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CÂMARA DOS DEPUTADOS DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES TEXTO COM REDAÇÃO FINAL CONJUNTA - DIREITOS HUMANOS / LEGISLAÇÃO PARTICIPATIVA EVENTO: Audiência Pública N°: 1599/09 DATA: 24/09/200 9 INÍCIO: 09h47min TÉRMINO: 13h04min DURAÇÃO: 03h16min TEMPO DE GRAVAÇÃO: 03h16min PÁGINAS: 62 QUARTOS: 40 DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO ANTÔNIO MODESTO DA SILVEIRA – Advogado, ex-Deputado Federal e encaminhador da Lei de Anistia. PAULO ABRÃO PIRES JÚNIOR – Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. FÁBIO KONDER COMPARATO – Presidente da Comissão Nacional de Defesa da República e da Democracia da Ordem dos Advogados do Brasil. JARBAS SILVA MARQUES – Jornalista. SUMÁRIO: Debate sobre o princípio da imprescritibilidade dos crimes de tortura e as ações de responsabilização dos agentes do Estado que praticaram tais crimes na ditadura civil-militar que vigorou entre 1964 e 1985. OBSERVAÇÕES Audiência pública conjunta com a Comissão de Legislação Participativa. Houve exibição de vídeo. Há falha na gravação.

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CÂMARA DOS DEPUTADOS

DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

TEXTO COM REDAÇÃO FINAL

CONJUNTA - DIREITOS HUMANOS / LEGISLAÇÃO PARTICIPAT IVAEVENTO: Audiência Pública N°: 1599/09 DATA: 24/09/200 9INÍCIO: 09h47min TÉRMINO: 13h04min DURAÇÃO: 03h16minTEMPO DE GRAVAÇÃO: 03h16min PÁGINAS: 62 QUARTOS: 40

DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO

ANTÔNIO MODESTO DA SILVEIRA – Advogado, ex-Deputado Federal e encaminhador da Leide Anistia.PAULO ABRÃO PIRES JÚNIOR – Presidente da Comissão d e Anistia do Ministério da Justiça.FÁBIO KONDER COMPARATO – Presidente da Comissão Nac ional de Defesa da República eda Democracia da Ordem dos Advogados do Brasil.JARBAS SILVA MARQUES – Jornalista.

SUMÁRIO: Debate sobre o princípio da imprescritibil idade dos crimes de tortura e as ações deresponsabilização dos agentes do Estado que pratica ram tais crimes na ditadura civil-militarque vigorou entre 1964 e 1985.

OBSERVAÇÕES

Audiência pública conjunta com a Comissão de Legisl ação Participativa.Houve exibição de vídeo.Há falha na gravação.

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CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINALNome: Conjunta - Direitos Humanos / Legislação Part icipativaNúmero: 1599/09 Data: 24/09/2009

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O SR. PRESIDENTE (Deputado Pedro Wilson) - Declaro abertos os trabalhos

da presente audiência pública conjunta com a Comissão de Legislação Participativa,

que tem como finalidade debater o princípio da imprescritibilidade dos crimes de

tortura e as ações de responsabilização dos agentes do Estado que praticaram tais

crimes na ditadura civil-militar que vigorou entre 1964 e 1985.

A iniciativa de realização desta audiência partiu dos Deputados Pedro Wilson,

Vice-Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, e Iran Barbosa,

membro titular da Comissão de Legislação Participativa, a partir da Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, de autoria da Ordem dos

Advogados do Brasil – OAB, que tramita no Supremo Tribunal Federal.

O questionamento da OAB incide sobre a validade do art. 1º da Lei da Anistia,

que considera como conexos e igualmente perdoados os crimes de qualquer

natureza cometidos por motivação política no período de 2 de setembro de 1961 a

15 de agosto de 1979.

A entidade — a OAB — ingressou com ação junto ao STF em outubro de

2008. Para o Presidente da Ordem, Dr. Cezar Britto, essa questão precisa ser

debatida pela sociedade brasileira. “O Brasil precisa livrar-se do hábito de varrer

para baixo do tapete da história as suas abjeções. (...) Precisa entender que anistia

não é amnésia e que um povo que não conhece o seu passado está condenado a

repeti-lo”, declarou Britto à Agência Brasil em resposta a declarações do Ministro

Nelson Jobim, para quem a punição de militares que participaram de torturas no

período da ditadura militar seria revanchismo.

Lembramos que todos os acordos, tratados e declarações internacionais que

abordam o tema consideram a tortura um crime contra a humanidade e, por isso,

imprescritível.

Trata-se de um dos crimes mais hediondos existentes, e esta audiência deve

aprofundar a discussão sobre sua imprescritibilidade. Há várias posições

diferenciadas no Governo, nos tribunais e na sociedade. O nosso sentimento, acima

de tudo, não é de revanchismo, mas de justiça, que precisa prevalecer.

Já estão presentes o Deputado Iran Barbosa; o Dr. Antônio Modesto da

Silveira, ex-Deputado Federal, encaminhador da Lei da Anistia, e o Dr. Paulo Abrão

Pires Junior, Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Já está a

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caminho o Dr. Fábio Konder Comparato, Presidente da Comissão Nacional de

Defesa da República e da Democracia do Conselho Federal da OAB.

Vamos exibir um pequeno filme, com duração de 3 a 5 minutos, a título de

ilustração.

(Exibição de vídeo.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Pedro Wilson) - Está conosco também o

Deputado Roberto Britto, Presidente da Comissão de Legislação Participativa.

Convido para tomar assento à Mesa o Dr. Antônio Modesto da Silveira, ex-

Deputado Federal, um dos mais lídimos representantes da luta pela anistia e pela

democracia no Brasil, que honra este Parlamento, a quem faço esta homenagem por

direito e por dever. (Palmas.)

Convido também o Dr. Paulo Abrão Pires Junior, Presidente da Comissão de

Anistia do Ministério da Justiça, que tem feito um trabalho extraordinário não só em

Brasília, mas também em todo o Brasil, resgatando os direitos de anistiados, muitos

ainda não reintegrados. É uma honra para nós estar aqui com o Dr. Paulo Abrão e a

equipe da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Minha saudação ao Ministro

Tarso Genro.

Estamos aguardando o Dr. Fábio Konder Comparato.

Registro a presença do Deputado Dr. Talmir, representante de São Paulo, e

do Sr. Jarbas Marques, representante do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito

Federal.

Informo que o vídeo exibido é do projeto Memórias Reveladas e está

disponível na página desta Comissão, no endereço “www.youtube.com/cdhcamara”.

Antes de passar a palavra ao Dr. Antônio Modesto da Silveira, devo

esclarecer que a iniciativa de realização da presente audiência não foi somente

minha, mas muito mais do Deputado Iran Barbosa, professor, militante na área de

direitos humanos, uma das figuras mais representativas na luta pelos direitos

humanos e em favor da educação e cultura brasileiras.

Por isso peço licença ao Deputado Roberto Britto para convidar o Deputado

Iran Barbosa a coparticipar da presidência no início da presente audiência. Mais

tarde retomarei a presidência dos trabalhos, tendo em vista que S.Exa. tem de viajar

para seu Estado. Agradeço.

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Passo a presidência ao Deputado Iran Barbosa, que fará sua saudação inicial.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Iran Barbosa) - Inicialmente saúdo todos que

aqui se encontram.

Agradeço a aquiescência ao convite aos que vão estar conosco aqui hoje

debatendo um tema fundamental para nós.

Na condição de Parlamentares, de representantes do povo deste País, não

podemos prescindir de um debate tão profundo e complexo como este. Temos de

nos apropriar do seu conteúdo para que possamos efetivamente nos posicionar e

dar desdobramento ao tema nesta Casa. É imbuído desse espírito que eu, o

Deputado Pedro Wilson e os colegas que aprovaram o requerimento estamos aqui

hoje.

Sr. Presidente, antecipadamente peço desculpas porque, em razão de

compromissos no Estado, preciso pegar um voo — e os voos para Sergipe não

facilitam nosso trabalho. Vou ficar aqui até o limite possível em relação ao horário do

voo, mas estarei à disposição enquanto o tempo permitir.

Passo a presidência dos trabalhos ao Deputado Roberto Britto, Presidente da

Comissão de Legislação Participativa, para que possamos desde já iniciar nosso

debate.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Roberto Britto) - Bom dia a todos.

Nossos agradecimentos ao Deputado Iran Barbosa, que em bom momento

solicitou a realização da presente audiência pública da Comissão de Legislação

Participativa em conjunto com a Comissão de Direitos Humanos.

Sabemos muito bem que o nosso País hoje, democraticamente, senão

perfeito, é quase perfeito, temos a oportunidade de ter toda a estrutura de governo,

toda a estrutura legislativa e executiva aberta à sociedade. E não podia ser

diferente. Hoje, quando estamos primando cada vez mais pelos direitos humanos e

buscando cada vez mais o direito da sociedade, esta Casa abre-se plenamente para

dar a oportunidade de, nesta Comissão de Legislação Participativa, elo entre a

sociedade e o Parlamento, porta de entrada da sociedade para o Parlamento, a

sociedade organizada encaminhar suas propostas para serem transformadas em

projetos de lei e, a partir daí, seguir o trâmite normal, natural.

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Então, mais uma vez parabenizo o Deputado Iram Barbosa e agradeço ao

Deputado Pedro Wilson. Como disse o Iram, todos nós aqui, na quinta-feira, temos

limites em razão de problemas com horários de voo para os Estados, mas

estaremos todos juntos para debater tema tão importante e tão atual a respeito dos

direitos humanos.

Gostaria, nesta oportunidade, dando início às exposições, de passar a palavra

ao nosso convidado, Sr. Antônio Modesto da Silveira, ex-Deputado Federal e

encaminhador do projeto de Lei de Anistia.

O SR. ANTÔNIO MODESTO DA SILVEIRA - Muito obrigado, Sr. Presidente.

Quero cumprimentar os companheiros de Mesa, não só o Iram, o Pedro Wilson, o

Luiz Couto, e agora o nosso companheiro Paulo Abraão, enquanto aguardamos a

chegada do jurista Fábio Comparato, de quem eu estava lendo aqui essa arguição

apresentada ao Supremo.

São discussões de natureza jurídica, ou jurídico-política, creio que muito mais

política do que jurídica, até porque, nessas questões jurídicas, quando entra uma

discussão de natureza política, quase sempre prevalece a política. Se é assim,

quando eu estava começando a ler a arguição do Fábio, chegava aqui o nosso

companheiro Jarbas Silva Marques, que está ali bem à minha frente.

Tenho observado que em cada lugar do Brasil, de Belém a Porto Alegre,

talvez do Oiapoque ao Chuí, onde há uma comunidade de 10, 15, 20 pessoas, pelo

menos uma foi ou é meu ex-cliente, um perseguido político. E ele foi um dos meus

defendidos que mais tempo ficou preso — quase 10 anos.

Portanto, histórias não lhe faltam para contar, e a mim também não, até

porque houve um grande jurista, que infelizmente já falecido, Heleno Fragoso, que

em um de seus livros dizia que, pelos cálculos que andou fazendo pelo Brasil, o

advogado que mais defendeu perseguidos políticos durante a ditadura foi um

advogado de nome Antônio Modesto da Silveira.

Portanto, tanto quanto Jarbas, talvez eu conheça as histórias, os fatos que

nos levam a pensar essa legislação que veio durante a ditadura como forma não só

de autoanistia, mas de anistia preventiva pelos crimes passados e futuros.

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A discussão proposta pelo Fábio tem a ver com o art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.683,

quando então eu era um misto de advogado de perseguidos políticos e Deputado

Federal mais votado do centro para a esquerda no Rio de Janeiro.

Nessa condição, tive muitas experiências, mas destaco duas, pela sua

importância: ter sido advogado de perseguidos políticos — segundo os

companheiros, o que mais defendeu gente do Oiapoque ao Chuí — e Deputado

Federal no momento em que se discutia nesta Casa a anistia política. Por quê?

Porque o povo e os estudantes reclamavam nas ruas, por toda parte, de tal modo

que a ditadura entrou em declínio e, tendo entrado em declínio, entendeu que a

única forma de salvar... Cumprimento meu querido companheiro Chico Alencar, do

Rio de Janeiro, batalhador e vítima, testemunha e vítima do período, embora seja

muito jovem. Portanto, se o que eu disser aqui merecer alguma correção, peço ao

Chico, ao Jarbas e a qualquer dos presentes que me corrijam, me ajudem a

restabelecer a verdade.

Àquela altura, por grandes tensões, o nossos partido, que seria o partido do

“sim”, virou um partido de oposição e disse “não” — havia o partido do “sim”, o MDB,

e o partido do “sim, senhor”, a Arena. E, ao dizer “não”, o MDB começou a lutar

contra a ditadura, sobretudo quando ficou claro, a partir da eleição de 1974, e depois

na de 1978, que o povo brasileiro não queria a ditadura, na medida em que tivemos

quase 5 milhões de votos a mais. Mesmo assim a nossa bancada era sempre

minoritária, devido a vários artifícios, e vejam bem quais eram os artifícios legais,

não só pelo bionismo, pelos biônicos, pela desproporcionalidade marcante do

processo eleitoral, em que alguns Estados que eram da ditadura podiam eleger um

Senador ou um Deputado com votação mínima, enquanto que o partido do “não”, o

MDB, exigia-se, pela desproporcionalidade estadual, uma votação extremamente

maior. Nós éramos maioria, mas éramos minimizados aqui pelos artifícios da

ditadura. Já havia o grito das ruas, e até o Papa chegou a fazer pronunciamento a

respeito de um grande país católico do mundo “que tortura e mata, é preciso parar

com isso”. O Papa nunca dá um recado como esse, mas deu! Além disso, por

exemplo, eu recebia de retorno informações que falavam sobre fatos concretos,

alguns dos quais eu quero mencionar; enviava, por exemplo, a pedido de um jornal

universitário dos Estados Unidos, ou da Europa, ele retornava sem o corte de uma

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vírgula, o que nos ajudava. Os próprios embaixadores brasileiros não tinham mais

coragem de ir às festas comuns da diplomacia no exterior porque lá eram cobrados,

como foram cobrados muito intensamente quando eu fui advogado do chamado

Grupo Angolano, ou seja, aqueles jovens de Angola, de Moçambique e de outras

partes que estavam no Brasil lutando pela independência dos seus países, tanto

quanto nossos jovens, no começo, quando o Brasil pretendia sua independência, de

Tiradentes para a frente, lutavam lá fora, sobretudo na Europa, pela independência

do Brasil. Foi o caso então desses jovens angolanos, portugueses, e alguns

brasileiros entre eles. Presos, fui advogado deles ao mesmo tempo em que Sobral

era advogado dos chineses que estavam aqui tentando estabelecer uma relação

comercial que redundaria numa relação diplomática mais tarde, como aconteceu.

Pois bem, de 1º de abril de 64 até 85 — os mais jovens devem atentar para

isso — havia um clima de terrorismo, um clima, mais que de ditadura, de tirania. E aí

eu me lembro até — eu lembrava outro dia com o Deputado Souto — do que dizia

Tomás de Aquino: quando a tirania, a ditadura for prolongada e grave, o povo tem

todo o direito de usar os seus meios para se livrar dela. E, vejam bem, eu me lembro

de onde, do dia e da hora em que se estabeleceu a ditadura. A 1º de abril de 1964

— posso até descrever para que alguém conteste —, eu estava na Cinelândia, no

Rio de Janeiro, onde se esperava por um comício que não houve, não só porque

houve uma greve dos meios de transporte, mas sobretudo porque o Golpe já estava

na rua pelo sequestro antecipado de algumas lideranças. Então, quando chegaram

os tanques na Rio Branco, em frente ao Clube Militar, o povo aplaudiu os tanques.

Quando esses mesmos tanques voltaram seus canhões contra o povo, o povo os

vaiou. Quando o povo os vaiou, vieram os infantes de baioneta calada, limpando a

praça. Dois indivíduos sacaram suas armas e atiraram contra o povo, que gritava e

vaiava. Um homem caiu perto de mim; os 2, logo depois disso, correram para dentro

das portas do Clube Militar, e as grandes portas de aço medievais se fecharam

abrigando-os.

Eu não quero dizer com isso que os militares sejam culpados de tudo. Ao

contrário, eu quero dizer que as Forças Armadas são instituições permanentes das

quais, enquanto houver a estupidez da guerra no mundo, não podemos abrir mão,

enquanto houver a estupidez da guerra. Sou pacifista, claro, mas, enquanto houver,

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enquanto precisarmos de lutar por um pré-sal sobre o qual os navios de guerra da

grande potência mundial passeiam como, quem diz, ao mesmo tempo em que

mandam para cá os seus negociadores de leilões injustos e manipulados. Eles

passeiam sobre o pré-sal e com os negociadores aqui, como quem diz, por bem ou

por mal, na lei ou na marra. O pré-sal é nosso, ou pelo menos parcialmente é nosso.

Estou invocando essas coisas todas que dependem de interpretação para

dizer: não quero de forma nenhuma dizer que as Forças Armadas foram

responsáveis, até porque houve a participação de muitos civis, a interferência de

embaixadores internacionais, sobretudo da grande potência mundial. Pois bem.

Quero até afirmar, ouso afirmar que o número de responsáveis pelo terror no Brasil,

terrorismo de Estado, talvez se contem em poucas centenas, de norte a sul, mas o

número de militares e policiais vítimas é infinitamente maior. Eu ousaria dizer — há

quem calcule em 5 mil, listagens estão sendo feitas — que é possível que chegue a

10 mil o número de vítimas só de militares que tentaram manter a Constituição,

manter o processo democrático e respeito às autoridades eleitas, à época do

Governo João Goulart.

Sofisma se cria para qualquer coisa. Toda ditadura tem os seus sofistas, tem

os seus filósofos de plantão. Vivemos todo esse terror de tal modo que quem

ousasse dizer essas verdades que digo agora poderia sair lá fora e não dizer

verdade nem mentira mais nenhuma, porque poderia desaparecer, como aconteceu

com muitos.

Por tentar dizer as verdades nos próprios tribunais, exibindo corpos mutilados

diante da OAB e diante de autoridades... Lembro-me, desculpem-me, e aqui faço um

parêntese... Sempre que havia um advogado sequestrado e torturado eu costumava

levar à OAB para que ela pudesse agir melhor em defesa dos advogados. Quando

levei um dos advogados — acho que foi Deputado duas ou 3 vezes, não sei,

Vereador também —, o Afonsinho, Affonso Celso Nogueira Monteiro, e lhe pedi que

se desnudasse de cima para baixo, diante do Conselho da OAB. Ele mal tirava a

camisa e lhe pediram que não tirasse mais. Marcas de tortura que ele exibia e

exibirá até a morte porque nunca mais se apagarão. Quem tiver dúvida poderá ir a

Niterói. Isto aconteceu com Affonso Celso Nogueira Monteiro. Esse não foi um, nem

2, nem 3 casos, mas, por essa ousadia de fazer certas coisas, todos nós,

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advogados, todos não, mas um bom número de advogados no Brasil fomos também

sequestrados pela ousadia de defender o quê? Defender perseguidos políticos, com

violação de direitos humanos, inscritos na Constituição até da ditadura, que não teve

coragem de riscar esses princípios, porque o Brasil é membro de instituições

internacionais como a ONU e signatário da Carta de Direitos Humanos da ONU. Não

riscaram da Constituição, mas riscaram da prática. E, por essa ousadia de defender

a lei até da ditadura, defender homens e mulheres, crianças e até latentes, nós, a

maioria dos advogados, também fomos sequestrados a partir do decano nosso na

época e até morrer, que era Sobral Pinto, valoroso advogado, que tem histórias por

todo o Brasil, sem falar de Heleno Fragoso, grande jurista, Evaristo de Moraes,

Augusto Sussekind, filho de almirante, Vivaldo Vasconcelos, George Tavares, eu

próprio. Todos nós fomos sequestrados por essas ousadias todas, só que não nos

usaram torturar, senão psicologicamente, porque todos nós éramos — e eu era —

conhecidos internacionalmente à época, porque falávamos a verdade. E no dia 7 de

abril começaram as denúncias de tudo isso.

Lembro-me de que saía do DOPS. O primeiro jornal era o Correio da Manhã,

que foi levado à garra, foi levado à falência por pressão de natureza política.

Dávamos a verdade. À época, Edmundo Moniz, que veio a ser meu cliente, era um

dos diretores. Ao dar a informação, a verdade, o jornal foi fechado

compulsoriamente. E o Edmundo Moniz veio a ser sequestrado por uma razão que

nem ele conhecia. Ele me disse: “Modesto, você, que é meu advogado, eles falam

que iam matar um negócio de sapo batráquio. É uma coisa de batráquio esse

processo em que estão me enfiando”. Eu disse: “Ah, então eu já sei. É uma tal de rã,

não é?” Rã, houve um processo chamado rã, como houve um outro na Bahia

chamado P-O-R-R-A. Partido era proibido, operário era suspeito, revolucionário,

retado e armado, sigla: P-O-R-R-A. Essas coisas ridículas...

Depois desembocaram numa Lei de Anistia em que eles se autoanistiavam de

forma como os romanos chamavam de privilegium, isto é, lei com endereço certo, lei

com endereço mais para eles, privilégio, lei privada, lei de interesse pessoal do

legislador. E aí vem essa Lei de Anistia, de 1979, porque eles já não suportavam

mais, e mais se autoanistiaram do que anistiaram terceiros.

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Eles criaram uma figura... Criada não, porque é uma figura do Direito Criminal

Comum, chamada de crime conexo. Mas quanto a crime conexo dirá daqui a pouco

certamente o Fábio Comparato ao examinar isso, como examinou perante o tribunal,

o seu correto significado. Todo estudante de Direito sabe e até eu sei que conexo é

aquele em que você pratica um delito, tem uma motivação, um motivo político, e

para isso você pratica outro crime político, mas com a mesma gente, o mesmo autor

e a mesma finalidade.

Ora, quando os torturadores me sequestraram, e sequestraram milhares de

pessoas, quando eles torturaram, quando eles estupraram inclusive a minha cliente

lá de... — quem é de Pernambuco aqui? — ... Brejo da Madre de Deus, no interior

de Pernambuco. Quando a torturaram junto ao marido por ser uma líder católica do

Dom Hélder, fugida para o Rio de Janeiro, trabalhando sob a proteção da CNBB, o

casal acabou localizado pelas autoridades de então. Prenderam os 2, depois de

localizados no Rio de Janeiro. Torturaram os 2 juntos. Depois, foi a vez só dela. Ela

foi, além de todo o sofrimento anterior, estuprada em fila, em fila. Ela disse que só

viu o primeiro e mal o segundo, desmaiou. Quando veio ao meu escritório, disse:

“Dr. Modesto, me ajude. Aconteceu isso.” Ela, com todo o constrangimento, dizia:

“Estou grávida e não sei de qual deles, porque desmaiei no segundo estuprador.” Eu

disse a ela: você é líder católica, com certeza, você deverá procurar o seu Bispo que

gosta muito de você e seu marido. Falou com o seu marido? — “Não”. Falou com o

Bispo? — “Não”. Fale com ele.

Falou com o Bispo que, mais ou menos, repetiu: falou com o seu marido? —

“Não”. Então, fale e depois venha os 2. E ela quando foi falar com o marido — ele

era um pernambucano do interior, homem calado, sóbrio, que talvez eu não sabia se

usava peixeira de salão ou não — fiquei temendo. Quando ela contar a verdade ao

marido, ele vai querer se vingar dos estupradores, mas seria morto antes disso.

Fiquei temeroso, será que dei a orientação correta?

A sorte é que quando ela falou com o marido, e ela me disse depois, ele ouviu

calado, como eu disse que ele era. Calado, ele chegou ao final. Ele veio, abraçou a

sua companheira e disse: “Uma criança é uma criança, e nós podemos, se você

quiser tê-la, educá-la bem, fazer dela uma pessoa de bem.” Ela, então, disse que, no

dia seguinte — eu até havia sugerido a perspectiva de um aborto, para que ela não

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sofresse a tortura de vida inteira, cada vez que ela fosse acariciar aquele menino, se

ele saísse a cara do primeiro, quem sabe do segundo, que ela reconheceria bem —,

diante do que o marido falou, teve um aborto expontâneo. E quando ela voltou para

me contar a história, disse: — “Graças a Deus, foi um milagre pelas orações que eu

fiz.”.

Esta mulher está viva, visitou-me um pouco antes de ir para Pernambuco —

repito, está viva. Ela me autorizou a dizer o seu nome em público, mas eu não digo.

Se alguém tiver dúvida sobre essas histórias, por favor, venha falar comigo.

Vou encerrar, estou abusando do tempo, mas quero dizer que os delitos

comuns em nenhuma das inúmeras anistias pelo Brasil e pelo mundo anistiou

crimes comuns. São crimes que não têm nenhuma conexidade. O que eu fizer aqui

contra ele ou com outra motivação não tem nenhuma conexidade. Agora, o Tribunal

irá decidir, e como é uma lei política, não sei qual será o resultado político.

Agora, no meu entendimento — o Dr. Paulo Abrão poderá ter um

entendimento melhor do que o meu —, não há conexidade entre o crime comum e o

crime político.

Muito obrigado. Desculpe o excesso. (Palmas)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Roberto Britto) - Quero agradecer ao Dr.

Antônio Modesto da Silveira, ex-Deputado Federal, encaminhador da Lei da Anistia,

pela verdadeira aula sobre anistia.

Quero convidar para presidir os trabalhos o Presidente da Comissão de

Direitos Humanos e Minorias, Deputado Luiz Couto, para que possa tomar assento à

Mesa e, ao mesmo tempo, dar continuidade aos trabalhos.

Quero informar que esta audiência pública está sendo transmitida através do

twiter da Comissão de Direitos Humanos. O site é “www

.twiter.com/comissaodedireitoshumanoscamara”. A sessão também está sendo

gravada para ser exibida pela TV Câmara, cuja programação está disponível no site

da TV Câmara.

Passo o comando dos trabalhos ao Deputado Luiz Couto, Presidente da

Comissão de Direitos Humanos e Minorias.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Concedo a palavra ao Dr.

Paulo Abrão, Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

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O SR. PAULO ABRÃO PIRES JÚNIOR - Bom dia a todos.

Agradeço o convite das duas Comissões para realização deste debate.

Cumprimento o Presidente da Mesa, Deputado Luiz Couto, demais membros

presentes, Deputado Iran, pela louvável iniciativa tomada na realização deste

debate.

O Deputado Modesto da Silveira é um ícone desta luta. É nossa referência

não só pelos valores que expressa, mas por toda a história de vida.

Eu, na condição de Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da

Justiça, tenho a tarefa histórica de dar continuidade ao processo de reconciliação

nacional e à consolidação da transição democrática que não se finalizou até hoje. Se

é certo de que a democracia é um processo permanente a ser semeado, com menos

a transição democrática brasileira ainda não se finalizou. Nós ainda dependemos de

uma segunda transição.

A primeira transição foi aquela em que rompemos com arbitrariedade do

regime ditatorial, implementamos eleições livres e diretas, com a participação do

povo. A segunda transição, que o Brasil ainda precisa viver, é aquela que consolida

de vez as tradições e os princípios do Estado de Direito. E quando nós trabalhamos

com a ideia de consolidação do Estado Democrático de Direito, isso implica

necessariamente saber lidar com todo um legado de violência deixado pelo regime

autoritário e que a sociedade democrática tem de saber dar conta.

Esse é um processo que vem ocorrendo em todos os países que viveram

regimes autoritários, de esquerda ou de direita. Hoje, em todos os países do Leste

Europeu, países africanos, países latino-americanos, bem como no Timor Leste, na

Coreia do Sul e na Indonésia.

Nós temos mantido contato com todas as Comissões de Reparação e

Verdade instituídas nestes países. As Comissões de Reparação, tal como a

Comissão de Anistia, cumprem essa tarefa histórica de trazer à tona a verdade

escondida num passado onde vigia a censura e, principalmente, dar vazão às vozes

dos perseguidos políticos, vozes essas caladas sob o regime da força no passado.

No Brasil, o debate da Lei de Anistia não é diferente da discussão sobre a

criação de regras de autoperdão, ou de esquecimento, como tentativas de uma

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cultura autoritária que pretende projetar para o futuro aquele mesmo ambiente de

ausência de verdades, de liberdades e de desrespeito aos direitos humanos.

A Argentina passou por esse processo. No Uruguai, neste momento, o

Presidente Tabaré chama a população para um plebiscito a respeito da validade da

Lei de Ponto Final. O Chile já enfrentou toda essa discussão. O Peru já enfrentou e

é relativamente uma ditadura de esquerda. Os países do Leste Europeu passaram

por este processo. Recentemente, El Salvador, sob a Presidência do Presidente

Funes, debate a Anistia, as arbitrariedades e os massacres que ocorreram com o

povo salvadorenho à época da guerra civil.

Então, meus amigos, não nos diferenciamos nesta luta, uma luta da

humanidade. Ela não é somente uma luta nacional. Por isso que existe esse

conceito de crimes contra a humanidade. A ideia de crimes contra a humanidade

simboliza uma nova síntese jurídica, um novo papel civilizatório que o Direito tem a

cumprir em todos os países do mundo, dizendo de forma muito bem clara: que a

qualquer tempo, a qualquer momento, a qualquer período histórico, se tivermos a

violação aos direitos humanos, se tivermos a ocorrência de arbitrariedade, se

tivermos a ocorrência de atrocidades contra quaisquer seres humanos, de forma

sistemática, isto será um dia apurado.

Digo que é uma nova simbologia de um processo civilizatório da humanidade

porque tem consigo uma carga conteudística de sinalizar a não repetição para o

futuro, ou seja, toda e qualquer força autoritária que queira, em qualquer momento

da história, impor a sua vontade política pela força, e para impor a sua vontade

política exerça as formas de atrocidades e de violações às dignidades, às

liberdades, às integridades físicas e psicológicas das pessoas, se naquele momento

as condições políticas não favorecerem a apuração da ocorrência desses crimes, no

futuro, quando as condições políticas assim o permitirem, isto poderá ser ou será

apurado.

Essa tradição ética — digo que é uma tradição ética antes de ser uma

tradição jurídica — vem desde o período do pós-guerra, do Tribunal de Nuremberg,

vem desde à concepção de que vivenciamos agora com a busca e a localização de

ainda mais 3 novos dirigentes do regime nazista para serem levados aos tribunais

na Alemanha, mesmo passado mais de 60 anos do final da guerra mundial.

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Então, fico muito contente que, na abertura dos trabalhos aqui, tenha sido dito

de forma muito explícita que esse é um tema atual, porque a primeira cultura que

temos que romper em relação ao debate da Lei da Anistia é a falácia de que é um

debate do passado, não do presente. É ainda uma falácia muito forte, porque ela, de

algum modo, trabalha com a cultura do medo de que, “se mexermos — entre aspas

— nas feridas do passado”, isso poderá significar ou incorrer numa ruptura ou numa

desestabilização da governabilidade atual.

É um argumento conservador utilizado por muitos. Não podemos mexer

nessas feridas do passado, porque isso poderá desestabilizar e colocar em risco as

conquistas democráticas já alcançadas.

Ora, se nós ainda não temos a convicção, se ainda não temos a crença de

que a valorização da democracia e do respeito aos direitos humanos deve ser

considerada como tema proibido, é porque isso nos reforça a convicção e a

determinação de que esses temas precisam ser discutidos. Ou seja, essa é a melhor

representação de que os valores democráticos ainda não estão postos de forma

disseminada no pensamento hegemônico da sociedade.

Então, isso reforça o entendimento de que é necessário, sim, discutir, porque

a própria discussão já é saudável. A própria discussão rompe uma cultura do medo

de que são temas proibidos no passado, e essa própria discussão sinaliza a não

repetição para o futuro e a afirmação dos valores democráticos.

Por essa razão, no ano passado, a Comissão de Anistia, exatamente há 1

ano, realizou no Ministério da Justiça, no Palácio da Justiça, uma audiência pública

sobre a responsabilização dos agentes torturadores do regime de exceção no Brasil.

Ali queríamos denunciar à sociedade que a Lei de Anistia do Brasil vem

sendo interpretada de forma equivocada. Não se trata de rever a Lei de Anistia, de

estigmatizá-la com uma invalidade jurídica. Não, trata-se de interpretá-la

adequadamente segundo os princípios de uma ordem democrática. Essa é a

questão.

A Lei de Anistia de 1979 foi uma lei importante, uma conquista do povo.

Embora não tenha sido aprovada a lei ampla, geral e irrestrita, foi aprovada uma lei

restrita, afastando o perdão, aqueles que tinham cometido crimes políticos de

sangue. Ou seja, outra grande falácia: a de que a anistia do passado foi para os 2

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lados, porque a anistia aprovada foi ampla, geral e irrestrita, e não foi. Basta ouvir os

áudios do Congresso Nacional.

O projeto de lei da anistia ampla, geral e irrestrita foi rejeitado em votação

nominal, com as galerias tomadas por militares presentes pressionando os

Parlamentares pela aprovação do projeto originário da Casa Civil. Isso caracteriza o

conceito fundamental desse debate, o da autoanistia.

Era um Congresso controlado, que, por mais que já tivéssemos Deputados

eleitos diretamente, o Senado Federal ainda era constituído por um terço de

Senadores biônicos e, portanto, aquela lei, tal qual foi aprovada, hoje pode ser

caracterizada, caso queiramos ter a ideia ou a interpretação de que ela valeu para

os 2 lados e, se essa foi a interpretação, portanto, isso é autoanistia. As tradições,

os tratados e as convenções internacionais têm repelido toda e qualquer

possibilidade de autoanistia.

Isso porque, se admitirmos a tese e a possibilidade de autoanistia, o que

estamos dizendo é que, no futuro, diante de novas rupturas com a democracia,

diante de novos processos autoritários, bastará aos golpistas de então, antes de se

entregarem, quando enxergarem que o seu projeto autoritário não tem mais

sustentação política na sociedade, ao apagar das luzes do regime autoritário,

aprovarem para si uma lei de autoperdão.

Então, estaria posto que a regra no Estado Democrático Brasileiro é a

seguinte: “Vocês podem romper a democracia — viu, pessoal? —, sem nenhum

problema. Violem, torturem, façam o que quiser. No final, não se esqueçam de

aprovar uma lei para perdoar vocês mesmos. Porque, se ela for aprovada, isso

nunca poderá ser discutido no futuro e estará sempre bom para todos”.

Ou seja, nós não estaremos consolidando os valores da democracia, nós não

estaremos sinalizando a não repetição, nós não estaremos repudiando os crimes

contra a humanidade, nós não estaremos desenvolvendo as premissas de uma

sociedade respeitosa com os direitos humanos.

Publiquei no jornal O Globo, semana passado, um artigo denominado Tortura

Não Tem Anistia. É uma tentativa, reverberando ainda as vozes que saíram da

audiência pública ocorrida no Palácio da Justiça o ano passado, de ressaltar aquele

momento significativo da nossa história, porque foi a primeira vez que um órgão da

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administração pública, um órgão oficial do Estado brasileiro debateu esse tema. Era

um tema proibido. Isso não poderia ser discutido na sociedade brasileira. Nem o

Congresso Nacional nem o Poder Executivo tinha feito um debate a respeito da

interpretação da Lei da Anistia e da responsabilização dos agentes torturadores.

Então, ali nós rompemos com a cultura do medo. Essa foi uma grande

contribuição, creio. Todo mundo acompanhou, no final do segundo semestre do ano

passado, a polêmica suscitada na sociedade, os debates junto à imprensa e hoje

cada vez mais crescentes, a ponto até dos militares, no seu Clube, militares da

reserva, fazerem um ato de desagravo público a um dos agentes notórios

torturadores do regime militar do DOI-CODI, em São Paulo.

Então, meus amigos, temos sustentado, do ponto de vista fático, que não

podemos enxergar a Lei de Anistia de 1979 como um acordo da sociedade brasileira

para o esquecimento. Primeiro, porque rejeitamos a ideia de anistia como

esquecimento. A anistia é memória permanente. A anistia dá vazão à verdade

escondida. A anistia é, neste momento, a reconciliação que o País faz com aquelas

pessoas que ele perseguiu equivocadamente. A anistia no passado era vista como

um gesto de graça que o Estado brasileiro concedia àqueles agentes que ele

mesmo tinha estigmatizado como criminosos políticos ou como subversivos políticos.

Esta é uma visão tradicional da anistia: o Estado perdoando o criminoso

político que agiu contra a ordem instituída, mesmo que ilegítima. Essa era a visão

tradicional. A anistia hoje, na democracia, tem que ser enxergada a partir de uma

nova concepção, não mais o Estado perdoando aqueles que ele mesmo perseguiu,

o Estado que tinha o dever de protegê-los e não de persegui-los, mas hoje

reconhecendo os erros cometidos contra eles.

O perdão não é mais do Estado ao perdoar os perseguidos. A anistia hoje é

um processo de reconciliação onde aqueles brasileiros perseguidos pelos seus

próprios concidadãos, pelo seu próprio Estado, pela sua própria Pátria devem

perdoar o Estado pelos erros cometidos.

Portanto, a anistia hoje é um processo de pedido de desculpas públicas que o

Estado cometeu em relação àqueles que ele mesmo perseguiu.

Essa é a tarefa histórica que a Comissão de Anistia tem realizado. Nós temos

percorrido todo o País, com as caravanas da anistia, fazendo o levantamento de

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todos os brasileiros que foram perseguidos em cada um dos cantos do País. Já

estamos na 27ª Caravana da Anistia; já percorremos 15 Estados da Federação e, ao

localizarmos os perseguidos políticos, realizamos uma sessão pública.

Muitas vezes, o Ministro do Estado da Justiça vai conosco; muitas vezes, o

Ministro dos Direitos Humanos vai conosco; muitas vezes, os Governadores, os

políticos locais, muitos dos Deputados que aqui estão têm percorrido conosco o País

nas caravanas da anistia.

Temos localizado perseguidos políticos, temos apreciado requerimentos de

processos de anistia, em sessão pública, na localidade onde foram estigmatizados,

junto à sua comunidade, como subversivos. Sabemos que a repressão não foi só do

Estado. A repressão e as perseguições, muitas vezes, foram da própria sociedade

que os circundava, pelos seus vizinhos. Eles ficavam estigmatizados como pessoas

que os vizinhos não poderiam sequer conversar, porque corriam o risco de também

sofrerem as torturas que estavam sendo implementadas no estado de exceção. E lá,

junto à sociedade, é resgatada sua história, é valorizado o espírito de resistência

que aquelas pessoas tiveram para a reconquista da democracia no Brasil. E nós

pedimos desculpas oficiais, em nome do Estado brasileiro.

Esse resgate da dignidade, essa reparação de âmbito moral é muito mais

relevante, é muito mais importante do que a reparação econômica. O pagamento

que o Estado hoje faz, por meio dos processos de anistia, essa indenização que

hoje é paga é fruto do dever do Estado de Direito e do dever de reparação. Isso é do

próprio instituto da responsabilização patrimonial do Estado. Isso existe até quando

alguém está dirigindo um carro e cai em um buraco de responsabilidade do

município. A pessoa pode entrar com uma ação pedindo que o Estado se

responsabilize pelos danos que causou àquele agente. Isso é nada mais, nada

menos que o dever do Estado de Direito. Surgiu desde quando criamos a figura do

estado da administração pública e o princípio da legalidade. O Estado também tem

responsabilidade em indenizar aqueles prejuízos que ele mesmo causa. Isso é

princípio básico do Estado de Direito.

O grande gesto da anistia hoje é o pedido de desculpas, é o reconhecimento

público dos erros, porque o Estado olha para trás, aprende com os seus erros e

sinaliza para o futuro a não repetição.

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Quero dizer também que, do ponto de vista eminentemente jurídico, tem

razão o Deputado Modesto quando diz que essa é uma discussão de imbricamento

do âmbito do direito com o âmbito da política. Por quê? Porque, do ponto de vista

eminentemente interpretativo da lei, vai haver aqueles que sustentam que a lei foi

um grande acordo de pacificação e de esquecimento.

Ora, nós já mostramos aqui que, faticamente, isso é insustentável. Aliás,

busquemos e encontremos. Nós temos percorrido o Brasil inteiro com as caravanas

da anistia e uma pergunta pública é feita: apareça um único perseguido político

brasileiro que tenha sido interlocutor de qualquer acordo político com as forças de

repressão. E ninguém se apresenta como interlocutor de um acordo político com as

forças autoritárias de então. Isso, do ponto de vista fático, é uma constatação.

Em segundo lugar, mesmo se fosse um acordo — e é por isso que o direito,

nesse momento, se imbrica com a política —, não teria nenhuma validade jurídica,

primeiro porque se pegarmos a Lei nº 6.683, de 1979, está explícita muito

claramente a anistia no seu art. 1º: é concedida anistia a todos quantos no período

compreendido de tanto a tanto cometeram crimes políticos. Foram anistiados os que

cometeram crimes políticos.

O que é um crime político? O crime político caracteriza-se pelo bem jurídico

que ele protege. Ora, crime político é aquele que as pessoas cometeram ou para

romper com o modelo de estado vigente, ou com a ordem política e social vigente,

ou com a soberania, ou com a estrutura social e organizacional que estava posta

naquele momento. Nenhum agente torturador do regime militar, seja das estruturas

oficiais persecutórias ou das estruturas paralelas que foram criadas à margem da

própria legalidade do Estado de Direito legítimo à época, nenhum deles estava

cometendo um crime contra a ordem política, um crime contra a soberania, contra a

estrutura de governo — nenhum deles.

Portanto, os perseguidos políticos brasileiros foram anistiados com a lei de

1979, como deve ser, porque exerciam um direito básico na sociedade moderna,

que é o direito de resistência contra uma ordem que oprime as suas liberdades.

Esse é o fundamento das revoluções burguesas. É a força motriz jurídica fundante

da revolução francesa e da revolução americana: o direito de resistência contra uma

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opressão que estava posta. Essa é a base do surgimento das liberdades que nós

temos hoje.

Então, é nada mais do que um grande dever do Estado reconhecer e

conceder anistia àqueles que exerceram seu direito legítimo de resistência.

Os agentes torturadores, não. Estes agiram muitas vezes à margem da lei.

Vejam que nem o próprio regime autoritário, em 1979, admitia a existência da

tortura. Ora, se esses fatos sequer eram admitidos, como é que na lei de 1979

estava-se pretendendo perdoar determinados fatos que nem se reconhecia que

existiam? Ou seja, a lei de 1979 era para perdoar aqueles que exerceram o seu

direito de resistência. Independentemente de qualquer juízo de valor que façamos

hoje sobre os meios que utilizaram para exercer esse direito de resistência, porque

isso não cabe mais na sociedade democrática, essas pessoas hoje, segundo o

princípio da reconciliação nacional, devem ser perdoadas. Essa é uma primeira

razão.

Na lei há a figura dos crimes conexos. Vão dizer que, na verdade, os

torturadores não cometeram crimes políticos, os crimes deles eram conexos aos

políticos. Então, como a lei diz que estão perdoados (falha na gravação) conexos,

eles, portanto, também estão perdoados a partir da figura dos crimes conexos.

Ora, meu amigos, a ideia de conectividade dos crimes está posta na nossa

ordem jurídica no Código Penal ou no Código de Processo Penal e nós temos, tanto

na teoria quanto na dogmática jurídica, as figuras de conectividade.

Então, nós temos lá a ideia de conexão material presente no Código Penal

nos arts. 60, 70 e 71. Nós temos a ideia de conexão intersubjetiva por

simultaneidade, presente no Código de Processo Penal no art. 76, inciso I. Nós

temos a ideia de conexão intersubjetiva por concurso, presente no Código de

Processo Penal, art. 76, inciso I. Nós temos a ideia da conexão objetiva presente no

Código de Processo Penal art. 76, inciso II. Nós temos a ideia de conexão

probatória, no Código de Processo Penal, art. 76, inciso III. E a ideia de conexão

intersubjetiva por reciprocidade, também no Código de Processo Penal, art. 76,

inciso I.

Nenhuma dessas formas de conectividade previstas na ordem jurídica

brasileira permite inferir que os crimes cometidos pelos torturadores tenham

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conectividade com os crimes eventualmente cometidos por aqueles que exerciam

seu direito de resistência, primeiro porque as 4 primeiras figuras de conexão

envolvem concurso material, concurso formal, o cometimento de duas ou mais

infrações por pessoas que tinham o mesmo objetivo na realização daquele crime.

Evidentemente, é insustentável dizer que os torturadores estavam cometendo

os mesmos crimes, com os mesmos objetivos que aqueles que eles estavam

torturando.

As duas últimas figuras de conectividade são meramente processuais, para

se poder fazer, no momento da apuração desses crimes, a junção de diferentes

processos que estão em andamento para que eles sejam apurados

simultaneamente pelo Poder Judiciário.

Não há sustentabilidade jurídica para qualquer inferência de que os crimes

dos torturadores tenham sido anistiados pela lei de 1979. Eu insisto — e isto é o

mais importante para nós: mesmo se estivesse explícito na lei de 1979, em um

artigo último, que essa lei perdoa os agentes torturadores e os agentes cometedores

de crimes de direitos humanos, não teria, mesmo se isso tivesse sido aprovado,

nenhuma validade em razão deste novo conceito, deste conceito que já vem desde

1948, no pós-guerra, que é a ideia de crimes contra a humanidade. Crimes contra a

humanidade são caracterizadamente crimes imprescritíveis, ou seja, podem ser

apurados a qualquer tempo e não são passíveis de anistia.

Lembremos, ainda, que o Brasil é signatário da Convenção Interamericana de

Direitos Humanos. Nós nos submetemos soberanamente à jurisdição da Corte

Interamericana de Direitos Humanos e esta, ao apreciar a Lei de Anistia do Peru, ao

apreciar a Lei de Anistia do Chile e ao apreciar uma série de casos que têm chegado

até ela já declarou, peremptoriamente, a invalidade de qualquer autoanistia e já

declarou também na sua jurisprudência a tese da imprescritibilidade dos crimes

contra a humanidade.

Hoje há uma discussão se nós devemos ou não observar a ordem jurídica

internacional para a solução de casos nacionais. É uma discussão atrasada, do

ponto de vista do pensamento jurídico, porque ignora até que este próprio

Parlamento, o nosso Parlamento brasileiro está constituindo o Parlamento do

MERCOSUL, estamos formando leis de integração regional, ou seja, a ordem

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jurídica internacional compõe uma unidade com a ordem nacional. Cada vez que

este Congresso Nacional ratifica uma convenção internacional, está incorporando

essa legislação à nossa ordem jurídica nacional. Ignorar isso seria ignorar o próprio

trabalho do nosso Parlamento, que é quem tem a representatividade e a legitimidade

do povo para dizer que tipos de leis e que tipo de ordem jurídica deve ser percebida.

Só para dar um exemplo de como desde à época do regime militar nós já

estávamos submetidos a determinadas ordens jurídicas internacionais, que já

impunham o conceito de crimes contra a humanidade imprescritíveis e não passíveis

de anistia, lembremos que, em 1914, nós ratificamos a Convenção de Haia sobre

Guerra Terrestre — em 1914! E essa convenção já previa os princípios e os

costumes internacionais como fonte do nosso Direito e o caráter normativo dos

princípios jus gentium, entre eles o respeito à dignidade da pessoa humana.

Depois, em 1945, ratificamos a Carta das Nações Unidas. Ora, o Brasil é um

dos fundadores da Organização das Nações Unidas, e a Carta das Nações Unidas

já dizia que nós tínhamos que ter respeito às obrigações decorrentes de tratados e

convenções internacionais.

O Estatuto da Corte Internacional de Justiça, no seu art. 38, inciso I, que

regulamenta a Carta das Nações Unidas, de que o Brasil já era signatário,

estabelece de forma muito clara a obrigatoriedade do nosso País em respeitar os

tratados e as convenções internacionais.

E foi exatamente em razão de uma outra convenção, em 1948, que ficou

explícita, a partir do julgamento de Nuremberg, a imprescritibilidade de crimes contra

a humanidade.

Por isso, temos a convicção política e a convicção jurídica de que tortura não

é crime político, de que a sociedade brasileira precisa realizar esse debate e que

hoje a interpretação conservadora da lei de 1979 como uma imposição da cultura

jurídica autoritária tem impedido que centenas de brasileiros que foram lesados na

sua integridade física e psicológica possam acionar o sistema de Justiça para fazer

valer os seus direitos.

É essa interpretação equivocada, é essa cultura que nós temos que romper

com a realização de debates como este aqui hoje, com transmissão, com os debates

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na sociedade, com as caravanas da anistia, com os debates nas universidades,

como nós temos feito.

Lembremos que essa interpretação conservadora e equivocada da lei de

1979 já impediu, lá em 1992, que o caso Herzog fosse julgado pela Justiça. O

Tribunal de Justiça de São Paulo mandou arquivar a ação de apuração da

responsabilidade pela morte do Herzog em razão dessa interpretação conservadora

da lei.

Depois, um segundo caso, em 1988: o STM extinguiu a punibilidade no caso

do Rio Centro com base na tese de que a lei de 1979 teria anistiado ambos os lados

e que, portanto, não há mais o que se falar de apuração desses crimes.

E agora, recentemente, o Ministério Público Federal de São Paulo ingressou

com ação civil pública — civil, não fala nada de responsabilização penal. A Lei de

Anistia fala de crimes políticos, e é questão penal. Então, o Ministério Público

Federal, a partir da sua inteligência e atuação permanente, disse: “Bom, se essa

interpretação conservadora está posta, nós queremos a responsabilização civil. Nós

queremos que Carlos Alberto Brilhante Ustra seja declarado um torturador”, tal qual

ele foi e segundo inúmeros testemunhos e atos que já estão sendo reconhecidos

pelo Estado brasileiro na Comissão de Anistia, onde temos os arquivos da ditadura.

Muito se busca: onde estão os arquivos da ditadura, os arquivos oficiais? E

nós temos dito: os verdadeiros arquivos da ditadura são os arquivos da Comissão de

Anistia, porque ali está a história contada por parte de quem sofreu as perseguições.

Ali está escrito, no processo dele, lá dentro da Comissão de Anistia, que, enquanto

na ficha do DOPS dele, enquanto na ficha do SNI dele está escrito que o Deputado

Emiliano foi convidado num dia “x” a prestar um esclarecimento sobre alguma

questão numa delegacia, no processo dele, dentro da Comissão de Anistia, está

dizendo efetivamente o que aconteceu com ele naquele dia, quantos dias ele ficou

preso, a que tipos de torturas ele foi submetido. Então, ali estão os verdadeiros

arquivos da ditadura militar.

Portanto, o Ministério Público Federal disse o seguinte: ora, se o Estado já

reconhece nos processos da Comissão de Anistia a ocorrência dessas torturas, a

ocorrência dessas lesões aos direitos humanos, então, agora nós queremos que os

torturados sejam declarados torturadores, afinal de contas, no passado, todos os

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perseguidos políticos tiveram que responder por processos, inquéritos policiais

militares, ações, mesmo que ilegítimas, junto aos tribunais militares, junto ao

Superior Tribunal Militar. Se os perseguidos políticos brasileiros tiveram que se

submeter, mesmo num regime autoritário, a todos os procedimentos segundo um

contraditório meio questionável, segundo um direito de defesa meio questionável, a

despeito do trabalho incessante dos nossos advogados — o Deputado Modesto da

Silveira realmente foi um dos grandes ícones da defesa dos perseguidos políticos —

por que hoje nós não devemos processar também aqueles que foram os agentes

que promoveram essas violações aos direitos humanos?

Depois, num quarto caso, recentemente, a família Merlino entra com uma

ação. A juíza, em São Paulo, manda arquivar segundo a ideia tradicional de que a lei

de 1979 também anistiou os perseguidores.

Meus amigos, o horizonte está-se modificando, eu não tenho dúvida disso.

Em primeiro lugar porque, depois da nossa audiência pública no Ministério da

Justiça, o Presidente da OAB, Cezar Britto, estava presente e comprometeu-se

publicamente a organizar uma ação junto ao Supremo Tribunal para que aquela

Corte diga, em definitivo, se a lei de 1979 anistiou ou não anistiou torturadores.

Com relação a isso, o Prof. Fábio Comparato elaborou uma belíssima peça

jurídica na ação de descumprimento de preceito fundamental, e nós aguardamos

que o Supremo Tribunal Federal confirme, dentre outras coisas, inclusive a própria

jurisprudência recentemente julgada no caso do General Cordeiro, o agente

torturador uruguaio que matou uruguaios e argentinos. Nós concedemos sua

extradição para a Argentina considerando, no mínimo, que alguns daqueles crimes

cometidos no passado, embora ainda não segundo a tese da imprescritibilidade dos

crimes contra a humanidade, nos casos dos desaparecimentos forçados, são crimes

permanentes, até hoje não apurados e que, portanto, não há que se falar de

prescrição. Assim, resolvemos extraditar esse general uruguaio torturador e algoz

dos nossos coirmãos latino-americanos.

O que está em jogo é se nós, neste momento, acreditamos ou não na ideia da

não repetição e se o Direito é ou não capaz de impingir nos nossos valores sociais

uma força civilizatória tão forte quanto a ideia dos crimes contra a humanidade

imprescritíveis e não passíveis de anistia.

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Está nas mãos do Supremo dizer se a sinalização é para a não repetição ou

se nós vamos eternamente ficar sob o jugo da possibilidade de novos rompantes

autoritários.

Por fim, eu quero dizer que a Comissão lançou a primeira edição brasileira de

uma revista em língua portuguesa. Países do mundo inteiro têm publicações dessa

matéria. Nós lançamos agora no dia 30, por comemoração dos 30 anos da luta do

povo brasileiro pela anistia, no Rio de Janeiro, onde a Comissão de Anistia prestou

uma grande homenagem aos presos políticos e àqueles que fizeram greve de fome

para aprovação da lei de 1979, aqueles que colocaram as suas próprias vidas em

risco para que nós voltássemos a ter a democracia que nós temos hoje.

Lá foram lançados 2 grandes importantes projetos. O primeiro é a construção

de um memorial da anistia política. Será em Belo Horizonte e abrigará todo o acervo

da Comissão de Anistia. Nós vamos digitalizar todo esse acervo, vamos

disponibilizar todos esses arquivos para toda a sociedade, num portal da Internet.

Vamos cuidar muito bem desse acervo, porque ele é o denunciador de que nós não

queremos que aquele regime volte mais.

Em segundo lugar, a criação da revista Anistia Política e Justiça de Transição,

para debater processos de transição política e processos de transição democrática.

Aqui, inclusive, existe um documento e um parecer. São 2 documentos. Existe um

dossiê que explica o que é Justiça de transição, um conceito muito pouco trabalhado

e que precisa ser disseminado política e juridicamente, que é a ideia de que, a partir

do legado de violência, nós temos que respeitar o direito à memória, o direito à

verdade, o direito à Justiça e reformar aquelas instituições que no passado serviram

para reprimir e vocacioná-las para o respeito aos direitos humanos, em especial as

instituições de segurança pública. E é o que tem ocorrido em todos os países do

mundo.

Esse conceito de Justiça de transição, ao ser disseminado — e aqui a revista

traz isto —, também reverbera uma declaração do próprio Conselho de Segurança

da ONU, que indica a necessidade e a obrigação dos países de apurar a verdade e

responsabilizar os agentes violadores dos direitos humanos, de reformar suas

instituições e permitir o direito à memória.

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Um outro documento que está aqui é um parecer elaborado pelo Centro

Internacional de Justiça de Transição, que trabalha com as experiências de

comissões de reparação no mundo inteiro. Há um parecer sobre a Lei de Anistia

brasileira, à luz da jurisprudência internacional e de outros exemplos do mundo

inteiro.

Nós só temos mil exemplares impressos dessa revista. Eu quero fazer, neste

momento, uma doação oficial à Comissão de Direitos Humanos e à Comissão de

Legislação Participativa.(Palmas.) Nós só temos mil exemplares. Estamos

procurando priorizar a distribuição para as universidades, para a academia. Já

entregamos para cada um dos Ministros do Supremo e para os Ministros dos

Tribunais Regionais Federais, para que conheçam um pouco mais esses conceitos,

essas teses jurídicas, essas sustentações que estamos fazendo, para que isso

possa implicar repercussões nas decisões judiciais, porque muitas vezes as

decisões se conservam ao longo do tempo em uma determinada linha pela ausência

de debate, pela falta de demonstração de que existem outras orientações, pela falta

de demonstração de que existem outros exemplos que podem implicar efetivas

melhorias para a nossa ordem jurídica e democrática.

Mas, desde ontem, a revista está no site do Ministério da Justiça na sua

integralidade, para toda e qualquer pessoa que queira estudá-la, lê-la. Está aberto o

edital para receber artigos de diferentes pessoas a serem publicados na segunda

edição. Será uma revista semestral dedicada à questão democrática no Brasil. A

segunda edição sai em março. Estamos recebendo sugestões de artigos e as

contribuições de todos que aqui estão.

Muito obrigado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Muito obrigado, Dr. Paulo

Abrão, pela contribuição e também pela revista que a Comissão de Direitos

Humanos e Minorias e a Comissão de Legislação Participativa recebem neste

momento.

Recebemos a informação de que o Dr. Fábio Konder Comparato, que estava

no Senado, dentro de 10 minutos estará aqui.

O Deputado Iran Barbosa, também um dos autores do requerimento,

juntamente com o Deputado Pedro Wilson, tem que sair e pede a palavra para poder

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manifestar-se. Depois, abriremos para os Parlamentares presentes e, em seguida,

para as outras pessoas que queiram usar a palavra. No momento em que o Dr.

Fábio chegar, daremos a palavra a S.Sa.

Com a palavra o Deputado Iran Barbosa, do PT de Sergipe.

O SR. DEPUTADO IRAN BARBOSA - Obrigado, Sr. Presidente. Gostaria

apenas de me congratular por este encontro de gerações. Vejo que neste momento

tivemos a oportunidade de ouvir a voz de um brilhante jovem analista deste

problema que estamos debatendo aqui e a experiência relatada, com a emoção que

a todos nos comoveu, sobre as questões que estamos debatendo.

Ainda vamos ouvir o Dr. Fábio Comparato, mas, pelo que já ouvimos,

entendo, Deputado Pedro Wilson, que conseguimos efetivamente atingir o objetivo

que pretendíamos com esta audiência pública.

Cada vez mais se consolida a ideia de que é necessário não colocar embaixo

dos tapetes os problemas que precisamos enfrentar. Cada vez mais se consolida a

noção de que é mais do que acertada a consulta que faz a OAB ao STF sobre a

amplitude que tem a Lei da Anistia no enfrentamento da questão da tortura.

Quero parabenizar os 2 convidados que fizeram esta belíssima exposição.

Quero aproveitar, se me permitem — peço licença ao Presidente —, para dedicar

esta audiência pública a todos os que sofreram com o processo de tortura no Brasil,

mas especialmente às mulheres.

Eu vi que a nossa companheira Sônia Hipólito foi tomada pela emoção diante

do relato feito pelo Dr. Modesto da Silveira sobre o caso específico daquela senhora

violentada na sua condição de ser humano, de mulher. Sabemos que essa não foi

uma realidade única, sabemos que isso aconteceu muito.

Lá, no meu Estado, Sergipe, nós tivemos exemplos desse tipo. A Comissão

de Anistia já passou por lá. Quero aqui também aproveitar para homenagear os

meus compatriotas, os meus conterrâneos de Sergipe que também foram

violentados pelo regime de exceção.

Lamento que eu não possa continuar no debate. Peço licença a todos que

aqui se encontram.

Agradeço, mais uma vez, a oportunidade desta excelente elucidação. Tenho

certeza de que o debate vai continuar, de que ele será ainda mais elucidativo e nós

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vamos poder produzir mais opinião e mais ação a respeito deste tema na Câmara

Federal.

Muito obrigado, Sr. Presidente. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Obrigado, Deputado Iran

Barbosa.

Eu convido o Deputado Pedro Wilson, um dos autores do requerimento e

Vice-Presidente da Comissão de Direitos Humanos, a assumir a Presidência, porque

tenho que ir à Comissão de Constituição e Justiça.

A palavra está com o Deputado Chico Alencar, do PSOL do Rio de Janeiro.

O SR. DEPUTADO CHICO ALENCAR - Saúdo todos os colegas membros da

Mesa e o jovem Paulo Abrão. Permita-me dar um tratamento privilegiado, não por

ser ex-Deputado, mas por ser uma pessoa que está nessa luta cidadã há muito

tempo, ao Modesto, que sempre na sua modéstia fez questão de dizer que nós

somos companheiros de batalhas e lutas há muito tempo, mas que eu sou muito

mais jovem. Não é verdade. É claro que ele tem um pouquinho mais de estrada do

que eu. Nas minhas primeiras votações como eleitor, porque até isto teve que se

conquistar contra a ditadura, o direito de votar com um pouquinho de liberdade,

embora ainda houvesse o bipartidarismo imposto, eu sempre votava no Modesto. E

vi o meu mandato ser honrado, além da atuação dele como advogado, como

defensor dessas causas que são da humanidade.

Portanto, Modesto, é um prazer vê-lo aqui com a mesma garra, com a mesma

emoção, fazendo esta ponte que você faz como poucos, entre a razão e o coração.

É isso que constitui o ser humano novo pelo qual tanto sonhamos.

Dentro deste movimento que seria elementar de não esquecer e condenar

aqueles que torturaram, cometeram crimes contra a humanidade, o Brasil tem uma

situação diferente da Argentina, do Chile e do próprio Uruguai, para citar só países

bem próximos. E isso é inadmissível, porque o Estado brasileiro vem-se

democratizando, mas ele tem enclaves autoritários. E as Forças Armadas, na sua

alta hierarquia, também fazem parte desse enclave autoritário, assim como setores

do Judiciário.

O Parlamento, pela sua própria gênese, tem figuras autoritárias e

antidemocráticas, que a situação do golpe militar em Honduras revela, mas ele não

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pode ser considerado como um enclave autoritário no Brasil, até porque teve um

papel protagonista importante, atendendo à demanda popular por liberdades

democráticas.

Agora, no Judiciário e especialmente neste setor do Executivo que são as

Forças Armadas, ainda há muito autoritarismo. E uma das faces do autoritarismo é

não querer fazer a autocrítica do passado.

Eu vou divergir do meu querido amigo e irmão Modesto da Silveira quando ele

diz que a tortura foi praticada por figuras que tramaram contra a tradição das Forças

Armadas. Sim, os seus executores. Mas não houve um torturador no DOI-CODI do

Rio de Janeiro, na Rua Barão de Mesquita, na minha Tijuca, no subsolo, que agisse

à revelia dos seus comandantes. A tortura contra os adversários políticos foi

assumida pelo regime militar brasileiro como prática do sistema. Claro que é uma

prática tão abominável que o sistema sempre negou.

Mas mesmo os Ministros civis, mesmo os próceres civis do regime militar...

Eu ainda não tive a coragem de perguntar isso, talvez porque a resposta viesse

enganosa, a alguns colegas nossos legitimados pelo voto popular, como, por

exemplo, Delfim Neto, que agora não foi reeleito Deputado, mudou para o PMDB e

perdeu a eleição — às vezes, o esperto demais se atrapalha. Mas o próprio Sr.

Paulo Maluf conviveu com o regime militar, embora não tenha chegado a ser

Ministro. Mas, de vez em quando, encontro com o Ministro Reis Veloso nos aviões,

indo para o Rio, e fico tentado a indagar. E já perguntei ao Ministro Jarbas

Passarinho, num debate em um programa de rádio aqui. Ele, com sinceridade,

disse: “Não, eu sei que havia, mas esses excessos nós procurávamos combater”.

Mas havia um sistema onde a tortura era um método de combate.

Então, se condenamos o sistema militar, temos de condenar também os que,

dentro do regime militar, praticaram o crime mais abominável, imprescritível e de

lesa-humanidade, que é o crime de tortura. Mas até hoje as resistências são

enormes. Tocar nesse assunto é quase que entrar em uma zona proibida.

E nosso papel é entrar nessa zona proibida, porque assim como o fascismo

não existe mais como regime em boa parte do mundo, é também verdade que, como

expressão cultural, ele existe até no Brasil e às vezes de formas laterais. Torcidas

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de futebol fanatizadas e homofobia são fragmentos de uma cultura fascista no

Estado brasileiro, em processo de democratização.

Por isso, uma audiência pública como esta, que os colegas Iran Barbosa e

Pedro Wilson produziram, uma temática como esta que a Comissão de Direitos

Humanos quer animar pode ajudar a interferir nesta esperada decisão do Supremo,

para dizer o que para nós é óbvio, mas que até para parte da sociedade brasileira

não é: a Lei de Anistia não significou esquecimento dos crimes contra a humanidade

praticados covardemente por quem detinha o poder sobre pessoas indefesas. Como

já foi dito aqui à exaustão, isso não tem nada a ver com o chamado crime político,

que é caracterizado até pelos próprios regimes, para depois se dizer que exagerou.

Então, acho que o caminho é esse. Eu só queria fazer essa referência.

Fiquei muito impressionado, Deputado Pedro Wilson, V.Exa. que tem grandes

experiência aqui. Algumas figuras que eu respeito e admiro do Partido Popular

Socialista, o PPS, emanado do velho Partido Comunista, do qual está muito distante

hoje, estão preocupadas quanto ao absolutamente justo acolhimento — porque ele

não é exilado político — do Presidente constitucional de Honduras pela Embaixada

do Brasil, na hospedagem que S.Exa. está recebendo lá, estão preocupados não

com o golpe militar em Honduras, mas com o fato de S.Exa. ter-se pronunciado e

dito publicamente ou com um megafone — para depois ser abafado com alto-

falantes potentíssimos, que não deixaram os lá abrigados dormir a noite inteira,

colocados pelo exército golpista de Honduras —, ter-se manifestado pela sua volta

ao poder. É impressionante! Então, acaba acontecendo uma dobradinha entre

alguns supostos liberais e outros da extrema direita aqui no Parlamento.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Pedro Wilson) - Permita-me apenas

complementar. Acabo de receber o informe de uma agência de que o governo militar

de Honduras está censurando todas as agências lá. A nossa mídia não falou nada

disso nem ontem nem hoje.

Ontem, a Rede Globo fez uma pesquisa on-line sobre se estava certo ou não

o Brasil dar o abrigo. Vejam bem: uma pesquisa on-line, inclusive ganhando

dinheiro, porque os telefonemas são cobrados dos participantes.

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No começo a mídia condenou o golpe, mas agora está dizendo que não, que

vai ter eleição daqui a 1 mês, que é preciso tirar o Zelaya. Já o estão chamando de

Zé Lula e tentando contaminar toda a interpretação política.

Lamentavelmente, o Líder do PPS disse que... Veja bem, em vez de

perguntar para o Micheletti, para o “Golpete” explicar o que ocorre em Honduras,

está dizendo que o Governo brasileiro tem de explicar por que o Zelaya está na

Embaixada. Vejam bem, como mudam a ordem de valores — de valores, não é mais

de informação! Hoje, grande parte da mídia brasileira tem uma informação opinativa.

Já se dá o valor.

Peço desculpas a V.Exa., mas é porque agora mesmo recebi essas

informações, inclusive para denunciarmos como foi a manifestação ocorrida ontem

na Embaixada.

O SR. DEPUTADO CHICO ALENCAR - Exatamente. Daí por que a luta pela

democratização dos meios de comunicação, que em parte também são elementos

do conjunto do enclave autoritário na sociedade brasileira, é fundamental. Caminha

junto. Agora, nós temos que ganhar a disputa de ideias na sociedade. Esta ideia

água com açúcar de dizer que o passado passou, de que temos de esquecer,

portanto, quem torturou tem de ficar no seu pijama, é inadmissível.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Pedro Wilson) - Permita-me, Deputado.

Chegou aqui o convidado Dr. Fábio Konder Comparato, a quem, de imediato,

convido a tomar assento à mesa. Uma salva de palmas a esse grande advogado.

(Palmas.)

Houve aqui a contribuição do Sr. Paulo Abrão e do Sr. Antônio Modesto da

Silveira. Foi abordada a questão da memória. O Dr. Paulo Abraão destacou muito

bem essa questão. A revista está na linha do que pensam o Ministro Tarso Genro e

todos nós. Precisamos de documentos, porque muitas vezes fica tudo esparso e

ninguém tem acesso.

Discutir a tortura não é fácil. Eu e o Deputado Iran Barbosa já fomos

questionados no sentido de que ficamos, de maneira recorrente, chamando para

discutir esse assunto: “Para que discutir? Vamos para frente, vamos acabar com o

revanchismo.” Mas, no começo, a luta era contra a tortura a preso político, depois, a

luta dos movimentos de direitos humanos, e passou à luta contra a tortura contra o

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cidadão comum, que nas cadeias das periferias descobrimos que é preto, jovem e

analfabeto e continua sendo preso e torturado à revelia.

Porém, não podemos esquecer, nestes 30 anos de anistia, a consciência

política de lá para cá. Oxalá o Supremo possa nos dar uma lição de democracia!

Não é questão de julgar o termo da lei, mas a construção da democracia no Brasil,

avisando aos “Michelettes” da vida, porque eles estão por aí.

O SR. DEPUTADO CHICO ALENCAR - Vamos convidar o nosso mestre

Fábio Konder Comparato para tomar assento à mesa.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Pedro Wilson) - Peço a S.Sa. que tome

assento à mesa.

Está presente aqui também a nossa querida Deputada Emilia Fernandes, do

Rio Grande do Sul; a Primeira-Ministra da Mulher no Brasil, que honra o Parlamento,

esta grande ex-Senadora e hoje Deputada Federal pelo querido Estado do Rio

Grande do Sul.

Devolvo a palavra, para finalizar, ao ilustre Deputado Chico Alencar, a quem

peço desculpas.

O SR. DEPUTADO CHICO ALENCAR - Sr. Presidente, permita-me uma

digressão histórica. Quando eu era Vereador do Rio, para lá também foi eleito o

jogador de futebol Carlos Alberto Torres, capitão do tricampeonato. E uma vez nós

promovemos um jogo de futebol. Há outro jogador se candidatando aí, não sei se

tem a ficha muito limpa. Mas, às vezes, o craque em campo não repete a mesma

performance no Parlamento. De qualquer forma, o Carlos Alberto Torres foi

participar de um jogo e eu dei o azar de cair no time contrário. Como ele ainda

estava meio dormindo, consegui dar um drible no Carlos Alberto Torres.

Imediatamente, pedi para ser substituído. Saí de campo com essa glória.

Ser interrompido ou encerrar minha fala com o Fábio Konder Comparato é

muito mais valioso do que isso. Portanto, encerro aqui. Não tenho nada a dizer, só a

ouvir, aliás.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Pedro Wilson) - Muito obrigado, Deputado

Chico Alencar. (Palmas.)

Permitam-me, Deputados Luiz Couto, Emilia Fernandes e Janete Rocha

Pietá, antes de passar a palavra ao nosso convidado, nos solidarizarmos com o Dr.

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Fábio Konder Comparato por ter respondido de forma firme e coerente quando um

jornal de São Paulo chamou a ditadura de “ditabranda”. Depois houve uma tentativa

de atingir o Dr. Fábio Comparato. Nós queremos aqui manifestar ao senhor a nossa

solidariedade, pequena, mas de todo gosto na luta pela democracia. Que a palavra

do senhor continue para nós um farol na luta pelos direitos humanos e pela

democracia no Brasil.

Estão conosco aqui o Dr. Antônio Modesto da Silveira, ex-Deputado Federal e

também advogado, o Dr. Paulo Abrão, Presidente da Comissão de Anistia, e os

Deputados Chico Alencar, do Rio de Janeiro, Emilia Fernandes, do Rio Grande do

Sul, Luiz Couto, da Paraíba, e Janete Rocha Pietá, de São Paulo. Não pôde estar

presente conosco até o final o Deputado Iran Barbosa, do PT do Sergipe, que foi

comigo um dos autores deste convite a V.Sa.

Passo a palavra ao Dr. Fábio Konder Comparato, para suas considerações.

O SR. FÁBIO KONDER COMPARATO - Ilustres Deputados, fico um tanto

constrangido de falar, porque eu não sabia que deveria vir hoje aqui. Fui convidado

para vir no dia 24 de outubro. Mas, de qualquer maneira, talvez esta antecipação

seja providencial.

Temos que considerar o assunto da Lei de Anistia sob 2 enfoques. O primeiro

é o enfoque técnico, legal e constitucional. O segundo, uma questão de educação

republicana e democrática.

A Lei de Anistia, nº 6.683, de 1979, declara textualmente anistiados crimes

políticos. E, logo em seguida, ela exclui do benefício da anistia crimes de violência.

E fala até em terrorismo. No § 1º do art. 1º, ela estende a anistia aos crimes

conexos.

Eu falo sempre em anistia de crimes, e não de criminosos, porque a anistia

apaga o crime.

Acontece que temos que interpretar a Lei de Anistia de acordo com a

Constituição de 1988. As leis anteriores à Constituição de 1988 só permanecem em

vigor se forem harmônicas com os princípios constitucionais declarados em 1988. E

o que vemos no inciso XLIII do art. 5º da Constituição de 1988 é a declaração de

que a lei considerará crimes inafiançáveis e insusceptíveis de graça ou anistia a

prática da tortura e outros crimes.

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De modo que, se entendemos que a Lei nº 6.683 permaneceu em vigor após

o início da vigência da Constituição de 1988, temos que admitir que essa parte

interpretada da Lei de Anistia não pode ser considerada consentânea, harmônica

com a Constituição de 1988.

Mas, na verdade, em toda a história do Brasil temos 2 Direitos, e não só 1.

Quero lembrar o conto O Espelho, de Machado de Assis, que certamente todos

conhecem. Nesse conto o narrador assevera aos seus ouvintes espantados que

cada um de nós tem 2 almas, e não apenas 1. Tem uma alma externa, que exibe

para o público e pela qual ele julga o mundo de fora para dentro; tem uma alma

interna, que ele mantém reservada, através da qual ele julga o mundo de dentro

para fora.

Temos, em toda a história do Brasil, 2 Direitos. Um Direito é o oficial,

civilizado, que exibimos ao estrangeiro. As nossas Constituições são roupas de gala,

que demonstram que somos elegantes, civilizados, bem comportados. Mas existe

um Direito interno, que procuramos não mostrar ao estrangeiro. Este é o que

protege os privilégios dos poderosos, dos ricos, dos irresponsáveis.

Toda vez que a Constituição e a lei esbarram num interesse forte de um

membro da classe poderosa, entra em vigor o direito subentendido.

Isso aconteceu durante quase 4 séculos com a escravidão. O tráfico de

escravos, comércio infame do ser humano, foi proibido por 2 tratados assinados com

a Inglaterra no início do século XIX. O Brasil tornou-se independente, mas não se

cumpriam os tratados. A Inglaterra pressionou o Governo, e a Regência, numa lei de

7 de novembro de 1831, declarou proibido o tráfico de escravos, considerado

análogo à pirataria, o que dava às autoridades o poder de apreender as

embarcações e submeter a tripulação a julgamento.

No entanto, até a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, todo esse aparato oficial

era para inglês ver, era nossa alma de fora. Por dentro, continuávamos, ano a ano, a

receber contingentes cada vez maiores de africanos.

A Constituição de 1824 declarava desde já — é expressão da Constituição —

abolidas a marca de ferro quente, as penas cruéis e a tortura. No entanto, até a lei

de 1886, os escravos continuavam marcados com ferro em brasa. E a lei de 1886 só

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veio por uma razão. A Constituição de 1824 proibia o açoite, abolia o açoite, mas

não para escravos. Aí é outra questão, aí entra o Direito subentendido.

O Código Criminal de 1830 admitiu que os escravos pudessem ser

submetidos a 50 chibatadas diárias. Era comum, no entanto, o infeliz sofrer 200 a

300 chicotadas diárias, o que levava muitos à morte. Foi por isso que, em 1886, às

vésperas da abolição, um júri de Paraíba do Sul, Estado do Rio de Janeiro,

condenou a 300 chibatadas 4 escravos. Dois deles faleceram, e o fato foi publicado.

Imediatamente, com grande constrangimento, a Câmara dos Deputados do Império

votou a lei proibindo os açoites.

É exatamente isso o que acontece com a anistia. Oficialmente, torturar um

preso não é um crime político. Em lugar nenhum. E quem tortura é o aparelho de

poder. O crime político é um crime de rebelião, de revolta contra o poder, contra a

estrutura estatal que existe.

Para os militares, desde sempre, torturar e matar um preso é um crime

hediondo. A honra militar obriga, obrigou desde sempre a respeitar o preso, porque

ele foi vencido. Só se deve, militarmente, atacar e matar o inimigo enquanto ele não

se render. No momento em que ele é preso, ele goza de toda a proteção. É aviltante

para um militar fazer isso. Em nosso País, durante o golpe militar de 1964, milhares

de presos foram torturados — centenas de milhares, pode-se dizer — e muitas

mulheres foram estupradas. Havia, no DOI-CODI de São Paulo, sessões especiais

em que se estupravam as presas. Tudo isso cometido não só com a autorização,

mas também com o incentivo de autoridades militares. Hoje, pretende-se que isso

esteja abrangido pela Lei de Anistia.

O último aspecto, da maior importância: reconhecer esses fatos aviltantes é

absolutamente necessário para a educação moral do brasileiro. Ele precisa entender

que aqueles que estão no poder são servidores dele, povo — o povo é o patrão —, e

que, quando esses servidores se comportam de maneira escandalosa, aviltante, têm

que ser punidos.

O ilustre Deputado acabou de lembrar que, nas delegacias de polícia de todo

o País, a tortura é um fato incontroverso. Mas não contra pessoas de paletó e

gravata, como este seu criado. Quando entro numa delegacia de polícia,

imediatamente o funcionário diz: “Pois não, doutor. O senhor deseja alguma coisa?”

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Ele não sabe que eu sou doutor. Mas, quando entra numa delegacia de polícia,

minha empregada é tratada aos trancos e barrancos. Isso é uma vergonha para

nossa população, mas nós introjetamos isso.

Então, de modo muito claro, se o Supremo Tribunal Federal não reconhecer

essa evidência, se não quiser dar ao povo brasileiro essa lição de respeito à

dignidade humana, vamos continuar manchados. Nós outros, advogados, que

estamos acostumados a perder e a ganhar em juízo, temos um princípio: vencer às

vezes; desistir, jamais. Iremos, se Deus quiser, à Comissão Interamericana de

Direitos Humanos, e agora para acusar nosso País, para que não se diga, em

âmbito internacional, infelizmente, que este não é Estado digno e que deva ser

sancionado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Pedro Wilson) - Obrigado, Dr. Fábio Konder

Comparato. É uma honra para esta Casa recebê-lo, por sua participação histórica na

luta pela democratização do País e por sua contribuição à atual Carta Magna.

Estão inscritos para falar a Deputada Janete Rocha Pietá, o Deputado Luiz

Couto, a Deputada Emília Fernandes, o Deputado Chico Alencar e o Dr. Jarbas

Marques.

Com a palavra a Deputada Janete Rocha Pietá.

A SRA. DEPUTADA JANETE ROCHA PIETÁ - Cumprimento os Deputados

Pedro Wilson e Iran Barbosa, autores do requerimento de realização desta fantástica

audiência digo — e digo fantástica no sentido de recuperarmos a luta pela

igualdade, pois um país democrático não pode conviver com a tortura.

Parabenizo o companheiro Fábio Konder Comparato, do Conselho Federal da

OAB, e envio-lhe um abraço fraterno. Esse querido companheiro acabou de fazer

um retrospecto da história do nosso País, onde milhões de negros foram torturados

e mortos apenas, muitas vezes, por capricho. Além disso, os negros eram

considerados como não tendo alma e tratados como seres, como eu digo hoje em

dia, inferiores a um animal irracional, porque qualquer pessoa que tenha um

cachorro ou outro animal de estimação o trata com carinho e percebe quanta eles

sensibilidade têm.

Nesta Casa, no dia 9 de setembro, aprovamos o Estatuto da Igualdade

Racial, porém a aprovação não significa que tenhamos conseguido o que

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queríamos. A educação é fundamental e não conseguimos aprovar o

estabelecimento das cotas, porque é através da educação que podemos reafirmar o

que o Dr. Fábio Comparato tão bem expressou, que é importante relembrar a

história ou reconhecer os fatos aviltantes para levar educação moral à população

brasileira.

Eu havia me inscrito para falar sobre um caso ocorrido em São Paulo.

Representando a Comissão de Direitos Humanos, fui, em diligência, acompanhar a

investigação da morte por tortura de um jovem afro-brasileiro chamado Carlos

Rodrigues Júnior, que possivelmente tinha praticado um furto — possivelmente,

porque não foi comprovado. Todavia, os policiais entraram na casa desse jovem e o

torturaram até a morte. Ele foi julgado, torturado e morto em seu próprio quarto.

Quer dizer, a tortura continua.

Temos esse caso que gostaria de relembrar e, a partir desta audiência

pública, retomar. E, como os presos militares ficaram no presídio especial, o caso

está, por assim dizer, parado.

Mas eu me inscrevi também para registrar especificamente, porque sou da

Comissão de Relações Exteriores, um e-mail que recebi de Honduras. É muito grave

a situação em Honduras. E eu aproveito esta audiência para registrar isso. Vou pedir

outra cópia para fazer uma ampla divulgação. A mensagem foi enviada pelo

Ministério da Saúde de Honduras — as pessoas não se identificam, obviamente,

pela situação do golpe existente no país — e nela é dito que há, pelo menos, 16

mortos, dezenas de pessoas hospitalizados e que foi montado um campo de

concentração em um estádio, onde existem centenas de presos.

Então, eu tinha me inscrito para denunciar que o golpe em Honduras não se

resumiu à deposição do Presidente legitimamente eleito, mas também que militantes

da Frente Nacional de Resistência estão sendo presos e torturados.

Quer dizer, estou falando sobre o Brasil, mas quero aproveitar esta

oportunidade para registrar a necessidade de tomarmos, na Comissão de Direitos

Humanos, Presidente Pedro Wilson e Presidente Luiz Couto, uma posição frente a

essa situação sobre a qual, ao meu ver, não podemos nos calar.

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Quero também mandar um abraço especial ao ex-Deputado Antônio Modesto

da Silveira e dizer que não podemos perder de vista a luta para garantir que todos

sejam iguais e que não haja no Brasil e no mundo nenhum tipo de tortura

Agradeço a todos. Quero dizer que estou na Comissão de Relações

Exteriores e, possivelmente, se conseguirmos, iremos a Honduras em delegação,

mas aproveito para fazer este registro nesta Comissão.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Pedro Wilson) - Agradeço à Deputada Janete

Pietá as palavras;

Convido a Deputada Janete Rocha Pietá, numa homenagem à luta das

mulheres contra a tortura, para presidir esta audiência até o final dos trabalhos.

Uma salva de palmas a essa luta que é das mulheres e também dos homens.

(Palmas).

Também está presente o historiador Jarbas Silva Marques, uma das pessoas

mais torturadas neste País, mas que jamais se demitiu da seu dignidade e que hoje

contribui para a consolidação da democracia brasileira.

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Janete Rocha Pietá) - Com a palavra a

Deputada Emília Fernandes, do PT do Rio grande do Sul.

A SRA. DEPUTADA EMÍLIA FERNANDES - Muito obrigada, companheira

Janete Pietá.

Não posso me furtar de registrar, neste momento, a verdadeira aula de

resgate histórico que esta Casa, através das Comissões de Direitos Humanos e de

Legislação Participativa, a que tenho a honra de integrar, dá não apenas às pessoas

que aqui presentes, mas às de todas as partes do Brasil que estão acompanhando

esta reunião. Temos uma Mesa qualificada pelo conhecimento, por sua trajetória de

vida e pela prática de direitos humanos ao longo de sua existência.

Quero cumprimentar o ex-Deputado Modesto da Silveira. Nós nos

encontramos hoje, talvez, pela primeira fez frente a frente, mas ao longo da minha

vida de luta como militante sindical, como lutadora social dos movimentos sociais,

oriunda do Estado do Rio Grande do Sul, da região da fronteira do Brasil com o

Uruguai, aprendi a conhecer e a admirar sua história.

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Ao Dr. Comparato também todo o meu respeito pela sua história e pela sua

luta no dia a dia, que sempre será um espelho para que todos vejam a imagem de

sua coragem e de persistência.

E o Dr. Paulo Abrão, então, coroa a luta pela qual todos temos lutado durante

toda a nossa vida, uns já há muito tempo, outros se incorporando agora, mas todos

cerrando fileiras em torno dessa luta. E aqui está um jovem dando uma

demonstração de que a idade se afirma à medida que fortalecemos valores,

formamos consciência e tomamos atitudes através de ações.

Então, quero me congratular com os promotores deste evento, porque ele

traz, como aqui já foi dito, um tema que muitos buscam colocar no esquecimento,

alegando que direitos humanos é questão de proteção ao crime e a arbitrariedades.

Na verdade, tentamos resgatar, por meio da história, o que há de mais sublime: a

dignidade da vida e do ser humano, a liberdade de opinião, de que não podemos,

sob hipótese alguma, abrir mão.

Sofri muitas vezes, até mesmo como professora, quando queria, por meio das

nossas aulas, resgatar o verdadeiro conteúdo da história deste País, relatando o que

foi feito com os negros, com os índios e com as mulheres (palmas) em todos os

momentos, não apenas nos porões da ditadura ou dos navios negreiros, mas na luta

pela conquista da terra, da liberdade, da casa, da moradia e do direito de falar e de

participar da política.

Muitas vezes, fui tachada de retrógrada, de alguém que não tinha visão

moderna e que buscava culpados. No meu coração, porém — e, tenho certeza, que

no dos senhores e das senhoras também —, não há lugar para mágoas ou para

ressentimentos. Ele tem lugar para a liberdade, para a justiça e para o

reconhecimento daqueles e daquelas que, muitas vezes no anonimato e, em outras,

nos espaços de maior decisão e nos momentos de confronto, não se calaram diante

do poder e defenderam o direito de pensar diferente. É isso que fortalece a vida e a

democracia.

A anistia não é perdão para alguns, ou para todos, como alguns dizem.

Tortura não é direito dos que estão no poder. O combate à tortura deve ser

permanente, é tema que precisa ser fortalecido, porque precisamos estar sempre

cuidando para evitar retrocesso.

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A propósito, o que está acontecendo em Honduras exemplifica,

concretamente, que isso está presente, está próximo, como foi dito, até mesmo nos

poderes constituídos do nosso País. Mas, para a nossa felicidade, também nos

poderes constituídos, num espaço entre os mais privilegiados do Governo brasileiro

— e, aqui, nossa homenagem às mulheres — está uma mulher como a Ministra

Dilma Rousseff, com que tivemos o prazer de compartilhar, durante a sua trajetória

no Estado do Rio Grande do Sul, da sua luta pela liberdade e pela democracia.

Nós temos 2 campos. O povo precisa saber que direitos humanos, direitos

das mulheres, direitos dos negros e das negras estão diretamente ligados ao

fortalecimento da democracia. Precisamos impedir as formas de violência e de

tortura que ainda acontecem, vejam bem, mundialmente — trata-se de uma questão

mundial. Todos tivemos conhecimento do que as forças militares americanas fizeram

no Iraque. Não foram apenas crimes de guerra ou apenas enfrentamentos. Elas

ultrapassaram a barreira do respeito e da dignidade humanas.

Portanto, temos, sim, obrigação de manter na pauta este tema, para que não

os fatos se repitam, para que este País avance e mostre ao mundo que não

queremos 2 direitos. Nós queremos o direito real, a partir da luta consciente de cada

um e de cada uma.

Contem sempre com a nossa luta! Na fronteira do Uruguai, convivi com

muitos companheiros e companheiras que estavam do lado de lá. Muitos até

perderam a vida — história que já conhecemos. E eu me inspiro neles. Muitas fotos

e arquivos foram queimados, mas, como os senhores e as senhoras sabem, nem

tudo é queimado, porque o que está no coração e na consciência das pessoas, ou a

história que é presenciada e contada, não se apaga. Eu vi homens ultrajados em

sua dignidade, amarrados, seminus. E até mesmo grandes líderes políticos deste

País às vezes colocados em situação extremamente triste, sem falar nas mulheres

que, como sabemos, sofreram dupla ou triplamente e continuam sofrendo a falta de

liberdade política e de expressão.

Que este País continue resgatando sua história, trazendo para a realidade do

dia a dia que não admitimos tortura, que não admitimos o cerceamento da liberdade,

seja de expressão, de credo, de religião, seja do que for, que temos de fortalecer a

democracia e que homens, como os que estão aqui, principalmente os jovens,

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analisem e estudem esses fatos inspirados principalmente nos princípios

fundamentais que a Constituição brasileira inscreveu a partir de 1988.

As mulheres, com certeza, senhores e senhoras, estarão atentas e atuantes

nessa caminhada pela justiça e pela dignidade.

Parabéns aos palestrantes pela verdadeira aula de cidadania que deram a

esta Casa, mas principalmente ao Brasil e ao mundo. (Palmas)

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Janete Rocha Pietá) - Deputada Emília

Fernandes, tenho a honra de convidá-la para assumir a presidência dos trabalhos e

dizer que, na luta pela democracia, estavam presentes mulheres e homens de várias

origens, mas o principal é que a luta pela democracia é uma construção

permanente. Não podemos de maneira nenhuma ter duas leis, nem tampouco

podemos ter duas posições frente ao que ocorre na América Latina, principalmente

em Honduras. Irei agora ao plenário da Casa registrar presença e, em seguida,

voltarei para este evento. (Palmas)

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emília Fernandes) - Avançando nos

trabalhos, pois várias pessoas têm compromissos, passo a palavra de imediato ao

Deputado Luiz Couto, Presidente da Comissão de Direitos Humanos desta Casa,

para suas considerações.

O SR. DEPUTADO LUIZ COUTO - Sra. Presidente, em primeiro lugar, quero

parabenizar os autores do requerimento de realização desta audiência e os

expositores Modesto da Silveira, Fábio Konder Comparato e Paulo Abrão, que

demonstraram que, além da anistia, há uma versão da lei que não corresponde

àquilo que se estabelece, aquele apego que é usado para dizer que temos uma

anistia geral, ampla e irrestrita, quando, na realidade, a anistia foi acordada. E

acordada a partir da situação mencionada pelo Dr. Paulo Abrão, da existência de

Senadores biônicos e da pressão de militares nas galerias.

A prova é que, cada vez que se tenta fazer algo para que os arquivos sejam

abertos, sempre dizem que queremos o revanchismo. Na verdade, a anistia não

levou em conta o direito à memória e à verdade; não levou em conta que outros

países fizeram, a necessidade de criação de uma Comissão da Verdade, para

acompanhar todo o processo.

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Mais do que isso. Famílias que tiveram seus entes torturados e executados

até hoje não sabem onde os corpos foram jogados. É o caso de Davi Capistrano. O

livro da Taís afirma que ele foi cortado como fosse um animal e, depois, as partes

jogadas ninguém sabe onde.

O direito ao luto é um direito da família. Na época da Guerrilha do Araguaia,

tem início o processo de execução sumária. Foram executadas várias pessoas,

entre elas mateiros e agricultores que trabalhavam na região. A execução de alguns

deles ninguém sabe como foi.

É para esse aspecto que quero chamar a atenção. Muitos dizem: “Foi um

perdão para todo mundo”. Do ponto de vista da hermenêutica bíblica, para haver o

perdão, primeiro, tem de haver o reconhecimento do erro. É preciso que alguém

reconheça que estava envolvido em determinada ação. Tem de confessar a autoria

daquele erro. Segundo, tem que pedir perdão e também é necessária a reparação. E

não só econômica, como muitos consideram, mas muito mais do que isso. É preciso

que toda essa memória venha à tona, para que a verdade se estabeleça. Somente a

verdade vai nos libertar, somente ela vai promover a reconciliação, e não o que

acontece muitas vezes quando os movimentos tentam ampliar a responsabilidade.

Em seminário sobre a tortura aqui realizado — o Dr. Modesto da Silveira

estava presente, entre outros —, foi dito que, por não enfrentarmos a tortura, hoje

ela é sistemática em nosso País. Prova disso tanto os relatórios da ONU quanto os

da OEA sobre o nosso País apontam que algumas questões continuam não sendo

enfrentadas. Entre elas, a tortura, as execuções sumárias, o sistema penitenciário, o

racismo. Enfim, essas questões estão sempre presentes nesses relatórios. E as

providências não são tomadas porque, cada vez que se tenta enfrentá-las, há

sempre a reação de setores das Forças Armadas de que é revanchismo da nossa

parte.

Quero parabenizar os responsáveis pela realização desta audiência e dizer

que é muito importante continuarmos o debate, a fim de termos a concretização

plena do direito à memória e à verdade. (Palmas.)

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emília Fernandes) - Muito obrigada,

Deputado Luiz Couto.

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Solicita-nos a palavra o jornalista Jarbas Marques. Quanto aos nossos

palestrantes, faremos uma rodada de encerramento, até porque o Dr. Comparato

tem compromissos inadiáveis.

Vamos ouvir o jornalista Jarbas Marques.

O SR. JARBAS SILVA MARQUES - Um dos objetivos de uma audiência

pública é possibilitar contribuições. Depois dessa busca de hermenêutica pelo Dr.

Paulo, acho que posso dar uma contribuição. Se o General de Exército João

Baptista Figueiredo entendesse que a anistia por ele assinada estenderia um véu de

impunidade sobre os torturadores, ele não teria concedido uma outra anistia em seu

Governo para os médicos torturadores, os instrumentadores de tortura.

Modesto da Silveira ainda era Deputado quando suscitou a execução de

Carlos Marighella — dia 4 de novembro vai completar 40 anos. Um dos maiores

sabujos da instrumentação de tortura, Harry Shibata, disse que, antes do Marighella

morrer, ele tinha lhe dado a unção como católico.

Particularmente, eu denunciei ao próprio Modesto que tinha sofrido torturas

na mão do então tenente Ricardo Agnese Fayad, hoje general de divisão.

Quando a Inês Etienne, a única sobrevivente da Casa da Morte de Petrópolis,

saiu com a Anistia, e vocês localizaram o Tenente Lobo, o que ele disse? “Eu não

pertenço mais ao Exército, sou um Oficial R2. Por que vocês não vão atrás do

Fayad, que continua torturando e matando?” Então, o que aconteceu? Esse Tenente

Lobo, que participou da instrumentação de tortura, depois de falar isso, sofreu

aquela mesma injeção de simulação de ataque cardíaco. Ele estava andando em

Copacabana, levou uma picada de injeção nas nádegas e morreu em seguida.

Então, Dr. Paulo Abrão, só para o senhor rebuscar e contra-argumentar: o

Figueiredo que assinou isso é o mesmo Figueiredo que assinou o Código 12, para

matar o Juscelino, o Carlos Lacerda e o Presidente Jango, para eliminar fisicamente

os mentores da Frente Ampla. Ele que mandou aplicar o Código 12 e também,

depois de assinar a Lei da Anistia em 1979, assinou uma lei que revogava um dos

primados da humanidade — o Juramento de Hipócrates —, ao estabelecer que

todos os médicos militares que participaram da tortura como instrumentadores ou

como legitimadores de morte não estavam subordinados ao Conselho Federal de

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Medicina, nem à ética de Hipócrates. Então, essa é uma contribuição para o senhor

incorporar a todo esse tratado hermenêutico que o senhor apresentou aqui.

Quando eu estava preso na Fortaleza de Santa Cruz, presídio do Exército, li

uma obra sobre a história da Polícia Civil do Rio de Janeiro, que foi criada em 1808,

por Dom João VI. Na minha visão de historiador, a formatação do Brasil como pátria

se dá na Guerra do Paraguai, na junção de 4 movimentos sociais e políticos: o

positivismo, o antiescravismo, a Maçonaria e o republicanismo.

Por que os primeiros batalhões do Voluntários da Pátria que entraram em

combate — e a Deputada Emília Fernandes, gaúcha, sabe disso — eram compostos

por negros? O povo e os índios paraguaios não conheciam os negros, os quais a

Igreja benzia as mãos das chibatas e dos ferros. Esses negros entraram em

combate defendendo um regime que os escravizava. A oficialidade branquela, como

eu e outros, viu neles homens, guerreiros íntegros. Foi de lá que o Exército brasileiro

voltou com a decisão de não aceitar ser capitão-do-mato.

O regime escravagista dos Orleans e Braganças, para desmoralizar o

Exército brasileiro, que era contra a escravidão, baixou um decreto: qualquer senhor

de escravo que quisesse chibatar ou torturar um escravo deveria procurar o quartel

mais próximo e pagar, sob a forma de imposto, essas chibatadas. Dr. Comparato, o

senhor encontrará isso no livro do livro do Hermeto sobre a história — ele relata en

passant esse fato, mas dilatei a pesquisa com relação a isso.

Então, Dr. Paulo, para o senhor buscar fundamentação, tanto o próprio

Figueiredo, que assinou a Lei de Anistia, sabia que ela não protegia os médicos

instrumentadores de tortura, que aboliu de forma sui generis o Juramento de

Hipócrates.

Com relação a dizer que todos que denunciamos tortura somos revanchistas,

eu não quero prendê-los, como eles me prenderam por 10 anos. Não quero afogá-

los em fezes, como eles me afogaram no quartel do Dragões da Independência. Não

quero que sofram torturas sexuais, como eu sofri e testemunhei mulheres sofrendo.

O Modesto sabe muito bem. Antes do Anselmo, pela mão do General Oliva e

do Almirante, ter ido requerer anistia, quando Inês Etienne, que hoje está

juridicamente impossibilitada, foi requerer anistia, eles tentaram matá-la, porque ela

foi a primeira a saber que Anselmo, agente policial infiltrado antes de 1964 pelo

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CENIMAR, matou mais de 100 pessoas e assumiu essas mortes. E agora, para

desmoralizar a Lei da Anistia, ele pretende requerer indenização, dizendo que foi

perseguido pelo Estado. Ora, esses arquivos existem para desmoralizar pessoas e

grandes combatentes.

O irmão caçula de Alberi Vieira dos Santos, conterrâneo da Deputada Emília

Fernandes — estivemos presos na fortaleza durante 4 anos —, serviu de aríete,

bateram sua cabeça na parede até ele ficar louco; o segundo irmão foi torturado e

enrolado em arame farpado.

Quando o Alberi saiu “de cadeia cumprida”, ocorreu a mesma coisa: teve

morte igual ao do irmão, enrolado em arame farpado. E, depois, os tais arquivos da

DSI do Itamaraty apresentam os fatos como se ele tivesse preparado uma cilada

para matar outros companheiros que estavam voltando do exterior.

Então, esses arquivos servem. No último depoimento que eu e o Modesto

demos aqui na Câmara dos Deputados, dois dias depois de eu dar nomes de

torturadores e de assassinos, um coronel recebeu uma tarefa desse blog Ternuma

nunca mais, de colocar palavras como se eu fosse um renegado. Estou ajuizando

uma ação para que ele diga onde eu escrevi, porque fui eleito como um inimigo

militante dessa canalha toda que vive na sombra, que vive como sempre viveu.

Por que Delfim Neto não vai dizer que reuniu o empresariado de São Paulo e

estipulou 150 mil dólares. O Coronel Ustra, além dos vencimentos que recebia como

oficial do Exército Brasileiro, era o homem do caixa para pagar o salário de

torturadores pelos empresários de São Paulo. Por que esse juiz “Lalau” está sendo

protegido até hoje? Porque era um caixa de pegar dinheiro com os empresários para

pagar o salário dos torturadores — o salário além do que o Estado pagava.

Acho que essa é uma luta de dignidade não só nossa, dos sobreviventes,

mas do povo brasileiro e da humanidade, como foi postulado aqui.

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emília Fernandes) - Muito obrigada.

Antes de passar a palavra ao Cerezo, da Associação Nacional de Anistiados

Políticos de Volta Redonda, no Rio de Janeiro, queremos registrar a importante

presença — e agradecemos — da Dra. Alexandrina da ABAP do Distrito Federal.

Também está aqui Rosa Simeana, gaúcha, filha de perseguido político.

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Registro ainda a presença dos companheiros Getúlio Guedes e Arlindo

Pereira, do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos; do Sr. Valdivino

Braga da Silva, da União de Mobilização Nacional dos Anistiados do Rio de Janeiro;

e do Sr. Sérgio Ulaerte.

Como o Dr. Comparato precisa se retirar, vamos inverter a pauta. Daremos a

palavra a ela para suas considerações finais e, depois, ao Cerezo e aos 2 últimos

palestrantes, para encerrarmos os trabalhos.

Então, com a palavra o Dr. Comparato, para suas considerações finais.

O SR. FÁBIO KONDER COMPARATO - Queria dizer que mais importante do

que punir os torturadores, assassinos e estupradores é homenagear a verdade.

Fui procurado, em 1989, por Inês Etienne Romeu, que me contou o calvário

que sofreu. À época, eu disse a ela que a jurisprudência não admitia ações de

indenização por causa da prescrição — isso naquela época, agora mudou a

jurisprudência. E ela me disse: “Professor, eu não quero um tostão de indenização.

Esse dinheiro de indenização vem do povo e a grande vítima é o povo. O que eu

quero é que a Justiça do meu País reconheça oficialmente que eu fui sequestrada,

mantida em cárcere privado, estuprada 3 vezes por agentes públicos federais pagos

com o dinheiro do povo brasileiro”.

Eu fiquei absolutamente emocionado com isso e disse: “Pois não. Então, eu

vou ingressar com uma ação declaratória, para que fique constando oficialmente

tudo isso que a senhora acaba de me dizer”. E devo lhes dizer que essa ação foi

julgada procedente em primeira instância, e a União Federal desistiu da apelação.

Esse foi o primeiro caso.

Com base nisso, tenho a honra de defender duas famílias de presos políticos

torturados. Uma delas, a de um jornalista que, com 24 anos, foi preso e torturado até

a morte no DOI-CODI de São Paulo. Uma dessas ações foi julgada procedente; a

outra foi anulada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, e estou recorrendo ao

Superior Tribunal de Justiça.

É por isso que eu repito a todos o grande princípio que me inspira: nem

sempre ganhamos as batalhas, mas não vamos desistir jamais. (Palmas.)

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A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emília Fernandes) - Muito obrigada, Dr.

Comparato. Nossa inspiração continua na sua luta pela liberdade e pela justiça.

Parabéns. Muito obrigada pela presença.

Queremos registrar — e até pedir desculpas por não tê-lo feito antes, mas só

agora chegou a indicação à Mesa — a presença do Sr. Zezinho do Araguaia,

Presidente do IAPA — Instituto de Apoio aos Povos do Araguaia e ex-gerrilheiro do

Araguaia. Ele nos honra com a sua presença e com a sua trajetória de luta.

Cerezo, por favor, com a palavra.

O SR. CEREZO - Eu sou o Cerezo, metalúrgico da CSN, recém-anistiado.

Além de parabenizar os autores da iniciativa de realização desta reunião,

quero também parabenizar o Deputado Modesto da Silveira, do meu Estado, o Dr.

Paulo Abrão, a Deputada Emília Fernandes, a Deputada Janete Rocha Pietá e os

demais presentes.

A reflexão com que eu, modestamente, queria contribuir é o registro de que a

Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, a meu ver, tomou duas grandes

iniciativas que merecem ser ajudadas, no mínimo, e também ser elogiadas.

A primeira foi divulgar para as universidades do País os horrores, ou pelo

menos parte deles, que aconteceram durante o período em que a ditadura esteve

em vigência. Isso tem um grande significado – o Dr. Paulo Abrão sabe da minha

opinião –, porque às universidades brasileiras os pobres e negros têm pouco

acesso. A classe média ainda tem grande acesso. E os militares se apoiaram, para

dar o golpe, na classe média. Então, a nova geração, que não pôde ver nas escolas

as histórias dos horrores — até porque a educação sofreu uma profunda “educação”

e pouco se dizia sobre isso —, agora vai ter oportunidade de saber, principalmente

se for concluído do projeto da digitalização da memória, das denúncias etc. Nesse

setor, vai haver uma massificação que muito ajudará a combater os remanescentes

ainda presentes em nossa sociedade, aqueles a que o Deputado Chico Alencar

chamou de enclaves duros, que estão aí para, a qualquer momento, atacar

novamente.

A outra iniciativa, a qual, inclusive, me beneficiou, foi a anistia, que se ampliou

muito com relação aos números anteriores.

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Eu tenho tido divergências pontuais com o Dr. Paulo quanto ao

aprimoramento da iniciativa, o que discutiremos em outra ocasião.

Mas, continuando a minha análise, a vanguarda que hoje se estabeleceu na

Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e na Comissão de Direitos Humanos

tem uma ação isolada e preocupante. Por exemplo, o golpe que está acontecendo

em Honduras mostrou como a mídia e setores duros do Brasil estão protegendo os

golpistas, inclusive fazendo crítica ao Governo, que está aceitando — até como uma

forma de praxe internacional do asilo político – que o Zelaya fique na Embaixada

brasileira em Honduras, um procedimento normal adotado por outros países, e que,

no caso do Brasil, jornalistas como a Míriam Leitão e outros da grande mídia,

analisam como uma postura do Governo brasileiro de apoio ao chavismo etc., etc.

Na verdade, o que é isso? Enclaves golpistas que existem em nosso País e

que não toleram, de forma alguma, o avanço da liberdade e o fim desses resquícios

de autoritarismo.

Estou seguro de que, se não ampliarmos a reação, esse golpe de Honduras

pode servir para os golpistas brasileiros, peruanos e de outros países não apenas na

América Latina como uma possibilidade de também se movimentarem. Se a

democracia começa a avançar contra a elite, como o Dr. Fábio Comparato revelou,

eu estou seguro de que aquilo vai ser um balão-de-ensaio, eu estou seguro de que

para muitos golpistas brasileiros estão na clandestinidade apoiando os golpistas

hondurenhos. Eles têm acesso à mídia e ficam todo o tempo assediando a

Comissão de Anistia, falando sobre “anistias milionárias” entre aspas.

Inclusive, chamou-me a atenção o fato de neste plenário estarem presentes

militares. Aliás, eu sugiro à Mesa a convidá-los para fazer uso da palavra, porque é

importante sabermos qual a opinião deles. Eu penso assim: o Ministério da Defesa,

quando manda militares virem acompanhar a nossa reunião, ele o faz selecionando

quadros da oficialidade que não vêm aqui — perdoem-me se eu estiver errado —

pregar a liberdade e a ampliação dela. Vêm aqui para medir até que ponto esses

remanescentes estão sendo vitoriosos em manter esses bolsões, esses quadros

duros que nos perseguem cotidianamente. Então, vou repetir: gostaria que eles

fossem convidados para dar sua opinião sobre a democracia, porque o oficial

treinado na clandestinidade para acompanhar comunistas, para acompanhar

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subversivos, para acompanhar aqueles que lutam pela liberdade vai ser um quadro

preparado para praticar ataques, inclusive a tortura.

Isso me lembra, por exemplo, uma cena ocorrida no meu sindicato, em Volta

Redonda, e que me chocou muito: um companheiro nosso, cujo pedido foi julgado

semana passada, me mostrou a foto de um oficial que estava acompanhando a

reunião de posse dele do sindicato com uma aparência dócil, barbeado, cabelinho

dentro do rigor. Depois, aquele mesmo militar e outros que não conhecemos foram

para lá a fim de torturá-los e de matar outros. Hoje, eles estão, mas têm que ser

trazidos ao banco de réus. Temos que incriminar essas pessoas, no mínimo.

Nesse Estado, que tem uma porção de contradições, temos de formar essa

vanguarda: Comissão de Anistia, Comissão de Direitos Humanos, e ampliar isso —o

que tem sido feito nas universidades —, porque a situação é muito preocupante.

Essas pessoas estão olhando para o sucesso dos golpistas de Honduras. Eles vão

chegar lá, esses militares, eu suponho — se não aceitarem falar aqui, na frente de

todos — e dizer no relatório: “Foi uma reunião de comunistas. Criticaram o golpe de

Honduras”.

Temos de ficar atentos. Não podemos achar que a liberdade está ali,

balançando na Bandeira Nacional no Palácio do Planalto, não. Vejo a situação com

muita preocupação. Infelizmente, a uma reunião como esta vêm poucos Deputados,

vêm poucas pessoas. A maioria tem o que fazer, despista, disfarça. Nós, com essa

vanguarda que está atenta, que está levando o movimento adiante, temos de ficar

atentos a essas coisas, ficar de olhos vivos, porque nós somos uma espécie de

núcleo duro da liberdade que, na verdade, está garantindo a ampliação da

democracia neste País. Então, ficar atento é uma de nossas missões.

É isso. Obrigado. (Palmas.)

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emília Fernandes) - Muito obrigada.

Nós queremos registrar que esta reunião está sendo divulgada; está sendo

transmitida não só para o Brasil, mas para o mundo, porque a Internet extrapola as

fronteiras. São muito significativas a sua presença e os depoimentos aqui proferidos.

A palavra, neste momento, está facultada a todos os presentes,

independentemente do cargo, profissão ou atividade que exerçam. Se alguma

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pessoa deseja se manifestar antes das considerações finais dos nossos

palestrantes, esta Presidência lhe garante a palavra. (Pausa.)

Concedo a palavra à Sra. Rosinha.

A SRA. ROSINHA - Sou filha de ex-preso político. Saí do meu Estado com 6

anos de idade, porque o meu pai foi preso em 1964. Então, fui abrigada... Ficamos

clandestinos no Estado de Goiás. Por muitos anos, todo o mundo me perguntava:

“De onde você é?” Eu sou goiana, porque eu já não tenho sotaque de gaúcho nem

cor de gaúcho, porque gaúcho é sempre branco — e, como eu sou filha de negros,

sou negra.

Eu assino em baixo de tudo o que o camarada Cerezo falou, porque, toda vez

que nós temos uma reunião, os militares vêm para cá, para as nossas reuniões,

para os nossos seminários — os militares sempre estão aqui. E não vou dizer para

vocês que eu morro de amores por militares, porque, quando o meu pai foi preso, eu

tinha 4 anos; mas eles entraram na nossa casa e não deixaram nada inteiro — e a

gente segurando na barra da saia da minha mãe. Então, essas barbaridades que eu

presenciei fazem com que eu não me sinta bem vendo a farda verde-oliva ou

qualquer outra farda.

E por que eles podem estar aqui? Quando eles se reúnem lá no Rio de

Janeiro, no Clube do Militar — vai até o canalha do Brilhante Ustra —, por que eles

não nos chamam para também participarmos das reuniões no Clube dos Militares,

lá? Nós não podemos chegar nem à rua em que eles estão reunidos; isso hoje, em

plena democracia. Se é democracia, se eles podem estar aqui, eles estão aqui

como? como militares ou como espiões? Porque o que traz para mim até hoje é o

trauma, quando eu vejo um militar. Eu sei até o símbolo que eles usam aqui dentro

da Casa. Quando não estão fardados, eles usam uns ‘botonzinhos’. Eu sei muito

bem. Assim como eles sabem que eu uso Lenin na lapela da minha blusa, a foice e

o martelo na lapela da minha blusa, eu também sei o que eles usam agora. Mas por

que eles não se manifestam? Por que eles não dizem ‘olha, a gente não concorda

com o que aconteceu’? Eu não sou revanchista, não. Eu não quero pegar o Brilhante

Ustra e colocá-lo na cadeira do dragão, no pau-de-arara. Eu só queria que ele

respondesse e perdesse as 4 estrelinhas que ele tem aqui assim; que ele não fosse

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mais general; que ele ficasse sem o salário de general, como o meu pai ficou sem o

salário de ferroviário, porque era negro, pobre e comunista.

E foi no meu Governo que o meu pai foi anistiado. Hoje nós temos casa para

morar, graças ao meu Governo, porque a ditadura militar nos tirou tudo: um irmão,

com suicídio; e nenhum de nós conseguiu se formar. Eu não sou doutora em nada, e

queria muito ter estudado.

Mas não sou revanchista. Eu vejo um lado muito bom. Eu tive um tio capitão

do Exército que me tirava cada vez que eu era detida, porque eu fiz passeata

estudantil a vida inteira!

Eu vejo um lado muito bom na democracia, quando vejo um rapaz, um

menino — não no sentido pejorativo —, um menino de 34 anos à frente da

Comissão de Anistia. Eu me sinto muito confortável vendo que à frente da Comissão

de Anistia tem um rapaz que revolucionou a Comissão, porque ele faz caravanas

divulgando a nossa história no Brasil todo. Ele é um gigante, literalmente falando.

Falo do Dr. Paulo Abrão, por quem tenho uma admiração muito grande. Tenho um

filho da idade dele. Então, eu me sinto assim contemplada. Isso ameniza a dor que

eu tive por perder o meu pai cedo, sem ver o partido legalizado, por ter um irmão

morto por suicídio com medo de o Exército entrar lá em casa de novo. Eu me sinto

contemplada; eu me sinto segura de que a democracia vai avançar, porque ela tem

um jovem como o Dr. Paulo Abrão e Parlamentares como a Emília Fernandes, que é

uma mulher guerreira. Eu conheço a história dela, porque eu leio tudo sobre ela — o

gaúcho tem isso, é bairrista, né? Eu não tenho culpa se os gaúchos são bons

demais. Quando são bons, são bons demais! No entanto, há uns que foram até

torturadores. Mas há pessoas boas como o Ministro Tarso Genro. Meu pai ficou

preso junto com o pai dele. O Dr. Adelmo Genro saiu da cadeia e foi defender o meu

pai, um negro ferroviário e comunista. E o Dr. Adelmo era do PTB. Então, eu tenho

muitas coisas boas para relembrar.

Eu endosso tudo o que o Cerezo falou, porque, todas as vezes em que

estamos reunidos, os milicos entram. Por que eu não posso ir à reunião em que está

o Brilhante Ustra e olhar bem na cara dele?

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emília Fernandes) - Muito obrigada,

companheira e conterrânea Rosinha, pela sua luta, pela resistência. Tenho certeza

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de que no seu coração, como já disse, não tem lugar para revanchismo nem para

ódio. Trata-se de luta pela democracia, pela dignidade.

Esta é a Casa do povo. Temos de respeitar todos. Aqui há pessoas que

representam o povo brasileiro com seus mais diferentes pensamentos. Essas

Comissões têm prezado pelo espaço democrático. Que as pessoas venham,

assistam às reuniões e levem daqui anseios e declarações, como os que aqui foram

proferidos. Que, em momento algum, se pense em retrocesso neste País, porque o

Brasil vive um novo momento histórico não só dentro do País, mas fora também.

Nós estávamos encerrando, mas eis que chega a esta reunião o ilustre

Deputado Federal Paes de Lira, coronel da PM de São Paulo, que nos pede a

palavra, a qual lhe concedemos. Depois repassaremos a palavra aos 2 palestrantes,

para suas considerações finais.

O SR. DEPUTADO PAES DE LIRA - Excelentíssima Sra. Presidente,

agradeço-lhe a indulgência. Não quero subverter a ordem dos trabalhos, mas não

pude comparecer antes devido aos demais encargos.

Ilustríssima audiência, embora eu tenha vindo em hora tão tardia, me parece

de extrema importância esta audiência pelo seu tema e, principalmente, porque ela

nos conduz a uma reflexão em que sempre insisto: a reflexão a respeito da

reconciliação do Brasil. A Lei de Anistia veio para isto: para reconciliar o País. Veio

— vamos dizer aqui com todas as letras —, na verdade, num momento em que era

um gesto de vencedores, porque realmente não havia oposição política com poder

suficiente para impor uma lei de anistia naquela ocasião. Era um gesto de

vencedores que tiveram, no entanto, descortino e perceberam que a situação de

exceção não poderia mais continuar, já não tinha mais espaço. E é uma boa lei

porque promove o esquecimento, em termos jurídicos, dos atos de força praticados

por ambos os lados em um momento de guerra interna mesmo. A Constituição

Cidadã de 1988 determina, em seu art. 5º, que a lei considerará inafiançáveis e

imprescritíveis determinados crimes. Essa lei, de certa forma, reflete o espírito da Lei

de Anistia, ou melhor dizendo, esse dispositivo constitucional reflete o espírito da Lei

de Anistia, pois diz, com toda a clareza, que os crimes imprescritíveis e insuscetíveis

de anistia, de graça ou de indulto são estes dois: o de tortura, de que tanto se fala

por um lado, e o de terrorismo, por outro, que, na verdade, foi o mecanismo, a forma

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utilizada como elemento de combate pelas organizações que se dispuseram à luta

armada naquele período de exceção da história do Brasil. Muito bem. É uma

disposição sábia da Constituição.

Quando se levantam debates a respeito de invalidar a Lei de Anistia, tudo isso

é muito perigoso, porque, se se invalida a Lei de Anistia... Não se pode em absoluto,

Sra. Presidenta, ilustres membros da Mesa, senhores presentes, encarar essa

tentativa de revogação por um lado só, não. Se imaginássemos que o Direito Penal,

ou a tipificação, pudesse retroagir, embora não houvesse a tipificação desses crimes

naquela ocasião, fazendo virar no túmulo o Marquês de Beccaria, teríamos de

admitir que esse retorno se daria não somente àqueles que são acusados de tortura,

não somente àqueles que combateram por uma certa legalidade, mas também

àqueles que explodiram uma bomba no Aeroporto de Guararapes matando pessoas

inocentes, àqueles que explodiram uma bomba no Consulado dos Estados Unidos

em São Paulo arrancando a perna de um circunstante inocente, pessoa que paga

por isso até hoje sem ter nada a ver com a história; enfim, àqueles que praticaram

tantos outros atos, evidentemente de terrorismo, aos quais assisti ainda na tenra

juventude na Mooca, no restaurante Varela, como o frio assassinato de um

comerciante apenas suspeito de colaborar com as chamadas forças de repressão.

Minha palavra é pela reconciliação nacional; minha palavra é por curar as

feridas. Compreendo perfeitamente a posição das pessoas que expressam essa

posição contrária; e mais, que eram dignos de consideração aqueles que, por não

concordarem com determinada posição política, até pegaram em armas contra ela.

Respeito essas pessoas que tiveram essa opção tão extrema, mas sou pela

reconciliação.

Acredito, Sra. Presidenta, que esta Casa não deve aceitar teses revisionistas

em relação à Lei da Anistia. A Lei da Anistia foi uma boa lei, o dispositivo

constitucional posterior que abraça o conceito da Lei de Anistia foi correto,

pertinente, perfeito para o futuro do País, um futuro de reconciliação.

Vamos nos reconciliar! É isso que o nosso Brasil espera e aguarda para as

futuras gerações.

Muito obrigado, mais uma vez, pela indulgência e pela atenção de V.Exa.

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A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emilia Fernandes) - Obrigada, Deputado

Paes de Lira.

De imediato, encaminho os trabalhos para o encerramento, passando a

palavra ao Dr. Paulo Abrão, Presidente da Comissão de Anistia, do Ministério da

Justiça, e, logo em seguida, ao Sr. Antônio Modesto da Silveira, ex-Deputado

Federal.

O SR. PAULO ABRÃO PIRES JÚNIOR - Agradeço pelo convite para

participar deste debate. Penso mesmo que o debate é muito saudável e deve

ocorrer; o que não pode ocorrer é qualquer tentativa de calá-lo. Então, faz bem à

sociedade resgatar pontos de vista divergentes. Há pouco tempo, sequer podíamos

discutir este assunto, mas hoje o estamos discutindo abertamente, dentro da Casa

do povo brasileiro, na sociedade. Isso é muito bom.

Realmente, sentia a falta de alguém compondo nossa Mesa com visão

diferente da nossa, para expô-la. Por isso, achei bom que o Deputado tenha

chegado ao final para trazer essa visão, embora seja uma pena que isso só ocorreu

ao final, pois estávamos discutindo exatamente isso. Pelo menos, no meu ponto de

vista, como no do Deputado Modesto e do Prof. Fábio Comparato, é a liderança

jurídica que tem levado este debate adiante. E eu tenho o dever de cumprir a missão

institucional que me deu esta Casa e o Estado brasileiro de cuidar da preservação

da memória e da reparação aos perseguidos políticos.

Debatemos aqui, e, talvez, numa próxima oportunidade, possamos discutir

mais a respeito. Ninguém aqui propôs a revisão da lei; muito pelo contrário,

discutimos exatamente a importância da Lei de Anistia de 1979 para o País. Ela

permitiu a volta dos exilados, permitiu a soltura dos presos políticos, permitiu o

primeiro passo do distensionamento, com vistas à redemocratização,

posteriormente. Então, o grande valor da Lei de Anistia é que ela reconhece a

necessidade, o dever de perdão àqueles que exerceram o legítimo direito de

resistência.

Então, o que a Ordem dos Advogados do Brasil discute hoje no Supremo

Tribunal é a adequada interpretação da lei, não sua revisão. Logo, não se trata de

uma tese revisionista. Segundo os princípios de “reconciliação, sim, mas sem

esquecimento”, não é possível pedir que pessoas que foram torturadas e que todos

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os episódios, inclusive os episódios de resistência do povo brasileiro contra a tirania

ditatorial, não venham à tona, não possam ser contados, não possam ser objeto de

estudo pelos nossos historiadores, não possam ser tema de debates políticos na

Casa do povo, na sociedade civil. E, segundo o princípio de “reconciliação, sim, mas

sem esquecimento”, as feridas só podem ser fechadas no dia em que forem

efetivamente lavadas e curadas; não podemos impor fechamento de feridas, porque

elas não cicatrizam se não forem tratadas devidamente, adequadamente.

Não quero acreditar que neste auditório, neste momento, em plena

democracia, 30 anos depois, esteja ocorrendo no nosso Brasil uma situação de

supervisão do debate público, de anotação de posições. (Risos.) Não quero

acreditar, por exemplo, que hoje eu seja fichado por organismos nem oficiais nem

inoficiais. (Risos.) Realmente, não acredito que isso esteja acontecendo neste

momento. O que estou dizendo é que não acho que esteja acontecendo isso neste

momento. Talvez, estejam anotando fundamentações para o debate público. Quero

acreditar que seja isso mesmo, até porque, meus amigos, tenho dito em todas as

palestras que faço sobre o tema (e tenho debatido sempre diante da divergência de

outros juristas que pensam diferente) que represento o Estado brasileiro. A

Comissão de Anistia não implementa política de governo. Ou seja, não estamos

implementando uma política de governo; implementamos uma política de Estado. É

dever do Estado a reparação, é dever do Estado guardar a memória. Então, cumpro

uma função de Estado.

O que temos dito em todos os nossos debates, de forma muito franca, é que,

em nenhuma hipótese, colocamos em questionamento a importância, a relevância e

a honra da instituição Forças Armadas. Não estamos discutindo isso. Nosso debate,

inclusive, é sobre a responsabilização de agentes torturadores, de pessoas que

deturparam a própria filosofia do regime. (Palmas.) O regime não permitia a prática

da tortura, e essas pessoas deturparam os próprios princípios do regime. São esses

agentes que mancharam a imagem das Forças Armadas. Alguns tentam amparar-se

dizendo assim: “Vocês estão atacando as Forças Armadas”. Essas pessoas estão

querendo se proteger pelo grande valor que as Forças Armadas têm para a

democracia, para o Estado e para as instituições brasileiras, como que para encobrir

os atos individuais desonestos, antiéticos e ilícitos que cometeram.

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Não podemos correr, em nenhuma hipótese, o risco de dizer que este é um

debate com as Forças Armadas, até porque quero dizer aqui, e de forma muito

explícita, já que isso é transmitido, que quem tem levado a Comissão de Anistia ao

Araguaia para colher os depoimentos dos moradores daquela região, antes desse

atual processo de busca dos corpos para elucidação da verdade, é um avião da

FAB. Nós solicitamos e ele nos leva. É um avião da FAB que está levando o corpo

de Bergson Gurjão, que finalmente foi identificado na ossada que estava na

Secretaria de Direitos Humanos. Vamos devolver os restos mortais à família para

que sejam dignamente enterrados, segundo o histórico direito ao luto, o direito da

mãe de enterrar o corpo de um filho desaparecido pela ação e por responsabilidade

do Estado. Quem está hoje realizando a busca e a localização dos mortos e

desaparecidos no Araguaia, apesar de ter o entendimento jurídico de que a

competência legal disso deveria ser da Comissão de Mortos e Desaparecidos, e

quem tinha de estar à frente desse processo, seria a Secretaria de Direitos

Humanos, não as Forças Armadas, em cumprimento de uma decisão judicial.

Então, não vamos confundir a instituição com as pessoas que se desviaram

dos princípios da instituição ou que a usaram para impor a força um modelo e uma

ideologia de poder.

Para nós, afirmo de modo muito claro, nesse debate em relação a

torturadores, que não foram só militares, foram também civis, pessoas do mais baixo

nível de integridade que têm capacidade de instrumentalizar o poder para ferir a

dignidade de uma outra pessoa. Vista assim, a tortura não pode ser, em nenhuma

hipótese, anistiada, não pode ser tida, em nenhuma hipótese, como um crime

prescritível. Para nós, esta é uma questão de princípio, não uma questão ideológica.

Se o Brasil tivesse vivido uma ditadura de esquerda e se essa ditadura de

esquerda tivesse torturado nos porões, estuprado, promovido atrocidades contra a

humanidade, nós estaríamos aqui hoje defendendo a responsabilização dos agentes

torturadores dessa ditadura de esquerda. Porque para nós essa não é uma questão

ideológica; é uma questão de princípio no Estado de Direito, na democracia, com os

valores da liberdade.

Então, que isso fique muito bem assentado, para que não haja um falso

tensionamento ideológico na sociedade brasileira. Isso não seria produtivo em nosso

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debate. Estamos aqui assentando uma questão de princípio para o futuro, para a

não repetição, para que não ocorram novos golpes militares, para que não ocorram

golpes de grupos de esquerda extrema, que também têm visão autoritária do

mundo. É isso que estamos sinalizando para frente.

Hoje, pelo Direito brasileiro, torturadores velhinhos — já devem estar com

idade avançada — não serão presos. O Direito brasileiro já não permite a prisão de

quem tem determinada idade. A questão é sobre a simbologia da condenação; é a

simbologia de que o Estado Democrático de Direito, hoje, efetivamente, diz, em alto

e bom tom, que, segundo a jurisprudência brasileira, não importa qual seja o

momento de ruptura, crimes contra a humanidade serão apurados. É uma medida

de inibição a novos rompantes autoritários no futuro, é um compromisso com os

valores da democracia.

Para mim, sinceramente, a decisão que o Supremo Tribunal Federal tomará

será histórica, talvez uma das mais importantes decisões a que já chegou o Tribunal

constitucional brasileiro pós-redemocratização, porque envolve os princípios da

liberdade, da democracia e de valorização dos direitos humanos.

Muito obrigado. (Palmas.)

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emília Fernandes) - Muito obrigada, Dr.

Paulo Abrão. Agrademos a V.Sa. a participação, a atenção ao nosso convite. Tenho

certeza de que este debate será retomado no dia a dia do Congresso Nacional, bem

como pela sociedade brasileira, exatamente para verificarmos quais são as ideias,

quais são os valores colocados sobre o tema.

Sempre reafirmo, sem nenhum tipo de sentimento negativo, que temos de

projetar nossa energia, nosso sofrimento e nossos pensamentos para que os direitos

avancem.

Muito obrigada, mais uma vez, pela sua qualificada participação neste painel.

Concedo a palavra ao Sr. Antônio Modesto da Silveira, ex-Deputado Federal,

defensor e encaminhador da Lei de Anistia, para suas considerações finais.

O SR. ANTÔNIO MODESTO DA SILVEIRA - Sra. Presidenta, agradeço a

V.Exa. a gentileza e a atenção.

Sinto impulso de comentar sobre o que disse cada um dos interventores. O

Jarbas fez considerações que merecem um verdadeiro estudo. Ele, de alguma forma

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— só farei um breve comentário —, chama a atenção para uma coisa que apelida de

ternuma, que significa ‘terrorismo, nunca mais!’.

Nessas reuniões abertas e democráticas, e não só no Congresso, mas em

geral, como dizem as vítimas do período, às vezes são reconhecidos aqueles que a

Deputada Bete Mendes reconheceu lá no Uruguai. Até pelo posicionamento, alguns

fotógrafos devem ter registrado esses fatos, quase sempre na posição de ver e

nunca ser visto. A maioria dessas reuniões democráticas são registradas e gravadas

por determinados agentes, seja do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, da Polícia

Militar ou da Polícia Civil. E, muitas vezes, as coisas se repetem lá no ternuma,

como diz o Jarbas.

Aqui, não sei, porque não conheço as pessoas. Mas há locais nos quais

alguns amigos dizem assim: “Olha lá o torturador fulano! Eles bobearam e

mandaram um cara conhecido para nos espionar.”

Isso é muito comum por aí. Espero que não haja repetições de outras Betes

Mendes e de Brilhantes Ustras, como no Uruguai. Mas, de qualquer maneira, o

enfoque dele foi brilhante, sem ser ‘Ustra’.

Logo em seguida, o Cerezo fez uma colocação política da maior qualidade.

Eu gostaria até de vê-lo e ouvi-lo mais. Ele é muito ponderado, objetivo e nos ajudou

muito nessa análise toda, sobretudo quando nos chama a atenção à realidade

histórica, e até para o caso de Honduras, para que esse país não repita diante de

seus vizinhos, através do ‘grande império’, o triste papel do Brasil como primeira

pedra de um longo dominó de ditaduras, torturas e assassinatos! (Muito bem!

Palmas.)

Acho isso muito relevante, até porque o perdão com reconciliação, sim, para

crimes políticos. Muitos dos que estavam no poder só praticaram delitos políticos e

devem ser, por isso mesmo, também reconciliados.

Agora, eu pergunto a uma das nossas consciências. O Prof. Comparato disse

que sua cliente foi usada, sofreu toda sorte de humilhação e estupro, e isso não está

em nenhuma legislação, nem na do Hitler! Quando, em Nurembergue, jogavam tudo

para cima de Hitler, tentando escapar, o mundo não perdoou! Por quê? Porque

aquilo era uma decisão pessoal. Por isso até o Brasil, reconhecendo a

imprescritibilidade de determinados atos contra a humanidade, reconheceu e

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devolveu. Outras pessoas foram sequestradas por agentes de países diferentes

para responderem por um delito imprescritível cometido em países que adotaram,

como método de governo e massacre, o nazi-fascismo. Nós também o praticamos,

aqui e em outros países vizinhos, como um triste dominó, para o qual o Brasil foi

utilizado.

Quando ele colocou a questão de Honduras, é para que Honduras não seja

um minibrasil de amanhã. E quando o mundo foi buscar os torturadores de crimes

inafiançáveis e não anistiáveis, foi como modelo e exemplo daquilo que o professor

reclamava, isto é, uma lição de ética e moral para a história futura.

É preciso que todos saibam que crime de estupro, tudo que se disse aqui...

Mas nem tudo, como disse um dos interpeladores, foi terrorismo. O que é

terrorismo? Quem praticou o terrorismo? Esse terrorismo de Estado que provocou,

inicialmente, reações, às vezes, excessivas em alguns lugares? Mas o terrorismo foi

implantado como instituição de Estado, e alguns dos executores estão sendo

mencionados aqui. E quem praticou o terrorismo? Até um Ministro, insuspeito, do

STM, disse que constatou, num curto período de pouco mais de 1 ano, 38 atos de

terrorismo, até oficiosos. E eu me lembro, então eu era Deputado: quantas bancas

de jornais foram explodidas pelo simples fato de exibirem um jornal que não era do

agrado da ditadura! E as bombas que explodiram em casas de pessoas não por uma

razão política, mas por ato de terrorismo puro! Esses atos de terrorismo foram

praticados pelos terroristas oficiosos e, às vezes, até oficiais, como confessam por

aí, aqui e ali — sei lá!

Olha, tenho aqui um livro que já foi mencionado: Sem Vestígios, de autoria de

uma moça, uma autora absolutamente insuspeita que até já esteve aqui depondo.

Ela disse: “Eu sou filha de um militar que era instrutor dos militares que participaram

desse período — não digo negro em respeito à cor — sangrento. Ela diz — está aqui

— coisas que não é possível admitir, como sequestro. É o sequestro crime político?

Nunca! Sequestro é crime comum! Eu fui sequestrado pela ousadia de ser

advogado, como o foram Sobral Pinto, Heleno Fragoso, Evaristo de Moraes, George

Tavares, Vivaldo Vasconcellos e tantos outros do Sul ao Norte do País. Isso é

terrorismo! Isso não é crime comum! E uma série de crimes comuns aterrorizam o

País.

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O Fábio disse o que eu também passei. Quando ele diz que aquela moça que

sofreu tudo isso e mais, que ele não quis dizer... Eu tive alguns assim também,

como, por exemplo, a Dilma Alves, viúva de Mário Alves, que morreu sangrando lá

dentro do DOI-CODI para onde me levaram também. Ele morreu sangrando até com

raspadura de animal — como é que se chama aquele negócio que raspa cavalo? Ele

morreu sangrando, como inúmeras vítimas, pelo fato de ter sido um militante

comunista, um jornalista de alto nível, mas militante comunista.

Ela também disse: “Eu não quero receber uma indenização sangrando na

minha mão. Eu não quero entrar sequer com um pedido de anistia.” Se todas as

vítimas diretas e indiretas entrassem com isso, o Dr. Paulo Abrão estaria soterrado

sob uma montanha de pedidos. No entanto, só há pouco mais de 60 mil. E eu ouso

dizer: as vítimas não foram 60 mil. E eu disse isso a um general em debate. Ele

falava: “Não houve 300”. Eu disse a ele: “O senhor tem razão; não eram 300, não;

eram 3 mi. Nem eram 30 mil, sequer 300 mil. Se quiser, fazemos uma aritmética

simples, que eu sei fazer aqui agora, para verificar que o número foi muito superior a

meio milhão de pessoas vítimas diretas e indiretas”. A maioria já morreu, é claro.

Outros não querem, como a Dilma ou essa moça de São Paulo; não querem sujar as

mãos com a lembrança de um sangue passado.

A Rosa falou dos espiões, e nós temos constatado a presença deles em

quase todas as reuniões. Se eles abrissem as deles, iríamos também — por que

não? Acho até que é conveniente convidar alguns a essas sessões para que eles

ouçam e, depois de ouvirem, deem suas opiniões ou contestem as nossas

informações. Feito isso, a gente vê quem realmente merece ou não merece existir,

porque, como se diz lá, pretendendo-se excluir os chamados subversivos, no fundo

acabaram excluindo a si mesmos. Eles praticaram atos terroristas, eles assaltaram...

Uma cliente de São Paulo, uma engenheira, teve a casa assaltada por oficiais

enriquecidos com alguns policiais. Como um deles estava montando casa, esse

resolveu levar tudo no caminhão em que vinham. Chegaram até a desmontar a

instalação elétrica, porque ela seria necessária na casa dos

sequestradores/torturadores. Isso é crime político?! São ladrões comuns! São

violadores da lei. Essa lei não permite sequestro. Houve represália a sequestros...

Sequestros... Houve alguns, é verdade. Os embaixadores, sobretudo aqueles que

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colaboraram com a ditadura, alguns deles foram sequestrados, sim; mas não

sofreram um tapa, um arranhão, e saíram de lá defendendo os torturadores como

homens que respeitam os direitos humanos. E disseram que os trataram muito bem

e que alegaram fatos que eles reconheciam como verdadeiros. Eu cheguei a ouvir

sobre o caso do Bucher, se não me engano, da Suíça, a seguinte opinião: “Esse

cara é um homossexual que merece morrer”. Eu ouvi isso da parte de algumas

pessoas em auditoria dentro da Justiça, porque o homem era tênue, e na sua

tenuidade reconheceu e publicou depois — por isso foi mandado embora — que ele

foi muito bem tratado por pessoas que alegaram questões verdadeiras do

nazi-fascismo brasileiro.

Sequestro. Quem cometeu sequestro? Só esses poucos, pouquíssimos, mas

que respeitaram a pessoa humana, e como forma de reação para salvar aqueles

que estavam marcados para morrer — e que morreriam caso não tivesse havido tal

assalto preventivo para salvar vidas. Respeitaram a pessoa humana, respeitaram-na

em tudo. Não houve um que tenha alegado ter sido maltratado.

E o meu sequestro? E o sequestro dos advogados, quase todos do Rio de

Janeiro? E o sequestro do Sobral Pinto, homem de quase 80 anos? E os de Heleno

Fragoso, Vivaldo Vasconcellos, George Tavares, Evaristo de Moraes e tantos

outros? foram sequestros legais? Prisão tem forma? Se alguém apresenta um

mandado de prisão assinado por uma autoridade competente, por um juiz, tudo bem;

você tem que ir. Mas, se ele vem no fim de semana, como o meu, que veio de

madrugada à minha casa para me levar à força pela minha ousadia de defender

político... Porque isso nunca foi crime político em lugar nenhum do mundo, nem na

Alemanha de Hitler. Mas aqui foi.

Atentado pessoal. Não havia nem atentado pessoal. Havia eliminação liminar

de pessoas que eram consideradas opositoras ao poder.

Vai seguindo, seguindo, e há vontade de falar muito mais, mas tenho de

finalizar. Não posso abusar.

Paulo Abrão fez uma magnífica apresentação dessa realidade político-jurídica

do Brasil tanto quanto o fez o professor que acabou de sair.

Agora, todos queremos a reconciliação, sim. São muitos, talvez a maioria.

Aliás, é bom lembrar que a maioria não é de militares ou policiais torturadores. Ao

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contrário, a maioria é de militares e policiais torturados. Quero repetir aqui, caso

alguém não tenha ouvido, que nós temos acesso a listas de poucas centenas de

torturadores assassinos sistemáticos, às vezes estimulados ou apoiados aqui e ali.

As vítimas, inclusive militares, se contam às centenas. Se as Forças Armadas e o

Governo brasileiro optarem por essa minoria torturadora, ainda que alegando

reconciliação, e ficarem do lado dessa minoria, contra a grande maioria de oficiais

do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, da PM etc., então estarão escolhendo o

lado errado da história, o lado errado da educação para o futuro. Se ficarem assim,

esses mesmos “brilhantes” sequestradores e torturadores seguramente tentarão de

novo. Porque, às vezes, nos mandam mensagens com ameaças — discretas

algumas, ousadas outras — para o futuro: comportem-se bem e reconheçam que

sou tão bom quanto todo o mundo, ou então o País pode sofrer.

Que tentem e até consigam, mas não é possível que democratas, pessoas de

bem, que têm sensibilidade humana permitam de qualquer modo que se faça o

ensinamento do golpe, da violação aos direitos humanos, da violação à vida e todo o

elenco do art. 5º da Constituição, ao qual todos estamos sujeitos: respeito à vida, à

segurança, à liberdade, à igualdade, e tudo mais, até à propriedade, num nível em

que ela não violente a igualdade e os direitos humanos com dignidade.

Se pensarmos assim, sei que haverá muito poucos a serem condenados

dentre aqueles que nos torturaram e mataram, mas haverá muitos mais daqueles

que, dignos que eram, denunciaram e até renunciaram a certos cargos por não

concordarem com tudo isso que sabemos e dissemos aqui.

Por outro lado, mesmo do ponto de vista técnico, o Paulo Abrão e o Prof.

Konder Comparato mostraram que aqueles legisladores da Lei de Anistia, a qual

estamos discutindo — e até gostei de constatar isso no Congresso —, nem sabem o

que é crime conexo. E tentaram conectar alhos com bugalhos, tentando, na verdade,

serem eles os beneficiados, botando uma questão técnico-jurídica que eles não

conheciam, não sabiam, não entendiam, nem sequer do ponto de vista doutrinário,

nem de interpretação jurisprudencial, nem nada!

Então, acho assim: posso admitir que aquele meu sequestrador tinha o direito

de me sequestrar de madrugada da minha casa. Aquele não, porque aquele era um

grupo grande. E daí se desdobram muitas outras informações.

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Esse é um problema que temos para nós agora, para os nossos filhos, netos

e bisnetos dos nossos netos. É uma questão difícil. E isso não dá para reconciliar ao

contrário, na medida em que você perdoa o assassino, dá a ele uma anistia prévia,

geral e irrestrita pelo passado, presente e futuro, como foi essa lei que deu para o

futuro. E o que aconteceu? Eles ficaram anistiados pelo Rio-Centro, pelos 38 — só

em Brasília! — crimes de terrorismo oficioso aqui em Brasília; se falarmos no Brasil

todo serão centenas ou milhares.

Essa é uma questão de vida ou morte.

Nós, nem tanto. Eu, por exemplo, não tenho problema. Sou um octogenário,

não tenho problema. Se eu morrer amanhã terei morrido com uma longevidade

maior que a do povo brasileiro, que tem 70 anos como média de longevidade, que já

foi de 30 anos em outros tempos. Hoje ainda é de 30 anos na África pobre, enquanto

é de 80 para 90 anos nos países ricos. Mas esse é outro debate, é outra discussão

que estimulamos.

Mas — perdão pelo tempo excessivo — temos que repensar essa questão, o

que vai ser bom para a história futura deste País e até para as gerações atuais.

Todo governo não gosta de problemas, prefere reconciliar. Mas tem que haver a

inteligência desta Comissão, que procura não misturar alhos com bugalhos, para

não perdoar aqueles que quase sistematicamente praticaram crimes comuns, nunca

políticos. Quero que sejam anistiados aqueles, como eu vi alguns militares e policiais

de quem recebia às vezes informações do DOI-CODI, da Polícia Federal, da Polícia

Militar, da Polícia Civil. Eram informações dizendo: “Olha, aqui está um cara, fulano

de tal, que está sendo massacrado; se o senhor não correr ele vai morrer”. Isso

significa o quê? Que de dentro do DOI-CODI, de dentro da Polícia Federal e das

polícias militares havia gente de bem, que talvez tenha feito alguma “prisãozinha”

ilegal por ordem escrita... E eu dizia: ordem escrita de autoridade competente,

porque, se ela não for evidentemente ilegal, você pode fazer; agora, se ela for ilegal,

descumpra a ordem do general, descumpra a ordem do Presidente da República,

ainda que por escrito, se ela for evidentemente ilegal.

Mas a gente quase não conhece, senão aos dedos, aqueles que se

recusaram a praticar atos ilegais, sobretudo esses atos hediondos que as ditaduras

gostam de praticar.

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Obrigado, e desculpem-me. (Palmas.)

A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emília Fernandes) - Muito obrigada, Dr.

Modesto da Silveira.

Queremos, em nome dos integrantes da Comissão de Direitos Humanos e

Minorias e da nossa Comissão de Participação Legislativa da Câmara dos

Deputados, agradecer as pessoas que nos honraram compondo esta Mesa de

palestras e também a todos que aqui participaram e nos assistiram.

Cada vez mais temos a consciência que este tema é desafiador, é uma pauta

não apenas do Brasil, mas mundial, um debate que é do presente. Portanto todos

nós, homens e mulheres, temos a responsabilidade de enfrentá-lo e fazer com que,

cada vez mais, a verdade, a liberdade e a democracia estejam sempre presentes na

pauta deste nosso amado Brasil.

Está encerrada a reunião. Muito obrigada! (Palmas.)