departamento de taquigrafia, revisÃo e redaÇÃo …...diferenciadas no governo, nos tribunais e na...
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CÂMARA DOS DEPUTADOS
DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO
NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES
TEXTO COM REDAÇÃO FINAL
CONJUNTA - DIREITOS HUMANOS / LEGISLAÇÃO PARTICIPAT IVAEVENTO: Audiência Pública N°: 1599/09 DATA: 24/09/200 9INÍCIO: 09h47min TÉRMINO: 13h04min DURAÇÃO: 03h16minTEMPO DE GRAVAÇÃO: 03h16min PÁGINAS: 62 QUARTOS: 40
DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO
ANTÔNIO MODESTO DA SILVEIRA – Advogado, ex-Deputado Federal e encaminhador da Leide Anistia.PAULO ABRÃO PIRES JÚNIOR – Presidente da Comissão d e Anistia do Ministério da Justiça.FÁBIO KONDER COMPARATO – Presidente da Comissão Nac ional de Defesa da República eda Democracia da Ordem dos Advogados do Brasil.JARBAS SILVA MARQUES – Jornalista.
SUMÁRIO: Debate sobre o princípio da imprescritibil idade dos crimes de tortura e as ações deresponsabilização dos agentes do Estado que pratica ram tais crimes na ditadura civil-militarque vigorou entre 1964 e 1985.
OBSERVAÇÕES
Audiência pública conjunta com a Comissão de Legisl ação Participativa.Houve exibição de vídeo.Há falha na gravação.
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O SR. PRESIDENTE (Deputado Pedro Wilson) - Declaro abertos os trabalhos
da presente audiência pública conjunta com a Comissão de Legislação Participativa,
que tem como finalidade debater o princípio da imprescritibilidade dos crimes de
tortura e as ações de responsabilização dos agentes do Estado que praticaram tais
crimes na ditadura civil-militar que vigorou entre 1964 e 1985.
A iniciativa de realização desta audiência partiu dos Deputados Pedro Wilson,
Vice-Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, e Iran Barbosa,
membro titular da Comissão de Legislação Participativa, a partir da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, de autoria da Ordem dos
Advogados do Brasil – OAB, que tramita no Supremo Tribunal Federal.
O questionamento da OAB incide sobre a validade do art. 1º da Lei da Anistia,
que considera como conexos e igualmente perdoados os crimes de qualquer
natureza cometidos por motivação política no período de 2 de setembro de 1961 a
15 de agosto de 1979.
A entidade — a OAB — ingressou com ação junto ao STF em outubro de
2008. Para o Presidente da Ordem, Dr. Cezar Britto, essa questão precisa ser
debatida pela sociedade brasileira. “O Brasil precisa livrar-se do hábito de varrer
para baixo do tapete da história as suas abjeções. (...) Precisa entender que anistia
não é amnésia e que um povo que não conhece o seu passado está condenado a
repeti-lo”, declarou Britto à Agência Brasil em resposta a declarações do Ministro
Nelson Jobim, para quem a punição de militares que participaram de torturas no
período da ditadura militar seria revanchismo.
Lembramos que todos os acordos, tratados e declarações internacionais que
abordam o tema consideram a tortura um crime contra a humanidade e, por isso,
imprescritível.
Trata-se de um dos crimes mais hediondos existentes, e esta audiência deve
aprofundar a discussão sobre sua imprescritibilidade. Há várias posições
diferenciadas no Governo, nos tribunais e na sociedade. O nosso sentimento, acima
de tudo, não é de revanchismo, mas de justiça, que precisa prevalecer.
Já estão presentes o Deputado Iran Barbosa; o Dr. Antônio Modesto da
Silveira, ex-Deputado Federal, encaminhador da Lei da Anistia, e o Dr. Paulo Abrão
Pires Junior, Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Já está a
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caminho o Dr. Fábio Konder Comparato, Presidente da Comissão Nacional de
Defesa da República e da Democracia do Conselho Federal da OAB.
Vamos exibir um pequeno filme, com duração de 3 a 5 minutos, a título de
ilustração.
(Exibição de vídeo.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Pedro Wilson) - Está conosco também o
Deputado Roberto Britto, Presidente da Comissão de Legislação Participativa.
Convido para tomar assento à Mesa o Dr. Antônio Modesto da Silveira, ex-
Deputado Federal, um dos mais lídimos representantes da luta pela anistia e pela
democracia no Brasil, que honra este Parlamento, a quem faço esta homenagem por
direito e por dever. (Palmas.)
Convido também o Dr. Paulo Abrão Pires Junior, Presidente da Comissão de
Anistia do Ministério da Justiça, que tem feito um trabalho extraordinário não só em
Brasília, mas também em todo o Brasil, resgatando os direitos de anistiados, muitos
ainda não reintegrados. É uma honra para nós estar aqui com o Dr. Paulo Abrão e a
equipe da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Minha saudação ao Ministro
Tarso Genro.
Estamos aguardando o Dr. Fábio Konder Comparato.
Registro a presença do Deputado Dr. Talmir, representante de São Paulo, e
do Sr. Jarbas Marques, representante do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito
Federal.
Informo que o vídeo exibido é do projeto Memórias Reveladas e está
disponível na página desta Comissão, no endereço “www.youtube.com/cdhcamara”.
Antes de passar a palavra ao Dr. Antônio Modesto da Silveira, devo
esclarecer que a iniciativa de realização da presente audiência não foi somente
minha, mas muito mais do Deputado Iran Barbosa, professor, militante na área de
direitos humanos, uma das figuras mais representativas na luta pelos direitos
humanos e em favor da educação e cultura brasileiras.
Por isso peço licença ao Deputado Roberto Britto para convidar o Deputado
Iran Barbosa a coparticipar da presidência no início da presente audiência. Mais
tarde retomarei a presidência dos trabalhos, tendo em vista que S.Exa. tem de viajar
para seu Estado. Agradeço.
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Passo a presidência ao Deputado Iran Barbosa, que fará sua saudação inicial.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Iran Barbosa) - Inicialmente saúdo todos que
aqui se encontram.
Agradeço a aquiescência ao convite aos que vão estar conosco aqui hoje
debatendo um tema fundamental para nós.
Na condição de Parlamentares, de representantes do povo deste País, não
podemos prescindir de um debate tão profundo e complexo como este. Temos de
nos apropriar do seu conteúdo para que possamos efetivamente nos posicionar e
dar desdobramento ao tema nesta Casa. É imbuído desse espírito que eu, o
Deputado Pedro Wilson e os colegas que aprovaram o requerimento estamos aqui
hoje.
Sr. Presidente, antecipadamente peço desculpas porque, em razão de
compromissos no Estado, preciso pegar um voo — e os voos para Sergipe não
facilitam nosso trabalho. Vou ficar aqui até o limite possível em relação ao horário do
voo, mas estarei à disposição enquanto o tempo permitir.
Passo a presidência dos trabalhos ao Deputado Roberto Britto, Presidente da
Comissão de Legislação Participativa, para que possamos desde já iniciar nosso
debate.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Roberto Britto) - Bom dia a todos.
Nossos agradecimentos ao Deputado Iran Barbosa, que em bom momento
solicitou a realização da presente audiência pública da Comissão de Legislação
Participativa em conjunto com a Comissão de Direitos Humanos.
Sabemos muito bem que o nosso País hoje, democraticamente, senão
perfeito, é quase perfeito, temos a oportunidade de ter toda a estrutura de governo,
toda a estrutura legislativa e executiva aberta à sociedade. E não podia ser
diferente. Hoje, quando estamos primando cada vez mais pelos direitos humanos e
buscando cada vez mais o direito da sociedade, esta Casa abre-se plenamente para
dar a oportunidade de, nesta Comissão de Legislação Participativa, elo entre a
sociedade e o Parlamento, porta de entrada da sociedade para o Parlamento, a
sociedade organizada encaminhar suas propostas para serem transformadas em
projetos de lei e, a partir daí, seguir o trâmite normal, natural.
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Então, mais uma vez parabenizo o Deputado Iram Barbosa e agradeço ao
Deputado Pedro Wilson. Como disse o Iram, todos nós aqui, na quinta-feira, temos
limites em razão de problemas com horários de voo para os Estados, mas
estaremos todos juntos para debater tema tão importante e tão atual a respeito dos
direitos humanos.
Gostaria, nesta oportunidade, dando início às exposições, de passar a palavra
ao nosso convidado, Sr. Antônio Modesto da Silveira, ex-Deputado Federal e
encaminhador do projeto de Lei de Anistia.
O SR. ANTÔNIO MODESTO DA SILVEIRA - Muito obrigado, Sr. Presidente.
Quero cumprimentar os companheiros de Mesa, não só o Iram, o Pedro Wilson, o
Luiz Couto, e agora o nosso companheiro Paulo Abraão, enquanto aguardamos a
chegada do jurista Fábio Comparato, de quem eu estava lendo aqui essa arguição
apresentada ao Supremo.
São discussões de natureza jurídica, ou jurídico-política, creio que muito mais
política do que jurídica, até porque, nessas questões jurídicas, quando entra uma
discussão de natureza política, quase sempre prevalece a política. Se é assim,
quando eu estava começando a ler a arguição do Fábio, chegava aqui o nosso
companheiro Jarbas Silva Marques, que está ali bem à minha frente.
Tenho observado que em cada lugar do Brasil, de Belém a Porto Alegre,
talvez do Oiapoque ao Chuí, onde há uma comunidade de 10, 15, 20 pessoas, pelo
menos uma foi ou é meu ex-cliente, um perseguido político. E ele foi um dos meus
defendidos que mais tempo ficou preso — quase 10 anos.
Portanto, histórias não lhe faltam para contar, e a mim também não, até
porque houve um grande jurista, que infelizmente já falecido, Heleno Fragoso, que
em um de seus livros dizia que, pelos cálculos que andou fazendo pelo Brasil, o
advogado que mais defendeu perseguidos políticos durante a ditadura foi um
advogado de nome Antônio Modesto da Silveira.
Portanto, tanto quanto Jarbas, talvez eu conheça as histórias, os fatos que
nos levam a pensar essa legislação que veio durante a ditadura como forma não só
de autoanistia, mas de anistia preventiva pelos crimes passados e futuros.
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A discussão proposta pelo Fábio tem a ver com o art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.683,
quando então eu era um misto de advogado de perseguidos políticos e Deputado
Federal mais votado do centro para a esquerda no Rio de Janeiro.
Nessa condição, tive muitas experiências, mas destaco duas, pela sua
importância: ter sido advogado de perseguidos políticos — segundo os
companheiros, o que mais defendeu gente do Oiapoque ao Chuí — e Deputado
Federal no momento em que se discutia nesta Casa a anistia política. Por quê?
Porque o povo e os estudantes reclamavam nas ruas, por toda parte, de tal modo
que a ditadura entrou em declínio e, tendo entrado em declínio, entendeu que a
única forma de salvar... Cumprimento meu querido companheiro Chico Alencar, do
Rio de Janeiro, batalhador e vítima, testemunha e vítima do período, embora seja
muito jovem. Portanto, se o que eu disser aqui merecer alguma correção, peço ao
Chico, ao Jarbas e a qualquer dos presentes que me corrijam, me ajudem a
restabelecer a verdade.
Àquela altura, por grandes tensões, o nossos partido, que seria o partido do
“sim”, virou um partido de oposição e disse “não” — havia o partido do “sim”, o MDB,
e o partido do “sim, senhor”, a Arena. E, ao dizer “não”, o MDB começou a lutar
contra a ditadura, sobretudo quando ficou claro, a partir da eleição de 1974, e depois
na de 1978, que o povo brasileiro não queria a ditadura, na medida em que tivemos
quase 5 milhões de votos a mais. Mesmo assim a nossa bancada era sempre
minoritária, devido a vários artifícios, e vejam bem quais eram os artifícios legais,
não só pelo bionismo, pelos biônicos, pela desproporcionalidade marcante do
processo eleitoral, em que alguns Estados que eram da ditadura podiam eleger um
Senador ou um Deputado com votação mínima, enquanto que o partido do “não”, o
MDB, exigia-se, pela desproporcionalidade estadual, uma votação extremamente
maior. Nós éramos maioria, mas éramos minimizados aqui pelos artifícios da
ditadura. Já havia o grito das ruas, e até o Papa chegou a fazer pronunciamento a
respeito de um grande país católico do mundo “que tortura e mata, é preciso parar
com isso”. O Papa nunca dá um recado como esse, mas deu! Além disso, por
exemplo, eu recebia de retorno informações que falavam sobre fatos concretos,
alguns dos quais eu quero mencionar; enviava, por exemplo, a pedido de um jornal
universitário dos Estados Unidos, ou da Europa, ele retornava sem o corte de uma
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vírgula, o que nos ajudava. Os próprios embaixadores brasileiros não tinham mais
coragem de ir às festas comuns da diplomacia no exterior porque lá eram cobrados,
como foram cobrados muito intensamente quando eu fui advogado do chamado
Grupo Angolano, ou seja, aqueles jovens de Angola, de Moçambique e de outras
partes que estavam no Brasil lutando pela independência dos seus países, tanto
quanto nossos jovens, no começo, quando o Brasil pretendia sua independência, de
Tiradentes para a frente, lutavam lá fora, sobretudo na Europa, pela independência
do Brasil. Foi o caso então desses jovens angolanos, portugueses, e alguns
brasileiros entre eles. Presos, fui advogado deles ao mesmo tempo em que Sobral
era advogado dos chineses que estavam aqui tentando estabelecer uma relação
comercial que redundaria numa relação diplomática mais tarde, como aconteceu.
Pois bem, de 1º de abril de 64 até 85 — os mais jovens devem atentar para
isso — havia um clima de terrorismo, um clima, mais que de ditadura, de tirania. E aí
eu me lembro até — eu lembrava outro dia com o Deputado Souto — do que dizia
Tomás de Aquino: quando a tirania, a ditadura for prolongada e grave, o povo tem
todo o direito de usar os seus meios para se livrar dela. E, vejam bem, eu me lembro
de onde, do dia e da hora em que se estabeleceu a ditadura. A 1º de abril de 1964
— posso até descrever para que alguém conteste —, eu estava na Cinelândia, no
Rio de Janeiro, onde se esperava por um comício que não houve, não só porque
houve uma greve dos meios de transporte, mas sobretudo porque o Golpe já estava
na rua pelo sequestro antecipado de algumas lideranças. Então, quando chegaram
os tanques na Rio Branco, em frente ao Clube Militar, o povo aplaudiu os tanques.
Quando esses mesmos tanques voltaram seus canhões contra o povo, o povo os
vaiou. Quando o povo os vaiou, vieram os infantes de baioneta calada, limpando a
praça. Dois indivíduos sacaram suas armas e atiraram contra o povo, que gritava e
vaiava. Um homem caiu perto de mim; os 2, logo depois disso, correram para dentro
das portas do Clube Militar, e as grandes portas de aço medievais se fecharam
abrigando-os.
Eu não quero dizer com isso que os militares sejam culpados de tudo. Ao
contrário, eu quero dizer que as Forças Armadas são instituições permanentes das
quais, enquanto houver a estupidez da guerra no mundo, não podemos abrir mão,
enquanto houver a estupidez da guerra. Sou pacifista, claro, mas, enquanto houver,
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enquanto precisarmos de lutar por um pré-sal sobre o qual os navios de guerra da
grande potência mundial passeiam como, quem diz, ao mesmo tempo em que
mandam para cá os seus negociadores de leilões injustos e manipulados. Eles
passeiam sobre o pré-sal e com os negociadores aqui, como quem diz, por bem ou
por mal, na lei ou na marra. O pré-sal é nosso, ou pelo menos parcialmente é nosso.
Estou invocando essas coisas todas que dependem de interpretação para
dizer: não quero de forma nenhuma dizer que as Forças Armadas foram
responsáveis, até porque houve a participação de muitos civis, a interferência de
embaixadores internacionais, sobretudo da grande potência mundial. Pois bem.
Quero até afirmar, ouso afirmar que o número de responsáveis pelo terror no Brasil,
terrorismo de Estado, talvez se contem em poucas centenas, de norte a sul, mas o
número de militares e policiais vítimas é infinitamente maior. Eu ousaria dizer — há
quem calcule em 5 mil, listagens estão sendo feitas — que é possível que chegue a
10 mil o número de vítimas só de militares que tentaram manter a Constituição,
manter o processo democrático e respeito às autoridades eleitas, à época do
Governo João Goulart.
Sofisma se cria para qualquer coisa. Toda ditadura tem os seus sofistas, tem
os seus filósofos de plantão. Vivemos todo esse terror de tal modo que quem
ousasse dizer essas verdades que digo agora poderia sair lá fora e não dizer
verdade nem mentira mais nenhuma, porque poderia desaparecer, como aconteceu
com muitos.
Por tentar dizer as verdades nos próprios tribunais, exibindo corpos mutilados
diante da OAB e diante de autoridades... Lembro-me, desculpem-me, e aqui faço um
parêntese... Sempre que havia um advogado sequestrado e torturado eu costumava
levar à OAB para que ela pudesse agir melhor em defesa dos advogados. Quando
levei um dos advogados — acho que foi Deputado duas ou 3 vezes, não sei,
Vereador também —, o Afonsinho, Affonso Celso Nogueira Monteiro, e lhe pedi que
se desnudasse de cima para baixo, diante do Conselho da OAB. Ele mal tirava a
camisa e lhe pediram que não tirasse mais. Marcas de tortura que ele exibia e
exibirá até a morte porque nunca mais se apagarão. Quem tiver dúvida poderá ir a
Niterói. Isto aconteceu com Affonso Celso Nogueira Monteiro. Esse não foi um, nem
2, nem 3 casos, mas, por essa ousadia de fazer certas coisas, todos nós,
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advogados, todos não, mas um bom número de advogados no Brasil fomos também
sequestrados pela ousadia de defender o quê? Defender perseguidos políticos, com
violação de direitos humanos, inscritos na Constituição até da ditadura, que não teve
coragem de riscar esses princípios, porque o Brasil é membro de instituições
internacionais como a ONU e signatário da Carta de Direitos Humanos da ONU. Não
riscaram da Constituição, mas riscaram da prática. E, por essa ousadia de defender
a lei até da ditadura, defender homens e mulheres, crianças e até latentes, nós, a
maioria dos advogados, também fomos sequestrados a partir do decano nosso na
época e até morrer, que era Sobral Pinto, valoroso advogado, que tem histórias por
todo o Brasil, sem falar de Heleno Fragoso, grande jurista, Evaristo de Moraes,
Augusto Sussekind, filho de almirante, Vivaldo Vasconcelos, George Tavares, eu
próprio. Todos nós fomos sequestrados por essas ousadias todas, só que não nos
usaram torturar, senão psicologicamente, porque todos nós éramos — e eu era —
conhecidos internacionalmente à época, porque falávamos a verdade. E no dia 7 de
abril começaram as denúncias de tudo isso.
Lembro-me de que saía do DOPS. O primeiro jornal era o Correio da Manhã,
que foi levado à garra, foi levado à falência por pressão de natureza política.
Dávamos a verdade. À época, Edmundo Moniz, que veio a ser meu cliente, era um
dos diretores. Ao dar a informação, a verdade, o jornal foi fechado
compulsoriamente. E o Edmundo Moniz veio a ser sequestrado por uma razão que
nem ele conhecia. Ele me disse: “Modesto, você, que é meu advogado, eles falam
que iam matar um negócio de sapo batráquio. É uma coisa de batráquio esse
processo em que estão me enfiando”. Eu disse: “Ah, então eu já sei. É uma tal de rã,
não é?” Rã, houve um processo chamado rã, como houve um outro na Bahia
chamado P-O-R-R-A. Partido era proibido, operário era suspeito, revolucionário,
retado e armado, sigla: P-O-R-R-A. Essas coisas ridículas...
Depois desembocaram numa Lei de Anistia em que eles se autoanistiavam de
forma como os romanos chamavam de privilegium, isto é, lei com endereço certo, lei
com endereço mais para eles, privilégio, lei privada, lei de interesse pessoal do
legislador. E aí vem essa Lei de Anistia, de 1979, porque eles já não suportavam
mais, e mais se autoanistiaram do que anistiaram terceiros.
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Eles criaram uma figura... Criada não, porque é uma figura do Direito Criminal
Comum, chamada de crime conexo. Mas quanto a crime conexo dirá daqui a pouco
certamente o Fábio Comparato ao examinar isso, como examinou perante o tribunal,
o seu correto significado. Todo estudante de Direito sabe e até eu sei que conexo é
aquele em que você pratica um delito, tem uma motivação, um motivo político, e
para isso você pratica outro crime político, mas com a mesma gente, o mesmo autor
e a mesma finalidade.
Ora, quando os torturadores me sequestraram, e sequestraram milhares de
pessoas, quando eles torturaram, quando eles estupraram inclusive a minha cliente
lá de... — quem é de Pernambuco aqui? — ... Brejo da Madre de Deus, no interior
de Pernambuco. Quando a torturaram junto ao marido por ser uma líder católica do
Dom Hélder, fugida para o Rio de Janeiro, trabalhando sob a proteção da CNBB, o
casal acabou localizado pelas autoridades de então. Prenderam os 2, depois de
localizados no Rio de Janeiro. Torturaram os 2 juntos. Depois, foi a vez só dela. Ela
foi, além de todo o sofrimento anterior, estuprada em fila, em fila. Ela disse que só
viu o primeiro e mal o segundo, desmaiou. Quando veio ao meu escritório, disse:
“Dr. Modesto, me ajude. Aconteceu isso.” Ela, com todo o constrangimento, dizia:
“Estou grávida e não sei de qual deles, porque desmaiei no segundo estuprador.” Eu
disse a ela: você é líder católica, com certeza, você deverá procurar o seu Bispo que
gosta muito de você e seu marido. Falou com o seu marido? — “Não”. Falou com o
Bispo? — “Não”. Fale com ele.
Falou com o Bispo que, mais ou menos, repetiu: falou com o seu marido? —
“Não”. Então, fale e depois venha os 2. E ela quando foi falar com o marido — ele
era um pernambucano do interior, homem calado, sóbrio, que talvez eu não sabia se
usava peixeira de salão ou não — fiquei temendo. Quando ela contar a verdade ao
marido, ele vai querer se vingar dos estupradores, mas seria morto antes disso.
Fiquei temeroso, será que dei a orientação correta?
A sorte é que quando ela falou com o marido, e ela me disse depois, ele ouviu
calado, como eu disse que ele era. Calado, ele chegou ao final. Ele veio, abraçou a
sua companheira e disse: “Uma criança é uma criança, e nós podemos, se você
quiser tê-la, educá-la bem, fazer dela uma pessoa de bem.” Ela, então, disse que, no
dia seguinte — eu até havia sugerido a perspectiva de um aborto, para que ela não
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sofresse a tortura de vida inteira, cada vez que ela fosse acariciar aquele menino, se
ele saísse a cara do primeiro, quem sabe do segundo, que ela reconheceria bem —,
diante do que o marido falou, teve um aborto expontâneo. E quando ela voltou para
me contar a história, disse: — “Graças a Deus, foi um milagre pelas orações que eu
fiz.”.
Esta mulher está viva, visitou-me um pouco antes de ir para Pernambuco —
repito, está viva. Ela me autorizou a dizer o seu nome em público, mas eu não digo.
Se alguém tiver dúvida sobre essas histórias, por favor, venha falar comigo.
Vou encerrar, estou abusando do tempo, mas quero dizer que os delitos
comuns em nenhuma das inúmeras anistias pelo Brasil e pelo mundo anistiou
crimes comuns. São crimes que não têm nenhuma conexidade. O que eu fizer aqui
contra ele ou com outra motivação não tem nenhuma conexidade. Agora, o Tribunal
irá decidir, e como é uma lei política, não sei qual será o resultado político.
Agora, no meu entendimento — o Dr. Paulo Abrão poderá ter um
entendimento melhor do que o meu —, não há conexidade entre o crime comum e o
crime político.
Muito obrigado. Desculpe o excesso. (Palmas)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Roberto Britto) - Quero agradecer ao Dr.
Antônio Modesto da Silveira, ex-Deputado Federal, encaminhador da Lei da Anistia,
pela verdadeira aula sobre anistia.
Quero convidar para presidir os trabalhos o Presidente da Comissão de
Direitos Humanos e Minorias, Deputado Luiz Couto, para que possa tomar assento à
Mesa e, ao mesmo tempo, dar continuidade aos trabalhos.
Quero informar que esta audiência pública está sendo transmitida através do
twiter da Comissão de Direitos Humanos. O site é “www
.twiter.com/comissaodedireitoshumanoscamara”. A sessão também está sendo
gravada para ser exibida pela TV Câmara, cuja programação está disponível no site
da TV Câmara.
Passo o comando dos trabalhos ao Deputado Luiz Couto, Presidente da
Comissão de Direitos Humanos e Minorias.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Concedo a palavra ao Dr.
Paulo Abrão, Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.
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O SR. PAULO ABRÃO PIRES JÚNIOR - Bom dia a todos.
Agradeço o convite das duas Comissões para realização deste debate.
Cumprimento o Presidente da Mesa, Deputado Luiz Couto, demais membros
presentes, Deputado Iran, pela louvável iniciativa tomada na realização deste
debate.
O Deputado Modesto da Silveira é um ícone desta luta. É nossa referência
não só pelos valores que expressa, mas por toda a história de vida.
Eu, na condição de Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da
Justiça, tenho a tarefa histórica de dar continuidade ao processo de reconciliação
nacional e à consolidação da transição democrática que não se finalizou até hoje. Se
é certo de que a democracia é um processo permanente a ser semeado, com menos
a transição democrática brasileira ainda não se finalizou. Nós ainda dependemos de
uma segunda transição.
A primeira transição foi aquela em que rompemos com arbitrariedade do
regime ditatorial, implementamos eleições livres e diretas, com a participação do
povo. A segunda transição, que o Brasil ainda precisa viver, é aquela que consolida
de vez as tradições e os princípios do Estado de Direito. E quando nós trabalhamos
com a ideia de consolidação do Estado Democrático de Direito, isso implica
necessariamente saber lidar com todo um legado de violência deixado pelo regime
autoritário e que a sociedade democrática tem de saber dar conta.
Esse é um processo que vem ocorrendo em todos os países que viveram
regimes autoritários, de esquerda ou de direita. Hoje, em todos os países do Leste
Europeu, países africanos, países latino-americanos, bem como no Timor Leste, na
Coreia do Sul e na Indonésia.
Nós temos mantido contato com todas as Comissões de Reparação e
Verdade instituídas nestes países. As Comissões de Reparação, tal como a
Comissão de Anistia, cumprem essa tarefa histórica de trazer à tona a verdade
escondida num passado onde vigia a censura e, principalmente, dar vazão às vozes
dos perseguidos políticos, vozes essas caladas sob o regime da força no passado.
No Brasil, o debate da Lei de Anistia não é diferente da discussão sobre a
criação de regras de autoperdão, ou de esquecimento, como tentativas de uma
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cultura autoritária que pretende projetar para o futuro aquele mesmo ambiente de
ausência de verdades, de liberdades e de desrespeito aos direitos humanos.
A Argentina passou por esse processo. No Uruguai, neste momento, o
Presidente Tabaré chama a população para um plebiscito a respeito da validade da
Lei de Ponto Final. O Chile já enfrentou toda essa discussão. O Peru já enfrentou e
é relativamente uma ditadura de esquerda. Os países do Leste Europeu passaram
por este processo. Recentemente, El Salvador, sob a Presidência do Presidente
Funes, debate a Anistia, as arbitrariedades e os massacres que ocorreram com o
povo salvadorenho à época da guerra civil.
Então, meus amigos, não nos diferenciamos nesta luta, uma luta da
humanidade. Ela não é somente uma luta nacional. Por isso que existe esse
conceito de crimes contra a humanidade. A ideia de crimes contra a humanidade
simboliza uma nova síntese jurídica, um novo papel civilizatório que o Direito tem a
cumprir em todos os países do mundo, dizendo de forma muito bem clara: que a
qualquer tempo, a qualquer momento, a qualquer período histórico, se tivermos a
violação aos direitos humanos, se tivermos a ocorrência de arbitrariedade, se
tivermos a ocorrência de atrocidades contra quaisquer seres humanos, de forma
sistemática, isto será um dia apurado.
Digo que é uma nova simbologia de um processo civilizatório da humanidade
porque tem consigo uma carga conteudística de sinalizar a não repetição para o
futuro, ou seja, toda e qualquer força autoritária que queira, em qualquer momento
da história, impor a sua vontade política pela força, e para impor a sua vontade
política exerça as formas de atrocidades e de violações às dignidades, às
liberdades, às integridades físicas e psicológicas das pessoas, se naquele momento
as condições políticas não favorecerem a apuração da ocorrência desses crimes, no
futuro, quando as condições políticas assim o permitirem, isto poderá ser ou será
apurado.
Essa tradição ética — digo que é uma tradição ética antes de ser uma
tradição jurídica — vem desde o período do pós-guerra, do Tribunal de Nuremberg,
vem desde à concepção de que vivenciamos agora com a busca e a localização de
ainda mais 3 novos dirigentes do regime nazista para serem levados aos tribunais
na Alemanha, mesmo passado mais de 60 anos do final da guerra mundial.
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Então, fico muito contente que, na abertura dos trabalhos aqui, tenha sido dito
de forma muito explícita que esse é um tema atual, porque a primeira cultura que
temos que romper em relação ao debate da Lei da Anistia é a falácia de que é um
debate do passado, não do presente. É ainda uma falácia muito forte, porque ela, de
algum modo, trabalha com a cultura do medo de que, “se mexermos — entre aspas
— nas feridas do passado”, isso poderá significar ou incorrer numa ruptura ou numa
desestabilização da governabilidade atual.
É um argumento conservador utilizado por muitos. Não podemos mexer
nessas feridas do passado, porque isso poderá desestabilizar e colocar em risco as
conquistas democráticas já alcançadas.
Ora, se nós ainda não temos a convicção, se ainda não temos a crença de
que a valorização da democracia e do respeito aos direitos humanos deve ser
considerada como tema proibido, é porque isso nos reforça a convicção e a
determinação de que esses temas precisam ser discutidos. Ou seja, essa é a melhor
representação de que os valores democráticos ainda não estão postos de forma
disseminada no pensamento hegemônico da sociedade.
Então, isso reforça o entendimento de que é necessário, sim, discutir, porque
a própria discussão já é saudável. A própria discussão rompe uma cultura do medo
de que são temas proibidos no passado, e essa própria discussão sinaliza a não
repetição para o futuro e a afirmação dos valores democráticos.
Por essa razão, no ano passado, a Comissão de Anistia, exatamente há 1
ano, realizou no Ministério da Justiça, no Palácio da Justiça, uma audiência pública
sobre a responsabilização dos agentes torturadores do regime de exceção no Brasil.
Ali queríamos denunciar à sociedade que a Lei de Anistia do Brasil vem
sendo interpretada de forma equivocada. Não se trata de rever a Lei de Anistia, de
estigmatizá-la com uma invalidade jurídica. Não, trata-se de interpretá-la
adequadamente segundo os princípios de uma ordem democrática. Essa é a
questão.
A Lei de Anistia de 1979 foi uma lei importante, uma conquista do povo.
Embora não tenha sido aprovada a lei ampla, geral e irrestrita, foi aprovada uma lei
restrita, afastando o perdão, aqueles que tinham cometido crimes políticos de
sangue. Ou seja, outra grande falácia: a de que a anistia do passado foi para os 2
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lados, porque a anistia aprovada foi ampla, geral e irrestrita, e não foi. Basta ouvir os
áudios do Congresso Nacional.
O projeto de lei da anistia ampla, geral e irrestrita foi rejeitado em votação
nominal, com as galerias tomadas por militares presentes pressionando os
Parlamentares pela aprovação do projeto originário da Casa Civil. Isso caracteriza o
conceito fundamental desse debate, o da autoanistia.
Era um Congresso controlado, que, por mais que já tivéssemos Deputados
eleitos diretamente, o Senado Federal ainda era constituído por um terço de
Senadores biônicos e, portanto, aquela lei, tal qual foi aprovada, hoje pode ser
caracterizada, caso queiramos ter a ideia ou a interpretação de que ela valeu para
os 2 lados e, se essa foi a interpretação, portanto, isso é autoanistia. As tradições,
os tratados e as convenções internacionais têm repelido toda e qualquer
possibilidade de autoanistia.
Isso porque, se admitirmos a tese e a possibilidade de autoanistia, o que
estamos dizendo é que, no futuro, diante de novas rupturas com a democracia,
diante de novos processos autoritários, bastará aos golpistas de então, antes de se
entregarem, quando enxergarem que o seu projeto autoritário não tem mais
sustentação política na sociedade, ao apagar das luzes do regime autoritário,
aprovarem para si uma lei de autoperdão.
Então, estaria posto que a regra no Estado Democrático Brasileiro é a
seguinte: “Vocês podem romper a democracia — viu, pessoal? —, sem nenhum
problema. Violem, torturem, façam o que quiser. No final, não se esqueçam de
aprovar uma lei para perdoar vocês mesmos. Porque, se ela for aprovada, isso
nunca poderá ser discutido no futuro e estará sempre bom para todos”.
Ou seja, nós não estaremos consolidando os valores da democracia, nós não
estaremos sinalizando a não repetição, nós não estaremos repudiando os crimes
contra a humanidade, nós não estaremos desenvolvendo as premissas de uma
sociedade respeitosa com os direitos humanos.
Publiquei no jornal O Globo, semana passado, um artigo denominado Tortura
Não Tem Anistia. É uma tentativa, reverberando ainda as vozes que saíram da
audiência pública ocorrida no Palácio da Justiça o ano passado, de ressaltar aquele
momento significativo da nossa história, porque foi a primeira vez que um órgão da
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administração pública, um órgão oficial do Estado brasileiro debateu esse tema. Era
um tema proibido. Isso não poderia ser discutido na sociedade brasileira. Nem o
Congresso Nacional nem o Poder Executivo tinha feito um debate a respeito da
interpretação da Lei da Anistia e da responsabilização dos agentes torturadores.
Então, ali nós rompemos com a cultura do medo. Essa foi uma grande
contribuição, creio. Todo mundo acompanhou, no final do segundo semestre do ano
passado, a polêmica suscitada na sociedade, os debates junto à imprensa e hoje
cada vez mais crescentes, a ponto até dos militares, no seu Clube, militares da
reserva, fazerem um ato de desagravo público a um dos agentes notórios
torturadores do regime militar do DOI-CODI, em São Paulo.
Então, meus amigos, temos sustentado, do ponto de vista fático, que não
podemos enxergar a Lei de Anistia de 1979 como um acordo da sociedade brasileira
para o esquecimento. Primeiro, porque rejeitamos a ideia de anistia como
esquecimento. A anistia é memória permanente. A anistia dá vazão à verdade
escondida. A anistia é, neste momento, a reconciliação que o País faz com aquelas
pessoas que ele perseguiu equivocadamente. A anistia no passado era vista como
um gesto de graça que o Estado brasileiro concedia àqueles agentes que ele
mesmo tinha estigmatizado como criminosos políticos ou como subversivos políticos.
Esta é uma visão tradicional da anistia: o Estado perdoando o criminoso
político que agiu contra a ordem instituída, mesmo que ilegítima. Essa era a visão
tradicional. A anistia hoje, na democracia, tem que ser enxergada a partir de uma
nova concepção, não mais o Estado perdoando aqueles que ele mesmo perseguiu,
o Estado que tinha o dever de protegê-los e não de persegui-los, mas hoje
reconhecendo os erros cometidos contra eles.
O perdão não é mais do Estado ao perdoar os perseguidos. A anistia hoje é
um processo de reconciliação onde aqueles brasileiros perseguidos pelos seus
próprios concidadãos, pelo seu próprio Estado, pela sua própria Pátria devem
perdoar o Estado pelos erros cometidos.
Portanto, a anistia hoje é um processo de pedido de desculpas públicas que o
Estado cometeu em relação àqueles que ele mesmo perseguiu.
Essa é a tarefa histórica que a Comissão de Anistia tem realizado. Nós temos
percorrido todo o País, com as caravanas da anistia, fazendo o levantamento de
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todos os brasileiros que foram perseguidos em cada um dos cantos do País. Já
estamos na 27ª Caravana da Anistia; já percorremos 15 Estados da Federação e, ao
localizarmos os perseguidos políticos, realizamos uma sessão pública.
Muitas vezes, o Ministro do Estado da Justiça vai conosco; muitas vezes, o
Ministro dos Direitos Humanos vai conosco; muitas vezes, os Governadores, os
políticos locais, muitos dos Deputados que aqui estão têm percorrido conosco o País
nas caravanas da anistia.
Temos localizado perseguidos políticos, temos apreciado requerimentos de
processos de anistia, em sessão pública, na localidade onde foram estigmatizados,
junto à sua comunidade, como subversivos. Sabemos que a repressão não foi só do
Estado. A repressão e as perseguições, muitas vezes, foram da própria sociedade
que os circundava, pelos seus vizinhos. Eles ficavam estigmatizados como pessoas
que os vizinhos não poderiam sequer conversar, porque corriam o risco de também
sofrerem as torturas que estavam sendo implementadas no estado de exceção. E lá,
junto à sociedade, é resgatada sua história, é valorizado o espírito de resistência
que aquelas pessoas tiveram para a reconquista da democracia no Brasil. E nós
pedimos desculpas oficiais, em nome do Estado brasileiro.
Esse resgate da dignidade, essa reparação de âmbito moral é muito mais
relevante, é muito mais importante do que a reparação econômica. O pagamento
que o Estado hoje faz, por meio dos processos de anistia, essa indenização que
hoje é paga é fruto do dever do Estado de Direito e do dever de reparação. Isso é do
próprio instituto da responsabilização patrimonial do Estado. Isso existe até quando
alguém está dirigindo um carro e cai em um buraco de responsabilidade do
município. A pessoa pode entrar com uma ação pedindo que o Estado se
responsabilize pelos danos que causou àquele agente. Isso é nada mais, nada
menos que o dever do Estado de Direito. Surgiu desde quando criamos a figura do
estado da administração pública e o princípio da legalidade. O Estado também tem
responsabilidade em indenizar aqueles prejuízos que ele mesmo causa. Isso é
princípio básico do Estado de Direito.
O grande gesto da anistia hoje é o pedido de desculpas, é o reconhecimento
público dos erros, porque o Estado olha para trás, aprende com os seus erros e
sinaliza para o futuro a não repetição.
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Quero dizer também que, do ponto de vista eminentemente jurídico, tem
razão o Deputado Modesto quando diz que essa é uma discussão de imbricamento
do âmbito do direito com o âmbito da política. Por quê? Porque, do ponto de vista
eminentemente interpretativo da lei, vai haver aqueles que sustentam que a lei foi
um grande acordo de pacificação e de esquecimento.
Ora, nós já mostramos aqui que, faticamente, isso é insustentável. Aliás,
busquemos e encontremos. Nós temos percorrido o Brasil inteiro com as caravanas
da anistia e uma pergunta pública é feita: apareça um único perseguido político
brasileiro que tenha sido interlocutor de qualquer acordo político com as forças de
repressão. E ninguém se apresenta como interlocutor de um acordo político com as
forças autoritárias de então. Isso, do ponto de vista fático, é uma constatação.
Em segundo lugar, mesmo se fosse um acordo — e é por isso que o direito,
nesse momento, se imbrica com a política —, não teria nenhuma validade jurídica,
primeiro porque se pegarmos a Lei nº 6.683, de 1979, está explícita muito
claramente a anistia no seu art. 1º: é concedida anistia a todos quantos no período
compreendido de tanto a tanto cometeram crimes políticos. Foram anistiados os que
cometeram crimes políticos.
O que é um crime político? O crime político caracteriza-se pelo bem jurídico
que ele protege. Ora, crime político é aquele que as pessoas cometeram ou para
romper com o modelo de estado vigente, ou com a ordem política e social vigente,
ou com a soberania, ou com a estrutura social e organizacional que estava posta
naquele momento. Nenhum agente torturador do regime militar, seja das estruturas
oficiais persecutórias ou das estruturas paralelas que foram criadas à margem da
própria legalidade do Estado de Direito legítimo à época, nenhum deles estava
cometendo um crime contra a ordem política, um crime contra a soberania, contra a
estrutura de governo — nenhum deles.
Portanto, os perseguidos políticos brasileiros foram anistiados com a lei de
1979, como deve ser, porque exerciam um direito básico na sociedade moderna,
que é o direito de resistência contra uma ordem que oprime as suas liberdades.
Esse é o fundamento das revoluções burguesas. É a força motriz jurídica fundante
da revolução francesa e da revolução americana: o direito de resistência contra uma
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opressão que estava posta. Essa é a base do surgimento das liberdades que nós
temos hoje.
Então, é nada mais do que um grande dever do Estado reconhecer e
conceder anistia àqueles que exerceram seu direito legítimo de resistência.
Os agentes torturadores, não. Estes agiram muitas vezes à margem da lei.
Vejam que nem o próprio regime autoritário, em 1979, admitia a existência da
tortura. Ora, se esses fatos sequer eram admitidos, como é que na lei de 1979
estava-se pretendendo perdoar determinados fatos que nem se reconhecia que
existiam? Ou seja, a lei de 1979 era para perdoar aqueles que exerceram o seu
direito de resistência. Independentemente de qualquer juízo de valor que façamos
hoje sobre os meios que utilizaram para exercer esse direito de resistência, porque
isso não cabe mais na sociedade democrática, essas pessoas hoje, segundo o
princípio da reconciliação nacional, devem ser perdoadas. Essa é uma primeira
razão.
Na lei há a figura dos crimes conexos. Vão dizer que, na verdade, os
torturadores não cometeram crimes políticos, os crimes deles eram conexos aos
políticos. Então, como a lei diz que estão perdoados (falha na gravação) conexos,
eles, portanto, também estão perdoados a partir da figura dos crimes conexos.
Ora, meu amigos, a ideia de conectividade dos crimes está posta na nossa
ordem jurídica no Código Penal ou no Código de Processo Penal e nós temos, tanto
na teoria quanto na dogmática jurídica, as figuras de conectividade.
Então, nós temos lá a ideia de conexão material presente no Código Penal
nos arts. 60, 70 e 71. Nós temos a ideia de conexão intersubjetiva por
simultaneidade, presente no Código de Processo Penal no art. 76, inciso I. Nós
temos a ideia de conexão intersubjetiva por concurso, presente no Código de
Processo Penal, art. 76, inciso I. Nós temos a ideia da conexão objetiva presente no
Código de Processo Penal art. 76, inciso II. Nós temos a ideia de conexão
probatória, no Código de Processo Penal, art. 76, inciso III. E a ideia de conexão
intersubjetiva por reciprocidade, também no Código de Processo Penal, art. 76,
inciso I.
Nenhuma dessas formas de conectividade previstas na ordem jurídica
brasileira permite inferir que os crimes cometidos pelos torturadores tenham
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conectividade com os crimes eventualmente cometidos por aqueles que exerciam
seu direito de resistência, primeiro porque as 4 primeiras figuras de conexão
envolvem concurso material, concurso formal, o cometimento de duas ou mais
infrações por pessoas que tinham o mesmo objetivo na realização daquele crime.
Evidentemente, é insustentável dizer que os torturadores estavam cometendo
os mesmos crimes, com os mesmos objetivos que aqueles que eles estavam
torturando.
As duas últimas figuras de conectividade são meramente processuais, para
se poder fazer, no momento da apuração desses crimes, a junção de diferentes
processos que estão em andamento para que eles sejam apurados
simultaneamente pelo Poder Judiciário.
Não há sustentabilidade jurídica para qualquer inferência de que os crimes
dos torturadores tenham sido anistiados pela lei de 1979. Eu insisto — e isto é o
mais importante para nós: mesmo se estivesse explícito na lei de 1979, em um
artigo último, que essa lei perdoa os agentes torturadores e os agentes cometedores
de crimes de direitos humanos, não teria, mesmo se isso tivesse sido aprovado,
nenhuma validade em razão deste novo conceito, deste conceito que já vem desde
1948, no pós-guerra, que é a ideia de crimes contra a humanidade. Crimes contra a
humanidade são caracterizadamente crimes imprescritíveis, ou seja, podem ser
apurados a qualquer tempo e não são passíveis de anistia.
Lembremos, ainda, que o Brasil é signatário da Convenção Interamericana de
Direitos Humanos. Nós nos submetemos soberanamente à jurisdição da Corte
Interamericana de Direitos Humanos e esta, ao apreciar a Lei de Anistia do Peru, ao
apreciar a Lei de Anistia do Chile e ao apreciar uma série de casos que têm chegado
até ela já declarou, peremptoriamente, a invalidade de qualquer autoanistia e já
declarou também na sua jurisprudência a tese da imprescritibilidade dos crimes
contra a humanidade.
Hoje há uma discussão se nós devemos ou não observar a ordem jurídica
internacional para a solução de casos nacionais. É uma discussão atrasada, do
ponto de vista do pensamento jurídico, porque ignora até que este próprio
Parlamento, o nosso Parlamento brasileiro está constituindo o Parlamento do
MERCOSUL, estamos formando leis de integração regional, ou seja, a ordem
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jurídica internacional compõe uma unidade com a ordem nacional. Cada vez que
este Congresso Nacional ratifica uma convenção internacional, está incorporando
essa legislação à nossa ordem jurídica nacional. Ignorar isso seria ignorar o próprio
trabalho do nosso Parlamento, que é quem tem a representatividade e a legitimidade
do povo para dizer que tipos de leis e que tipo de ordem jurídica deve ser percebida.
Só para dar um exemplo de como desde à época do regime militar nós já
estávamos submetidos a determinadas ordens jurídicas internacionais, que já
impunham o conceito de crimes contra a humanidade imprescritíveis e não passíveis
de anistia, lembremos que, em 1914, nós ratificamos a Convenção de Haia sobre
Guerra Terrestre — em 1914! E essa convenção já previa os princípios e os
costumes internacionais como fonte do nosso Direito e o caráter normativo dos
princípios jus gentium, entre eles o respeito à dignidade da pessoa humana.
Depois, em 1945, ratificamos a Carta das Nações Unidas. Ora, o Brasil é um
dos fundadores da Organização das Nações Unidas, e a Carta das Nações Unidas
já dizia que nós tínhamos que ter respeito às obrigações decorrentes de tratados e
convenções internacionais.
O Estatuto da Corte Internacional de Justiça, no seu art. 38, inciso I, que
regulamenta a Carta das Nações Unidas, de que o Brasil já era signatário,
estabelece de forma muito clara a obrigatoriedade do nosso País em respeitar os
tratados e as convenções internacionais.
E foi exatamente em razão de uma outra convenção, em 1948, que ficou
explícita, a partir do julgamento de Nuremberg, a imprescritibilidade de crimes contra
a humanidade.
Por isso, temos a convicção política e a convicção jurídica de que tortura não
é crime político, de que a sociedade brasileira precisa realizar esse debate e que
hoje a interpretação conservadora da lei de 1979 como uma imposição da cultura
jurídica autoritária tem impedido que centenas de brasileiros que foram lesados na
sua integridade física e psicológica possam acionar o sistema de Justiça para fazer
valer os seus direitos.
É essa interpretação equivocada, é essa cultura que nós temos que romper
com a realização de debates como este aqui hoje, com transmissão, com os debates
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na sociedade, com as caravanas da anistia, com os debates nas universidades,
como nós temos feito.
Lembremos que essa interpretação conservadora e equivocada da lei de
1979 já impediu, lá em 1992, que o caso Herzog fosse julgado pela Justiça. O
Tribunal de Justiça de São Paulo mandou arquivar a ação de apuração da
responsabilidade pela morte do Herzog em razão dessa interpretação conservadora
da lei.
Depois, um segundo caso, em 1988: o STM extinguiu a punibilidade no caso
do Rio Centro com base na tese de que a lei de 1979 teria anistiado ambos os lados
e que, portanto, não há mais o que se falar de apuração desses crimes.
E agora, recentemente, o Ministério Público Federal de São Paulo ingressou
com ação civil pública — civil, não fala nada de responsabilização penal. A Lei de
Anistia fala de crimes políticos, e é questão penal. Então, o Ministério Público
Federal, a partir da sua inteligência e atuação permanente, disse: “Bom, se essa
interpretação conservadora está posta, nós queremos a responsabilização civil. Nós
queremos que Carlos Alberto Brilhante Ustra seja declarado um torturador”, tal qual
ele foi e segundo inúmeros testemunhos e atos que já estão sendo reconhecidos
pelo Estado brasileiro na Comissão de Anistia, onde temos os arquivos da ditadura.
Muito se busca: onde estão os arquivos da ditadura, os arquivos oficiais? E
nós temos dito: os verdadeiros arquivos da ditadura são os arquivos da Comissão de
Anistia, porque ali está a história contada por parte de quem sofreu as perseguições.
Ali está escrito, no processo dele, lá dentro da Comissão de Anistia, que, enquanto
na ficha do DOPS dele, enquanto na ficha do SNI dele está escrito que o Deputado
Emiliano foi convidado num dia “x” a prestar um esclarecimento sobre alguma
questão numa delegacia, no processo dele, dentro da Comissão de Anistia, está
dizendo efetivamente o que aconteceu com ele naquele dia, quantos dias ele ficou
preso, a que tipos de torturas ele foi submetido. Então, ali estão os verdadeiros
arquivos da ditadura militar.
Portanto, o Ministério Público Federal disse o seguinte: ora, se o Estado já
reconhece nos processos da Comissão de Anistia a ocorrência dessas torturas, a
ocorrência dessas lesões aos direitos humanos, então, agora nós queremos que os
torturados sejam declarados torturadores, afinal de contas, no passado, todos os
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perseguidos políticos tiveram que responder por processos, inquéritos policiais
militares, ações, mesmo que ilegítimas, junto aos tribunais militares, junto ao
Superior Tribunal Militar. Se os perseguidos políticos brasileiros tiveram que se
submeter, mesmo num regime autoritário, a todos os procedimentos segundo um
contraditório meio questionável, segundo um direito de defesa meio questionável, a
despeito do trabalho incessante dos nossos advogados — o Deputado Modesto da
Silveira realmente foi um dos grandes ícones da defesa dos perseguidos políticos —
por que hoje nós não devemos processar também aqueles que foram os agentes
que promoveram essas violações aos direitos humanos?
Depois, num quarto caso, recentemente, a família Merlino entra com uma
ação. A juíza, em São Paulo, manda arquivar segundo a ideia tradicional de que a lei
de 1979 também anistiou os perseguidores.
Meus amigos, o horizonte está-se modificando, eu não tenho dúvida disso.
Em primeiro lugar porque, depois da nossa audiência pública no Ministério da
Justiça, o Presidente da OAB, Cezar Britto, estava presente e comprometeu-se
publicamente a organizar uma ação junto ao Supremo Tribunal para que aquela
Corte diga, em definitivo, se a lei de 1979 anistiou ou não anistiou torturadores.
Com relação a isso, o Prof. Fábio Comparato elaborou uma belíssima peça
jurídica na ação de descumprimento de preceito fundamental, e nós aguardamos
que o Supremo Tribunal Federal confirme, dentre outras coisas, inclusive a própria
jurisprudência recentemente julgada no caso do General Cordeiro, o agente
torturador uruguaio que matou uruguaios e argentinos. Nós concedemos sua
extradição para a Argentina considerando, no mínimo, que alguns daqueles crimes
cometidos no passado, embora ainda não segundo a tese da imprescritibilidade dos
crimes contra a humanidade, nos casos dos desaparecimentos forçados, são crimes
permanentes, até hoje não apurados e que, portanto, não há que se falar de
prescrição. Assim, resolvemos extraditar esse general uruguaio torturador e algoz
dos nossos coirmãos latino-americanos.
O que está em jogo é se nós, neste momento, acreditamos ou não na ideia da
não repetição e se o Direito é ou não capaz de impingir nos nossos valores sociais
uma força civilizatória tão forte quanto a ideia dos crimes contra a humanidade
imprescritíveis e não passíveis de anistia.
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Está nas mãos do Supremo dizer se a sinalização é para a não repetição ou
se nós vamos eternamente ficar sob o jugo da possibilidade de novos rompantes
autoritários.
Por fim, eu quero dizer que a Comissão lançou a primeira edição brasileira de
uma revista em língua portuguesa. Países do mundo inteiro têm publicações dessa
matéria. Nós lançamos agora no dia 30, por comemoração dos 30 anos da luta do
povo brasileiro pela anistia, no Rio de Janeiro, onde a Comissão de Anistia prestou
uma grande homenagem aos presos políticos e àqueles que fizeram greve de fome
para aprovação da lei de 1979, aqueles que colocaram as suas próprias vidas em
risco para que nós voltássemos a ter a democracia que nós temos hoje.
Lá foram lançados 2 grandes importantes projetos. O primeiro é a construção
de um memorial da anistia política. Será em Belo Horizonte e abrigará todo o acervo
da Comissão de Anistia. Nós vamos digitalizar todo esse acervo, vamos
disponibilizar todos esses arquivos para toda a sociedade, num portal da Internet.
Vamos cuidar muito bem desse acervo, porque ele é o denunciador de que nós não
queremos que aquele regime volte mais.
Em segundo lugar, a criação da revista Anistia Política e Justiça de Transição,
para debater processos de transição política e processos de transição democrática.
Aqui, inclusive, existe um documento e um parecer. São 2 documentos. Existe um
dossiê que explica o que é Justiça de transição, um conceito muito pouco trabalhado
e que precisa ser disseminado política e juridicamente, que é a ideia de que, a partir
do legado de violência, nós temos que respeitar o direito à memória, o direito à
verdade, o direito à Justiça e reformar aquelas instituições que no passado serviram
para reprimir e vocacioná-las para o respeito aos direitos humanos, em especial as
instituições de segurança pública. E é o que tem ocorrido em todos os países do
mundo.
Esse conceito de Justiça de transição, ao ser disseminado — e aqui a revista
traz isto —, também reverbera uma declaração do próprio Conselho de Segurança
da ONU, que indica a necessidade e a obrigação dos países de apurar a verdade e
responsabilizar os agentes violadores dos direitos humanos, de reformar suas
instituições e permitir o direito à memória.
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Um outro documento que está aqui é um parecer elaborado pelo Centro
Internacional de Justiça de Transição, que trabalha com as experiências de
comissões de reparação no mundo inteiro. Há um parecer sobre a Lei de Anistia
brasileira, à luz da jurisprudência internacional e de outros exemplos do mundo
inteiro.
Nós só temos mil exemplares impressos dessa revista. Eu quero fazer, neste
momento, uma doação oficial à Comissão de Direitos Humanos e à Comissão de
Legislação Participativa.(Palmas.) Nós só temos mil exemplares. Estamos
procurando priorizar a distribuição para as universidades, para a academia. Já
entregamos para cada um dos Ministros do Supremo e para os Ministros dos
Tribunais Regionais Federais, para que conheçam um pouco mais esses conceitos,
essas teses jurídicas, essas sustentações que estamos fazendo, para que isso
possa implicar repercussões nas decisões judiciais, porque muitas vezes as
decisões se conservam ao longo do tempo em uma determinada linha pela ausência
de debate, pela falta de demonstração de que existem outras orientações, pela falta
de demonstração de que existem outros exemplos que podem implicar efetivas
melhorias para a nossa ordem jurídica e democrática.
Mas, desde ontem, a revista está no site do Ministério da Justiça na sua
integralidade, para toda e qualquer pessoa que queira estudá-la, lê-la. Está aberto o
edital para receber artigos de diferentes pessoas a serem publicados na segunda
edição. Será uma revista semestral dedicada à questão democrática no Brasil. A
segunda edição sai em março. Estamos recebendo sugestões de artigos e as
contribuições de todos que aqui estão.
Muito obrigado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Muito obrigado, Dr. Paulo
Abrão, pela contribuição e também pela revista que a Comissão de Direitos
Humanos e Minorias e a Comissão de Legislação Participativa recebem neste
momento.
Recebemos a informação de que o Dr. Fábio Konder Comparato, que estava
no Senado, dentro de 10 minutos estará aqui.
O Deputado Iran Barbosa, também um dos autores do requerimento,
juntamente com o Deputado Pedro Wilson, tem que sair e pede a palavra para poder
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manifestar-se. Depois, abriremos para os Parlamentares presentes e, em seguida,
para as outras pessoas que queiram usar a palavra. No momento em que o Dr.
Fábio chegar, daremos a palavra a S.Sa.
Com a palavra o Deputado Iran Barbosa, do PT de Sergipe.
O SR. DEPUTADO IRAN BARBOSA - Obrigado, Sr. Presidente. Gostaria
apenas de me congratular por este encontro de gerações. Vejo que neste momento
tivemos a oportunidade de ouvir a voz de um brilhante jovem analista deste
problema que estamos debatendo aqui e a experiência relatada, com a emoção que
a todos nos comoveu, sobre as questões que estamos debatendo.
Ainda vamos ouvir o Dr. Fábio Comparato, mas, pelo que já ouvimos,
entendo, Deputado Pedro Wilson, que conseguimos efetivamente atingir o objetivo
que pretendíamos com esta audiência pública.
Cada vez mais se consolida a ideia de que é necessário não colocar embaixo
dos tapetes os problemas que precisamos enfrentar. Cada vez mais se consolida a
noção de que é mais do que acertada a consulta que faz a OAB ao STF sobre a
amplitude que tem a Lei da Anistia no enfrentamento da questão da tortura.
Quero parabenizar os 2 convidados que fizeram esta belíssima exposição.
Quero aproveitar, se me permitem — peço licença ao Presidente —, para dedicar
esta audiência pública a todos os que sofreram com o processo de tortura no Brasil,
mas especialmente às mulheres.
Eu vi que a nossa companheira Sônia Hipólito foi tomada pela emoção diante
do relato feito pelo Dr. Modesto da Silveira sobre o caso específico daquela senhora
violentada na sua condição de ser humano, de mulher. Sabemos que essa não foi
uma realidade única, sabemos que isso aconteceu muito.
Lá, no meu Estado, Sergipe, nós tivemos exemplos desse tipo. A Comissão
de Anistia já passou por lá. Quero aqui também aproveitar para homenagear os
meus compatriotas, os meus conterrâneos de Sergipe que também foram
violentados pelo regime de exceção.
Lamento que eu não possa continuar no debate. Peço licença a todos que
aqui se encontram.
Agradeço, mais uma vez, a oportunidade desta excelente elucidação. Tenho
certeza de que o debate vai continuar, de que ele será ainda mais elucidativo e nós
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vamos poder produzir mais opinião e mais ação a respeito deste tema na Câmara
Federal.
Muito obrigado, Sr. Presidente. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Luiz Couto) - Obrigado, Deputado Iran
Barbosa.
Eu convido o Deputado Pedro Wilson, um dos autores do requerimento e
Vice-Presidente da Comissão de Direitos Humanos, a assumir a Presidência, porque
tenho que ir à Comissão de Constituição e Justiça.
A palavra está com o Deputado Chico Alencar, do PSOL do Rio de Janeiro.
O SR. DEPUTADO CHICO ALENCAR - Saúdo todos os colegas membros da
Mesa e o jovem Paulo Abrão. Permita-me dar um tratamento privilegiado, não por
ser ex-Deputado, mas por ser uma pessoa que está nessa luta cidadã há muito
tempo, ao Modesto, que sempre na sua modéstia fez questão de dizer que nós
somos companheiros de batalhas e lutas há muito tempo, mas que eu sou muito
mais jovem. Não é verdade. É claro que ele tem um pouquinho mais de estrada do
que eu. Nas minhas primeiras votações como eleitor, porque até isto teve que se
conquistar contra a ditadura, o direito de votar com um pouquinho de liberdade,
embora ainda houvesse o bipartidarismo imposto, eu sempre votava no Modesto. E
vi o meu mandato ser honrado, além da atuação dele como advogado, como
defensor dessas causas que são da humanidade.
Portanto, Modesto, é um prazer vê-lo aqui com a mesma garra, com a mesma
emoção, fazendo esta ponte que você faz como poucos, entre a razão e o coração.
É isso que constitui o ser humano novo pelo qual tanto sonhamos.
Dentro deste movimento que seria elementar de não esquecer e condenar
aqueles que torturaram, cometeram crimes contra a humanidade, o Brasil tem uma
situação diferente da Argentina, do Chile e do próprio Uruguai, para citar só países
bem próximos. E isso é inadmissível, porque o Estado brasileiro vem-se
democratizando, mas ele tem enclaves autoritários. E as Forças Armadas, na sua
alta hierarquia, também fazem parte desse enclave autoritário, assim como setores
do Judiciário.
O Parlamento, pela sua própria gênese, tem figuras autoritárias e
antidemocráticas, que a situação do golpe militar em Honduras revela, mas ele não
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pode ser considerado como um enclave autoritário no Brasil, até porque teve um
papel protagonista importante, atendendo à demanda popular por liberdades
democráticas.
Agora, no Judiciário e especialmente neste setor do Executivo que são as
Forças Armadas, ainda há muito autoritarismo. E uma das faces do autoritarismo é
não querer fazer a autocrítica do passado.
Eu vou divergir do meu querido amigo e irmão Modesto da Silveira quando ele
diz que a tortura foi praticada por figuras que tramaram contra a tradição das Forças
Armadas. Sim, os seus executores. Mas não houve um torturador no DOI-CODI do
Rio de Janeiro, na Rua Barão de Mesquita, na minha Tijuca, no subsolo, que agisse
à revelia dos seus comandantes. A tortura contra os adversários políticos foi
assumida pelo regime militar brasileiro como prática do sistema. Claro que é uma
prática tão abominável que o sistema sempre negou.
Mas mesmo os Ministros civis, mesmo os próceres civis do regime militar...
Eu ainda não tive a coragem de perguntar isso, talvez porque a resposta viesse
enganosa, a alguns colegas nossos legitimados pelo voto popular, como, por
exemplo, Delfim Neto, que agora não foi reeleito Deputado, mudou para o PMDB e
perdeu a eleição — às vezes, o esperto demais se atrapalha. Mas o próprio Sr.
Paulo Maluf conviveu com o regime militar, embora não tenha chegado a ser
Ministro. Mas, de vez em quando, encontro com o Ministro Reis Veloso nos aviões,
indo para o Rio, e fico tentado a indagar. E já perguntei ao Ministro Jarbas
Passarinho, num debate em um programa de rádio aqui. Ele, com sinceridade,
disse: “Não, eu sei que havia, mas esses excessos nós procurávamos combater”.
Mas havia um sistema onde a tortura era um método de combate.
Então, se condenamos o sistema militar, temos de condenar também os que,
dentro do regime militar, praticaram o crime mais abominável, imprescritível e de
lesa-humanidade, que é o crime de tortura. Mas até hoje as resistências são
enormes. Tocar nesse assunto é quase que entrar em uma zona proibida.
E nosso papel é entrar nessa zona proibida, porque assim como o fascismo
não existe mais como regime em boa parte do mundo, é também verdade que, como
expressão cultural, ele existe até no Brasil e às vezes de formas laterais. Torcidas
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de futebol fanatizadas e homofobia são fragmentos de uma cultura fascista no
Estado brasileiro, em processo de democratização.
Por isso, uma audiência pública como esta, que os colegas Iran Barbosa e
Pedro Wilson produziram, uma temática como esta que a Comissão de Direitos
Humanos quer animar pode ajudar a interferir nesta esperada decisão do Supremo,
para dizer o que para nós é óbvio, mas que até para parte da sociedade brasileira
não é: a Lei de Anistia não significou esquecimento dos crimes contra a humanidade
praticados covardemente por quem detinha o poder sobre pessoas indefesas. Como
já foi dito aqui à exaustão, isso não tem nada a ver com o chamado crime político,
que é caracterizado até pelos próprios regimes, para depois se dizer que exagerou.
Então, acho que o caminho é esse. Eu só queria fazer essa referência.
Fiquei muito impressionado, Deputado Pedro Wilson, V.Exa. que tem grandes
experiência aqui. Algumas figuras que eu respeito e admiro do Partido Popular
Socialista, o PPS, emanado do velho Partido Comunista, do qual está muito distante
hoje, estão preocupadas quanto ao absolutamente justo acolhimento — porque ele
não é exilado político — do Presidente constitucional de Honduras pela Embaixada
do Brasil, na hospedagem que S.Exa. está recebendo lá, estão preocupados não
com o golpe militar em Honduras, mas com o fato de S.Exa. ter-se pronunciado e
dito publicamente ou com um megafone — para depois ser abafado com alto-
falantes potentíssimos, que não deixaram os lá abrigados dormir a noite inteira,
colocados pelo exército golpista de Honduras —, ter-se manifestado pela sua volta
ao poder. É impressionante! Então, acaba acontecendo uma dobradinha entre
alguns supostos liberais e outros da extrema direita aqui no Parlamento.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Pedro Wilson) - Permita-me apenas
complementar. Acabo de receber o informe de uma agência de que o governo militar
de Honduras está censurando todas as agências lá. A nossa mídia não falou nada
disso nem ontem nem hoje.
Ontem, a Rede Globo fez uma pesquisa on-line sobre se estava certo ou não
o Brasil dar o abrigo. Vejam bem: uma pesquisa on-line, inclusive ganhando
dinheiro, porque os telefonemas são cobrados dos participantes.
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No começo a mídia condenou o golpe, mas agora está dizendo que não, que
vai ter eleição daqui a 1 mês, que é preciso tirar o Zelaya. Já o estão chamando de
Zé Lula e tentando contaminar toda a interpretação política.
Lamentavelmente, o Líder do PPS disse que... Veja bem, em vez de
perguntar para o Micheletti, para o “Golpete” explicar o que ocorre em Honduras,
está dizendo que o Governo brasileiro tem de explicar por que o Zelaya está na
Embaixada. Vejam bem, como mudam a ordem de valores — de valores, não é mais
de informação! Hoje, grande parte da mídia brasileira tem uma informação opinativa.
Já se dá o valor.
Peço desculpas a V.Exa., mas é porque agora mesmo recebi essas
informações, inclusive para denunciarmos como foi a manifestação ocorrida ontem
na Embaixada.
O SR. DEPUTADO CHICO ALENCAR - Exatamente. Daí por que a luta pela
democratização dos meios de comunicação, que em parte também são elementos
do conjunto do enclave autoritário na sociedade brasileira, é fundamental. Caminha
junto. Agora, nós temos que ganhar a disputa de ideias na sociedade. Esta ideia
água com açúcar de dizer que o passado passou, de que temos de esquecer,
portanto, quem torturou tem de ficar no seu pijama, é inadmissível.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Pedro Wilson) - Permita-me, Deputado.
Chegou aqui o convidado Dr. Fábio Konder Comparato, a quem, de imediato,
convido a tomar assento à mesa. Uma salva de palmas a esse grande advogado.
(Palmas.)
Houve aqui a contribuição do Sr. Paulo Abrão e do Sr. Antônio Modesto da
Silveira. Foi abordada a questão da memória. O Dr. Paulo Abraão destacou muito
bem essa questão. A revista está na linha do que pensam o Ministro Tarso Genro e
todos nós. Precisamos de documentos, porque muitas vezes fica tudo esparso e
ninguém tem acesso.
Discutir a tortura não é fácil. Eu e o Deputado Iran Barbosa já fomos
questionados no sentido de que ficamos, de maneira recorrente, chamando para
discutir esse assunto: “Para que discutir? Vamos para frente, vamos acabar com o
revanchismo.” Mas, no começo, a luta era contra a tortura a preso político, depois, a
luta dos movimentos de direitos humanos, e passou à luta contra a tortura contra o
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cidadão comum, que nas cadeias das periferias descobrimos que é preto, jovem e
analfabeto e continua sendo preso e torturado à revelia.
Porém, não podemos esquecer, nestes 30 anos de anistia, a consciência
política de lá para cá. Oxalá o Supremo possa nos dar uma lição de democracia!
Não é questão de julgar o termo da lei, mas a construção da democracia no Brasil,
avisando aos “Michelettes” da vida, porque eles estão por aí.
O SR. DEPUTADO CHICO ALENCAR - Vamos convidar o nosso mestre
Fábio Konder Comparato para tomar assento à mesa.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Pedro Wilson) - Peço a S.Sa. que tome
assento à mesa.
Está presente aqui também a nossa querida Deputada Emilia Fernandes, do
Rio Grande do Sul; a Primeira-Ministra da Mulher no Brasil, que honra o Parlamento,
esta grande ex-Senadora e hoje Deputada Federal pelo querido Estado do Rio
Grande do Sul.
Devolvo a palavra, para finalizar, ao ilustre Deputado Chico Alencar, a quem
peço desculpas.
O SR. DEPUTADO CHICO ALENCAR - Sr. Presidente, permita-me uma
digressão histórica. Quando eu era Vereador do Rio, para lá também foi eleito o
jogador de futebol Carlos Alberto Torres, capitão do tricampeonato. E uma vez nós
promovemos um jogo de futebol. Há outro jogador se candidatando aí, não sei se
tem a ficha muito limpa. Mas, às vezes, o craque em campo não repete a mesma
performance no Parlamento. De qualquer forma, o Carlos Alberto Torres foi
participar de um jogo e eu dei o azar de cair no time contrário. Como ele ainda
estava meio dormindo, consegui dar um drible no Carlos Alberto Torres.
Imediatamente, pedi para ser substituído. Saí de campo com essa glória.
Ser interrompido ou encerrar minha fala com o Fábio Konder Comparato é
muito mais valioso do que isso. Portanto, encerro aqui. Não tenho nada a dizer, só a
ouvir, aliás.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Pedro Wilson) - Muito obrigado, Deputado
Chico Alencar. (Palmas.)
Permitam-me, Deputados Luiz Couto, Emilia Fernandes e Janete Rocha
Pietá, antes de passar a palavra ao nosso convidado, nos solidarizarmos com o Dr.
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Fábio Konder Comparato por ter respondido de forma firme e coerente quando um
jornal de São Paulo chamou a ditadura de “ditabranda”. Depois houve uma tentativa
de atingir o Dr. Fábio Comparato. Nós queremos aqui manifestar ao senhor a nossa
solidariedade, pequena, mas de todo gosto na luta pela democracia. Que a palavra
do senhor continue para nós um farol na luta pelos direitos humanos e pela
democracia no Brasil.
Estão conosco aqui o Dr. Antônio Modesto da Silveira, ex-Deputado Federal e
também advogado, o Dr. Paulo Abrão, Presidente da Comissão de Anistia, e os
Deputados Chico Alencar, do Rio de Janeiro, Emilia Fernandes, do Rio Grande do
Sul, Luiz Couto, da Paraíba, e Janete Rocha Pietá, de São Paulo. Não pôde estar
presente conosco até o final o Deputado Iran Barbosa, do PT do Sergipe, que foi
comigo um dos autores deste convite a V.Sa.
Passo a palavra ao Dr. Fábio Konder Comparato, para suas considerações.
O SR. FÁBIO KONDER COMPARATO - Ilustres Deputados, fico um tanto
constrangido de falar, porque eu não sabia que deveria vir hoje aqui. Fui convidado
para vir no dia 24 de outubro. Mas, de qualquer maneira, talvez esta antecipação
seja providencial.
Temos que considerar o assunto da Lei de Anistia sob 2 enfoques. O primeiro
é o enfoque técnico, legal e constitucional. O segundo, uma questão de educação
republicana e democrática.
A Lei de Anistia, nº 6.683, de 1979, declara textualmente anistiados crimes
políticos. E, logo em seguida, ela exclui do benefício da anistia crimes de violência.
E fala até em terrorismo. No § 1º do art. 1º, ela estende a anistia aos crimes
conexos.
Eu falo sempre em anistia de crimes, e não de criminosos, porque a anistia
apaga o crime.
Acontece que temos que interpretar a Lei de Anistia de acordo com a
Constituição de 1988. As leis anteriores à Constituição de 1988 só permanecem em
vigor se forem harmônicas com os princípios constitucionais declarados em 1988. E
o que vemos no inciso XLIII do art. 5º da Constituição de 1988 é a declaração de
que a lei considerará crimes inafiançáveis e insusceptíveis de graça ou anistia a
prática da tortura e outros crimes.
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De modo que, se entendemos que a Lei nº 6.683 permaneceu em vigor após
o início da vigência da Constituição de 1988, temos que admitir que essa parte
interpretada da Lei de Anistia não pode ser considerada consentânea, harmônica
com a Constituição de 1988.
Mas, na verdade, em toda a história do Brasil temos 2 Direitos, e não só 1.
Quero lembrar o conto O Espelho, de Machado de Assis, que certamente todos
conhecem. Nesse conto o narrador assevera aos seus ouvintes espantados que
cada um de nós tem 2 almas, e não apenas 1. Tem uma alma externa, que exibe
para o público e pela qual ele julga o mundo de fora para dentro; tem uma alma
interna, que ele mantém reservada, através da qual ele julga o mundo de dentro
para fora.
Temos, em toda a história do Brasil, 2 Direitos. Um Direito é o oficial,
civilizado, que exibimos ao estrangeiro. As nossas Constituições são roupas de gala,
que demonstram que somos elegantes, civilizados, bem comportados. Mas existe
um Direito interno, que procuramos não mostrar ao estrangeiro. Este é o que
protege os privilégios dos poderosos, dos ricos, dos irresponsáveis.
Toda vez que a Constituição e a lei esbarram num interesse forte de um
membro da classe poderosa, entra em vigor o direito subentendido.
Isso aconteceu durante quase 4 séculos com a escravidão. O tráfico de
escravos, comércio infame do ser humano, foi proibido por 2 tratados assinados com
a Inglaterra no início do século XIX. O Brasil tornou-se independente, mas não se
cumpriam os tratados. A Inglaterra pressionou o Governo, e a Regência, numa lei de
7 de novembro de 1831, declarou proibido o tráfico de escravos, considerado
análogo à pirataria, o que dava às autoridades o poder de apreender as
embarcações e submeter a tripulação a julgamento.
No entanto, até a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, todo esse aparato oficial
era para inglês ver, era nossa alma de fora. Por dentro, continuávamos, ano a ano, a
receber contingentes cada vez maiores de africanos.
A Constituição de 1824 declarava desde já — é expressão da Constituição —
abolidas a marca de ferro quente, as penas cruéis e a tortura. No entanto, até a lei
de 1886, os escravos continuavam marcados com ferro em brasa. E a lei de 1886 só
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veio por uma razão. A Constituição de 1824 proibia o açoite, abolia o açoite, mas
não para escravos. Aí é outra questão, aí entra o Direito subentendido.
O Código Criminal de 1830 admitiu que os escravos pudessem ser
submetidos a 50 chibatadas diárias. Era comum, no entanto, o infeliz sofrer 200 a
300 chicotadas diárias, o que levava muitos à morte. Foi por isso que, em 1886, às
vésperas da abolição, um júri de Paraíba do Sul, Estado do Rio de Janeiro,
condenou a 300 chibatadas 4 escravos. Dois deles faleceram, e o fato foi publicado.
Imediatamente, com grande constrangimento, a Câmara dos Deputados do Império
votou a lei proibindo os açoites.
É exatamente isso o que acontece com a anistia. Oficialmente, torturar um
preso não é um crime político. Em lugar nenhum. E quem tortura é o aparelho de
poder. O crime político é um crime de rebelião, de revolta contra o poder, contra a
estrutura estatal que existe.
Para os militares, desde sempre, torturar e matar um preso é um crime
hediondo. A honra militar obriga, obrigou desde sempre a respeitar o preso, porque
ele foi vencido. Só se deve, militarmente, atacar e matar o inimigo enquanto ele não
se render. No momento em que ele é preso, ele goza de toda a proteção. É aviltante
para um militar fazer isso. Em nosso País, durante o golpe militar de 1964, milhares
de presos foram torturados — centenas de milhares, pode-se dizer — e muitas
mulheres foram estupradas. Havia, no DOI-CODI de São Paulo, sessões especiais
em que se estupravam as presas. Tudo isso cometido não só com a autorização,
mas também com o incentivo de autoridades militares. Hoje, pretende-se que isso
esteja abrangido pela Lei de Anistia.
O último aspecto, da maior importância: reconhecer esses fatos aviltantes é
absolutamente necessário para a educação moral do brasileiro. Ele precisa entender
que aqueles que estão no poder são servidores dele, povo — o povo é o patrão —, e
que, quando esses servidores se comportam de maneira escandalosa, aviltante, têm
que ser punidos.
O ilustre Deputado acabou de lembrar que, nas delegacias de polícia de todo
o País, a tortura é um fato incontroverso. Mas não contra pessoas de paletó e
gravata, como este seu criado. Quando entro numa delegacia de polícia,
imediatamente o funcionário diz: “Pois não, doutor. O senhor deseja alguma coisa?”
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Ele não sabe que eu sou doutor. Mas, quando entra numa delegacia de polícia,
minha empregada é tratada aos trancos e barrancos. Isso é uma vergonha para
nossa população, mas nós introjetamos isso.
Então, de modo muito claro, se o Supremo Tribunal Federal não reconhecer
essa evidência, se não quiser dar ao povo brasileiro essa lição de respeito à
dignidade humana, vamos continuar manchados. Nós outros, advogados, que
estamos acostumados a perder e a ganhar em juízo, temos um princípio: vencer às
vezes; desistir, jamais. Iremos, se Deus quiser, à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, e agora para acusar nosso País, para que não se diga, em
âmbito internacional, infelizmente, que este não é Estado digno e que deva ser
sancionado. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Deputado Pedro Wilson) - Obrigado, Dr. Fábio Konder
Comparato. É uma honra para esta Casa recebê-lo, por sua participação histórica na
luta pela democratização do País e por sua contribuição à atual Carta Magna.
Estão inscritos para falar a Deputada Janete Rocha Pietá, o Deputado Luiz
Couto, a Deputada Emília Fernandes, o Deputado Chico Alencar e o Dr. Jarbas
Marques.
Com a palavra a Deputada Janete Rocha Pietá.
A SRA. DEPUTADA JANETE ROCHA PIETÁ - Cumprimento os Deputados
Pedro Wilson e Iran Barbosa, autores do requerimento de realização desta fantástica
audiência digo — e digo fantástica no sentido de recuperarmos a luta pela
igualdade, pois um país democrático não pode conviver com a tortura.
Parabenizo o companheiro Fábio Konder Comparato, do Conselho Federal da
OAB, e envio-lhe um abraço fraterno. Esse querido companheiro acabou de fazer
um retrospecto da história do nosso País, onde milhões de negros foram torturados
e mortos apenas, muitas vezes, por capricho. Além disso, os negros eram
considerados como não tendo alma e tratados como seres, como eu digo hoje em
dia, inferiores a um animal irracional, porque qualquer pessoa que tenha um
cachorro ou outro animal de estimação o trata com carinho e percebe quanta eles
sensibilidade têm.
Nesta Casa, no dia 9 de setembro, aprovamos o Estatuto da Igualdade
Racial, porém a aprovação não significa que tenhamos conseguido o que
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queríamos. A educação é fundamental e não conseguimos aprovar o
estabelecimento das cotas, porque é através da educação que podemos reafirmar o
que o Dr. Fábio Comparato tão bem expressou, que é importante relembrar a
história ou reconhecer os fatos aviltantes para levar educação moral à população
brasileira.
Eu havia me inscrito para falar sobre um caso ocorrido em São Paulo.
Representando a Comissão de Direitos Humanos, fui, em diligência, acompanhar a
investigação da morte por tortura de um jovem afro-brasileiro chamado Carlos
Rodrigues Júnior, que possivelmente tinha praticado um furto — possivelmente,
porque não foi comprovado. Todavia, os policiais entraram na casa desse jovem e o
torturaram até a morte. Ele foi julgado, torturado e morto em seu próprio quarto.
Quer dizer, a tortura continua.
Temos esse caso que gostaria de relembrar e, a partir desta audiência
pública, retomar. E, como os presos militares ficaram no presídio especial, o caso
está, por assim dizer, parado.
Mas eu me inscrevi também para registrar especificamente, porque sou da
Comissão de Relações Exteriores, um e-mail que recebi de Honduras. É muito grave
a situação em Honduras. E eu aproveito esta audiência para registrar isso. Vou pedir
outra cópia para fazer uma ampla divulgação. A mensagem foi enviada pelo
Ministério da Saúde de Honduras — as pessoas não se identificam, obviamente,
pela situação do golpe existente no país — e nela é dito que há, pelo menos, 16
mortos, dezenas de pessoas hospitalizados e que foi montado um campo de
concentração em um estádio, onde existem centenas de presos.
Então, eu tinha me inscrito para denunciar que o golpe em Honduras não se
resumiu à deposição do Presidente legitimamente eleito, mas também que militantes
da Frente Nacional de Resistência estão sendo presos e torturados.
Quer dizer, estou falando sobre o Brasil, mas quero aproveitar esta
oportunidade para registrar a necessidade de tomarmos, na Comissão de Direitos
Humanos, Presidente Pedro Wilson e Presidente Luiz Couto, uma posição frente a
essa situação sobre a qual, ao meu ver, não podemos nos calar.
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Quero também mandar um abraço especial ao ex-Deputado Antônio Modesto
da Silveira e dizer que não podemos perder de vista a luta para garantir que todos
sejam iguais e que não haja no Brasil e no mundo nenhum tipo de tortura
Agradeço a todos. Quero dizer que estou na Comissão de Relações
Exteriores e, possivelmente, se conseguirmos, iremos a Honduras em delegação,
mas aproveito para fazer este registro nesta Comissão.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Pedro Wilson) - Agradeço à Deputada Janete
Pietá as palavras;
Convido a Deputada Janete Rocha Pietá, numa homenagem à luta das
mulheres contra a tortura, para presidir esta audiência até o final dos trabalhos.
Uma salva de palmas a essa luta que é das mulheres e também dos homens.
(Palmas).
Também está presente o historiador Jarbas Silva Marques, uma das pessoas
mais torturadas neste País, mas que jamais se demitiu da seu dignidade e que hoje
contribui para a consolidação da democracia brasileira.
A SRA. PRESIDENTA (Deputada Janete Rocha Pietá) - Com a palavra a
Deputada Emília Fernandes, do PT do Rio grande do Sul.
A SRA. DEPUTADA EMÍLIA FERNANDES - Muito obrigada, companheira
Janete Pietá.
Não posso me furtar de registrar, neste momento, a verdadeira aula de
resgate histórico que esta Casa, através das Comissões de Direitos Humanos e de
Legislação Participativa, a que tenho a honra de integrar, dá não apenas às pessoas
que aqui presentes, mas às de todas as partes do Brasil que estão acompanhando
esta reunião. Temos uma Mesa qualificada pelo conhecimento, por sua trajetória de
vida e pela prática de direitos humanos ao longo de sua existência.
Quero cumprimentar o ex-Deputado Modesto da Silveira. Nós nos
encontramos hoje, talvez, pela primeira fez frente a frente, mas ao longo da minha
vida de luta como militante sindical, como lutadora social dos movimentos sociais,
oriunda do Estado do Rio Grande do Sul, da região da fronteira do Brasil com o
Uruguai, aprendi a conhecer e a admirar sua história.
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Ao Dr. Comparato também todo o meu respeito pela sua história e pela sua
luta no dia a dia, que sempre será um espelho para que todos vejam a imagem de
sua coragem e de persistência.
E o Dr. Paulo Abrão, então, coroa a luta pela qual todos temos lutado durante
toda a nossa vida, uns já há muito tempo, outros se incorporando agora, mas todos
cerrando fileiras em torno dessa luta. E aqui está um jovem dando uma
demonstração de que a idade se afirma à medida que fortalecemos valores,
formamos consciência e tomamos atitudes através de ações.
Então, quero me congratular com os promotores deste evento, porque ele
traz, como aqui já foi dito, um tema que muitos buscam colocar no esquecimento,
alegando que direitos humanos é questão de proteção ao crime e a arbitrariedades.
Na verdade, tentamos resgatar, por meio da história, o que há de mais sublime: a
dignidade da vida e do ser humano, a liberdade de opinião, de que não podemos,
sob hipótese alguma, abrir mão.
Sofri muitas vezes, até mesmo como professora, quando queria, por meio das
nossas aulas, resgatar o verdadeiro conteúdo da história deste País, relatando o que
foi feito com os negros, com os índios e com as mulheres (palmas) em todos os
momentos, não apenas nos porões da ditadura ou dos navios negreiros, mas na luta
pela conquista da terra, da liberdade, da casa, da moradia e do direito de falar e de
participar da política.
Muitas vezes, fui tachada de retrógrada, de alguém que não tinha visão
moderna e que buscava culpados. No meu coração, porém — e, tenho certeza, que
no dos senhores e das senhoras também —, não há lugar para mágoas ou para
ressentimentos. Ele tem lugar para a liberdade, para a justiça e para o
reconhecimento daqueles e daquelas que, muitas vezes no anonimato e, em outras,
nos espaços de maior decisão e nos momentos de confronto, não se calaram diante
do poder e defenderam o direito de pensar diferente. É isso que fortalece a vida e a
democracia.
A anistia não é perdão para alguns, ou para todos, como alguns dizem.
Tortura não é direito dos que estão no poder. O combate à tortura deve ser
permanente, é tema que precisa ser fortalecido, porque precisamos estar sempre
cuidando para evitar retrocesso.
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A propósito, o que está acontecendo em Honduras exemplifica,
concretamente, que isso está presente, está próximo, como foi dito, até mesmo nos
poderes constituídos do nosso País. Mas, para a nossa felicidade, também nos
poderes constituídos, num espaço entre os mais privilegiados do Governo brasileiro
— e, aqui, nossa homenagem às mulheres — está uma mulher como a Ministra
Dilma Rousseff, com que tivemos o prazer de compartilhar, durante a sua trajetória
no Estado do Rio Grande do Sul, da sua luta pela liberdade e pela democracia.
Nós temos 2 campos. O povo precisa saber que direitos humanos, direitos
das mulheres, direitos dos negros e das negras estão diretamente ligados ao
fortalecimento da democracia. Precisamos impedir as formas de violência e de
tortura que ainda acontecem, vejam bem, mundialmente — trata-se de uma questão
mundial. Todos tivemos conhecimento do que as forças militares americanas fizeram
no Iraque. Não foram apenas crimes de guerra ou apenas enfrentamentos. Elas
ultrapassaram a barreira do respeito e da dignidade humanas.
Portanto, temos, sim, obrigação de manter na pauta este tema, para que não
os fatos se repitam, para que este País avance e mostre ao mundo que não
queremos 2 direitos. Nós queremos o direito real, a partir da luta consciente de cada
um e de cada uma.
Contem sempre com a nossa luta! Na fronteira do Uruguai, convivi com
muitos companheiros e companheiras que estavam do lado de lá. Muitos até
perderam a vida — história que já conhecemos. E eu me inspiro neles. Muitas fotos
e arquivos foram queimados, mas, como os senhores e as senhoras sabem, nem
tudo é queimado, porque o que está no coração e na consciência das pessoas, ou a
história que é presenciada e contada, não se apaga. Eu vi homens ultrajados em
sua dignidade, amarrados, seminus. E até mesmo grandes líderes políticos deste
País às vezes colocados em situação extremamente triste, sem falar nas mulheres
que, como sabemos, sofreram dupla ou triplamente e continuam sofrendo a falta de
liberdade política e de expressão.
Que este País continue resgatando sua história, trazendo para a realidade do
dia a dia que não admitimos tortura, que não admitimos o cerceamento da liberdade,
seja de expressão, de credo, de religião, seja do que for, que temos de fortalecer a
democracia e que homens, como os que estão aqui, principalmente os jovens,
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analisem e estudem esses fatos inspirados principalmente nos princípios
fundamentais que a Constituição brasileira inscreveu a partir de 1988.
As mulheres, com certeza, senhores e senhoras, estarão atentas e atuantes
nessa caminhada pela justiça e pela dignidade.
Parabéns aos palestrantes pela verdadeira aula de cidadania que deram a
esta Casa, mas principalmente ao Brasil e ao mundo. (Palmas)
A SRA. PRESIDENTA (Deputada Janete Rocha Pietá) - Deputada Emília
Fernandes, tenho a honra de convidá-la para assumir a presidência dos trabalhos e
dizer que, na luta pela democracia, estavam presentes mulheres e homens de várias
origens, mas o principal é que a luta pela democracia é uma construção
permanente. Não podemos de maneira nenhuma ter duas leis, nem tampouco
podemos ter duas posições frente ao que ocorre na América Latina, principalmente
em Honduras. Irei agora ao plenário da Casa registrar presença e, em seguida,
voltarei para este evento. (Palmas)
A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emília Fernandes) - Avançando nos
trabalhos, pois várias pessoas têm compromissos, passo a palavra de imediato ao
Deputado Luiz Couto, Presidente da Comissão de Direitos Humanos desta Casa,
para suas considerações.
O SR. DEPUTADO LUIZ COUTO - Sra. Presidente, em primeiro lugar, quero
parabenizar os autores do requerimento de realização desta audiência e os
expositores Modesto da Silveira, Fábio Konder Comparato e Paulo Abrão, que
demonstraram que, além da anistia, há uma versão da lei que não corresponde
àquilo que se estabelece, aquele apego que é usado para dizer que temos uma
anistia geral, ampla e irrestrita, quando, na realidade, a anistia foi acordada. E
acordada a partir da situação mencionada pelo Dr. Paulo Abrão, da existência de
Senadores biônicos e da pressão de militares nas galerias.
A prova é que, cada vez que se tenta fazer algo para que os arquivos sejam
abertos, sempre dizem que queremos o revanchismo. Na verdade, a anistia não
levou em conta o direito à memória e à verdade; não levou em conta que outros
países fizeram, a necessidade de criação de uma Comissão da Verdade, para
acompanhar todo o processo.
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Mais do que isso. Famílias que tiveram seus entes torturados e executados
até hoje não sabem onde os corpos foram jogados. É o caso de Davi Capistrano. O
livro da Taís afirma que ele foi cortado como fosse um animal e, depois, as partes
jogadas ninguém sabe onde.
O direito ao luto é um direito da família. Na época da Guerrilha do Araguaia,
tem início o processo de execução sumária. Foram executadas várias pessoas,
entre elas mateiros e agricultores que trabalhavam na região. A execução de alguns
deles ninguém sabe como foi.
É para esse aspecto que quero chamar a atenção. Muitos dizem: “Foi um
perdão para todo mundo”. Do ponto de vista da hermenêutica bíblica, para haver o
perdão, primeiro, tem de haver o reconhecimento do erro. É preciso que alguém
reconheça que estava envolvido em determinada ação. Tem de confessar a autoria
daquele erro. Segundo, tem que pedir perdão e também é necessária a reparação. E
não só econômica, como muitos consideram, mas muito mais do que isso. É preciso
que toda essa memória venha à tona, para que a verdade se estabeleça. Somente a
verdade vai nos libertar, somente ela vai promover a reconciliação, e não o que
acontece muitas vezes quando os movimentos tentam ampliar a responsabilidade.
Em seminário sobre a tortura aqui realizado — o Dr. Modesto da Silveira
estava presente, entre outros —, foi dito que, por não enfrentarmos a tortura, hoje
ela é sistemática em nosso País. Prova disso tanto os relatórios da ONU quanto os
da OEA sobre o nosso País apontam que algumas questões continuam não sendo
enfrentadas. Entre elas, a tortura, as execuções sumárias, o sistema penitenciário, o
racismo. Enfim, essas questões estão sempre presentes nesses relatórios. E as
providências não são tomadas porque, cada vez que se tenta enfrentá-las, há
sempre a reação de setores das Forças Armadas de que é revanchismo da nossa
parte.
Quero parabenizar os responsáveis pela realização desta audiência e dizer
que é muito importante continuarmos o debate, a fim de termos a concretização
plena do direito à memória e à verdade. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emília Fernandes) - Muito obrigada,
Deputado Luiz Couto.
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Solicita-nos a palavra o jornalista Jarbas Marques. Quanto aos nossos
palestrantes, faremos uma rodada de encerramento, até porque o Dr. Comparato
tem compromissos inadiáveis.
Vamos ouvir o jornalista Jarbas Marques.
O SR. JARBAS SILVA MARQUES - Um dos objetivos de uma audiência
pública é possibilitar contribuições. Depois dessa busca de hermenêutica pelo Dr.
Paulo, acho que posso dar uma contribuição. Se o General de Exército João
Baptista Figueiredo entendesse que a anistia por ele assinada estenderia um véu de
impunidade sobre os torturadores, ele não teria concedido uma outra anistia em seu
Governo para os médicos torturadores, os instrumentadores de tortura.
Modesto da Silveira ainda era Deputado quando suscitou a execução de
Carlos Marighella — dia 4 de novembro vai completar 40 anos. Um dos maiores
sabujos da instrumentação de tortura, Harry Shibata, disse que, antes do Marighella
morrer, ele tinha lhe dado a unção como católico.
Particularmente, eu denunciei ao próprio Modesto que tinha sofrido torturas
na mão do então tenente Ricardo Agnese Fayad, hoje general de divisão.
Quando a Inês Etienne, a única sobrevivente da Casa da Morte de Petrópolis,
saiu com a Anistia, e vocês localizaram o Tenente Lobo, o que ele disse? “Eu não
pertenço mais ao Exército, sou um Oficial R2. Por que vocês não vão atrás do
Fayad, que continua torturando e matando?” Então, o que aconteceu? Esse Tenente
Lobo, que participou da instrumentação de tortura, depois de falar isso, sofreu
aquela mesma injeção de simulação de ataque cardíaco. Ele estava andando em
Copacabana, levou uma picada de injeção nas nádegas e morreu em seguida.
Então, Dr. Paulo Abrão, só para o senhor rebuscar e contra-argumentar: o
Figueiredo que assinou isso é o mesmo Figueiredo que assinou o Código 12, para
matar o Juscelino, o Carlos Lacerda e o Presidente Jango, para eliminar fisicamente
os mentores da Frente Ampla. Ele que mandou aplicar o Código 12 e também,
depois de assinar a Lei da Anistia em 1979, assinou uma lei que revogava um dos
primados da humanidade — o Juramento de Hipócrates —, ao estabelecer que
todos os médicos militares que participaram da tortura como instrumentadores ou
como legitimadores de morte não estavam subordinados ao Conselho Federal de
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Medicina, nem à ética de Hipócrates. Então, essa é uma contribuição para o senhor
incorporar a todo esse tratado hermenêutico que o senhor apresentou aqui.
Quando eu estava preso na Fortaleza de Santa Cruz, presídio do Exército, li
uma obra sobre a história da Polícia Civil do Rio de Janeiro, que foi criada em 1808,
por Dom João VI. Na minha visão de historiador, a formatação do Brasil como pátria
se dá na Guerra do Paraguai, na junção de 4 movimentos sociais e políticos: o
positivismo, o antiescravismo, a Maçonaria e o republicanismo.
Por que os primeiros batalhões do Voluntários da Pátria que entraram em
combate — e a Deputada Emília Fernandes, gaúcha, sabe disso — eram compostos
por negros? O povo e os índios paraguaios não conheciam os negros, os quais a
Igreja benzia as mãos das chibatas e dos ferros. Esses negros entraram em
combate defendendo um regime que os escravizava. A oficialidade branquela, como
eu e outros, viu neles homens, guerreiros íntegros. Foi de lá que o Exército brasileiro
voltou com a decisão de não aceitar ser capitão-do-mato.
O regime escravagista dos Orleans e Braganças, para desmoralizar o
Exército brasileiro, que era contra a escravidão, baixou um decreto: qualquer senhor
de escravo que quisesse chibatar ou torturar um escravo deveria procurar o quartel
mais próximo e pagar, sob a forma de imposto, essas chibatadas. Dr. Comparato, o
senhor encontrará isso no livro do livro do Hermeto sobre a história — ele relata en
passant esse fato, mas dilatei a pesquisa com relação a isso.
Então, Dr. Paulo, para o senhor buscar fundamentação, tanto o próprio
Figueiredo, que assinou a Lei de Anistia, sabia que ela não protegia os médicos
instrumentadores de tortura, que aboliu de forma sui generis o Juramento de
Hipócrates.
Com relação a dizer que todos que denunciamos tortura somos revanchistas,
eu não quero prendê-los, como eles me prenderam por 10 anos. Não quero afogá-
los em fezes, como eles me afogaram no quartel do Dragões da Independência. Não
quero que sofram torturas sexuais, como eu sofri e testemunhei mulheres sofrendo.
O Modesto sabe muito bem. Antes do Anselmo, pela mão do General Oliva e
do Almirante, ter ido requerer anistia, quando Inês Etienne, que hoje está
juridicamente impossibilitada, foi requerer anistia, eles tentaram matá-la, porque ela
foi a primeira a saber que Anselmo, agente policial infiltrado antes de 1964 pelo
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CENIMAR, matou mais de 100 pessoas e assumiu essas mortes. E agora, para
desmoralizar a Lei da Anistia, ele pretende requerer indenização, dizendo que foi
perseguido pelo Estado. Ora, esses arquivos existem para desmoralizar pessoas e
grandes combatentes.
O irmão caçula de Alberi Vieira dos Santos, conterrâneo da Deputada Emília
Fernandes — estivemos presos na fortaleza durante 4 anos —, serviu de aríete,
bateram sua cabeça na parede até ele ficar louco; o segundo irmão foi torturado e
enrolado em arame farpado.
Quando o Alberi saiu “de cadeia cumprida”, ocorreu a mesma coisa: teve
morte igual ao do irmão, enrolado em arame farpado. E, depois, os tais arquivos da
DSI do Itamaraty apresentam os fatos como se ele tivesse preparado uma cilada
para matar outros companheiros que estavam voltando do exterior.
Então, esses arquivos servem. No último depoimento que eu e o Modesto
demos aqui na Câmara dos Deputados, dois dias depois de eu dar nomes de
torturadores e de assassinos, um coronel recebeu uma tarefa desse blog Ternuma
nunca mais, de colocar palavras como se eu fosse um renegado. Estou ajuizando
uma ação para que ele diga onde eu escrevi, porque fui eleito como um inimigo
militante dessa canalha toda que vive na sombra, que vive como sempre viveu.
Por que Delfim Neto não vai dizer que reuniu o empresariado de São Paulo e
estipulou 150 mil dólares. O Coronel Ustra, além dos vencimentos que recebia como
oficial do Exército Brasileiro, era o homem do caixa para pagar o salário de
torturadores pelos empresários de São Paulo. Por que esse juiz “Lalau” está sendo
protegido até hoje? Porque era um caixa de pegar dinheiro com os empresários para
pagar o salário dos torturadores — o salário além do que o Estado pagava.
Acho que essa é uma luta de dignidade não só nossa, dos sobreviventes,
mas do povo brasileiro e da humanidade, como foi postulado aqui.
A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emília Fernandes) - Muito obrigada.
Antes de passar a palavra ao Cerezo, da Associação Nacional de Anistiados
Políticos de Volta Redonda, no Rio de Janeiro, queremos registrar a importante
presença — e agradecemos — da Dra. Alexandrina da ABAP do Distrito Federal.
Também está aqui Rosa Simeana, gaúcha, filha de perseguido político.
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Registro ainda a presença dos companheiros Getúlio Guedes e Arlindo
Pereira, do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos; do Sr. Valdivino
Braga da Silva, da União de Mobilização Nacional dos Anistiados do Rio de Janeiro;
e do Sr. Sérgio Ulaerte.
Como o Dr. Comparato precisa se retirar, vamos inverter a pauta. Daremos a
palavra a ela para suas considerações finais e, depois, ao Cerezo e aos 2 últimos
palestrantes, para encerrarmos os trabalhos.
Então, com a palavra o Dr. Comparato, para suas considerações finais.
O SR. FÁBIO KONDER COMPARATO - Queria dizer que mais importante do
que punir os torturadores, assassinos e estupradores é homenagear a verdade.
Fui procurado, em 1989, por Inês Etienne Romeu, que me contou o calvário
que sofreu. À época, eu disse a ela que a jurisprudência não admitia ações de
indenização por causa da prescrição — isso naquela época, agora mudou a
jurisprudência. E ela me disse: “Professor, eu não quero um tostão de indenização.
Esse dinheiro de indenização vem do povo e a grande vítima é o povo. O que eu
quero é que a Justiça do meu País reconheça oficialmente que eu fui sequestrada,
mantida em cárcere privado, estuprada 3 vezes por agentes públicos federais pagos
com o dinheiro do povo brasileiro”.
Eu fiquei absolutamente emocionado com isso e disse: “Pois não. Então, eu
vou ingressar com uma ação declaratória, para que fique constando oficialmente
tudo isso que a senhora acaba de me dizer”. E devo lhes dizer que essa ação foi
julgada procedente em primeira instância, e a União Federal desistiu da apelação.
Esse foi o primeiro caso.
Com base nisso, tenho a honra de defender duas famílias de presos políticos
torturados. Uma delas, a de um jornalista que, com 24 anos, foi preso e torturado até
a morte no DOI-CODI de São Paulo. Uma dessas ações foi julgada procedente; a
outra foi anulada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, e estou recorrendo ao
Superior Tribunal de Justiça.
É por isso que eu repito a todos o grande princípio que me inspira: nem
sempre ganhamos as batalhas, mas não vamos desistir jamais. (Palmas.)
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A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emília Fernandes) - Muito obrigada, Dr.
Comparato. Nossa inspiração continua na sua luta pela liberdade e pela justiça.
Parabéns. Muito obrigada pela presença.
Queremos registrar — e até pedir desculpas por não tê-lo feito antes, mas só
agora chegou a indicação à Mesa — a presença do Sr. Zezinho do Araguaia,
Presidente do IAPA — Instituto de Apoio aos Povos do Araguaia e ex-gerrilheiro do
Araguaia. Ele nos honra com a sua presença e com a sua trajetória de luta.
Cerezo, por favor, com a palavra.
O SR. CEREZO - Eu sou o Cerezo, metalúrgico da CSN, recém-anistiado.
Além de parabenizar os autores da iniciativa de realização desta reunião,
quero também parabenizar o Deputado Modesto da Silveira, do meu Estado, o Dr.
Paulo Abrão, a Deputada Emília Fernandes, a Deputada Janete Rocha Pietá e os
demais presentes.
A reflexão com que eu, modestamente, queria contribuir é o registro de que a
Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, a meu ver, tomou duas grandes
iniciativas que merecem ser ajudadas, no mínimo, e também ser elogiadas.
A primeira foi divulgar para as universidades do País os horrores, ou pelo
menos parte deles, que aconteceram durante o período em que a ditadura esteve
em vigência. Isso tem um grande significado – o Dr. Paulo Abrão sabe da minha
opinião –, porque às universidades brasileiras os pobres e negros têm pouco
acesso. A classe média ainda tem grande acesso. E os militares se apoiaram, para
dar o golpe, na classe média. Então, a nova geração, que não pôde ver nas escolas
as histórias dos horrores — até porque a educação sofreu uma profunda “educação”
e pouco se dizia sobre isso —, agora vai ter oportunidade de saber, principalmente
se for concluído do projeto da digitalização da memória, das denúncias etc. Nesse
setor, vai haver uma massificação que muito ajudará a combater os remanescentes
ainda presentes em nossa sociedade, aqueles a que o Deputado Chico Alencar
chamou de enclaves duros, que estão aí para, a qualquer momento, atacar
novamente.
A outra iniciativa, a qual, inclusive, me beneficiou, foi a anistia, que se ampliou
muito com relação aos números anteriores.
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Eu tenho tido divergências pontuais com o Dr. Paulo quanto ao
aprimoramento da iniciativa, o que discutiremos em outra ocasião.
Mas, continuando a minha análise, a vanguarda que hoje se estabeleceu na
Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e na Comissão de Direitos Humanos
tem uma ação isolada e preocupante. Por exemplo, o golpe que está acontecendo
em Honduras mostrou como a mídia e setores duros do Brasil estão protegendo os
golpistas, inclusive fazendo crítica ao Governo, que está aceitando — até como uma
forma de praxe internacional do asilo político – que o Zelaya fique na Embaixada
brasileira em Honduras, um procedimento normal adotado por outros países, e que,
no caso do Brasil, jornalistas como a Míriam Leitão e outros da grande mídia,
analisam como uma postura do Governo brasileiro de apoio ao chavismo etc., etc.
Na verdade, o que é isso? Enclaves golpistas que existem em nosso País e
que não toleram, de forma alguma, o avanço da liberdade e o fim desses resquícios
de autoritarismo.
Estou seguro de que, se não ampliarmos a reação, esse golpe de Honduras
pode servir para os golpistas brasileiros, peruanos e de outros países não apenas na
América Latina como uma possibilidade de também se movimentarem. Se a
democracia começa a avançar contra a elite, como o Dr. Fábio Comparato revelou,
eu estou seguro de que aquilo vai ser um balão-de-ensaio, eu estou seguro de que
para muitos golpistas brasileiros estão na clandestinidade apoiando os golpistas
hondurenhos. Eles têm acesso à mídia e ficam todo o tempo assediando a
Comissão de Anistia, falando sobre “anistias milionárias” entre aspas.
Inclusive, chamou-me a atenção o fato de neste plenário estarem presentes
militares. Aliás, eu sugiro à Mesa a convidá-los para fazer uso da palavra, porque é
importante sabermos qual a opinião deles. Eu penso assim: o Ministério da Defesa,
quando manda militares virem acompanhar a nossa reunião, ele o faz selecionando
quadros da oficialidade que não vêm aqui — perdoem-me se eu estiver errado —
pregar a liberdade e a ampliação dela. Vêm aqui para medir até que ponto esses
remanescentes estão sendo vitoriosos em manter esses bolsões, esses quadros
duros que nos perseguem cotidianamente. Então, vou repetir: gostaria que eles
fossem convidados para dar sua opinião sobre a democracia, porque o oficial
treinado na clandestinidade para acompanhar comunistas, para acompanhar
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subversivos, para acompanhar aqueles que lutam pela liberdade vai ser um quadro
preparado para praticar ataques, inclusive a tortura.
Isso me lembra, por exemplo, uma cena ocorrida no meu sindicato, em Volta
Redonda, e que me chocou muito: um companheiro nosso, cujo pedido foi julgado
semana passada, me mostrou a foto de um oficial que estava acompanhando a
reunião de posse dele do sindicato com uma aparência dócil, barbeado, cabelinho
dentro do rigor. Depois, aquele mesmo militar e outros que não conhecemos foram
para lá a fim de torturá-los e de matar outros. Hoje, eles estão, mas têm que ser
trazidos ao banco de réus. Temos que incriminar essas pessoas, no mínimo.
Nesse Estado, que tem uma porção de contradições, temos de formar essa
vanguarda: Comissão de Anistia, Comissão de Direitos Humanos, e ampliar isso —o
que tem sido feito nas universidades —, porque a situação é muito preocupante.
Essas pessoas estão olhando para o sucesso dos golpistas de Honduras. Eles vão
chegar lá, esses militares, eu suponho — se não aceitarem falar aqui, na frente de
todos — e dizer no relatório: “Foi uma reunião de comunistas. Criticaram o golpe de
Honduras”.
Temos de ficar atentos. Não podemos achar que a liberdade está ali,
balançando na Bandeira Nacional no Palácio do Planalto, não. Vejo a situação com
muita preocupação. Infelizmente, a uma reunião como esta vêm poucos Deputados,
vêm poucas pessoas. A maioria tem o que fazer, despista, disfarça. Nós, com essa
vanguarda que está atenta, que está levando o movimento adiante, temos de ficar
atentos a essas coisas, ficar de olhos vivos, porque nós somos uma espécie de
núcleo duro da liberdade que, na verdade, está garantindo a ampliação da
democracia neste País. Então, ficar atento é uma de nossas missões.
É isso. Obrigado. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emília Fernandes) - Muito obrigada.
Nós queremos registrar que esta reunião está sendo divulgada; está sendo
transmitida não só para o Brasil, mas para o mundo, porque a Internet extrapola as
fronteiras. São muito significativas a sua presença e os depoimentos aqui proferidos.
A palavra, neste momento, está facultada a todos os presentes,
independentemente do cargo, profissão ou atividade que exerçam. Se alguma
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pessoa deseja se manifestar antes das considerações finais dos nossos
palestrantes, esta Presidência lhe garante a palavra. (Pausa.)
Concedo a palavra à Sra. Rosinha.
A SRA. ROSINHA - Sou filha de ex-preso político. Saí do meu Estado com 6
anos de idade, porque o meu pai foi preso em 1964. Então, fui abrigada... Ficamos
clandestinos no Estado de Goiás. Por muitos anos, todo o mundo me perguntava:
“De onde você é?” Eu sou goiana, porque eu já não tenho sotaque de gaúcho nem
cor de gaúcho, porque gaúcho é sempre branco — e, como eu sou filha de negros,
sou negra.
Eu assino em baixo de tudo o que o camarada Cerezo falou, porque, toda vez
que nós temos uma reunião, os militares vêm para cá, para as nossas reuniões,
para os nossos seminários — os militares sempre estão aqui. E não vou dizer para
vocês que eu morro de amores por militares, porque, quando o meu pai foi preso, eu
tinha 4 anos; mas eles entraram na nossa casa e não deixaram nada inteiro — e a
gente segurando na barra da saia da minha mãe. Então, essas barbaridades que eu
presenciei fazem com que eu não me sinta bem vendo a farda verde-oliva ou
qualquer outra farda.
E por que eles podem estar aqui? Quando eles se reúnem lá no Rio de
Janeiro, no Clube do Militar — vai até o canalha do Brilhante Ustra —, por que eles
não nos chamam para também participarmos das reuniões no Clube dos Militares,
lá? Nós não podemos chegar nem à rua em que eles estão reunidos; isso hoje, em
plena democracia. Se é democracia, se eles podem estar aqui, eles estão aqui
como? como militares ou como espiões? Porque o que traz para mim até hoje é o
trauma, quando eu vejo um militar. Eu sei até o símbolo que eles usam aqui dentro
da Casa. Quando não estão fardados, eles usam uns ‘botonzinhos’. Eu sei muito
bem. Assim como eles sabem que eu uso Lenin na lapela da minha blusa, a foice e
o martelo na lapela da minha blusa, eu também sei o que eles usam agora. Mas por
que eles não se manifestam? Por que eles não dizem ‘olha, a gente não concorda
com o que aconteceu’? Eu não sou revanchista, não. Eu não quero pegar o Brilhante
Ustra e colocá-lo na cadeira do dragão, no pau-de-arara. Eu só queria que ele
respondesse e perdesse as 4 estrelinhas que ele tem aqui assim; que ele não fosse
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mais general; que ele ficasse sem o salário de general, como o meu pai ficou sem o
salário de ferroviário, porque era negro, pobre e comunista.
E foi no meu Governo que o meu pai foi anistiado. Hoje nós temos casa para
morar, graças ao meu Governo, porque a ditadura militar nos tirou tudo: um irmão,
com suicídio; e nenhum de nós conseguiu se formar. Eu não sou doutora em nada, e
queria muito ter estudado.
Mas não sou revanchista. Eu vejo um lado muito bom. Eu tive um tio capitão
do Exército que me tirava cada vez que eu era detida, porque eu fiz passeata
estudantil a vida inteira!
Eu vejo um lado muito bom na democracia, quando vejo um rapaz, um
menino — não no sentido pejorativo —, um menino de 34 anos à frente da
Comissão de Anistia. Eu me sinto muito confortável vendo que à frente da Comissão
de Anistia tem um rapaz que revolucionou a Comissão, porque ele faz caravanas
divulgando a nossa história no Brasil todo. Ele é um gigante, literalmente falando.
Falo do Dr. Paulo Abrão, por quem tenho uma admiração muito grande. Tenho um
filho da idade dele. Então, eu me sinto assim contemplada. Isso ameniza a dor que
eu tive por perder o meu pai cedo, sem ver o partido legalizado, por ter um irmão
morto por suicídio com medo de o Exército entrar lá em casa de novo. Eu me sinto
contemplada; eu me sinto segura de que a democracia vai avançar, porque ela tem
um jovem como o Dr. Paulo Abrão e Parlamentares como a Emília Fernandes, que é
uma mulher guerreira. Eu conheço a história dela, porque eu leio tudo sobre ela — o
gaúcho tem isso, é bairrista, né? Eu não tenho culpa se os gaúchos são bons
demais. Quando são bons, são bons demais! No entanto, há uns que foram até
torturadores. Mas há pessoas boas como o Ministro Tarso Genro. Meu pai ficou
preso junto com o pai dele. O Dr. Adelmo Genro saiu da cadeia e foi defender o meu
pai, um negro ferroviário e comunista. E o Dr. Adelmo era do PTB. Então, eu tenho
muitas coisas boas para relembrar.
Eu endosso tudo o que o Cerezo falou, porque, todas as vezes em que
estamos reunidos, os milicos entram. Por que eu não posso ir à reunião em que está
o Brilhante Ustra e olhar bem na cara dele?
A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emília Fernandes) - Muito obrigada,
companheira e conterrânea Rosinha, pela sua luta, pela resistência. Tenho certeza
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de que no seu coração, como já disse, não tem lugar para revanchismo nem para
ódio. Trata-se de luta pela democracia, pela dignidade.
Esta é a Casa do povo. Temos de respeitar todos. Aqui há pessoas que
representam o povo brasileiro com seus mais diferentes pensamentos. Essas
Comissões têm prezado pelo espaço democrático. Que as pessoas venham,
assistam às reuniões e levem daqui anseios e declarações, como os que aqui foram
proferidos. Que, em momento algum, se pense em retrocesso neste País, porque o
Brasil vive um novo momento histórico não só dentro do País, mas fora também.
Nós estávamos encerrando, mas eis que chega a esta reunião o ilustre
Deputado Federal Paes de Lira, coronel da PM de São Paulo, que nos pede a
palavra, a qual lhe concedemos. Depois repassaremos a palavra aos 2 palestrantes,
para suas considerações finais.
O SR. DEPUTADO PAES DE LIRA - Excelentíssima Sra. Presidente,
agradeço-lhe a indulgência. Não quero subverter a ordem dos trabalhos, mas não
pude comparecer antes devido aos demais encargos.
Ilustríssima audiência, embora eu tenha vindo em hora tão tardia, me parece
de extrema importância esta audiência pelo seu tema e, principalmente, porque ela
nos conduz a uma reflexão em que sempre insisto: a reflexão a respeito da
reconciliação do Brasil. A Lei de Anistia veio para isto: para reconciliar o País. Veio
— vamos dizer aqui com todas as letras —, na verdade, num momento em que era
um gesto de vencedores, porque realmente não havia oposição política com poder
suficiente para impor uma lei de anistia naquela ocasião. Era um gesto de
vencedores que tiveram, no entanto, descortino e perceberam que a situação de
exceção não poderia mais continuar, já não tinha mais espaço. E é uma boa lei
porque promove o esquecimento, em termos jurídicos, dos atos de força praticados
por ambos os lados em um momento de guerra interna mesmo. A Constituição
Cidadã de 1988 determina, em seu art. 5º, que a lei considerará inafiançáveis e
imprescritíveis determinados crimes. Essa lei, de certa forma, reflete o espírito da Lei
de Anistia, ou melhor dizendo, esse dispositivo constitucional reflete o espírito da Lei
de Anistia, pois diz, com toda a clareza, que os crimes imprescritíveis e insuscetíveis
de anistia, de graça ou de indulto são estes dois: o de tortura, de que tanto se fala
por um lado, e o de terrorismo, por outro, que, na verdade, foi o mecanismo, a forma
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utilizada como elemento de combate pelas organizações que se dispuseram à luta
armada naquele período de exceção da história do Brasil. Muito bem. É uma
disposição sábia da Constituição.
Quando se levantam debates a respeito de invalidar a Lei de Anistia, tudo isso
é muito perigoso, porque, se se invalida a Lei de Anistia... Não se pode em absoluto,
Sra. Presidenta, ilustres membros da Mesa, senhores presentes, encarar essa
tentativa de revogação por um lado só, não. Se imaginássemos que o Direito Penal,
ou a tipificação, pudesse retroagir, embora não houvesse a tipificação desses crimes
naquela ocasião, fazendo virar no túmulo o Marquês de Beccaria, teríamos de
admitir que esse retorno se daria não somente àqueles que são acusados de tortura,
não somente àqueles que combateram por uma certa legalidade, mas também
àqueles que explodiram uma bomba no Aeroporto de Guararapes matando pessoas
inocentes, àqueles que explodiram uma bomba no Consulado dos Estados Unidos
em São Paulo arrancando a perna de um circunstante inocente, pessoa que paga
por isso até hoje sem ter nada a ver com a história; enfim, àqueles que praticaram
tantos outros atos, evidentemente de terrorismo, aos quais assisti ainda na tenra
juventude na Mooca, no restaurante Varela, como o frio assassinato de um
comerciante apenas suspeito de colaborar com as chamadas forças de repressão.
Minha palavra é pela reconciliação nacional; minha palavra é por curar as
feridas. Compreendo perfeitamente a posição das pessoas que expressam essa
posição contrária; e mais, que eram dignos de consideração aqueles que, por não
concordarem com determinada posição política, até pegaram em armas contra ela.
Respeito essas pessoas que tiveram essa opção tão extrema, mas sou pela
reconciliação.
Acredito, Sra. Presidenta, que esta Casa não deve aceitar teses revisionistas
em relação à Lei da Anistia. A Lei da Anistia foi uma boa lei, o dispositivo
constitucional posterior que abraça o conceito da Lei de Anistia foi correto,
pertinente, perfeito para o futuro do País, um futuro de reconciliação.
Vamos nos reconciliar! É isso que o nosso Brasil espera e aguarda para as
futuras gerações.
Muito obrigado, mais uma vez, pela indulgência e pela atenção de V.Exa.
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A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emilia Fernandes) - Obrigada, Deputado
Paes de Lira.
De imediato, encaminho os trabalhos para o encerramento, passando a
palavra ao Dr. Paulo Abrão, Presidente da Comissão de Anistia, do Ministério da
Justiça, e, logo em seguida, ao Sr. Antônio Modesto da Silveira, ex-Deputado
Federal.
O SR. PAULO ABRÃO PIRES JÚNIOR - Agradeço pelo convite para
participar deste debate. Penso mesmo que o debate é muito saudável e deve
ocorrer; o que não pode ocorrer é qualquer tentativa de calá-lo. Então, faz bem à
sociedade resgatar pontos de vista divergentes. Há pouco tempo, sequer podíamos
discutir este assunto, mas hoje o estamos discutindo abertamente, dentro da Casa
do povo brasileiro, na sociedade. Isso é muito bom.
Realmente, sentia a falta de alguém compondo nossa Mesa com visão
diferente da nossa, para expô-la. Por isso, achei bom que o Deputado tenha
chegado ao final para trazer essa visão, embora seja uma pena que isso só ocorreu
ao final, pois estávamos discutindo exatamente isso. Pelo menos, no meu ponto de
vista, como no do Deputado Modesto e do Prof. Fábio Comparato, é a liderança
jurídica que tem levado este debate adiante. E eu tenho o dever de cumprir a missão
institucional que me deu esta Casa e o Estado brasileiro de cuidar da preservação
da memória e da reparação aos perseguidos políticos.
Debatemos aqui, e, talvez, numa próxima oportunidade, possamos discutir
mais a respeito. Ninguém aqui propôs a revisão da lei; muito pelo contrário,
discutimos exatamente a importância da Lei de Anistia de 1979 para o País. Ela
permitiu a volta dos exilados, permitiu a soltura dos presos políticos, permitiu o
primeiro passo do distensionamento, com vistas à redemocratização,
posteriormente. Então, o grande valor da Lei de Anistia é que ela reconhece a
necessidade, o dever de perdão àqueles que exerceram o legítimo direito de
resistência.
Então, o que a Ordem dos Advogados do Brasil discute hoje no Supremo
Tribunal é a adequada interpretação da lei, não sua revisão. Logo, não se trata de
uma tese revisionista. Segundo os princípios de “reconciliação, sim, mas sem
esquecimento”, não é possível pedir que pessoas que foram torturadas e que todos
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os episódios, inclusive os episódios de resistência do povo brasileiro contra a tirania
ditatorial, não venham à tona, não possam ser contados, não possam ser objeto de
estudo pelos nossos historiadores, não possam ser tema de debates políticos na
Casa do povo, na sociedade civil. E, segundo o princípio de “reconciliação, sim, mas
sem esquecimento”, as feridas só podem ser fechadas no dia em que forem
efetivamente lavadas e curadas; não podemos impor fechamento de feridas, porque
elas não cicatrizam se não forem tratadas devidamente, adequadamente.
Não quero acreditar que neste auditório, neste momento, em plena
democracia, 30 anos depois, esteja ocorrendo no nosso Brasil uma situação de
supervisão do debate público, de anotação de posições. (Risos.) Não quero
acreditar, por exemplo, que hoje eu seja fichado por organismos nem oficiais nem
inoficiais. (Risos.) Realmente, não acredito que isso esteja acontecendo neste
momento. O que estou dizendo é que não acho que esteja acontecendo isso neste
momento. Talvez, estejam anotando fundamentações para o debate público. Quero
acreditar que seja isso mesmo, até porque, meus amigos, tenho dito em todas as
palestras que faço sobre o tema (e tenho debatido sempre diante da divergência de
outros juristas que pensam diferente) que represento o Estado brasileiro. A
Comissão de Anistia não implementa política de governo. Ou seja, não estamos
implementando uma política de governo; implementamos uma política de Estado. É
dever do Estado a reparação, é dever do Estado guardar a memória. Então, cumpro
uma função de Estado.
O que temos dito em todos os nossos debates, de forma muito franca, é que,
em nenhuma hipótese, colocamos em questionamento a importância, a relevância e
a honra da instituição Forças Armadas. Não estamos discutindo isso. Nosso debate,
inclusive, é sobre a responsabilização de agentes torturadores, de pessoas que
deturparam a própria filosofia do regime. (Palmas.) O regime não permitia a prática
da tortura, e essas pessoas deturparam os próprios princípios do regime. São esses
agentes que mancharam a imagem das Forças Armadas. Alguns tentam amparar-se
dizendo assim: “Vocês estão atacando as Forças Armadas”. Essas pessoas estão
querendo se proteger pelo grande valor que as Forças Armadas têm para a
democracia, para o Estado e para as instituições brasileiras, como que para encobrir
os atos individuais desonestos, antiéticos e ilícitos que cometeram.
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Não podemos correr, em nenhuma hipótese, o risco de dizer que este é um
debate com as Forças Armadas, até porque quero dizer aqui, e de forma muito
explícita, já que isso é transmitido, que quem tem levado a Comissão de Anistia ao
Araguaia para colher os depoimentos dos moradores daquela região, antes desse
atual processo de busca dos corpos para elucidação da verdade, é um avião da
FAB. Nós solicitamos e ele nos leva. É um avião da FAB que está levando o corpo
de Bergson Gurjão, que finalmente foi identificado na ossada que estava na
Secretaria de Direitos Humanos. Vamos devolver os restos mortais à família para
que sejam dignamente enterrados, segundo o histórico direito ao luto, o direito da
mãe de enterrar o corpo de um filho desaparecido pela ação e por responsabilidade
do Estado. Quem está hoje realizando a busca e a localização dos mortos e
desaparecidos no Araguaia, apesar de ter o entendimento jurídico de que a
competência legal disso deveria ser da Comissão de Mortos e Desaparecidos, e
quem tinha de estar à frente desse processo, seria a Secretaria de Direitos
Humanos, não as Forças Armadas, em cumprimento de uma decisão judicial.
Então, não vamos confundir a instituição com as pessoas que se desviaram
dos princípios da instituição ou que a usaram para impor a força um modelo e uma
ideologia de poder.
Para nós, afirmo de modo muito claro, nesse debate em relação a
torturadores, que não foram só militares, foram também civis, pessoas do mais baixo
nível de integridade que têm capacidade de instrumentalizar o poder para ferir a
dignidade de uma outra pessoa. Vista assim, a tortura não pode ser, em nenhuma
hipótese, anistiada, não pode ser tida, em nenhuma hipótese, como um crime
prescritível. Para nós, esta é uma questão de princípio, não uma questão ideológica.
Se o Brasil tivesse vivido uma ditadura de esquerda e se essa ditadura de
esquerda tivesse torturado nos porões, estuprado, promovido atrocidades contra a
humanidade, nós estaríamos aqui hoje defendendo a responsabilização dos agentes
torturadores dessa ditadura de esquerda. Porque para nós essa não é uma questão
ideológica; é uma questão de princípio no Estado de Direito, na democracia, com os
valores da liberdade.
Então, que isso fique muito bem assentado, para que não haja um falso
tensionamento ideológico na sociedade brasileira. Isso não seria produtivo em nosso
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debate. Estamos aqui assentando uma questão de princípio para o futuro, para a
não repetição, para que não ocorram novos golpes militares, para que não ocorram
golpes de grupos de esquerda extrema, que também têm visão autoritária do
mundo. É isso que estamos sinalizando para frente.
Hoje, pelo Direito brasileiro, torturadores velhinhos — já devem estar com
idade avançada — não serão presos. O Direito brasileiro já não permite a prisão de
quem tem determinada idade. A questão é sobre a simbologia da condenação; é a
simbologia de que o Estado Democrático de Direito, hoje, efetivamente, diz, em alto
e bom tom, que, segundo a jurisprudência brasileira, não importa qual seja o
momento de ruptura, crimes contra a humanidade serão apurados. É uma medida
de inibição a novos rompantes autoritários no futuro, é um compromisso com os
valores da democracia.
Para mim, sinceramente, a decisão que o Supremo Tribunal Federal tomará
será histórica, talvez uma das mais importantes decisões a que já chegou o Tribunal
constitucional brasileiro pós-redemocratização, porque envolve os princípios da
liberdade, da democracia e de valorização dos direitos humanos.
Muito obrigado. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emília Fernandes) - Muito obrigada, Dr.
Paulo Abrão. Agrademos a V.Sa. a participação, a atenção ao nosso convite. Tenho
certeza de que este debate será retomado no dia a dia do Congresso Nacional, bem
como pela sociedade brasileira, exatamente para verificarmos quais são as ideias,
quais são os valores colocados sobre o tema.
Sempre reafirmo, sem nenhum tipo de sentimento negativo, que temos de
projetar nossa energia, nosso sofrimento e nossos pensamentos para que os direitos
avancem.
Muito obrigada, mais uma vez, pela sua qualificada participação neste painel.
Concedo a palavra ao Sr. Antônio Modesto da Silveira, ex-Deputado Federal,
defensor e encaminhador da Lei de Anistia, para suas considerações finais.
O SR. ANTÔNIO MODESTO DA SILVEIRA - Sra. Presidenta, agradeço a
V.Exa. a gentileza e a atenção.
Sinto impulso de comentar sobre o que disse cada um dos interventores. O
Jarbas fez considerações que merecem um verdadeiro estudo. Ele, de alguma forma
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— só farei um breve comentário —, chama a atenção para uma coisa que apelida de
ternuma, que significa ‘terrorismo, nunca mais!’.
Nessas reuniões abertas e democráticas, e não só no Congresso, mas em
geral, como dizem as vítimas do período, às vezes são reconhecidos aqueles que a
Deputada Bete Mendes reconheceu lá no Uruguai. Até pelo posicionamento, alguns
fotógrafos devem ter registrado esses fatos, quase sempre na posição de ver e
nunca ser visto. A maioria dessas reuniões democráticas são registradas e gravadas
por determinados agentes, seja do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, da Polícia
Militar ou da Polícia Civil. E, muitas vezes, as coisas se repetem lá no ternuma,
como diz o Jarbas.
Aqui, não sei, porque não conheço as pessoas. Mas há locais nos quais
alguns amigos dizem assim: “Olha lá o torturador fulano! Eles bobearam e
mandaram um cara conhecido para nos espionar.”
Isso é muito comum por aí. Espero que não haja repetições de outras Betes
Mendes e de Brilhantes Ustras, como no Uruguai. Mas, de qualquer maneira, o
enfoque dele foi brilhante, sem ser ‘Ustra’.
Logo em seguida, o Cerezo fez uma colocação política da maior qualidade.
Eu gostaria até de vê-lo e ouvi-lo mais. Ele é muito ponderado, objetivo e nos ajudou
muito nessa análise toda, sobretudo quando nos chama a atenção à realidade
histórica, e até para o caso de Honduras, para que esse país não repita diante de
seus vizinhos, através do ‘grande império’, o triste papel do Brasil como primeira
pedra de um longo dominó de ditaduras, torturas e assassinatos! (Muito bem!
Palmas.)
Acho isso muito relevante, até porque o perdão com reconciliação, sim, para
crimes políticos. Muitos dos que estavam no poder só praticaram delitos políticos e
devem ser, por isso mesmo, também reconciliados.
Agora, eu pergunto a uma das nossas consciências. O Prof. Comparato disse
que sua cliente foi usada, sofreu toda sorte de humilhação e estupro, e isso não está
em nenhuma legislação, nem na do Hitler! Quando, em Nurembergue, jogavam tudo
para cima de Hitler, tentando escapar, o mundo não perdoou! Por quê? Porque
aquilo era uma decisão pessoal. Por isso até o Brasil, reconhecendo a
imprescritibilidade de determinados atos contra a humanidade, reconheceu e
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devolveu. Outras pessoas foram sequestradas por agentes de países diferentes
para responderem por um delito imprescritível cometido em países que adotaram,
como método de governo e massacre, o nazi-fascismo. Nós também o praticamos,
aqui e em outros países vizinhos, como um triste dominó, para o qual o Brasil foi
utilizado.
Quando ele colocou a questão de Honduras, é para que Honduras não seja
um minibrasil de amanhã. E quando o mundo foi buscar os torturadores de crimes
inafiançáveis e não anistiáveis, foi como modelo e exemplo daquilo que o professor
reclamava, isto é, uma lição de ética e moral para a história futura.
É preciso que todos saibam que crime de estupro, tudo que se disse aqui...
Mas nem tudo, como disse um dos interpeladores, foi terrorismo. O que é
terrorismo? Quem praticou o terrorismo? Esse terrorismo de Estado que provocou,
inicialmente, reações, às vezes, excessivas em alguns lugares? Mas o terrorismo foi
implantado como instituição de Estado, e alguns dos executores estão sendo
mencionados aqui. E quem praticou o terrorismo? Até um Ministro, insuspeito, do
STM, disse que constatou, num curto período de pouco mais de 1 ano, 38 atos de
terrorismo, até oficiosos. E eu me lembro, então eu era Deputado: quantas bancas
de jornais foram explodidas pelo simples fato de exibirem um jornal que não era do
agrado da ditadura! E as bombas que explodiram em casas de pessoas não por uma
razão política, mas por ato de terrorismo puro! Esses atos de terrorismo foram
praticados pelos terroristas oficiosos e, às vezes, até oficiais, como confessam por
aí, aqui e ali — sei lá!
Olha, tenho aqui um livro que já foi mencionado: Sem Vestígios, de autoria de
uma moça, uma autora absolutamente insuspeita que até já esteve aqui depondo.
Ela disse: “Eu sou filha de um militar que era instrutor dos militares que participaram
desse período — não digo negro em respeito à cor — sangrento. Ela diz — está aqui
— coisas que não é possível admitir, como sequestro. É o sequestro crime político?
Nunca! Sequestro é crime comum! Eu fui sequestrado pela ousadia de ser
advogado, como o foram Sobral Pinto, Heleno Fragoso, Evaristo de Moraes, George
Tavares, Vivaldo Vasconcellos e tantos outros do Sul ao Norte do País. Isso é
terrorismo! Isso não é crime comum! E uma série de crimes comuns aterrorizam o
País.
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O Fábio disse o que eu também passei. Quando ele diz que aquela moça que
sofreu tudo isso e mais, que ele não quis dizer... Eu tive alguns assim também,
como, por exemplo, a Dilma Alves, viúva de Mário Alves, que morreu sangrando lá
dentro do DOI-CODI para onde me levaram também. Ele morreu sangrando até com
raspadura de animal — como é que se chama aquele negócio que raspa cavalo? Ele
morreu sangrando, como inúmeras vítimas, pelo fato de ter sido um militante
comunista, um jornalista de alto nível, mas militante comunista.
Ela também disse: “Eu não quero receber uma indenização sangrando na
minha mão. Eu não quero entrar sequer com um pedido de anistia.” Se todas as
vítimas diretas e indiretas entrassem com isso, o Dr. Paulo Abrão estaria soterrado
sob uma montanha de pedidos. No entanto, só há pouco mais de 60 mil. E eu ouso
dizer: as vítimas não foram 60 mil. E eu disse isso a um general em debate. Ele
falava: “Não houve 300”. Eu disse a ele: “O senhor tem razão; não eram 300, não;
eram 3 mi. Nem eram 30 mil, sequer 300 mil. Se quiser, fazemos uma aritmética
simples, que eu sei fazer aqui agora, para verificar que o número foi muito superior a
meio milhão de pessoas vítimas diretas e indiretas”. A maioria já morreu, é claro.
Outros não querem, como a Dilma ou essa moça de São Paulo; não querem sujar as
mãos com a lembrança de um sangue passado.
A Rosa falou dos espiões, e nós temos constatado a presença deles em
quase todas as reuniões. Se eles abrissem as deles, iríamos também — por que
não? Acho até que é conveniente convidar alguns a essas sessões para que eles
ouçam e, depois de ouvirem, deem suas opiniões ou contestem as nossas
informações. Feito isso, a gente vê quem realmente merece ou não merece existir,
porque, como se diz lá, pretendendo-se excluir os chamados subversivos, no fundo
acabaram excluindo a si mesmos. Eles praticaram atos terroristas, eles assaltaram...
Uma cliente de São Paulo, uma engenheira, teve a casa assaltada por oficiais
enriquecidos com alguns policiais. Como um deles estava montando casa, esse
resolveu levar tudo no caminhão em que vinham. Chegaram até a desmontar a
instalação elétrica, porque ela seria necessária na casa dos
sequestradores/torturadores. Isso é crime político?! São ladrões comuns! São
violadores da lei. Essa lei não permite sequestro. Houve represália a sequestros...
Sequestros... Houve alguns, é verdade. Os embaixadores, sobretudo aqueles que
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colaboraram com a ditadura, alguns deles foram sequestrados, sim; mas não
sofreram um tapa, um arranhão, e saíram de lá defendendo os torturadores como
homens que respeitam os direitos humanos. E disseram que os trataram muito bem
e que alegaram fatos que eles reconheciam como verdadeiros. Eu cheguei a ouvir
sobre o caso do Bucher, se não me engano, da Suíça, a seguinte opinião: “Esse
cara é um homossexual que merece morrer”. Eu ouvi isso da parte de algumas
pessoas em auditoria dentro da Justiça, porque o homem era tênue, e na sua
tenuidade reconheceu e publicou depois — por isso foi mandado embora — que ele
foi muito bem tratado por pessoas que alegaram questões verdadeiras do
nazi-fascismo brasileiro.
Sequestro. Quem cometeu sequestro? Só esses poucos, pouquíssimos, mas
que respeitaram a pessoa humana, e como forma de reação para salvar aqueles
que estavam marcados para morrer — e que morreriam caso não tivesse havido tal
assalto preventivo para salvar vidas. Respeitaram a pessoa humana, respeitaram-na
em tudo. Não houve um que tenha alegado ter sido maltratado.
E o meu sequestro? E o sequestro dos advogados, quase todos do Rio de
Janeiro? E o sequestro do Sobral Pinto, homem de quase 80 anos? E os de Heleno
Fragoso, Vivaldo Vasconcellos, George Tavares, Evaristo de Moraes e tantos
outros? foram sequestros legais? Prisão tem forma? Se alguém apresenta um
mandado de prisão assinado por uma autoridade competente, por um juiz, tudo bem;
você tem que ir. Mas, se ele vem no fim de semana, como o meu, que veio de
madrugada à minha casa para me levar à força pela minha ousadia de defender
político... Porque isso nunca foi crime político em lugar nenhum do mundo, nem na
Alemanha de Hitler. Mas aqui foi.
Atentado pessoal. Não havia nem atentado pessoal. Havia eliminação liminar
de pessoas que eram consideradas opositoras ao poder.
Vai seguindo, seguindo, e há vontade de falar muito mais, mas tenho de
finalizar. Não posso abusar.
Paulo Abrão fez uma magnífica apresentação dessa realidade político-jurídica
do Brasil tanto quanto o fez o professor que acabou de sair.
Agora, todos queremos a reconciliação, sim. São muitos, talvez a maioria.
Aliás, é bom lembrar que a maioria não é de militares ou policiais torturadores. Ao
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contrário, a maioria é de militares e policiais torturados. Quero repetir aqui, caso
alguém não tenha ouvido, que nós temos acesso a listas de poucas centenas de
torturadores assassinos sistemáticos, às vezes estimulados ou apoiados aqui e ali.
As vítimas, inclusive militares, se contam às centenas. Se as Forças Armadas e o
Governo brasileiro optarem por essa minoria torturadora, ainda que alegando
reconciliação, e ficarem do lado dessa minoria, contra a grande maioria de oficiais
do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, da PM etc., então estarão escolhendo o
lado errado da história, o lado errado da educação para o futuro. Se ficarem assim,
esses mesmos “brilhantes” sequestradores e torturadores seguramente tentarão de
novo. Porque, às vezes, nos mandam mensagens com ameaças — discretas
algumas, ousadas outras — para o futuro: comportem-se bem e reconheçam que
sou tão bom quanto todo o mundo, ou então o País pode sofrer.
Que tentem e até consigam, mas não é possível que democratas, pessoas de
bem, que têm sensibilidade humana permitam de qualquer modo que se faça o
ensinamento do golpe, da violação aos direitos humanos, da violação à vida e todo o
elenco do art. 5º da Constituição, ao qual todos estamos sujeitos: respeito à vida, à
segurança, à liberdade, à igualdade, e tudo mais, até à propriedade, num nível em
que ela não violente a igualdade e os direitos humanos com dignidade.
Se pensarmos assim, sei que haverá muito poucos a serem condenados
dentre aqueles que nos torturaram e mataram, mas haverá muitos mais daqueles
que, dignos que eram, denunciaram e até renunciaram a certos cargos por não
concordarem com tudo isso que sabemos e dissemos aqui.
Por outro lado, mesmo do ponto de vista técnico, o Paulo Abrão e o Prof.
Konder Comparato mostraram que aqueles legisladores da Lei de Anistia, a qual
estamos discutindo — e até gostei de constatar isso no Congresso —, nem sabem o
que é crime conexo. E tentaram conectar alhos com bugalhos, tentando, na verdade,
serem eles os beneficiados, botando uma questão técnico-jurídica que eles não
conheciam, não sabiam, não entendiam, nem sequer do ponto de vista doutrinário,
nem de interpretação jurisprudencial, nem nada!
Então, acho assim: posso admitir que aquele meu sequestrador tinha o direito
de me sequestrar de madrugada da minha casa. Aquele não, porque aquele era um
grupo grande. E daí se desdobram muitas outras informações.
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Esse é um problema que temos para nós agora, para os nossos filhos, netos
e bisnetos dos nossos netos. É uma questão difícil. E isso não dá para reconciliar ao
contrário, na medida em que você perdoa o assassino, dá a ele uma anistia prévia,
geral e irrestrita pelo passado, presente e futuro, como foi essa lei que deu para o
futuro. E o que aconteceu? Eles ficaram anistiados pelo Rio-Centro, pelos 38 — só
em Brasília! — crimes de terrorismo oficioso aqui em Brasília; se falarmos no Brasil
todo serão centenas ou milhares.
Essa é uma questão de vida ou morte.
Nós, nem tanto. Eu, por exemplo, não tenho problema. Sou um octogenário,
não tenho problema. Se eu morrer amanhã terei morrido com uma longevidade
maior que a do povo brasileiro, que tem 70 anos como média de longevidade, que já
foi de 30 anos em outros tempos. Hoje ainda é de 30 anos na África pobre, enquanto
é de 80 para 90 anos nos países ricos. Mas esse é outro debate, é outra discussão
que estimulamos.
Mas — perdão pelo tempo excessivo — temos que repensar essa questão, o
que vai ser bom para a história futura deste País e até para as gerações atuais.
Todo governo não gosta de problemas, prefere reconciliar. Mas tem que haver a
inteligência desta Comissão, que procura não misturar alhos com bugalhos, para
não perdoar aqueles que quase sistematicamente praticaram crimes comuns, nunca
políticos. Quero que sejam anistiados aqueles, como eu vi alguns militares e policiais
de quem recebia às vezes informações do DOI-CODI, da Polícia Federal, da Polícia
Militar, da Polícia Civil. Eram informações dizendo: “Olha, aqui está um cara, fulano
de tal, que está sendo massacrado; se o senhor não correr ele vai morrer”. Isso
significa o quê? Que de dentro do DOI-CODI, de dentro da Polícia Federal e das
polícias militares havia gente de bem, que talvez tenha feito alguma “prisãozinha”
ilegal por ordem escrita... E eu dizia: ordem escrita de autoridade competente,
porque, se ela não for evidentemente ilegal, você pode fazer; agora, se ela for ilegal,
descumpra a ordem do general, descumpra a ordem do Presidente da República,
ainda que por escrito, se ela for evidentemente ilegal.
Mas a gente quase não conhece, senão aos dedos, aqueles que se
recusaram a praticar atos ilegais, sobretudo esses atos hediondos que as ditaduras
gostam de praticar.
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Obrigado, e desculpem-me. (Palmas.)
A SRA. PRESIDENTA (Deputada Emília Fernandes) - Muito obrigada, Dr.
Modesto da Silveira.
Queremos, em nome dos integrantes da Comissão de Direitos Humanos e
Minorias e da nossa Comissão de Participação Legislativa da Câmara dos
Deputados, agradecer as pessoas que nos honraram compondo esta Mesa de
palestras e também a todos que aqui participaram e nos assistiram.
Cada vez mais temos a consciência que este tema é desafiador, é uma pauta
não apenas do Brasil, mas mundial, um debate que é do presente. Portanto todos
nós, homens e mulheres, temos a responsabilidade de enfrentá-lo e fazer com que,
cada vez mais, a verdade, a liberdade e a democracia estejam sempre presentes na
pauta deste nosso amado Brasil.
Está encerrada a reunião. Muito obrigada! (Palmas.)