrúpulos dos dirigentes indicados e assessorados por profissionais da área, também sem a devida experiência ou capacitação, forçou a que se mantivessem deturpações nas atribuições com o direcionamento mais voltado para atividades internas, limitando, assim, ainda mais, o já de-bilitado organismo.

É desta época um dos mais calamitosos erros ou omissões da atividade de Inteligência, quando, embora tivessem todos os dados favoráveis em seu poder, os dirigentes deixaram de levar à frente um importante plano de captação de cérebros oriundos da ex-União Sovié-tica, por razões mesquinhas pessoais aliadas à falta de coragem e visão. Vários países, muitos do assim chamado Primeiro Mundo, realizaram semelhantes iniciativas, através de seus órgãos de Inteligência, auferindo consideráveis dividendos.

Esse plano elaborado pelo setor de acompanhamento do Leste Europeu (já citado anteriormente e apoiado no reconhecimento dessa área inclusive pelos congêneres dos países mais desenvolvidos) traria experts para os mais variados campos de atividade a custos irrisórios (cerca de U$ 50 por mês per capita), fato que daria notável impulso, principalmente às Universidades e Centros de Pesquisa do País.

Fatos dessa ordem, assim como a pulverização da área de en-sino de idiomas e dialetos (que atendia a mais de 32 línguas de todo o mundo), e a devolução de inúmeros especialistas aos órgãos de origem, sem nenhuma consideração pela contribuição prestada ou trabalho de recompletamento dos quadros, bem como a revogação da instalação de posto na Costa Rica, entre outros, representaram um abalo catastrófico na atividade, principalmente na sua vertente externa, caracterizando a Era Collor como um crime “lesa pátria” atinente à área.

Essa situação ainda persistiu, apesar de algumas tentativas de mudança no governo Itamar Franco, quando a área precisou se reestru-

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turar depois do debácle sofrido, sendo realizações da época a criação da área de Inteligência de sinais, bem como a admissão de novos servidores selecionados por concurso público.

O Governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), desde a campanha eleitoral, foi enfático em promover seu objetivo de inserir o Brasil no contexto das nações desenvolvidas do assim chamado Primei-ro Mundo, através da prioridade dada a cinco pontos capitais, entre os quais estavam as preocupações com a segurança e a defesa. A busca da modernidade obrigatoriamente deveria passar pelo aperfeiçoamento do segmento da Inteligência tornando-o um instrumento de fortalecimento do Estado e não um mero executor em apenso para cada governo.

As iniciativas foram promovidas pela Subsecretaria de Inteligên-cia, que recebeu a missão de criação da Abin, hoje Agência Brasileira de Inteligência, após período inicial dos mais importantes, sob supervi-são direta do General Fernando Cardoso - ex-chefe da Casa Militar no Governo Itamar e assessor direto do Presidente FHC - um dos próceres da Abin, militar de alto prestígio e experiência (instalou a adidância na China), que praticamente abdicou de sua carreira por não se vergar às imposições palacianas da época. Não foi conivente com as limitações impostas no espectro de atuação da área de Inteligência nem com os su-cessivos adiamentos para a efetivação da agência com plano de carreira definido.

Os primeiros dois anos do primeiro governo FHC foram muito intensos na área externa do setor. Foram estabelecidos contatos com todos os países sul-americanos, bem como, buscou-se fortalecer o sistema com países da África, em busca de maior segurança no Atlântico Sul. Novas perspectivas para a área foram perscrutadas na Ásia e no Médio Oriente, além da consolidação dos contatos na Europa e América do Norte.

A iniciativa de estabelecer parcerias com países anteriormente considerados inimigos, como Rússia, Ucrânia, etc, trouxe grandes bene-

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fícios para a atividade até os dias atuais, dando-lhe maior capilaridade, autonomia, penetração e complementaridade nos trabalhos de assessoria governamental. Importantes decisões e negociações entre governos foram subsidiadas a partir deste relevante vínculo e em áreas onde os contatos formais, diplomáticos etc, na maioria das vezes, não podem agir. O in-tercâmbio de dados, muitas vezes por triangulação e com reciprocidade altamente confiável, são as bases de um sistema irreprochável para so-brevivência dos Estados nos dias atuais. A adequação dos concursados foi outra iniciativa de valor, visando à sobrevivência e continuidade do serviço.

Nessa época foi possível verificar o quanto o serviço, sua ativida-de e seus membros eram valorizados pelos congêneres de outros países – muito mais do que em seu próprio país. Assim, uma missão de estrei-tamento de laços com a África do Sul constatou que a adaptabilidade do serviço daquele país, nos seus novos tempos e mudanças ocorridas com o fim do apartheid, deveu-se em muito à assessoria do SNI - através das orientações do General Carracho (Ary Rodolpho Horne Carracho), um dos próceres da Inteligência externa brasileira – quando da sua recriação e reformulação.

Outro marco auspicioso da época foi a promoção no Rio de Janei-ro, em outubro de 1996, de um importante simpósio contra a proliferação de tecnologia sensível, juntamente com o United Nations Institute for Disarmament Research (Unidir), órgão da ONU encarregado do setor. Os dividendos dessa iniciativa dão frutos até os dias atuais na manutenção de um sistema atinente a esse importante tema de acompanhamento.

No entanto, Fernando Henrique Cardoso não tinha a intenção de levar à frente a idéia de criar um órgão de Inteligência moderno, con-forme determinou e estipulou um prazo de 180 dias, a partir do início de seu governo. Os sucessivos adiamentos que culminaram em quase 5 anos de espera, já que a Abin foi homologada apenas no final do seu 2°

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mandato (1999), foram altamente prejudiciais, fomentando também uma situação de dificuldades e até de estagnação que tem atingido vários seg-mentos da atividade até os dias de hoje. Profissionais experientes foram se afastando das chefias pelo desgaste natural com os postergamentos, sendo substituídos por outros, sem o devido conhecimento, vivência ou envolvimento com os objetivos do órgão. Alguns, infelizmente, preo-cuparam-se em utilizar a área como trampolim em sua ascensão nas carreiras originais ou ainda com a mera manutenção pura e simples dos cargos, sem grandes arroubos ou iniciativas profissionais. No entanto, em contrapartida, felizmente foram permanecendo alguns abnegados dedicados e competentes, com a tarefa de dar sobrevida e continuidade aos trabalhos da área.

CONSIDERAçÕES SOBRE SISTEmAS PARA A INTELIGÊNCIA

Na Guerra do Golfo, já citada anteriormente, a estrutura de Inte-ligência americana percebeu a necessidade de um novo tratamento para a área. Apesar da profusão de dados, 35% das baixas foram oriundas do chamado “fogo amigo” e fizeram com que os mentores da atividade repensassem seus paradigmas. Tal iniciativa rapidamente espraiou-se pelo mundo, surgindo a nova vertente de controle de redes, inteligência de sinais, não só na guerra eletrônica como também em todas as ativi-dades.

Para Peter Drucker, a nova sociedade pós-capitalista apoiada nas atividades sociais e econômicas, é a chamada sociedade centrada em informações, ou seja, centros (redes) de informações (dados etc). Conhecimento e informação são considerados fatores primordiais para a produção e o desenvolvimento.

Para P. Nakamura, oficial de Inteligência do Comando da Aero-

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náutica, apoiado em H. e A. Toffler, a atividade de Inteligência acompa-nhou as três ondas descritas pelos autores. A primeira – a agrária (rural), a Inteligência ia até os limites das propriedades ou ao alcance da vista; a segunda – a industrial, desenvolveu para a Inteligência o conhecido patamar de “humint” (human intelligence), ou seja, a agregação da ca-pacidade cerebral humana em prol de um desenvolvimento localizado, específico, iniciando, assim, o ciclo do conhecimento. A terceira onda – com as devidas adaptações da tese dos autores, seria a do conhecimento movido e acompanhado ou controlado pelos sensores – blogs. É a era da disputa pela central de redes, onde a Inteligência adquire aspectos de commodity, num teatro de “ofint”, ou seja, “open force intelligence” onde projetos de ampla envergadura, quase global, (como o Echelon) caracterizam a multifacetada sistematização da atividade e, sem dúvida, o maior desafio evolutivo para os tempos futuros.

Outro enfoque de crescente importância no cenário internacional é a formação dos sistemas de acompanhamento por satélites, que atin-gem resolução menor que um metro, tornando a captação de dados e o acompanhamento para múltiplas áreas como defesa, agricultura e outras, substanciais para qualquer governo. Na América do Sul, o sistema Sivam/Sipam é uma amostra desse aspecto, e de seu desenvolvimento, apoiado em contínuo trabalho de Inteligência, dependem muitas decorrências de sobrevivência futura.

As próprias comunidades antigas de informações, hoje Inteligên-cia, apresentam esses aspectos sistêmicos, conforme a seguir especifica-do.

Na França, a Direção Geral de Segurança do Estado (DGSE) tem por missão, “em benefício do Governo e em estrita colaboração com outros organismos que lhe são relacionados, procurar explorar as informações de interesse da segurança do País, assim como detectar e dificultar, fora do território nacional, as atividades de espionagem diri-

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gidas contra os interesses franceses, a fim de evitar suas conseqüências”. Sinteticamente: a DGSE tem a seu cargo a Inteligência externa e a con-tra-espionagem no exterior. A Inteligência interna, a contra-espionagem e a contra-subversão dentro da França são realizadas pela Direção de Vigilância de Territórios (DST), subordinada ao Ministério do Interior. Tem como principais missões realizar a busca de informações sobre agentes estrangeiros que estejam operando internamente na França; produzir informações de contra-espionagem e contra-subversão, no país e nos territórios e departamentos ultramarinos; e realizar trabalhos de proteção contra agentes estrangeiros e operações de representação e aprisionamento.

Na Alemanha, o Serviço Federal de Informações (BND) é chefiado por um presidente, subordinado diretamente ao Chanceler Federal (1° Ministro) e com nível de Secretário de Estado. Dessa forma, relaciona-se diretamente aos diversos Ministérios. Tem como principais clientes a Chancelaria Federal e os Ministérios; não tem missão executiva, judicial ou policial. Suas atribuições se resumem à produção de informações militares, políticas e econômicas relativas ao campo externo, e a sua di-fusão aos demais órgãos de governo. Preocupa-se, também, em infiltrar e neutralizar organizações adversas, particularmente as que pertenciam ao extinto bloco soviético. Hoje é adaptado para atuar no combate às máfias, contra-terrorismo, etc. Os problemas de defesa são estudados pelo Conselho de Defesa Federal, uma comissão do governo presidida pelo Chanceler Federal e da qual o Presidente do BND participa na condição de assessor direto do Chanceler. Por outro lado, o Serviço Federal de Proteção à Constituição (BFV), subordinado ao Ministério do Interior, é responsável pelas informações referentes a qualquer ameaça interna, como movimentos extremistas, sabotagem, atividades terroristas e outras afins.

Na Inglaterra, o Serviço Secreto de Inteligência (SIS), tradicional-

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mente conhecido como MI-6, é responsável pela produção de informações relacionadas com os países que não integram o Reino Unido. Centraliza todos os informes e informações produzidas no exterior dispondo para isso, de ligações diretas e sigilosas com todas as agências no exterior. Os dois principais clientes do SIS são: o Ministério dos Negócios Estrangei-ros e o Ministério da Defesa. Seus principais alvos são: as organizações de Inteligência e organizações subversivas estrangeiras, que desenvol-vam atividades antibritânicas; as organizações extremistas estrangeiras, cujas atividades possam ferir os interesses britânicos no exterior; e os governos e organizações que desenvolvam atividades que representem ameaça à paz mundial. A existência do SIS não é reconhecida oficial-mente, e até há pouco tempo não tinha orçamento ostensivo. É chefiado pelo segundo funcionário em hierarquia do Ministério dos Negócios Estrangeiros e seus funcionários figuram nos quadros desse Ministério. Por outro lado, o Serviço de Segurança Interna (SSI), tradicionalmente conhecido como MI-5, tem por missão a produção de informações de segurança interna no Reino Unido. Tem existência oficial e se enqua-dra na organização do Ministério do Interior, sendo seus funcionários integrantes desse Ministério. O MI-5, além de suas atividades normais no campo das informações, tem a responsabilidade de assessoramento no que diz respeito à segurança das informações em todos os órgãos da administração pública, assim como no campo da contra-espionagem.

Na Espanha, o Centro Superior de Informações da Defesa (Cesid), subordinado tecnicamente ao Ministério da Defesa, foi substituído pelo Centro Nacional de Informação (CNI). Atua nas áreas de Inteligência externa, Inteligência interna e Contra-Inteligência e colabora com a Dire-ção Geral de Política de Defesa, que é o órgão encarregado de assessorar o Ministro na preparação, planejamento e direção da política de defesa e no trabalho da Junta da Defesa Nacional.

Na Itália, o Serviço de Informações e Segurança Militar (Sismi)

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é ligado ao Ministério da Defesa, que estabelece o seu ordenamento e controla a atividade com base nas diretrizes e dispositivos estabelecidos pelo Presidente do Conselho de Ministros a quem o órgão também é ligado. O Diretor do Sismi tem acesso ao Presidente da República e é a pessoa de mais alta hierarquia da Comunidade de Informações, sendo considerada a autoridade nacional para a segurança de Estado. O Sismi cumpre todas as tarefas de informações e de segurança para a defesa, no plano militar, de independência e integridade do Estado frente a qualquer perigo de ameaça ou ataque. Para os citados fins, o Sismi desempenha as tarefas de contra-espionagem. O órgão atua no campo externo. É encarregado das informações relativas à política externa italiana. Seus Residentes Legais, que integram as Missões Diplomáticas, encarregam-se de reunir os dados de interesse para o governo italiano. A missão de Inteligência interna é desempenhada pelo Serviço para as Informações e a Segurança Democrática (Sisde) subordinado ao Ministério do Interior, a quem cabe “todas as tarefas informativas” e de segurança para a defesa do Estado democrático e das instituições postas pela Constituição na sua base contra quem a ataque e contra qualquer forma de subversão.

Nos EUA, a CIA, juntamente com o Conselho de Segurança Nacional (NSC) e o Gabinete de Planejamento de Inteligência de Emergência , é responsável pela coordenação da Segurança Nacional do mais alto nível. Subordinada diretamente ao Presidente dos EUA, ao Conselho de Segurança Nacional e ao Secretário de Justiça (para fins de aprovação do emprego de técnicas operacionais) tem como principais atribuições a Inteligência e a Contra-Inteligência externas. A Contra-In-teligência no âmbito dos EUA é realizada em coordenação com o FBI. A CIA é membro destacado da Comunidade de Inteligência dos EUA, haja vista que seu Diretor é coordenador da mesma, o qual é conhecido como Diretor Central de Informações. Recentemente toda a estrutura (após o 11 de Setembro) passou por ampla reforma com a instituição

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do Homeland Security (já citado anteriormente) dando-lhe um caráter sistêmico mais amplo.

Aliás, o Plano Estratégico de Segurança Nacional (National Strategic for National Security), conhecido como Doutrina Bush, que inclui a National Strategy for Homeland Security com o Departament of Homeland Security (DHS) que possui mais de 7 escritórios pelo mundo dando-lhe um caráter sistêmico nacional e internacional. É um exemplo real de reformulação em função das novas realidades do mundo contemporâneo.

De modo geral, assim como a estrutura dos EUA, todos os serviços de Inteligência do mundo passam por uma reestruturação com vistas a uma participação de caráter mais amplo e com características de sistemas (mais abertos do que antes) para fazer frente aos multifacetados enfo-ques das adversidades e vissicitudes dos tempos modernos. Na Rússia, a nova estrutura pós-soviética alia aspectos do antigo sistema, tendo o KGB como referência, sendo o FSB – a força de segurança do Estado – um órgão primordial na nova política para o exterior.

ATUAçãO DA INTELIGÊNCIA Em ÂmBITO EXTERNO NOS DIAS ATUAIS

A atuação da Abin em âmbito externo, via Departamento de Inte-ligência, é conduzida, atualmente, por duas frações: Coordenação-Geral de Inteligência Externa (CGIE) e Coordenação Geral de Ciência e Tecno-logia (CGCT). A primeira encarrega-se de avaliar aspectos relacionados à conjuntura dos países de especial interesse para o Brasil e a segunda, de caráter temático, tem sob suas atribuições o acompanhamento e a avaliação de questões vinculadas à economia internacional, ao desen-

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volvimento científico e tecnológico e ao controle de não-proliferação de armas de destruição em massa (ADM), todos tratados nas vertentes de ameaças e oportunidades aos interesses estratégicos do Brasil. Além desses, há ainda a área de Contra-Inteligência, também importantíssima, principalmente nos dias atuais.

Quanto à CGIE, a sua atuação externa tem sido direcionada à participação em eventos no exterior, notadamente em alguns países sul-americanos, visando ampliar a capilaridade da fração para a geração de dados próprios de Inteligência. Ainda nesse sentido, tem atuado, via encontro com serviços congêneres no exterior, visando estreitar as par-cerias para a obtenção de dados e informações, conforme a capacidade de geração de cada serviço.

A CGIE retomou, recentemente, antiga modalidade de ação – ini-ciada há 10 anos, que se pretende seja tornada rotineira a partir de agora, haja vista seus resultados concretos -, que consiste na participação de seus representantes nas equipes precursoras que preparam as viagens presidenciais. A iniciativa mostrou como a Inteligência pode ser instru-mento valioso no assessoramento dessas equipes, bem como significa oportunidade para ampliar a capilaridade externa.

No que se refere à CGCT, o trabalho em parceria com outros órgãos da administração federal, o estreitamento das relações com con-gêneres externos e a ampliação de sua capilaridade interna e externa, em especial nos últimos dez anos, fez com que a fração consolidasse considerável experiência sobre os temas vinculados às suas atribuições. Isso propiciou que representantes da Abin integrem os principais fóruns nacionais e internacionais relativos às suas áreas de atuação, bem como participem das discussões e decisões em grupos de trabalho, como órgão assessor, em questões de interesse estratégico para o País.

Assim, uma representação da Abin, decorrente daquela iniciativa com a Unidir, em 1996, atua de forma sistemática integrando oficialmente

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as delegações brasileiras nos fóruns onde são tratados assuntos referentes à não-proliferação de armas de destruição em massa – Grupo de Supri-dores Nucleares (NSG), Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR), Convenção para Proibição do Desenvolvimento, Produção, Estocagem e Uso de Armas Químicas (CWC), Convenção de Armas Biológicas e Bacteriológicas (BTWC), Grupo de Trabalho Especializado sobre Tráfico Lícito de Materiais Nucleares no âmbito da Reunião de Ministros do Mercosul - bem como nos temas sob sua responsabilidade com serviços congêneres.

Em âmbito interno, porém com vinculação e reflexos diretos no ambiente internacional, a fração representa a Abin nas Comissões In-terministeriais de Controle de Transferências de Bens Sensíveis, como órgão assessor da Secretaria Executiva da Autoridade Nacional; no Grupo de Trabalho de Biodefesa da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (Creden) e no Sistema de Acompanhamento de Atividade Nu-clear (Creden). Ainda no mesmo sentido, a CGCT está desenvolvendo, em conjunto com a Coordenação-Geral de Bens Sensíveis (CGBE/MCT), o Projeto Ciências, projeto para aperfeiçoamento do sistema brasileiro de controle de transferências de bens sensíveis.

A concepção do Projeto Ciências, inédita no Brasil, tem como principal pilar a geração de condições para o estreitamento da relação Estado/empresa em âmbito nacional, visando, ao mesmo tempo, resguar-dar interesses estratégicos do Brasil em nível internacional e facilitar a atuação de empresas brasileiras em um mercado mundial restrito e de extrema sensibilidade, competitividade e lucratividade. Sem dúvida, com caráter sistêmico de grande abrangência.

A área tem participado, ainda, de diversos eventos internacionais, como observadora ou representando oficialmente a Abin na qualidade de expositora, o que tem propiciado ampliar a exposição sobre a forma de atuação da atividade de Inteligência no Brasil com reflexos ampla-

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mente favoráveis à imagem do órgão, interna e externamente, além de ser instrumento facilitador para ampliação de capilaridade da fração em âmbito externo, visando a geração de dados inéditos.

Assim, as ações de Inteligência desenvolvidas pelo Departamento de Inteligência, por intermédio da CGIE e da CGCT, a despeito de ainda necessitarem de aprimoramento e ampliação, têm possibilitado o fortale-cimento da credibilidade da Abin e a expansão do acesso a novas áreas de interesse e a interlocutores privilegiados, objetivando a geração de dados próprios de Inteligência, inéditos e com valor agregado, para qualificar constantemente o assessoramento do órgão ao alto escalão decisório, nas questões externas de interesse para o Estado brasileiro.

A tendência verificada nas áreas externas sob responsabilidade do Departamento de Inteligência – conjuntura de países prioritários para o Brasil, economia internacional, desenvolvimento científico e tecnoló-gico e tecnologias sensíveis e desarmamento – é de expansão quanto à necessidade de geração de novos dados de Inteligência, haja vista serem questões de interesse vital para o país, por serem os principais indutores de inserção internacional e geradores de prosperidade social. Ademais, essas questões constam do programa de governo e de políticas setoriais já definidas como prioritárias pela atual administração federal.

É importante salientar que tais atividades devem ser continu-amente acompanhadas pela Contra-Inteligência, também em caráter sistêmico, pois fazem parte do rol de interesses da maioria dos países nos dias atuais.

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CONCLUSãO

Como conclusão pode-se afirmar que nas principais democracias do mundo moderno a atividade de Inteligência, mesmo eventualmente despertando controvérsias - em virtude da falta de esclarecimento e do receio dos cidadãos de terem seus direitos limitados ou tolhidos – tem assegurado a participação no aspecto direto no gerenciamento das altas esferas decisórias do Estado.

Os países desenvolvidos e democraticamente maduros consagra-ram como a melhor maneira de compatibilizar a atividade com o respaldo legal por meio da criação de um sistema de defesa democrático, asses-sorando seus governos e sofrendo a supervisão direta de representantes do executivo e do legislativo.

O novo conceito estratégico do governo norte-americano não diz respeito apenas a ameaças de estados poderosos. O problema maior são ações de fanatismo, adeptos de violência indiscriminada, dotados de alta tecnologia e armas de destruição em massa. Fazer frente a essas adversidades é o objetivo maior da inteligência no mundo, que só obterá sucesso nesse intento através de sistemas internacionais eficientes.

No nosso caso, além de consolidar a prática acima, alguns aspectos são de crescente importância na atual conjuntura mundial. A falta de um sistema interno eficaz, com gerenciamento e coordenação – não como nos antigos moldes de supervisão e controle – é limitador para o profícuo funcionamento da área interna e externamente. Além disso, a ausência de uniformidade de doutrina de algum órgão do tipo da antiga Escola Nacional de Informação (Esni), conforme já abordado, trará reflexos negativos irretorquíveis a médio prazo com conseqüência para a ativi-dade. O número irrisório de postos no exterior também é fator limitador de eficácia em prol do objetivo de formação de sistemas internacionais válidos e eficazes.

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A tendência é de que os encontros entre serviços de Inteligência tenham uma expansão, crescendo em importância no futuro porque o enfrentamento das ameaças globais e regionais que assolam países de determinados continentes somente poderá ser efetivado por meio da união dos governos. Nesse sentido, os sistemas de Inteligência desempenham um papel fundamental, uma vez que está comprovada a tese de que o intercâmbio de informações é um dos principais procedimentos a serem adotados na prevenção de atividades danosas à segurança e estabilidades das nações. Competência no acompanhamento dessas ações sistêmicas, evitando que criem um novo campo de expansão unilateral, sob o apa-nágio de interesse geral, é mais um desafio emergente para a Inteligência nacional no limiar desse novo século.

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SÍNTESE DO III ENCONTRO DE ESTUDOS

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Síntese do III Encontro de Estudos

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APRESENTAçãO

A Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais (Saei) realizou, no dia 23 de setembro de 2004, o Encontro de Estudos “Os Desafios para a Atividade de Inteligência no Século XXI”, com o ob-jetivo de ampliar o debate sobre a atividade de inteligência no seio da sociedade brasileira. Realizado no auditório de Videodifusão do Palácio do Planalto, o encontro constou de quatro conferências, duas pela manhã e duas à tarde.

O encontro se insere na meta do Gabinete de Segurança Institu-cional (GSI) de incluir a Inteligência entre os grandes temas do debate nacional, e no contexto das atividades da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional (Creden), que na sua responsabilidade de estabelecer políticas e orientar ações de interesse do Governo inclui a preocupação de legitimar a atividade de Inteligência dentro de um regime democrá-tico.

Atuaram como conferencistas o Coronel Geraldo Lesbat Cavagna-ri Filho, o Almirante Armando Amorim Ferreira Vidigal e os Professores Jorge da Silva Bessa e Alexandre Martchenko, todos eles especialistas com experiência profissional e acadêmica na área de Inteligência. Ao final de cada exposição a palavra era aberta ao debate, para melhor compreensão do tema.

Os conferencistas abordaram o tema desde os seus primórdios até os dias atuais e sua utilização como ferramenta indispensável à defesa do estado moderno, de um lado contra as ameaças do terrorismo, do nar-cotráfico, do crime organizado, e de outro como radar de oportunidades no campo da ciência e tecnologia, do desenvolvimento econômico e da capacitação militar.

Do encontro participaram mais de 40 pessoas, representantes

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da Agência Brasileira de Inteligência, do Comando da Aeronáutica, do Comando do Exército, do Comando da Marinha, dos Ministérios da Defesa, da Ciência e Tecnologia, da Fazenda, da Integração Nacional, da Justiça, da Previdência Social, da Saúde, das Relações Exteriores, do Trabalho e Emprego, da Secretaria da Receita Federal, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, do Senado Federal e da Universidade Católica de Brasília.

ADEQUAçãO DA ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA À REALIDADE DO SÉCULO XXICoronel Geraldo Lesbat Cavagnari Filho

O primeiro conferencista, Coronel Geraldo Lesbat Cavagnari Filho, iniciou sua palestra com um comentário sobre a opção que foi feita pelo Governo Collor, de extinguir o Sistema Nacional de Informa-ções (SNI), uma opção equivocada, para uns, ou criminosa para outros, conforme disse. Para ele, o prejuízo só não foi maior porque na época os ministérios militares tiveram o bom senso de continuar com essas ativida-des e retornaram ao que eram antes da criação do SNI, operando em suas agências um sistema independente da própria atividade de governo.

Porém, com o resgate que está se fazendo daquilo que foi des-truído, o Coronel acha que no futuro esse esquema terá que mudar para que se tenha novamente uma Agência Central forte dentro de um sistema bem articulado.

Contou que em 1992, quando era Diretor do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, recebeu do então Deputado Hélio Bicudo, membro da Comissão de Defesa da Câmara dos Deputados, um pedido de opinião sobre o projeto de lei para a criação da chamada Agência Federal de Inteligência. O deputado queria saber se o texto tinha condi-

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Síntese do III Encontro de Estudos

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ções de aprovação, mas o coronel respondeu que naqueles termos não deveria ser aprovado.

O Coronel explicou que fez objeção à proposta porque se tratava de um projeto sem controles. O texto foi alterado e foi acrescido um controle técnico na agência, mas faltou um controle político. O projeto nunca foi aprovado e o parecer que ele ofereceu ao Deputado Hélio Bicudo acabou sendo transformado em artigo para a revista do Ibase, editada por Herbert de Souza, o “Betinho”.

O artigo publicado sob o título “Um serviço necessário que requer controle”, seria usado como matéria-prima para o decreto de criação da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin. Fruto da sua longa contribui-ção à área de Inteligência, iniciada quando fez o Curso de Inteligência na Escola Nacional de Informações, a ESNI. Em seguida foi chefiar a 2ª Seção de Informações na Inteligência do Estado Maior da 6ª Região Militar. Depois teve um posto no exterior, no México, e quando retor-nou foi para a 2ª Seção de Informações que, hoje, é a Inteligência do Estado-Maior do Exército. Depois foi para a 3ª Seção, Sub-Chefia de Planejamento Estratégico, que tinha sido criada naquele momento, e ali ficou até 1986. Em 1986 ainda no Estado Maior do Exército já estava contratado pela Universidade de Campinas como professor e pesquisador. A partir daí dedicou-se ao estudo da estratégia teórica contemporânea e ao estudo de planejamento estratégico.

Entrando no tema do encontro de estudos, “Os Desafios para a Inteligência no Século XXI” e a adequação dessa atividade, o Coronel começou falando sobre a Guerra Fria, esclarecendo de imediato que quando se fala em configuração das relações de força temos que ter um entendimento do que vem a ser essas relações. Segundo o Coronel, o sistema internacional é de certo modo um sistema estrutural, com uma relativa anarquia, onde quem impõe alguma disciplina ao funcionamento dele são as grandes potências. Esse sistema se organiza em função da

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configuração das relações de força. E essa configuração nada mais é que a configuração das chamadas relações entre estados, ou relações de força que se dão entre potências.

A configuração dessas relações durante a Guerra Fria, observou o Coronel, era uma configuração bipolar. Como existia a arma nuclear, sabia-se que nenhum confronto direto entre as duas superpotências seria exeqüível. Porque não seria a destruição de uma delas somente, poderia ser a destruição do mundo. Muitos diziam que em virtude da existência da arma nuclear a guerra nuclear passou a ser impensável. Mas na sua opinião a guerra nuclear sempre foi pensada pelas duas superpotências que nos seus planejamentos estratégicos contaram com os chamados patamares nucleares.

A concepção de segurança dos Estados Unidos em face dessa realidade basicamente se sustentava em duas estratégias. A estratégia da dissuasão e a estratégia da contenção. A estratégia de dissuasão pode ser definida utilizando-se da própria definição da arma nuclear que é aniquilar a intenção ofensiva do adversário, desde o momento em que é percebida a sua posse pela potência contrária.

Ao mesmo tempo em que as duas superpotências investiam no desenvolvimento da tecnologia nuclear elas procuravam o entendimento. E a partir desse entendimento veio o controle das armas, que inicialmente é um controle de limitação das armas nucleares e depois um controle de redução desses armamentos. Esse entendimento incluía um tratado anti-balístico, firmado em 1972, e que previa que as duas potências poderiam ter escudos antimísseis que protegessem suas respectivas capitais, o que deixava implícito que ambas as potências manteriam a mesma capacidade de resposta nuclear: a capacidade de ação inicial, do primeiro golpe, e a capacidade de segundo golpe, ou de retaliação.

Havia também a doutrina da destruição mútua assegurada, pela qual aquele que sofre ataque deve ter firmes condições de retaliar na mes-

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ma intensidade ou numa intensidade maior. Isso neutralizou o ambiente nuclear, apesar das crises de Berlim (1948/49), da Guerra da Coréia (1950/53) e a dos mísseis em Cuba (1962). Esses momentos da Guerra Fria poderiam ter levado as duas superpotências ao confronto direto.

Quando a União Soviética força uma saída para os mares quentes, repetindo tentativas que vinham desde os tempos dos czares, os Estados Unidos começam a aplicar a estratégia da contenção para impedir que o Império Russo chegasse ao Mediterrâneo e ao Mar Vermelho.

Essa estratégia se estrutura nas bases militares dos Estados Unidos na Europa, na Turquia, no Japão, na Coréia do Sul e nas Filipinas. Além dessas bases avançadas eles tinham o controle de todos os oceanos e da maioria dos mares.

Essa blindagem limitou o avanço da União Soviética à Tchecos-lováquia, o último trunfo que os russos tiveram durante a Guerra Fria, em 1948.

O plano de contenção incluía a Organização do Tratado do Atlân-tico Norte (Otan) e o Plano Marshall, que isolaram a Europa Ocidental de um avanço dos soviéticos impedindo que chegassem aos oceanos. Eles ainda tentaram atingir esse objetivo pelo Afeganistão, mas essa pretensão também foi barrada pelos Estados Unidos apoiando toda forma de guerrilha contra a ocupação russa, inclusive a milícia Talibã, que os EUA destruíram após o 11 de setembro de 2001.

Até que veio o final da Guerra Fria sem a batalha decisiva. Foi uma guerra que não houve, definiu o Coronel. Acabou quando os Estados Unidos fizeram uma aposta arquimilionária de desenvolvimento científico e tecnológico no campo das armas para criar escudos antimísseis que protegessem todo o seu território continental. A União Soviética tentou acompanhar fazendo grandes investimentos em defesa, mas seu orçamen-to não suportou e esse esforço bélico levou o império à bancarrota. Os

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Estados Unidos ganharam a Guerra Fria sem dar um tiro contra a União Soviética e com isso conseguiram afastar uma possibilidade histórica de uma potência ser hegemônica em toda a Eurásia.

Mas no hemisfério ocidental os EUA sempre exerceram a he-gemonia, particularmente em relação aos países da América Sul, o que foi feito em torno de dois consensos. Era um alinhamento fundado em uma doutrina comum que é a doutrina de segurança nacional, o que faz a nossa doutrina de segurança nacional, em qualquer época, ser igual à de qualquer país latino-americano. Em torno dessa doutrina buscaram o consenso ideológico, do anticomunismo, e o consenso estratégico, que era deter o expansionismo soviético.

Mas como os países sul-americanos não tinham condições de deter o avanço soviético, suas forças armadas foram colocadas no combate à subversão comunista. O alvo era o “inimigo interno”, o agente da insur-gência interna, de formação marxista. No início da primeira metade da década de 1980, o inimigo interno já estava destruído há muito tempo e se passou a questionar a hegemonia dos Estados Unidos nos nossos negócios internos e externos.

Com o colapso do Império Soviético, inicia-se uma nova ordem que se esperava mais justa, mais simétrica e mais pacífica. Mas com os primeiros movimentos que se fizeram logo após a queda da União Sovi-ética, essa nova ordem mostra que não seria mais justa, mais simétrica e nem mais pacífica. Continuaria conflituosa, assimétrica e injusta. O que é da natureza do sistema internacional.

Foi quando se acertou que os problemas de segurança surgidos seriam submetidos ao Conselho de Segurança das Nações Unidas e as decisões desse conselho deveriam ser obedecidas. Nessa aposta mul-tilateralista a intervenção militar contra um país recalcitrante, com o emprego da força, se faria no contexto da segurança coletiva, aprovada e legitimada pelo Conselho de Segurança.

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Até que veio a guerra do Iraque, que seria o primeiro exemplo de um problema internacional solucionado no contexto do multilateralismo. Mas, como lembrou o Coronel, quando houve a invasão do Kuaite, a ONU ficou calada e estupefata. Foram os Estados Unidos quem denunciaram a invasão, declararam o embargo comercial, fizeram o bloqueio naval e deram o ultimato ao Iraque. A ONU confirmou todos esses atos, mas sempre a reboque das iniciativas do governo americano.

Essa guerra serviu para mostrar como as grandes potências deve-riam se comportar dali para frente. E essas ações unilaterais se repetiriam depois na desintegração dos Bálcãs (Eslovênia, Croácia, Bósnia e Koso-vo). Até que houve o 11 de Setembro e os EUA responderam com novas ações unilaterais contra o Afeganistão e depois, contra o Iraque.

A partir do 11 de Setembro os Estados Unidos inovam no campo doutrinário do emprego da força e se sentem no dever de agir unilateral e militarmente contra o país que apoiar ou organizar ações de guerrilha ou hospedar guerrilheiros. Foi baseado nesse princípio da autodefesa que justificaram as guerras contra o Afeganistão e o Iraque. Este é o argumento do império, isto é, que não submete a outras potências ou ao Conselho de Segurança a defesa dos seus interesses.

Depois dessa explanação sobre o cenário mundial, o Coronel Geraldo Cavagnari apresentou o perfil do Brasil como potência. Segundo ele, o Brasil é uma potência média com espaço político na América do Sul, no Atlântico Sul e no Pacífico Sul-americano. Disse que esse espaço geopolítico pode ser ampliado abarcando-se o que chamamos de África Austral, que inclui Angola, Moçambique, Namíbia e África do Sul, a maior potência africana.

Para ter essas condições, explicou o Coronel, falta ao Brasil auto-nomia estratégica – a capacidade de articular alianças militares e coman-dar alianças militares. Isso implica capacidade de repelir alinhamentos indesejáveis, assim como de agir militarmente além de suas fronteiras.

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Ele advertiu que para sustentar pretensões dessa natureza o País precisa de uma economia forte e de condições tecnológicas avançadas como fundamento econômico e de capacidade militar, além de um ser-viço de Inteligência.

Embora a América Latina experimente um período de relativa estabilidade institucional, o Coronel ainda vê ameaças de regressões au-toritárias na região, como Peru, Bolívia e Equador, para os quais o Brasil deve estar atento porque uma recaída autoritária pode ser prejudicial.

Para Cavagnari, os problemas imediatos que o Brasil tem no cam-po de segurança são poucos se comparados a outros países. Há ameaças concretas na Amazônia, mas por enquanto nenhuma dessas ameaças implica resposta militar.

A questão da instabilidade rural também preocupa. Ele falou de sua participação no encontro de 50 formadores de opinião e intelectuais, o “DNA Brasil”, em Campos do Jordão, onde conversou com Pedro Stédile a esse respeito. Disse para ele que o MST levaria à instabilidade e com isso eles iriam perder, mas Stédile discordou. De qualquer forma, ao se despedir, o líder do MST afirmou que procuraria se lembrar do que lhe havia dito o Coronel. Há também a questão da Tríplice Fronteira, que no seu entender ainda será objeto de muita pressão dos Estados Unidos, e por último o espaço aéreo amazônico.

Essas ameaças levam ao comportamento imperial dos Estados Unidos porque são ameaças ao mundo livre, mas as pressões hegemô-nicas dos EUA também ameaçam constantemente o Brasil, explicou o Coronel. Porque são pressões numa das suas áreas de interesse, que é a América do Sul.

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Para ter assento no Conselho de Segurança, o Brasil precisará dispor de forças de Imposição da Paz

Por causa disso tudo o nosso paradigma deve ser construir a grande potência, até para alcançar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, que o Brasil reivindica. Mas para isso o País precisará ter condições de participar das decisões cruciais que o Conse-lho de Segurança toma e que podem implicar o emprego da força sobre responsabilidade daqueles que detêm o poder de veto. Se o Brasil não tiver essa capacidade, se não dispor de uma força militar moderna, bem equipada, bem adestrada e uma parcela significativa dela em prontidão permanente, para ser empregada nas situações de imposição de paz, não será cogitado como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.

Por isso que a Austrália e o Canadá procuram participar de forças de imposição da paz e não de forças de manutenção da paz, porque é crédito para eles disputarem uma cadeira no Conselho de Segurança. Ope-rações de manutenção da paz são operações de polícia militar. A Austrália esteve presente no Timor Leste, o Canadá esteve na península Balcânica como força de interposição entre forças de confronto ou como força de imposição da paz. No caso do Timor Leste, por exemplo, embora lá se fale português, o coronel acha que se precisar entrar uma força no Timor não é o Brasil que vai fazer isso, primeiro porque está longe e segundo porque se recusa a participar desse tipo de operação. E quem não tiver essa força estará eliminado de fazer parte do Conselho de Segurança. Mas essa capacidade militar não poderá estar dissociada do Estado de direito, outra credencial importante para ter assento no conselho.

Ao final da exposição do Coronel Geraldo Cavagnari, o Ministro José Carlos de Araújo Leitão, da Secretaria de Acompanhamento e Es-tudos Institucionais (Saei), abriu o primeiro bloco de perguntas pedindo

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que o coronel expusesse a relação existente entre capacidade militar e capacidade tecnológica. Ele também solicitou que o expositor ampliasse sua abordagem sobre a crise dos mísseis soviéticos em Cuba. O bloco de perguntas foi completado pelo Ministro-Chefe do Gabinete de Segu-rança Institucional (GSI), General Jorge Armando Felix, que indagou sobre a existência de uma posição americana de consentimento, ou até mesmo de estímulo, para o Brasil assumir uma posição de liderança na América do Sul.

O Coronel respondeu que não podemos ter capacidade militar sem um apoio tecnológico, para permitir uma indústria bélica forte. Mas ad-mitiu que isso já se observa nas universidades brasileiras, principalmente na USP e na Unicamp, que estão bem avançadas no campo tecnológico, inclusive com parcerias com empresas.

Sobre a crise dos mísseis, explicou que havia uma pressão da Casa Branca para que se usasse a arma nuclear, se a União Soviética não retirasse seus mísseis de Cuba. Mas uma pressão diplomática dos Estados Unidos fez a própria União Soviética reconhecer que estava fazendo uma aventura por causa de um país pequeno, Cuba, inexpressi-vo em termos da sua grande estratégia, e que poderia colocar a pique a estabilidade do mundo.

Os Estados Unidos só aceitam a liderança do Brasil na América do Sul, se ela não ameaçar a sua hegemonia

Sobre a possibilidade dos Estados Unidos estimularem uma lide-rança do Brasil na América do Sul, o Coronel disse que eles não estimu-lam processos sobre as quais não tenham controle. Os Estados Unidos aceitam essa desenvoltura do Brasil desde que a liderança brasileira não

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ameace a sua hegemonia na América do Sul. Eles aceitam o Brasil não hegemônico, porque não cabem no mesmo espaço duas hegemonias. Ou são eles ou o Brasil.

No campo da segurança, respondeu que tudo o que o Brasil fizer não poderá comprometer a segurança do hemisfério. Disse que não po-demos pensar na Argentina para fazer segurança regional. Os argentinos não aceitam a assimetria, econômica ou militar. Então é muito difícil se fazer uma segurança regional contemplando a aliança Brasil/Argentina porque eles vão fazer com que essa aliança seja simétrica.

No segundo bloco de perguntas, o Comandante Armando Amo-rim Ferreira Vidigal quis saber do Coronel Geraldo Cavagnari se seria possível uma integração militar do Brasil com a América do Sul capaz de viabilizar uma indústria militar brasileira, já que ele considera que nas condições atuais do Brasil é extremamente improvável que haja uma economia de escala que torne viável a existência de uma indústria nacio-nal. Como exemplo de sucesso nessa cooperação, o comandante citou o reparo que a Marinha fez no submarino argentino Santa Cruz, no Arsenal de Marinha no Rio de Janeiro. E o professor Alexandre Martchenko quis saber como deve ser a participação do Brasil nas forças da ONU, se de manutenção da paz ou de imposição da paz.

O Coronel Geraldo Cavagnari respondeu que para o Brasil fazer uma integração industrial bélica com os países sul-americanos, tem que ser seletivo, mas antes de fazer isso precisa reconquistar a posição que teve no cômputo do comércio mundial de material bélico. E tem que consolidar a sua indústria, não somente a indústria bélica, mas tam-bém as suas bases científicas e tecnológicas que vão ser praticamente o software da indústria bélica.

O reparo de um navio ou de um submarino, no entender do Co-ronel, não se compara ao projeto de cooperação aeronáutica feito com a Argentina para construir aviões de passageiros. Na ocasião o Governo

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argentino não pagou nada do que foi gasto, o Governo brasileiro atrasou os repasses e a Embraer quase foi à falência, porque bancou com os seus recursos.

Ele disse que ainda não via confiabilidade nesses países para participarem de empreendimento dessa natureza e sugeriu que o Brasil pode se associar a outro país para produzir determinados componentes como os Estados Unidos fazem.

O Coronel também acha que devemos deixar um pouco de lado arroubos de liderança ou sonho de hegemonia, que podem criar proble-mas com os EUA.

Quanto à pergunta do Professor Martchenko, ele acha que temos que participar com forças de manutenção da paz, e depois de imposição. Repetiu que participar do Conselho de Segurança com o poder de veto é participar das decisões mais cruciais no que diz respeito à segurança internacional. Só as grandes potências que pertencem ao Conselho de Se-gurança têm Forças Armadas com capacidade de prontidão imediata. Os Estados Unidos, a França, a China, a Rússia, a Grã-Bretanha têm forças armadas de Imposição de Paz. Só participam de Forças de Imposição.

Sugeriu que a Austrália, que ainda não pertence ao Conselho de Segurança, é uma séria candidata. Justificou porque naquela região do Pacífico Central ela é a maior potência, com alcance sobre o arquipélago das Filipinas e o arquipélago da Indonésia que são massas territoriais significativas, principalmente populacionais e depois tem uma área al-tamente sensível que é a existência de um forte contingente muçulmano que está na Indonésia, num país de duzentos milhões de habitantes.

No terceiro bloco de perguntas o Comandante Luiz Gusmão, do GSI, pediu ao Coronel Geraldo Cavagnari que fizesse uma reflexão den-tro do tema proposto “Desafios da Atividade de Inteligência do Século XXI”, diante dos acontecimentos de 11 de Setembro quando, na sua

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opinião, ocorreu a negação dos numerosos serviços de Inteligência da maior potência, que não foram capazes de identificar a ameaça terrorista. A segunda pergunta foi da professora Ana Maria Junqueira Dantas, da Abin, que indagou sobre o papel da Inteligência diante das grandes ame-aças e das grandes questões estratégicas. Finalmente, o Coronel Reinaldo Silva Simião, do Estado-Maior da Aeronáutica, depois de considerar o problema rural como uma ameaça estratégica interna, perguntou se a questão agrária não estaria associada à questão ideológica, que o siste-ma de informações anterior trabalhou, ou se hoje essa questão já não se constitui mais em ameaça.

Ele iniciou sua resposta pela última questão, lembrando que o sis-tema anterior trabalhava voltado, fixado no inimigo interno, e que a nossa preocupação com a área rural é antiga. Um dos fatores que contribuíram para 1964 foram as Ligas Camponesas, que tentaram mas não conseguiram a desestabilização da área rural. Se houver essa desestabilização, o governo terá de tomar decisões sérias a respeito. Porque hoje o agronegócio é um dos sustentáculos da nossa economia e a desestabilização da área rural é muito perigosa para nós. Primeiro porque compromete uma área econômica altamente sensível da economia brasileira. Segundo porque considera a proposta ideológica do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra socialista, mas de um socialismo puramente estatal ultrapassado.

Quanto ao papel da Inteligência no Brasil, disse que ela tende a se desenvolver em função dos interesses brasileiros, como o narcotráfico, mas o assunto deve ser de competência da Polícia Federal. A Abin não precisa cuidar de narcotráfico. Ela tem que ser informada, estar a par do narcotráfico, mas não quer dizer, necessariamente, que seja sua principal atividade. A principal atividade da Inteligência é, indiscutivelmente no campo da segurança e no campo da tecnologia. Além de se voltar para fora do País, o que implica atividades de Inteligência e de Contra-Inte-ligência.

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Respondendo agora ao Comandante Gusmão, disse que foi a falha da Inteligência que permitiu o 11 de Setembro. A CIA abandonou o trabalho de campo, estava abandonando o trabalho de campo há muito tempo acreditando que os satélites e a inteligência eletrônica fossem capazes de substituir os trabalhos dos agentes no campo. Não foi só a CIA, mas o FBI também, porque a Contra-Inteligência em território continental dos Estados Unidos é responsabilidade do FBI. Eles foram surpreendidos por causa desse trabalho que praticamente foi abandona-do ou negligenciado. O número de agentes na atividade de Inteligência externa e na Contra-Inteligência dentro do território continental, nos Estados Unidos, diminui consideravelmente desde o fim da Guerra Fria. E eles foram surpreendidos.

INTELIGÊNCIA E INTERESSES NACIONAISAlmirante Armando Amorim Ferreira Vidigal

O Almirante Armando Vidigal vê uma relação muito grande entre relações internacionais, competitividade e inteligência. Por isso sua análise teve como ponto de partida as relações internacionais e a competitividade entre as nações.

No período entre guerras, ou seja, de 1918 a 1939, houve nas relações internacionais a predominância de uma vertente que chamou de liberal nas relações internacionais. Essa vertente é uma herança do Iluminismo europeu que punha toda a confiança na razão humana e na possibilidade de evitar que as tensões internacionais fossem resolvidas por meio da guerra. Seus teóricos acreditavam no sucesso da Liga das Nações, que não considerava a guerra um recurso válido para as relações internacionais.

A II Guerra Mundial, uma catástrofe para aqueles teóricos, veio

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mostrar que as coisas não funcionavam assim. Com o início da Guerra Fria ganhou mais força ainda a idéia de que as relações entre as nações são relações conflituosas. Há uma total insegurança em termos globais e daí nasce uma vertente que passa a dar grande valor ao problema es-tratégico, aos problemas de ordem militar.

Essa vertente, chamada de realista, passa a ter força durante a Guerra Fria. Porque todos os países sentiam que precisavam proteger-se das ameaças recebidas. Outros tinham vontade de aumentar a sua participação no cenário internacional e isso é margem para conflitos, para divergências.

Explicou que nessa vertente as questões estratégicas ou questões militares eram absolutamente predominantes. Em conseqüência dessa visão limitada, há margem para o surgimento da vertente chamada abran-gente, do inglês “widener”, mostrando que além das ameaças militares, existem as de ordem política, econômica, social ou ambiental.

Esta é a posição da Escola de Copenhague, surgida em 1985. Essa Escola sofre a crítica de uma vertente associada à Escola de Frankfurt, que considerava que as pesquisas de segurança devem colaborar para o permanente desenvolvimento da espécie humana e, em conseqüência, outros valores devem ser priorizados, além da segurança, como a liber-dade e a fraternidade. A segurança pessoal seria mais importante do que a do Estado.

Qualquer que seja a visão adotada por essas Escolas para os prin-cípios que regem as relações internacionais, o papel da Inteligência é a avaliação das ameaças à segurança. Para o almirante, a visão da Escola de Copenhague, temperada em parte pelas críticas da Escola de Frank-furt, é um bom ponto de partida para a definição das áreas de atuação da Inteligência, que é totalmente abrangente e quase ilimitada, tanto no campo interno quanto no externo.

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Segundo ele, a atuação dos órgãos de Inteligência no campo interno é absolutamente imprescindível, e independe do regime de go-verno, autoritário ou democrático. Os movimentos sociais, de qualquer tendência, mas especialmente os que atuam em descompasso com a lei, devem ser acompanhados pelos serviços de Inteligência de modo a permitir a ação preventiva do Estado. O fato de que o Estado autoritário possa usar o seu serviço de inteligência para perseguir grupos políticos que se opõem aos interesses de governo, não deve coibir a ação do Es-tado democrático de direito de agir sempre que pessoas ou grupos atuem contra os interesses do Estado.

Para o Almirante, quando da instituição do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) e da criação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), ficou claro que o nosso sistema está fundamentado na vertente abrangente mas tendo levado em conta a vertente crítica: as atividades da Agência devem estar voltadas para a defesa do Estado Democrático de Direito, da sociedade, da eficácia do poder público e da soberania nacional.

Há uma outra ótica, disse, para definir a responsabilidade da In-teligência que é a transnacionalização. Hoje o crime organizado é trans-nacional. Hoje o terrorismo é transnacional. Então esses dois elementos, hoje, passam a ser objeto de preocupação da Inteligência.

Em dezembro de 2002 a Organização Marítima Internacional (IMO), por pressão dos EUA e outros países, adotou emendas à Conven-ção Marítima Internacional para Salvaguarda da Vida Humana no Mar – Convenção Solas. Essas emendas criaram um novo Código de Segu-rança e Proteção de Navios e Instalações Portuárias, o chamado Código ISPS, com o propósito de proteger embarcações, portos e terminais de ataques terroristas e, concomitantemente, impedir que as embarcações e suas cargas possam servir de veículo para atos terroristas. O Código está em vigor desde o dia 1º de julho de 2004.

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Trata-se de um acordo multilateral para se tentar coibir o ter-rorismo, mas de forma unilateral os Estados Unidos criaram a Lei do Bioterrorismo, que obriga todos os exportadores de alimentos para aquele país, a identificarem todas as partes intervenientes no processo de produção e comercialização do produto. Os EUA também criaram a Iniciativa para a Proteção dos Contêineres (CSI) estabelecendo que sejam verificados no porto de origem por pessoal americano, para que o contêiner tenha liberação mais rápida no porto norte-americano de destino. Com isso, o combate ao crime organizado e ao terrorismo se torna uma tarefa transnacional.

É preciso, entretanto, que haja uma certa cautela para que na cooperação entre serviços de Inteligência, o mais fraco não acabe sendo dominado ou comandado pelo mais forte. A soberania tem que prevalecer nesses casos.

Nos Estados Unidos tem havido muita confusão entre a ação da CIA e do FBI. Por causa da transnacionalidade do crime organizado e do terrorismo as ações desses dois órgãos estão começando a se confundir certas vezes, provocando uma série de problemas.

Disse que é preciso lembrar que existe a Contra-Inteligência e que cabe ao Governo se proteger contra os serviços de Inteligência es-trangeiros, não apenas governamentais, não só com relação a assuntos militares, mas também em relação a matéria não-militar como a proteção dos segredos industriais.

Para um país que procura uma maior inserção no mercado internacional, é enorme a importância do Serviço de Inteligência

Para mostrar que esse problema existe de fato, lembrou que o

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Brasil vem resistindo a um tipo de inspeção da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) para proteger o segredo industrial de suas centrífugas que podem vir a ser um importante fator para a entrada do país no rico mercado internacional de urânio enriquecido. A razão aparente para as pressões é forçar a adesão do Brasil ao Protocolo do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), mais exigente em termos de visitas do que o próprio Tratado.

Para um país como o Brasil que procura uma maior inserção no mercado internacional é enorme a importância de serviços de Inteligência e Contra-Inteligência. Isso é uma conclusão lógica, natural e que se im-põe. No Estado Democrático realmente há um risco, quando se procura implementar políticas de Inteligência. Corre-se o risco de fazer o mesmo que se está querendo reprimir. Já tivemos uma porção de exemplos.

As relações entre o Governo e a Inteligência são relações estra-nhas, pois significa ter independência na dependência. Evidentemente que os órgãos de Informação ou de Inteligência dependem totalmente do governo para recursos, para tudo. No entanto eles têm que manter a sua independência. Mesmo dentro dessa dependência total e absoluta têm que ser independentes. Porque afinal de contas o serviço de Inteligência tem que atender muito mais os interesses do Estado do que do Governo. O Governo é transitório, o Estado é permanente.

O espectro das possibilidades de ingerência do governo nos ór-gãos de Inteligência é ainda mais amplo. As justificativas dos EUA para a invasão do Iraque, e do Reino Unido para apoiá-lo, basearam-se em informações supostamente produzidas pelos serviços de Inteligência que atribuíam a Saddam Hussein a posse de armas de destruição em massa, o desenvolvimento acelerado de armas nucleares, ou de que mantinha relações com a Al-Qaeda. Posteriormente, essas informações mostraram-se infundadas.

O Almirante citou dois jornalistas americanos, Paul Krugman e

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Nicholas Kristof, que acusam o Governo Bush de manipular informa-ções sobre as armas de destruição em massa no Iraque, encomendando relatórios que dessem apoio à decisão já tomada de atacar o país.

E lembrou que a legislação brasileira é muito clara e específica com relação aos conhecimentos adquiridos pelo serviço de Inteligência, os quais em momento algum poderão ter utilização de caráter pessoal em favor de grupos, diversa do seu fim específico.

Ele também apresentou manifestações de um ex-funcionário da CIA, Vitor Marchetti, condenando as operações encobertas dos serviços de Inteligência, da sua utilização como um braço operacional ou instru-mento da Presidência e de um grupo de homens poderosos, totalmente independentes do acompanhamento público, cuja principal finalidade é interferir nos assuntos domésticos de outros países.

Depois de considerar essas operações clandestinas ilegais e an-tiéticas, questionáveis tanto do ponto de vista moral quanto em termos práticos para a nação, o próprio Marchetti conclui que “no longo prazo, a não interferência e a correção de atitudes irão aumentar a posição e o prestígio internacional”.

Para o Almirante, a coleta de informações também exige ética. Se a coleta de informações se der no campo interno, evidentemente temos que estar no estrito cumprimento da legislação do país. O interrogatório, que é uma das maneiras de se coletar informações, acha que deve ser feito como se fosse para prisioneiro de guerra de acordo com a Convenção de Genebra. Da mesma forma, ele acredita que a infiltração de agentes e o agenciamento de informações podem ser feitos eticamente.

De acordo com o Almirante, enquanto a nossa legislação se baseia em princípios éticos, a coleta de informações no campo externo tem di-versas modalidades: assassinatos, sabotagem, há muitos atos agressivos. Como exemplo, além de Israel, com sua política de assassinatos seletivos,

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ele citou os EUA, que vêm empregando assassinatos e sabotagem.Por outro lado, comentou que a China passou a adotar na sua

estratégia militar um tipo de operação sui generis, as operações não mili-tares de não-combate, que assim são consideradas porque não envolvem nenhuma ação de combate. Em outras palavras é o uso do terrorismo do Estado. Os chineses dizem com toda tranqüilidade: numa guerra convencional não podemos enfrentar os Estados Unidos.

A coleta de informações nem sempre precisa ser feita de uma maneira sigilosa, explicou o Almirante. Ela pode ser ostensiva e é im-pressionante o acervo de informações que podem ser obtidas dessa forma. O Tenente-General Reinhard Gehlen, que serviu a Hindenburg, a Hitler, à CIA, e finalmente durante 26 anos à República Federal da Alemanha como chefe do serviço de espionagem anti-soviética, diz o seguinte:

“Um chefe de órgãos de informações deve fazer tudo ao seu alcance, para desfazer a heresia de que o serviço secreto só deve se ocupar de fontes secretas e não dar atenção a material ostensivo que se encontra livremente a disposição em jornais e livros por todo o mundo”.

De fato, há um acervo enorme de informações ostensivas, como na Internet, que de tão exagerado chega a ser de difícil manipulação.

Já a coleta sigilosa o Almirante a classifica como uma operação não-paramilitar. É feita pelo agente encoberto, o “espião” da literatura policial. Ele tende a manter as suas mãos limpas de sangue e os seus crimes são do tipo do “colarinho branco”: conspiração, suborno, cor-rupção. Seu fracasso e sua exposição são em geral punidos com a sua expulsão do país onde ele está operando. Já o agente envolvido em ações

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paramilitares, pelo contrário, é um gângster que trabalha com a força, o terror e a violência.

Ele também chamou a atenção para a influência da tecnologia na Inteligência e voltou a citar Gehlen:

“Os progressos científicos nos campos da eletrônica cibernética e automação tornam necessários novos meios para se obter informações, mas também dão ao inimigo novos meios para guardar os seus segredos. Um verdadeiro arsenal de aparelhagem sofisticada tem sido acrescentado aos instrumentos convencio-nais do passado. Há necessidade de se dedicar uma atenção especial aos novos métodos científicos de busca de informes”.

A citação data da década de 80. Ele considera que hoje a situação é muito pior, quando se pergunta se a tecnologia vai substituir o espião tradicional. Disse que David Kay é taxativo na crítica que faz aos serviços de inteligência americanos, que estão abandonando os métodos tradicio-nais de coleta de informações para deixar tudo entregue aos satélites, aos aparelhos de escuta ultra-sigilosos, causa do mau funcionamento dos serviços de inteligência.

O Almirante sugeriu que essa substituição pode estar se dando porque na verdade o espião é um indivíduo pouco confiável em qualquer circunstância. A clandestinidade encoraja a amoralidade profissional e daí para a duplicidade é um passo.

E considerando que na vida real a questão da ética é de difícil consenso, lançou algumas perguntas para reflexão do auditório sobre o assunto: Se Bush ou Blair agiam no caso do Iraque com a absoluta

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convicção de que atendiam aos interesses superiores do Estado estariam eticamente justificados? Se de fato eles falsearam as informações ou deram interpretações tendenciosas para as informações que receberam dos seus serviços de Inteligência, mas estavam convencidos de que isso era do maior interesse do Estado, eles estariam eticamente justificados? Estaria o interesse nacional acima da ética? É possível dar tratamento ético às ações encobertas? Se a informação tem um valor muito grande, no sentido de salvar muitas vidas, o homem que interroga um preso tem o direito de violar os direitos humanos desse preso? Ele mesmo considerou as questões terríveis, mas encontrou a resposta em Hannah Arendt:

“Somos talvez a primeira geração a adquirir plena consciência das conseqüências fatais de um modo de pensar que nos força a admitir que todos os meios, desde que sejam eficazes, são permissíveis e justifi-cados quando se pretende alcançar alguma coisa que se definiu como um fim.”

Sobre o profissional da Inteligência, ele acha que não existe al-guém acabado, mas uma série de qualificações indispensáveis para um serviço de Inteligência. Esse profissional deve ser preparado, depois de recrutado no meio da sociedade e orientado para o serviço de Inteligência. Para ele no serviço de informação deve-se levar em conta até a formação do pessoal administrativo, do pessoal de copa, que deve ser de absoluta confiança e preparado para agir nessa área.

Defendeu uma cultura de informações e contra-informações, que não precisa necessariamente ter a legislação como peça fundamental, pois a legislação sempre permite uma série de interpretações e acaba prevalecendo a mais conveniente. Além disso, ela pode também ser

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simplesmente ignorada, burlada, o que no Brasil é tão freqüente. Para o Almirante Vidigal, o ponto principal é o homem, é quem faz parte do serviço de Inteligência. Esse homem é que tem que ter predicados e características adequadas.

No regime democrático, a Inteligência deve ser controlada pela sociedade

Para que o serviço de Inteligência possa desempenhar as suas tarefas de forma democrática e dentro dos princípios éticos, ele sugere um controle do serviço não somente pela sociedade, mas também que exista um autocontrole. O próprio serviço tem que controlar, ele tem que se fiscalizar, que se autodisciplinar, e esse é o maior seguro que a sociedade pode ter. Isso vai depender da qualidade dos homens que vão para o serviço de Inteligência. O homem do serviço de Inteligência tem que ser um homem realmente excepcional, em todos os sentidos da sua competência, do seu valor e da sua qualificação moral.

Os debates da segunda conferência foram abertos por Jeferson Mário, da Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais (Saei), que perguntou qual seria o papel dos movimentos sociais, hoje, numa democracia, pergunta que estendeu também ao Coronel Cavagnari. Em seguida, Joanisval Brito Gonçalves, do Senado Federal, abordou no seu questionamento dois pontos. Ele queria saber sobre a possibilidade de cooperação entre os serviços de Inteligência, diante dessas novas amea-ças, e qual seria a importância, no cenário brasileiro, da divulgação das atividades de Inteligência junto à sociedade. Completou o bloco o Bri-gadeiro-do-Ar Raul José Ferreira Dias, Chefe do Centro de Inteligência da Aeronáutica que perguntou como fazer para recrutar profissionais de Inteligência por meio de um concurso público.

O Almirante respondeu que o serviço de Inteligência é extrema-

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mente especial e só o pessoal administrativo deve ser convocado através de concurso público, e assim mesmo depois de muita triagem. Os agentes não podem ser recrutados por concurso público, defendendo um critério singular para a contratação do pessoal do serviço de Inteligência. Susten-tou sua opinião em Gehlen, um homem que tem uma vivência enorme no serviço de Inteligência, que defende o desenvolvimento de um outro sistema para a contratação de pessoal no serviço de Inteligência.

Sobre a divulgação do serviço de Inteligência, não vê nenhum paradoxo nisso. Defende a divulgação do valor e da importância do ser-viço de Inteligência para o País. Lembrou que muitas críticas foram feitas ao serviço de Inteligência, principalmente depois do final dos governos revolucionários, quando se duvidou da sua necessidade. Ele considera o serviço vital para o País e que a divulgação das suas atividades é im-portante para que a sociedade reconheça a sua importância.

Disse que a cooperação do serviço de Inteligência no campo internacional aumentou muito com o crime organizado, lavagem de di-nheiro, tráfico de drogas. E que os fatos estão mostrando a importância dos diversos serviços de inteligência dos países que estejam envolvidos nestas operações trabalharem harmoniosamente, em conjunto. Considera fundamental que eles mantenham essa cooperação.

Quanto à questão dos movimentos sociais, na sua opinião de-vemos considerar que pela nossa Constituição eles estão legitimados, mas deve ficar claro que eles não têm liberdade absoluta para realizar as suas ações. Eles precisam respeitar o direito de propriedade, as decisões judiciais e não podem realizar ações predatórias durante as suas ocupa-ções, derrubando cercas, abatendo gado, destruindo instalações dentro de uma fazenda, como está ocorrendo. Ele acha que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) está se tornando provocativo porque isso faz parte da sua estratégia por saber que quem grita mais alto tem as suas reivindicações atendidas.

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Na sua intervenção, o Coronel Geraldo Cavagnari recorreu a Francisco Graziano para responder a questão. O ex-presidente do Incra não é contra o MST, mas diz que no Brasil não existem mais terras de-volutas ou latifúndios improdutivos. Quem tem latifúndios no Brasil é o Exército, para seus campos de provas. As grandes propriedades, hoje, são altamente produtivas. Aquelas propriedades que eram improdutivas praticamente desapareceram.

O Coronel disse que os pequenos proprietários estão se engajando no agronegócio cooperativo, no Sul do País. Os outros que conquista-ram o campo no Sul de Mato Grosso, depois o Norte do Estado, e que estão ali próximos da Floresta Amazônica, em Goiás e para o Oeste do São Francisco eram pequenos proprietários que foram expulsos de suas terras e buscaram outras regiões. Conseguiram sucesso porque traziam uma tradição de agricultura familiar. Eles vinham da terra. Eles não eram homens expulsos das cidades, não vinham da pobreza, eram pessoas que tinham conhecimento, tradição agrícola e muita vontade de vencer.

No último bloco de perguntas o Capitão Alexandre Pereira Aguiar, do Comando da Marinha, manifestou preocupação com o problema da proteção do conhecimento por parte dos órgãos que produzem esse conheci-mento. José Irigaray, da Abin, perguntou sobre a possibilidade da atividade de Inteligência atuar identificando oportunidades para o Estado resolver determinadas questões, como a da fome, em vez de limitar sua atuação preocupando-se com ameaças e adotando uma postura defensiva.

Em sua resposta, o Almirante disse que a atitude defensiva vem mostrar que hoje estamos vivendo muito mais dentro daquela postura da Escola de Copenhague, daquela postura abrangente que vê a segurança agindo em tudo, considera que foi feita essa opção. Quanto à fome, ele concorda que também pode ser vista como uma ameaça porque enfraquece o nosso Estado social. Ele considera que todos esses fenômenos são objeto da Inteligência.

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Quanto a definir o que temos que proteger - tarefa para nosso serviço de Contra-Informações - considera um problema extremamente complicado. Deve ser um trabalho multidisciplinar porque um setor apenas terá dificuldade de identificar todas as áreas de risco. Reportou-se ao caso das centrífugas para enriquecimento de urânio, mas disse que há inúmeras outras coisas que poderiam ser trabalhadas e identificadas, já que todas as áreas sensíveis que trabalhamos são do interesse inter-nacional.

Exemplificou com a utilização do Rio Madeira como hidrovia para escoamento da soja do Centro-Oeste para o Porto de Itacoatiara, que permitiu ao Brasil colocar o produto nos mercados internacionais a preços abaixo do preço internacional. O problema é de tal ordem de grandeza, disse, que os Estados Unidos mandaram uma comissão ao Brasil para verificar como conseguimos chegar a exportar soja a um preço altamente competitivo.

Em sua resposta, o Coronel Geraldo Cavagnari também concor-dou que a fome é uma ameaça, mas acha que temos uma estrutura civil capaz de dar solução a esse problema. Na sua opinião, não precisamos direcionar as atividades de Inteligência para um problema quando existem outros órgãos que poderão oferecer melhor solução, e se começarmos a olhar tudo o que contém ameaças, a inteligência não vai realizar coisa alguma. Por isso, temos que estreitar o leque das nossas opções enquanto estivermos reconstruindo o novo sistema de Inteligência, procurando ser seletivo na escolha dos objetos a serem considerados pelas atividades de Inteligência, sejam ameaças ou oportunidades.

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SISTEmAS DE INTELIGÊNCIA NO BRASILProfessor Jorge da Silva Bessa

Sobre o tema que foi proposto, “Sistemas de Inteligência no Brasil”, o Professor Jorge da Silva Bessa apresentou uma visão híbrida, porque foi um profissional que militou trinta anos na área de inteligência e hoje passou para o outro lado, militando na área acadêmica e na área da Inteligência competitiva.

Essa visão híbrida, disse, está baseada na experiência que acumulou em todos os órgãos de inteligência que serviam ao Governo Federal e que cul-minaram com a Abin. E também a visão dos acadêmicos, o que pensam, o que discutem. E como a Inteligência se divide, em nível estratégico e tático.

Na fundamentação básica para a existência de um serviço de Inte-ligência destacou a questão da sua legalidade e legitimidade. Acha que o Serviço Nacional de Informações (SNI) tinha legalidade, pois havia todo um arcabouço jurídico que dava legalidade à sua existência plena. Avaliou que talvez faltasse ao SNI a legitimidade que a Abin tem hoje, ou precisa conquistar. Para ele, essa legitimidade, dispensável nas ditaduras, não pode faltar a um órgão de inteligência no regime democrático.

Disse que antigos profissionais da Inteligência foram alvos da falta de entendimento sobre esse trabalho e por isso, também foram os primeiros a levantar a questão da legitimidade.

Depois de lembrar que informação é poder, ele defendeu a necessi-dade de controle da atividade de Inteligência, para evitar que seja usada para objetivos espúrios.

O Professor Bessa não vê necessidade de um código de ética específico para o pessoal da Inteligência, já que militares e diplomatas que tratam de segredos de Estado não têm um código de ética específico.

Sobre a razão de ser de um sistema de Inteligência, ele acha que o

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serviço existe para fornecer análises e estudos que atendam as necessidades de alguém que decide. Sua finalidade é assessorar quem decide, pois a informação é que vai orientar o processo decisório, seja empresarial, seja governamental, seja na esfera militar ou qualquer outra. Outro aspecto que o Professor Bessa considera importante é o planejamento estratégico, que deve estar baseado nos estudos da Inteligência.

Ele discorreu também sobre a questão da Inteligência interna e da Inteligência externa. Disse que para alguns puristas Inteligência só pode ser externa. Segundo eles, Inteligência só pode ser a busca, o processamento e a disponibilização de análises, de estudos de situações, fatos, eventos, po-pulações, geografias, etc. de outros centros de poder. Mas ele acha que esse modelo não funciona porque para atender às necessidades de informação do Presidente da República, a Inteligência tem que contemplar os dois aspectos: lá fora e aqui dentro. Principalmente num país como o Brasil onde, muitas vezes, as necessidades da Inteligência se prendem muito mais ao interior, ao nosso processo de desenvolvimento, a gestão da administração pública. A grande dúvida que fica é se essa Inteligência, interna e externa, deve estar concentrada no mesmo órgão.

Ele disse que quando analisamos os modelos de Inteligência de Es-tados ditatoriais, como a KGB à época da sua existência com todos os seus homólogos do Leste Europeu, observa-se que todos eles se baseavam nesse sistema, congregando as duas áreas, interna e externa.

Essa observação remeteu o Professor para o aspecto da legitimidade do SNI. Ele acha que ninguém teria se preocupado com o SNI se ele esti-vesse atuando na China, na Rússia ou em qualquer país, mas, com a atuação interna, todos ficavam preocupados, porque a questão da violação dos direi-tos e garantias constitucionais preocupa a todos pois ninguém quer ter seus direitos violados.

Nesse contexto, ele acha que se deve discutir até que ponto a ativida-de do órgão da Inteligência viola os direitos humanos, pois se observa que

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a sociedade, através dos seus segmentos, mas basicamente o Parlamento, se cerca de várias garantias para evitar que esse órgão interno extrapole das suas funções.

Quanto ao profissional de Inteligência, Bessa acha que quando ele sai da escola carrega a dúvida de onde vai atuar, se na área interna ou externa. E começa toda uma série de problemas internos porque quem atua na área externa pode ter mais chances, mais possibilidades, mais vantagens, viagens ao exterior, possibilidade de ser um Adido de Inteligência, etc. A temática das relações externas é uma, e a das relações internas é outra completamente diferente. Apesar das suas correlações, aquele que cai na área interna vai achar que não está fazendo Inteligência. Ele vai cuidar de coisas pontuais que, às vezes, não interessam a quem vai tomar decisões. Já na área externa há aquela facilidade do contato, troca de conhecimentos com os serviços estrangeiros com os quais mantemos relações. Na opinião dele, a convivência das Inteli-gências interna e externa é uma questão ainda mal definida.

Sobre o Sistema Nacional de Inteligência (Sisni), afirmou que era um sistema montado dentro de um sistema de poder bipolar com a influência americana, já que o Brasil estava aliado ao pensamento geo-estratégico dos Estados Unidos. Ele foi criado sob inspiração da Escola das Américas, num contexto da guerra ideológica. Então o SNI nasce sob essa característica. Com a responsabilidade de atuar contra aquilo que era considerado a ame-aça maior, o Movimento Comunista Internacional. Não tinha meio termo. Vários teóricos tentaram fazer uma terceira via, mas o fato real é que você ou era pró-americano ou pró-União Soviética. O nível de abrangência era o mesmo de hoje: os aspectos interno e externo, sendo que o Sisni contava com a colaboração das assessorias de segurança e informação de cada ministério ou órgão da administração pública.

Para o Professor, esse sistema causava medo porque de fato, muitas vezes, foi utilizado politicamente, de forma incorreta. No entanto, acima de tudo, as assessorias eram partes importantes do sistema de informações à

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época. O suporte teórico era dado pela Escola Superior de Guerra (ESG), com seu conceito de Poder Nacional. Esse suporte teórico incluía os temas segurança e desenvolvimento, que era o binômio daquela época e em relação ao qual ele não observa nenhuma diferença: hoje como ontem, a sociedade quer segurança e desenvolvimento.

Bessa disse que a ESG era o grande centro do pensar estratégico do País, já que o mundo civil não se preocupava muito com essa visão. Já os militares, por tradição, por necessidade da profissão, tinham obrigatoriamente que ter essa visão estratégica. E através da ESG, participando dos seus cursos, os civis começaram a desenvolver a visão estratégica.

Ele considera o suporte teórico da ESG fundamental na constituição do Sisni, pois as condicionantes políticas exigiam que se atuasse dentro desse aspecto ideológico. Disse que tem satisfação de ter participado desse embate ideológico e que hoje se considera um vencedor da Guerra Fria, haja vista que na Rússia, com o desmantelamento da União Soviética, nunca mais o comunismo chegou ao poder pelo voto.

Para Bessa, acima de tudo esse sistema agia e trabalhava com um bri-lhantismo ímpar. Disse que quem conheceu o Plano Nacional de Informações e o seu detalhamento quanto às necessidades da informação, viu que era algo primoroso e único. O SNI, com a sua agência central, detinha poder incomen-surável como órgão central do sistema e ao qual todos deviam obediência. Funcionava um pouco à base do medo, mas funcionava e bem.

Bessa contou que se vivia uma época boa, pois o SNI tinha poder, dinheiro, importância. Seus funcionários tinham a auto-estima elevada, trabalhavam ali com satisfação. Até que, de repente, a situação se altera e a partir de 1985, com a eleição de Tancredo Neves, inicia-se o processo de redemocratização do País.

Esse sistema continuava funcionando, ainda que num nível mais lento, com outros condicionantes, e com outras preocupações. Tancredo Neves não

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assume, mas o chefe do SNI que ele havia escolhido imaginando todos os pro-blemas que iriam advir desse processo gradual de redemocratização, General Ivan de Souza Mendes, continuou e levou a bom termo esse processo.

Na opinião de Bessa, o grande problema vai acontecer com a eleição do Presidente Collor e o cumprimento da sua promessa de campanha de acabar com o SNI, que atingia de imediato vários segmentos que clamavam há muito tempo por isso. Ele acha que foi uma atitude inteligente, mas trouxe como conseqüência algo desastroso que foi a desintegração do sistema. Então o todo poderoso SNI, a agência central que tinha toda aquela capilaridade, que reunia todos os ministérios, onde as informações sempre fluíam tranqüila e normalmente numa direção única, se esfacela e nunca mais consegue se equilibrar. Esse período marca o momento negro da Inteligência, que ficou como um filho enjeitado.

A nova Inteligência surge com a Lei 9.883/99 e é regulamentada por dois decretos. Enquanto o antigo SNI era formado por todos os ministérios e órgãos do Governo, esse novo sistema é formado por apenas treze órgãos, onde se incluem a Casa Civil, através do Censipam, que cuida da proteção da Amazônia e suas fronteiras, do crime organizado, do contrabando, do narcotráfico; o GSI, como órgão coordenador; a Abin como órgão central, e o Ministério da Justiça, com a Secretaria Nacional de Segurança Pública, o Departamento de Inteligência da Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal. Para Bessa, essa visão é de segurança, de uso da Inteligência para o combate à criminalidade.

Quando o SNI ruiu, as forças Armadas montaram o seu próprio sistema de Inteligência

Segundo o Professor Bessa, é no Ministério da Defesa que encon-tramos os órgãos específicos de Inteligência: a Subchefia de Inteligência do Estado-Maior e o Centro de Inteligência do Exército. É o segmento militar

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que trata e assume a questão da Inteligência. É o mesmo segmento que sabiamente, em 1994, quando o sistema todo rui, montou o seu sistema de Inteligência militar, o sistema cooperativo. De acordo com o Professor, aquilo que as organizações civis não fizeram, os militares decidiram fazer e com isso não ficaram sem a sua comunidade, sem o seu sistema de Inteligência.

No Ministério das Relações Exteriores, o órgão que faz parte do sis-tema é a Coordenação-Geral de Combate aos Ilícitos Transnacionais. Isso o leva a interpretar que para o Ministério das Relações Exteriores sua colabo-ração com o sistema se dá apenas nessa questão dos ilícitos transnacionais, deixando a idéia de que cabe à Inteligência só a questão de criminalidade e ilícitos.

No Ministério da Fazenda, Inteligência é assunto para a Secretaria-Executiva do Conselho de Controle de Atividades Financeiras. Para Bessa, quando falamos sobre o controle de atividades financeiras, estamos falando em crime “do colarinho branco”, o que lhe faz parecer também que o mi-nistério e as pessoas que montaram o sistema acham que Inteligência trata apenas do aspecto criminoso.

Ele analisou, também, dentro do aspecto legal, como a Inteligência atua e que dificuldades tem para desempenhar seu papel. O artigo 2º da Lei 9.883/99 diz que: “Os órgãos e entidades da Administração Pública Federal que direta ou indiretamente possam produzir conhecimentos de interesse das atividades de inteligência, em especial àqueles responsáveis pela defe-sa externa, segurança interna e relações exteriores, constituirão o Sistema Brasileiro de Inteligência”.

Isso faz Bessa supor que os órgãos e os ministérios que estão fora do sistema não produzem informações ou não têm informações de valor para a Inteligência. Ele questiona como se pode desprezar informações do setor de agricultura, pecuária e abastecimento, setor este que está fora do Sisbin, e que hoje é a mola do desenvolvimento do País. Ele entende que qualquer problema, qualquer tensão, como a proveniente da ação do MST,

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qualquer lobby ou decisão que atinja esse setor influencia diretamente o País. Além do setor agrário também não fazem parte do Sisbin o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, que cuida das nossas exportações e de buscar os dólares que o Brasil precisa; o dos Transportes, que cuida de uma área estratégica para a economia e a segurança nacional; e o das Comunicações, também de fundamental importância na infra-estru-tura do País.

Embora o Itamaraty tenha um importante papel nas disputas comer-ciais, como as travadas hoje na Organização Mundial do Comércio (OMC), Bessa não considera excludente a participação da Inteligência para ajudar na busca das informações necessárias para auxiliar as autoridades governa-mentais nessa guerra econômica.

Bessa vê “uma forma de romper com o passado” quando a lei esta-belece que o sistema de Inteligência tem como fundamento a preservação da soberania, defesa do estado democrático, direito e a dignidade da pessoa humana. Mas quando a mesma lei remete aos tratados, convenções, acordos e ajustes internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, ele se preocupa quanto ao que devemos cumprir e preservar. Ele explicou que a sua preocupação se prende ao fato de que a busca de informações no exterior pode exigir do agente o rompimento de normas ou a violação das leis do país, para obter a informação que procura. Ele acha que isso amarra a atuação externa do órgão na busca de informações importantes.

Ele defende como fundamental para o Sisbin uma doutrina para que todos adotem uma única linguagem, como no tempo do SNI, assim como a ampliação do seu quadro de funcionários, que considera muito reduzido para alimentar de informações o processo decisório. Além disso, considera preciso também dar treinamento ao pessoal da sociedade de informação, apresentar uma nova visão para essas novas necessidades, diante da abun-dância de meios de informação, da tecnologia de informação que podem favorecer o trabalho desses profissionais.

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Outro aspecto que ele considera é a necessidade da recuperação da auto-estima dos profissionais. Essa recuperação da auto-estima é que deve estar ligada, obrigatoriamente, a uma comunicação com a sociedade, uma interface aberta com a sociedade nacional. Mostrar o que é a Inteligência, o que fez no passado e faz hoje, seus êxitos e o que ainda pode fazer pelo País.

Por achar que ainda convivemos com uma mentalidade de que tudo que circula no âmbito da Inteligência tem que ser no mínimo confidencial, o Professor entende que está na hora de se flexibilizar o sigilo, como já se faz nos Estados Unidos e em outros países. Para ele, um sigilo excessivo impede que a informação chegue a outros decisores.

Bessa também vê uma tendência de privatização da Inteligência, como já se observa nos Estados Unidos. Segundo ele, os militares ameri-canos estão utilizando a Inteligência privada com resultados muitas vezes superior ao da Inteligência do Estado. Eles terceirizam o que a iniciativa privada pode fazer melhor. Sem enumerar, disse que nos EUA existe uma grande quantidade de empresas atuando no campo da Inteligência.

No primeiro bloco de perguntas ao Professor Jorge da Silva Bessa, Fernando Magalhães, da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Mi-nistério da Justiça, se reportou aos temas tratados durante a manhã, quando foi abordada a questão dos movimentos sociais, como o MST, para per-guntar ao Coronel Geraldo Cavagnari quais as perspectivas da Inteligência no acompanhamento do problema indígena, em vista dos vários interesses internacionais envolvidos na questão. O Ministro José Carlos de Araújo Leitão, da Saei, completou o bloco de perguntas indagando ao Professor Bessa sobre as diferenças e as semelhanças entre antigos analistas e jovens analistas. Ele ainda quis saber, diante da discrição que protege a atividade de Inteligência, como é que ficariam as relações entre os profissionais de Inteligência e a imprensa num regime democrático.

O Coronel Geraldo Cavagnari respondeu que a questão indígena

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se inclui, embora não tenha destacado, na questão da Amazônia. Porque a Amazônia não tem só problema de fronteira, mas tem o problema das reser-vas indígenas, do contrabando, do desmatamento, do garimpo, da presença das ONGs. Tudo isso está incluído na Amazônia, e a questão indígena é um dos objetos da atividade de Inteligência.

Já o Almirante Armando Amorim Ferreira Vidigal disse que tinha uma visão muito particular da questão indígena, que considera o índio como um cidadão que precisa ser recuperado para a sociedade brasileira e cuja cultura precisa ser preservada.

Defende a criação de escolas e de estímulos para incorporá-lo à nossa civilização. Transformá-lo num cidadão completo, pleno. Como exemplo, disse que o Exército faz muito a esse respeito, quando possibilita ao índio fazer serviço militar. Considera que a questão indígena está errada e defende sua completa reformulação.

O Professor Jorge da Silva Bessa esclareceu o que havia dito sobre as diferenças de atitudes entre jovens e antigos analistas, afirmando que quis se referir ao velho conflito de gerações, onde os mais antigos se sentem mais experientes e os mais jovens se consideram mais modernos. Quando o SNI estava nas mãos dos militares, nós nos revoltávamos porque como todo jovem, queríamos mudar o mundo. Entende que é o mesmo processo que acontece na Abin, só que agravado um pouco mais pela questão da legiti-midade que muitos jovens analistas acham que os antigos não têm, porque não passaram em concurso público. Todavia foram eles que plantaram e adubaram esse processo de transição que redundou, hoje, na Abin.

Como qualquer órgão governamental, a Abin também deve ter a sua assessoria de imprensa

Quanto à questão do relacionamento com a imprensa, considera

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que como qualquer organização governamental, a Abin também deve ter a sua assessoria de imprensa, até para desmistificar a Inteligência. E para isso defende não apenas a abertura de canais com a imprensa, mas acima de tudo utilizá-la para a Inteligência “cantar os seus louros”. Bessa disse que já no tempo do SNI eles recebiam jornalistas e conversavam com eles sobre Inteligência e Contra-Inteligência.

No segundo bloco de perguntas, a Professora Ana Maria Junqueira Dantas, da Abin, pediu um comentário sobre o tipo de Inteligência que se quer para o País, porque na opinião dela isso não está claro na lei, considerando que a legislação do Sisbin acabou criando um órgão de informações, e não de Inteligência. O Coronel Reinaldo Silva Simião, do Comando da Aeronáutica, no mesmo contexto da abordagem da professora Ana, quis saber se não estaria faltando um Plano Nacional de Inteligência ou um Plano Nacional de Informações no sistema atual, para que ele funcionasse como o antigo. Fechando o bloco, José Irigaray, da Abin, fez dois comentários à palestra do Professor Bessa, primeiro para dizer que a maioria dos que atuam na Inteligência também discordam da formatação que a lei deu ao sistema, especialmente no que diz respeito a alguns órgãos que deveriam integrá-lo, e outros que estão e não deveriam integrar o sistema. A outra questão foi sobre o conflito de novos e antigos funcionários, que ele não acredita que exista, pois considera normal em qualquer organização a troca de opiniões de como fazer coisas com visões novas e antigas, sem que isso pudesse caracterizar um conflito.

O Professor Jorge da Silva Bessa disse que concordava plena-mente com o Professor José Irigaray e que provavelmente não tenha sido entendido quando se referiu ao passado, falando de conflito entre jovens agentes e a cúpula militar do sistema. Ele aproveitou para afirmar que na verdade também não vê conflito.

Com relação às observações da professora Ana, respondeu que não basta conceituar o que é Inteligência, mas que é preciso definir efeti-

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vamente qual é a missão e que diretrizes tem um órgão de Inteligência.Lembrou que no final do governo passado, o presidente enviou

para o Congresso a proposta do Plano Nacional de Inteligência. Após dois anos de debates, o GSI retirou esse projeto e passou pela experiência da “gestão participativa”, com o objetivo de ouvir a sociedade sobre a atividade de Inteligência. Disse que na sua época foi feita uma proposta semelhante, mas advertiu que não interessa ter um documento formal, mas que as missões sejam claras, para que se possa cobrar e que cada um saiba o que tem a fazer. Ele afirma que não adianta um sistema formal que ninguém obedece. Sua percepção da criação da Abin é que o sistema nasceu sob o signo da timidez, para não assustar.

Sobre o modelo de Inteligência, Bessa acredita que o País deve ter seu modelo próprio. E este modelo não deve ter, como hoje, limitações de pessoal e de orçamento, quando sabemos que órgãos de menor hierarquia contam com mais recursos. Para conseguir os recursos, ele afirma que o sistema deve mostrar a sua necessidade, a sua competência.

Antes da palestra do Professor Alexandre Martchenko, o repre-sentante do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), Luiz Augusto Cardoso, fez uma breve ponderação sobre a palestra do Professor Jorge da Silva Bessa. Disse que o MCT considera a Inteligência fundamental e imprescindível, mas que da mesma forma que não se pode simplificar a atividade de Inteligência, também não é possível, como fez o Professor, simplificar uma observação sobre ações científicas.

Ressalvando que não sabia se era a mesma pesquisa a que o Professor Bessa se referira a respeito de mosquitos, ele disse que há uma área de alta tecnologia de produtividade de frutas do Nordeste na qual o ministério investe muito e conseguiu, através de uma inversão de trabalho em cima de uma mosca, basicamente evitar a destruição quase que completa da produção de fruticultura na região.

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PRImÓRDIOS DA ATIVIDADE E EVOLUçãO DA INTELIGÊNCIA NO BRASILProfessor Alexandre Martchenko

O Professor Alexandre Martchenko abordou alguns pontos dos antecedentes históricos, dos primórdios da atividade, sua evolução recente e o que é Inteligência no Brasil.

Lembrou que um dos primeiros estamentos de segurança de Estado que se tem notícia foi o de Ivan o Terrível, na Rússia. Ivan Ter-rível, que já em 1564 criou a Oprichnik, um serviço de Inteligência que o ajudou a consolidar o seu poder. Em suas conquistas, os espanhóis, os ingleses e os portugueses também se valeram da atividade. Nos Estados Unidos o uso da Inteligência data da Guerra da Secessão.

Segundo o Professor, depois da II Guerra, com a disseminação da Doutrina de Segurança, em 1946, temos o marco inicial da Inteligência no Brasil dentro do contexto da bipolaridade, antes mesmo do estabeleci-mento da estrutura de Inteligência americana, que ocorreria em 1947.

A articulação da Inteligência brasileira com o exterior se daria, de acordo com Martchenko, nos Governos Costa e Silva e Médici. Foi quando começamos a ter alguma atividade mais preocupada em coletar dados e ter uma manifestação um pouco mais independente na nossa política externa.

A grande guinada viria no Governo Geisel, quando houve a de-núncia do acordo militar com os Estados Unidos e a assinatura do acordo nuclear com a Alemanha.

Contou que nessa época, o Brasil começou a ter uma atuação de Inteligência, em apoio a Angola, por parte do Movimento Popular da Libertação de Angola (MPLA) e a Moçambique, com a Frente de Liber-

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tação de Moçambique (Frelimo). Também nessa época se estabeleceu um posto de Inteligência em Bagdá, que seria muito importante para a nossa indústria de armamentos e a venda de armas para o Iraque, a Líbia e o Egito.

No Governo Figueiredo, ressaltou a criação de um posto da Inte-ligência no Peru para acompanhar a evolução do apoio militar da União Soviética a esse país. E que no Suriname foi criado um posto, de onde eram acompanhadas manifestações em El Salvador, Nicarágua, e Gra-nada. Lembrou que essas ações se inseriam na preocupação estratégica da Inteligência de antecipação de cenários.

Pouca gente sabe, mas a Inteligência brasileira teve grande atuação no exterior

Martchenko relatou como aspecto negativo o caso da Malvinas, quando a Inteligência brasileira naufragou, junto com muitas outras. Acha, no entanto, que isso teve um lado positivo, que foi a criação, em seguida, de um posto na Argentina que deu dividendos até para a con-solidação do Mercosul.

O Professor aponta a queda da União Soviética como um dos trabalhos mais importantes e interessantes da Inteligência brasileira acompanhando, treinando pessoas e lançando essas pessoas in loco, para que pudessem captar os dados e não ficássemos na dependência dos serviços aliados. Ele disse que na época, os trabalhos da Inteligên-cia passaram a serem valorizados para assessorar a área governamental e que, embora pouca gente saiba, foi fundamental porque antecipou informações para que o gestor da política externa pudesse direcionar melhor a sua decisão.

Martchenko se reportou também à situação do Oriente Médio e

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disse que se chegou a estudar a possibilidade da instalação de um posto na região, o que não ocorreu porque se entendeu que o posto em Genebra, como coordenador, resolveria a questão.

Mas com a redemocratização do Brasil, o serviço foi obrigado a trabalhar com situações que considerou inusitadas, como a de con-tar os bois no pasto. Por sobrevivência – e esse é um exemplo, que disse que passava aos novos, da necessidade do sistema se adequar às situações.

Quanto ao caso Collor, para ele foi um crime de lesa-pátria. Martchenko acha que o que foi feito nessa fase marca até hoje de forma indelével a atividade. Mas para ele, a atitude do ex-presidente mostrou a validade da Inteligência, porque sem ela do seu lado, não teve competência de manter-se no cargo.

Ainda sobre o Governo Collor, ele acha que o Departamento de Inteligência (DI), criado na época por Medida Provisória, foi um ato muito mais arbitrário do que a criação do SNI, que embora com todo o fervor da época revolucionária, foi criado após debate no Congresso.

Outro ponto negativo para o Brasil por falta do assessoramento da Inteligência citado por Martchenko foi o projeto de captação de cérebros da ex-União Soviética. Chegou-se a pensar na colaboração de cerca de 200 cientistas que iriam contribuir com as nossas atividades de pesquisa, mas isso não se concretizou e esses cientistas acabaram indo para outros países, como o Japão e os Estados Unidos.

A Inteligência daria sinais de soerguimento no Governo Itamar Franco. Até que no Governo Fernando Henrique criou-se a Abin e o General Alberto Cardoso foi convidado como assessor para estabelecer a agência. Abriu mão de sua carreira em prol de um ideal, em prol de uma idéia. Não se envolveu nas brigas palacianas da época, ou melhor, não as aceitou porque sabia onde se deveria colocar a Inteligência, mas

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ainda perdemos muito tempo, cinco anos dos dois governos, tanto que a Abin só foi promulgada em 1999.

O professor Martchenko relatou o prazo exíguo para a criação da Abin, de 180 dias, em meio às dificuldades ainda herdadas da Era Collor, como a extinção dos postos e a ausência da antiga capilaridade e de comando para o pessoal existente. Disse que mesmo com esses condicionantes a agência foi estruturada partindo do pressuposto de que a Inteligência dentro desse contexto tem a parte externa e a contra-espionagem, que é uma atividade intrínseca voltada, também, para o exterior.

Foram feitos contatos com serviços de Inteligência dos países da América do Sul e também com a África do Sul, que vivia a transição, o fim do regime de apartheid e tinha uma estrutura de Inteligência seme-lhante à nossa, inclusive quanto às preocupações com a segurança do Atlântico Sul.

Também foram estabelecidos contatos com os serviços que antes combatíamos no Leste Europeu, o russo, o polonês, o ucraniano e assim por diante, o que Martchenko considera uma das realizações mais posi-tivas, porque logo em seguida o serviço passou a capitalizar uma série de dados em maior profusão. Como nessa atividade ninguém sobrevive sozinho, havia o reconhecimento de que tínhamos dados diferentes e pas-samos a ter aquela moeda de troca. Além dessas realizações, ele destacou a inauguração do posto dos Estados Unidos, o primeiro da nova fase.

Outra realização que reputa importante e que traz dividendos, até hoje, para área de ciência e tecnologia, foi a criação de um simpósio na área de tecnologia sensível muito criticado na época, mas que hoje em dia uma vertente da Inteligência trabalha ainda com os dividendos dessa iniciativa de dez anos atrás.

O professor colocou também o que chama de marco teórico.

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Segundo ele, ponto de inflexão na área de Inteligência, embora muitos coloquem como o 11 de Setembro, ocorreu antes, na Guerra do Golfo, quando em meio aquela profusão de dados os Estados Unidos verificaram que 35% das suas baixas eram de fogo amigo. A operação Tempestade no Deserto tinha dados de monta, mas não tinha o conhecimento e a competência para gerenciá-los e trabalhá-los.

Em seguida, passou a falar sobre o funcionamento do Departa-mento de Inteligência, que deve considerar os dados mais recentes da conjuntura dos países, a economia internacional, o desenvolvimento científico e tecnológico e o combate às armas proibidas, aquelas de destruição em massa. Diante dessas situações supervisionadas pela área de Contra-Inteligência, explicou que o serviço atua através de viagens e de contatos com congêneres e órgãos da administração federal como o grupo superior nuclear, regime de tecnologia de mísseis, a parte biológica, biotecnologia. Não se trata, explicou, de imiscuir-se nas atividades dos outros e sim buscar complementaridade, e também a captação daquilo que é necessário.

Destacou também que no atual mundo multilateral, a formação de blocos torna cada vez mais necessárias reuniões das áreas de inteligência de países da América do Sul, inimaginável um tempo atrás.

Ele manifestou preocupação com a falta de unidade no sistema, provavelmente devida à ausência de uma doutrina.

Por tudo isso, Martchenko acha importante consolidar o sistema interno, para que se possa pensar nas ações externas. Quanto à nossa participação no exterior, considera irrisório o número de postos que temos hoje. Se a situação persistir, se não tivermos números de postos em profusão, vamos perder esse tempo da história.

Ele concluiu perguntando qual seria a Inteligência que foi discu-tida no encontro de estudos, e antecipou-se na resposta, afirmando que

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talvez não se saiba qual, mas ela tem que ser competente, estar amparada no conhecimento, e considerar a necessidade fundamental de sistemas de Inteligência no campo externo.

O primeiro bloco de debates sobre a palestra do Professor Alexan-dre Martchenko constituiu-se de considerações e de observações sobre o funcionamento do serviço de Inteligência.

O Brigadeiro-do-Ar Raul José Ferreira Dias, Chefe do Centro de Inteligência da Aeronáutica, observou que o marco doutrinário, na sua avaliação, que é também a posição da Inteligência da Aeronáutica, é a gênesis do sistema. Para ele, só uma análise estratégica permite identi-ficar os pontos fortes, os pontos fracos, as oportunidades e as ameaças. Segundo o Brigadeiro, esse conjunto é que vai estabelecer claramente a nossa política de Inteligência e em conseqüência a nossa estratégia – uma vai dizer onde queremos chegar e outra vai dizer como deveremos chegar lá. Ele acha que em função disso, um plano põe o sistema a funcionar porque o que temos hoje é um relógio desmontado, que pode não ser o ideal, mas que se for montado e receber corda começará a funcionar.

Na seqüência, Joanisval Brito Gonçalves, do Senado Federal, opinou que o maior desafio para a Inteligência brasileira é sobreviver, no sentido de conseguir fazer um trabalho eficiente e que tenha respaldo da sociedade e dos tomadores de decisão.

Para ele, antes de se discutir quais são as ameaças a Inteligência precisa saber o que é e do que precisa para existir. Joanisval disse que também pensa sobre a necessidade de se reestruturar efetivamente o sis-tema, de forma especial com relação ao orçamento e número de analistas. Ele questionou, por exemplo, a capacidade da Abin enviar agentes ao exterior caso fosse chamada a cumprir uma missão.

Considerando que a percepção da sociedade é que a Inteligência está vinculada ao aparato repressor, ele acha que a legitimização da Abin

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passa pela difusão de uma cultura de Inteligência não só nos órgãos governamentais, mas também junto à iniciativa privada, mostrando a existência das ameaças, como a espionagem industrial, e a importância de um sistema encarregado de tentar neutralizar essas ameaças.

Um outro ponto que ele abordou é como a Abin trabalha com aqueles que saíram do sistema, para saber o que eles estão fazendo e como é que eles poderiam ser úteis e se gostariam de voltar a servir ao sistema. No entanto, destacou que, na sua avaliação, a maior parte das pessoas que saíram não possuem uma visão boa da atividade de Inteligência.

É preciso conscientizar o Congresso sobre a importância, de um sistema de Inteligência

Joanisval também defendeu uma maior aproximação entre a Abin e o Congresso Nacional, lembrando que o Senado Federal dispõe de um consultor para a área de Inteligência que assessora todos os senadores, a Presidência do Senado, os órgãos do Senado e a Comissão Mista do Congresso no controle da atividade de Inteligência. Além disso, lembrou do papel do Congresso no controle da atividade de Inteligência e na aprovação do seu orçamento e reforçou a necessidade de uma aproxima-ção da Abin não somente com os parlamentares, mas também com seus assessores de Inteligência. Joanisval acredita que enquanto não houver uma conscientização do Congresso sobre a importância de um sistema de Inteligência, não haverá efetivamente sistema de Inteligência, e o sistema que existir vai ser ridicularizado.

José Irigaray, da Abin, depois de se reportar aos desvios da Inte-ligência para contar boi no pasto, medir nível de água nas barragens e, mais recentemente, para levantar os pontos de extrema pobreza no Brasil, defendeu a necessidade de se mostrar aos usuários da Inteligência para que ela existe. Ele acha que os clientes da Inteligência precisam saber

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o que pedir e, por seu lado, a Inteligência também precisa aprender a dizer “não” e indicar, quando for o caso, o órgão competente para dar a resposta solicitada.

Na opinião dele, só podemos discutir Inteligência vinculada a um projeto político, ou seja, a atividade de Inteligência tem que existir para atender uma necessidade. É preciso saber qual é o projeto político do Brasil, que tipo de informação o Brasil quer para se desenvolver e chegar a ser uma grande potência, e qual é a Inteligência que se quer. Essa Inteligência que se quer, defende Irigaray, é aquela que vai estar vinculada ao Brasil que se quer. Por isso, acredita que não adianta discutir qual é a Inteligência se não se sabe qual o país que se quer.

O Professor Alexandre Martchenko começou a responder a partir da observação do Brigadeiro Dias e considerou que dentro da idéia co-locada pelo representante da Aeronáutica de que há um sistema interno que não funciona, a solução talvez esteja em dar competência ao sistema para que ele possa mostrar a sua presença, mostrar que tem condições de colaborar com o projeto de desenvolvimento dentro de uma política de governo.

Em relação à colocação de José Irigaray, o professor disse que concordava quanto à necessidade de definição de uma política de Inteli-gência. Mas ele acha que diante da ausência dessa política, o desafio que se coloca para todos os profissionais da atividade é tentar provar com seu trabalho a necessidade da política de Inteligência.

Com relação ao contato com o Congresso, Martchenko lembrou que acompanhou o General Alberto Cardoso na primeira visita que o então Chefe do GSI fez ao Congresso para discutir a criação da Abin, tendo tratado, na ocasião, com o Deputado José Genoíno. Segundo o Professor, o Deputado ficou surpreso com a visita e até elogiou a proposta de criação da agência.

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Sobre a questão de dizer “não”, o Professor acha que para chegar a esse ponto é preciso competência e conhecimento. Esclareceu que quando se fala em unidade doutrinária, se recorda da proposta da antiga Escola Nacional de Informações (ESNI) e acha que pode ser adaptada à realidade de momento.

O Almirante Armando Amorim Ferreira Vidigal fez uma obser-vação à colocação do Brigadeiro Dias para dizer que, na sua opinião, a Inteligência não é um fim em si mesma. Ele considera evidente que precisamos ter uma política de Estado que defina o papel da Inteligência. Entretanto, num regime democrático é extremamente complicado fazer essa política de Estado. Ele acha muito difícil que a sociedade chegue a um acordo sobre o rumo que o Estado deva seguir, o que não acontece num regime autoritário onde se impõe o Estado que se quer.

Lembrou que no passado as Forças Armadas e o Itamaraty nunca receberam uma diretiva do Estado que estabelecesse qual era a concepção estratégica do Estado. O Itamaraty nunca recebeu uma orientação clara da política externa que deveria seguir e ia estabelecendo uma política externa ao sabor dos acontecimentos. Por sua vez, cada uma das Forças Armadas, da sua própria maneira, estabelecia sua própria diretiva. Diante dos exemplos que citou, ele sugeriu que a Inteligência faça o mesmo, enquanto não houver uma visão mais nítida do Estado.

A Professora Ana Maria Junqueira Dantas, da Abin, ponderou que na época do SNI não havia necessidade de se perguntar, porque todos sabiam qual a finalidade do serviço. Ela acha que as dúvidas quanto à missão do sistema surgem com a Abin, como ocorreu no caso da medi-ção do nível das barragens, consumindo em outra atividade os poucos recursos da agência.

No seu entendimento, esses recursos poderiam ser destinados à ati-vidade fim da Inteligência, ou seja, para prevenir as ameaças, da questão ambiental ao terrorismo, passando pela corrupção e o crime organizado.

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Além disso, poderiam ser utilizados para robustecer a própria estrutura da agência, como seus sistemas criptográficos, para que quando ocorra uma falha na segurança não se venha responsabilizar a Abin por não ter detectado a ameaça.

Para a Professora, os desafios já são mais do que conhecidos faltando apenas saber como a Inteligência vai se portar diante deles. O que a sociedade brasileira está disposta a dar, em que sentido ela está disposta a direcionar essa Inteligência e lhe oferecer os meios necessários para se contrapor e até para antecipar-se a essas ameaças, ou até criar oportunidades na guerra econômica, na guerra da informação, oportuni-dades essas que vão reverter em benefício, bem-estar social e vão poder minimizar os problemas sociais.

Seguiu-se a intervenção de Jeferson Mário, da Saei, que se con-trapôs à simplificação da questão do nível dos reservatórios, para lembrar que o trabalho da Abin foi desenvolvido dentro do contexto da crise de energia elétrica de 2001. Segundo ele, os dados levantados pela agência foram utilizados com propriedade em reuniões ministeriais, tanto que em certos momentos o órgão responsável pelo levantamento teve que rever os seus números, ou seja, a Abin participou efetivamente da crise e contribui para a tomada da decisão nacional.

Outra observação de Jeferson Mário foi para dizer que dentre os temas de responsabilidade da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional (Creden) está também a Inteligência. E no ano passado, lem-brou, essa Câmara de Governo definiu quais eram as diretrizes para a Abin e para o Sisbin e, portanto, indicou os temas a serem acompanha-dos. Dessa forma, Jeferson entende que já está claro que a Inteligência possui um norte a seguir.

Já Marlos Ribas Lima, da Abin, voltando à questão da medição de água e da contagem do boi no pasto perguntou se cabe à Inteligência contemporizar ou resolver problemas de ineficiência do Estado. Ele de-

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fende que se os dados da área do Governo que faz a medição do nível dos reservatórios não são confiáveis, que os responsáveis sejam substituídos, pois o desvio de função desvirtua a atividade de Inteligência e faz com que cada vez mais se confunda com uma atividade do Governo e não do Estado. Para Ribas, foi exatamente por agir complementando as funções dos Ministros de Estado, com um poder paralelo em cada ministério, que o antigo SNI acabou se enfraquecendo.

Ribas também questionou a necessidade de uma unidade de doutrina para o sistema, argumentando que os órgãos que integram esse sistema têm atividades muito díspares. Ele também lembrou que a Inte-ligência brasileira troca informações com outros países, sem que tenha necessariamente a mesma doutrina.

O Professor Alexandre Martchenko começou a responder essas colocações lembrando que em comparação com outros serviços, a pró-pria estrutura de Inteligência norte-americana ajuda a definir sua missão. Embora aceitando a colocação em relação à Creden, ele acredita que não existe uma definição clara da missão da Inteligência brasileira, mas disse que as suas iniciativas têm amparo na Constituição.

Quanto ao “alguém tem de dizer não”, afirmou que quando a Inteligência mostrar conhecimento, competência, capacidade, poderá evitar o que chamou de “fator de acomodação” do Governo.

Uma unidade de doutrina pode facilitar o trabalho da Inteligência

Sobre a unidade de doutrina, disse que como saudosista gostaria de ter uma Esni, mas reconhece que como os tempos são outros há ne-cessidade de uma adaptação. Ele acha que essa unidade não deve ser algo dogmático, mas em termos de uma linguagem comum, ou de acepções

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semelhantes. Admitiu que se houvesse uma política ficaria tudo mais claro, mas se ela não existe deve-se arquitetar uma maneira para que o serviço não tenha uma posição díspare.

José Irigaray, da Abin, fez nova intervenção para complementar a colocação de Jeferson Mário, da Saei, sobre a Resolução da Creden que determina quais os temas prioritários para a Abin ou para a atividade de Inteligência no Brasil, afirmando que sessenta dias depois o documento virou letra morta e que ele continua recebendo demandas de outros ór-gãos. E insistiu na tese de que se os recursos são poucos é preciso definir as prioridades.

Em seguida o Ministro José Carlos de Araújo Leitão, da Saei, indagou se, a exemplo das Forças Armadas e do Itamaraty, a Abin não deveria ter uma assessoria de imprensa que em vez de ser entregue a um jornalista, pudesse ser dirigida por um profissional da própria instituição e se isso poderia ajudar no processo de divulgação.

O Professor Alexandre Martchenko disse que concorda com a in-dicação de um profissional da Inteligência para a assessoria de imprensa, mas ele acha que poderia ser também um profissional da área de impren-sa. Considera que seria até mais fácil do que formar um agente para a função, o que já se tentou antes. Ele também defende que a divulgação é necessária, até porque na sua opinião mais de noventa por cento dos trabalhos da agência podem ser divulgados.

O Coronel Geraldo Cavagnari fez nova intervenção para dizer que as atividades de Inteligência estavam sendo muito adjetivadas. Ele acha que a Abin está passando por uma crise de identidade semelhante à que as Forças Armadas de um certo modo num determinado período também enfrentaram.

Ele disse que se observa uma diferença entre o comportamento dos funcionários de carreira de Estado no Itamaraty e nas Forças Arma-

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das com o funcionário da área de Inteligência. Algo que ele considera inadmissível é a organização sindical de carreira de Estado, a exemplo do que existe na Abin, ainda que em forma de associação de servidores. Ele admitiu que o problema é decorrente da ausência de uma mentalidade de preservação das carreiras de Estado no Brasil, mas apesar disso não se pode admitir que uma carreira de Estado esteja sujeita ao corporativis-mo. Esclareceu que essa posição não é só dele, mas também das Forças Armadas e do Itamaraty.

Sobre a questão das oportunidades, como a que se perdeu quando o País não conseguiu trazer os cientistas russos, o Coronel acha que Brasil deveria, a exemplo do que fazem Japão e Israel, exigir dos estudantes que estão fazendo cursos no exterior, principalmente os de doutorado, o envio de relatórios detalhados sobre as atividades dos países nos quais estejam vivendo no campo científico, tecnológico, militar, econômico etc. Para Cavagnari, o fato de termos centenas de bolsistas no exterior e nenhum relato do que se faz lá, mostra o nosso amadorismo tanto na área do Governo quanto na área de atividades de Inteligência. Segundo ele, os estudantes japoneses e israelenses enviam esses relatórios para as suas chancelarias, que os repassam para os órgãos de Inteligência.

A política de defesa, a política externa e a política de Inteligência são políticas de Estado, não são políticas de Governo. Existem algumas diretrizes. Por exemplo, o Governo Geisel baixou diretrizes para as Forças Armadas e que deram as bases do planejamento estratégico no Exército. Não tínhamos Ministério da Defesa, tínhamos uma política de defesa. Só que quando se executava a política parecia que tínhamos três políticas, porque cada Força fazia a sua política de acordo com os seus interesses corporativos. Por isso que tínhamos uma unidade na formulação da po-lítica e uma falta de unidade na sua execução.

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CONSIDERAçÕES fINAIS

Nas considerações finais o Comandante Cunha Couto, Secretário da Saei, disse que nas consultas feitas à sociedade sobre a atividade de Inteligência no Brasil, observou-se que poucos conhecem a ativi-dade. Sobre a Abin, ele afirmou que há um ranço que permanece com relação ao SNI. Curiosamente, ele disse que esse ranço não existe com relação à Polícia Federal que teve nos tempos de repressão uma parti-cipação exatamente igual à do SNI, e que isso se deve a um trabalho de comunicação com a sociedade, que não aconteceu com relação à atuação do SNI.

Ele também destacou, como foi citado pelo Professor Alexan-dre Martchenko, o contato com o Deputado José Genoíno e o trabalho desempenhado por esse parlamentar para a aprovação do projeto de lei que criaria a Abin. Cunha Couto defendeu a necessidade de ampliação das relações institucionais da Abin com o Congresso Nacional para uma melhor compreensão da sociedade sobre o papel de um órgão de Inteligência.

faltou por parte de alguns funcionários a compreensão da grandeza do trabalho de medir o nível das barragens

O Comandante Cunha Couto lamentou a falta de compreensão de funcionários da Abin para a grandeza de algumas tarefas que fo-ram solicitadas à agência, como a medição do nível dos reservatórios naquele momento que estávamos vivendo. Observou que quando o serviço foi solicitado a ajudar, o país passava por uma grave crise ener-gética. Segundo ele, se a Abin foi chamada, isso se deu num contexto de confiança na sua competência para levantar dados que pudessem

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indicar tendência do que aconteceria energeticamente no País. Para o Comandante, a Abin devia se orgulhar desse tipo de missão.

Sobre a Política Nacional de Inteligência enviada ao Congresso, Cunha Couto acredita que necessitava de aperfeiçoamentos, o que justi-ficou a sua não aprovação. Já com relação à definição feita pela Creden no tocante aos temas a serem seguidos pela atividade de inteligência, o propósito foi elencar aqueles temas já identificados como ameaças à segurança do Estado, mas com uma margem de inclusão de outros temas relativos a novas ameaças.

Ele chamou atenção para a necessidade de se compreender as diferenças entre o Sisni e o Sisbin, até porque eles se situam em mo-mentos totalmente diferentes. O comandante acha que o Sisni tinha a facilidade de ser totalmente hierarquizado, com a central chefiada por um general de quatro estrelas, as agências por generais de três estrelas e assim por diante. Já o Sisbin, explicou, se propõe a um voluntariado de adesão ao sistema. Nesse caso, sem imposição, é necessário mostrar que a Inteligência trabalha bem para que as pessoas possam aderir ao que está funcionando.

Sobre o cenário estratégico nacional, o comandante disse que o assunto está sendo coordenado pela Secom, que tem a gestão estratégica na sua área de competência.

Para que o Sisbin passe a funcionar, Cunha Couto sugeriu que a Escola Federal de Inteligência ajude nesse processo abrindo espaço para todos os órgãos que trabalham em Inteligência. Ele entende que a partir desse conhecimento e de uma convivência comum, pode-se ter a base de um sistema de Inteligência, que na sua opinião para funcionar bem, precisa ser praticamente unificado.

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A atividade diplomática tem muito da atividade de Inteligência

No encerramento do encontro, o Ministro José Carlos de Araújo Leitão, da SAEI, lembrou que na primeira reunião da Creden, no primeiro semestre de 2003, o representante do Itamaraty era o atual Secretário-Geral de Relações Exteriores, Embaixador Samuel Guimarães. Ao se falar sobre atividade de Inteligência, ele disse que a atividade diplomática era uma atividade de Inteligência, o que naquele momento lhe soou um pouco curioso, mas que hoje está convencido de que a atividade diplomática tem muito de atividade de Inteligência, sobretudo, no exterior. Ele se reportou a um ex-chefe que lhe ensinou que, na busca da informação, o diplomata não devia competir com a imprensa, e que o mesmo raciocínio também pode ser aplicado a Abin.