dementes perigosos

38

Upload: gilberto-marassi

Post on 05-Jul-2015

157 views

Category:

Documents


6 download

DESCRIPTION

Uma crítica bem-humorada ao best-seller "Mentes Perigosas", com um polêmico viés interpretativo.

TRANSCRIPT

Page 1: Dementes Perigosos
Page 2: Dementes Perigosos

Sumário

Agradecimentos 7

Sobre o autor 9

CAPITULO I Uma breve apresentação 13

CAPITULO II O risco de estabelecer padrões normais de humanidade 17

CAPITULO III Psicopatas na ficção 23

CAPITULO IV Lógica versus psicologia: o bem e os psicopatas 29

CAPITULO V O mal e os dementes 39

CAPITULO VI Dementes e psicopatas interagindo 43

CAPITULO VII O sapo e o escorpião, versão Discovery Channel 49

CAPITULO VIII O mal que o bem faz 53

CAPITULO IX Especulações sobre Ayn Rand 57

CAPITULO X A teoria dos jogos e o “altruísmo egoísta” 63

CAPITULO XI Para não dizer que não falei dos serial killers 67

CAPITULO XII Algumas conclusões 71

Page 3: Dementes Perigosos

“A moralidade é o último refúgio dos imbecis”(Olavo de Carvalho - O Imbecil Coletivo)

54

Page 4: Dementes Perigosos

Agradecimentos

Como bom sociopata, realizei tudo sozinho. Logo, não tenho a quem agradecer. Se devo esta obra a alguém, é à dra. Ana Beatriz Barbosa Silva e seu instigante livro, que de maneira alguma se enquadra no conceito de “demente” que tento desen-volver aqui; no de “perigoso”, talvez... mas o fato é que me apro-priei de seu sucesso para opor a ele minhas tresloucadas ideias: é coisa típica de psicopata usar o alheio. Espero que eu consiga fazer entender, pelo menos neste caso em específico, que isso não é necessariamente uma coisa ruim.

Também sou grato a todas as pessoas que conheço que sempre aceitaram a verdade que lhes é mais conveniente, abrin-do mão da reflexão sobre a possibilidade lógica daquilo tudo ser um equívoco, ou pelo menos de não ser a única versão dos fatos. Sem elas, não haveria inspiração suficiente.

76

Page 5: Dementes Perigosos

Sobre o autor

Na faculdade de filosofia, tínhamos um passatempo: descobrir qual o grave problema que motivou cada um a fazer um curso tão marginal. Eu, no alto da minha vaidade juvenil, ar-riscava dizer que só podia ser a minha perfeição, a completa falta de qualquer revés em meu caráter, que me motivou a procurar respostas sobre a própria possibilidade disso. Brincadeiras à parte, um bom tempo depois, finalmente entendi a razão: trans- torno de personalidade anti-social. Eu sou um psicopata.

Não acho que seja doença grave (de fato não acho nem que isso seja doença...), pelo menos não para mim que não de-senvolvi (ainda) o gosto por ceifar vidas. Mas o sintoma mais patente do distúrbio, a ausência de sentimentos, sobretudo o remorso, ah, isso eu tenho de sobra. Talvez esta característica acarrete em todas as demais que configuram o quadro: ateísmo, megalomania, manipulação... o que eu sei é que minha condição não combina com uma atividade que tento arduamente executar, a de compor poemas. O que me leva a uma reflexão estapafúrdia: ou eu devo ser um fracasso completo neste intento, ou a poesia (da maneira mais superficial e errônea possível de se lembrar o famoso poema do Pessoa) é mesmo um fingimento.

Mas não quero tirar nenhuma conclusão antes que a tira-nia do leitor o faça, até porque aqui não tratamos dos meus ver-sos. Mas como apresentação do autor de um livro, é importante neste momento que se dê o alerta de que não há sentimentos aqui, nem de orgulho, nem de rancor, ou mesmo de ódio: são só palavras. Vazias como eu.

Para completar o perfil do (ir)responsável pelo texto, aqui fica minha ressalva: caso ainda reste alguma dúvida sobre o que eu sou, saiba que além de ter estudado filosofia e escrever po-emas, trabalhei com propaganda; outra pessoa na história da hu-manidade também reuniu essas três funções: Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler. E não é demais lembrar que o

98

Page 6: Dementes Perigosos

tal realmente desenvolveu uma carreira brilhante arrebanhando milhares de alemães em sua ideologia grotesca... obviamente, an-tes de envenenar meia dúzia de filhos, sua esposa e a si mesmo. Para os astrólogos de plantão, também é conveniente citar que nasci no dia 6 de maio, assim como os serial killers Martha Beck e David Joseph Carpenter...

Se ainda tiver coragem de ler este livro até o fim, é im-portante atentar-se ao último capítulo, que contém informações complementares de extrema importância para o meu “retrato”, que recomendo fortemente.

Boa leitura!

1110

Page 7: Dementes Perigosos

“A normalidade étão-somente uma

questão de estatística”(Aldous Huxley)

CAPITULO I

UMA BREVE APRESENTAÇÃO

Page 8: Dementes Perigosos

Após ler o best seller “Mentes Perigosas”, da Dra. Ana Beatriz Barbosa Silva, tive duas sensações: primeiro, a de que de-finitivamente este livro fala sobre mim; depois, a de que a tônica dicotômica, maniqueísta, da luta das pessoas de bem contra os psicopatas insensíveis merece um adendo.

Este livro pretende ser este “porém”, e basicamente vai discorrer sobre o prejuízo que os indivíduos que sentem demais causam à humanidade e a possibilidade de psicopatas viverem em harmonia com a sociedade. Como não existe, obviamente, lite- ratura sobre este tipo de pessoa que quero traçar aqui, o destrui-dor de boa intenção, vamos chamá-lo simplesmente de “de-mente”; talvez a nomenclatura não seja assim tão precisa, mas eu não poderia perder a piada nem o jogo de palavras... para se entender de que forma serão contrapostos dementes e psicopa-tas, o livro fará uma incursão por fatos e reflexões sobre em que ponto é interessante agir de maneira fria e em quais momentos a boa vontade pode ser prejudicial, podendo até matar.

Não há outro objetivo aqui senão o de oferecer argumen-tos para se pensar melhor o comportamento das pessoas e quais os riscos de se enquadrar perfis semelhantes em uma patologia. Não é nada que Machado de Assis já não tenha feito há anos com o seu “Alienista”, ou que Michel Foucault não tenha explorado ao longo de seus estudos sobre a loucura, um pouco mais tarde.

Por fim, é importante que se diga: este livro não é uma paródia, nem tem envergadura acadêmica para ser uma crítica ao trabalho da Dra. Ana Beatriz. Trata-se de um ensaio comple-tamente descomprometido com o rigor científico, absolutamente desconexo e superficial (opa, mais uma característica marcante do jeito de ser psicopático). Se a capa e o tema fazem alusão a algo cômico, é apenas com o objetivo de inserir um pouco de humor para tornar mais leve um tema que está sendo tratado com toda... melhor, com alguma seriedade. E também para se chamar a atenção pela polêmica e vender mais exemplares (se o filósofo alemão Arthur Schopenhauer fez o mesmo com sua obra

“Como vencer um debate sem precisar ter razão”, em que não havia qualquer relação do título da obra com seu conteúdo, por que eu não posso?)

1514

Page 9: Dementes Perigosos

“Ser ‘normal’ é o ideal dos que não têm êxito,

de todos os que se encontram abaixo do nível geral de adaptação”

(Carl Jung)

CAPITULO II

O RISCO DE ESTABELECER PADRÕES NORMAIS DE HUMANIDADE

Page 10: Dementes Perigosos

Toda vez que se fala sobre normalidade, no que tange aos seres humanos, eu (e uma boa parte da literatura filosófica do assunto, acredito) fico com um pé atrás. Insinuar em um manu- al que pessoas sãs, regulares e comuns devem pensar ou sentir de dada maneira é, no mínimo, problemático. A história não me deixa mentir: na Idade Média, o livro Malleus Maleficarum (tra-duzido para o português como Martelo das Bruxas) servia de guia para que os inquisidores pudessem reconhecer, através de uma série de características, aqueles que não se enquadram na categoria de humano (tidos como bruxos ou feiticeiros), para condená-los à execução; o livro Mein Kampf (Minha Luta), de Adolph Hitler, estabelece uma série de características físicas e mentais daqueles que não podem ser considerados (adivinhem?) seres humanos perfeitos. Logo também foram criados meios de assassiná-los. Estima-se que, juntos, o holocausto e a Santa In-quisição tiraram a vida de 15 milhões de homens (ou quase-ho-mens, segundo as próprias doutrinas...)

Quando o livro “Mentes Perigosas” alerta para que não se tenha amizade, relacionamento afetivo ou negócios em comum com um psicopata, está condenando 280 milhões de pessoas (4% da população mundial, segundo a própria obra sugere) a uma situação de isolamento, por não serem pessoas “de bem”, por serem todos perigosos e acometidos de uma doença ou deficiên-cia incurável; afirma, com todas as letras, que os psicopatas não possuem a consciência característica da espécie humana. E mais: dá dicas aos seus leitores de como identificar essa abominável criatura, mesmo alertando aqui e ali que uma classificação segu-ra só pode ser feita por um profissional experiente e gabaritado. Percebe o risco?

Tenho para mim que, por mais difícil que algumas vezes seja admitir, os seres humanos são exatamente essa sorte de ti-pos, feições, pensamentos e atos que nós vemos por aí todos os dias. Não é o fato de eles fazerem ou pensarem algo diferente do que a maioria faz (ou algo distinto daquilo que é moralmente aceito, para não falar apenas em números) que fará deles menos

humanos (não serem “como nós”), ou doentes. O que pode ser condenável, no meu ponto de vista, é o ato antissocial, aquele que todos estabelecemos como prejudicial à sociedade. E este é feito por pessoas também de todos os tipos, seja por uma fria ambição ou por uma ação passional. Sendo simplório, até: para seguir os interesses de uma comunidade, é preferível quem odeia e ajuda àquele que ama e prejudica. E é justamente aí que chegamos ao objeto do nosso estudo: o demente.

Fazer algo em nome do bem e da consciência humana é admirável, mas não em todas as ocasiões; uma estupidez será uma estupidez sempre, independentemente das motivações de quem a fez. Se você der esmola a um mendigo e ele comprar cachaça, se embriagar e morrer atropelado, alguém poderá te dizer que a culpa não é sua, pois sua única intenção foi ajudar. Não se iluda: a culpa é sua, sim. Sua caridade o matou, indireta-mente. Se ele soubesse gastar seu próprio dinheiro, não seria um mendigo, oras! Sua ajuda foi irracional, e gerou consequências. Quando o código penal distingue os crimes por culpa ou dolo, mesmo que se considere um fator psicológico de intenção, o ato não deixa de ser crime pela ausência desta; no máximo, há uma redução na pena. O exemplo do mendigo alcoólatra foi caricato e não se enquadraria na lei, eu sei, mas vamos nos debruçar mais um pouco sobre o sentido do que é ato e do que é pensamento, num exemplo menos raro de se ver:

Se o namoradinho da sua filha adolescente a mata, qual a diferença prática entre o fato de ele ter sido motivado por um amor intenso e não correspondido ou um ímpeto frio de eliminar um problema? Sejamos honestos e razoáveis aqui: não estamos falando de intenção desta vez, mas de motivação para uma ação, que num caso é emotiva e no outro não.

É importante também se questionar sobre a contrapartida desta reflexão: se pessoas que nutrem sentimentos pelos outros podem fazer o mal, por que aqueles desprovidos de afeto não podem fazer o bem? Precisamos dizer então que é possível que

1918

Page 11: Dementes Perigosos

pessoas que não tenham sentimentos como a maioria das demais vivam uma vida absolutamente livre de atos antissociais que le-sem a quem quer que seja, tal como é perfeitamente aceitável que, por pura ignorância, pessoas motivadas por boas intenções cometam delitos. A distinção é necessária para que o leitor não pense que há aqui uma ode à psicopatia, mas apenas uma pro-posta de reflexão sobre o que realmente é o bem e o mal.

Podemos começar assistindo um pouco de televisão...

2120

Page 12: Dementes Perigosos

“Não sou um psicopata, sou um sociopata funcional.

É diferente”(Sherlock Holmes,

na série da BBC “Sherlock”)

CAPITULO III

PSICOPATAS NA FICÇÃO

Page 13: Dementes Perigosos

Você já se perguntou porque determinados personagens exercem tamanho fascínio e admiração em seus expectadores, mesmo sendo personalidades antissociais? Para citar algumas séries, “Dexter” conta a história do cidadão homônimo que, ten-do visto na infância sua mãe ser assassinada, adquiriu certo... apetite para matar. Treinado pelo padrasto, ele canalizou esta vontade, cometendo sua carnificina apenas com assassinos que escaparam à condenação. “Dr. House” é um médico especialista em diagnósticos que não tem qualquer envolvimento afetivo com os pacientes que trata, e nem faz questão, mas é simplesmente o melhor no que faz.

Por que torcemos para Dexter cortar em pedaços suas víti-mas, e por que gostamos tanto do jeito rabugento do House no trato social? Por que personagens que não tem a menor conside-ração pelos seres humanos são considerados heróis? Creio que a resposta é calcada justamente no fato de considerarmos as ações deles mais louváveis que suas personalidades. Dr. House salva vidas, Dexter impede que vidas sejam tiradas, e isso da maneira cruel e perversa que é própria de seus modus operandi; não seria exagero dizer que o produto do trabalho deles só é possível por meio deste método e desta personalidade peculiar. É exatamente este o detalhe que muda tudo: por considerarmos perversa a noção maquiaveliana de que o fim justifica os meios, tendemos, em nossas vidas, a ser auto-indulgentes no que diz respeito à moral, mas na ficção somos capazes de reconhecer que a justiça pode se dar por diversos caminhos, mesmo os mais tortuosos.

Já que estamos no campo da ficção, vamos a um exemplo cinematográfico, para compreendermos melhor o conceito:

Why so serious?

Mais um dia na vida do pacato cidadão de Gothan City que, no meio de uma das rotineiras fu-gas em virtude da ameaça de algum supermaluco, recebe a famigerada notícia:

– Bem vindos a bordo! Eu sou o Coringa e coloquei toneladas de explosivos em seu navio e no navio ao lado. Eles também escutam essa mensa-gem, e cada um de vocês dois possui o detonador do outro barco. A regra é simples: quem explodir o outro primeiro, vive. Ah, e se ninguém o fizer, eu mando ambos pelos ares. Vocês têm até meia-noite para tomarem ou não sua atitude. Boa viagem!

Esta é a situação exposta no clímax de um dos filmes do Batman, e o herói, vencendo o palhaço e tomando-lhe o detonador-mestre, afirma satisfeito, após nenhum dos barcos dar cabo um do outro, que nem todos são egoístas como o ensandecido vilão.

A não ser que eu tenha sido contaminado pelo gás do riso que o personagem lança mão nas histórias em quadrinhos e meu juízo tenha se altera-do, receio que, mais uma vez, o Coringa pode rir por último (e melhor), já que, se ele não foi feliz em pro- var que os tripulantes são maníacos assassinos in-dividualistas, como sugeriu o Cavaleiro das Trevas, pôde mostrar que eles são ignorantes e covardes.

Imagine-se nesta mesma circunstância: se ninguém detonar o vizinho, os dois vão morrer! Você pode até esperar para que o outro o faça, para que você não seja o algoz e possa trocar uma vida de culpa pela morte com consciência limpa, mas... e se o outro lado também não o fizer? O único jeito de

2524

Page 14: Dementes Perigosos

salvar metade das vítimas, ou pelo menos o único modo de fazê-lo que está em seu poder, é apertando o botão do detonador. Explodir o barco pode ser, sob um certo ponto de vista, a atitude mais inteli-gente, heróica e generosa com as outras pessoas que te acompanham na viagem. Santa perspicácia, Bat-man!

É claro que o Batman poderia (como o fez) impedir o Coringa de matar a todos, ou o próprio vilão acabar com o seu barco após a detonação do outro, mas ainda sim sua postura seria a mais ética possível diante das alternativas dadas e o seu lugar no céu estaria garantido – mesmo porque o filme mostra que o homem-morcego não é tão onipresen-te quanto seria desejado (afinal, deixou sua amada falecer) e que o Coringa é igualmente um rigoroso cumpridor de sua palavra (já que queimou só sua metade do dinheiro roubado no filme, dando a ou-tra a seus parceiros, por exemplo).

Destruir um dos navios poderia objetivar simplesmente causar dano ao menor número de pessoas possível, e não um simples ato de preser-vação de sua própria existência, o que encaixaria o responsável pela explosão no perfil do mais perfeito elemento de uma sociedade que se pauta pelo pa-drão da ética utilitarista. Ao contrário, a não-deto-nação da bomba é o exemplo mais patente de auto-indulgência moral, isto é, para se manter “limpo” no tocante às ações imorais, acaba deixando de realizar um ato tido como imoral, mas como consequência acaba gerando o resultado menos moralmente dese-jável.

É certo que um psicopata explodiria o navio. E, dentro de um campo estritamente lógico (e ético por consequência), ele estaria fazendo um bem. Em suma: a moralidade pode se esta-belecer por fatores racionais, e não apenas por sentimentos. Sou mais ousado ainda em afirmar que, se nossos atos fossem total-mente baseados em sentimentos, os índices de criminalidade provavelmente aumentariam...

Pode ser que os exemplos dados ainda não foram tão con-vincentes, por se tratar de mera ficção (o que seria um fracasso para mim, já que o “bom” psicopata é, acima de tudo, um manipu- lador). É chegado o momento de inserir um pouco de realidade ao contexto.

2726

Page 15: Dementes Perigosos

“Uma das formas de saúde é a doença.Um homem perfeito, se existisse, seria o ser

mais anormal que se poderia encontrar”(Fernando Pessoa, “Livro do Desassossego”)

CAPITULO IV

LÓGICA VERSUS PSICOLOGIA:O BEM E OS PSICOPATAS

Page 16: Dementes Perigosos

Não tenho qualquer gabarito para discutir termos de or-dem técnica seja de uma ou de outra ciência evocadas no título deste capítulo. Mas como o psicopata, por definição, não possui sentimento de culpa, vou especular aqui inadvertida e inconse-quentemente.

A dúvida levantada anteriormente – se não-psicopatas podem ser maus em suas atitudes por que psicopatas não podem ser bons? – deve, agora, resgatar a própria definição de psicopa-tia. O psicopata é, segundo a literatura do tema nos faz entender, um ser humano insensível, sem consciência. Disso tiramos uma conclusão básica, até tola: ele nunca agirá motivado pela sensibi-lidade, o que irá excluir todos os bons atos regidos pela emoção, mas também todos os atos condenáveis que são produtos desta. E mais: isso pode incluir a realização dos atos condenáveis de-rivados da falta de emoção, mas pode também suscitar atos lou-váveis que resultam da falta de emoção.

Não poderíamos suspeitar que o fato do psicopata ser in-teligente em um nível acima da média e muitas vezes ocupar car-gos de liderança é uma consequência natural de seu jeito de ser, sem envolver necessariamente pequenos delitos para a obtenção deste status?

O bom líder – diria Sun Tzu, Nicolau Maquiavel, Balta-zar Gracián e alguns outros ilustres – possui como característica marcante uma certa amoralidade. Repare bem no termo: quando falamos em amoral, pela própria formação da palavra, estamos nos referindo a ações que descartam algumas regras sociais es-tabelecidas, mas não as contraria – o que se enquadraria, caso fosse, na imoralidade.

O psicopata é aquele capaz de demitir aquele funcionário, coitadinho, tão necessitado, mas um pouco lerdo para a função. Aos olhos incautos, uma maldade, talvez movida por interesses egoístas e sádicos; mas na visão abrangente de um administra-dor (que deve ser fria e racional por natureza), trata-se de uma

providência necessária para se obter lucro para a companhia e, pasmem, o melhor para a pessoa competente e desempregada que o substituirá, e também o melhor para as dezenas, algumas vezes milhares, de famílias que dependem do sucesso daquela empresa para obter o seu sustento...

Outra questão: não parece mais sensato acreditar que, se 4% da população possui essa característica em algum grau e não está atrás das grades, é porque estes não estão obrigatoriamente praticando o mal?

Há bem pouco tempo atrás, nos termos da história da humanidade, ser ateu significava ser uma pessoa de má índole, por um simples motivo: quem não crê em Deus, não acredita na punição divina e, sendo sabido que a justiça terrestre não é lá aquelas coisas, estes incrédulos só podiam ser maus! Afinal, se Deus é o bem, o mal está na ausência dele. Tirando da discussão a incoerência do Deus infinitamente bom que permite o mal mes-mo sendo onisciente, onipresente e onipotente (que por si só daria “pano pra manga” para muitos debates), em qualquer comuni-dade intelectual atual se aceita que fé não é sinônimo de bondade, pelo exemplo das atrocidades realizadas por inspiração deste sentimento, e também se vê pessoas absolutamente exemplares em suas condutas e contribuições para a sociedade e que são des- providas de crenças religiosas.

O que a teoria de “Mentes Perigosas” parece sugerir é um outro tipo de correlação – que igualmente não tem ligação lógica que justifique –, mesmo que nosso mundo exiba uma outra série de exemplos que a contrarie (e alguns poucos tentamos expor aqui): que consciência é sinônimo de bondade.

O sentimentalismo é algo ainda hoje mitificado, e sempre preferido em relação aos atos frios e racionais. Como prometi alguns exemplos reais, quero dividir duas histórias ocorridas quase paralelamente, cuja interpretação do grande público torna esta máxima patente:

3130

Page 17: Dementes Perigosos

Em que lado da lei?

Em maio de 2003, um herói anônimo emer-giu de sua vida modesta no bairro de Palestina, na Bahia, para os noticiários de todo o Brasil: Hamilton dos Santos era o tratorista incumbido de derrubar casas que estavam em litígio judicial, mas comovido pela visão das famílias que ali moravam, em pleno desespero, negou-se a fazer o serviço, e teve a sorte de ter a cena capturada e exibida no Jornal Nacio-nal da Rede Globo e, um pouco mais tarde, exposta como fundo de uma crônica emocionada de Pedro Bial no programa Fantástico. Obviamente, o tratoris-ta não foi preso como seria a praxe aos que desobe-decem a uma ordem judicial, a empresa de trator aproveitou a mídia espontânea e se negou a oferecer seus tratores para tal serviço e uma completa ode à sensibilidade humana contra as frias garras da lei foi entoada.

“Temos uma responsabilidade moral de desobedecer a leis injustas”, teria dito Martin Lu-ther King Jr. em consonância com Santo Agostinho, Thoreau e tantos outros a discorrer sobre aquilo que hoje se institucionalizou pelo termo “desobediência civil”. Antes de louvar os Robin Hoods da vida real, vamos voltar só um mês na nossa história e obser-var outro caso curioso.

Reinaldo Antônio Domingues, policial mili-tar de Cotia, em São Paulo, resolveu dar cabo de sua vida em rede nacional em abril de 2003, em frente ao palácio do governo, aos gritos e choros, com a única reclamação de estar sendo perseguido por ser um homem honesto. Da parte da grande imprensa, metade se dedicou à cobertura do fato apenas pelo sensacionalismo que a ocasião oferece, e a outra a

criticar a apelação e falta de ética de suas rivais, ao fazer do suicídio um show. Ninguém se dispôs a ou-vir Reinaldo. Talvez por uma vizinha o achar “meio xaropão”, por ele já ter enfrentado alguns tratamen-tos psicológicos ou simplesmente porque dezenas de PMs suicidaram-se naquele mesmo ano (assim como em todos os outros). O fato é que o soldado Domingues, doenças à parte, tinha realmente um sério problema: era obcecado pela justiça. No micro-cosmo de seu trabalho de policial, defendia as leis de forma tão obstinada que não poupava multas nem mesmo para amigos próximos, e não se confor-mava com a corrupção que presenciava em sua cor-poração. Bom pai e marido, punia suas filhas pelos erros forçando-as a se abraçar por horas. No colé-gio achavam as meninas extremamente educadas: “não jogavam um papelzinho no chão”, disse uma professora. Quando multou uma senhora influente do município, que rasgou a notificação e jogou-a no chão para receber em seguida outra punição por sujar via pública, recebeu a retaliação: foi mudado para o período noturno, que detestava. Possivel-mente este foi o estopim para a drástica decisão de se matar.

“Meu marido? Nunca teve nada de louco. Só muito nervoso”, disse a esposa, que devia conhecê-lo melhor que a vizinha. Nada mais foi dito. Nem no Fantástico, nem no Cidade Alerta. Sem dúvida era uma patologia, diria o Dr. Simão Bacamarte, o alienis- ta de Machado, após descobrir que em Itaguaí, local onde clinicava, faltava a todos certa correção moral. Não há glamour em seguir as leis, pois elas foram produzidas para o controle social e por vezes privi-legia a classe dominante, não é mesmo? Pensemos um pouco mais sobre isso.

3332

Page 18: Dementes Perigosos

Quem nunca se viu impelido a burlar alguma lei? Mesmo que sejam regras simples, como colar numa prova, estacionar em local proibido ou ultra-passar um semáforo fechado no trânsito... fazemos isso a todo o momento, e não acredito ser por má ín-dole, mas porque, em nosso entendimento particu-lar, aquilo não significa exatamente um mal; temos até justificativa para cada ação: se eu colar vou fa-vorecer-me sem prejudicar ninguém; vou estacionar aqui por pouco tempo, não vou atrapalhar; é tarde da noite, se eu parar no sinal vermelho posso até ser assaltado...

A verdade é que frequentemente nos vemos em situações similares onde o agente é uma outra pessoa e que nos deixam indignados, como aquele aluno que nunca compareceu à aula e tirou nota maior do que a sua por ele ter colado, ou quando um carro bloqueia a entrada de sua garagem, ou ainda aquele veículo que passou no cruzamento à noite e quase te acertou quando o sinal estava aberto para você. Como no clássico exemplo do motociclista: detestamos quando motos passam em alta velocida-de entre as faixas de uma via, mas se o entregador atrasa a pizza que solicitamos em 10 minutos...

O que questiono aqui, mais do que um pos-sível egoísmo visível em nossos atos sociais, é a ca-pacidade do indivíduo, por si só, avaliar se uma lei é justa ou não. Não acho equivocado afirmar que a grande maioria dos criminosos – incluindo assassi-nos, ladrões, etc. – não consideravam o seu delito, no momento em que o praticaram, algo extremamente condenável dentro de sua visão de justiça, pois se assim pensassem, provavelmente não fariam. Eles também criam suas próprias desculpas para seus atos: tirei a vida de alguém mau, fazendo um bem

para a comunidade; roubei de alguém que possui dinheiro em excesso e eu mal tenho o que comer... claro que tais crimes aproximam-se de nossos des-lizes corriqueiros apenas em gênero, mas não em grau: tais atos são absurdamente mais graves, pen-so; o que tento expor aqui é uma correlação, mesmo que em outros termos, no modo com que o delito é concebido pelo próprio agente.

Se tomarmos o caso do tratorista nos isentan-do de qualquer romantismo, deveríamos pesar tam-bém a importância do direito à propriedade, e não somente a injustiça sofrida por aqueles sem-tetos. Como nos exemplos supracitados de mudança de postura no caso de um fato acontecer conosco ou com outrem, não creio que muitos aceitariam famí-lias desconhecidas invadindo a sua casa de praia ou seu quintal, mesmo que não os utilizem com tanta frequência. Pela constituição, as famílias de Pales-tina têm direito à moradia, mas a garantia deve ser dada pelo governo, e não por cidadãos comuns (pelo menos não diretamente: afinal a quem servem tantos impostos?). A demolição daquelas casas era a aplicação de uma lei justa (e duvido que não tenha sido feita por outro tratorista e outro trator algum tempo depois), cuja conquista se deve a inúmeras lutas travadas ao longo da história.

Herói ou não, faltou ao Hamilton o essen-cial para se tornar mártir de sua luta: o martírio. Ele deveria ter sido condenado pelo seu ato. Talvez se-ria exigir demais do pobre tratorista, mas aceitar a punição, independente da repercussão do caso, se-ria louvável, já que estava defendendo aquilo que acreditava ser certo e foi notificado das conseqüên-cias (que, aliás, incluía o sofrimento dos próprios fi-lhos de Hamilton, levando ao extremo). Ao contrário,

3534

Page 19: Dementes Perigosos

o soldado Domingues morreu pelo que acreditava. Sem os louros da glória, o policial talvez não tenha suportado ser desprezado por fazer o certo, e se dis-pôs a perder a vida por isso.

A questão aqui parece não ter uma resposta simples, por meio de uma defesa do fiel seguidor da lei contra o infrator por boa causa. Creio que esses casos suscitam uma série de dúvidas que merecem um pouco de atenção: somos capazes de discernir individualmente se uma lei é realmente justa ou não? O simples risco de não sermos capazes disso em alguns casos deveria ser imperativo de respeitar todas as regras independentemente da nossa razão? Ou deveríamos ter mecanismos de estabelecimento de leis mais eficientes do que o modelo representa-tivo de hoje, se possível (e viável)? Ou o problema reside no outro fator em questão, e o déficit encon-tra-se no próprio cidadão e na sua pouca instrução em relação às razões pelas quais cada regra existe? Mas o conhecimento disso seguido de uma possível discordância (talvez por não se enquadrar no perfil dos favorecidos por ela) seria o suficiente para que um indivíduo tenha direito a buscar justiça burlan-do a lei?

É ousado demais admitir, mas o homem não sabe perfeitamente o que é melhor para ele. Por outro lado, seria um tolo otimismo acreditar que os legisladores possam saber perfeitamente e sempre o que é melhor para todos. E é justamente aí que se encontra o impasse.

Creio que as questões que levanto neste pequeno caso só poderi-am ser plenamente entendidas, na sua essência, por um psicopata como eu: a repercussão da grande mídia já responde, em linhas gerais, de que lado a opinião pública está; e se deixei – como

provavelmente estou fazendo em todo este livro – mais dúvidas do que afirmações, é com um propósito bem definido: temos que abrir mão das generalizações. Elas são importantes, desde que se deixem explícitas as suas possíveis exceções. Mesmo que se assu-ma, por exemplo, que a incidência de pedofilia entre os padres é percentualmente superior à sua ocorrência entre os não-padres, não podemos dizer que todo padre é pedófilo, ou que devemos proteger nossas crianças dos padres ou tomar qualquer cuidado especial do tipo. Analogamente, sou partidário de que a cautela que tomamos com os psicopatas – agora identificáveis graças ao meticuloso estudo da dra. Ana Beatriz – deveria ser difundida para quaisquer outros padrões de personalidade identificáveis que representem, no âmbito do comportamento, risco à nossa in-tegridade. E por isso insiro na discussão aqueles que, por assim dizer, “caem do outro lado do cavalo”: os dementes.

3736

Page 20: Dementes Perigosos

“Idiota é quem faz idiotices”(Forrest Gump)

CAPITULO V

O MAL E OS DEMENTES

Page 21: Dementes Perigosos

Eu não consigo entender como determinados comporta-mentos podem ser tolerados, ou amenizados em relação à culpa, pelo fato de terem uma origem passional, emotiva. Há pessoas que se suicidam por amor; há pessoas que matam e agridem os outros por amor; há pessoas que bebem em demasia e se drogam, cometendo diversos delitos por consequência disso, por amor. E tudo isso pode ter início em comportamentos absolutamente co-muns e corriqueiros, seja pela descoberta de um adultério, seja por um amor não correspondido, ou por qualquer outra razão similar; bem, talvez “razão” não seja o melhor termo para des-crever este ímpeto...

E sabe o que é mais alarmante? Estima-se, segundo uma dedução lógica dos dados expressos no livro que serviu de inspi-ração para esta reflexão, que cerca de 96% da população mundial tenha propensão a cometer atos irracionais e prejudiciais a eles mesmos e à sociedade motivados por sua consciência. É o caos!

Se a ideia não foi bem explicitada pelo último exemplo (do tratorista em oposição ao policial), é importante que se es-cancare: os homens podem ser, em sua grande maioria, vítimas de seus afetos, ou vilões em nome deles. Como se não bastasse o sofrimento, já bastante difundido como nos mostra o tema de desilusão amorosa que permeia todas as formas de entreteni-mento artístico, fruto do mito do amor romântico, da crença no “felizes para sempre” – objetivo utópico arraigado em nossa cul-tura –, ainda há todos os atos impensados, imprudentes e imbe-cis que algumas pessoas cometem em função disso. E isso por que ainda estamos no âmbito do amor entre homem e mulher... podemos muito bem incluir o assaltante que rouba por amor à sua família necessitada (não há alternativa para sua condição? É provável que sua razão não foi consultada, se é que ele a possui), o adolescente que pela emoção ou para se enquadrar num grupo qualquer que o acolha afetivamente assessora pessoas mal-inten-cionadas em seus crimes... a lista se perderia de vista, caso pre-tendesse ser completa.

Como já foi pontuado a pouco, a piedade e a caridade po-dem ter uma contrapartida devastadora no campo profissional, apesar de ser de difícil percepção. Como foi dado no exemplo do Batman, muitas vezes precisamos ser frios para fazer o bem. Também é ingênuo acreditar que, na sociedade atual, basta seguir a cartilha do bom samaritano para que as coisas se deem sempre da melhor forma possível. Mais do que ingênuo, isso é estúpido.

E nem adianta atribuir este nosso “mundo cruel” aos psi-copatas: pela população destes e os inúmeros erros que a imensa maioria de “dementes” pode cometer, seria bastante razoável atribuir o egoísmo à espécie, e não à classe (como já fez Thomas Hobbes, Georges Bataille e tantos outros), e não assumir a qui-mérica posição de que o homem é naturalmente bom. Invertendo as estatísticas apresentadas em “Mentes Perigosas”, é possível ter um vestígio de que esta teoria pode estar certa: se 20% da população carcerária é psicopata, 80% é formada por não-psico-patas; o mesmo se pode dizer dos 25% de psicopatas agressores de suas esposas, que se complementam com 75% de não-psico-patas praticantes desta violência doméstica. Perguntaria a minha amiga Matemática: com quem devemos tomar mais cuidado?

4140

Page 22: Dementes Perigosos

“Devemos ser gratos aos idiotas.Sem eles, o resto de nósnão seria bem sucedido”

(Mark Twain)

CAPITULO VI

DEMENTES E PSICOPATAS

INTERAGINDO

Page 23: Dementes Perigosos

Quero agora evocar alguns exemplos citados no livro “Mentes Perigosas” para apimentar a discussão e estabelecer um outro prisma interpretativo:

Resumo: Andréa se apaixonou por Rafael, que apresentou alguns sinais de intolerância e depois sumiu com seu di-nheiro.

Análise: Se uma pessoa apaixonada saca todas as suas eco-nomias e entrega a algum affair que desaparece em seguida, ela está sendo feita de idiota? É claro que não: ela já é uma idiota feita! Ela não foi vítima do psicopata insensível, mas sim de sua paixão irracional. Se mesmo em um casamen-to, que é a formalização máxima de uma relação afetiva, o casal estipula em contrato como conduzirão seus bens, porque essa energúmena vai limpar sua conta e entregar a um qualquer que conheceu há poucos meses, e que já havia apresentado indícios de ser um homem violento? A única mente perigosa nesta história é a da mulher, que seria bem capaz de vestir um colete de dinamite e explodir um metrô, se namorasse um ativista talibã.

Resumo: Maria foi usada por Carla de todas as formas nos mais de quinze anos de convívio, desde a época em que Maria ofereceu seu apartamento como moradia à Carla.

Análise: Será que eu entendi bem? Mais de quinze anos!? Que tipo de ser tolera mais de quinze anos de abuso? Um masoquista!? E ainda pergunta a autora: “por quanto tem-po você aguentaria?” Até a doutora parece considerar um período absurdo! Esse é o típico demente lerdo: se fosse a Maria no lugar da Andréa no caso anterior, estaria fazendo depósitos para o ausente Rafael até hoje...

Resumo: Laura conheceu Ricardo e foram morar juntos, abdicando de sua carreira. Ele tinha acessos de raiva e de ciúmes, sumiu com o seu cachorro, e recusou seus apelos para casar e ter filhos. Por fim, trocou-a por uma mulher mais jovem e bonita.

Análise: Inseri as informações em sua ordem cronológica: ele a fez abandonar a carreira, era violento, espancou seu animal de estimação e deu um fim desconhecido a ele. O que ela fez após isso? Queria casar e ter filhos! Ou é uma mulher interesseira ou uma mulher sem personalidade (pois abandonou suas funções profissionais para ser sustentada pelo namorado – não é a toa que queria casar a qualquer custo...); sendo ela uma ou outra coisa, foi sábia a decisão dele de trocar de parceira.

Resumo: Isabela era modelo e conheceu Miguel em NY. Achou o rapaz cativante e em pouco tempo o chamou para morar em seu apartamento. Notou que ele era uma pessoa totalmente egocêntrica, e acumulava prejuízos à garota. A gota d’água foi quando ele não foi buscá-la como prometi-do após uma cirurgia, pois estava assistindo a um DVD. Ela o deixou e ele virou ator pornô.

Análise: Está é uma mistura dos dois primeiros casos: porque levar um desconhecido para dentro de casa, e porque só deixá-lo – uma vez que ele era esse chato que vivia “na aba” – depois de um descaso absurdo? Bom, pelo menos o desfecho nos dá uma dica da razão: para o cara ter virado ator pornô, ele não devia ter somente o ego avan-tajado... quem sabe o DVD não era sobre o tema? Pode ter sido a inspiração para sua carreira.

4544

Page 24: Dementes Perigosos

Relevando minhas brincadeiras, note que a condição de possibilidade do mal provocado pelos supostos psicopatas é jus-tamente a presença de um “demente” no auge de uma crise. Para usarmos termos diametralmente opostos, em todos os casos su-pracitados, um egoísta por natureza se beneficia de um altruísta ocasional. Se Andréa, Maria, Laura e Isabela não tivessem sido imprudentes, ingênuas, passionais ou mesmo (por que não?) se elas fossem psicopatas, ninguém teria causado dano a ninguém, pois as relações não se dariam da forma que se deram.

Nunca é muito frisar que não pretendo aqui ser o defen-sor dos atos antissociais relatados. Mas não podemos deixar que a vitimização, a síndrome do “coitadinho”, encubra comporta-mentos incautos. Pelo contrário, é justamente por achar que tais condutas antissociais são altamente condenáveis e provavel-mente capazes de se originar tanto em um psicopata como em um “demente” – o Rafael poderia roubar por razões emocionais relacionadas a outra pessoa, o Ricardo poderia estar realmente apaixonado pela outra mulher, etc – é que se deve alertar a todos os perigos de amar demais, para si e para outros.

De fato, em matéria de alerta, deveríamos observar me-lhor o comportamento de nossos amigos animais, que mantém seus instintos de sobrevivência ativos em período integral, sem a interferência indesejada dos sentimentos para colocar em risco suas vidas. Vamos refletir um pouco mais sobre o tema inspi-rando-se numa conhecida fábula.

4746

Page 25: Dementes Perigosos

“Receio que os animais consideremo homem como um ser da sua espécie,

mas que perdeu da maneiramais perigosa a sã razão animal;receio que eles o considerem como

o animal absurdo, como o animal que ri e chora,como o animal desastroso”

(Friedrich Nietzsche, “A Gaia Ciência”)

CAPITULO VII

O SAPO E O ESCORPIÃO,VERSÃO DISCOVERY CHANNEL

Page 26: Dementes Perigosos

Sabe o que é mais atraente nas fábulas? A humanização que se faz dos animais, que por vezes nos dá a impressão de que podemos aplicar fatos da vida dos bichos ao nosso próprio cotidiano. Mas não se deixe enganar, pois o que ocorre nestas es-tórias é justamente o contrário: o criador do conto fabuloso está aplicando nossos defeitos e frustrações aos moldes dos pobres seres.

No conto referido no título deste capítulo (e usado em “Mentes Perigosas” como analogia ao proceder do psicopata), o sapo oferece ajuda ao escorpião para atravessar o rio, sob a alegação de que não seria aferroado, uma vez que isso mataria a ambos. Após o percurso feito, o escorpião ataca o sapinho, di-zendo que está agindo de acordo com sua natureza.

É certo que os animais são muito mais precavidos que al-guns seres humanos em dadas situações, e isso sem frequentar escolas ou aprender a falar: eles possuem um instinto de sobre-vivência muito mais apurado e sofisticado que o nosso. Se dei exemplos de casos onde nossos queridos “dementes” foram ilu-didos onde parecia óbvio que o seriam, não é exigindo deles ape-nas racionalidade (o que seria preferível, dado que o ser humano adora ostentar a presunção de possuir algo acima dos demais seres vivos, como “intelecto” ou “consciência”), mas simples-mente algum senso de autopreservação.

Como age toda a espécie animal no “mundo real”, mesmo os filhotes, quando se depara com um predador? Ninguém lhes ensina um POP (Procedimento Operacional Padrão), nem for-mula um manual de regras específico por tipo de ameaça, mas eles sabem o que fazer: dão no pé! Correm como nunca correram antes, no melhor estilo “salve-se quem puder”.

Sapo que é sapo não carrega escorpião nas costas. A visão de um ferrão no rabo do bicho já é argumento suficiente para que o batráquio saia pulando e coaxando para bem longe. Se é da natureza do escorpião matar o sapo, é igualmente da natureza

do sapo evitar que isso aconteça, o que significa, no extremo, que ser generoso com quem não se deve (como no caso do mendigo alcoólatra que comentamos lá no começo), ou dar a outra face à bater (no melhor estilo cristão) é “privilégio” de um único ser, do ser que acha que deve ser sempre sublime, que pode se aproxi-mar do divino e ultrapassar os limites de sua própria natureza (como diria Erasmo de Roterdan) e ignorar a medida da sua ne-cessidade (como afirmou Demócrito): somente um legítimo “de-mente” teria “consciência” suficiente para deixar um predador montar-lhe no lombo!

5150

Page 27: Dementes Perigosos

“Sempre que um homem fazqualquer coisa completamente idiota,

é invariavelmente pelas mais nobres razões”(Oscar Wilde)

CAPITULO VIII

O MAL QUE O BEM FAZ

Page 28: Dementes Perigosos

Em uma passagem de seu livro, a dra. Ana Beatriz conta uma experiência particular, emocionante, quando testemunhou um homem se jogar instintivamente numa lagoa para salvar um menino, o que pode ser atribuído a uma espécie de senso moral inato ao ser humano. O que pretendo fazer agora, bem rustica-mente, é levantar alguns fatos similares por meio de manchetes, numa tentativa desesperada de mostrar que nem toda história de herói tem um final feliz:

Carroceiro tenta salvar cachorro, recebe descarga elétrica e morre.

Eu só me pergunto: o que esse animal foi fazer perto de um fio de alta tensão? Refiro-me ao carroceiro, óbvio. O pior é ter deixado o bairro todo sem energia. Não se tem notícia do estado do cão.

Menina tenta salvar irmã de afogamento e morre junto.

Se você não sabe nadar, por favor, pelamordedeus, não tente salvar ninguém que se afoga. Isso não é um ato de coragem, é uma imbecilidade sem tamanho e também aqui- lo que se convencionou chamar “suicídio”.

Mãe que tentava salvar filhos despenca de barranco e morre.

Esta aqui é lapidar: um Fusca estava desgovernado em di-reção a um barranco, com duas crianças dentro e os pais do lado de fora. O que a mãe, grávida de oito meses, fez? Tentou segurar o carro! Resultado: ela morreu junto com seu bebê. E as crianças? Só tiveram ferimentos leves...

Eu poderia escrever páginas e páginas de exemplos... bas-ta procurar na Internet, e você verá que não estou mentindo (não cito as fontes, nomes e locais destas notícias por razões óbvias). Casos como estes só ilustram um ponto que já comentei atrás: se o psicopata consegue altos cargos, com funções importantes e de visibilidade, não é necessariamente porque ele prejudica pessoas para alcançar estes objetivos; é possível que seja pelo fato dele não fazer coisas idiotas movido por fortes emoções.

Parece ser exatamente o contrário do que sugere o livro que aqui nos opomos: o que eu percebo em todos esses casos é que há uma espécie de teoria da evolução de Darwin agindo nos meios sociais, fazendo com que determinadas pessoas, mais racionais e por isso menos afetadas por instintos primitivos quando coloca-das em situação de risco, tendem a sobreviver, a se desenvolver e evoluir na comunidade, enquanto outras são levadas ao fra-casso e à morte, simplesmente em nome do bem. Não seria esse mesmo sentimento que leva soldados a lutar com outros em uma guerra, como bem indica o próprio texto de “Mentes Perigosas”? Será mesmo que são alguns poucos psicopatas manipuladores que levam milhares de pessoas, muitas vezes nações inteiras, a se confrontar, ou há um certo ímpeto latente no ser humano a fazer essas imbecilidades diante de fortes emoções que lhes são “vendidas”?

As guerras podem ser, em muitas ocasiões, um exemplo de arbitrariedade moral que se aceita em nome de um suposto bem coletivo. E contra este tipo de altruísmo que uma filósofa lançou suas ideias, e seria injusto não citá-la, uma vez que seu pensamento permeia grande parte do que está sendo defendido aqui.

5554

Page 29: Dementes Perigosos

“A menor minoria na Terra é o indivíduo.Aqueles que negam os direitos individuais

não podem se dizer defensores das minorias”(Ayn Rand)

CAPITULO IX

ESPECULAÇÕES SOBRE AYN RAND

Page 30: Dementes Perigosos

De todas as heresias cometidas neste livro, que não são poucas, esta com certeza é a maior, mas não posso conduzir este falatório sem ela: é impossível expor meu ponto de vista sem me recordar a todo o momento de Ayn Rand. Talvez os conceitos dela não tenham uma relação rigorosa com o que defendo aqui (e é onde se encontra meu pecado), mas se já fiz as correlações mais insanas até então, vou me reservar ao direito de inserir mais uma.

Ayn Rand não é psicopata... eu acho; ao menos estatistica-mente as chances são pequenas, pois apesar de ter vivido grande parte da vida nos Estados Unidos (a “Fantástica Fábrica de Serial Killers”, como será exposto), ela nasceu na Rússia; o fato de ser mulher também reduz sensivelmente as chances, uma vez que há apenas uma sociopata para cada três homens com o distúrbio. Porém, apesar desta “virtude”, Ayn é uma das mais importantes filósofas do século XX a defender os ditames da razão contra o irracionalismo.

Lamentavelmente esquecida por grande parte dos acadêmicos brasileiros (talvez do mundo inteiro), sem dúvida apresenta uma sofisticada e controversa posição intelectual, es-pecialmente no campo da Ética, que é digna de nota diante da crítica que erijo aqui: sua filosofia é permeada por dois concei-tos-chave, intrinsecamente ligados, a saber, o racionalismo e o egoísmo. Juntos, eles dão base ao que a pensadora define como objetivismo, tendo o primeiro termo primazia sobre o segundo: “a razão na epistemologia leva ao egoísmo na ética”, disse ela em algum lugar. Ayn defende que o altruísmo é originado do irra-cionalismo, e apenas a supremacia da razão pode combater este mal.

A filosofia da senhorita Rand é muito rica, extensa e não caberá neste relato propositadamente superficial que lhe ofereço. Mas creio que estes rudimentos vão apontar para onde quero chegar: acredito (e apenas acredito) que o egoísmo dos psicopa-tas é derivado de sua excessiva racionalidade. Por isso apelei,

em algumas passagens, à precisão para se definir o que é um psicopata: se é apenas um indivíduo insensível, não podemos inserir as demais características que podem ser comumente fruto desta primeira como parte da definição. Isso é perigoso e incon-sistente...

Mas, voltando à Ayn, ela também discutiu a noção de “bem”, traçando uma distinção que elucida de maneira perfeita a forma como o valor é exposto em “Mentes Perigosas” e a con-tra-proposta que descrevemos aqui:

“Há, em essência, três escolas de pensamento sobre a na-tureza do bem, a saber, as que veem o bem como, respec-tivamente, intrínseco, subjetivo, e objetivo. A teoria do bem intrínseco mantém que o bem é inerente a certas coisas ou ações, enquanto tais, irrespectivamente de seu contexto e de suas consequências, independentemente do benefício ou injúria que possam causar aos atores e sujeitos envolvidos. [...] A teoria do bem subjetivo mantém que o bem não tem relação com os fatos da realidade, que ele é o produto da consciência do homem, criado por seus sentimentos, dese-jos, ‘intuições’, caprichos [...] A primeira dessas duas teorias mantém que o bem reside em alguma forma da realidade, independente da consciência do homem; a segunda, que o bem reside na consciência do homem, independente da realidade. A teoria do bem objetivo, por sua vez, mantém que o bem não é nem um atributo das ‘coisas em si mesmas’ nem dos estados emocionais do homem, mas uma avalia-ção dos fatos da realidade segundo um padrão racional de valor. A teoria objetiva mantém que o bem é um aspecto da realidade em relação ao homem - e o bem tem que ser descoberto, não inventado, pelo homem”.

5958

Page 31: Dementes Perigosos

O bem mantém uma relação com a pessoa na medida em que ela possui direito à sua própria liberdade, à sua felicidade. Como Ayn citou em outro momento, não devemos confun-dir escravidão por boa causa com liberdade. E esta verdadeira liberdade só pode ser obtida no nível individual, não no cole-tivo, e sem se contaminar pelos estados emocionais do homem, mas sim única e exclusivamente por sua razão. É desta premissa que se associam o egoísmo e o racionalismo, na medida que não podemos buscar o bem em verdades imutáveis do universo nem em instintos inatos ao homem.

Talvez seja mais fácil agora compreender todos os exem-plos e oposições dados neste livro à luz desta filosofia: o direito do indivíduo é inalienável, e as tentativas de podar estes direi-tos em nome de um bem coletivo, ou benefício de uma minoria qualquer colidem com um direito universal, gerando transtor-nos à sociedade na medida em que apenas se transfere o objeto da injustiça cometida. Assim como o capitalismo é aceito como sistema político mais eficiente diante do fracasso das demais em-preitadas (e é visível que a livre-concorrência o torna “egoísta” por natureza), todas as demais esferas do saber, como a moral, devem seguir este preceito. Assim, não usar a razão para obter resultados em detrimento de regras morais, leis e dogmas reli-giosos injustificados é, dentro da doutrina de Ayn Rand e em parte naquilo que eu mesmo acredito, um atentado à própria na-tureza humana e ao bem-estar de toda a humanidade de forma geral.

Se alguma mínima posição neste livro faz o menor sentido para você, leitor, sugiro que busque mais informações sobre esta brilhante personalidade de nossa história, seja em seus romances, filmes, documentários ou textos filosóficos. Estou convicto que, no mínimo, você compartilhará um pouco da admiração que este autor nutre por Ayn.

6160

Page 32: Dementes Perigosos

“As calamidades são de duas espécies:a desgraça que nos acontece

e a sorte que acontece aos outros”(Ambrose Bierce)

CAPITULO X

A TEORIA DOS JOGOS

E O “ALTRUÍSMO EGOÍSTA”

Page 33: Dementes Perigosos

Preciso dar o braço a torcer: existe um aspecto importante nas relações sociais que até agora tenho ignorado; quando fala-mos na interação de diversos elementos, não podemos esquecer que nem sempre o poder da realização do melhor resultado está na mão de apenas um deles, o que significa que temos que con-siderar o egoísmo ou o altruísmo das outras pessoas que nos cer-cam para tomar a melhor decisão, o que não raras vezes nos deve levar a agir de forma altruísta. Será que agora, no melhor estilo do filósofo Montagne, já estou me contradizendo antes que al-guém o faça? Devagar, meu caro: não se esqueça que psicopatas não admitem seus próprios erros, portanto eu não assumiria tal postura. Temos então que nos debruçar sobre um campo de es-tudos multidisciplinar conhecido como “Teoria dos Jogos”, para entender um pouco melhor como tudo isso funciona e eu poder continuar a destilar meu veneno.

Estima-se que a Teoria dos Jogos começou a estabelecer seu lugar nos estudos da matemática aplicada na década de 30, e logo encontrou uma série de aplicações, sobretudo na economia. De modo bem rudimentar, podemos dizer que compete a esta teoria estudar as melhores escolhas diante de certo custo/benefí-cio, em situações onde estes fatores estão subordinados também às escolhas dos demais “jogadores” envolvidos.

O exemplo mais comumente usado é – como ficou conhe-cido – o dilema do prisioneiro. Em sua forma clássica, dois com-parsas em um crime foram presos e, separada e isoladamente, recebem a mesma proposta de acordo: se o prisioneiro manter-se em silêncio e seu comparsa também, ambos terão pena de 6 me-ses de reclusão; se um deles entregar seu parceiro e o mesmo se calar, ele estará livre e o outro amargará 10 anos de prisão; mas se ambos delatarem um ao outro, serão 5 anos de cadeia para cada. A solução ótima, aquela que menos dano causará a dupla de modo geral, é a dos dois negarem o crime. Mas ela esbarra em um problema: e se o outro agir unilateralmente para se beneficiar ainda mais? Se entregá-lo, ao menos me isento da pior das situa-ções, além de correr o risco de me safar...

Um dos cernes da teoria dos jogos, portanto, envolve a possibilidade do altruísmo recíproco, da cooperação, como veí-culo para a obtenção do melhor resultado. Uma vez que estamos no campo da matemática, é evidente que essas melhores escolhas possuem embasamento racional... isso significa que tudo o que foi discutido aqui acaba de cair por terra, diante de tal oposição?

De maneira alguma! Muito pelo contrário, a teoria dos jo-gos só reafirma aquilo que foi dito: uma pessoa extremamente racional e egoísta pode agir de forma cooperativa visando o melhor resultado, inclusive (e principalmente) para ele. A ação não deixa de ser egoísta por considerar a condição alheia, mas sim reforça essa propensão, já que alguém irracional ou altruísta por natureza manteria o silêncio (para continuar no exemplo do dilema do prisioneiro) sem pestanejar, e seria uma presa fácil de seu parceiro, sobretudo se este conhecer sua “beatitude”; o dilema só existe porque cada um dos elementos supõe uma ação pensada unilateralmente e de forma egoísta por parte do outro.

E chegamos novamente a uma versão dos fatos bem aos moldes deste elogio ao comportamento de certos psicopatas que fizemos aqui: é possível ser racional, egoísta e ainda sim fazer o bem. Na verdade, uma análise criteriosa exibe que a teoria dos jogos mantém como premissa o egoísmo dos “jogadores”, na procura de um denominador comum para as diversas situações, o que mostra grande sabedoria por parte de seus estudiosos em relação ao comportamento humano. Tanto isso é verdade que os modelos funcionam a contento sobretudo na economia, onde o regime capitalista impera com folga, e se faz palco das maiores competições em busca de poder. Desnecessário dizer que Ayn Rand, partidária do egoísmo nas relações sociais, era fervorosa defensora do sistema capitalista e da livre concorrência.

Bom, se até aqui usei irresponsavelmente conceitos de história, filosofia, economia, matemática e até de biologia para defender minha tese, seria equilibrado da minha parte que eu encerrasse este ensaio pretensamente racional com ao menos uma pitadinha de romance...

6564

Page 34: Dementes Perigosos

“Eu amo Martha!O que o público sabe sobre amar?”

(Raymond Fernandez)

CAPITULO XI

PARA NÃO DIZER QUE

NÃO FALEI DOS SERIAL KILLERS

Page 35: Dementes Perigosos

A belíssima declaração de amor que serve de epígrafe para este capítulo foi respondida de maneira não menos român-tica e apaixonada: “estar no corredor da morte só fortaleceu meus sentimentos por Raymond”... Raymond Fernandez e Martha Beck também ficaram conhecidos como “The Lonely Hearts Killers”, por terem se encontrado por meio de um anúncio para “corações solitários”, e a história virou até produção cinematográfica. Ao todo foram atribuídos cerca de 20 assassinatos de mulheres ao casal.

A “graça” da história está justamente no encontro: apesar do passado problemático de um e outro, nenhum dos dois havia cometido sequer um homicídio até se conhecerem (há algumas suspeitas, mas não comprovadas). A cumplicidade, as declara-ções e a fidelidade até que a morte os separe (ambos foram para a cadeira elétrica) deixam evidente que os pombinhos nutriam um sentimento sublime um pelo outro, e este foi o estopim para suas atrocidades. O amor é lindo!

Este é apenas um exemplo das dezenas de casais que se tornaram assassinos em série apenas no intuito de reforçar seu amor pelo cônjuge e satisfazer seus apetites sexuais bizarros. É controverso dizer se eles eram psicopatas ou não, mas que há um sentimento que liga cada um desses homens e mulheres, isto parece claro.

Não quero me estender demais sobre este assunto, já que o livro antagônico a este também não se furtou a explorar este viés, mas é importante que se diga mais uma vez: assim como defendo que psicopatas podem agir como bons cidadãos, não-psicopatas podem se comportar exatamente como o elemento com o mais grave índice de psicopatia.

Mas não podemos ser ingênuos: é muito provável que a grande maioria dos serial killers sejam psicopatas. Porém a minha amiga Matemática, que vem me divertindo a cada pará-grafo deste relato, me lembra de outras “maiorias” relevantes

(e curiosas): 84% de todos os serial killers que se tem registro desde os anos 80 vêm dos Estados Unidos; trata-se de um país que não representa 5% da população mundial... para ajudar, es-pecialistas ainda traçaram um perfil comportamental em comum na infância destes assassinos que ficou conhecido como tríade Macdonald; não, meu caro, não estamos falando de Big Mac com batata frita e Coca média, mas sim de xixi na cama, violência com animais domésticos e tendências incendiárias; parece que os matadores em série costumam cometer estes três delitos quando criança. Só espero não ser preso pelo que vou dizer aqui, mas uma vez eu puxei o rabo do meu cachorro, pulava fogueiras de São João e brincava com fogos de artifício e (droga!) já fiz xixi en-quanto dormia. Estou começando a ficar preocupado com minha situação...

Em suma: se o fato de grande parte dos serial killers ter perfil sociopático nos deve fazer tomar cuidado com psicopatas, temos que nos precaver também dos americanos, e das crianças incendiárias que maltratam animais e mijam na cama. Soou ridí-culo para você também?

6968

Page 36: Dementes Perigosos

“Em um mundo de loucos,só os loucos são sãos”

(Akira Kurosawa)

CAPITULO XII

ALGUMAS CONCLUSÕES

Page 37: Dementes Perigosos

É chegado o momento de sintetizar todas as ideias aqui apresentadas, para eliminar de vez toda e qualquer interpretação errônea. Basicamente, o que este livro tenta mostrar é que:

• Condeno, primeiro de tudo, a classificação do psicopata como algo diferente de um ser humano, por todas as razões e consequências já expostas;

• Procuro delimitar o que é pensamento e sentimento e o que é ação, para deixar claro que os primeiros devem ser to-lerados seja de que forma se derem, uma vez que não interfiram no bem estar social, e que se condene o segundo quando este for criminoso ou ofensivo, independentemente de sua motivação perversa ou passional;

• Lanço a questão sobre a importância de ser frio e ra-cional em dados momentos (mesmo que em alguns episódios se trate de “mal que vem para o bem”), em oposição aos prejuízos de ser emotivo e ingênuo nessas mesmas situações;

• Busco expor que, mesmo nos atos condenáveis atribuí-dos aos psicopatas, é como se de um lado houvesse estes causan-do dano aos outros, mas, do lado oposto, “dementes” causando dano a eles mesmos (e também a outros, dependendo do caso);

• Por fim, sugiro que o ato beneficente pode ter diversas motivações que não o sentimento e a consciência. Os estudiosos de ética são capazes de enumerar diversas doutrinas comporta-mentais que visam a melhor participação do elemento em socie-dade em benefício do todo, e que se mostram estritamente ra-cionais (e as poucas citadas aqui buscam ilustrar isso). Também se deve levar em conta que mesmo alguns atos egoístas, ou que visam o lucro direta ou indiretamente (como é o caso do mar-keting social aplicado em algumas empresas) geram resultados benéficos à comunidade sem partir de uma fonte emotiva.

A obra da dra. Ana Beatriz é rica, minuciosa e bastante efi-ciente no tocante à exposição de seu tema. Muitos dados e relatos são alarmantes e refletem um problema que deve ser encarado e prevenido, realmente. Minha intenção não foi desqualificar seu estudo nem menosprezá-lo de nenhuma maneira. O que busquei foi inserir uma reflexão que pudesse apontar alguns perigos de interpretação que identifiquei como possíveis na minha leitura particular do texto. E também inserir o meu próprio entendi-mento de certas passagens, de forma deturpada, às vezes, mas com vistas a exibir uma noção relativa de quem realmente pode prejudicar quem, e em quais ocasiões. Mesmo assumindo a psi-copatia como doença, o que definitivamente não faço aqui, exis-tem outras vertentes de estudiosos que alargam ou diferem suas posições daquelas exibidas por “Mentes Perigosas”, o que tam-bém é absolutamente comum no meio acadêmico: podemos citar como exemplo a psicóloga Jennifer Skeem, da Universidade da Califórnia, que acredita na psicoterapia como forma de fazer psi-copatas não cometerem delitos e cumprirem regras sociais, coisa desacreditada em “Mentes Perigosas”.

Enfim, se há evidência aqui de que um texto pode ser par-cialista mesmo exibindo fatos é a própria descrição de mim mes-mo que fiz no começo deste livro. Comparei características da minha biografia às de outras pessoas, tidas como frias e cruéis, para sugerir uma possível correlação. O argumento é falho e foi propositadamente realizado para que se tornasse parte da ideia aqui sugerida: Humberto Mariotti, poeta, filósofo e secretário de propaganda de uma entidade acadêmica argentina, também compartilha estas características comigo e com Goebbels, e apa-rentemente viveu uma vida de caridade e devoção às suas cren-ças religiosas; e se dois serial killers nasceram no dia 6 de maio, dois papas (Marcelo II e Inocêncio X) e até um santo (Irmão Au-gusto Andrés) também o fizeram...

A forma mais coerente de resumir o que essa explanação toda propõe é essa: por mais que fenômenos físicos operem so-bre o comportamento do homem, se há um viés intelectual que

7372

Page 38: Dementes Perigosos

pode contê-lo, ou contorná-lo, sem dúvida é cultural. Com ela (a cultura, entendida com seu mais amplo espectro de significação), pessoas sensíveis podem conter ímpetos passionais indesejáveis da mesma forma que psicopatas norteariam sua “ética” mesmo sem qualquer sensibilidade. É preciso, sempre e sempre, buscar entender todos os fenômenos sociais sem endeusá-los ou demon-izá-los, pois assim se corre o sério risco de ignorar as nuances que nos permite apreciar a beleza e os horrores da condição humana em sua plenitude.

7574