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Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa social Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais 22 a 26 de Outubro de 2012 275 DEMOCRACIA E DESIGUALDADE NA AVALIAÇÃO DE UMA ELITE NÃO-ESTATAL Angélica Ripari Mestranda em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá. Resumo: O estudo em questão avalia a relação existente entre a democracia e a desigualdade a partir da cultura política de dirigentes de FASFILs (Fundações e Associações Sem Fins Lucrativos) da cidade de Maringá certificadas pelo governo. Estes dirigentes compõem a elite nãoestatal da cidade, tendo ainda que muitos são membros de conselhos municipais, e, consequentemente, têm grande influência sobre a elaboração de políticas públicas. Acresce ainda que entidades como as FASFIL tiveram grande incentivo do Estado, tanto a nível federal como municipal, na defesa de uma atuação descentralizada e mais democrática. Tem-se ainda, dado que as entidades estudadas são certificadas pelo Estado como portadoras de finalidades públicas, espera-se dessas instituições que compõem a FASFIL uma defesa pela redução das desigualdades sociais. Com o grupo pesquisado foi aplicado um survey com 95% das entidades certificadas e, posteriormente, alguns respondentes foram selecionados para participar de grupos focais. Os resultados encontrados contrastam as expectativas iniciais. Em grande medida, os participantes demonstraram uma busca por distinções dos que consideram o “povo”; avaliam que o “povo” é incompetente e não deve participar da política; e ao mesmo tempo em que demonstram desejos pela redução das desigualdades, esperam a imutabilidade. Palavras-chave: Desigualdades sociais; Associativismo; Qualidade democrática.

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Page 1: DEMOCRACIA E DESIGUALDADE NA AVALIAÇÃO DE UMA … · Tem-se ainda, dado que as entidades estudadas são certificadas pelo Estado como portadoras de finalidades públicas,

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22 a 26 de Outubro de 2012275

DEMOCRACIA E DESIGUALDADE NA AVALIAÇÃO DE UMA ELITE NÃO-ESTATAL

Angélica Ripari

Mestranda em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá.

Resumo: O estudo em questão avalia a relação existente entre a democracia e a desigualdade a partir da cultura política de dirigentes de FASFILs (Fundações e Associações Sem Fins Lucrativos) da cidade de Maringá certificadas pelo governo. Estes dirigentes compõem a elite nãoestatal da cidade, tendo ainda que muitos são membros de conselhos municipais, e, consequentemente, têm grande influência sobre a elaboração de políticas públicas. Acresce ainda que entidades como as FASFIL tiveram grande incentivo do Estado, tanto a nível federal como municipal, na defesa de uma atuação descentralizada e mais democrática. Tem-se ainda, dado que as entidades estudadas são certificadas pelo Estado como portadoras de finalidades públicas, espera-se dessas instituições que compõem a FASFIL uma defesa pela redução das desigualdades sociais. Com o grupo pesquisado foi aplicado um survey com 95% das entidades certificadas e, posteriormente, alguns respondentes foram selecionados para participar de grupos focais. Os resultados encontrados contrastam as expectativas iniciais. Em grande medida, os participantes demonstraram uma busca por distinções dos que consideram o “povo”; avaliam que o “povo” é incompetente e não deve participar da política; e ao mesmo tempo em que demonstram desejos pela redução das desigualdades, esperam a imutabilidade.

Palavras-chave: Desigualdades sociais; Associativismo; Qualidade democrática.

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ANGÉLICA RIPARI

Em geral, as análises políticas mais recentes têm constatado que após vinte e sete anos de democracia no Brasil, já temos um regime consolidado. Por outro lado, temos uma realidade nacional com altíssimos níveis de desigualdade.

Em maio de 2011 foram apresentados dados sobre a extrema pobreza brasileira1. Eram, segundo os dados do censo 2010, 16,27 milhões de pessoas nessa condição, o que representa 8,5% da população brasileira.

Dados mais otimistas foram anunciados recentemente2. Segundo o IPEA, o crescimento dos salários, os rendimentos previdenciários e os programas sociais federais (como o “Bolsa Família” e o mais atual “Brasil Sem Miséria”) possibilitaram uma redução dos quadros de desigualdade social brasileiros em proporções jamais vistas. O coeficiente de Gini (medida adotada para o calculo das desigualdades sociais) atingiu em 2011 0,527, o menor índice alcançado desde 1960 (quando o coeficiente começou a ser medido). No entanto, estes níveis ainda projetam o Brasil entre os doze países mais desiguais do mundo.

Uma questão ressalta com a exposição destes dados: é possível a concretização de um regime democrático sob índices tão alarmantes de desigualdade social?

Para fins de uma análise sobre esta inquietação, proponho uma investigação sobre a cultura política de um grupo específico da elite. Exploro aqui as crenças e avaliações que os dirigentes de FASFILs (Fundações e Associações Sem Fins Lucrativos) da cidade de Maringá expuseram sobre a desigualdade social. Avalio ainda as possíveis consequências para a democracia.

Refiro-me aqui a associações organizadas, credenciadas e legalmente institucionalizadas. Foram selecionadas ainda apenas as associações maringaenses que têm algum certificado aprovado pelo governo federal, seja certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS), de Utilidade Pública Federal (UPF) ou de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP).

Estas instituições têm ainda grande importância para o cenário político da cidade, representam as cotas da sociedade civil nos conselhos gestores, acabam por influenciar ativamente não apenas as políticas públicas, mas também a estrutura do aparato público como um todo. Por tais razões, seus dirigentes (o objeto direto de pesquisa) representam o que denomino aqui como uma elite nãoestatal, tendo por critério para tal denominação a capacidade de influência deste grupo.

1 PASSARINHO, Nathalia. Brasil Tem 16,27 Milhões de Pessoas em Extrema Pobreza, Diz Governo. G1, Brasília, 03 mai. 2011. Caderno Política. Acesso em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2011/05/brasil-tem-1627-milhoes-de-pessoas-em-situacao-de-extrema-pobreza.html.

2 COSTA, Gilberto. Em 2011, Brasil Atingiu o Menor Índice de Desigualdade Social da História. Carta Capital, 25 set. 2012. Notícia publicada originalmente na Agência Brasil. Acesso em: http://www.cartacapital.com.br/economia/em-2011-brasil-atingiu-menor-indice-de-desigualdade-social-da-historia/

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DEMOCRACIA E DESIGUALDADE NA AVALIAÇÃO DE UMA ELITE NÃOESTATAL

A problematização é agravada ainda dado que havia uma expectativa (acadêmica principalmente) de que instituições como as que compreendem as FASFILs seriam representativas da sociedade civil organizada e cumpririam uma função de adensamento ao regime democrático. As ações destas instituições tem uma finalidade, direta ou indireta, de redução das desigualdades sociais. É devido então avaliar até que ponto estas expectativas refletem o que de fato ocorre.

Este estudo se apropria de uma metodologia mista, que mescla técnicas quantitativas e qualitativas. Tal mescla consiste, em um primeiro momento, na análise de um survey3 aplicado a presidentes ou representantes de associações maringaenses. Segundo levantamento realizado em outubro de 2010, havia em Maringá cento e treze FASFILs certificadas. Entre estas, foram sorteados aleatoriamente oitenta e dois dirigentes, compondo uma amostra representativa com nível de confiança de 95% e intervalo de confiança de 5%.

As questões propiciadas pela análise dos dados do survey fundamentam e direcionam a segunda parte da pesquisa: a aplicação de grupos focais com uma amostra selecionada entre os respondentes do survey. Foram realizados dois grupos focais. Um primeiro com quatro participantes e um segundo com três.

DEMOCRACIA E DESIGUALDADE

Muitos autores sustentam que é inviável que haja pauperismo e desigualdade socioeconômica em grandes níveis em regimes ditos democráticos. Os textos utilizados aqui como referência da cultura política da elite têm como motivação para os estudos o desvelar dos processos sociais que consolidam as desigualdades. Autores como Reis (2000), Scalon (2007), O’donnel (1999b) propõem análises que pretendem confrontar conclusões que naturalizam as desigualdades ou onde estas são propostas como consequências (quase) inevitáveis de uma organização social ou de um regime democrático.

Estes estudos questionam um ponto em contradição. Se por um lado as elites dizem preferir sociedades igualitárias, se preocupam com as condições de pauperismo encontradas, por outro os traços de sua cultura política levam a conclusões que estas elites esperam a imutabilidades dos quadros de desigualdade, e em grande medida, agem para que sua expectativa se consolide.

Este é um dos pontos principais de preocupação destes estudos, uma vez que a mutabilidade é dependente da posição da elite, já que, tendo em vista a centralidade e o poder de influência deste grupo, dificilmente uma política pública que vise reverter as desigualdades seria exequível sem sua aprovação (REIS, 2000).

A percepção que as elites têm sobre os assistidos consola este panorama. Scalon (2007)

3 O survey a que me refiro foi realizado para fins da dissertação de Eder Gimenes (2011). Este estudo embasa e orienta minha pesquisa pelo recorte populacional, banco e análise de dados e escolhas metodológicas.

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ANGÉLICA RIPARI

chega a afirmar que esta contradição, no final, “aprisiona” as massas. Isto porque as elites esperam mudanças, mas não abrem espaços possíveis para a mobilidade dos membros da não elite, o que acaba por conformar as desigualdades sociais.

Esta relativa dependência das crenças e valores da elite para a redução das desigualdades é o ponto inicial de relação entre a desigualdade e a democracia. A questão que se desenvolve é quanto prejudicial para a qualidade democrática é a manutenção de uma ordem de desigualdades sociais. Elaboro aqui três fatores para analisar esta medida.

O primeiro fator parte do pressuposto que para o exercício democrático é necessário autonomia de escolha de todos os indivíduos; e grandes níveis de desigualdade geram uma parcela da população incapaz de exercer sua autonomia.

O’Donnell (1999a) elabora este pressuposto democrático da autonomia. Para o autor, considerar a existência e as garantias para eleições livres e competitivas como um dos pressupostos básicos da democracia, é também considerar, indiretamente, que a população tenha capacidade cognitiva e autonomia para gerir suas decisões.

A aposta na democracia, deste modo, é uma aposta na autonomia de todo e qualquer cidadão, ainda que seja minimamente só para decisão de seu representante. Assim, um ponto de grande relevância na concepção democrática do autor é que esta institui um coletivo de agentes, de modo a denominar essa noção de “agency”.

Para esta concepção, é possível que haja um sistema democrático sem que esta noção de “agency”, seja respeitada; sem que toda a população, independente de sua vontade, aceite que todo indivíduo adulto têm competência para votar, e isso significa em outro plano dizer que eles têm capacidade para gerir suas próprias escolhas, erradas ou não. O desrespeito a esta noção não determina que não haja mais uma democracia, mas assim como para os outros fatores elaborados neste texto, o que é determinado pelo seu respeito é a qualidade democrática.

Em outras palavras, há graus de democracia que variam de acordo com o acesso aos direitos e liberdades, a participação, a transparência e responsabilidade pública, bem como, o ponto primordial para as finalidades deste artigo, o contexto social.

No caso da noção de agentes, se existe uma conjuntura de desigualdade tal que faz com que alguns indivíduos não tenham capacidade para gerir suas escolhas, a qualidade democrática é diminuída. Nas palavras de O’donnel:

(...) a simples e trágica situação das centenas de milhões de pessoas cujo desenvolvimento físico e emocional é "atrofiado" (esta é a expressão sintética usada pela literatura pertinente) pela desnutrição e pelas doenças típicas da extrema pobreza (...). Salvo no caso de indivíduos realmente excepcionais, [a desigualdade] impede a existência ou o exercício de aspectos básicos da agency,

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inclusive a disponibilidade de opções mínimas compatíveis com ela; essa "vida de escolhas forçadas" é intrinsecamente contrária à agency. (O’DONNELL, 1999a)

Um segundo ponto é que uma situação de discriminações e pauperismo conduz, consequentemente, à limitação de busca por direitos (O’DONNELL, 1999a). Mesmo em uma concepção tida como “minimalista”, são considerados direitos básicos para que se tenham eleições competitivas (como o direito a livre expressão, por exemplo).

O’donnel desenvolve um desdobramento destes direitos mínimos que chega a um leque extenso desse pacote que considera “básico”. O que se tem de mais claro, para uma democracia é necessário uma igualdade de direitos políticos (paridade no voto, poder ser votado, entre outros). Estende-se ainda aos direitos políticos e sociais, que segundo ele é uma condição para que os indivíduos sejam autônomos.

Esta correlação entre direitos civis e políticos também é encontrada em Miguel (2002), que defende que a desigualdade de poder, tendo por consequência o monopólio de um grupo, torna o “poder do povo” inaplicável. Esta desigualdade de poder, acrescida por desigualdade de renda, de informação e de instrução, torna o quadro ainda mais emblemático. Nestes termos, uma desigualdade política causada pela exclusão de uma parcela da população tem uma consequência social indissociável.

Além dessas consequências desgastantes para a democracia, a bibliografia aborda ainda a relação entre apatia política e desigualdade. Kerstenetzky (2002) cita pesquisas nas quais se verifica que a população menos favorecida tende a não participar da política. Assim, a desigualdade social e econômica afasta uma parcela da população da vida política, como também cria desinteresse de participação nesta parcela. Este desinteresse é causado pela incapacidade de participação, já que há falta de condição econômica para tal e distanciamentos produzidos socialmente, tendo em vista fatores como o tempo e o acesso a informação.

O’donnel chega a afirmar: “Los pobres son políticamente débiles” (O’DONNELL, p.73, 1999b). Para o autor, esta debilidade dos pobres proporciona um cenário de oportunidades para que as elites ajam taticamente em defesa de seus interesses, tendo por consequência o aprisionamento das grandes massas (assim como citado por Scalon) 4. Tal conjuntura tem por consequência ações das elites de cooptação, repressão seletiva e isolamento político contra os grupos subalternos.

Em linhas gerais, estes foram os três fatores apresentados: a perca da autonomia de uma parcela da população (cooptação); a perca da equidade de direitos civis e políticos (repressão), e a apatia política (isolamento político). A intenção para este artigo é demonstrar como estes

4 Interessante ressaltar que para O�donnel, não é a atuação das elites que criam as desigualdades. Estes grupos se aproveitam de um diferencial já dado para consolidar sua soberania sobre os pobres. Explorarei mais adiante o grau de responsabilidade das elites pelas desigualdades e suas motivações para agirem da maneira aqui descrita.

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ANGÉLICA RIPARI

desdobramentos da desigualdade prejudiciais para a democracia estão expressos nas avaliações e argumentações da elite estudada (os dirigentes de FASFILs da cidade de Maringá).

DESDOBRAMENTOS DA DESIGUALDADE

Os entrevistados demonstraram, tanto no survey como nos grupos focais, uma preocupação pelas desigualdades sociais. As declarações coletadas apontam uma relativa importância dada ao problema da pobreza e ainda uma crença de que seja possível reverter os quadros de desigualdade. No entanto, ao mesmo tempo em que se demonstram sensibilizados, expressam alguns argumentos que reforçam a segregação e o distanciamento entre eles e uma parcela da população que identificam como “povo”.

Nas argumentativas dos grupos focais, em nenhum momento os entrevistados afirmam categoricamente que pertencem à elite. Mas também não se incluem quando afirmam a culpabilização de um grupo de pessoas que não agem da forma que acreditam ser corretas.

GI2 – [...] “Eu não vou me submeter a trabalhar por oitocentos reais”. Que absurdo! Não é? Hoje uma família com cinco membros, cada um ganhando oitocentos reais, são quatro mil reais de renda. É... puxa... É uma excelente renda. Não é? Só que hoje o que acontece? O povo num... Dois três trabalha e quatro cinco se encosta. Né... é essa daí a realidade hoje, do povo, da nação. Daí eu me atrevo a dizer da nação. E é uma tristeza, não é?

Descreve-se desta forma uma realidade “do povo”, mas não se inclui ao povo. Abarcam ainda no argumento a “nação”, mas aparentemente expressam que a nação, o coletivo, seja prejudicada pela ação do “povo”.

Em alguns trechos aparece ainda uma necessidade da segregação, como intencional e estrategicamente eficaz.

GI2 – [...] o prefeito aqui anunciou uma vez, (...) botou aí em são Paulo Curitiba outdoor dizendo: “Maringá – cidade que todo brasileiro gostaria de morar/viver”.

GI4 - Vir né.

GI2 - Aí não sei o que... o que que aconteceu? Aconteceu também com Ribeirão Preto. Em Ribeirão Preto o prefeito falou que era a Califórnia Brasileira. Daí o que que aconteceu? Deu nem dois três anos que encheu de bandoleiro, de não sei o que. Quer dizer, vem gente boa e vai vir gente ruim. Então, é a mesma coisa quando eu falo, quando você globaliza as coisas, não vem só coisa boa. É mais fácil vir os piores do que os...

Ao justificar as mudanças que aconteceram na cidade nos últimos anos, os participantes do grupo focal expressam uma necessidade e desejo de seleção dos “melhores” (em contraponto aos “piores”). Há, nestes argumentos, uma busca pela segregação criando um discurso para

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inferiorizar um dado grupo da sociedade e se distinguir.

A) PERCA DA AUTONOMIA – COOPTAÇÃO

O primeiro fator anunciado das consequências da desigualdade para a democracia é a perca da autonomia de uma parcela da população. Ou, em outra formulação, há uma parcela que é cooptada. Sinais que evidenciam a existência deste desdobramento foram encontrados nos dados coletados. Um primeiro sinal que atento aqui é o reforço de uma manutenção das hierarquias.

Foi encontrado nas respostas do survey certo apego à manutenção da ordem através da hierarquia. Os entrevistados deviam responder se concordam ou não com a sentença seguinte: “sem hierarquia definida nenhuma ordem se sustenta”. 87,5% dos respondentes concordaram com esta afirmação.

Tabela 1 - Sem hierarquia definida nenhuma ordem se sustenta %

Discorda totalmente 2,5Discorda 10,0Concorda 42,5

Concorda totalmente 45,0Fonte: Pesquisa “Cultura política e elites não-estatais”, 2011.

Outra questão do survey promove uma reflexão de como a defesa pela hierarquia está associada à criação de distinções e busca por segregação. Perguntados agora se concordam que “a melhor sociedade é aquela onde cada um sabe o seu lugar”, 87,7% responderam afirmativamente.

Tabela 2 - A melhor sociedade é aquela onde cada um sabe o seu lugar %

Discorda totalmente 2,5Discorda 9,9Concorda 53,1

Concorda totalmente 34,6Fonte: Pesquisa “Cultura política e elites não-estatais”, 2011.

Considerando que a elite estudada tem expectativas sobre uma sociedade embasada na hierarquia, acentuando que tal hierarquia representa a não intervenção de uma parcela da população que julgam inferiores, esta ordem que propõem pode ser lida como uma forma de cooptação.

Estas expectativas também aparecem nos grupos focais. Neste, os entrevistados narram um tempo anterior no qual havia desigualdade, mas não era tão intensa como hoje. Essa modificação é justificada pelo Estado não mais ter controle sobre a população, os pais não ter mais autoridade sobre os filhos, os jovens poderem frequentar as ruas e fazerem o que quiserem.

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ANGÉLICA RIPARI

GI3 - Eu não sei quando é que aconteceu, quando é que aconteceu nessa história? Deve ser nos anos 60. Aquele pessoal revoltado, aqueles jovens todos achando que droga é legal, que não sei o que, o que que...

GI1 - Anos setenta, não é?

GI3 - O senhor (voltando-se para GI2) falou de uma época em que as famílias se preocupavam, que as famílias se preocupavam com os filhos. Que mandavam pra escola, que se preocupavam. Que ficavam bravos mesmo. Que agradeciam o professor e tal. Quando é que aconteceu isso? (...) Daí começou essa... desgringolar desse jeito. Em algum momento aconteceu isso, não é?

GI2 - Eu acho que esse problema que a senhora falou aí foi um problema gradativo. Mas foi um problema de... de queda de hierarquia.(grifos meus)

Na fala citada acima, a ausência de hierarquia é responsabilizada pelo “desgringolar” da sociedade. Por meio de um argumento de causa e consequência, a não hierarquia geraria a quebra de valores que consideram primordiais, o que justifica a intensa defesa pela manutenção. No entanto, este argumento ainda reforça traços de desigualdade e ilustra, em certa medida, a cooptação da população.

Além da manutenção da hierarquia, um ponto central que aparece nas argumentações é a perca da autonomia. O trecho que segue denota a presença de tal fator na avaliação do grupo estudado.

GI4 – (...) nós se defrontamos com essa situação no dia a dia ali, porque pra quem que nós realizamos a vizita? [se referindo à atividade da entidade] Praquelas pessoas que são as mais pobres da periferia. Daí a gente constata (segue a fala enumerando com os dedos): que os filhos não estão na escola, os pais não tem domínio mais sobre os filhos, 10, 12, 15 anos, acabou. Não há mais autoridade nos lares.

A argumentativa que predomina nos grupos focais é que há uma parcela da população que se distingue deles por diversos fatores. Tal distinção gera distanciamentos que vão de questões mais estruturais às mínimas atividades destes indivíduos. Deste modo é determinado que um dado grupo de pessoas são ignorante, não são capazes de fazer compras (em outros momentos afirmam que tais pessoas referidas são facilmente enganadas pelos anúncios de parcelamento de mercadorias) ou de cuidar de seus filhos. Ou seja, tal elite acredita que há uma parcela da população que não tem capacidade de autonomia para gerir a própria vida. Os posicionamentos sobre o Programa Bolsa Família expressam como esta perca de autonomia que identificam se transfigura no voto.

GI4 – (...) é a falta de instrução do povo mesmo... de uma grande maioria mesmo é a falta de instrução. Porque eles são massa de manobra da classe política, e a classe política gosta disso daí mesmo. Fica... é fácil. Com pouca coisa, há uma

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DEMOCRACIA E DESIGUALDADE NA AVALIAÇÃO DE UMA ELITE NÃOESTATAL

certa dominação dessa classe. Com pouca coisa obtêm o voto deles.

Os participantes evidenciam desta forma uma crença na ausência de capacidade da população no discernimento de decisões políticas. Para esta compreensão, o “povo” não tem autonomia para participar ativamente do mundo público.

B) DESIGUALDADE DE DIREITOS – REPRESSÃO

Como venho demonstrando, a desigualdade social tem desdobramentos dado um grupo que consegue monopolizar o poder, potencializando que uma parcela da população fique à margem das conquistas que o regime democrático traz. Entre estas conquistas está a equidade de direitos, que é barrada em sociedades com altos índices de desigualdade. Os indivíduos marginalizados passam a ser reprimidos por uma condição que não responde igualmente quando a legislação é para julgar um membro da elite e quando é para julgar alguém do “povo”.

Para além das consequências de um regime democrático convivendo com uma intensa desigualdade social, o que atento aqui é como tais fatores ecoam na cultura política da elite pesquisada. Neste sentido, a fala de GI4 reproduz ao mesmo tempo em que endossa uma desigualdade de direitos civis.

GI4 - É muito triste! É muito triste o que observamos hoje. Muitas, mas muitas famílias ouviram falar de Jesus Cristo, ouviram falar. Mas muito superficialmente quando ouviram. (...) Então, são crianças que estão aí, sem batismo, sem catequese. E daí cresce daquele jeito... E até nós brincamos um pouquinho que é... nós percebemos que a criatura humana hoje não há muita diferenciação dos animais. O senhor mesmo falou no início aí que há muitos casais que não são regularizados, nem no civil e nem na igreja. Então qual é a diferença entre... dos animais. Então em todos os sentidos isso tá acontecendo hoje. Há um desvirtuamento muito grande dos valores. Então, a gente tenta trabalhar todos esses fatores aí.

Em situações como as narradas acima, na qual a entidade aparenta ter liberdade para ultrapassar a moral pessoal dos que a organizam e acabam sendo contrários a lei sobre liberdade de culto; Ou ainda quando um entrevistado afirmou que atendem em sua entidade apenas famílias, ou seja, casais (obviamente heterossexuais), casados no religioso e preferencialmente com filhos; Quando em situações de vulnerabilidade, os indivíduos parecem estar submetidos às regras e à moral imposta pelas associações, seja qual regra for. Tal vulnerabilidade representa a perca de direitos civis básicos de uma parcela da população em sociedades desiguais.

E como defende O’donnel (1999a), os direitos civis e políticos estão interligados intimamente. Assim, aspectos que ilustram como está incutido nos entrevistados valores que expressam uma expectativa pela desigualdade de direitos políticos foram também encontradas nos dados.

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ANGÉLICA RIPARI

No survey há alguns dados que vão ao encontro desta análise. Quando perguntados se os brasileiros sabem votar, 86,4% responderam que não sabem (em uma escala de 1 a 10, a estatística refere-se as respostas de 1 a 5). Atentando ainda que nenhum dos respondentes afirmou que a população brasileira sabe votar (as respostas mais altas atingiram nível 7 na escala).

Tabela 3 - Brasileiro sabe votar %

Extremo Positivo Extremo NegativoNíveis de 10 a 8 Níveis de 1 a 3

Brasileiro sabe votar 0 35,8Fonte: Pesquisa “Cultura política e elites não-estatais”, 2011.

Em outro momento, foi questionado quem acreditam que o governo deveria levar em conta na elaboração das leis. Deveriam escolher entre duas alternativas: a maioria da população ou um grupo seleto com conhecimento. 67,1% afirmaram que o grupo seleto deve ser mais ouvido. Os dados representam uma visão negativa do coletivo, do “povo”. Tido como não competentes para participar ativamente da vida pública (nem ao menos eleger e opinar sobre as leis).

Tabela 4 - Quem deve ser considerado na elaboração das leis %

A opinião de pessoas que realmente saibam algo sobre o assunto

67,1

A opinião da maioria dos cidadãos 32,9

Fonte: Pesquisa “Cultura política e elites não-estatais”, 2011.

Corroboram assim com a ideia de que as ações de um grupo de pessoas, aos quais eles se distinguem, prejudicam a coletividade.

C) APATIA – ISOLAMENTO POLÍTICO

A apatia política chega a ser pressuposto como consequência das posições anteriores. Os mais prejudicados pelas desigualdades sociais, sem autonomia, sem direitos, subordinados ao querer das elites dominantes, não há espaços nem motivações para tais indivíduos se envolverem nas decisões políticas.

Neste sentido, algumas argumentativas coletadas se referem às expectativas apáticas da população com os acontecimentos políticos. A crença da impotência do cidadão médio expressada abaixo segue tal expectativa. A discussão citada se desenvolve em situação onde os participantes do primeiro grupo focal expõem suas impressões sobre uma determinada charge.

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DEMOCRACIA E DESIGUALDADE NA AVALIAÇÃO DE UMA ELITE NÃOESTATAL

GI2 - Aquele papai Noel (se referindo à gravura que representa o Lula na charge). (risos) Certo? O papai Noel com o chapéu alheio. (risos) Certo? Tomando dinheiro do coitado do trabalhador.

GI4 - Exatamente

GI3 - Descontente. Mas não pode fazer nada.

GI2 - E... com a cara feia lá, mas tem que se conformar. Enfiaram a mão no bolso dele e fica quieto. (grifos meus)

O debate sugere que não cabe ao cidadão médio qualquer intervenção política. Há desdobramentos das decisões em um âmbito distante, e o “povo” “não pode fazer nada”. Há uma expressão nesta argumentativa de que quase naturalização do afastamento político de uma parcela da população.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A exposição contida neste artigo explora os fatores que levam a desigualdade a reduzir a qualidade de um regime democrático. Foram enumerados três fatores: a perca da autonomia (cooptação); a desigualdade de direitos civis e políticos (repressão); e a apatia política (isolamento).

A partir de tal elaboração teórica, procurei evidenciar como tais desdobramentos da desigualdade estão amplamente presentes na cultura política da elite. Mais especificamente o estudo ilustra os valores de uma elite nãoestatal, de dirigentes de FASFILs de Maringá.

Estas evidências denotam que a elite estudada tanto reproduz tais valores gerados desta estrutura de desigualdades, como ainda reforça as distinções. Aparentemente, esperam uma continuidade dos traços denunciados. Em alguns pontos afirmam que seja possível a redução das desigualdades, mas as características citadas como consequentes de uma situação de pauperismo são tidas como quase naturalizadas.

Page 12: DEMOCRACIA E DESIGUALDADE NA AVALIAÇÃO DE UMA … · Tem-se ainda, dado que as entidades estudadas são certificadas pelo Estado como portadoras de finalidades públicas,

Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa socialUniversidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais

22 a 26 de Outubro de 2012286

ANGÉLICA RIPARI

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