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DEMOCRACIA E PODER LOCAL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CASO DE CAMPOS DOS GOYTACAZES DAURO SANTOS FRANCO UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO - UENF CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ SETEMBRO – 2006

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DEMOCRACIA E PODER LOCAL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

SOBRE O CASO DE CAMPOS DOS GOYTACAZES

DAURO SANTOS FRANCO

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE

DARCY RIBEIRO - UENF CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ

SETEMBRO – 2006

DEMOCRACIA E PODER LOCAL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

SOBRE O CASO DE CAMPOS DOS GOYTACAZES

DAURO SANTOS FRANCO

Dissertação apresentada ao Centro de

Ciências do Homem da Universidade

Estadual do Norte Fluminense Darcy

Ribeiro, como parte das exigências para a

obtenção de título de Mestre em Políticas

Sociais.

Orientadora: Profª Drª: Sonia Martins de Almeida Nogueira

CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ

SETEMBRO - 2006

DEMOCRACIA E PODER LOCAL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

SOBRE O CASO DE CAMPOS DOS GOYTACAZES

DAURO SANTOS FRANCO

Dissertação apresentada ao Centro de

Ciências do Homem da Universidade

Estadual do Norte Fluminense Darcy

Ribeiro, como parte das exigências para a

obtenção de título de Mestre em Políticas

Sociais.

Aprovada em 27/ 09/ 2006

Comissão Examinadora: Prof. Ailton Mota de Carvalho – UENF/Doutor em Ciências Sociais e em Sociologia pela FLACSO/UNB Prof. Ângelo Mario do Prado Pessanha – UFF/Doutor em Educação pela UFRJ Prof. Adélia Maria Miglievich Ribeiro – UENF/Doutora em Sociologia e Antropologia/UFRJ Profª Sonia Martins de Almeida Nogueira - UENF/Doutora em Educação pela UFRJ – Orientadora

ii

Para Júlia, Pedro e Carlos

com amor e esperança no futuro

iii

Agradecimentos

Primeiramente agradeço a minha orientadora Prof.ª Sonia Nogueira pela

paciência e pelo carinho com que me acolheu num momento difícil.

Otávio Cordeiro e Manuela foram incansáveis no apoio logístico sem o

qual este trabalho não seria possível. Fica aqui meu muito obrigado.

Obrigado ao Freitas, a Catherine e Paulo Emílio pela amizade que fez

tudo ficar mais fácil e agradável.

Aos professores do CCH que fizeram das suas aulas um espaço de

discussão e estímulo à pesquisa.

Meus entrevistados com solicitude e interesse me prestaram valiosos

esclarecimentos. Obrigado Fernando Leite, Jorge Renato Pereira Pinto e

Wilson Paes.

Agradeço a Beatriz por ter me dado no dia da minha pré-banca uma

medalha do Bom Menino Jesus de Praga que muito me ajudou.

Obrigado a Júlia, Pedro e Carlos que sentiram mas compreenderam as

eventuais ausências do pai. Em boa parte este trabalho foi feito por causa

deles.

iv

Sumário Introdução ------------------------------------------------------------------------------------ p.1 1 – Democracia e poder local: A construção do regime democrático p.8 2 – A ultrapassagem da política oligárquica ------------------------------------ p.22

2.1 – O Rural e o Urbano ----------------------------------------------------------------- p.22

2.2 – A aristocracia campista ------------------------------------------------------------ p.31

2.3 – As eleições de 1988 em Campos ----------------------------------------------- p.43

3 – O clientelismo moderno ----------------------------------------------------------- p.53 3.1 – O clientelismo impessoal --------------------------------------------------------- p.53

3.2 – A compra de votos ----------------------------------------------------------------- p.61

3.3 – O clientelismo personalizado ---------------------------------------------------- p.63

4 – Considerações Finais -------------------------------------------------------------- p.72 Referências Bibliográficas ------------------------------------------------------------ p.75 Anexos --------------------------------------------------------------------------------------- p.81

v

Lista de Tabelas Tabela 1 – População de Município de Campos dos Goytacazes de 1950 a

1995 - f. 28

Tabela 2 – Resultados das eleições municipais de 1988 em Campos dos

Goytacazes – f. 43

Tabela 3 – Compra de votos em dois bairros de Campos dos Goytacazes – f.

61

Tabela 4 – Nomeações para os cargos em DAS da Administração Pública

Municipal – f. 69

Tabela 5 – Resultado das eleições municipais de 1996 em Campos dos

Goytacazes – f. 70

vi

Lista de Quadros Quadro 1 – Empregados públicos por nível de governo, Brasil x EUA – f. 13

Quadro 2 – Profissões dos Prefeitos de Campos dos Goytacazes – f. 45

vii

Lista de Ilustrações Foto 1 – Duque de Windsor

Foto 2 – Família Pereira Pinto

viii

Lista de Entrevistados

Barbosa Lemos

Fernando Leite

Hélio Coelho

Hélvio Santafé

João Oliveira

Jorge Renato Pereira Pinto

Leda Aquino

Severino Veloso

Wilson Paes

ix

Resumo

Este estudo aborda as relações entre democracia e poder local no

Brasil, tomando como exemplo deste último o Município de Campos dos

Goytacazes. Constata que a construção de instituições democráticas na

sociedade brasileira tem como necessária a superação de algumas

características do exercício do poder local: o mandonismo, o coronelismo, a

dominação oligárquica. Constata ainda que esta superação foi feita no

município, mas o que resultou dela foi uma política amplamente assentada em

bases clientelistas. Não mais o clientelismo personalizado do passado, mas um

clientelismo, em sua maior parte, moderno, impessoal. Tal clientelismo,

entretanto, tem um peculiar caráter de classe. Ele é impessoal quando a

clientela são as camadas populares e personalizado quando a clientela é a

classe média.

x

Abstract

This study approaches the relations between democracy and local power

in Brazil, taking as example of the last one the city of Campos de Goytacazes. It

evidences that the construction of democratic institutions in the Brazilian society

takes as necessary the overcoming of some characteristics of local power

practice: the mandonismo, the coronelismo, the oligarchical domination. It also

evidences that this overcoming was made in that city, but its result was a

politics widely based on clientelismo. No more the personalized clientelismo of

the past, but a clientelismo, in its greater part, modern and impersonal. Such

clientelismo, however, has a peculiar character of social class. It is impersonal

when the clientele are popular categories and it is personal when the clientele

are the middle class.

xi

1

Introdução

Considerando a definição de democracia adotada neste estudo e

segundo o pensamento de vários autores, Carvalho (2001); Huntington (1991);

Nicolau (1996); Soares (2001), a vida política brasileira conheceu dois períodos

democráticos: um que vai de 1945 a 1964, marcado por muita instabilidade e

que foi interrompido por um golpe militar, outro que se iniciou com a derrota

dos militares no colégio eleitoral em 1985 e vem até os dias atuais.

A existência de eleições regulares e livres é o foco central do conceito

de democracia utilizado nesta pesquisa. Sendo assim, não há como falar de

democracia no Brasil antes da eleição do General Dutra, em 1945. Getúlio

Vargas, seu antecessor chegou ao poder pela força das armas. Governou o

país por quinze anos, sete dos quais de forma ditatorial.

Na República Velha, não havia eleições livres, pois os eleitores, em sua

maioria habitantes das áreas rurais, eram facilmente controlados pelos chefes

locais. Outrossim, era comum a fraude no processo de apuração de votos. O

que caracterizou politicamente a Primeira República, sobretudo depois de

superado um primeiro período de muita turbulência que vai de Deodoro a

Prudente de Moraes, foi um pacto oligárquico que teve em Campos Sales o

seu maior artífice1 e no qual quem detinha o poder na União recebia e dava

apoio aos governadores dos Estados, os quais, por sua vez, mantinham o

mesmo tipo de relacionamento com os “coronéis” nos municípios. A

capacidade do executivo nacional e dos executivos estaduais de controlarem

as eleições era enorme. Isto fica evidente pelo fato de que nas onze eleições

presidenciais só houve disputa efetivamente em duas, exatamente aquelas em

que São Paulo e Minas Gerais ficaram em campos opostos, configurando uma

fissura no pacto oligárquico. Em sete dessas eleições, os candidatos vitoriosos

tiveram uma votação de mais de 84% de votos sobre o total de votantes. Em

1 A esse propósito ver Renato Lessa A Invenção da República no Brasil: Da Aventura à Rotina in Maria Alice Rezende de Carvalho (org) República no Catete. Museu da República. Rio, 2001.

2

seis delas com mais de 91% do total de votantes. Houve eleição em que o

vitorioso obteve mais de 99% destes votos2.

O sistema político do império não era muito diferente. Tratava-se de uma

monarquia constitucional parlamentarista. Havia eleições regulares somente

para o parlamento. Não havia eleições para o governo das províncias: o Poder

Moderador conferia ao monarca a prerrogativa de indicar os presidentes delas.

É bem provável que esta tenha sido a razão pela qual, politicamente, o império

foi mais estável que a Primeira República.

Outra diferença digna de nota em relação à República foi a de que,

levando em conta todo o período imperial, este apresentou maiores índices de

participação popular nas eleições do que aquela. De qualquer forma houve no

império um pacto oligárquico semelhante ao republicano, o que também

permitia ao governo imperial uma grande capacidade de controle das eleições.

Grahan (1997, pp. 113 e 114) ao comentar o clientelismo político no Brasil do

século XIX afirma que:

De 1840 a 1889, Dom Pedro II, sempre aconselhado pelo Conselho de Estado, dissolveu o congresso onze vezes; e sete congressos cumpriram seu mandato completo de quatro anos. Houve, portanto, um total de dezoito eleições nacionais durante seu reinado. Como o Gabinete que supervisionava as eleições podia, pelo uso do clientelismo, conseguir a câmara dos deputados que quisesse, seguia-se que, como comentou ironicamente um político na época, “a melhor e mais pensada atribuição do poder moderador” consistia em “o direito de eleger representantes da nação”. Em 1868, o senador Nabuco de Araújo, então liberal, condenou sucintamente o “silogismo fatal” pelo qual “o poder moderador chama a quem quer para organizar o Ministério; o Ministério faz a eleição; a eleição faz a maioria. Eis aqui o sistema representativo em nosso país”.

Embora adotassem o regime representativo, a República Velha e o

Império não se constituíram como democracias exatamente porque as eleições

que promoviam não eram livres. Esta falta de liberdade era dada muito

2 Os números estão em José Murilo de Carvalho Os Três Povos da República in Maria Alice Rezende de Carvalho (org.) República no Catete. Museu da República. Rio, 2001.

3

fortemente, sobretudo no plano da política local, marcada pelo mandonismo e

pelo coronelismo3.

No Capítulo Dois discute-se justamente esta questão. Procurar-se-á

perceber nele qual o significado do exercício do poder local para a democracia

no Brasil. Fazendo um contraponto com os Estados Unidos, onde o poder local

funcionou como a base sobre a qual se erigiram instituições políticas

democráticas nacionais, foi possível mostrar que, no Brasil, mais do que como

elemento favorável, o poder local funcionou como um obstáculo que o processo

de construção da democracia teria que superar. Era no plano da política local

que as oligarquias mostravam a sua face mais antidemocrática. Uma das

condições, portanto, de construção da democracia estava na ultrapassagem

desta política oligárquica.

No Capítulo Três desloca-se destas questões gerais e se traz a

discussão para o Município de Campos dos Goytacazes. Procurou-se deixar

claro nele como se deu, no município, a superação daquela política oligárquica.

Neste capítulo afirma-se que esta superação definitiva ocorreu no ano de 1988,

quando Anthony Garotinho se elegeu prefeito pela primeira vez. Neste sentido,

a urbanização foi um fator importantíssimo, pois a vida rural favorecia o

domínio oligárquico. No capítulo tenta-se mostrar também a peculiaridade do

processo de urbanização campista. Campos foi um município em que a parcela

de população urbana superou a parcela de população rural muito tarde. Isso

aconteceu em meados dos anos setenta, quando no Brasil isso ocorreu em fins

dos anos cinqüenta. Ademais, o considerável desenvolvimento urbano do

município se deu em torno da pujança de sua economia agrária: produção de

açúcar e agropecuária. Isto permitiu a identificação de traços de mentalidade

rural na cidade, já urbanizado o município. Campos parece ser um exemplo de

área “rurbana”, para usar a expressão de Raymundo Faoro (2001), tal a

influência desta mentalidade. Neste sentido também vão as reflexões de

Mendonça (1997):

3 Os conceitos de mandonismo, coronelismo e clientelismo serão melhor tratados no capítulo dois.

4

Considerando-se a indiscutível preponderância da agricultura na economia e sociedade brasileiras da Primeira República, não é difícil supor o quanto o quadro mental da época balizava-se, direta ou indiretamente, pelos valores e princípios oriundos desse universo. Mesmo os novos agentes sociais, emergentes do progressivo desenvolvimento da divisão social do trabalho decorrente da urbanização e industrialização dos complexos agrários, tinham seus horizontes filtrados pelo dogma da vocação eminentemente agrícola do país (ibid, idem; p. 64).

É por isso que, e aqui está outra afirmação importante, somente em

1988 se fez sentir mais fortemente o impacto eleitoral da urbanização.

Outra variável que teve um peso significativo no resultado das eleições

de 1988, foi a existência de uma aristocracia agrária4 ligada ao açúcar no

município. Toda aristocracia, quer ela queira ou não, tem um comportamento

social muito excludente. Ora, num cenário como o do pleito de 1988, marcado

pela presença das massas urbanas, estar vinculado a este grupo social era,

eleitoralmente, contraproducente. A estratégia bem sucedida do candidato

vitorioso foi de exatamente vincular vários de seus adversários a este

segmento social. Este sucesso se deve ao fato de que havia condições

objetivas para este vínculo: de um lado, a existência do comportamento

aristocrático e, do outro, práticas político eleitorais ainda oligárquicas. A análise

da campanha eleitoral em 1988 permitiu identificá-las.

O que resultou da superação da política tradicional no município é o

tema do Capítulo Quatro. Aqui fica claro que, em grande medida, este trabalho

é um diálogo com Souza (2004) que escreveu Clientelismo e Voto em Campos

dos Goytacazes de cuja leitura brotaram várias idéias que norteiam este

estudo. Um dos méritos, dentre muitos, do trabalho de Souza (ibid) foi ter

mostrado como o clientelismo se modernizou e se impessoalizou em Campos.

Segundo ele,

Passamos de um quadro de dependência pessoal para um quadro de dependência impessoal. (...) A questão é especialmente relevante para esse estudo, cuja intenção é sustentar que o fenômeno da dependência pessoal e as formas como são organizadas, via

4 Aristocracia está relacionada ao comportamento social, isto é, às maneiras de se apresentar em público, de vestir-se, de receber, de praticar esportes, de lidar com o tempo. Será melhor tratada no capítulo três. A palavra oligarquia nos remete ao plano da política.

5

mandonismo e coronelismo, não correspondem à realidade do município de Campos dos Goytacazes (ibid, 2004; p. 12) (...) Trabalhos importantes sobre o clientelismo sustentam que sua forma moderna surge exatamente do recuo da dominação pessoal, que é acompanhada por modernizações da economia, ampliação do número de eleitores, urbanização (ibid, idem; p. 17).

Neste capítulo quatro está o principal objetivo desta pesquisa que é

mostrar como que este moderno clientelismo impessoal, tão convincentemente

explicado por Souza (ibid), tem um caráter de classe. No capítulo se evidencia

o fato de que o antigo clientelismo personalizado das velhas oligarquias foi

substituído por um clientelismo impessoal voltado para o atendimento de

algumas demandas das camadas populares. Nele também aparece outra

afirmação importante, qual seja, a de que ao lado deste clientelismo impessoal

dirigido para as massas, há um clientelismo ainda personalizado para as

camadas médias, que se concretiza nas nomeações para os cargos de Divisão

de Assessoramento Superior (DAS) da administração pública municipal.

Outra questão tratada nesse capítulo é a de que a lógica impessoal

deste moderno clientelismo de massas, levada às suas últimas conseqüências

culmina na compra de votos, fenômeno raro nos tempos da dominação

pessoal.

A revisão de uma literatura clássica no campo da Sociologia Política foi o

que permitiu a percepção do significado do poder local para a construção da

democracia no Brasil.

A observação participante que, segundo Velho (1978)

Insiste na idéia de que para conhecer certas áreas ou dimensões de uma sociedade é necessário um contato, uma vivência durante um período de tempo razoavelmente longo, pois existem aspectos de uma cultura e de uma sociedade que não aparecem à superfície e que exigem um esforço maior, mais detalhado de observação e empatia. (ibid, idem; p. 36 e 37),

possibilitou a percepção da importância do mundo rural na cidade, já iniciados

os anos noventa do século passado. Para o observador atento e que vem de

uma outra experiência de vida urbana, não se torna difícil notar a influência do

mundo rural sobre a vida da cidade. Estas mesmas considerações valem para

6

a questão da aristocracia5. Quem é de fora percebe com facilidade como a

aristocracia rural se tornou um modelo de comportamento, sobretudo para a

classe média, grupo social que atualmente funciona como suporte das práticas

aristocráticas.

O que se quer enfatizar com isto é que, neste ponto, esta pesquisa

partiu da observação empírica para as posteriores reflexões teóricas. Primeiro

foi observada a importância da mentalidade rural na vida da cidade, depois foi

feita a leitura de Maria Isaura Pereira de Queiroz, de Raimundo Faoro, de

Georg Simmel, de Maria Sylvia de Carvalho Franco. Primeiro se percebeu

traços aristocráticos no comportamento da classe média, depois se fez a leitura

de Pierre Bourdieu, de Oliveira Vianna, de Fernando de Azevedo, de Norbert

Elias. É claro que a percepção de traços aristocráticos implica um mínimo de

leitura prévia, mas o aprofundamento teórico foi feito a posteriori.

A análise das eleições de 1988 se fez a partir da cobertura da campanha

eleitoral feita pelo jornal A Folha da Manhã, no período de agosto a novembro

do mesmo ano. Importantes também neste sentido foram as entrevistas com

alguns candidatos que participaram do pleito e com alguns colaboradores que

trabalharam na campanha de Anthony Garotinho. As entrevistas mais

significativas e cujas citações aparecem no corpo da dissertação foram as de

Fernando Leite, membro atuante do grupo que conduziu a campanha de

Anthony Garotinho em 1988 e candidato a vereador na época e que mais tarde

se elegeu Deputado Estadual; de Jorge Renato Pereira Pinto, dono da Usina

de Santa Maria e candidato oficial a prefeito no pleito de 1988; de Wilson Paes,

Prefeito de Campos de 1982 a 1983 e Secretário de Saúde do Prefeito José

Carlos Barbosa, sucedido por Anthony Garotinho. As entrevistas estão em

cassete e foram numeradas de um a três respectivamente.

As considerações sobre a impessoalidade do moderno clientelismo

tiveram como base a observação na cidade da campanha eleitoral para

prefeito, nas eleições de 2004. A cobertura destas mesmas eleições pelos

5 Nasci em Araçuaí, uma pequena cidade de Minas Gerais, na fronteira com a Bahia, região de caatinga e cultura sertaneja, onde inexistiam grupos sociais que se distinguiam mais por um estilo de vida excludente do que pela posse de certos bens.

7

jornais O Globo e A Folha da Manhã permitiram também aquelas

considerações.

Por fim, sobre a compra de votos foi elaborado, com base em uma

pesquisa nacional levada a cabo pela ONG Transparência Brasil, um

questionário aplicado a cinqüenta moradores de um bairro tipicamente de

classe média, o Flamboyant, e a cinqüenta moradores de um bairro tipicamente

popular, a Penha. O questionário tinha por objetivo verificar se houve caráter

de classe na compra de votos. Verificou-se que a tentativa de compra de votos

se deu com a mesma intensidade nos dois bairros. A variável mais importante

não foi a classe, mas a idade, indício da firmeza de uma das afirmações que

orientam este trabalho: a de que existe na política do município um moderno

clientelismo impessoal para as massas e um clientelismo ainda personalizado

para a classe média.

8

1. Democracia e poder local: A construção do regime democrático

“Health” might be desired by all, yet people still disagree on

vaccination and vasectomy.

Joseph A. Schumpeter in Capitalism, Socialism and Democracy

Uma vez que o tema deste estudo é a relação entre poder local e

democracia no Município de Campos dos Goytacazes, torna-se necessário

esclarecer qual o conceito de democracia que orienta este trabalho. Esta

pesquisa é tributária do pensamento de Huntington (1991, p. 7) que definiu

democracia: Seguindo a tradição Schumpeteriana este estudo define um sistema político do século XX como democrático no sentido de que os mais poderosos tomadores de decisões coletivas são escolhidos por meio de reguladas, honestas e periódicas eleições, nas quais os candidatos competem livremente pelos votos e onde virtualmente toda população adulta pode votar. (...) Isso também implica aquela existência das liberdades civil e política de se expressar publicamente, reunir-se e organizar-se que são necessárias ao debate político e à condução das campanhas eleitorais (tradução minha).

Há algumas razões para se adotar uma definição como esta. Em

primeiro lugar ela dá conta da periodização quase unânime entre cientistas

sociais e políticos (Carvalho, 2001; Huntington, 1991; Nicolau, 1996; Soares,

2001), que dividem nossa vida democrática em dois períodos: 1945-1964 e de

1985 aos dias atuais. Uma definição menos formal, mais preocupada com a

substância do regime político, tendo em vista, por exemplo, no caso brasileiro,

a tremenda desigualdade social e o alcance limitado da cidadania, não

classificaria aqueles dois períodos como democráticos e correria o risco de

deixar escapar sua especificidade e suas reveladoras relações com a

sociedade. Além disso, uma definição que desprezasse as formas não poderia

responder a questões como as seguintes: por que as formalidades

democráticas se fizeram presentes exatamente nesses períodos e não em

outros? Por que, se de menor importância, se deram, em torno dessas

formalidades, amplas manifestações populares, conflitos armados, golpe,

9

cassações de direitos políticos? Por outro lado, a adoção desses critérios

formais tem a vantagem de tornar fácil a distinção dos regimes democráticos

daqueles que não o são.

Além dessas razões, digamos, empíricas, há as considerações de

Schumpeter (1975) sobre as dificuldades de se definir a democracia por seus

propósitos ou sua fonte de poder. Criticando as teorias clássicas que

consideravam o método democrático como aquele arranjo institucional para se

chegar a decisões políticas que realizem o bem comum pela própria decisão do

povo através da eleição de indivíduos que se reunirão a fim de realizar a

vontade popular (ibid, p. 250) (tradução minha), Schumpeter argumenta que

essa definição está baseada em entidades abstratas que não existem

concretamente. Como qualquer sociedade é composta por milhares de

indivíduos e vários grupos sociais, ocupando distintos lugares na estrutura

social, é impossível imaginar que se pudesse chegar a um acordo entre eles a

respeito do que seria essa vontade geral. Até no campo do que parece ser

consensual, que deve haver saúde de boa qualidade para todos, por exemplo,

há divergências sobre determinadas questões.

Quanto à vontade geral, deve-se levar em conta que a sociedade é

composta por grupos que, por suas diferentes posições na vida coletiva, têm

interesses e pensamentos divergentes, o que torna muito raro na esfera da

política uma ação que seja a encarnação desta vontade. Neste sentido, o povo

e sua vontade não existem e seria muito difícil operacionalizar empiricamente

um conceito dessa natureza. Além disso, afirma Schumpeter, a vontade do

povo foi, muitas vezes, uma figura invocada por regimes que nada tinham de

democráticos. Como em sociedade, do ponto de vista lógico, não pode haver

nada maior do que a vontade geral, a suposta realização dela justifica tudo,

inclusive, o assassinato. As revoluções francesa e russa talvez tenham sido os

mais eloqüentes exemplos históricos disso. Nas palavras de Schumpeter:

Tanto a vontade geral como o bem comum podem ser, e em muitos exemplos

históricos foram, usados tão bem ou melhor por governos que não podem ser

descritos como democráticos (ibid, p. 258) (tradução minha).

10

Comparar paises e nações, seja de que ponto de vista for, político

cultural ou econômico, requer alguns cuidados. Houve um tempo em que um

bom número de cientistas sociais, principalmente aqueles ligados à Sociologia

do Desenvolvimento, tiveram uma visão etapista do processo de

desenvolvimento econômico. Alimentavam a idéia de que todos os países

percorreriam as mesmas etapas do processo até alcançar a última delas, que

seria, nas palavras de W.W Rostow, a quase “edênica” era do consumo de

massas. Tal concepção etapista se fez presente, tanto entre os conservadores,

dentre os quais, talvez, W.W. Rostow e seu Etapas do Desenvolvimento

Econômico: um Manifesto Não-Comunista (1961), tenha ganhado mais

notoriedade, como também entre os marxistas. Num certo sentido, Marx

também compartilhava dessa idéia, pois percebia o socialismo como sendo o

coroamento, justo e desejado, de uma trajetória que havia se iniciado no modo

de produção comunista primitivo e passado pelo feudalismo e capitalismo.

Alguns marxistas brasileiros, principalmente aqueles que orientaram a

ação do Partido Comunista Brasileiro, incorporaram essa idéia. Viam, na

realidade brasileira, um passado feudalista e um presente capitalista como

possibilidades do socialismo futuro. Caio Prado Jr., por exemplo, dizia que É

claro que, para um marxista, é no socialismo que irá desembocar afinal a

revolução brasileira. (...) Isso, contudo, representa uma previsão histórica, sem

data marcada para acontecer 6. É lugar comum hoje, tendo em vista a falência

do socialismo real, dizer que Marx errou em sua antecipação dos destinos da

humanidade. Mais realistas que o rei, porém, os marxistas brasileiros erraram

quanto ao futuro e quanto ao passado. Erro empírico e metodológico. Nunca

houve feudalismo no Brasil. Não se pode tomar o que aconteceu no centro do

mundo capitalista como modelo para explicar o que ocorre na periferia. A este

respeito, Nunes (1999, p. 24) é esclarecedor:

Seria problemático utilizar a história das sociedades capitalistas industriais como um paradigma para prever o futuro das sociedades capitalista periféricas, não-industriais ou semidesenvolvidas, porque o centro percorreu estágios e patamares específicos a sua própria

6 Apud Maia Gomes, Gustavo in Inteligência ano Vl nº26 Jul/Agos/Set 2004 .

11

história. As combinações, isto é, os conjuntos de relações que ali ocorreram não serão encontrados em outro lugar.

A comparação entre as instituições jurídico políticas, onde estão

situados partidos políticos e Estado e, portanto, o jogo democrático, e a

sociedade, é muito complexa. Tais relações devem ser situadas social e

historicamente para que ganhem poder explicativo. Apesar disso, algumas

generalizações são possíveis a partir do exame de situações concretas.

Este trabalho parte do pressuposto de que as instituições políticas

democráticas só ganham grande solidez se a sociedade oferecer condições

para isso. Os Estados Unidos e a Inglaterra, e não há outro lugar no mundo

onde a democracia tenha demonstrado raízes tão profundas e tanta

estabilidade, são exemplos desta verdade. É possível supor pela leitura de

obras clássicas e contemporâneas sobre o assunto (Tocqueville, s/d; Bellah,

1986; Moore Jr., 1967), que solidez e profundidade tamanhas só se tornaram

possíveis pelas condições que a sociedade civil, nessas duas grandes nações,

ofereceu. É como se o jogo político democrático na Inglaterra e nos Estados

Unidos, e mais nestes do que naquela, fossem quase um reflexo da

estratificação e da ordem de valores presentes na sociedade. Nesses países, a

democracia parece brotar da sociedade civil e penetrar o Estado e as

instituições políticas.

Na América do Norte, as pequenas comunidades locais da época

colonial eram compostas por cidadãos que se concebiam como iguais e que

achavam, inspirados pelos valores éticos e morais do protestantismo, que os

indivíduos tinham que traçar, responsavelmente, sua própria trajetória no

mundo através do trabalho e do esforço pessoais, sem contar com a égide de

um bom nascimento ou com a proteção do Estado. A única proteção que os

colonos americanos tinham para a construção dessa trajetória individual era a

proteção divina. Mas Deus, como sabemos, não estabelece privilégios, e

distribui, igualitariamente, para todos, a sua bondade. Segundo Tocqueville,

essas comunidades eram caracterizadas por um forte associativismo, o que

permitia a discussão e a tomada de decisão por um bom número de

participantes acerca de problemas locais.

12

Mal se pisa o solo da América fica-se preso numa espécie de tumulto. Tudo é movimento à nossa volta: aqui a população de um bairro está reunida para resolver se se deve construir uma igreja; acolá discute-se a escolha de um representante; mais à frente, os deputados de um cantão dirigem-se a toda a pressa para a cidade para darem a sua opinião sobre certos melhoramentos locais. (...) Alguns cidadãos reúnem-se, apenas para declararem que desaprovam a orientação do governo, enquanto outros se juntam apenas para proclamarem que os dirigentes da nação são os pais da pátria (s/d, pp. 93 e 94).

Aron (2002, p. 337), comentando a obra de Tocqueville, faz uma

afirmação no mesmo sentido: Os cidadãos norte-americanos têm o hábito de

resolver os assuntos coletivos a partir do nível do município. São levados,

assim, ao aprendizado do auto governo, no meio limitado que estão em

condições de conhecer pessoalmente, e estendem o mesmo espírito aos

assuntos de Estado. Em outras palavras, o mesmo espírito igualitário e

democrático, característico do poder local, é transferido para instituições

políticas maiores, Estado e partidos políticos, que entendemos ser o caminho

pelo qual se pode chegar ao controle do aparato estatal num regime

democrático. Pode-se dizer, portanto, que, no caso americano, o poder local se

constituiu como a base sobre a qual se construíram instituições democráticas

nacionais. Bellah (op. cit., p. 168), quanto a este ponto, é mais explícito ainda:

[...] em primeiro lugar, o interesse individual leva os residentes em tais comunidades a se envolverem em associações cívicas locais. Mas a experiência de um auto governo local os transforma, dá-lhes o entendimento da responsabilidade pública que transcende o interesse individual e os transforma em cidadãos ordeiros, moderados e auto controlados (tradução minha).

Refletindo sobre a formação da burocracia estatal brasileira, Carvalho

(2003) apresenta dados reveladores da diferença de significado entre a política

local no Brasil e nos Estados Unidos7.

7 Ver quadro na página seguinte

13

Quadro 1

Número de empregados públicos por nível de governo, Brasil X EUA

Brasil 1877 Brasil 1920 Gov Central

5,94 %

24,79 %

69,27 %

11,61 %

32,51 %

55,88 %

Provincial Municipal

EUA 1930

81,35 %

18,65 % Gov Federal Estaduais e Locais Fonte: Manuel Francisco Correia Relatórios e Censos 1872 – 1920

Historical Statistics of the USA, Colonial Times To 1957

14

Segundo o autor, e os números o confirmam, no Brasil havia um

acúmulo de funcionários e atividades administrativas no nível do governo

central, sua reduzida presença no nível provincial e quase ausência no nível

local (op.cit., p. 152). Ora, esta ausência do Estado em nível local é um

indicador muito forte de que as questões locais ficavam entregues ao poder

privado e ao arbítrio dos coronéis e dos mandões, já que não havia condições

sócio-econômicas nem culturais de participação política popular.

Ainda hoje, é possível ver nos Estados Unidos essas pequenas

comunidades agindo e decidindo politicamente. O mesmo Bellah (op. cit., p.

13), em sua detalhada descrição da sociedade americana, nos fala disso:

Dois meses após as celebrações dos duzentos e cinqüenta anos de Suffolk a cidade explodiu num furioso ataque de “chauvinismo” local. A autoridade municipal estava tentando fornecer casas de baixo custo para a população idosa. Para se construir tais casas eram necessários fundos do governo federal. O Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano finalmente ofereceu a Suffolk a quantia de $ 5.000,000 para se construir tais casas, mas foi estipulado que para receber a ajuda , a cidade tinha também que construir um pequeno número de casas baratas para famílias pobres. Muitos cidadãos ficaram temerosos que tais casas fossem ocupadas por negros e cubanos de Boston. Numa reunião local carregada de emocionalismo, rejeitaram a ajuda federal e votaram pelo estabelecimento de procedimentos para remover da administração local quem havia pedido a ajuda (tradução minha).

Benevides (2003, pp. 92 e 93) em artigo em que discute, entre outras

coisas, a relação entre democracia e meios de comunicação de massas nos

dias atuais, se refere assim aos Estados Unidos:

Nos Estados Unidos certos referendos sobre projetos municipais são realizados por TV a cabo. Como é sabido, a vida local nos Estados Unidos é muito mais desenvolvida do que nos estados da federação. (...) Na Pensilvânia são os próprios vereadores que dialogam com os cidadãos, por meio da TV a cabo, sendo que, neste caso específico, 65% dos assinantes participam dos debates pelo menos uma vez por mês.

Tanto Tocqueville (op. cit.) como Bellah (op. cit.) não se limitam a

mostrar as condições favoráveis à democracia somente no plano da política

local. Para ambos, a própria sociedade fazia possível uma democracia sólida.

Havia condições favoráveis tanto na esfera dos valores, como no que dizia

15

respeito às relações sociais. O ilustre parlamentar francês falava do

relacionamento entre homem e mulher na sociedade americana, como índice

dessa presença de valores democráticos:

Nos Estados unidos não se lisonjeiam as mulheres, mas dão-se-lhes provas diárias da estima que se tem por elas. Os americanos revelam sempre uma profunda confiança na inteligência de sua companheira, e um profundo respeito por sua liberdade. Acham que ela é tão capaz como o homem de compreender a verdade inteira, e suficientemente corajosa para não se afastar dela; não fazem qualquer esforço para proteger a virtude mais de um que de outro, contra os preconceitos, a ignorância ou o medo (ibid, p. 236).

Ainda no caso americano, deve-se levar em conta que nos Estados

Unidos nunca houve uma aristocracia que dominasse econômica e

politicamente a nação, tal qual havia na maioria dos países europeus. Isto

implicou o importantíssimo fato de que a democracia americana se construiu

sem a necessidade de operar o desmonte de uma sociedade dominada pela

aristocracia, tarefa executada com muita dificuldade pelos artífices dela em

outros países. É só pensarmos no caso da França, em que as formalidades

democráticas passaram por grandes atribulações durante todo o século XIX, e

da Alemanha, país em que, depois do curto período de Weimar, só se firmaram

estas formalidades após a segunda guerra mundial. Em outro sentido, como

veremos, é também o caso do Brasil.

Na Inglaterra, berço histórico da democracia moderna, havia uma

aristocracia e seus privilégios dados pela posse da terra e pelo nascimento,

mas segundo Moore Jr:

O modo por que as obrigações feudais desapareceram, e quem perdeu ou ganhou com a transformação, tornaram-se problemas políticos cruciais para todos os países que conheceram o feudalismo. Na Inglaterra, os resultados vieram cedo à superfície. Aí, grupos espalhados de ingleses que viviam no campo começaram a aceitar os interesses próprios e a liberdade econômica como a base natural da sociedade humana. Em face da noção difundida de que o individualismo econômico surgiu principalmente entre a burguesia, vale notar que antes da guerra civil, os senhores da terra já forneciam, pelo menos, um terreno bem propício a estas doutrinas subversivas. (...) Na Prússia do século XIX, os membros da burguesia que estavam ligados à aristocracia assimilavam geralmente os hábitos e o aspecto

16

desta última. Em Inglaterra dava-se precisamente o contrário (op. cit., p. 26).

No Brasil, os caminhos da democracia foram outros, mais longos e

tortuosos. Aqui, antes de favorecê-la, o poder local a impedia. Nunca houve, no

Brasil, durante nossa formação histórica, poder local em que se fizessem

presentes mecanismos de participação popular de certa amplitude. Descrições

de funcionamento do poder local tal como vimos em Tocqueville e Bellah soam

inverossímeis para o nosso passado e, talvez, raras para nossa democracia

presente.

No Brasil, o poder local sempre foi caracterizado pelo mandonismo, pelo

coronelismo, pelo clientelismo, todos eles baseados, ou no favor este último, ou

no favor e na violência os dois primeiros. Embora apontem para diferentes tipos

de relações políticas, nenhum destes três tipos de relacionamento pode se

constituir como solo firme para a edificação de instituições democráticas

sólidas. O mandonismo e o coronelismo, por incorporarem à sua lógica de

operação o recurso à violência física contrário às liberdades que a democracia

pressupõe, são claramente incompatíveis com ela. O clientelismo pelos

mecanismos do favor e, mais recentemente, como vimos nas últimas eleições

em Campos, pela compra dos votos, embora compatível com as instituições

democráticas formais, tal qual a definimos, aparece como dificultador de sua

consolidação, pois impede o surgimento de valores ligados à idéia de

representação, caros à firmeza da democracia.

Hélio Jaguaribe, em entrevista ao Jornal do Brasil, no dia 18 de janeiro

de 2003, asseverou que sustento com muita preocupação, que o Brasil só

aparentemente é uma democracia representativa. Ao meu ver, é uma

democracia clientelística8. Historicamente, entretanto, a primeira manifestação

do poder local no Brasil se deu sob a forma do mandonismo. Sobre ele,

Carvalho afirma que:

O mandonismo refere-se à existência local de estruturas oligárquicas e personalizadas de poder. O mandão, o potentado, o chefe, ou mesmo o coronel como individuo, é aquele que, em

8 Apud Renato Barreto de Souza. Clientelismo e Voto em Campos dos Goytacazes. Dissertação de mestrado em políticas sociais. UENF, Campos. 2004

17

função do controle de algum recurso estratégico, em geral a posse da terra, exerce sobra a população um domínio pessoal e arbitrário que a impede de ter livre acesso ao mercado e à sociedade política. O mandonismo não é um sistema, é uma característica da política tradicional. Existe desde o inicio da colonização e sobrevive ainda hoje em regiões isoladas. A tendência é que desapareça completamente à medida que os direitos civis e políticos alcancem todos os cidadãos (1999, p.133).

Como se vê, aparece nas palavras de Carvalho a incompatibilidade

entre o mandonismo e os direitos políticos e civis, no plano dos quais a

democracia está posta. Não há como conciliar eleições livres e regulares e

liberdade de expressão, de organização e de informação que a democracia

exige com práticas mandonistas, quase todas informadas pela violência.

Embora muito criticada por atribuir uma enorme preponderância da

política local, dominada pelos grandes proprietários rurais, sobre o Estado e o

caráter da política nacional, posição oposta à de Faoro (ibid), a reflexão de

Queiroz é muito útil no sentido de evidenciar os traços autoritários do exercício

do poder local no Brasil, tanto durante a época colonial, como durante o

Império e a Primeira República. Para ela, o mandonismo se faz presente em

todos estes períodos.

O desenvolvimento interno do país foi se processando por acomodações sucessivas com este poder de fato – poder municipal nas mãos dos proprietários rurais – que, podemos dizer “grosso modo”, se impôs à Metrópole durante a colônia, governou sob o manto do parlamentarismo durante o Império e abertamente dirigiu os destinos do país durante a Primeira República (1976, p. 20).

Com o desenvolvimento da economia colonial, a metrópole sentiu

necessidade de administrar mais de perto os seus negócios na colônia.

Estabeleceu aqui o governo-geral, na Bahia e depois no Rio de Janeiro. Não

eram, entretanto, tais cidades, segundo Queiroz (ibid, p. 50) capitais no sentido

político; a vida política se concentrava nas Câmaras Municipais. Entretanto,

havia contradições entre o poder municipal e a metrópole que, às vezes,

descambavam para o uso da violência. É ainda Queiroz (ibid, p. 51) quem diz:

18

De que forças podia dispor o pequeno Portugal para enviar à imensa colônia e ali anular o poderio dos senhores rurais, alguns deles donos de quase exércitos? Não é de espantar que estes soberbos senhores se opusessem abertamente às autoridades: “se há prisão de um agregado (deles), arrombam a cadeia e desrespeitam a paz pública, acompanhados da multidão de sequazes; a ordem restabelece-se, mas os governadores nunca se atrevem a punir os criminosos”9.

Como se vê a tese do mandonismo advogada por Queiroz pressupõe

uma autonomia dos proprietários rurais em relação e contra o Estado e o

recurso recorrente ao uso da força.

O coronelismo é o mandonismo acrescido da aliança dos proprietários

rurais com o governo, novidade que a Primeira República trouxe, ao basear

sua estabilidade de mais de trinta anos numa política de governadores, os

quais, no século XIX eram nomeados pelo imperador, sendo raros aqueles que

administravam uma província por mais de seis meses. Esta aliança implicava a

preponderância, no coronelismo, do mecanismo do favor sobre o recurso da

violência, embora a possibilidade desta sempre estivesse presente. Favor está

claro que se dava, sobretudo, entre os membros das oligarquias. Esta é uma

primeira diferença dele em relação ao mandonismo, no qual se dava uma maior

presença da violência. Além disso, vimos como sendo um traço marcante do

mandonismo o conflito dos grandes proprietários com o governo, conflito este

possível somente pela hipertrofia do poder dos potentados locais, por sua

enorme capacidade econômica e política.

O coronelismo, sistema que se baseava na aliança dos chefes locais

com o governo, de onde vinham os recursos que sustentavam o prestígio

político dos coronéis, sobretudo na forma de nomeação para os cargos

públicos mais importantes, ao contrário, pressupunha um enfraquecimento do

poder privado que levava este à aliança com o governo. Era um sistema,

segundo Leal (1975), eminentemente governista. Por outro lado, uma vez que

fazia parte da lógica da política de governadores da República Velha, o

coronelismo foi um fenômeno circunscrito a um determinado período histórico,

9 Apud João Ribeiro. História do Brasil. Livraria Francisco Alves. Rio de Janeiro - São Paulo. 1901.

19

sem a abrangência temporal do mandonismo. Leal assim se expressa sobre

ele:

Despejando seus votos nos candidatos governistas nas eleições estaduais e federais, os dirigentes políticos do interior fazem-se credores de especial recompensa, que consiste em ficarem com as mãos livres para consolidarem sua dominação no município. Essa função eleitoral do coronelismo é tão importante que sem ela dificilmente se poderia compreender o do ut des que anima todo o sistema. O regime federativo contribuiu também, relevantemente, para a produção do fenômeno: ao tornar inteiramente eletivo o governo dos Estados, permitiu a montagem, nas antigas províncias, de sólidas máquinas eleitorais; essas máquinas eleitorais estáveis, que determinaram a instituição da “política dos governadores”, repousavam justamente no compromisso “coronelista”. Por tudo isso, o fenômeno estudado é característico do regime republicano, embora diversos dos elementos que ajudam a compor o quadro do coronelismo fossem de observação freqüente durante o Império e alguns deles no próprio período colonial (ibid, pp.253 e 254).

Os elementos do coronelismo observáveis no Império e no período

colonial, são, obviamente, o favor e a violência. A novidade histórica do

coronelismo está no fato dele fazer parte do sistema lógico da política de

governadores, característica da Primeira República.

O problema mais complicado, porém, é o do clientelismo. Trata-se de

um fenômeno não limitado a um determinado período histórico: faz-se

presente, na história brasileira, desde a época colonial aos nossos dias. Sofre

também poucas restrições espaciais. Não é algo dado preponderantemente

pela política local. Ele aparece nas três esferas de poder: nos Estados, nos

Municípios e na União. Embora semelhante ao mandonismo e ao coronelismo

pelo fato de se utilizar do favor e se sustentar numa relação assimétrica de

poder em que, num pólo, se encontra quem detém recursos estratégicos e, no

outro, está quem se vê desprovido de tais recursos, o clientelismo se diferencia

de ambos na medida em que torna desnecessário o uso da violência.

É mais insidioso que o mandonismo e o coronelismo, pois se mostrou

capaz de se amalgamar às formalidades democráticas e às liberdades que elas

exigem. Neste sentido, não é incompatível com elas, posto que podem viver

juntos. É, no entanto, um dificultador da firmeza e da solidez democráticas,

pois, como já vimos, impede a formação de valores ligados à idéia de

20

representação política e impossibilita a organização dos cidadãos no sentido da

consecução de objetivos comuns. Em outras palavras, o clientelismo impede o

surgimento daquelas virtudes que o exercício da política local pode apresentar

como base firme para a construção de instituições democráticas: discussão,

organização, participação, preocupação com o bem comum10. A enorme

assimetria em que se baseia, e no Brasil a percebemos como estrondosa, não

pode estar ligada a essas virtudes, uma vez que estas pressupõem um mínimo

de igualdade política, Isto é, estas virtudes exigem uma mesma capacidade de

discussão, organização e disposição valorativa para a participação.

Ao contrário dos Estados Unidos, onde, como vimos, as instituições

políticas democráticas brotaram do solo fértil da sociedade, no Brasil, as

formalidades que fazem a democracia tiveram na ação do Estado um dos

componentes marcantes de sua construção. Aqui, em nossos dois curtos

períodos de vida democrática, pode-se afirmar que, apesar de ter de

corresponder a determinadas condições sócio-econômicas, a democracia foi,

em grande parte, a concretização de um projeto político do Estado. É claro que

não se pode falar em surgimento da democracia no Brasil sem se pensar em

urbanização, industrialização, desenvolvimento do capitalismo e dos meios de

comunicação de massas, isto é, não se pode pensar em democracia no Brasil

sem se levar em conta condições criadas pela sociedade. Entretanto, mesmo

assim, creio que se pode perceber, na sua construção, a presença da “mão

forte” do Estado. No período 1945-1964, isso parece ficar evidente pelo fato de

que dois dos principais partidos a dar sustentabilidade ao jogo político, Partido

Trabalhista Brasileiro (PTB) e Partido Social Democrata (PSD), foram, ambos,

criados por Getúlio Vargas. A famosa frase atribuída a Luiz XIV não ficaria

ridícula na boca do caudilho Gaúcho: “O Estado sou eu”. Skidmore sobre este

ponto, escreve:

Os interventores, em muitos Estados, pura e simplesmente, reuniram homens públicos governistas, pedindo-lhes para colher assinaturas necessárias para a fundação de um partido de acordo com a nova legislação eleitoral. A direção vinha de cima, já que

10 O bem comum não se confunde com a vontade geral. Pode ser o interesse de um determinado grupo que de maneira democrática se organiza para a disputa política. Pode ser a expressão do interesse de todos e mesmo assim a criação de uma vontade geral em torno dele que guie a ação política é muito difícil.

21

Vargas supervisionava pessoalmente a organização do PSD, de maneira a apoiar a candidatura oficial de Dutra (1976, p. 81).

Quanto ao PTB, segundo o mesmo Skidmore (ibid, p. 82), O partido foi

organizado por prepostos e conselheiros de Vargas como Alexandre

Marcondes Filho, Ministro do Trabalho, e Alberto Pasqualini.

Nesse sentido, porém, o mais esclarecedor foi a forma pela qual se fez a

legislação que regulou as eleições que deram fim à ditadura do Estado Novo.

Comentando o fim desta ditadura, Skidmore afirma que:

As discussões sobre a fixação das datas para as mudanças constitucionais foram parcialmente acalmadas, quando o governo emitiu um ato adicional, a 28 de fevereiro, emendando a Constituição de 1937. O ato previa que, dentro de 90 dias seria baixado um decreto fixando a data das eleições (ibid, p. 73).

No segundo período houve algo parecido. Percebendo, no seio da

sociedade, por conta da grave crise econômica, a perda de legitimidade, e

temendo as conseqüências de uma possível futura derrocada do regime, a

ditadura militar conduziu um bem sucedido processo de abertura política, lento,

gradual e seguro que culminou na eleição de Tancredo Neves pelo colégio

eleitoral, em 1985. Quem não se lembra do General Figueiredo, então

Presidente da República, falando em alto e bom som: “É para abrir mesmo,

senão eu prendo, arrebento”... ? Até a figura a ser eleita pela oposição foi alvo

de intensas negociações entre os militares e as lideranças oposicionistas.

Como foi visto na introdução, uma das condições sociais para o

surgimento da democracia no Brasil, foi o processo de urbanização. Isto

também foi fundamental em Campos dos Goytacazes. O próximo capítulo

abordará a questão de como se deu este processo no município.

22

2. A ultrapassagem da política oligárquica

2.1. O rural e o urbano

Não é possível, pois, compreender o desenvolvimento de uma cidade

brasileira, nessa época, sem investigar a que meio rural pertence . Maria Isaura Pereira de Queiroz in Cultura, Sociedade Rural e Sociedade

Urbana no Brasil

Durkheim (1978), em As regras do método sociológico, faz uma

distinção entre fisiologia e morfologia social. A primeira tem a ver com os fatos

que dizem respeito às formas de agir e de pensar presentes na sociedade e a

segunda com os fatos relativos à forma de ser da sociedade, como por

exemplo, o tamanho do território que ela ocupa, a composição por sexo ou

faixas etárias da população, a distribuição desta por aquele território entre

outros fatores. Esta distinção ganha maior importância tendo-se em mente as

relações entre morfologia e fisiologia, isto é, se se procura compreender as

determinações de uma sobre a outra. Aliás, esta distinção só ganha poder

explicativo se for possível estabelecer essas determinações. Neste sentido, as

variáveis rural e urbano, de ordem morfológica, segundo Durkheim, só terão

importância, na medida em que se puder estabelecer como elas condicionam

as maneiras de agir e pensar, que é onde está o centro da explicação

sociológica. Vários cientistas sociais brasileiros têm adotado com sucesso esse

procedimento. Cano e Santos (2001, p. 64), por exemplo, em sua pesquisa

sobre homicídios no Brasil afirma que (...) renda e desigualdade não parecem

apresentar um efeito claro sobre as taxas de homicídio dos estados brasileiros,

embora seus coeficientes sigam a direção prevista na maioria dos modelos. Ao

contrário, é a urbanização que parece ter forte influência. Este é um claro

exemplo de urbanização condicionando determinada maneira de agir, no caso

uma ação criminosa.

No campo da sociologia política, a urbanização mostrou-se uma

variável capaz de papel importante na compreensão de vários fenômenos,

23

como a superação da política oligárquica e o surgimento de lideranças

populistas. Soares (2001, p. 50), analisando o caso do Município de Caeté, em

Minas Gerais, mostra como a votação do PTB em 1954, que derrotou os

tradicionais PSD e UDN, teve claramente uma base urbana. Weffort (1980, p.

125), em sua análise da presença do populismo na política brasileira, destaca

que: Quando nos indagamos no Brasil pelas condições sociais dos movimentos

populistas, um fato se destaca de maneira imediata: como fenômeno de

massas esses movimentos têm carácter predominantemente urbano.

Encontramos aqui, portanto, na esfera da política, a urbanização condicionando

maneiras de pensar e de agir. Sendo assim, devemos ter em vista que as

organizações sociais agrárias e urbanas se refletem na maneira pela qual os

grupos sociais e os indivíduos se relacionam.

No mundo rural, as relações face a face, pouco intermediadas por

instituições e organizações burocráticas e carregadas de afetividade, imbuídas

de valores como lealdade e honra, são muito mais numerosas do que no

mundo urbano. São relações marcadas pela pessoalidade, para usar a

expressão que vem de Weber, muito em voga hoje nas ciências sociais. Do

ponto de vista político, isto tem sérias conseqüências. Relações sociais

fundamentadas nessa pessoalidade jamais podem funcionar como base da

tomada de consciência do significado da política e da idéia de que ela possa

ser um mecanismo de expressão ou da consecução da vontade dos atores

sociais, quer estes sejam grupos ou indivíduos. Analisando o meio rural do

Vale do Paraíba no século XIX, mais precisamente a relação, sob a vigência da

escravidão, dos homens livres com os grandes senhores, Carvalho Franco

(1976, p. 88) reflete:

Essa dominação implantada através da lealdade, do respeito e da veneração estiola no dependente até mesmo a consciência de suas condições mais imediatas de existência social, visto que suas relações com o senhor apresentam-se como um consenso e uma complementaridade, onde a proteção natural do mais forte tem como retribuição honrosa o serviço, e resulta na aceitação voluntária de uma autoridade que, consensualmente, é exercida para o bem. Em suma a relações entre o senhor e o dependente aparecem como inclinações de vontade no mesmo sentido, como harmonia, e não como imposição do mais forte sobre o mais fraco,

24

como luta. Em conseqüência, as tensões inerentes a essas relações estão profundamente ocultas, havendo escassas possibilidades de emergirem à consciência dos dominados.

O mundo urbano caracteriza-se por relações sociais de outro tipo. As

relações face a face quase que desaparecem. Passam a ter uma presença

bem menor do que na vida rural. O fenômeno urbano levado ao paroxismo

resulta no surgimento das metrópoles. Aqui, o mestre no desvelamento dos

meandros das relações sociais na grande cidade é Simmel. Contrastando a

vida psíquica metropolitana com a rural e das pequenas cidades, o sociólogo

alemão diz que a vida de pequena cidade descansa mais sobre os

relacionamentos profundamente sentidos e emocionais (1978, p. 12). Na

metrópole, segundo ele, pelo fato mesmo de os indivíduos estarem

mergulhados na multidão, o que se produz entre eles é uma espécie de

indiferença em relação à vida e ao destino do outro. O ritmo veloz das

atividades cotidianas na metrópole faz impossível, desnecessário e

contraproducente o preocupar-se com o outro. Até mesmo o simples

cumprimento formal, dado a qualquer momento a todos na vida rural, torna-se

raro na grande cidade, só se fazendo presente quando o diálogo se torna

imprescindível e a cordialidade requisitada.

O mais importante para Simmel, no entanto, está no fato de que a

metrópole é o lugar por excelência da economia monetária. Tal fato é cheio de

conseqüências sociológicas. Em primeiro lugar, as transações de mercado,

mediadas pelo dinheiro, dissolvem os tradicionais laços pessoais e

sentimentais que caracterizavam as relações sociais do mundo rural.

Na troca de dinheiro por mercadoria e de mercadoria por dinheiro, o

que está em jogo, antes de tudo, é a equivalência quantitativa das duas coisas.

A personalidade ou a pessoa dos indivíduos envolvidos na transação torna-se

absolutamente irrelevante. Origem familiar, status11, amizade e outros laços

pessoais, nada disso é levado em conta pelo poder avassalador do dinheiro.

11 O status só é levado em conta na medida em que de alguma maneira possa ser convertido em dinheiro. A presença de “personalidades” num estabelecimento comercial, por exemplo, pode redundar num retorno financeiro muito maior do que aquele proporcionado por caríssimas peças publicitárias. De qualquer forma, isso já é uma dissolução e incorporação da lógica pré-monetária do status pela economia de mercado.

25

Na economia rural pré-monetária, proprietários, trabalhadores, pequenos

sitiantes, todos estavam ligados estreitamente à terra e entre si. Havia liames

muito fortes entre os proprietários e os objetos de sua posse. O dinheiro

dissolve esses laços. Segundo Simmel (1998; p. 24) Nessa função, o dinheiro

confere, por um lado, um caráter impessoal, anteriormente desconhecido, a

toda atividade econômica, por outro lado, aumenta, proporcionalmente, a

autonomia e a independência da pessoa. E continua (idem; p. 25) O ápice

deste desenvolvimento é marcado pela sociedade anônima de ações, cuja

atividade se mostra totalmente objetiva e independente diante de um acionista

singular, enquanto este não faz parte dela com a sua pessoa, mas sim com

uma soma de dinheiro.

Esta transição de uma economia rural pré-monetária para uma

economia de mercado urbana teve enormes conseqüências sociais e políticas

em todo o globo. Como vimos anteriormente o ruralismo e a urbanidade só

ganham importância sociológica quando relacionados à mentalidade, aos

valores e ao comportamento de grupos e indivíduos. Em Campos não é

diferente. Essa distinção entre o rural e o urbano apresentada nas páginas

anteriores é analítica. No plano da realidade social concreta, cidade e campo

coexistem. O problema está em estabelecer nos estudos de caso particulares o

que é dominante nesta relação, se cidade ou campo, e a partir de quando se

estabelece este domínio. Neste sentido, a história do desenvolvimento urbano

do município tem suas peculiaridades.

Campos sempre foi uma cidade fortemente marcada e dominada,

demográfica e economicamente, por atividades agrárias: criação de gado e

produção de açúcar. Desde o final do século XIX e século XX adentro, seu

notável desenvolvimento urbano e comercial teve a ver com essa então pujante

economia agrária. O desejo de consumo e de adoção de um estilo de vida

europeu por parte dos grandes proprietários era satisfeito por um comércio

sofisticado e de certa magnitude. Analisando o desenvolvimento urbano e a

formação da elite política em Campos no período 1890-1930, Manhães Alves

mostra que esta era composta, sobretudo, por comerciantes e proprietários

rurais.

26

Não foi somente o comércio atacadista de açúcar que contribuiu para o enriquecimento de alguns que, donos de fortunas, se constituíram na elite econômica e política, mas também, o comércio varejista, notadamente as firmas ligadas aos artigos de luxo, à moda. Comerciantes mandavam vir da Europa o que havia de mais refinado para atender a uma parcela da população acostumada ao confortável e elegante. (...) Logo, os comerciantes e fazendeiros constituíram-se na elite política campista (1980, p. 60).

Nesse período o município experimentou uma expressiva intensificação

da vida urbana. Segundo Pereira Pinto, nos inícios do século XX Campos era,

econômica e culturalmente, o município mais importante do Estado do Rio de

Janeiro (idem; p. 65): Somente na zona urbana, existiam três bancos

comerciais, três hospitais, doze igrejas, onze sociedades esportivas, dois

teatros, oito jornais em atividade, mais de setecentos estabelecimentos

comerciais. As vias públicas totalizavam números que ultrapassavam os

setenta e três.

Era um urbanismo, entretanto, englobado e dominado pela vida rural,

onde se dava a atividade econômica mais importante e onde estava localizado

o grosso da população. Queiroz refletindo sobre urbanização no Brasil, reflexão

que, sem dúvida, vale também para Campos, refere-se assim à questão:

A nosso ver, e adotando mais ou menos a linha de Henri Lefebvre, não se trata verdadeiramente de urbanização, pois esta se liga intimamente à industrialização, e sim da difusão cultural de um gênero de vida, o gênero de vida burguês ocidental que é eminentemente citadino, (...) sendo que as camadas superiores adotam como sinal distintivo o requinte e um arremedo de vida intelectual (1978, p. 57).

Ainda sobre o crescimento das cidades nos inícios do século XX, mas já

tendo uma preocupação estritamente política, vai no mesmo sentido o

pensamento de Faoro (2000, p. 698): (...) os homens da cidade não exercem,

na totalidade, funções urbanas. Com o predomínio das atividades da

agricultura e da pecuária, há uma faixa instável, rurbana, caracterizando-se o

corpo social pela influência de interesses rurais.

27

Tendo em vista essas reflexões e os dados sobre a evolução

demográfica do Município de Campos, é possível chegar a conclusões

importantes sobre a vida política municipal. Em primeiro lugar, destaca-se a

presença de um enorme contingente de população rural até a década de 60 do

século XX. Até esta mesma década, a população rural cresce em termos

absolutos. A partir desta década, há um decréscimo significativo no número de

habitantes da área rural. Ora, se tivermos em mente que tal redução não tem

nada a ver com a taxa de natalidade, pode-se concluir que houve uma

importante migração da área rural para a urbana do município. Boa parte do

contingente populacional urbano, portanto, é de recente origem rural. A

população urbana só se torna maior do que a rural na década de 70.

Sabemos que a mudança no plano do espaço físico é muito mais fácil

do que a mudança que implica alterações no plano das idéias, dos valores e do

comportamento. Se isto é verdade, e, levando em conta as reflexões anteriores

sobre o tipo de desenvolvimento urbano de Campos, é de se supor que boa

parte dos habitantes da cidade continuou ainda, por um certo período de

tempo, a ter seus valores e ações condicionados pela esfera mental da vida

rural. De uma forma ou de outra, esses traços marcados de ruralidade tornam-

se visíveis no mundo urbano. O forasteiro atento e curioso talvez perceba isso

com mais facilidade. No início da década de noventa do século passado,

quando a população urbana já ultrapassava os 300.000 habitantes, era

possível ver, próximo a um então importante centro administrativo do Banco do

Brasil e atual sede da prefeitura, belos nelores ruminando em pasto abundante.

Segue adiante uma tabela indicadora da evolução demográfica do

município no período que interessa a este estudo. É de se notar que iniciados

os anos 80 do século passado a população urbana era ligeiramente maior do

que a população rural.

28

Tabela 1

Ano População Urbana % População Rural % População Total 1950 91,245 38,4 146,388 61,6 237,633 1960 131,679 45,1 160,613 54,9 292,292 1970 177,871 55,3 143,499 44,7 321,37 1980 203,399 58,4 145,062 41,6 348,461 1991 324,667 83,4 64,442 16,6 389,109 1995 343,225 86,5 53,437 13,5 396,712

Incluem totais referentes a Italva, em virtude da emancipação ter ocorrido em 1986.

Incluem os totais referentes a Cardoso Moreira e São Joaquim, em virtude da eman-cipação ter ocorrido em 1993.

Projeção tendo como base a taxa de crescimento anual de 1,33% positiva

População de Município de Campos dos Goytacazes de 1950 a 1995.

Fonte Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 1994.

Ainda hoje, a festa mais concorrida e aguardada da cidade, chegando

mesmo a suplantar, soberbamente pagã, os festejos em louvor do Santíssimo

São Salvador, é a exposição agropecuária, patrocinada pela Fundação Rural

de Campos. Uma das casas noturnas mais freqüentadas pela juventude local

tem, e isso não me parece desprovido de importância sociológica, o

significativo nome de “Boi Zebu”. Qual a importância disso tudo para a política

local? Com uma população predominantemente rural até os anos 70 do século

passado e levando em conta a influência do mundo rural sobre a elite e parcela

das camadas populares, ainda que já habitando a cidade, não há que se

surpreender com a presença de práticas políticas tradicionais e oligárquicas,

semelhantes àquelas que caracterizavam as elites brasileiras da República

Velha tributárias do ruralismo . Tome-se um fato concreto. Em última instância

é deles que a ciência deve falar, compreender, explicar. Se assim não fosse,

para que serviria ela?

Nas eleições municipais de 3 de outubro de 1958 evidencia-se, sobre

esse ponto, um personagem interessante. Trata-se de Heli Ribeiro Gomes,

dono da Usina Cambaíba, que hoje não mói mais. Genro de Bartolomeu

Lysandro de Albernaz, deputado federal e dono da Usina São João, após a

29

morte deste, Ribeiro Gomes dá inicio a sua carreira política. Exerceu

considerável liderança dos anos 50 aos setenta do século XX. Foi deputado

federal e vice-governador do antigo Estado do Rio de Janeiro. É assim que

Belido narra o acontecido:

Realizado o pleito e iniciada a apuração, dá enorme salto à frente

Ora, o fato de que a urna “veio fechada para vereador” e a atribuição

disso ao

a ser candidato, o dono da Usina Cambaíba, Heli

Ribeiro

de quase todos os postulantes à vereança o candidato Rockefeller de Lima. É que fora aberta a urna da localidade de Jacarandá e esta veio fechada para vereador, constatando-se que seus respectivos eleitores sufragaram por unanimidade o nome do jovem candidato Rockefeller Felisberto de Lima. Olhares maliciosos, espanto e risinhos de canto de boca. Porém, logo se matou a charada e se ficou sabendo que aquilo fora trabalho de Heli Ribeiro Gomes, realmente capaz de façanhas assim, pela liderança que exercia no município e particularmente em alguns distritos (1988, p. 87).

trabalho de uma única liderança política evidencia a possibilidade e o

efetivo controle pessoal do voto dos eleitores, no caso, eleitores de uma

determinada área rural. Isto mostra o peso do eleitorado rural no Município de

Campos, já quase iniciados os anos 60 do século passado. Ainda tendo como

foco essa mesma liderança política e já apresentando figuras que se tornariam

importantíssimas na história política do município, Belido (idem) fala da eleição

de 1966 que seria vencida por José Carlos Vieira Barbosa, o Zezé Barbosa,

que seria prefeito por mais duas vezes, tendo sido, na última, sucedido por

Anthony Matheus Garotinho.

Antes de Zezé Barbos

Gomes já o fizera subdelegado de polícia do então distrito de Guarus

(idem; p. 188). Essa nomeação, do ponto de vista da sociologia política, é

bastante significativa. Os cargos de delegado de polícia, juizes, promotores,

professores, sempre foram, desde o século XIX, controlados pelas oligarquias

locais e funcionaram como um dos mecanismos de exercício e reprodução do

seu poder. O cargo de subdelegado, sobretudo, era de suma importância. Por

suas atribuições, permitia enfeixar, numa única pessoa, os dois tipos de

procedimentos sociais em que se fundamentava o poder oligárquico: o favor e

a violência. A esse propósito Leal é explícito:

30

Por outro lado, aquele que pode fazer o bem se torna mais

o de Heli, ganhou, durante o exercício do cargo

de sub

Julgava-se no direito

poderoso, quando está em condições de fazer o mal. E aqui o apoio do oficialismo estadual ao chefe do município, seja por ação, seja por omissão, tem a máxima importância. Neste capítulo, assumem relevo especial as figuras do delegado e subdelegado de polícia. A nomeação dessas autoridades é de sumo interesse para a situação dominante no município e constitui uma das mais valiosas prestações do Estado com os chefes locais. Embaraçar ou atrapalhar negócios ou iniciativas da oposição, fechar os olhos à perseguição dos inimigos políticos, negar favores e regatear direitos ao adversário, são modalidades diversas da contribuição do governo estadual à consolidação do prestígio de seus correligionários no município. Mas nada disso, via de regra, se compara a esse trunfo decisivo: por a polícia do Estado sob as ordens do chefe situacionista local (1975; p. 47).

Zezé Barbosa, candidat

delegado de polícia, alguma densidade eleitoral. Por conta disso,

segundo as palavras de Belido:

de exercer uma discordância junto a Heli

quanto à escolha de seu vice, entendendo que não deveria ser o Dr. Beda. E na hora “H” tomou mais uma vez o caminho de Cambaíba, disposto a resolver a parada com Heli, que se manteve irredutível, não aceitando as alegações de Zezé. Este, como última cartada blefou, dizendo que então preferia não ser candidato. E deixou Cambaíba na condição virtual de não candidato, enquanto Heli, que tem a calma entre uma de suas principais características, deixou o barco rolar, mantendo o Dr. Beda e não procurando Zezé para novo entendimento, (...) até que Zezé, no dia seguinte, resolvera aceitar o Dr Beda. O então liderado de Heli estava errado, eis que o Dr. Beda viria ser ponto fundamental para sua vitória nas eleições de 1966. Tanto que a dupla iria se repetir no pleito de 1972 (idem; p. 179) (grifos meus).

o de fazer política evidencia-se. A expressão “se

julgar n

O estilo oligárquic

o direito”, denota uma pretensão descabida por parte do candidato. Ele

era um “liderado” e estava errado, pois a mesma fórmula seria utilizada em

1972, também com sucesso: ambos viriam a ser eleitos prefeito e vice-prefeito.

Já estamos em 1972, quando a população do município já é bem mais urbana

do que rural e continuamos a falar de política tradicional e oligárquica. Nas

eleições de 1976, o prefeito Zezé Barbosa consegue eleger seus sucessores

nas figuras de Raul Linhares, engenheiro, homem ligado pelo casamento aos

proprietários da Usina do Queimado e de Dr. Wilson Paes, médico de muito

31

prestígio no município por suas ações caridosas e uma notória fé cristã. De

família muito ligada à Igreja Católica, há, inclusive, uma irmã sua que se tornou

freira salesiana, Dr. Wilson era uma das lideranças do antigo Partido

Democrata Cristão, que já não mais existia nesse período de ditadura militar.

Além dessa particularidade no processo de urbanização, Campos dos

Goytaca

.2 – A aristocracia campista

Trago dos Airizes uma recordação iluminada. A forma tradicional do seu solar, tão be

io de Andrade in Cartas a Alberto Lamego

Assim como Marx, na elaboração, central em sua obra, do conceito de

modo

zes tem uma peculiaridade social muito importante do ponto de vista

político. Formou-se no município, por conta da força de sua economia agrária,

uma aristocracia, como toda aristocracia, de comportamento social muito

excludente. O item seguinte tratará das conseqüências políticas da existência

deste segmento social.

2

m equilibrado de linhas e volumes, tão bem colocado numa paisagem esplêndida12, os quadros, as pratas, os marfins, as gravuras, as porcelanas, tudo se gravou em mim numa recordação suavíssima, iluminando de luz desconhecida antes para mim, o autor dessa preciosíssima coleção.

Már

de produção que serviu como ferramenta fundamental para a

interpretação de toda história da humanidade, partiu da observação do

capitalismo inglês seu contemporâneo, é possível apontar, antes de olhar os

estudos históricos, observando o presente, a existência de uma aristocracia em

Campos. Há, na vida cotidiana da cidade, práticas nos mais variados campos

da vida social, nos esportes, na moda, nas maneiras de se divertir e de receber

convidados, que podem ser ligadas a uma aristocracia. Penso, com Bourdieu,

que é possível ver as classes. Para além da existência na infra-estrutura

econômica e do nível de renda, elas se manifestam em ações cotidianas

concretas, observáveis: nas maneiras de falar, de andar, de conduzir e

12 O solar situa-se na saída de Campos para São João da Barra. Era de propriedade da família Lamego.

32

apresentar o próprio corpo, de morar, de praticar esportes, de comer, de

consumir bens culturais. Tudo isto são sinais de sua existência. Mais ainda,

essas ações não são somente manifestação da existência das classes, elas

fazem parte de sua estratégia de reprodução, pelo poder de distinção que

incorporam, pela capacidade de diferenciar uma das outras e de hierarquizá-

las. A acumulação de capital econômico é a principal estratégia de reprodução

da burguesia, mas também importantes nesse sentido são suas maneiras

peculiares de falar, de receber convidados, de ir ao teatro, de se divertir

durante as férias. Maneiras pelas quais ela se mostra, se enxerga e afirma sua

diferença e possível superioridade em relação às outras. Tendo em vista que

essas práticas são classificadas e classificantes, creio poder tomar algumas

delas como índice da existência de uma aristocracia em Campos.

A primeira delas é a prática do jogo do tênis. Pode-se dizer que esse

jogo é

Comparado com o duelo, o corpo a corpo espontâneo de uma briga

a simulação de um duelo, instituição aristocrática por excelência,

segundo Norberto Elias. Em sua análise da sociedade alemã (Elias, 1997) tira

algumas conseqüências políticas do fato de a aristocracia prussiana ter sido o

grande artífice da unificação nacional alemã, em fins do século XIX. A principal

delas foi que importantes setores da burguesia incorporaram o ethos guerreiro

que caracterizava aquela aristocracia. O duelo, para ele, era uma expressão

deste ethos e uma forma pela qual a aristocracia se distinguia das outras

classes. Era uma forma de exigir satisfação que o código de honra nobre

necessitava. Por outro lado, o duelo impunha regras ao conflito entre

indivíduos, sem as quais este descambaria para a briga ou o bate boca chulos.

O duelo formaliza a contenda. Dá-lhe elegância e etiqueta, essas coisas que os

nobres usavam para se destacarem e se reconhecerem mutuamente. Elias fala

sobre ele:

é altamente informal. O duelo, em contraste, é um exemplo de um tipo altamente formalizado de confronto físico. O ritual prescrito exige, primeiro que tudo, um rigoroso controle de todos os sentimentos hostis (...). O exemplo do duelo revela uma das funções sociais centrais da formalização. Trata-se, como se vê, de um sinal característico dos grupos de posição superior, um símbolo de diferenciação entre pessoas dos estratos superiores e inferiores da

33

sociedade. O ritual do duelo, tal como outros rituais da classe alta, elevou os membros dos grupos que o apóiam acima das massas de pessoas que lhes são inferiores na hierarquia social. Era, pois, um meio de se distanciarem. A diferença entre a espécie de ato de violência minuciosamente formalizado num duelo e a briga comparativamente informal entre pessoas de estratos mais simples, pode servir como critério de distância social entre os respectivos estratos (idem, pp. 75 e 76).

O tênis parece um duelo “sublimado”, sem sangue e sem violência,

mas no

arece ligada à aristocracia são os

esportes que se utilizam do cavalo. Campos é uma das pouquíssimas cidades

qual também se dá, ainda que de maneira simbólica, a morte do

adversário. O objetivo, assim como no duelo, é a destruição do outro. Do

embate só um sairá “vivo”, podendo continuar a jogar o torneio, o qual, para ser

conquistado, implica a obrigação de impor a derrota a todo o adversário que se

coloque na frente do pretendente. Entretanto, este objetivo é perseguido com

muita formalidade, o que dá muita beleza à disputa. Elimina-se o sangue e a

violência, mas permanecem a elegância13, no vestir e no comportar-se, a

observância das regras de etiqueta, inclusive por parte da assistência que só

pode se manifestar nos intervalos dos games (as expressões características do

jogo ainda são em inglês), como nos entreatos de uma peça teatral. Quando o

jogo recomeça, faz-se silêncio absoluto. O tênis é praticado em poucas cidades

do Brasil. Segundo Hélvio Santafé, famoso cronista social da cidade, ele é

praticado aqui desde os anos vinte, com pompa e circunstância. As primeiras

quadras, de saibro, situadas na Usina do Queimado, nas quais os jogadores se

apresentavam de branco e de onde chegou a sair um campeão brasileiro. No

Estado do Rio de Janeiro, além de Campos, era praticado em Petrópolis,

cidade com ares de aristocracia por conta do deslocamento da corte imperial

para lá, nos messes quentes do ano, e na República, pela utilização do palácio

Rio Negro como residência de verão dos presidentes. Além dessas duas,

somente em Niterói ele era praticado, devido a presença de uma importante

colônia inglesa, desde o início do século XX.

Além do tênis, outra prática que me p

13 Na França o uso de camisa Lacoste. Em Wimbledon, ainda hoje, é obrigatório jogar-se vestido de branco. O tempo também é importante nesse sentido. Em Roland Garros, só se joga com luz natural. Se escurecer o restante da partida é transferido para outra ocasião.

34

brasileir

ria. Devemos ter

em men

m baile aos oficiais

da Mari

as que possuem um Jóquei Clube. Não chegam a treze as cidades do

Brasil que possuem hipódromo. Dentre estas, as que não são capitais, são

somente Campos e Paracatu, em Minas Gerais, berço da família Melo Franco e

cuja sede do Jóquei Clube situa-se num casarão colonial, belíssimo, com mais

de duzentos anos de idade. A relação do cavalo com o poder e com a moral

cavalheiresca dos aristocratas é historicamente conhecida. Nas sociedades

pré-modernas da Europa, praticamente só os nobres montavam. Um dos

reparos que Gilberto Freyre (1987), ironicamente, fazia ao aristocratismo de

Joaquim Nabuco, era o de que este não montava a cavalo.

O cavalo chegou a se constituir na base de uma das três armas em

que se dividia o exército clássico: artilharia, cavalaria, infanta

te que a guerra era uma atividade nobre. Em alguns países europeus,

o seu comando permaneceu assim já avançado o século XX14, e não algo

confiado a um corpo técnico de profissionais como hoje. Olhando para a prática

de esportes como uma das maneiras pelas quais as classes se diferenciam,

Bourdieu afirma que na França a oposição entre frações das classes

dominantes se condensa na oposição entre o cavalo, a esgrima ou a aviação

dos aristocratas e burgueses de começo do séc XX e o esqui, a navegação e o

vôo sem motor dos quadros modernos (Bourdieu, p. 216).

No final dos anos 50 do século passado, o Automóvel Club

Fluminense, freqüentado pela elite social local, ofereceu u

nha de Guerra. Por essa ocasião, as forças armadas brasileiras já se

encontravam divididas entre a Marinha, o Exército e a Aeronáutica. Por que,

então, o baile exclusivamente para os oficiais da Marinha? A argumentação

desenvolvida até aqui e a que virá adiante, permite sugerir que a resposta está

no fato de que a Marinha, dentre as três forças, é a mais exclusivista e

aristocrática delas. A esse propósito, comentando o tipo de recrutamento e a

formação de nossas forças armadas, Carvalho observa que, antes da

independência, seguindo o modelo europeu, o exército português tinha sua

oficialidade recrutada entre membros da nobreza e os soldados entre os

camponeses. Vejamos suas palavras:

14 Ver Churchil, Winston. Grandes homens do meu tempo. Nova Fronteira, Rio. 2004

35

Com o passar do tempo, no entanto, houve importantes transformações nesse padrão no que se refere ao Exército. (...) O resultado final foi que a composição do oficialato em termos de

Segundo

culminou em várias revoltas de marinheiros durante a República, sendo a mais

om um outro baile. É assim que Santafé

excedeu nas demonstrações de refinamento, espiritualidade e beleza. Uma festa bonita, de remarcado bom gosto e elegância. (...) Muitas senhoras elegantes.

A propósi

segue uma imagem dela colhida em um baile de fim de ano no mesmo

origem social modificou-se radicalmente. Ao final do Império, os oficiais provinham sobretudo de famílias militares e de famílias de rendas modestas. (...) A situação na Marinha foi distinta, na medida em que não houve mudança significativa no recrutamento. Seu caráter discriminatório foi mesmo acentuado com a absorção de oficiais ingleses, todos eles de origem nobre. Mediante a exigência de enxovais caros, a Marinha fechou suas fileiras a candidatos de menores recursos e manteve o padrão aristocrático de recrutamento durante todo o período (2003; pp. 187 e 188).

ele, esse enorme distanciamento entre os oficiais e as praças

famosa delas a da chibata, em 1910.

Os oficiais da Marinha retribuíram as homenagens do Automóvel Club

e receberam a sociedade campista c

se refere ao elegante acontecimento social:

A Marinha como sempre se

Em “toillete” cinza, a bonita senhora Jorge Renato Pereira Pinto; elegantíssima, a senhora Jones Walter Alvim, em noir; (...) O Presidente do Jockey Club de Campos atendendo a um apelo, prometendo incluir na programação oficial do hipódromo, os clássicos “Saldanha da Gama” e “Marquês de Tamandaré, em homenagem à Marinha. (...) A grande pianista, senhora Arthur Cardoso Filho, atendendo a um apelo, fez música: Debussy e Chopin. Em seguida, reclamaram a presença da senhora D. Georgina Pinto Teixeira ao piano. Desenvolta e altaneira com seus setenta e muitos anos, a ilustre dama encantou a todos pele sua virtuosidade no teclado. (...) Uma noite inesquecível, a assinalar o espírito aristocrático de nossa Marinha de Guerra (2002, p. 61).

to da família Pereira Pinto citada por Santafé no trecho acima,

Automóvel Club a que o colunista se refere. Trata-se do Senador José Carlos

Pereira Pinto e de seu irmão Jorge Pereira Pinto e esposa. Este último vem a

ser pai de Jorge Renato Pereira Pinto que foi candidato a prefeito em 1988. É

digna de nota a elegância no trajar da família campista. Isto se torna tão mais

36

evidente se compararmos a fotografia campista com a de Eduardo VIII, rei da

Inglaterra. Além da semelhança nos trajes, há similitude até nas expressões

faciais: uma expressão, sem ser arrogante, altaneira e tranqüila de bem estar,

que a distinção confere. As diferenças só ficam claras se tivermos em mente o

fundo da cena, onde aparecem, na foto no Automóvel Club, pessoas vestidas

com menos apuro, a olharem, curiosas, para o momento em que o fotógrafo

captura a imagem da família ilustre de Campos.

37

Eduardo VIII da Inglaterra, depois Duque de Windsor. Fonte:

Winston Churchill. Grandes homens do meu tempo. Rio de Janeiro.

Nova Fronteira, 2004.

38

Senador Jose Carlos Pereira Pinto, seu irmão Jorge Pereira Pinto e esposa, em baile no Automóvel Club. Fonte: Arquivo Pessoal de Jorge Renato Pereira Pinto

Outra prática que parece aristocrática é aquilo que pode ser chamada

de instituição do veraneio. Pelo verão, famílias inteiras deixam a cidade e vão

para suas casas na praia. Aqui para caracterização dessa instituição como

aristocrática a questão do tempo é fundamental. O tempo é relativo não

somente em física, em sociologia também. O lidar com ele era uma das

diferenças entre aristocratas e burgueses. “Tempo é dinheiro” dizia Benjamin

Franklin, grande representante do pensamento burguês, citado por Weber na

Ética Protestante (Weber, 1981). O tempo da aristocracia é reconhecidamente

mais lento, mais longo. Como diz Jessé Souza, a significação profunda da vida

aristocrática remete a um estilo de vida indiferente à passagem do tempo

(Souza, 2003, p. 58). A burguesia, pelo contrário, caracterizava-se por ter seu

tempo premido pelas imposições e necessidades da produção econômica. Isso

ficou muito claro durante o trabalho de campo. Imediatamente após

entrevistarmos um moderno empresário da área de comunicação, fizemos o

mesmo com um usineiro cuja usina está de fogo morto. Impressionante como o

tempo de um diferia do tempo do outro. O primeiro, enquanto nos dava a

39

entrevista, atendia e realizava seguidas ligações pelo celular, dizia ter várias

religiões (sic), recebia recados da secretária, utilizava o lap-top, carregava nas

expressões faciais, gesticulava, dando a impressão de que tudo era urgente,

de que não tinha tempo a perder. Não houve nada disso no encontro com o

usineiro. Recebeu-nos em um sobrado secular, ladeado por uma capela “onde

se casaram todas as pessoas da família”, no fundo de uma alameda de

palmeiras imperiais. Eram dez horas da manhã e ele estava chegando em seu

escritório no sobrado. Não havia pressa. Não havia celulares ou lap-tops. A fala

era mansa e pausada. Os móveis antigos de madeira estavam gastos pelo

tempo. Se fossem cobertos por tecido, provavelmente estariam puídos. Os

recados, sem urgência aparente, eram transmitidos por parentes e amigos,

discretamente, ao pé do ouvido. Falou-nos de seu catolicismo, do seu hábito de

nos finais de semana percorrer trechos da mata atlântica em busca de

orquídeas.

No veraneio não se trata somente de passar na praia as férias, esse

tempo determinado pelo mundo do trabalho. Não se trata de turismo. Não há a

rotatividade, a urgência e o caráter de negócio que o turismo supõe e impõe. O

que acontece é que as famílias mudam de residência durante o verão. E não é

a família nuclear, esta instituição moderna, de presença recente na vida social

brasileira. É comum a presença da família extensa: pais, filhos, avós, netos,

tios, sobrinhos, primos, etc. Os ambulantes, vendedores de picolés e outras

guloseimas, que atendem as famílias na areia, quando pela manhã vão aos

banhos de mar e de sol, sequer recebem no ato da venda. Deixam para fazê-lo

à tarde, pois lhes conhecem a casa e sabem que voltarão a encontrar as

crianças, o que fará a conta ficar significativamente maior. É possível distinguir

os diferentes grupos familiares na areia, quase sempre próximos de suas

residências. É um outro tempo, talvez mais determinado pelo clima e por suas

sensações físicas do que pelas razões da vida econômica. É algo semelhante

ao costume da corte imperial brasileira que se transferia para Petrópolis nos

meses de calor. Aliás, veranear em Petrópolis constituiu-se em prática elegante

40

das classes dominantes cariocas durante grande parte do séc XX15. Santafé,

pioneiro do colunismo social da cidade, fala-nos do verão de 1955:

Logo após o meu início na crônica social, chegava o verão e com ele a temporada de praia. O movimento social na cidade diminuía sensivelmente. As famílias saiam para as praias vizinhas. Claro que a nossa praia era Atafona, ainda com as pitangueiras e o pontal. Apenas as noites dançantes aos sábados, no Cassino (sic!) ou alguma reunião social, ou baile em residência de alguma família, fazia o que chamo de movimento social praiano. Era necessário movimentar a temporada de verão em Atafona, e achei que essa seria minha missão e do jornal A Notícia. (...) A escolha de uma rainha do verão seria a solução para nossa pretensão. Mas como fazer o concurso se usavam maiô e nunca biquíni em desfiles? Seria um escândalo tentar realizá-lo. (...) Teríamos que escolher as meninas, conversar com os seus pais para que eles consentissem serem elas fotografadas de roupa de banho de mar. Felizmente conseguimos, com uma condição: antes de publicá-las teria que passar pela censura deles. (...) Um obstáculo foi vencido, agora faltava o local e o júri do concurso. Achei por bem primeiro escolher o júri, que foi formado por senhoras da nossa sociedade. O meu grande amigo Sr. Álvaro Waldir Pereira da Mota (mais tarde presidente do América F.C – Rio) conseguiu convencer o Dr. Plínio Viveiros de Vasconcelos e senhora, para que o local da escolha da rainha do verão de Atafona de 1955 fosse em sua magnífica residência. Foi uma reunião maravilhosa, com um grande número de veranistas presentes (2002, p. 123).

Há, em Campos, quem abra e feche, ainda hoje, cerimonialmente, com

festas, suas residências de verão. Um colunista social da Folha da Manhã,

assim se expressou a esse respeito, em sua coluna do dia 25 de fevereiro de

2005: Cidinha e Edmar Fraga (nomes fictícios), como bons anfitriões, recebem

amanhã grupo amigo para jantar na casa de Atafona, encerrando a temporada

de verão.

Além dessas observações, a literatura permite falar de uma aristocracia

em Campos. Oliveira Viana em seu Populações Meridionais do Brasil, onde

reflete sobre a formação da elite política de São Paulo, Minas Gerais e Rio de

Janeiro, embora não se refira a Campos especificamente, fala-nos da

aristocracia fluminense:

15 A esse respeito é interessante o romance de Faria, Otavio de. A tragédia burguesa vol 2. Companhia editora americana, Rio de Janeiro. 1971.

41

Entre os mineiros e os paulistas ficam os fluminenses. Estes não têm o orgulho paulista nem o democracismo mineiro. São mais finos, mais polidos, mais socialmente cultos pela proximidade, convívio e hegemonia da corte. O polimento urbano lhes corrige a rusticidade matuta, embora não lhes altere a admirável cristalinidade do caráter. Pela elegância espiritual, pela finura, pelo senso de proporção e do meio termo, pela limpidez e pela calma da inteligência, representam, ao sul, os nossos atenienses da política e das letras (2000, pp. 963 e 964).

No prefácio ao famoso livro de Alberto Lamego, o mesmo Oliveira Viana

afirma que embora em outros lugares do Brasil possa se encontrar

refinamentos aristocráticos do viver, ninguém foi mais que o fluminense

ricamente provido de boas maneiras, de bom gosto, de hábitos de conforto, de

apuro mundano de viver (Lamego, 1996, p. 6). Apesar de se referir

especificamente à região de Vassouras, creio ser sintomática essa observação

num prefácio a um livro sobre a planície campista.

Jorge Renato Pereira Pinto também fala sobre isso:

A moda francesa, os perfumes, os tecidos, exerceram enorme fascinação na corte e Campos, por conseqüência, imitava os hábitos e acompanhava a moda parisiense. O teatro em Campos passava peças em francês. (...) Até pouco tempo, ainda se podia entrar no “AU Petit Parc” e fazer compras de tecidos da moda. (...) A “Tinturaria de Madame Panchaud”resistiu por muito tempo. As modistas de ontem, como Madame Dahir, Madame Elise, Agostine, Gamondes, Lacoste, marcaram seu tempo, fizeram escola, estabeleceram tradição até nossos dias e deixaram grande descendência eu hoje se mistura com a Campos moderna (Ibid, 2006; pp.151 e 152).

Fernando de Azevedo, falando da distribuição da produção de açúcar

pelo território nacional, aponta a região de Campos, na baixada do Rio Paraíba,

que se tornaria famosa, no séc XlX, pela aristocracia rural enriquecida pelo

açúcar, com a lavoura de cana e os engenhos (Azevedo 1958; p. 29). O mais

importante para os nossos propósitos, entretanto, no livro de Fernando de

Azevedo, é que ele indica algumas conseqüências sociais e políticas da

existência dessa aristocracia. A mais importante delas, tendo em vista nossos

propósitos, é que, segundo ele, essa camada apresentava uma tendência em

transmitir por herança os bens como as profissões (...) a resistir à infiltração

das classes inferiores que ficam sem possibilidades de ascensão social (idem,

pp. 110 e 111). Politicamente, com o passar do tempo, isso se tornou muito

42

perigoso. Como sabemos, essa camada social se enfraqueceu

economicamente na segunda metade do século XX, sobretudo na década de

oitenta deste, a qual, se pensarmos no ano de 1988, foi um período marcante

na história política do município.

Em artigo publicado recentemente em que fazem a história da

formação econômica do município e comentam a crise da economia

açucareira, Carvalho e Silva (2004, pp. 64 e 65) afirmam que como resultado

do processo de desintegração da indústria sucroalcooleira na região, nos anos

cinqüenta, observa-se que famílias campistas tradicionais foram vendendo

suas usinas, como, São José, Santo Amaro, Paraíso, Outeiro, Sapucaia, Cupim

e Santana. Mas, segundo os mesmos autores, foi nos anos oitenta que a crise

se fez sentir com mais intensidade. É compreensível o impacto negativo

determinado à região, quando o setor diminuiu a produção no final dos anos

1970 e entrou em colapso nos anos 1980 e 1990. Ora, numa conjuntura de

presença das massas no jogo eleitoral democrático, um grupo social que perde

poder econômico e ao mesmo tempo mantém, no sentido de Bourdieu

apontado acima, hábitos sociais tremendamente excludentes, torna-se, no

mercado eleitoral, um adversário frágil. Foi esse grupo que Anthony Matheus

Garotinho elegeu como adversário e afirmou ter derrotado, quando da sua

primeira eleição para prefeito em 1988.

Sabemos que uma democracia sólida necessita de práticas políticas

que ultrapassem as práticas políticas aristocráticas. Estas, como é

historicamente conhecido, foram, no Brasil, tanto no império como na república,

e talvez mais nesta que naquele, caracterizadas como oligárquicas e

clientelistas. Portanto, a democracia, para ter bases firmes e não ficar no

terreno pantanoso em que está, supõe a superação do clientelismo e das

oligarquias. Estas foram definitivamente superadas em Campos, aquele não.

Uma das afirmações que norteiam este trabalho é a de que as eleições

de 1988 foram o marco da superação dessa política tradicional. Este é o tema

do próximo ponto.

43

2.3 As eleições de 1988 em Campos Tabela 2 – As eleições de 1988 apresentaram os seguintes resultados:

CANDIDATOS 75ª zona

76ª zona

98ª zona

99ª zona

100ª zona TOTAL

Grotinho 10.523 19.514 10.820 15.061 6.828 62.746 Rockfeller 7.979 11.047 11.792 14.061 6.364 51.243

Jorge Renato 4.242 6.526 3.396 3.705 4.131 22.000 Amaro Gimenes 3.583 3.762 3.638 5.694 1.150 17.827 Barbosa Lemos 3.039 6.881 1.436 2.385 2.468 16.189

Luiz Antônio 138 452 301 523 93 1507 Ionildo Martins 107 409 156 229 146 1047 C. A. Redondo 173 237 138 184 153 885

BRANCOS 2.759 5.721 1.498 2.439 3.720 16.137 NULOS 918 2.681 1.002 1.185 1.055 6.841

Fonte: Jornal Folha da Manhã

As eleições de 1988 constituíram um marco importante da história

política de Campos, em primeiro lugar, por ter sido aquela em que Anthony

Garotinho, principal liderança política local, ganhou sua primeira eleição para

prefeito. A partir daí passou a ser a mais importante liderança, o maior

articulador da política municipal, posição que ocupa, portanto, a quase vinte

anos. Além disso, esta eleição se tornou um marco pelo fato de que ela impôs

uma derrota àqueles que poderiam ser ligados a uma forma ainda tradicional

de se fazer política e da qual ainda não se recuperaram.

Há quem ressalte, na sua explicação dos resultados desta eleição, a

conjuntura política nacional como um dos condicionantes importantes para a

compreensão de tais resultados. Eram as primeiras eleições municipais após o

período de ditadura militar que havia sofrido uma derrota no colégio eleitoral

com a eleição do candidato oposicionista Tancredo Neves. Havia um clima de

oposição no ar que a recente campanha das diretas já havia ajudado a

construir. Por outro lado, do ponto de vista econômico, o momento era de crise,

com baixíssimas taxas de crescimento e elevadíssimos índices de inflação. Isto

afetava sobretudo as camadas populares. O fato de estarem afastadas dos

recursos de indexação do sistema financeiro, fazia com que suportassem a

carga pesada da elevação quase que diária dos preços, o que transformava a

inflação num mecanismo perverso de transferência de renda destes setores

populares para aqueles que, melhor posicionados na estrutura de estratificação

44

social, podiam se defender dela pela participação no sistema financeiro. Belido

comentou estas eleições: A grande crise por que passa o Brasil está desequilibrando os resultados dos pleitos eleitorais, inclusive os municipais, que aparentemente nada têm a ver com os altíssimos preços dos gêneros alimentícios, os problemas de habitação, remédios, vestuário etc, nada têm a ver, concluo, mas recebem reflexos dessas dificuldades ou essas dificuldades passam a ser a tônica do voto. Seria um desesperado recado que se está mandando a quem de direito, um olhai por nós. No elenco de candidatos a prefeito de Campos submetidos pelos partidos à consideração popular, Garotinho teria sido escolhido como melhor para passar essa mensagem (ibid, p. 222).

Do ponto de vista estritamente político, isto é, sem se levar em conta os

efeitos da grave crise econômica, o candidato vitorioso teria conseguido

capitanear favoravelmente o clima de oposição ao conseguir o apoio explícito

de Leonel Brizola, notória figura de oposição à ditadura militar por ação da qual

amargou anos de exílio. A Folha da Manhã, em sua edição de 27 de Outubro

de 1988, traz a seguinte manchete: PDT traz Leonel Brizola no dia 4 em apoio

a Garotinho. E noticia, no corpo da matéria, que Brizola virá acompanhado dos

deputados César Maia, Brandão Monteiro e Eduardo Chuay. É claro que tais

fatos, a conjuntura econômica e política e o apoio de uma importante liderança

nacional de oposição, tiveram influências sobre o pleito. No entanto, uma

pesquisa preocupada com o exercício do poder local deve buscar, para além

dessas condicionantes “externas”, determinações especificamente locais. A

primeira delas está no fato de que, objetivamente, por sua profissão e origem

social, Garotinho podia alardear seu não pertencimento às elites tradicionais e

vincular vários de seus principais adversários a elas. Analisando a formação da

elite política imperial, Carvalho fala desta questão das profissões:

O mais difícil era entrar. Um diploma de estudos superiores, sobretudo em direito, era condição quase sine qua non para os que pretendessem chegar até os postos mais altos. A partir daí vários caminhos podiam ser tomados, o mais importante e seguro sendo a magistratura, secundariamente a imprensa, a advocacia, a medicina, o sacerdócio. (2003, p. 125)

Fazendo-se uma análise das profissões dos prefeitos campistas durante

o século XX, é possível se chegar a conclusões interessantes.

45

Quadro do perfil profissional dos prefeitos de Campos PREFEITO PROFISSÕES

Dr. Manoel Rodrigues Peixoto - 1901-1905 Advogado Dr. Manoel Camilo Ferreira - 1905-1907 Advogado Júlio Feidith - 1908-1910 Historiador Dr. José Nunes Siqueira - 1910-1911 Médico Dr. João Maria da Costa - 1911-1915 Advogado Dr. Luiz Caetano Guimarães Sobral – 1915-1921 Médico Dr. César Nascente Tinoco - 1921-1923 Advogado Dr. Luiz Caetano Guimarães Sobral – 1923-1925 Médico José Bruno de Azevedo - 1925-1928 Comerciante Dr. Benedito Gonçalvez Pereira Nunes - 1928-1930 Médico Dr. Luiz Caetano Guimarães Sobral – 1930 Médico Dr. Oswaldo Luiz Cardoso de Mello - 1931-1932 Médico Dr. Francisco da Costa Nunes - 1933-1936 Engenheiro Dr. Silvio Bastos Tavares - 1936-1937 Médico Dr. Francisco da Costa Nunes - 1937-1939 Engenheiro Dr. Salo Brand - 1939-1940 Engenheiro Dr. Mario Pinheiro Mota - 1940-1942 Engenheiro Dr. Manoel Ferreira Paes – 1945 Médico Franklin Bitencourt – 1945 Funcionário Público Felipe Senes - 1945-1946 Funcionário Público Dr. Manoel Ferreira Paes – 1946 Médico José do Patrocinio Ferreira – 1946 Tenente Coronel Aquiles Sales Ferreira - 1946-1947 Funcionário Público Dr. Salo Brand – 1947 Engenheiro Dr. Manoel Ferreira Paes - 1947 – 1951 Médico Dr. José Alves de Azevedo - 1951-1955 Advogado Dr. João Barcelos Martins - 1955 – 1959 Médico Dr. José Alves de Azevedo - 1959-1962 Advogado Dr. Edgar Nunes Machado – 1962 Médico Dr. João Barcelos Martins - 1963-1964 Médico Dr. Rockfeller de Lima - 1964-1966 Advogado Dr. Carlos Ferreira Pessanha – 1966 Advogado José Carlos Vieira Barbosa - 1967-1970 Industrial Dr. Rockfeller de Lima - 1971-1972 Advogado José Carlos Vieira Barbosa - 1973-1976 Industrial Dr. Raul Davi Linhares - 1977-1983 Engenheiro Dr. Wilson Paes - 1982-1983 Médico José Carlos Vieira Barbosa - 1983-1988 Industrial Antony Garotinho - 1989-1992 Radialista Sergio Mendes - 1993-1996 Radialista Antony Garotinho - 1997-1998 Radialista Dr. Arnaldo Viana - 1998-2000 / 2000-2004 Médico Dr. Carlos Alberto Campista – 2005 Advogado Dr. Alexandre Mocaiber – 2005 Médico

46

Desde o início do século, é fácil notar uma seqüência de prefeitos

advogados e médicos, as profissões elitistas por excelência, segundo Carvalho

(ibid), somente interrompida significativamente por uma presença de

engenheiros no período de 1937 a 1945. Este período é exatamente a época

do estado novo, quando não havia eleições para prefeito, e talvez seja um

indicador da preocupação de Getúlio Vargas com uma administração mais

técnica. Após 1947, ano em que, com a democracia, retorna-se aos pleitos

municipais, a seqüência de prefeitos advogados e médicos se restabelece e

somente se rompe, significativamente, com a eleição do radialista Garotinho

em 1988. Em sua estratégia de campanha era clara a intenção de se colocar

como o candidato que se opunha a essas elites. O candidato tinha amplas

condições objetivas de dar a esta versão o caráter de verdade, o que, em

última instância, é o que conta em política eleitoral. Não adotava as práticas

sociais tremendamente excludentes que caracterizavam aquilo que chamamos

de aristocracia campista. Segundo A Folha da Manhã de 20 de Novembro de

1988, Garotinho e seus assessores fizeram a campanha do tostão contra o

milhão. Durante a campanha afirmou numa entrevista16: Sou candidato à

prefeitura com 28 anos de idade, mas preparado para exercer o cargo. Os que

me acusam de inexperiência desejam se perpetuar no poder. Hoje sou a opção

dos indignados com a mesmice política que existe em Campos. Dominava

amplamente a linguagem popular, domínio este adquirido por sua atuação

profissional no rádio. Seu programa na Rádio Continental continuou no ar

durante uma parte do período de campanha eleitoral. Tendo que se afastar por

imposição legal, deixou em seu lugar a mulher, Rosinha Matheus, que seguiu

com o programa durante a campanha. Era um programa de conteúdo popular

apelativo. Pode-se ter idéia deste conteúdo. Em meados de agosto de 1988,

Garotinho colocou no ar menores que acusavam o próprio pai, também

presente no programa, de estupro. A folha da Manhã de 17 de agosto do

mesmo ano se referiu assim ao episódio:

A justiça vai se manifestar hoje em relação ao pedido de prisão preventiva solicitada pela polícia para Jorge José Souza Rangel,

16 Folha da Manhã de 14 de agosto de 1988.

47

acusado de ter estuprado quatro menores, três das quais suas filhas. Ontem, Jorge José, a “fera”, se confrontou com suas filhas no programa do Garotinho, na Rádio Continental, e mesmo se mostrando com medo do pai as meninas confirmaram o estupro.

Os seus adversários mais fortes podiam ser facilmente ligados a uma

antiga política oligárquica e tradicional. Jorge Renato Pereira Pinto era o

candidato do então prefeito Zezé Barbosa que exercia o seu terceiro mandato.

Zezé fora introduzido na política, como vimos, por Heli Ribeiro Gomes, dono da

Usina Cambaíba. Antes deste seu último mandato, Zezé Barbosa tinha sido

Secretário de Agricultura do Governador Chagas Freitas. Pereira Pinto,

sobrinho do ex-Senador José Carlos Pereira Pinto, tinha sido dono da Usina de

Santa Maria, na gestão da qual fundiu-a com a Usina Santa Isabel. É um

homem de traços aristocráticos que ainda se utilizava métodos tradicionais de

angariar votos. Indagado se era possível o controle dos votos dos

trabalhadores da usina respondeu:

Em boa parte sim. O pessoal morava em nossas terras (...) no dia da votação, passei o dia verificando se tava tudo correto com os votos do pessoal. Voltei às pressas para a cidade no final da tarde. Botei um terno, um tropical inglês e fui votar (Entrevista 3).

A estratégia deu certo, pois, segundo o próprio Jorge Renato Em

Santo Eduardo eu dei um banho neles todos juntos. Eu tive seiscentos e tantos

votos e os outros todos juntos tiveram trezentos e poucos (Entrevista 3). Deu

certo, mas era uma estratégia insuficiente, dados a localização, sobretudo

urbana, e o tamanho do eleitorado, 220.314 eleitores segundo o TRE17. E se o

tropical inglês lhe dava elegância e o protegia dos rigores climáticos dos

trópicos, o afastava das massas urbanas, às quais Garotinho se dirigia em

linguagem popular pelo rádio, ou, quando de corpo presente, em mangas de

camisa.

O outro candidato ao qual se poderia associar um pertencimento à

política tradicional era Rockfeller de Lima. Trata-se daquele candidato que,

17 In Folha da Manhã de 19 de outubro de 1988

48

quando de sua primeira eleição, teve, na localidade de Jacarandá, uma urna

fechada, isto é, com todos os votos dentro lhe pertencendo, providenciada pela

ação de Heli Ribeiro Gomes. Além disso, durante a campanha, Rockfeller de

Lima teve seu nome ligado à União Democrática Ruralista, entidade defensora

dos interesses dos grandes proprietários rurais, então sob a ruidosa liderança

do goiano Ronaldo Caiado. Matéria da Folha da Manhã18 noticiava que durante

três horas, a comissão de assuntos políticos da UDR Regional de Campos,

questionou ontem, em sua sede, o candidato a Prefeito Rockfeller de Lima...

Até o presente momento, apenas Rockfeller procurou a UDR para manter

entendimentos. Era o candidato preferido da classe média alta, a única área da

cidade em que derrotou Garotinho foi exatamente aquela com os melhores

índices de renda e escolaridade. É exatamente essa camada social que

funciona como suporte para aquelas práticas sociais excludentes que

caracterizam a aristocracia. É este grupo social que dá visibilidade a essas

práticas. Num cenário de presença marcante das massas urbanas pobres, do

ponto de vista eleitoral, estar associado a este grupo é muito desvantajoso.

O candidato Amaro Gimenes era outro ao qual se poderia colar, com

facilidade, a imagem de homem ligado aos interesses de ruralistas e usineiros.

Começou sua vida profissional trabalhando para a Usina Novo Horizonte. Logo

passou a colaborar com Evaldo Inojosa, importante líder ligado às usinas e que

chegou a presidir a agência local do Instituto do Açúcar e do Álcool, e Geraldo

Coutinho na Cia. Usina Paraíso, da qual, na época do pleito de 1988 era diretor

administrativo. Em debate entre os candidatos a prefeito na Escola Técnica

Federal no dia 12 de setembro preocupou-se explicitamente em se desfazer

desta imagem ao afirmar que não queria o apoio da UDR no palanque.

A campanha eleitoral deixou evidente a existência de práticas políticas

tradicionais. No dia 21 de outubro, o juiz eleitoral Sebastião Bolelli determinou a

transferência, para Martins Laje, de seis seções eleitorais anteriormente

localizadas dentro da Usina Cambaíba, de propriedade de Heli Ribeiro Gomes.

Ao tomar conhecimento da decisão, o médico Sérgio Bainha, genro de Heli e

18 Folha da Manhã 16 de setembro de 1988

49

candidato a vereador, reclamou: Em Cambaíba ninguém vota com revólver na

cabeça19. As seções foram transferidas, mas o candidato se elegeu para o que

seria seu primeiro e último mandato. Segundo a edição da Folha da Manhã de

22 de novembro de 1988, foi exatamente em Martins Laje que Garotinho sofreu

a sua maior derrota eleitoral para Rockfeller de Lima. Sobre essas práticas

ainda oligárquicas, Fernando Leite, participante ativo da campanha de

Garotinho, dá seu testemunho:

Nossas reuniões no interior tinham uma característica muito peculiar. As pessoas não tinham o menor problema em receber o Garotinho em suas casas na periferia da cidade. No interior não. No interior havia um medo, porque lá no interior o domínio político era mais evidente, mais forte. O chefe político tava sempre próximo. Tivemos reuniões interrompidas no interior, porque alguém achava que não tinha que continuar, mandava encerrar e a gente tinha que terminar, correndo o risco, inclusive, de ser agredido, na época. Os votos que eles ainda tiveram no interior foram votos por causa deste domínio (Entrevista 1).

O que se quer deixar evidente é que esses candidatos “conservadores”

tinham uma imagem e utilizavam métodos que não correspondiam às

exigências que as situações nacional e local impunham para a consecução da

vitória, num pleito marcado pela presença eleitoral das massas urbanas

pobres. A política tradicional do favor, do apadrinhamento, do empreguismo,

tinha para a conjuntura local da época, um alcance muito limitado. Isto parece

ficar evidente pelo fato do candidato apoiado pelo então prefeito ter ficado em

terceiro lugar com 22.000 votos. Em outras palavras, não havia possibilidades,

para se usar uma expressão de hoje, de uso suficientemente eficaz da

máquina pública. A população era grande e os recursos da prefeitura eram

mínimos. A impossibilidade de atender um número grande de eleitores não

aplacava a insatisfação gerada pela grave crise econômica. A prefeitura de

Campos melhorou significativamente sua situação financeira somente a partir

de 1989 com a vigência da nova Constituição, que praticamente dobrou o

orçamento municipal, e com o posterior advento dos royalties do petróleo que

19 Folha da Manhã 22 de outubro de 1988

50

dotaram o município de orçamentos hoje vultosos. A elite econômica, por sua

vez, também sofria sérias restrições, pois se encontrava em decadência

financeira, o que se constituía em um outro ingrediente dos limites da política

tradicional. Some-se a isso o fato de que, suas práticas antigas, a deixavam

desaparelhada para se comunicar com essas massas urbanas pobres. O

candidato mais aparelhado para se dirigir a um eleitorado como esse, foi

exatamente o candidato vitorioso, homem da área de comunicação, que

dominava amplamente os meios de comunicação de massas. Nesse sentido,

devemos ter em mente que a eleição de 1988 foi a que se seguiu à de 1982,

que ainda se fez sob a égide da Lei Falcão de 1976, que limitava a propaganda

eleitoral no rádio e na televisão. O que se quer dizer é que antes de 1988,

devido às limitações da legislação eleitoral da ditadura e do ainda então

importante eleitorado rural, era possível a eficácia de formas mais tradicionais e

acanhadas de comunicação com o eleitor, que não os modernos meios de

comunicação de massas. A situação social e econômica do município naquele

momento de 1988 exigia a atuação de profissionais especializados da área de

comunicação. Isto, aliás, acabou se configurando como uma das

características das posteriores eleições brasileiras, nos municípios médios e

grandes. Sobre este ponto o depoimento de Fernando Leite é muito claro:

Os políticos tradicionais foram abrir os olhos muito tarde. Quando eles se deram conta, eles já tinham sido minados em suas bases eleitorais. Porque aquele segmento da miséria que procurava o chefe político, ele já ia lá, mas ele já tinha ouvido o Garotinho dizer o seguinte: “vai lá, pede, porque você tem direito, mas não vota nele, vota em mim”. Então, esse eleitor que o chefe político achava que dominava, já não dominava mais. E a questão foi, eu acredito, fundamentalmente de comunicação (Entrevista 1).

Garotinho teve boa votação em todas as zonas eleitorais do município,

inclusive na área rural, caracterizada melhor pela 100ª zona, onde derrotou

Rockfeller por uma pequena margem de votos. Sua vitória mais expressiva,

porém, se deu nos bairros urbanos populares das 75ª e 76ª zonas eleitorais.

Sua única derrota se deu na 98ª zona, aquela com melhores índices sociais e

de escolaridade e renda, também por uma pequena diferença. Na 99ª zona, a

51

segunda melhor situada quanto aos critérios de renda e escolaridade, obteve

uma vitória apertada sobre Rockfeller20. Segundo alguns observadores da

política local, Belido (ibid, p. 228) a penetração de Garotinho no eleitorado de

classe média se deu em grande parte pela hábil escolha de seu vice, o Médico

Adílson Sarmet, figura desvinculada dos usineiros e dos grandes proprietários

rurais e de grande prestígio nos meios intelectuais e de profissionais liberais.

Para Fernando Leite, contribuiu para isso também uma característica peculiar

do grupo mais íntimo de colaboradores de Garotinho:

Você tinha no, campo conservador, cabos eleitorais tradicionais. Você tinha, do outro lado, um grupo de jovens idealistas. Gente que tinha militância cultural, sobretudo no teatro, que já estudava Augusto Boal, que já tinha lido em algum momento Karl Marx, que tinha grupo de estudo, que tinha militância política nos grêmios estudantis. Esse grupo via uma possibilidade de exercitar toda teoria que tinha acumulado (Entrevista 1).

Era, portanto, um grupo capaz de performance, o que deve ter tido sua

importância, numa eleição caracterizada pela ocorrência de numerosos e

amplos debates públicos.

Pode-se dizer, portanto, que os números da eleição de 1988 não

permitem identificar Anthony Garotinho como representante de nenhum grupo

social específico, embora sua vitória mais expressiva tenha se dado nos bairros

populares urbanos. Tanto ele como os candidatos do campo conservador

tiveram uma votação difusa, presente em todas as camadas sociais. O que

ocorreu é que os representantes daquilo que poderia ser chamado de grupos

políticos conservadores ou tradicionais não se deram conta que o momento

exigia novos métodos e novo discurso para a conquista do eleitorado de

massas urbano, que foi o que decidiu a eleição.

Do ponto de vista formal o pleito de 1988 apresentou algumas

novidades. Foram as primeiras eleições na história do município, em que

aconteceram amplos debates. Foram três longos confrontos entre os 20 Para caracterização sócio-econômica das zonas eleitorais do município ver Renato Barreto de Souza Clientelismo e Voto em Campos dos Goytacazes. Dissertação de mestrado em políticas Sociais. UENF, Campos. 2004

52

candidatos. Um promovido pela Associação dos Servidores da Escola Técnica

Federal municipais, no dia 12 de setembro, outro no Liceu de Humanidades de

Campos e outro ainda patrocinado pela Rádio Continental, pela Campos

Difusora e Folha da Manhã, no dia 20 de agosto, quando a discussão durou

quase seis horas21. Os vices também se digladiaram em debate organizado

pelas mesmas rádios e pela Folha da manhã. Foram quase cinco horas de

debate no dia 27 de agosto.

As mulheres dos candidatos, até então figuras apagadas no processo

eleitoral, tiveram ampla participação nele. É o que se pode apreender de

matéria na edição da Folha da Manhã de 16 de outubro com a seguinte

manchete: Candidatas ao cargo de primeira-dama são convictas eleitoras e

lutam muito. É bem provável que o voto feminino tenha jogado um papel

importante na vitória de Anthony Garotinho. Não se deve esquecer que durante

a campanha sua mulher, Rosinha Matheus, continuou a comandar o programa

que o candidato tinha na Rádio Continental. Era um programa que também

tinha preocupação com o público feminino, principalmente com a dona de casa,

a quem eram dedicadas receitas culinárias e outras informações sobre a vida

doméstica. Por sua formação como militante do movimento cultural no teatro,

talvez Rosinha Matheus tenha tido melhor performance durante a campanha do

que as mulheres dos outros candidatos, no sentido de angariar votos.

Some-se a isso o fato de que o campo conservador estava dividido e a eleição

se fez em um só turno. Caso houvesse dois turnos o candidato vitorioso

poderia ter sido outro.

21 Folha da Manhã 21 de agosto de 1988

53

3 – O clientelismo moderno

3.1 O clientelismo impessoal

O que esta análise sucinta revela é que a “maturidade do povo”,

tanto quanto sua suposta sabedoria e bondade naturais, estão longe de proporcionar uma base sólida para a constituição de uma nova ordem democrática.

Simon Schartzman in Bases do Autoritarismo Brasileiro

Souza (ibid), em sua análise das eleições de 2000 para vereadores em

Campos, mostrou como os membros do legislativo campista exercitam um

clientelismo impessoal. Dez deles chegaram a montar Centros de Assistência

que são verdadeiras empresas voltadas para o atendimento da clientela

eleitoral. Segundo ele, não há mais reduto, não há mais “curral eleitoral”, esta

instituição característica de uma sociedade rural pré-moderna. A votação dos

vereadores, argumentou, está fragmentada, distribuída por várias zonas

eleitorais. Tome-se, por exemplo, a eleição do Pastor Denílson. O Pastor

Denílson chegou a Campos em agosto de 1999 e em outubro de 2000 se

elegia vereador. Ora, ninguém constrói uma rede de relacionamentos pessoais

capaz de garantir vitória numa eleição tão disputada, em tão pouco tempo.

Fundamental para o sucesso do pastor foi a organização da Igreja Universal22.

Na parte de sua dissertação em que discute as máquinas políticas, Souza

afirma:

Uma máquina que apresenta características particulares é a Associação Beneficente Cristã. Mantida pela Igreja Universal do Reino de Deus que possuía uma estrutura com mais de quinze funcionários, não incluindo os voluntários. A entidade oferecia mais de oito cursos profissionalizantes, além da distribuição mensal de cestas básicas para famílias cadastradas. (...) A Associação trabalhou na eleição do vereador Denílson Pinto (ibid, p. 105).

22 Tanto é assim que o Pastor não se reelegeu, após desentendimentos com a direção da Igreja.

54

Desde Weber que sabemos das relações estreitas entre protestantismo

e organização empresarial moderna. O pastor não se utilizou um “curral”, mas

de uma empresa eleitoral, de uma forma impessoal de angariar votos. Para

Souza (ibid) as práticas políticas dos membros do legislativo municipal

transitaram de um clientelismo personalista para um clientelismo impessoal. É

o que também aconteceu no âmbito do executivo, como o têm demonstrado as

últimas eleições para prefeito no município. Senão vejamos.

O autor que logrou uma explicação profunda da sociedade brasileira

tendo em vista esta questão da pessoalidade foi Sérgio Buarque de Holanda.

Assim como Gilberto Freyre, Holanda parte da idéia de que a colonização criou

no Brasil uma sociedade híbrida de África e Europa. Não se pode, entretanto,

falar da Europa como uma unidade. Há lá diversidades culturais marcantes e

significativas. Que Europa, portanto, entrou como componente na formação

social brasileira? A Europa ibérica, afirma o autor. E qual era a especificidade

cultural da península em relação ao resto do continente? Logo no primeiro

capítulo de Raízes do Brasil, ao comparar a Península Ibérica com o resto da

Europa o autor afirma que:

Precisamente a comparação entre elas e as da Europa de além Pireneus faz ressaltar uma característica bem peculiar à gente da Península Ibérica uma característica que está longe de partilhar com qualquer de seus vizinhos de continente. É que nenhum desses vizinhos soube desenvolver a tal extremo essa cultura da personalidade, que parece constituir o traço mais decisivo na evolução da gente hispânica, desde os tempos imemoriais. (...) É dela que resulta largamente a singular tibieza de formas de organização, de todas as associações que impliquem solidariedade e ordenação entre esses povos. Em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida (Holanda, 1981; p. 4).

Como deixa claro esse trecho de Raízes do Brasil, para Holanda, a

grande característica cultural ibérica que o Brasil herdou foi o personalismo. O

personalismo é, para ele, nosso traço cultural mais marcante e mais cheio de

conseqüências. Ele é capaz de explicar uma grande quantidade de fenômenos

da vida social brasileira. Basta atentar para algumas frases da citação acima.

55

Dizer, por exemplo, que do personalismo resulta a singular tibieza das formas

de organização que impliquem solidariedade e ordenação, é já lançar luz sobre

o fato da pouca força e da timidez com que a empresa capitalista se instalou no

Brasil, ao contrário do que aconteceu em vários paises da Europa e nos

Estados Unidos, onde, desde o final do século XlX, ela já era amplamente

dominante.

Do ponto de vista da Sociologia Política, entretanto, o mais importante

no livro de Holanda é o capítulo intitulado O Homem Cordial. Para o autor, foi

exatamente o homem cordial o que o personalismo produziu no plano das

relações pessoais. Antes de qualquer coisa é importante dissipar um possível

equívoco quanto ao significado desta expressão. A cordialidade não diz

respeito à bondade, solicitude, compreensão, condescendência em relação ao

outro. Holanda toma a expressão no seu sentido etimológico: cordial é tudo

aquilo que diz respeito ao coração. Ora, como sabem os poetas e não o ignora

a fisiologia, o coração é o órgão sede dos sentimentos, em oposição ao

cérebro, lugar da razão; são sentimentos tanto o amor como o ódio, a amizade

como a inimizade, o respeito como a falta dele. O que Holanda quis dizer é que

os brasileiros, na construção do quadro de sua nacionalidade, carregamos a

mão mais nas tintas fortes do sentimentalismo, dos traços do afeto e do

sangue, do que nos tons pastéis da racionalidade. Tais sentimentos, uma vez

nasçam do coração, são cordiais. O desconhecimento de qualquer forma de

convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo representa um

aspecto da vida brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar com

facilidade (Holanda, ibid; p. 109).

No capítulo intitulado “Nossa Revolução” Holanda tira as conseqüências

políticas da cordialidade. Diz, por exemplo: Todo afeto entre os homens funda-

se forçosamente em preferências. Amar alguém é amá-lo mais do que a outros.

Há aqui uma unilateralidade que entra em franca oposição com o ponto de

vista jurídico e neutro em que se baseia o liberalismo (Holanda, ibid; p. 139).

Para ele a consolidação da democracia no Brasil teria que passar pela

superação desta cordialidade sentimental. Holanda pensava que a vitória da

democracia no Brasil:

56

[...] nunca se consumará enquanto não se liquidem, por sua vez, os fundamentos personalistas e, por menos que o pareçam, aristocráticos, onde ainda assenta nossa vida social. Se o processo revolucionário a que vamos assistindo, e cujas etapas mais importantes foram sugeridas nestas páginas, tem um significado claro, será este o da dissolução lenta, posto que irrevogável, das sobrevivências arcaicas, que o nosso estatuto de país independente até hoje não conseguiu extirpar (Holanda, ibid; p. 135).

A esperança de Holanda, porém, e ele era um otimista, era de que a

superação desse personalismo arcaico nos conduzisse a uma democracia

sólida e à concreção da cidadania. Não foi o que aconteceu. Vivemos, como já

foi dito alhures, numa democracia amplamente embasada em práticas

clientelistas, impessoais e não mais arcaicas, é verdade, mas dificultadoras da

solidez democrática e da construção da cidadania. As últimas eleições para

prefeito no Município de Campos parecem confirmar este quadro. O que se viu,

com ampla cobertura da imprensa local e nacional, foi uma disputa renhida

pelo voto popular entre duas máquinas políticas montadas a partir da

manipulação de recursos públicos: uma máquina construída pelo governo do

estado e outra pela prefeitura. Os outros candidatos que não dispunham de

máquinas deste tipo foram derrotados no primeiro turno. Embora derrotados

tiveram votação expressiva, votação esta que parece estabelecer os limites do

clientelismo no município, uma vez que estes candidatos não teceram uma

rede grande de clientes.

A governadora do Estado, na tentativa de eleger seu candidato no

município, trouxe parte do secretariado à cidade. Além do secretário de

segurança, seu marido, licenciado para se dedicar à campanha em Campos,

um dos secretários que vieram foi o de Habitação, Fernando Avelino, que

promoveu um cadastramento para a distribuição de casas a um real por mês

pelo programa Morar Feliz. Segundo declarou à Folha da Manhã de 23 de

outubro, esta era a segunda fase do cadastramento. Na primeira foram

inscritos, ainda segundo ele, 16.634 pessoas. O programa social do governo do

estado, entretanto, que mais chamou a atenção da imprensa e da justiça

eleitoral por seu uso político durante a campanha foi o cheque cidadão. Trata-

se de um programa destinado a famílias cuja soma de renda mensal de seus

57

integrantes não chega a um terço do salário mínimo. O cheque, de cem reais, é

trocado por mercadorias em supermercados credenciados. Segundo a

assessoria da Secretaria Estadual de Ação Social o que ocorria durante a

campanha era um recadastramento dos sete mil cheques cidadãos distribuídos

em Campos. A Folha da Manhã de 16 de outubro de 2004 informou que Além

do recadastramento muitas pessoas estavam na fila para fazer a inscrição pela

primeira vez. No dia 13 de outubro, fiscais do Tribunal Regional Eleitoral

elaboraram um relatório de suas ações em posto de cadastramento do cheque

no Parque Leopoldina. Além de anotar nome e endereço, a responsável pelo

cadastramento, uma professora da rede estadual de ensino, anotava os dados

dos títulos eleitorais dos interessados: número, zona e seção. O relatório foi

entregue à juíza Maria Teresa Gusmão. Há indícios, porém, de que os cheques

estavam sendo largamente distribuídos.

O Ministério Público Estadual protocolou sob número 1981/04 uma

denúncia de uma cidadã que afirmava ter recebido o cheque em casa. Houve

quem ao buscar informações sobre o cheque cidadão tenha recebido material

escolar. Foi o que aconteceu com uma cidadã ao atender o chamado da

professora de seu filho de oito anos para comparecer ao CIEP 416, no Parque

Guarus, conforme notícia da Folha da Manhã de 21 de outubro. Esta

distribuição de material escolar no final do ano letivo chamou a atenção do

representante estadual do Ministério da Educação, Willian Campos, que

comunicou o fato à juíza Maria Teresa. A juíza eleitoral Denise Appolinária,

atendendo a pedido do Ministério Público suspendeu os programas

assistenciais da Prefeitura e do Estado no dia 23 de 0utubro. Tanto a Prefeitura

como o Governo do Estado recorreram da decisão. A suspensão dos

programas sociais, porém, foi mantida.

Na peça encaminhada à Justiça Eleitoral o Ministério Público

questionou, além da distribuição de material escolar, o cheque cidadão; o

programa estadual Jovens Pela Paz, que paga duzentos reais aos jovens que

estariam sendo encaminhados pela equipe de campanha do candidato Geraldo

Pudim; o programa Morar Feliz que cadastrava interessados em receber casas

58

populares a um real por mês e o Vale Alimentação23 da prefeitura, que

distribuía para famílias carentes vales de cinqüenta reais a serem trocados por

alimentos em estabelecimentos comerciais credenciados. Além do Vale

Alimentação, outra ação da Prefeitura que ganhou caráter eleitoreiro foi a

contratação de prestadores de serviço. Folhas de pagamento apreendidas no

dia 15 de 0utubro de 2004, quando Geraldo Pudim assumiu a Prefeitura por

menos de 48 horas, e que passaram a constar dos autos de um processo

movido pelo PMDB contra O PDT, apontavam para um número de 24.800

contratados. Os advogados do PDT, em sua defesa, alegaram que se tratava

de folhas de Julho, agosto e setembro e que, portanto, os nomes dos

contratados estariam sendo somados várias vezes, o que redundaria neste

número absurdo. Se fizermos a divisão por três, encontraremos mais de 8.000

contratações. Nesta defesa, entretanto, segue uma certidão assinada pelo

secretário de Administração Altamir Bárbara informando o número de

prestadores de serviço24.

Apesar da proibição, o cheque cidadão continuou a ser distribuído.

Matéria de O Globo, do dia 25 de outubro, noticiou a distribuição ilegal do

cheque e a reação popular à ação da Justiça Eleitoral que, escoltada pela

Polícia Militar, foi à Favela Tira-Gosto numa frustrada tentativa de impedir a

distribuição. Os fiscais não chegaram ao barraco onde os cheques estavam

sendo distribuídos. Alegaram que o lugar era perigoso. Populares que estavam

na fila enorme se manifestaram e falaram aos repórteres:

Minha casa está pura (vazia), não tem nada. Quero é ganhar o cheque. Se vocês derem isso no jornal, o Pudim vai parar de distribuir o cheque. Mas, se ele ganhar, sei que vou continuar recebendo o ano todo. A senhora vai me dar um emprego se eu não receber o cheque? (...) Saiam daqui porque nosso número é o quinze e vocês vão fazer a gente parar de receber o cheque.

O material escolar também continuou a ser distribuído. Fiscais do

Tribunal Regional Eleitoral apreenderam, no CIEP Nina Aroeira na Penha,

trezentas e noventa e seis mochilas, conforme matéria da Folha da Manhã, de 23 Segundo a Secretaria de Promoção Social da Prefeitura 30 mil famílias recebem o vale. 24 Folha da Manhã 24 de março de 2005

59

25 de outubro. No dia 27 de outubro, a Justiça Eleitoral aprendeu cem cestas

básicas da ONG Visão, fundada pelo ex-secretário estadual de Segurança, na

casa de uma merendeira de uma escola estadual na localidade de Ibitioca. A

diretora da escola tinha sido candidata a vereadora pelo Partido Social Cristão,

coligado ao partido do ex-secretário.

O mais grave, contudo, aconteceu no dia 29 de outubro, dois antes de

realizado o segundo turno. Neste dia foram apreendidos, na sede do PMDB

local, trezentos e dezoito mil e duzentos reais em espécie, divididos em notas

de cinqüenta reais. O dinheiro estava em duas bolsas semelhantes a outras

duas encontradas vazias. Foram encontradas também “listas de formadores de

opinião” com campo para anotações do endereço, zona, seção, local de

votação e número do título dos eleitores. Havia também pulseiras para marcar

aqueles que receberiam o dinheiro pelo voto. Diante de todos estes fatos o

Tribunal Regional Eleitoral pediu ao Tribunal Superior Eleitoral o envio de

tropas federais ao município a fim de garantir ordem e segurança no dia da

votação. O pedido foi aceito e as tropas federais chegaram à cidade no dia 30

de outubro de 2004.

Todos estes fatos apontam para a existência de um enorme mercado de

votos. Tanto é assim que, levada as suas últimas conseqüências, a lógica do

mercado implicou a transformação do voto em mercadoria e a sua conseqüente

compra e venda. Como vimos anteriormente a lógica do mercado é uma lógica

impessoal. Nas palavras de Weber, A comunidade de mercado como tal

constitui a relação mais impessoal que pode existir entre os homens. (Weber,

2004; p. 420) Além de impessoais, as relações de mercado são efêmeras. É

ainda Weber que reflete:

Do ponto de vista sociológico, o mercado representa uma coexistência e seqüência de relações associativas racionais, das quais cada uma é especificamente efêmera por extinguir-se com a entrega dos bens de troca, a não ser que já tenha sido estabelecida uma ordem que impõe a cada qual em relação à parte contrária na troca a garantia da aquisição legítima do bem (Ibid, idem; p. 419).

60

Como vimos, nenhum compromisso além da troca propriamente dita.

Aquele que adquire uma mercadoria sente-se livre para dispor dela da maneira

que melhor lhe convier. A relação de mercado é uma relação efêmera. Em se

tratando de mandato eletivo, torna-se um golpe profundo na idéia de

representabilidade política, fundamental para a solidez de qualquer

democracia.

O desenvolvimento da economia de mercado, no Brasil e no mundo,

com as conseqüentes industrialização, urbanização, crescimento populacional,

destruiu ou diminuiu significativamente as formas de domínio pessoal que eram

características das sociedades rurais pré-modernas. Como se sabe o

clientelismo está ligado, no seu nascimento, a essa sociedade tradicional onde

inexistiam relações impessoais características do moderno mercado capitalista.

Como pólos dessa relação havia, de um lado, os clientes, indivíduos, ou

melhor, pessoas desprovidas de bens materiais e de recursos de poder e, de

outro, pessoas que tinham acesso a ambos, às quais os desprovidos tinham

que recorrer para conseguirem as coisas. Isto criava laços de dependência

pessoal, numa sociedade de população escassa, que permitiam amplo domínio

político dos segundos sobre os primeiros. Segundo Nunes,

A modernização brasileira, em grande parte construída pela ação do Estado e não por uma classe social específica, a burguesia, não eliminou esse tipo de relação clientelista, apenas ampliou-a, pois, as díades características das descrições convencionais do clientelismo, tendem a transformar-se em redes extensivas nas sociedades modernas onde elas existem (Nunes, 1997; p. 32).

O que era relação pessoal transformou-se em relações de pessoas com

grupos ou de grupos com grupos.

O máximo de impessoalidade está expresso, entretanto, na compra do

voto.

61

3.2 A compra de votos

Com o objetivo de tentar perceber o caráter de classe e o tamanho do

mercado de compra de votos em Campos nas eleições de outubro de 2004, foi

aplicado um questionário em dois bairros da cidade. Um tipicamente de classe

média, o Flamboyant, outro representativo das camadas populares, a Penha.

Os resultados são os seguintes:

Tabela 3

44 43

6 72 4

1 23 10 46

3

0 5

101520253035404550

Flamboyant Média de 31 anos

PenhaMédia de 27 anos

Não receberam oferta de compra

Receberam oferta de compra

Bens Emprego Favores

Trocou o voto

Não trocou o voto

Como se pode ver a diferença por classe é mínima: 12% dos

entrevistados do Flamboyant receberam ofertas de compra de votos, contra

14% na Penha. Se a variável for o sexo, há uma igualdade absoluta no

Flamboyant: 50% dos que receberam ofertas de compra de votos eram

mulheres e 50% eram homens. Na Penha essa variável mostrou-se

significativa: 70% dos que receberam a oferta eram homens. A variável mais

importante, contudo, foi a idade. São, sobretudo, os jovens o alvo das ofertas

de compra de votos. São pessoas situadas na faixa dos 25 a 30 anos. Não

houve nenhuma oferta para pessoa com mais de 40 anos. Ora, a que se deve

62

esta maior incidência da compra de votos entre os jovens? A razão não parece

ser de ordem material. Não há dados suficientes para se afirmar que os jovens

estariam mais necessitados do que os idosos e, portanto, mais propensos do

que estes à venda dos votos. Uma hipótese mais plausível é a de que a

questão está situada no plano da moralidade e dos valores. As pessoas mais

idosas têm experiência de eleições do passado, nas quais a compra de votos

era muito menor ou inexistente e o clientelismo, personalizado, estava

embebido nas idéias de lealdade, fidelidade e dignidade no cumprimento da

palavra dada. Nesta sentido, é bem provável que por questões morais aos

eleitores mais idosos repugne a possibilidade de venda do voto. O auge do

clientelismo personalista, no Brasil, se deu, conforme sabemos, na República

Velha. No capítulo sobre o período de Os Donos do Poder, Faoro (ibid), citando

Carvalho Franco (ibid) fala da impossibilidade da compra de votos:

Essa dominação implantada através da lealdade, do respeito e da

Caminham no mesmo sentido as considerações do Dr. Wilson Paes

Candid

A minha participação política em Campos, se é que ela teve alguma

No que d respeito à procura por votos comprados, estes dois bairros

estão um pouco acima da média nacional que é de 9%, segundo pesquisa do

veneração, estiola no dependente até mesmo a consciência de suas condições mais imediatas de existência social (Carvalho Franco, Apud Faoro, ibid; p. 714) (...) O eleitor vota no candidato do coronel, não porque tema a pressão, mas por dever sagrado, que a tradição amolda. De outro lado, não se compra o voto, ainda não transformado em objeto comercial (Faoro, ibid; p. 715).

ato a vice-prefeito nas eleições campistas de 1976:

importância, primeiro por ser médico já dá uma condição muito especial pro indivíduo tornar-se admirado. (...) E eu sou daquele médico, daquele tipo antigo, daqueles médicos tradicionais. (...) O médico de família não era na verdade o médico que só fazia medicina. O médico de família ele era, além de assistir a família nas suas necessidades médicas, ele era o parteiro, ele era o clínico, ele era o amigo da família. Na briga de casais, os casais brigavam, ele era o conselheiro que chegava ali para intervir. Ele era o orientador da filha, dos filhos do casal (Entrevista 3). iz

63

IBOPE

do na classe média e que se traduz pelas nomeações para os

cargos

O clientelismo personalizado

specto do governo no Brasil foi a interpenetração das duas formas supostamente hostis de organização humana: a burocracia e as relações de parentesco.

que

superar seu secular personalismo ibérico, ingressasse no seleto

clube

25, e bem acima da média da região sudeste que é de 5% de eleitores

abordados por compradores de votos. Isto é um indício de que em Campos,

talvez, a compra de votos tenha sido maior do que a média nacional e bem

maior do que a média regional. Outra coisa interessante que os questionários

deixaram claro é que o recebimento do dinheiro nem sempre implica o

cumprimento do acordo. Há eleitores que, mesmo tendo recebido bens ou

favores, votam da maneira que querem. Na Penha, 43% dos que receberam a

oferta não efetuaram a troca. Quanto a isto há uma diferença significativa entre

os dois bairros. No Flamboyant, dos que receberam oferta pelo voto, ninguém

efetuou a troca.

Além deste clientelismo impessoal, há um clientelismo personalizado

com alvo sobretu

em DAS. É sobre isto o próximo item.

3.3

O mais surpreendente a

Stuart B Schwartz in Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial

Como foi visto anteriormente, a esperança de Holanda (ibid) era de

o Brasil, ao

das nações modernas e avançadas com suas instituições dominantes: a

democracia representativa, a economia de mercado impessoal, o Estado regido

pela lógica racional-legal. Por trás de tal esperança estava o pressuposto de

que a sociedade brasileira regia-se por uma ordem valorativa única que teria

que ser substituída por outra ligada à modernidade. Para Holanda estas são

duas lógicas excludentes: o desenvolvimento de uma impõe a atrofia da outra.

25 O Globo 16 de março de 2005

64

Passa longe de seu horizonte de reflexão a idéia de que tais lógicas podem

formar um amálgama, podem conviver no tempo e no espaço.

Deste ponto de vista, a posição teórica de Holanda, é uma posição

diferen

dade

valora

[...] a questão de se determinar a hierarquia de valores que logra

te da que Damatta (1980; 1991) apresenta na sua reflexão sobre o

Brasil. Para este autor, o Brasil modernizou-se, incorporou a lógica impessoal e

individualista da economia de mercado, imprescindível para a construção do

capitalismo, mas não destruiu totalmente os valores ligados ao personalismo.

Damatta fala, pois, de uma dualidade valorativa constitutiva da sociedade

brasileira. Tal dualidade se fundamenta na distinção, fundamental para o seu

pensamento, entre indivíduo e pessoa. O primeiro é figura que surge com a

sociedade moderna e suas principais instituições já citadas: o mercado

capitalista e o Estado burocrático racional ente que encarna a ordem jurídica

legal à qual todos devem se submeter e que, historicamente, pelo menos nos

países de capitalismo avançado da Europa, funcionou como promotor da

igualdade e da abolição das diferenças e dos privilégios que a sociedade

tradicional impunha. A pessoa está ligada às relações de parentesco e amizade

e às hierarquias e diferenças sociais que caracterizam as sociedades

tradicionais. Diferenças dadas, sobretudo, pelas relações de parentesco.

A importância de Damatta está, para além de apontar nossa duali

tiva, em construir uma argumentação no sentido de mostrar que essas

duas ordens estão articuladas como as duas faces de uma mesma moeda.

Nessa perspectiva não teríamos uma essência brasileira: raças, religião,

racionalidades, tristezas ou cordialidades. Teríamos, isso sim, uma

configuração específica onde se combinou legalismo formalista com relações

pessoais instrumentalizadas e imperativas (Damatta, 1991; p. 128). Houve

quem não concordasse. Jessé de Souza (2000), em sua reflexão sobre o

sentido da modernização brasileira, replicou dizendo da necessidade de

relacionar essa dualidade valorativa articulada à nossa estratificação social,

isto é, aos grupos sociais que compõem a sociedade brasileira:

comandar uma sociedade específica exige a articulação entre valores e estratificação social. Afinal é a imbricação entre domínio ideológico e acesso diferencial a bens ideais ou materiais escassos

65

que cumpre esclarecer (...) Nós não encontramos classes ou grupos sociais na obra de Roberto Damatta (ibid; pp. 191 e 192).

oda sociedade, no entanto, pressupõe a existência de valores gerais

não ne

amatta se debruça, ou

melho

discor

T

cessariamente ligados a este ou aquele grupo social específico. É claro

que, por conta das diferentes posições que os grupos sociais ocupam na

estrutura social, há entre eles conflitos e divergências, tanto no plano da

distribuição dos bens materiais, como no plano do pensamento, das

representações, dos valores éticos e morais. Os grupos sociais pensam e

agem de maneira diferente uns dos outros. Mas há, para além dessas

divergências, algo que liga esses grupos, que lhes dá unidade e faz com que

tal unidade se constitua como sociedade específica, com sua história, sua

língua, seus costumes, enfim, seu ethos peculiar. Se assim não fosse, a vida

coletiva jamais poderia compor-se como totalidade passível de ser explicada

por uma ciência particular. Esta demonstração talvez tenha sido a principal

contribuição de Durkheim para a reflexão sociológica.

A dualidade valorativa sobre a qual Roberto D

r, o transitar pelas duas ordens de valores, conforme a situação, ora

invocando uma, ora outra, é prática adotada por todos os grupos sociais

brasileiros, geral, portanto, e não alocada a este ou aquele grupo em particular.

No ensaio intitulado Você sabe com quem está falando?, Damatta

re sobre essa dualidade valorativa e mostra como ela pode se tornar um

recurso disponível para atores situados nas mais diversas posições de nossa

estrutura de estratificação social. Um dos méritos do ensaio de Damatta é

pegar um fato aparentemente banal da vida cotidiana brasileira e relacioná-lo a

uma teoria geral com grande capacidade explicativa de nossa vida coletiva. O

fato, ou fatos, são aquelas situações sociais concretas que possibilitam o uso

da expressão Você sabe com quem está falando?. São situações em que os

atores, inicialmente desconhecidos, estão diante das regras que deveriam ser

obedecidas por todos e um deles, através da pergunta citada, identifica-se de

alguma maneira, o que lhe permite contornar a regra e receber um tratamento

66

especial26. Para o autor, na sua linguagem de antropólogo social, trata-se de

um drama cotidiano que busca restabelecer a pessoa e a hierarquia, onde

havia indivíduo e igualdade. Nas suas palavras:

Finalmente com um quinto aspecto do “Você sabe com quem está falando?”, temos a oposição dramática e altamente significativa de duas éticas. Uma delas é uma ética burocrática, a outra é uma ética pessoal. De fato, quando uma regra burocrática, universalizante e impessoal perde sua racionalidade diante de alguém que alega sua filiação, casamento, amizade ou compadrio com uma outra pessoa considerada poderosa dentro do sistema, estamos efetivamente operando com uma situação muito complexa. Pois de um lado temos uma moral rígida e universal das leis ou regras impessoais que surgem como uma feição modernizadora e individualista e são postas em prática para submeter todos os membros da sociedade. E, de outro, temos a moralidade muito mais complicada das relações totais impostas pelos laços de família e teias de relações sociais imperativas, onde a relação pessoal e a ligação substantiva permitem pular a regra (...) A lógica de uma sociedade formada de “panelinhas”, de “cabides” e de busca de projeção social jaz, como estamos mostrando aqui, na possibilidade de ter um código duplo relacionado aos valores da igualdade e da hierarquia (Damatta, 1980; p. 168).

Evidentemente, uma vez que para Damatta essa dualidade de valores

torna-se o centro do sistema social brasileiro, tal duplicidade penetra a vida

social brasileira nas suas mais diferentes esferas. Tome-se, como exemplo, a

vida econômica. Tenha-se em mente uma lanchonete de bairro e o

Macdonalds27. No Macdonalds, para usar a terminologia de Damatta, só há

indivíduos. O atendimento é igual para todos, impessoal, portanto. Numa

pequena lanchonete de bairro há indivíduos e amigos. Há as regras do

mercado para os fregueses comuns e há o tratamento personalizado para os

amigos. Estes podem pendurar a conta, pedir coisas que não estejam no

cardápio, pedir o lanche para determinada hora e assim por diante. Na vida

burocrática do Estado a mesma coisa. É muito freqüente, se se tem relações

de amizade ou parentesco em determinadas repartições, o burlar a ordem

26 Segundo Damatta, um tratamento personalizado. 27 Não devemos nos esquecer que o Macdonalds é uma empresa de origem americana e expressa esses valores individualistas impessoais ligados à economia de mercado.

67

processual, passar por cima da letra dos regulamentos, dos prazos, dos

horários.

Parece que o mesmo vale também para a nossa vida política. Uma das

hipóteses deste trabalho é a de que os últimos pleitos para prefeito do

Município de Campos dos Goytacazes têm, à sua maneira, expressado essas

duas ordens de valores. Há o clientelismo impessoal para as massas, feito

através das políticas sociais públicas, os programas do Vale Alimentação e do

Cheque Cidadão e as amplas contratações para prestadores de serviços para

a administração, e o clientelismo ainda personalizado sobretudo para a classe

média. Este se concretiza, esta idéia faz parte da hipótese, com as nomeações

para os cargos de Direção de Assessoramento Superior, os DAS28. Os cargos

DAS são numerados de um a sete, inversamente proporcionais às respectivas

numerações. São de livre nomeação pelo prefeito. Antes de passarmos à

analise dessas nomeações, entretanto, algumas considerações teóricas se

fazem necessárias.

Roberto Damatta não foi o primeiro a perceber essa dupla ordem de

valores presentes na sociedade brasileira. Esta percepção se encontra na

epígrafe que introduz esta argumentação, na poesia modernista, notadamente

a de Oswald de Andrade, no tropicalismo. Mas fundamental para a hipótese do

clientelismo personalizado para a classe média será a reflexão de Roberto

Schawrz. Num ensaio intitulado Ao Vencedor as Batatas, Schawrz faz uma

análise da vida ideológica brasileira do século XIX e percebe, com muita

argúcia, nossa duplicidade moral e ética, à qual Damatta se referiu através de

sua terminologia própria de antropólogo social. Fundamental no pensamento

de Schawrz é que ele elabora sua reflexão sobre esses diferentes sistemas de

idéias tendo como pano de fundo a escravidão:

[...] no campo dos argumentos prevaleciam com facilidade, ou melhor, adotávamos sofregamente os que a burguesia européia tinha elaborado contra arbítrio e escravidão; enquanto na prática, sustentado pelo latifúndio, o favor reafirmava sem descanso os sentimentos e as noções em que implica. O mesmo se passa no plano das instituições, por exemplo, com burocracia e justiça, que

28 Segundo fontes da Secretaria Municipal de Administração existem cerca de mil cargos deste tipo na Prefeitura.

68

embora regidas pelo clientelismo, proclamavam as formas e teorias do estado burguês moderno (1981, p. 17).

Para Schawrz, apesar de adotarmos idéias ligadas à burguesia e ao

capitalismo europeus, a vida social brasileira girava em torno da instituição do

favor. Estamos aqui no plano do personalismo de Buarque de Holanda e de

Roberto Damatta. Contudo, o material empírico de que Schawrz se utiliza na

sua análise são os fatos narrados por Machado de Assis em alguns de seus

romances. O favor, como sabemos, está encharcado de pessoalidade. É quase

que uma relação tête - a - tête. Está envolto, tanto pela assimetria de que ele

como o clientelismo necessitam, como pelas idéias de compromisso, lealdade,

amizade, honra e, fundamental para a hipótese deste trabalho, reconhecimento

recíproco:

No momento da prestação e da contraprestação – particularmente no momento chave da do reconhecimento recíproco – a nenhuma das partes interessa denunciar a outra, tendo embora a todo instante os elemento necessários para fazê-lo. Esta cumplicidade sempre renovada tem continuidades sociais mais profundas, que lhe dão peso de classe: no contexto brasileiro, o favor assegurava às duas partes, em especial a mais fraca, de que nenhuma é escrava. Mesmo o mais miserável dos favores via reconhecida nele, no favor, a sua livre pessoa, o que transformava a prestação e a contraprestação, por modestas que fossem, numa cerimônia de superioridade social valiosa em si mesmo (Schawrz, ibid, p. 18).

Essa possibilidade de poder mostrar algum tipo de superioridade social,

mesmo na posição de mais fraco na relação com quem detém alguma forma de

poder, está vedada, pela forma impessoal com que o clientelismo hoje opera,

às camadas populares. No enorme mercado político que presenciamos hoje

em Campos, a grande clientela transformou-se numa massa anônima a exibir

sua miséria material e sua posição subalterna na estratificação social, ao

participar publicamente dessas relações clientelistas. Esta exibição pública de

penúria não confere reconhecimento e dignidade a ninguém, pelo contrário. Às

camadas sociais melhor situadas, pelo fato de manterem relações pessoais

com quem detém o poder político, ainda é dada a possibilidade de exibição de

alguma superioridade social, ainda é possível mostrar que são alvo do

69

reconhecimento por parte dos poderosos e que, num certo sentido,

compartilham do poder. Os cargos DAS, além de prover seus beneficiados de

alguns recursos materiais necessários à manutenção de seu status social,

confere-lhes também dignidade e prestígio.

Foi feito um levantamento das nomeações para esses cargos nos três

primeiros meses das gestões de Anthony Garotinho (1989/1992) até o governo

cassado de Carlos Alberto Campista (2005).

Tabela 4

Ano Prefeito Nomeações Designações Relação

1989 Garotinho 89 74 83%

1993 Sergio Mendes 134 46 34%

1997 Garotinho 506 12 2%

2001 Arnaldo Viana 551 287 52%

2005 Carlos Alberto Campista 703 186 26%

Fonte: Jornal Monitor Campista

A primeira observação que se pode fazer através desses números é a

do crescimento significativo das nomeações a partir do segundo mandato de

Antony Garotinho. As nomeações passaram de cerca de oitenta no primeiro

mandato para cerca de quinhentas no segundo. Isso talvez seja um dos

motivos explicadores de seu avanço sobre o eleitorado de classe média

verificado na sua segunda eleição. Se compararmos os números desta com a

primeira, veremos o grande crescimento de sua votação nas 99ª e 98ª zonas

eleitorais que são aquelas com melhores índices de escolaridade e renda.

Importante também parece ser a relação entre designações e nomeações.

70

Tabela 5

Zona Antony Garotinho José Claudio Lucinao D'angelo Rockfeller de Lima Euzi Peixoto Total75 27.312 2.345 712 2.800 153 33.32276 22.874 1.754 1.117 4.379 262 30.38698 18.500 2.143 4.130 8.364 378 33.51599 29.311 4.637 4.327 7.987 376 46.638

100 13.073 555 253 3.567 83 17.531129 23.836 1.596 928 3.118 195 29.673

Totais 134.906 13.030,0 11.467 30.215 1.447

Resultado das eleições para prefeito de 1996

Fonte: Tribunal Regional Eleitoral

A diferença entre as duas é simples: a nomeação diz respeito a alguém

que não faz parte do funcionalismo público; designação é o ato que coloca

quem já faz parte do quadro funcional em outro cargo ou função. Ora, é

perfeitamente plausível pensar que a barganha política se faz muito mais

facilmente com as nomeações do que com as designações que seriam, em

tese, atos mais administrativos. Neste sentido, a diferença de um mandato para

o outro do prefeito Antony Garotinho é muito ampla. Suas designações no

primeiro mandato totalizaram 83% das nomeações. No segundo, somente 2%.

Administrou melhor no primeiro mandato e fez mais política no segundo. Isso

permite afirmar que ele barganhou muito mais com a classe média na segunda

eleição do que na primeira, quando ficou visível que era exatamente neste

setor social que estavam suas maiores dificuldades eleitorais. Outrossim, é

interessante notar que este elevado número de nomeações e a diminuição do

percentual relativo entre designações e nomeações se constituiu como modelo

seguido pelos outros prefeitos, com diferenças não muito grandes.

É claro que essa relação entre nomeações para cargos DAS e classes

médias poderia ser melhor quantificada. Isso, porem, implicaria na localização

desses mais de dois mil nomeados, em indagar-lhes os níveis de escolaridade

e renda, as razões das nomeações. Trabalho exigente de equipe e de tempo.

Mas os números analisados acima permitem sustentar o argumento.

71

Talvez seja importante ainda anotar que foi possível perceber, pela

análise dos atos de nomeação, pessoas de mesma família notoriamente de

classe média bem como sobrenomes iguais, um provável sinal de

pertencimento a um mesmo grupo familiar.

72

4. Considerações finais

Vimos, no decorrer deste estudo, que para que a democracia se

consolide são necessárias algumas condições sociais. Isto é uma verdade

geral. As condições, entretanto, são específicas, isto é, variam de formação

social para formação social. Nos Estados Unidos essas condições foram dadas

pelo poder local, cujo exercício se caracterizava por mecanismos que

garantiam ampla participação igualitária na tomada de decisões. Este espírito

igualitário, como o demonstraram vários autores, se estendeu às instituições

políticas nacionais. Os maiores problemas que a democracia americana

enfrentou e está a enfrentar são aqueles decorrentes do desenvolvimento

econômico e que trazem alguma dificuldade para a qualidade da representação

política: enorme crescimento populacional, economia de mercado a colocar a

qualidade de consumidor acima da qualidade de cidadão, grandes

aglomerados urbanos onde se torna difícil a existência daquele espírito

comunitário primitivo.

No Brasil, ao contrário, as formas de exercício do poder local, antes de

se constituirem como base para a construção da democracia, mostravam-se

como obstáculo que esta construção teria que superar. O poder local, no Brasil,

durante nossa formação histórica, foi amplamente controlado pelas oligarquias

rurais que o exerciam sob a forma de mandonismo, coronelismo e clientelismo.

Todas estas formas de exercício do poder político de convivência muito

problemática com o regime democrático. Do ponto de vista lógico, portanto, um

dos requisitos para a instauração da democracia estava na superação desse

poder oligárquico. É claro que para que tal superação fosse bem sucedida

seriam necessárias determinadas condições sociais. A principal delas, talvez,

tenha sido a modernização sócio-econômica dada pelo avanço da economia de

mercado que, aliada ao conseqüente processo de urbanização, dissolveu os

antigos laços pessoais em que se baseava a dominação oligárquica.

Uma das idéias que norteou este estudo, foi que, no Município de

Campos dos Goytacazes, a ultrapassagem desta dominação se deu no ano de

1988, quando Anthony Garotinho se elegeu prefeito pela primeira vez. A

73

análise da campanha eleitoral permitiu observar práticas políticas, por parte de

alguns de seus adversários, características das antigas oligarquias. A

estratégia bem sucedida do candidato vitorioso foi exatamente a de vincular

seus principais adversários a essa política tradicional. Isto só se tornou

possível, porque havia condições objetivas para isso.

A primeira delas foi a existência de uma elite com comportamento social

muito excludente. Essa elite adotava, no sentido de Bourdieu, em várias

esferas da vida social, práticas aristocráticas. Ora, se se pensar que esta elite

era economicamente decadente e que, do ponto de vista político, o que se

tinha em 1988 era a presença das massas urbanas em um enorme mercado de

votos, eleitoralmente estar vinculado a ela era desastroso.

Por outro lado, uma idéia importante que perpassa o argumento

apresentado neste estudo é que as eleições de 1988 foram as primeiras a

sofrerem, de forma mais marcada, o impacto eleitoral da urbanização. E por

que 1988, se o município já apresentava, desde meados da década de setenta,

maior número de população urbana que rural? Campos foi um município cujo

notável desenvolvimento do núcleo urbano se deu como conseqüência da

pujança de sua economia agrária. Foi um município em que a organização

urbana se deu em torno dos interesses e da mentalidade rurais, o que permite

compreender a presença ainda em 1988 de práticas políticas ligadas à elite

agrária. Práticas estas que eram eleitoralmente contraproducentes, pois a

tentativa de domínio político pessoal ficava fadada ao fracasso diante das

camadas populares urbanas em um grande mercado de votos. O candidato

vitorioso foi exatamente aquele que não era, por sua origem social e profissão,

tributário desse tipo de política e se dirigia às classes populares pelos meios de

comunicação de massas, que era a forma mais adequada de angariar votos,

tendo em vista as condições sociais de então.

Mas em que resultou, no município, a ultrapassagem da política

oligárquica? Os fatos presenciados recentemente, nas últimas eleições,

permitem afirmar que a política tradicional foi substituída por um enorme

clientelismo montado a partir da inviabilidade eleitoral das antigas formas de

dominação pessoal e do vultoso montante de recursos orçamentários possível

74

com o advento dos royalties do petróleo. Este clientelismo, entretanto, tem

duas formas. Ele se mostra impessoal para as massas, através de vários

programas de políticas sociais, e de numerosas contratações para a prestação

de serviços públicos e personalizado para as camadas médias, através das

nomeações para os cargos em DAS.

Campos se tornou não um exemplo de democracia representativa, mas

um modelo de democracia clientelista, para usar a expressão de Hélio

Jaguaribe. Esta expressão deixa claro que tal clientelismo não é incompatível

com a democracia, como o eram claramente as antigas maneiras de exercício

do poder local: o mandonismo e o coronelismo. Contudo, se a democracia,

para se consolidar, precisa de determinadas condições sociais, estas não

podem ser dadas pelo clientelismo, pois este impede o surgimento de valores

caros à idéia de representação. A firmeza da democracia no Brasil, que

ninguém sabe em que ponto está, parece ter como uma de suas condições a

superação ou significativa diminuição deste clientelismo local. Talvez este seja

um de nossos desafios políticos.

75

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QUESTIONÁRIO N°

BAIRRO: IDADE: SEXO: RECEBEU ALGUM TIPO DE OFERTA EM TROCA DO VOTO? ( ) SIM ( ) NÃO QUAL FOI O TIPO DE OFERTA? ( ) DINHEIRO ( ) OUTROS BENS ( ) EMPREGO ( ) FAVORES TROCOU O VOTO? ( ) SIM ( ) NÃO

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Fontes complementares

Jornal O Globo de outubro de 2004

Jornal Folha da Manhã de agosto a novembro de 1988 e outubro de

2004

Jornal Monitor Campista de Janeiro a Março de 1989, Janeiro a Março

de 1993, Janeiro a Março de 1997, Janeiro a Março de 2001 e Janeiro a

Março de 2005

Secretaria Municipal de Administração

Secretaria Municipal de Ação Social