deltora É uma terra de monstros e magia · em um deserto desolado e iridiscente, mantido...

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DELTORA É UMA TERRA DE MONSTROS E MAGIA...

Quando as sete pedras preciosas do mágico Cinturão de Deltora foram

roubadas, o maligno Senhor das Sombras invadiu o reino e escravizou o seu povo.

Determinados a livrar o reino do tirano, Lief, Barda e Jasmine saíram numa perigosa

busca para encontrar as pedras perdidas agora escondidas em locais aterrorizantes

em todo o reino.

Eles já encontraram três pedras e agora precisam encontrar a quarta, oculta

em um deserto desolado e iridiscente, mantido zelosamente por um guardião

desconhecido. Separação, destruição e inimigos aterrorizantes e estranhos os

aguardam na horripilante experiência nas Dunas.

SUMÁRIO

O vôo

O fruto proibido

A estrada para Rithmere

Perdidos na multidão

Ganhar ou perder

Berry, Birdie e Twig

Problemas

Os Jogos

Os finalistas

O campeão

Num piscar de olhos

Sem escolha

As Dunas

Terror

O centro

O cone

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AAAATTTTÉ AGORAÉ AGORAÉ AGORAÉ AGORA............

Lief, de 16 anos de idade, cumprindo uma promessa feita pelo pai antes que

o filho nascesse, saiu em uma grande busca para encontrar as sete pedras

preciosas do mágico Cinturão de Deltora. As pedras — uma ametista, um topázio,

um diamante, um rubi, uma opala, um lápis-lazúli e uma esmeralda — tinham sido

roubadas a fim de permitir que o desprezível Senhor das Sombras invadisse o reino.

Escondidas em locais assustadores por todo o reino, elas devem ser recolocadas

no Cinturão antes que o herdeiro do trono possa ser encontrado, para que a tirania

do Senhor das Sombras seja derrotada.

Os companheiros de Lief são Barda, um homem mais velho que já foi

guarda do palácio, e Jasmine, uma garota selvagem e órfã, da idade de Lief. Os

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dois amigos a conheceram em sua primeira aventura nas temíveis Florestas do

Silêncio.

Até o momento, eles encontraram três pedras: o topázio dourado, símbolo

da lealdade, que tem o poder de fazer os vivos entrarem em contato com o mundo

espiritual e de clarear e estimular a mente; o rubi, símbolo da felicidade, cuja cor

perde a intensidade na presença de ameaças e que serve também para repelir

espíritos malignos e como antídoto para venenos; e a opala, pedra da esperança,

que oferece vagas imagens do futuro.

Em suas viagens, os companheiros descobriram um movimento de

resistência secreto formado por pessoas que juraram opor-se ao Senhor das

Sombras. Contudo, os servos do inimigo estão em todos os lugares. Alguns, como

os brutais Guardas Cinzentos, são facilmente reconhecidos. Outros mantêm sua

sombria lealdade muito bem escondida.

Os três amigos tiveram sorte em escapar da Cidade dos Ratos com vida.

Mas, agora, estão enfrentando dificuldades na planície estéril que a cerca, pois

perderam todos os seus suprimentos. A opala ofereceu a Lief uma visão terrível de

seu próximo destino: as Dunas.

E agora, continue a leitura...

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Lief tinha a impressão de que ele e os amigos estavam andando ao lado do

rio há séculos. No entanto, somente uma noite e parte de um dia haviam se passado

desde que ele, barda e jasmine tinham deixado a cidade dos ratos em chamas. O

leve cheiro de fumaça ainda pairava no ar, embora a cidade agora fosse somente

uma mancha no horizonte.

Fazia tempo que os companheiros haviam se livrado dos pesados trajes

vermelhos que os haviam salvado dos ratos, portanto caminhar se tornara uma

tarefa mais fácil. Porém a fome e a exaustão estavam fazendo com que a jornada

parecesse interminável, e o fato de a paisagem não mudar nunca também não os

ajudava. Hora após hora, os três avançavam com dificuldade pela terra nua e

ressequida, cercada de ambos os lados pelas águas do Rio Largo — um rio tão

extenso que eles mal enxergavam a margem oposta.

Embora todos precisassem muito de descanso, sabiam que tinham de

prosseguir. A coluna de fumaça que manchava o céu atrás deles parecia um sinal

de seus inimigos. Era um sinal de que algo muito importante ocorrera no horripilante

lugar em que a terceira pedra do Cinturão de Deltora estivera escondida. Se o

Senhor das Sombras tomasse conhecimento de que ela fora roubada, seus servos

começariam a procurar os ladrões.

E os encontrariam facilmente naquela planície deserta.

Barda caminhava de cabeça baixa, lenta e penosamente, ao lado de Lief.

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Jasmine andava um pouco mais à frente. Ela mantinha os olhos fixos no horizonte,

balbuciando, vez ou outra, algo para Filli, que se aninhara no ombro dela. Ela

procurava por Kree, o corvo, que voara para longe ao raiar do dia para inspecionar a

região e procurar comida.

Ele havia partido há muitas horas, o que era um mau presságio. A longa

ausência significava que alimento e abrigo estavam muito longe. Mas nada havia a

ser feito além de continuar avançando. Não havia outro caminho a seguir além

daquele que percorriam, pois a Planície dos Ratos encontrava-se numa curva do rio

e era cercada, por três lados, por águas profundas.

"Durante séculos, os ratos foram prisioneiros do rio, que prescrevia curvas

ao redor da planície", Lief pensou carrancudo. E agora eles também estavam

presos.

De repente, Jasmine soltou um grito alto e penetrante. Um som fraco e

áspero veio em resposta.

Lief olhou para cima e viu um ponto negro aproximando-se deles através do

azul distante. A cada momento, o ponto se tornava maior até que, finalmente, Kree

voou para baixo, grasnando asperamente.

Ele aterrissou no braço de Jasmine e grasnou outra vez. Jasmine escutou.

Seu rosto estava inexpressivo. Finalmente, ela se virou para Lief e Barda.

— Kree diz que a planície termina numa ampla faixa de água quase tão

larga quanto o rio — ela informou.

— O quê? — Consternado, Lief deixou-se cair no chão.

— A planície é uma ilha? — resmungou Barda. — Mas não pode ser! — Ele

sentou-se ao lado de Lief e deu um profundo suspiro.

Kree afofou as asas e emitiu um som aborrecido e cacarejante.

— Kree a viu com os próprios olhos — disse Jasmine. — Uma faixa de água

une os dois braços do rio. Segundo ele, é uma faixa muito larga, mas talvez não

funda o bastante para nos impedir de passar. Suas águas são mais claras que as do

rio, e ele pôde ver cardumes de peixes não muito longe da superfície.

— Peixe! — a boca de Lief encheu-se de água ao pensar em comida

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quente.

— E fica muito longe daqui? — ele ouviu Barda perguntar.

— Kree acha que podemos chegar lá amanhã se não pararmos à noite —

Jasmine respondeu, dando de ombros.

— Então é o que faremos — Barda retrucou, sério, erguendo-se. — Pelo

menos é mais difícil sermos vistos no escuro. E, afinal, não temos comida. Não

temos abrigo nem onde nos deitar, a não ser a terra seca. Portanto, qual a

vantagem de pararmos? Podemos muito bem andar até cair.

Assim, na manhã do dia seguinte, eles se encontravam no fim da planície,

olhando fixamente, com olhos ardentes de cansaço, para o brilhante lençol de água

que lhes bloqueava a passagem.

— Isso certamente não é obra da natureza — Lief arriscou. — As margens

são retas e uniformes demais.

— Elas foram cavadas por mãos humanas — Barda concordou. — E eu

diria que foi há muito tempo, para criar uma barreira contra os ratos.

Kree voava acima deles, grasnando excitado.

— Há árvores do outro lado — Jasmine murmurou. — Árvores e outras

plantas.

Sem hesitação, ela entrou na água. Seu olhar ansioso estava fixado na

linha verde e irregular adiante.

— Cuidado, Jasmine! — Lief gritou.

Mas ela continuou a andar sem parar ou virar-se. A água subiu-lhe à cintura,

depois ao peito, mas foi só. Ela começou a avançar firmemente em direção à

margem oposta. Barda e Lief apressaram-se em segui-la, agitando a água fria com

seus passos.

— Quando eu tinha a missão de mantê-lo fora de perigo nas ruas de Del,

Lief, pensei que você fosse o garoto mais impulsivo e desagradável do mundo —

Barda balbuciou. — Me desculpe. Jasmine é tão ruim quanto você... ou ainda pior!

Lief sorriu. Então, deu um salto e gritou quando algo lhe roçou levemente o

tornozelo. Ele olhou para a água e viu um movimento agitado e repentino provocado

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por vários peixes grandes que se afastavam, disparando para as sombras.

— Eles não vão machucá-lo — Jasmine avisou, sem se virar.

— Como você sabe? — Lief retrucou. — Eles podem estar tão famintos

quanto eu. Eles...

O garoto interrompeu-se quando Kree gritou e mergulhou no ar na direção

deles, tocando levemente a água e, em seguida, elevando-se para o ar novamente.

Jasmine parou atenta e então se virou bruscamente para Lief e Barda.

— Algo está vindo do céu — ela disse. — Kree...

Soltando gritos estridentes, o pássaro preto voou na direção deles mais

uma vez, claramente aterrorizado.

— O que foi? — Lief vasculhou o céu freneticamente, mas nada conseguiu

ver.

— Algo enorme! Algo muito ruim! — Jasmine arrancou Filli do ombro e

ergueu no ar o minúsculo pacote de pêlo cinzento, que chilreava assustado. —

Kree! — ela gritou. — Pegue Filli e escondam-se.

Nesse momento, o olhar atento de Lief vislumbrou um ponto negro no

horizonte, que ficava maior a cada instante. Em segundos, ele conseguiu enxergar

um longo pescoço e enormes asas em movimento.

— Ak-Baba! — Barda sussurrou. — Ele viu a fumaça.

O sangue de Lief pareceu gelar em suas veias. Seu pai lhe contara sobre

eles — pássaros gigantes, parecidos com abutres, que viviam mil anos. Sete

serviam ao Senhor das Sombras e haviam carregado as pedras do Cinturão de

Deltora para os perigosos esconderijos.

Obedecendo à ordem de Jasmine, Kree apanhou Filli em suas garras e

afastou-se depressa para o outro lado da faixa de água. Ali, ambos poderiam

esconder-se entre o capim alto ou os galhos de uma árvore.

Porém Lief, Barda e Jasmine não tinham onde se esconder. Atrás deles

estava a terra nua da planície e, à sua frente, uma enorme extensão de água,

brilhando à luz do amanhecer.

Eles avançaram com dificuldade mais alguns passos, mas sabiam que

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aquilo de nada adiantaria. O Ak-Baba voava com incrível velocidade e estaria sobre

eles muito antes que pudessem chegar a um local seguro.

Ele já podia ver a fumaça da cidade em chamas. Quando enxergasse três

intrusos esfarrapados escapando pela planície, saberia, de imediato, que se tratava

de inimigos do Senhor das Sombras.

Ele iria atacá-los? Ou iria simplesmente mergulhar subitamente, apanhá-los

com suas garras enormes e carregá-los até o seu mestre? De um jeito ou de outro,

estavam perdidos.

O único esconderijo possível era embaixo da água. E, mesmo assim, Lief

sabia que tal esconderijo era inútil. Do ar, o Ak-Baba poderia vê-los tão claramente

quanto Kree vira os cardumes de peixes.

— Ele ainda não nos viu — Barda avisou rapidamente. — Seus olhos estão

fixos na fumaça na cidade. Lief, o seu casaco!

Claro! Com dedos molhados e desajeitados, Lief puxou as tiras que

prendiam o casaco ao redor de seu pescoço, até que ele flutuou livremente.

— Para baixo! — Barda ordenou.

Todos respiraram fundo e mergulharam na água do rio, segurando o casaco

sobre eles como se fosse um toldo. Ele flutuou sobre as cabeças dos três, quase

invisível na água.

Os amigos fizeram o melhor que podiam, mas será que isso seria suficiente

para ocultá-los do olhar penetrante do Ak-Baba? Se estivesse mais escuro, talvez.

Mas, certamente, sob a luz brilhante do amanhecer, a criatura não deixaria de

perceber que havia uma mancha na água diferente de todo o resto. Desconfiada,

ela circulava sobre o local, vigilante, à espera...

Por quanto tempo Lief, Barda e Jasmine conseguiriam prender a

respiração? Mais cedo ou mais tarde, eles teriam de subir ofegantes à superfície.

Então, o monstro iria atacar.

Os dedos de Lief procuraram o fecho do Cinturão que usava debaixo da

camisa. O Cinturão de Deltora não deveria ser apanhado. Se necessário, ele o

abriria e o deixaria cair na lama do fundo do rio. Seria melhor permanecer ali do que

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cair nas mãos do Senhor das Sombras outra vez.

Seus pulmões já não resistiam à falta de ar. Seu corpo lhe ordenava que

subisse à superfície para respirar. Algo cutucou-lhe o ombro e ele abriu os olhos.

Havia peixes nadando ao seu redor — grandes peixes prateados olhando-o

fixamente com olhos vidrados. Suas nadadeiras e caudas roçavam-lhe a cabeça e o

rosto. Eles estavam se aproximando cada vez mais.

E, então, tudo escureceu. Uma enorme sombra impediu a passagem do sol.

O Ak-Baba voava acima deles.

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Lief lutou contra o pânico que ameaçava dominá-lo. A sombra do Ak-Baba

escurecera a água,e ele não conseguia mais ver os peixes, mas sentia-lhes o peso.

Naquele momento, dúzias deles nadavam sobre o casaco, afastando os três

companheiros da superfície e pressionando-os cada vez mais para baixo.

A cabeça de Lief girava. Ele começou a lutar. Seu peito estava dolorido pela

necessidade de respirar. Desesperado, empurrou o casaco que se encontrava

sobre a sua cabeça, mas os peixes estavam de tal modo aglomerados sobre ele

que mais pareciam um teto vivo e em movimento, impossível de ser rompido.

Ele estava cada vez mais fraco e sentia que estava perdendo a consciência,

que sua mente afastava-se lentamente do corpo.

"Então, é assim que tudo vai terminar?", ele pensou. "Depois de tudo o que

enfrentamos..." A imagem de seus pais atravessou rapidamente a sua mente.

Naquele momento, estariam tomando o café da manhã na ferraria, talvez falando a

respeito dele e de Barda.

"Eles nunca saberão o que aconteceu", Lief pensou. "Nossos ossos ficarão

nesta lama para sempre e, com eles, o Cinturão de Deltora."

Vagamente, ele sentiu cutucões insistentes nas pernas e no peito. Os

peixes chocavam-se contra ele e pareciam estar tentando empurrá-lo para cima. E

aqueles que se encontravam sobre sua cabeça afastavam-se para os lados.

Com o que restava de suas forças, ele obrigou as pernas trêmulas a se

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endireitarem. A cabeça rompeu a superfície, e ele encheu os pulmões com grandes

golfadas de ar.

No princípio, Lief nada conseguiu ver, pois o casaco ainda se encontrava

envolto em sua cabeça e grudado em seu rosto. Quando ele finalmente se

desprendeu, o garoto viu, ainda atordoado, Barda e Jasmine, que se encontravam

tão ofegantes e enlameados quanto ele.

Aterrorizado, ele olhou para cima, mas o Ak-Baba havia passado o canal há

muito tempo e sobrevoava tranqüilamente a planície na direção da coluna de

fumaça.

— Ele não nos viu! — disse Lief com voz rouca, tossindo. — Ele passou por

nós e não nos viu! — repetiu, sem poder acreditar.

— Claro — Jasmine retrucou rindo, formando uma trouxa com o casaco. —

Quando ele olhou para a água, só enxergou um cardume de peixes igual aos que

viu inúmeras vezes antes.

Ela bateu as mãos na superfície encrespada.

— Ah, peixes, vocês foram espertos — ela riu. — Souberam nos esconder

muito bem.

Os peixes nadaram ao redor dela, soltando bolhas preguiçosamente,

parecendo muito satisfeitos consigo mesmos.

— Pensei que eles estavam tentando nos afogar — Barda disse. — E, na

verdade, eles só estavam nos escondendo do Ak-Baba. Vocês já ouviram falar de

peixes que ajudam as pessoas?

— Eles não são peixes comuns — Jasmine garantiu. — São velhos e

sábios. Não gostam dos ratos que transformaram a planície de um dos lados de seu

rio numa terra devastada. E também não gostam do Senhor das Sombras.

— Eles contaram isso a você? — Lief indagou surpreso.

— Eles não são peixes comuns — ela repetiu, dando de ombros. — E

também falariam com você se quisesse ouvir.

Lief olhou para os vultos debaixo da água e se concentrou com todas as

forças. Mas tudo que conseguiu ouvir foram as ondas e o som de borbulhas.

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— Eu deveria saber que não morreríamos no rio — ele murmurou. — Na

planície, a opala me permitiu ter uma visão, e eu me encontrava nas Dunas. Se tiver

de morrer em algum lugar, será lá.

Lief sentiu os olhos de Barda e Jasmine pousados nele.

— A opala conta o que vai acontecer ou somente o que poderia acontecer?

— Barda perguntou bruscamente.

Lief deu de ombros, pois não sabia o que responder.

— Precisamos continuar — Jasmine disse. — O Ak-Baba pode voltar pelo

mesmo caminho.

Com os peixes nadando à frente deles a fim de facilitar-lhes a passagem, os

três companheiros avançaram pelo canal. Quando finalmente atingiram a margem

oposta, viraram-se e fizeram uma reverência em sinal de agradecimento.

— Devemos nossas vidas a vocês, peixes — Jasmine disse com

delicadeza, enquanto Kree pousava em seu braço. — Somos gratos por sua

gentileza.

Os peixes inclinaram as cabeças e se afastaram lentamente, agitando suas

caudas num gesto de despedida.

Kree grasnou e levantou vôo mais uma vez. Lief, Barda e Jasmine o

seguiram na direção de uma árvore que crescia ao lado da água e cujos ramos

verdes e cheios de folhas se curvavam, quase roçando o chão.

Eles abriram caminho entre a folhagem e chegaram a uma pequena clareira

cercada por galhos pendentes de todos os lados. Era como se fosse um pequeno

aposento. No centro, havia um tronco retorcido e, sentado sobre ele, Filli

encontrava-se à espera de Jasmine. A criatura correu para ela e se aninhou em seu

ombro, chilreando satisfeito.

Com um gemido de alívio, os três amigos deixaram-se cair no chão. Seus

ossos doloridos repousaram sobre uma espessa camada de folhas secas e macias.

Acima, havia um teto verde e, ao redor deles, paredes sussurravam na brisa suave.

— Salvos — murmurou Jasmine. Mas, desta vez, não foi preciso que ela

explicasse o que a árvore tinha dito, pois todos sentiam a paz que ela transmitia.

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Em poucos momentos, adormeceram.

Lief estava sozinho quando despertou. Pássaros cantavam acima dele, o ar

estava fresco, e estava quase escuro.

"O sol está se pondo", ele pensou, tremendo. "Dormi o dia inteiro."

Onde se encontravam Barda, Jasmine, Kree e Filli? Lief arrastou-se até os

ramos pendentes que serviam de cortina ao abrigo, afastou as folhas com cuidado e

espiou para fora. Assustado, deu-se conta de que o sol não estava se pondo, mas

nascendo. Ele não só dormira o dia todo, mas também mais uma noite.

Jasmine e Barda caminhavam na direção da árvore. Lief imaginou que eles

haviam estado à procura de comida e esperou que tivessem encontrado algo. Seu

estômago estava vazio, e ele se sentia como se não comesse há muito tempo. Abriu

caminho entre os galhos e correu ao encontro dos amigos.

— Maçãs! — Barda anunciou ao se aproximar. — Um pouco murchas, mas

bastante doces e matam a fome.

Ele atirou uma fruta para Lief, que nela enterrou os dentes com vontade e a

devorou em segundos, com sementes e tudo.

— Dizem que as frutas roubadas são as mais doces — Barda riu,

atirando-lhe outra maçã.

— Roubadas? — Lief indagou de boca cheia.

— Aquelas árvores ali fazem parte de um pomar — Barda contou,

apontando o local. — Jasmine serviu-se à vontade sem se preocupar em encontrar

o dono e pedir permissão.

— As árvores estão pesadas de tantas frutas — ela justificou. — Elas estão

implorando para serem colhidas. E você viu como elas estão murchas. Quem iria se

zangar conosco por apanhá-las?

— Eu, não — Lief respondeu alegre. — A última vez em que comi uma

maçã...

Ele se interrompeu. De repente, a fruta doce pareceu seca em sua boca. A

última vez em que havia comido uma maçã, ele se encontrava em Del,

banqueteando-se com os amigos no seu 16° aniversário. Foi o dia em que se

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despediu da infância, da vida que conhecera, de seu lar e dos pais que amava.

Como esse dia parecia distante agora...

Jasmine o fitava com curiosidade. A expressão do garoto se enchera de

tristeza e, ao perceber isso, ele virou-se depressa. Jasmine vivera sozinha nas

Florestas do Silêncio, tendo somente Filli e Kree como companhia. Ela vira os pais

serem levados pelos Guardas Cinzentos e enfrentara inúmeros terrores desde a

mais tenra infância. Lief tinha certeza de que as saudades que sentia pareceriam

uma fraqueza e uma infantilidade para Jasmine.

Ele deu outra mordida na maçã e ergueu-se num salto quando ouviu gritos

estridentes.

— Ladrões!

Lief semicerrou os olhos na luz bruxuleante da manhã. Algo rolava em meio

ao capim alto na direção deles, soltando gritos raivosos. Quando o vulto se

aproximou, Lief percebeu que se tratava de uma pequena velhinha. Ela era tão

rechonchuda e estava de tal forma envolta e embrulhada em xales que parecia

totalmente redonda. Os finos cabelos castanhos estavam presos em um minúsculo

coque no alto da cabeça. Seu rosto era todo enrugado e marcado, como uma maçã

murcha, e estava rubro de raiva. Ela agitava o punho no ar. Sua expressão

mostrava que estava muito zangada.

— Ladrões! — ela gritou. — Vagabundos! Devolvam-nas! Devolvam-nas!

Os três companheiros a fitaram boquiabertos.

— Vocês roubaram as minhas maçãs! — ela vociferou. — Vocês roubaram

as minhas belezinhas enquanto os meus vigias dormiam. Onde elas estão?

Devolvam-nas para mim.

Em silêncio, Jasmine passou-lhe as três maçãs que continuavam em suas

mãos. A mulher segurou-as junto ao peito e lançou-lhes um olhar feroz.

— Impostores! Onde estão as outras? — ela gritou. — Onde estão as outras

seis? Todas as maçãs são numeradas. O paradeiro de todas deve ser justificado.

Só assim consigo cumprir a minha cota. Vocês pegaram nove frutas, e nove frutas

devem ser devolvidas.

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— Sinto muito, senhora, — Barda se desculpou, pigarreando — mas não

podemos devolvê-las. Sinto lhe dizer que elas já foram comidas.

— Comidas?!

A velha senhora pareceu inchar e ficou tão vermelha que Lief temeu que

fosse explodir.

— Nós... nós imploramos que nos perdoe — ele balbuciou. — Estávamos

com tanta fome e...

A velha mulher atirou a cabeça para trás, ergueu os braços, agitou os xales

e emitiu um terrível grito estridente.

Imediatamente, ela foi cercada por uma nuvem escura que zunia e

rodopiava.

Abelhas. Milhares delas. Antes pousadas nas costas da velha senhora,

amontoadas sob os xales, elas agora se atropelavam ao seu redor, esperando a

ordem para atacar.

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Lief, Barda e jasmine cambalearam para trás. A nuvem de abelhas

movimentava-se como ondas e formava desenhos no ar atrás da cabeça da velha

senhora. Seu zumbido parecia o rugido ameaçador de um grande animal.

— Vocês pensaram que eu estava desprotegida, não é? — gritou a velha

mulher. — Vocês pensaram que poderiam me roubar sem medo. Os meus guardas

são pequenos, mas são muitos e agem como se tivessem uma só mente. Vocês

encontrarão a morte em milhares de picadas para pagar pelo que fizeram.

Jasmine remexia desesperadamente nos bolsos. Ela encontrou o que

procurava e estendeu a mão. Moedas de ouro e prata brilhavam sob a luz do sol.

— Você aceitaria estas moedas em troca das maçãs? — ela indagou. A

mulher se surpreendeu, e seus olhos se estreitaram.

— Por que vocês roubam se têm dinheiro? — ela quis saber. Sua mão

enrugada estendeu-se rapidamente e apanhou as moedas.

— Não! — Lief exclamou, dando um passo à frente sem pensar. — Esse é

todo o dinheiro que temos! Você não pode aceitá-lo em troca de algumas maçãs

secas!

As abelhas investiram contra ele, zumbindo perigosamente.

— Devagar, rapaz, devagar. E com delicadeza — a velha mulher cacarejou.

— Meus guardas não gostam de movimentos bruscos e se zangam facilmente. Até

eu preciso usar fumaça para acalmá-los quando colho o mel de sua colméia. Até eu.

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Ela emitiu um som suave, e a nuvem de abelhas encolheu e desapareceu

quando as criaturas retornaram às dobras dos xales. Ela guardou as moedas com

cuidado e lançou um olhar mal-humorado para os três.

— Que isso sirva de lição para vocês — ela repreendeu. — E digam a todos

os seus amigos vagabundos que não terei misericórdia dos próximos ladrões que

aparecerem por aqui.

Lief, Barda e Jasmine hesitaram.

— Vão embora! — ela berrou, agitando o punho para eles. — Voltem para a

estrada de onde vieram.

— Não viemos da estrada, velha senhora! E também não somos ladrões! —

Jasmine gritou.

— Se vocês não vieram da estrada, então de onde vieram? — ela indagou

depois de um profundo silêncio. — Não há outro caminho para o meu pomar.

Exceto...

De repente, a velha estendeu a mão e agarrou a ponta do casaco de Lief.

Ao sentir a umidade, ela abafou um grito, erguendo a cabeça devagar para olhar a

superfície da água e o horizonte, onde um pequeno fio de fumaça ainda se erguia

sobre a Planície dos Ratos.

Um olhar de medo cruzou-lhe o rosto enrugado.

— Quem são vocês? — ela sussurrou, erguendo a mão logo em seguida. —

Não... não me contem. Apenas vão embora. Se vocês forem vistos aqui, nem

mesmo as minhas abelhas serão capazes de me proteger.

— Como chegamos à estrada? — Lief perguntou apressado.

— Atravessem o pomar — e indicou as árvores atrás dela. — Há um portão

do outro lado. Corram! E esqueçam o que eu disse. Não contem a ninguém que

estiveram aqui.

— Pode ficar sossegada — Barda garantiu. — Assim como podemos ter

certeza de que você também vai esquecer que nos viu...

A velha mulher assentiu em silêncio. Os três companheiros se viraram e se

afastaram pela grama. Ao atingirem as árvores, escutaram um grito e se voltaram. A

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estranha mulher se encontrava parada, redonda como uma bola, envolta numa

nuvem de abelhas, observando-os com atenção.

— Boa sorte! — ela gritou, erguendo o braço.

Os amigos acenaram em resposta e prosseguiram.

— Agora, é fácil nos desejar boa sorte — Jasmine se queixou, enquanto

avançavam com dificuldade entre as macieiras. — Há pouco, ela ameaçou

matar-nos com as picadas de suas abelhas. E não se ofereceu para devolver nosso

dinheiro.

— Quem sabe que problemas ela enfrentou? — Barda comentou, dando de

ombros. — Talvez ela tenha razão em suspeitar de estranhos. Exceto pelas

abelhas, ela parece estar totalmente só aqui.

— Ela falou de uma "cota" que deveria ser preenchida — Lief acrescentou

devagar, ao atingirem o fim do pomar e atravessarem o portão que conduzia a uma

trilha sinuosa e ladeada de árvores. — Parece que ela precisa cultivar um

determinado número de maçãs.

— Ou fazer algo com elas — Barda concluiu. Ele fechou o portão atrás de si

e mostrou, com um gesto de cabeça, a placa presa a um pedaço de madeira velha.

— A sidra Abelha Rainha era uma bebida muito apreciada entre os guardas

e acrobatas quando eu vivia no palácio de Del — Barda informou. — Ela dava

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energia extra a quem a bebesse. Parece que ela é produzida aqui, por aquela nossa

amiga que, sem dúvida, é a própria Abelha Rainha.

— Gostaria que ela nos tivesse oferecido um copo ou dois antes de nos

mandar embora — Lief desejou, suspirando.

De fato, todos estavam cansados e desanimados, arrastando-se ao longo

da trilha e falando em voz baixa. Eles sabiam que seu próximo objetivo eram as

Dunas. Mas como chegariam até elas era um mistério.

Na mente dos três, vagueava o pensamento de que não tinham dinheiro,

comida, cobertores nem mochilas — nada além do mapa que o pai de Lief havia

desenhado, das armas e das roupas maltrapilhas em seus corpos.

"Temos também o Cinturão de Deltora", lembrou Lief. Mas o Cinturão, com

todo o seu poder, com as três pedras que agora brilhavam em seus lugares, não

lhes podia encher os estômagos ou abrigá-los do mau tempo.

— A opala oferece imagens do futuro — Jasmine disse após um momento.

— Certamente ela poderá nos mostrar o que vai acontecer, não é mesmo?

Porém Lief não estava disposto a tocar a pedra. A visão que tivera das

Dunas ainda o perseguia, e ele não desejava reviver a experiência.

— Não precisamos ver o futuro para saber que precisamos de ajuda

— ele disse, olhando para a frente. — Precisamos de suprimentos e de um

lugar seguro para descansar um pouco. Vamos nos concentrar nisso por enquanto.

Ele esperou que Jasmine fosse discutir, mas, quando olhou para ela de

relance, viu que ela tinha parado de ouvi-lo e que outra coisa lhe chamava a

atenção.

— Escuto o barulho de carroças e passos — ela anunciou finalmente.

— Vozes também. Há uma estrada mais larga adiante.

E, de fato, alguns minutos depois, a trilha sinuosa encontrou uma estrada

reta e larga. Com cautela, os amigos olharam para ambos os lados. Uma carroça

puxada por um cavalo aproximava-se pela direita, acompanhada por vários homens

e mulheres que caminhavam ao seu lado.

— Parece que há outras pessoas que vão pelo mesmo caminho que nós —

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Barda sussurrou. — Elas parecem bastante inofensivas, mas talvez seja prudente

esperar que passem. Não podemos nos dar ao luxo de responder a muitas

perguntas até que estejamos bem longe daqui.

Os companheiros agacharam-se entre as árvores e observaram a carroça

se aproximar. Era um veículo acabado e frágil, e o cavalo que o conduzia estava

velho e cansado. Mas as pessoas, tanto as que viajavam na carroça quanto as que

caminhavam ao seu lado, conversavam e riam como se tudo corresse às mil

maravilhas.

Lief ouviu o nome Rithmere sendo repetido várias vezes enquanto a carroça

passava. Estava claro que Rithmere era uma cidade e que as pessoas estavam

ansiosas para chegar até lá. Ele ficou animado.

— Acho que há um festival ou uma feira nessa tal de Rithmere — ele

sussurrou.

— Um festival nestes dias? — resmungou Barda. — Acho que não. Mas,

mesmo assim, se Rithmere fica à esquerda desta estrada, fica no caminho das

Dunas. E uma cidade é do que precisamos. Quanto maior, melhor.

— Por quê? — Jasmine, que preferia o campo aberto, indagou em voz

baixa.

— Numa cidade, podemos nos misturar à multidão e ganhar dinheiro para

novos suprimentos. Ou mendigar por eles.

— Mendigar? — Lief exclamou horrorizado.

Barda o fitou com um sorriso triste no canto da boca.

— Há momentos em que devemos deixar o orgulho de lado por uma boa

causa — ele justificou.

Lief balbuciou um pedido de desculpas. Como pôde esquecer que Barda

passara anos disfarçado de mendigo em Del?

Quando a carroça estava a uma distância considerável, os companheiros

saíram do esconderijo entre as árvores e começaram a segui-la. Não haviam

andado muito quando Lief viu algo jogado no chão.

Era um folheto. Curioso, ele o apanhou.

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CAMPEÃO

JOGOS DE RITHMERE

Venham, venham todos!

Testem a sua força e

habilidade!

100 moedas de ouro para cada finalista!

1.000 moedas de ouro para o grande vencedor!!!

Lief mostrou o folheto a Barda e Jasmine. Seu coração batia muito forte,

excitado.

— Aqui está a resposta! — ele disse. — Esta é a nossa chance de ganhar o

dinheiro de que precisamos, ou mais! Vamos participar dos Jogos. E vamos ganhar!

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Dias depois, quando Rithmere finalmente se aproximava, Lief já não estava

tão esperançoso. A jornada tinha sido longa e exaustiva, e ele sentia muita fome. As

poucas frutas silvestres que cresciam na beira da estrada foram toda a comida que

os amigos haviam conseguido encontrar. Viajantes que passaram por ali antes

deles haviam deixado os arbustos praticamente nus.

Quanto mais caminhavam, mais cheia de gente a estrada se tornava.

Muitas outras pessoas se dirigiam a Rithmere, algumas tão mal preparadas para a

viagem quanto Lief, Barda e Jasmine, com roupas em farrapos e pouco ou nada

para comer. Outras, famintas e exaustas, caíam na beira da estrada desesperadas.

Os três amigos conseguiram continuar caminhando, parando

freqüentemente para descansar e conversando com os outros viajantes o menos

possível. Embora se sentissem mais seguros estando ocultos em meio à multidão,

ainda achavam mais sensato evitar perguntas sobre o local de onde tinham vindo.

Entretanto, mantiveram os ouvidos abertos e, rapidamente, descobriram

que os Jogos ocorriam já há dez anos. Sua fama havia crescido e se espalhado, e

concorrentes esperançosos vinham de todos os lugares em busca de fortuna em

Rithmere. Os amigos também descobriram, aliviados, que os Guardas Cinzentos

raramente eram vistos na cidade durante a realização dos Jogos.

— Eles sabem que é melhor não interferir em algo de que o povo gosta

tanto — Lief escutou uma mulher alta e ruiva dizer ao companheiro, um homem

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gigantesco cujos músculos pareciam querer saltar da camisa esfarrapada quando

ele se abaixou para amarrar os cadarços das botas.

— Mil moedas de ouro — o homem murmurou. — Ou mesmo cem! Pense

na diferença que isso iria fazer para nós e para todos lá em casa. — Ele terminou de

dar o laço, ergueu-se e rangeu os dentes, observando a cidade ao longe. — Neste

ano, seremos pelo menos finalistas, Joanna. Tenho certeza.

— Você está mais forte do que nunca, Orwen — a mulher concordou

afetuosa. — E eu também tenho boas chances. No ano passado, não prestei

atenção o bastante. Deixei aquela bruxa da Brianne, de Lees, me fazer tropeçar.

Isso não vai acontecer outra vez.

Orwen envolveu-lhe os ombros com o braço enorme.

— Você não pode se culpar por perder para Brianne. Afinal, ela acabou se

tornando campeã. Ela é uma grande lutadora. E pense no quanto o povo de Lees se

esforçou para prepará-la.

— Dizem que ela foi tratada como uma rainha — Joanna comentou amarga.

— Comida especial, nenhum dever além de treinar. Seus conterrâneos acreditaram

que ela seria a sua salvação. E o que ela fez? Fugiu com o dinheiro assim que o

teve nas mãos. Você acredita numa coisa dessas?

— É claro — o homem replicou sombrio. — Mil moedas de prata é uma

grande fortuna, Joanna. São poucos os campeões dos Jogos que voltam para suas

cidades depois que vencem. A maioria não quer dividir sua riqueza, então foge com

ela a fim de iniciar uma nova vida em outro lugar.

— Mas você nunca faria isso, Orwen — Joanna protestou com firmeza. — E

eu também não. Eu nunca deixaria o meu povo na pobreza se pudesse ajudá-lo. Eu

preferiria me atirar nas Dunas.

Lief gelou ao ouvir as últimas palavras e olhou para Jasmine e Barda a fim

de verificar se eles tinham ouvido.

Joanna e Orwen continuaram a andar, ombro a ombro, sobressaindo-se em

meio à multidão.

— O fato de ela mencionar as Dunas não quer dizer nada, Lief. — Barda

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garantiu em voz baixa, observando o casal. — As Dunas são tão temidas por quem

vive nestas paragens quanto as Florestas do Silêncio pelo povo de Del.

Sua expressão estava severa e profundamente marcada pela exaustão.

— Agora, é mais importante decidir se vamos perder o nosso tempo

tentando competir com pessoas como Joanna e Orwen. No estado em que nos

encontramos...

— Precisamos tentar — Lief murmurou, embora ele próprio estivesse muito

desanimado.

— Não adianta falar disso agora — Jasmine interrompeu impaciente.

— Quer participemos dos Jogos ou não, precisamos entrar na cidade.

Precisamos conseguir comida mesmo que tenhamos de roubá-la. O que mais

podemos fazer?

Rithmere fervilhava, cheia de pessoas. Barracas cobriam as laterais das

ruas estreitas, próximas umas das outras, preenchendo todos os espaços

disponíveis, enquanto seus donos ofereciam, aos gritos, o que tinham para vender e

vigiavam suas mercadorias com olhos de águia.

O barulho era ensurdecedor. Músicos, dançarinos, comedores de fogo e

malabaristas apresentavam-se em todas as esquinas, seus chapéus no chão para

receber as moedas atiradas pelos passantes. Alguns tinham animais — cobras,

cachorros e até ursos dançarinos, além de criaturas estranhas que os três amigos

nunca tinham visto antes — para ajudá-los a atrair atenção.

O barulho, os cheiros, as cores vivas e a confusão fizeram Lief, já fraco

devido à fome, sentir-se mal. Os rostos na multidão pareciam agigantar-se, e ele

avançava com dificuldade. Reconheceu algumas pessoas da estrada, mas a

maioria lhe era estranha.

Em todos os lugares, havia vultos curvados de mendigos, faces magras

voltadas para cima, com uma expressão suplicante, e mãos estendidas. Alguns

eram cegos, a outros faltava algum membro. Outros simplesmente passavam fome.

A maioria das pessoas não lhes dava atenção, passando por cima deles como se

fossem pilhas de lixo.

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— Ei, garota! Você com o pássaro preto! Aqui!

O grito rouco tinha vindo de algum lugar muito próximo. Eles procuraram ao

redor, assustados.

Um homem gordo, com cabelos longos e sebosos, acenava para Jasmine

com insistência. Os três companheiros avançaram lentamente em meio à multidão

na direção dele, imaginando o que ele queria. Quando se aproximaram,

constataram que se encontrava sentado diante de uma pequena mesa coberta por

uma tolha vermelha que chegava ao chão. Atrás dele, encostadas à parede,

estavam duas muletas. Sobre a mesa, havia um poleiro, um cesto com pássaros de

madeira e uma roda decorada com desenhos coloridos de pássaros e moedas.

Era evidente que se tratava de algum tipo de jogo.

— Gostaria de ganhar algum dinheiro, queridinha? — o homem gritou para

se fazer ouvir no barulho da multidão.

Jasmine franziu a testa e nada respondeu.

— Ela não pode jogar — Lief gritou de volta. — A menos que seja de graça.

— Desse jeito, como eu ganharia a vida, meu jovem rapaz? — o homem

resmungou. — Não, não. Uma moeda de prata para um giro da roda, esse é o meu

preço. Mas não estou convidando a sua amiga a jogar. Ninguém pode jogar no

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momento. Meu pássaro acaba de morrer. Viu? — Ele tinha erguido um pombo

morto pelos pés e balançava-o diante de seus narizes.

Jasmine encarou-o com expressão dura. O homem fez uma careta de

pesar.

— Triste, não é? — ele disse. — Triste para Beakie-Boy, mais triste ainda

para mim. Preciso de um pássaro para girar a roda. Esse é o jogo. Vença o pássaro,

entendeu? Tenho outros dois pombos em meu alojamento, mas, se eu for buscá-los

agora, vou perder meu lugar e a metade dos rendimentos de um dia. Não posso

deixar isso acontecer, certo?

Seus olhos miúdos estreitaram-se ao examinar Jasmine de cima a baixo.

— Você e seus amigos parecem estar precisando encher os estômagos

com uma boa refeição — ele continuou matreiro. — Pois bem, eu vou ajudá-los.

Ele jogou o pombo morto no chão, chutou-o para debaixo da mesa e

apontou Kree.

— Eu compro o seu pássaro. Quanto você quer por ele?

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Kree não está à venda — Jasmine respondeu com firmeza, sacudindo a

cabeça. Ela se virou para partir, mas o homem gordo agarrou-a pela manga do

casaco.

— Não vire as costas para mim, queridinha — ele se queixou. — Não vire as

costas para o pobre e velho Ferdinand, por misericórdia.

Kree inclinou a cabeça para o lado e observou o homem com cuidado.

Então, pulou na mesa e saltou diretamente para ele, inspecionando-o com atenção,

a cabeça virando de um lado para o outro. Após alguns instantes, ele grasnou alto.

Jasmine olhou para Lief e Barda e novamente para Ferdinand.

— Kree quer saber quanto nos daria por sua ajuda no dia de hoje? — ela

falou.

— Ele fala com você, é? — o homem gordo riu, sem acreditar. — Bem, isso

é algo que não se vê todos os dias.

Ele tirou uma latinha do bolso, abriu-a e tirou uma moeda de prata.

— Diga-lhe que eu lhe darei isto se ele girar a roda até o pôr-do-sol. É o

suficiente para ele?

Kree voou de volta para o braço de Jasmine e grasnou novamente. Ela

assentiu, devagar.

— Por uma moeda de prata, Kree vai girar a roda 30 vezes. Se quiser que

ele trabalhe mais, terá de pagar novamente.

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— Isso é um roubo! — Ferdinand exclamou.

— É o preço dele — Jasmine retrucou com calma.

A expressão de Ferdinand se entristeceu, e ele enterrou o rosto nas mãos.

— Ah, você é uma garota cruel! Cruel com um pobre infeliz que tenta ganhar

a vida — ele se lastimou. — Minhas últimas esperanças se foram. Eu e meus

pássaros vamos morrer de fome — seus ombros foram sacudidos pelos soluços.

Jasmine deu de ombros, aparentemente indiferente. Lief, vendo as muletas

de Ferdinand encostadas à parede, sentiu-se incomodado.

— Você foi muito dura, Jasmine — ele sussurrou ao ouvido dela.

— Você não poderia...?

— Ele está representando. Ele pode pagar dez vezes o que ofereceu

— Jasmine sussurrou em resposta. — Kree diz que ele tem uma bolsa

presa ao cinto estourando de moedas. A toalha que cobre a mesa a esconde de

nós. Espere só para ver.

E, de fato, após alguns instantes, o homem gordo espiou por entre os dedos

e se convenceu de que Jasmine não iria mudar de idéia. Parou de fingir e de soluçar

e tirou as mãos do rosto.

— Muito bem — ele disparou, num tom de voz totalmente diferente. — Para

um pássaro, até que ele é um bom negociante. Coloque-o no poleiro.

— Primeiro o dinheiro, por favor — Barda disse depressa. Ferdinand

lançou-lhe um olhar zangado e, com suspiros e gemidos, entregou a Jasmine a

moeda de prata que tirara da lata. Satisfeito, Kree esvoaçou até o poleiro.

— Saiam daí, vocês três — Ferdinand ordenou bruscamente. — Abram

caminho para os clientes.

Os companheiros obedeceram, mas permaneceram nas proximidades a fim

de observar o que ocorria. Nenhum deles confiava em Ferdinand. O cheiro de

comida que flutuava no ar, vindo de uma barraca próxima, fez com que Lief ficasse

com água na boca, mas ele sabia que não podiam comprar nada com a moeda de

prata até que Kree tivesse retornado à segurança do braço de Jasmine.

— Venham, venham! — Ferdinand chamava. — Vençam o pássaro e

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ganhem! Uma moeda de prata por um giro da roda! Todos os jogadores ganham um

prêmio.

Uma pequena multidão se aglomerou ao redor da mesa quando o homem

começou a apontar os números das moedas pintadas em volta da roda.

— Duas moedas de prata por uma! — ele gritava. — Ou vocês preferem três

moedas? Ou quatro? Sim, senhoras e senhores, garotos e garotas. Quatro moedas

em troca de uma!

As pessoas começaram a procurar moedas em seus bolsos. A mão

rechonchuda de Ferdinand movia-se em volta da roda, o dedo apontando um

número após outro.

— Mas por que parar em quatro? — ele gritou. — Hoje é o seu dia de sorte!

Ora, vocês podem ganhar cinco, seis ou até dez moedas! — ele puxou os cabelos,

revirou os olhos e sua voz tornou-se esganiçada. — Dez moedas de prata por uma!

Prêmios para todos os jogadores! Por que estou fazendo isso? Devo estar ficando

louco!

Várias pessoas se empurravam, estendendo o dinheiro. Lief moveu-se

inquieto.

— Talvez devêssemos usar a moeda no jogo — ele murmurou para Barda.

— Poderíamos dobrar o nosso dinheiro. Ou ganhar bem mais!

— Ou, o que é mais provável, poderíamos perder a moeda e acabar com

um pássaro de madeira inútil — Barda retrucou, sorrindo para ele com pena. — Se a

roda parar num pássaro e não numa moeda...

Lief não se convenceu, especialmente quando viu Kree girar a roda pela

primeira vez, batendo nela fortemente com o bico e fazendo com que se movesse

suavemente por alguns instantes. A jogadora, uma mulher de olhar ávido e cabelos

esvoaçantes, que observava com ansiedade, gritou deliciada quando a roda parou,

e o marcador mostrou que ela ganhara duas moedas.

— Ela venceu o pássaro! — gritou Ferdinand, remexendo em sua lata de

dinheiro e entregando o prêmio à mulher. — Oh, tenham pena de mim! — ele se

voltou para Kree e agitou o punho. — Tente com mais afinco! — ele ameaçou. —

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Você vai me arruinar!

A multidão riu. Outro jogador se adiantou, e Kree girou a roda mais uma vez.

O segundo jogador teve ainda mais sorte do que o primeiro e ganhou três moedas.

— Esse pássaro é um caso perdido! — Ferdinand uivou desesperado. —

Oh, o que farei?

Depois disso, Ferdinand precisou de muita agilidade e rapidez para receber

o dinheiro dos clientes, pois as pessoas amontoavam-se em frente à mesa e

esperavam ansiosas a sua vez de jogar.

Kree girou a roda repetidas vezes. Mas ninguém mais teve a sorte dos dois

primeiros jogadores, não se sabe por quê. A roda parava na figura de pássaro com

freqüência cada vez maior, e o desapontado jogador se afastava levando um

pássaro de madeira. O marcador indicou a figura de moeda somente poucas vezes

e, quando isso ocorreu, a moeda exibia o número 1 ou o 2.

Sempre que isso acontecia, Ferdinand fazia um enorme estardalhaço,

cumprimentava o vencedor, dizia que estava arruinado, gritava com Kree por não

saber girar a roda e anunciava que, da próxima vez, o prêmio seria ainda maior.

Contudo, a pilha de moedas de prata na caixa de dinheiro aumentava. De

vez em quando, Ferdinand pegava algumas e enfiava-as na bolsa presa ao cinto.

Mesmo assim, os jogadores empurravam-se uns aos outros, ansiosos por tentar a

sorte.

— Não é de surpreender que a bolsa dele esteja estourando — Jasmine

sussurrou aborrecida. — Por que essas pessoas lhe dão dinheiro? É evidente que

algumas são muito pobres. Será que elas não vêem que ele ganha muito mais do

que elas?

— Ferdinand faz estardalhaço somente quando os jogadores ganham —

Barda comentou com severidade. — Os perdedores são ignorados e rapidamente

esquecidos.

Jasmine fez uma careta de desagrado.

— Kree girou a roda 29 vezes — ela disse. — Mais uma e podemos

buscá-lo. Não quero continuar com isso. Não gosto de Ferdinand nem de sua roda.

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Vocês concordam?

Barda assentiu, e Lief fez o mesmo. Por mais que precisassem de dinheiro,

nenhum deles queria continuar ajudando Ferdinand.

Barda apontou para uma faixa presa no alto de um edifício, um pouco mais

adiante.

— Acho que encontraremos abrigo e comida ali — ele sugeriu. — Talvez

eles nos deixem trabalhar para pagar pela estadia. Pelo menos, podemos tentar.

Kree girou a roda pela última vez. O jogador, um homem de rosto magro

com profundas olheiras, observou-a desesperado, à medida que desacelerava.

Quando a roda parou na figura de um pássaro, e Ferdinand lhe entregou a

bugiganga de madeira, sua boca tremeu, e ele se afastou furtivamente, os ombros

ossudos curvados.

Jasmine aproximou-se da mesa e estendeu o braço para Kree.

— As 30 voltas foram dadas, Ferdinand — ela informou. — Agora,

precisamos ir.

Porém Ferdinand, com sua face gorducha brilhando de suor e avidez,

voltou os olhinhos para ela e sacudiu a cabeça com violência.

POUSADA OFICIAL DOS JOGOS

• Cama e comida

• Somente para participantes

• Preços excepcionais!

— Você não pode ir — ele disparou. — Preciso do pássaro. Ele é o melhor

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que já tive. Veja essa multidão! Você não pode levá-lo.

Ele estendeu o braço como um raio e tentou agarrar os pés de Kree. O

pássaro, porém, voou do poleiro a tempo e pousou na beira da mesa.

— Volte para cá — Ferdinand rosnou, tentando apanhá-lo.

Kree inclinou a cabeça e, com o bico afiado, puxou a toalha vermelha que

cobria a mesa. Nesse momento, a multidão espantou-se e logo começou a rugir

enraivecida, pois, no chão, sob a mesa, havia um pedal e alguns fios que subiam

até o topo e estavam ligados à roda.

— Ele pode parar a roda e fazê-la girar conforme sua vontade! — alguém

gritou. — Ele usa os pés, viram? É um trapaceiro!

A multidão aproximou-se, furiosa. Kree saltou depressa para o braço de

Jasmine. Ferdinand agarrou a roda, ergueu-se de um salto e pulou sobre a mesa.

Os pássaros de madeira e a lata de moedas caíram no chão quando ele saiu em

disparada, correndo com uma rapidez surpreendente, levando a roda sob o braço e

arrastando os fios trapaceiros. Alguns dos clientes pararam para apanhar o dinheiro

que caía por todos os lados. A maioria disparou em perseguição ao fugitivo,

gritando furiosamente.

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Lief observou a cena boquiaberto.

— Ora vejam só, não há nada de errado com as pernas de Ferdinand! —

exclamou. — Ele deixou as muletas para trás... e está correndo!

— Um trapaceiro a toda prova — Barda resmungou. — Espero que seus

clientes o peguem. Felizmente, eles não culparam Kree e não se voltaram contra

nós.

— Ainda bem que você obrigou Ferdinand a nos pagar adiantado —

Jasmine murmurou. Ela examinava a estrada à procura de moedas. Mas a multidão

limpara o chão, e tudo o que a garota encontrou foi um pássaro de madeira. Ela o

apanhou e enfiou no bolso com os demais tesouros. Para Jasmine, tudo era útil, por

menor que fosse.

Guiados pela faixa que ondulava acima da multidão, eles se dirigiram à

Pousada do Campeão. Atravessaram a porta e, para sua surpresa, viram-se num

pequeno aposento fechado. Uma senhora rechonchuda, que usava um vestido

verde enfeitado com muitos babados e fitas, surgiu detrás de um balcão e caminhou

até eles. Ela tinha, preso à cintura, um punhado de chaves, que tilintavam

ostensivamente.

— Bom dia! — cumprimentou em voz alta e amigável. — Eu sou Mãe

Brightly, a proprietária. Por favor, me perdoem, mas, antes que eu lhes dê as

boas-vindas, preciso saber se são participantes dos Jogos.

— Queremos ser — Barda começou com cautela. — Mas somos estranhos

nestas paragens e não sabemos o que fazer para participar.

— Pois então vieram ao lugar certo! — Mãe Brightly anunciou. — Esta é a

pousada oficial dos Jogos. Aqui vocês podem se inscrever e ficar até amanhã,

quando os Jogos começam.

Os companheiros trocaram olhares. Tudo parecia maravilhoso, mas...

— Temos somente uma moeda de prata — Barda admitiu relutante. —

Esperávamos poder trabalhar para pagar nossa estadia.

A mulher agitou as mãos e sacudiu a cabeça.

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— Trabalhar? Claro que não! — ela exclamou. — Vocês precisam é

descansar e comer para estar em ótima forma para os Jogos. Se vocês só têm uma

moeda de prata, uma moeda de prata é o preço que pagarão. Na Pousada do

Campeão, os participantes só pagam o que podem.

Antes que os três amigos pudessem dizer mais alguma coisa, ela voltou

depressa para o balcão, sinalizando para que a seguissem. Sentou-se, abriu um

grande livro e apanhou uma caneta.

— Nome e cidade? — perguntou com vivacidade, fitando Barda. Lief

prendeu a respiração. Ele, Barda e Jasmine haviam decidido que seria imprudente

dar os verdadeiros nomes quando se inscrevessem nos Jogos, mas não

imaginaram que teriam de pensar em nomes falsos tão depressa.

Mãe Brightly esperava, a caneta em posição e as sobrancelhas erguidas.

— Ah... eu me chamo... Berry. De Bushtown — balbuciou Barda. A mulher

escreveu, mostrando uma expressão intrigada.

— É a primeira vez que ouço falar de Bushtown — ela comentou.

— Fica... no norte — Barda explicou. — Meus amigos, Birdie e... e Twig...

também são de lá.

Ele olhou nervosamente para Jasmine e Lief, que o fitavam com insistência,

mas Mãe Brightly assentiu com um gesto e escreveu depressa, aparentemente

satisfeita.

— Agora, — disse ela, levantando-se com o livro sob o braço — queiram me

seguir.

Tudo aconteceu muito depressa. Um tanto atordoados, Lief, Barda e

Jasmine seguiram-na para outro aposento, no qual havia várias balanças, uma

régua comprida e um grande armário.

— Por favor, entreguem-me as suas armas — Mãe Brightly pediu,

apanhando uma chave do chaveiro preso à sua cintura e abrindo o armário. Então,

diante da hesitação dos companheiros, ela bateu palmas com vigor e ergueu a voz.

— Vamos, entreguem! É proibido andar armado na Pousada do Campeão.

De má vontade, Lief e Barda soltaram as espadas, e Jasmine entregou a

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adaga que usava presa ao cinto. Mãe Brightly trancou as armas no armário com um

gesto de aprovação.

— Não tenham medo — ela os confortou mais calma. — Elas estarão bem

seguras aqui e serão devolvidas antes de partirem. Agora... as suas medidas.

Ela pesou Lief, Barda e Jasmine, mediu-lhes a altura e anotou todos os

detalhes em seu livro. Sentiu-lhes os músculos e examinou-lhes as mãos e os pés

com atenção. Então, fez um sinal de assentimento satisfeita.

— Vocês precisam de comida e descanso, meus queridos, mas, fora isso,

são fortes e devem se sair bem — ela garantiu. — Foi o que pensei quando os vi

pela primeira vez. Uma última pergunta. Quais são seus talentos especiais?

Ela aguardou, inclinando a cabeça para o lado. Lief, Barda e Jasmine se

entreolharam, pois não tinham muita certeza do que a mulher estava falando.

— Eu... sei escalar — disse Jasmine, hesitante. — Posso me equilibrar em

lugares altos, balançar, saltar...

— Excelente, Birdie! — disse Mãe Brightly, escrevendo "AGILIDADE" ao

lado do nome falso de Jasmine. Ela se voltou para Barda. — E você, Berry?

Deixe-me adivinhar. O seu talento é a força, acertei?

Barda deu de ombros e assentiu. A mulher exibiu uma expressão exultante

e tomou nota outra vez. Então, olhou para Lief.

— E quanto a Twig? — indagou.

Lief sentiu o rosto se aquecer e soube que estava enrubescendo. O que

passara pela cabeça de Barda para dar-lhe um nome tão absurdo? E qual era o seu

talento especial? Ele não tinha certeza se dispunha de algum.

— Velocidade — Barda respondeu depressa. — Meu amigo parece ter asas

nos pés. Salta, esquiva-se e corre como ninguém.

— Perfeito! — Mãe Brightly gritou, escrevendo "VELOCIDADE" ao lado do

nome "Twig, de Bushtown". -Agilidade, força e velocidade. Ora, vocês três juntos

devem formar uma equipe e tanto. Agora, esperem aqui um momento. Eu já volto.

Ela deixou o aposento afobada. Os companheiros se entreolharam,

confusos com a súbita mudança em sua sorte.

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— Não é de espantar que todo mundo venha a Rithmere — Lief comentou

em voz baixa. — É estranho que o povo de Deltora não esteja aqui. Afinal, no

mínimo, é possível conseguir cama e comida de graça por um tempo.

— Contanto que estejam dispostos a competir — Barda sussurrou em

resposta. — Tenho a sensação de que esses Jogos devem ser mais difíceis ou mais

perigosos do que imaginamos.

— Nenhuma corrida de velocidade ou de obstáculos pode ser mais

perigosa do que as aventuras que vivemos — Jasmine murmurou. — O mais difícil

nesta história será lembrar os nomes idiotas que você escolheu para nós, Barda.

— Sim — Lief concordou. — Twig! Você não conseguiu pensar em nada

melhor?

— Fui pego de surpresa e disse as primeiras coisas que me vieram à

cabeça — Barda resmungou. — Se tivesse hesitado, ela saberia que eu estava

mentindo.

Nesse momento, Mãe Brightly voltou ruidosamente ao aposento trazendo

três faixas coloridas de tecido — uma vermelha, uma verde e outra azul. Ela

amarrou a vermelha no pulso de Barda, a verde no pulso de Lief e a azul em

Jasmine. Seus nomes falsos haviam sido escritos nelas, além de seu peso e altura.

— Não tirem as faixas nem mesmo para dormir — Mãe Brightly aconselhou.

— Elas indicam que vocês são participantes oficiais, mostram o seu talento especial

e lhes dão direito a comida, bebida e entrada nos Jogos. Agora... tenho certeza de

que vão querer comer e descansar após a viagem. A moeda de prata, por favor.

Jasmine entregou-lhe a moeda e, em troca, recebeu uma chave com uma

etiqueta de número 77.

— Essa é a chave para o quarto de vocês — a mulher explicou. — De fato,

um número de sorte. Guardem-na bem.

Quando eles fizeram um gesto de as sentimento, ela hesitou, mordiscando

o lábio inferior, como se tentasse decidir algo. Então, de repente, olhou para trás

para certificar-se de que estavam a sós e inclinou-se na direção deles, com um

farfalhar de babados verdes.

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— Olhem bem... eu não digo isso a todos os participantes, mas vocês não

conhecem os Jogos, e eu gostei de vocês — ela sussurrou. — Não confiem em

ninguém, por mais simpáticos que sejam. E mantenham a porta trancada sempre,

principalmente à noite. Não queremos nenhum... acidente.

Ela colocou o dedo sobre os lábios, virou-se e saiu apressada, sinalizando

para que a seguissem.

Curiosos, eles a seguiram por um corredor até um amplo salão de refeições

onde várias pessoas com faixas coloridas nos pulsos comiam e bebiam com gosto.

Muitos dos presentes ergueram o olhar e os fitaram, os rostos cheios de

curiosidade, desafio, desconfiança ou ameaça. A maioria era muito grande e

parecia extremamente forte, embora também houvesse alguns homens e mulheres

menores e mais magros.

Lief ergueu o queixo e olhou ao redor com orgulho, determinado a mostrar

que não estava nervoso nem com medo. Numa mesa central, ele reconheceu

Joanna e Orwen, o casal que vira na estrada. E, em seguida, levou um grande

susto. Sentada perto deles, estava outra pessoa conhecida.

Era o viajante moreno com uma cicatriz no rosto, que os companheiros

haviam visto na loja de Tom em seu trajeto para a Cidade dos

Ratos. Os olhos frios do homem estavam fixos nos recém-chegados, mas

ele não demonstrou sinais de tê-los reconhecido.

— Sirvam-se do que quiserem, meus queridos — ofereceu Mãe Brightly,

apontando um balcão comprido na lateral do aposento no qual as travessas eram

mantidas aquecidas sobre fogo baixo. — Comam e depois descansem. Façam tudo

que puderem para estar em forma para amanhã. Tenho grandes esperanças em

relação a vocês três. Para mim, vocês têm aparência de finalistas. E eu já vi muitos

participantes!

Ela não se importara em baixar a voz, e Lief ficou irrequieto, pois o olhar dos

demais competidores estava ainda mais atento. Todos ouviram o que ela disse.

— Bem, agora devo voltar ao meu posto — avisou Mãe Brightly. — Está

ficando tarde, mas novos concorrentes ainda podem chegar. Um sino irá acordá-los

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para o café da manhã. Um segundo sino, uma hora mais tarde, irá chamá-los para

os Jogos.

Ela se virou para sair. Repentinamente, relutante em ser deixado sozinho

naquele ambiente hostil, Lief continuou a falar, para que ela se demorasse um

pouco mais.

— Antes que se vá, Mãe Brightly, você poderia nos aconselhar sobre as

modalidades de que deveríamos participar? — pediu.

A mulher ergueu as sobrancelhas e olhou-o fixamente.

— Mas você não sabe? Você não escolhe com quem vai lutar.

— Lutar? — Lief repetiu debilmente.

— Você vai lutar com os que forem escolhidos para você — ela respondeu,

fazendo um gesto de cabeça. — Concorrentes cujo peso, altura e talento especial

correspondam aos seus — ela explicou. — Pelo menos no início. É claro que, se

você vencer os primeiros rounds, no final lutará com concorrentes de todas as

categorias.

A mulher juntou as mãos. Seus olhos brilhavam.

— Esses eventos são sempre os mais excitantes. Agilidade contra força.

Velocidade contra agilidade. Esperteza contra peso. Grande contra pequeno. Às

vezes, as provas duram várias horas. Há dois anos, houve uma final que durou um

dia e uma noite... ah, foi uma batalha sangrenta. O perdedor, pobre coitado, acabou

ficando sem uma perna, que foi totalmente esmagada. Mas, pelo menos, ele

ganhou 100 moedas de ouro para consolá-lo. E foi uma diversão e tanto, eu

garanto!

Ela cumprimentou-os com um aceno de cabeça e deixou a sala com passos

rápidos, fechando a porta atrás de si.

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Os três amigos olharam-se em silêncio.

— Pois bem — Barda murmurou enfim. — Agora sabemos por que o povo

de Deltora não participa dos jogos Rithmere. A maioria das pessoas não gosta de

ser usada como saco de pancadas.

Lief olhou para o lugar onde o homem com a cicatriz estava sentado, pronto

para mostrá-lo a Jasmine e Barda, mas a cadeira encontrava-se afastada da mesa

e vazia. O homem tinha ido embora.

— Acho que devemos sair daqui — ele disse devagar. — Não podemos nos

arriscar a ficar gravemente feridos só para ganhar dinheiro. Teremos de conseguir

suprimentos de outra forma.

— Não vou embora antes de comer — retrucou Jasmine inflexível.

— Eu e Filli estamos com muita fome.

Barda e Lief se entreolharam. A idéia de comer era muito tentadora.

— Mãe Brightly está com a nossa moeda de prata — Lief lembrou.

— Certamente é o suficiente para pagar uma refeição.

Então, decidiram ficar. Os amigos serviram-se de comida, colocando

porções generosas em seus pratos, encontraram um lugar para sentar-se e

começaram a comer agradecidos. A comida era muito boa, e, sobre a mesa, havia

jarros de sidra Abelha Rainha, cuja doçura borbulhante eles saborearam à vontade.

Concentrados na refeição, eles pouco conversaram no início, e ninguém

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lhes dirigiu a palavra. Contudo Lief sentiu a nuca formigar e soube que dezenas de

olhos ainda encontravam-se pousados sobre ele. Os outros participantes tentavam

avaliar que perigo ele representava como oponente. "Vocês não precisam se

preocupar", o garoto lhes disse em silêncio. "Logo não estaremos mais aqui."

A sala de refeições estava quase vazia quando eles terminaram o jantar.

Finalmente satisfeito, Lief sentiu vontade de dormir. Barda e Jasmine também

bocejavam, mas eles sabiam que não poderiam permanecer na pousada. De má

vontade, ergueram-se e caminharam até a porta pela qual tinham entrado, cientes

de que seus passos estavam sendo vigiados.

— Vou ficar feliz em sair daqui, mas não estou ansioso por contar a Mãe

Brightly que mudamos de idéia — Lief murmurou constrangido.

— Pelo fato de que ela vai se zangar conosco? — Jasmine riu. — Que

importância isso tem?

Barda empurrou a porta, mas ela não se moveu. Parecia estar trancada

pelo lado de fora.

— Não é esse o caminho — avisou uma voz lenta e grave atrás deles.

— Os dormitórios e áreas de treinamento ficam por ali. — Eles se voltaram e

viram a enorme silhueta de Orwen, apontando para outra porta na extremidade do

aposento.

— Não queremos ir para os dormitórios nem para a área de treinamento —

Jasmine respondeu com aspereza. — Queremos sair da pousada.

Orwen lançou um olhar confuso para ela e, finalmente, sacudiu a cabeça.

— Vocês são competidores — ele disse. — Não podem sair. Lief concluiu

que o homem não era muito esperto.

— Nós mudamos de idéia, Orwen — ele explicou com delicadeza.

— Não queremos mais participar dos Jogos. Queremos partir de Rithmere e

seguir nosso caminho.

— Vocês não podem mudar de idéia — ele disse, acenando com a cabeça

mais uma vez. — Os seus nomes estão no livro. Vocês receberam as faixas para o

pulso, comeram e beberam na sala de refeições. Eles não vão permitir que partam.

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— Você quer dizer que somos prisioneiros? — Barda disparou.

— Estamos aqui porque queremos — Orwen retrucou dando de ombros. —

Não nos consideramos prisioneiros. Mas é verdade que não somos livres para ir e

vir quando quisermos.

Com um gesto de despedida, ele se virou e os deixou. Zangada, Jasmine

bateu na porta com os punhos. Ela estremeceu, fazendo barulho, mas ninguém

apareceu.

— O que vamos fazer agora? — Lief indagou.

— Vamos calmamente para o quarto — Barda aconselhou em voz baixa. —

As nossas mentes estão trabalhando devagar agora porque estamos cansados.

Vamos dormir. Quando acordarmos, descobriremos um meio de sair.

O aposento estava em silêncio, e todos observaram os três se dirigirem à

porta nos fundos da sala de refeições e saírem. Sinais nas escadas lhes indicavam

o caminho dos dormitórios no andar superior. Uma vez lá, começaram a caminhar

por um labirinto de corredores repletos de portas à procura do quarto 77.

Tapetes abafavam-lhes os passos, e os corredores eram bem iluminados e

silenciosos, mas, enquanto andavam, Lief começou a se sentir cada vez mais

inquieto. Correntes de ar súbitas faziam com que arrepios lhe subissem pelas

pernas, e sua nuca formigava. Ele tinha a nítida impressão de que as portas eram

abertas furtivamente às suas costas e que olhos hostis os espiavam. Várias vezes

ele se virou repentinamente a fim de flagrar os espreitadores, mas não conseguiu

ver ninguém.

— Continue andando — Barda ordenou em voz alta. — Deixe os tolos

olharem. O que isso nos importa?

— Estamos sendo seguidos — Jasmine sussurrou. — Posso sentir. Aquela

mulher não devia ter dito o que disse a nosso respeito. Receio que alguém tenha

resolvido nos tirar do caminho antes mesmo do início dos Jogos.

Automaticamente, a mão de Lief moveu-se para a espada, mas,

evidentemente, não a encontrou, pois ela estava trancada no armário de Mãe

Brightly.

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Eles passaram pelos números 65 e 66. Mais adiante, havia uma curva no

corredor.

— Nosso quarto não deve estar muito longe — murmurou Lief.

— Estaremos a salvo quando chegarmos lá.

Os amigos aceleraram o passo e atingiram a curva em instantes, chegando

a um pequeno corredor sem saída. Ao constatar que o quarto 77 se encontrava no

final dele, começaram a andar em sua direção.

E então a luz se apagou.

Kree grasnou, advertindo-os. Na escuridão, Lief girou rapidamente o corpo,

saltou para o lado e colou-se à parede. Ele sentiu um golpe rápido no ombro e ouviu

Barda gritar. Ouviu também uma queda, um estrondo e um gemido zangado de dor.

Seguiu-se um ruído de luta, até que se ouviu o som de passos afastando-se

rapidamente. Em seguida, o silêncio.

— Lief! Barda! — Jasmine chamou. — Vocês estão...?

Lief respondeu e, para seu alívio, ouviu Barda balbuciar algo. Então, a luz

se acendeu novamente, tão rapidamente quanto havia se apagado. Protegendo os

olhos da claridade repentina, Lief olhou para Barda, que se esforçava para ficar em

pé e tirava um papel amassado do bolso.

Atrás dele estava Jasmine, com os cabelos totalmente desgrenhados. A

mão esquerda estava erguida, protegendo o local onde Filli se escondia sob seu

casaco. Na mão direita, ela segurava a segunda adaga, que geralmente mantinha

oculta. Sua ponta estava manchada de sangue. A garota examinou o corredor com

uma expressão sombria. Lief seguiu-lhe o olhar e percebeu que uma trilha de gotas

vermelhas marcava o piso até a curva.

— Ótimo! Eu não tinha certeza de ter conseguido tirar sangue. Isso vai lhes

ensinar que não estamos para brincadeira — Jasmine resmungou.

— Covardes que atacam pelas costas e no escuro!

— Roubaram a nossa chave — informou Barda sério. — E deixaram isto no

lugar — acrescentou, mostrando o papel que segurava.

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Os companheiros olharam ao redor. O corredor estava mergulhado no

silêncio, e nenhuma das portas se abrira.

— E agora? O que vamos fazer? — Lief perguntou.

Mas já sabia a resposta. Ele podia sentir a raiva se acumulando dentro dele,

o fogo no olhar de Jasmine e a expressão obstinada de Barda.

— Quem nos atacou cometeu um erro — Jasmine avisou em voz alta para

que todos pudessem ouvir. — Não importa o que pensamos antes, mas tenham

certeza de que agora não vamos fugir desta competição.

— E não seremos nós que iremos nos arrepender! — Barda acrescentou,

também em alto e bom som.

Os amigos caminharam até a porta de número 77. Ela se abriu quando

Barda virou a maçaneta, e eles entraram no quarto pequeno e arrumado.

O aposento era claro e bem iluminado. Um tapete de cores alegres cobria o

chão, mas as grades na janela faziam com que parecesse a cela de uma prisão. Os

únicos móveis eram três camas com cobertores vermelhos e um armário pequeno e

pesado.

— Quem quer que tenha apanhado a nossa chave deve estar pensando

que ficaremos acordados a noite toda temendo um ataque — Lief murmurou.

— Então ele é um idiota — Barda disparou zangado. — Vamos dormir muito

bem. Não vamos ter medo de nada — ele encostou o ombro no armário e o

empurrou de encontro à porta.

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Aliviados, os três caíram nas camas e adormeceram. Como Barda previra,

dormiram profundamente. Se houve sons do lado de fora na escuridão da noite,

eles não os perturbaram. Os amigos continuaram dormindo, seguros de que

ninguém conseguiria entrar no aposento sem despertá-los.

Porém, como Barda dissera, eles estavam muito cansados, e suas mentes

funcionavam devagar. Concentrados no perigo de um ataque, esqueceram-se de

um detalhe: da mesma forma que uma chave pode destrancar uma porta, pode

também trancá-la. Quando o sino de despertar soou pela manhã, e eles

empurraram o armário para o lado, constataram que a porta estava chaveada.

O inimigo desconhecido encontrara outra forma de garantir que eles não

vencessem os Jogos. Decidira impedi-los definitivamente de participar.

Durante muito tempo, os três companheiros gritaram e bateram na porta,

porém sem resultado.

Finalmente, barda investiu contra a porta com fúria e tentou derrubá-la com

o ombro, mas a madeira era espessa, a tranca era pesada, e seus esforços foram

em vão.

Por fim, eles admitiram a derrota e voltaram a jogar-se em suas camas.

— Fomos bobos em não prever isto — Barda reclamou ofegante. Jasmine

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estava silenciosa. Lief sabia que ela lutava contra o pânico.

Para ela, ficar aprisionada era a pior das torturas. Depois de alguns

instantes, ela ergueu-se de um salto e correu para a janela, sacudindo as grades e

gritando para o céu vazio. O vento, porém, agarrava-lhe as palavras e as soprava

para longe, sem serem ouvidas.

— Será que Kree consegue passar pelas grades? — sugeriu Lief. Jasmine

fez um aceno negativo com a cabeça, mas a pergunta lhe deu uma idéia. Ela puxou

a coberta da cama e passou a metade pelas grades para que fosse agitada pelo

vento como uma bandeira.

O segundo sino tocou. O tempo se arrastava. Lief rangia os dentes de raiva,

pois o inimigo devia estar se divertindo com o fato de tê-los enganado tão

facilmente.

De repente, ouviu-se uma forte batida na porta e um ruído na maçaneta. Os

três gritaram e imediatamente ouviram uma chave girar na fechadura. A porta

abriu-se com um movimento rápido, revelando Mãe Brightly, que usava um vestido

vermelho e uma touca para protegê-la do sol, amarrada com fitas verdes e azuis.

Suas faces estavam coradas, e ela respirava com dificuldade.

— Eu estava saindo para assistir aos Jogos quando vi um de meus

cobertores balançando na janela! — ela exclamou. — Mal pude acreditar no que vi e

vim correndo imediatamente.

Rapidamente, Lief, Barda e Jasmine explicaram o que acontecera. A

mulher ouviu tudo com várias exclamações de horror e desalento.

— Ah, estou envergonhada que isso tenha acontecido em minha pousada

— ela gritou. — Espero que o aborrecimento não afete o desempenho de vocês. Eu

disse a todos que vocês serão, no mínimo, finalistas.

— Mas... não é tarde demais? — Lief quis saber.

— De jeito nenhum — ela disparou, sacudindo a cabeça decidida. —

Sigam-me.

Deixando Kree e Filli no quarto, Lief, Barda e Jasmine acompanharam a

mulher pelas escadas até a sala de refeições vazia. Ela lhes serviu comida e

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grandes canecas da espumante sidra Abelha Rainha.

— Comam e fiquem fortes — disse ela com determinação. — Vamos

mostrar ao seu maldoso inimigo que não se deve brincar com os favoritos de Mãe

Brightly.

Depois de terem comido e bebido à vontade, ela os conduziu através das

salas de treinamento nos fundos da pousada, por um corredor coberto, até uma

arena. A cerimônia de abertura dos Jogos ainda estava em andamento, e muitas

cabeças se voltaram para observar os recém-chegados. Barda, Jasmine e Lief

ergueram os queixos e ignoraram os olhares fixos e os sussurros.

— Boa sorte! — Mãe Brightly desejou e se afastou com passos rápidos,

deixando os companheiros sozinhos.

A arena era um campo de areia grande e redondo cercado por filas de

bancos que se erguiam, uma após a outra, até o alto. Os bancos estavam lotados

de pessoas, muitas das quais agitavam bandeiras vermelhas, verdes e azuis que

exibiam uma medalha dourada, símbolo dos Jogos.

Os competidores, reunidos na areia, erguiam as mãos, comprometendo-se

a lutar da melhor forma possível. Entre eles, facilmente visíveis devido à altura,

encontravam-se Joanna e Orwen. Não muito longe de Lief, também se encontrava o

estranho com a cicatriz no rosto. Um trapo envolvia o seu pescoço como se fosse

um lenço.

Seria para protegê-lo do sol? Ou para ocultar um ferimento feito pela adaga

de Jasmine no corredor, na noite anterior?

Lief fechou o punho quando ergueu a mão. Todos os seus receios e dúvidas

haviam desaparecido. Agora, ele estava apenas zangado e determinado a mostrar

que não podia ser derrotado tão facilmente.

Logo depois, pares de nomes começaram a ser chamados, e as provas

tiveram início. As regras eram simples: todos os pares lutavam ao mesmo tempo.

Cada par deveria lutar até que um dos competidores não conseguisse mais se

manter em pé.

O perdedor era retirado da arena. O vencedor, após somente alguns

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minutos de descanso, formava par com outro vencedor para lutar novamente, pois

resistência era tão importante quanto força, agilidade, velocidade e astúcia.

Lief, Barda e Jasmine logo aprenderam que o conceito de competição justa

não fazia parte dos Jogos de Rithmere. Os competidores lutavam com fúria

selvagem, mordendo e arranhando, dando cabeçadas, puxando cabelos, enfiando

os dedos nos olhos e desferindo socos e pontapés. Exceto o uso de armas, nada

era proibido.

A multidão rugia e agitava suas bandeiras a fim de incentivar seus favoritos,

gritando e vaiando os que não apresentavam bom desempenho. Vendedores de

doces, lanches e sidra Abelha Rainha faziam bons negócios enquanto percorriam

os corredores entre os bancos de cima a baixo, anunciando as suas mercadorias.

À medida que um número cada vez maior de participantes derrotados

deixava a arena, desapontados e cuidando dos ferimentos, o espaço entre os pares

ficava maior. Cada luta era mais difícil que a anterior, mas Lief, Barda e Jasmine

conseguiram sobreviver a cada round.

Ao contrário dos rivais, eles estavam acostumados a lutar pela própria vida.

Os três haviam aprendido muito desde que se conheceram. Mas até mesmo as

primeiras lições os ajudavam naquele momento.

Lief não passou a infância nas perigosas ruas de Del em vão. Como Barda

dissera a Mãe Brightly, ele sabia se esquivar e correr muito bem, além de usar a

esperteza para derrotar inimigos muito maiores do que ele. Lief era jovem, mas, por

causa do trabalho realizado junto ao pai na ferraria, seu corpo era forte, e seus

músculos estavam habituados a trabalhar arduamente.

Desde jovem, Barda fora treinado como guarda do palácio, e os guardas

eram os melhores lutadores de Deltora, apenas derrotados no final pela feitiçaria do

Senhor das Sombras. Durante muitos anos, Barda lutara e treinara com os colegas

como parte de seu treinamento. E mesmo na época em que vivera disfarçado de

mendigo fora dos portões da ferraria, ele manteve a forma, seguindo Lief pela

cidade e protegendo-o dos perigos.

E Jasmine? Mesmo sendo pequena e franzina, ninguém ali enfrentara as

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mesmas dificuldades ou vivera os mesmos perigos que ela. A astuta Mãe Brightly

vira a força daqueles braços magros e a determinação nos olhos verdes. Mas os

oponentes de Jasmine freqüentemente achavam que seu tamanho pequeno

significava fraqueza e pagavam por isso.

O sol já estava baixo no céu quando os oito finalistas, os que lutariam suas

derradeiras batalhas no dia seguinte, foram anunciados.

Barda, Lief e Jasmine encontravam-se entre eles, como também Joanna e

Orwen. Os outros três eram um homem baixo e musculoso, chamado Glock, uma

mulher, Neridah, cuja velocidade surpreendera a multidão, e o estranho com a face

marcada por uma cicatriz, cujo nome os amigos agora ouviam pela primeira vez:

Perdição.

— Um nome que combina muito bem com a sua personalidade sombria —

Barda murmurou, quando Perdição se adiantou, sem sorrir, e ergueu os braços para

saudar a multidão animada. — Não me agrada a possibilidade de lutar com ele.

A idéia também não agradava a Lief, mas lhe ocorrera algo que o

preocupava ainda mais.

— Eu não esperava que nós três fôssemos finalistas — murmurou.

— E se tivermos de lutar um contra o outro?

Jasmine olhou-o fixamente.

— Ora, decidiremos quem deverá vencer e apenas fingiremos lutar

— ela concluiu. — Como, aliás, devemos fazer em todas as lutas amanhã.

Precisamos deixar nossos oponentes vencerem e evitar contusões. Já garantimos

100 moedas de prata cada um, pois somos finalistas. E esse é todo o dinheiro de

que precisamos, nada mais.

Barda moveu-se inquieto. Era evidente que a idéia de fingir perder o ofendia

tanto quanto a idéia de fingir vencer.

— Não seria uma atitude honrada... — ele começou.

— Honrada? — Jasmine vociferou. — O que honra tem a ver com isso? —

ela se virou bruscamente para Lief. — Diga a ele! — ela insistiu.

Lief hesitou. Ao contrário de Barda, ele não se sentia incomodado pela idéia

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de enganar os organizadores dos Jogos ou mesmo a multidão. Nas ruas de Del,

honra entre amigos era tudo o que se exigia, e a única regra era sobreviver. Mas

parte de sua mente — a parte que ainda fervilhava de raiva por causa do bilhete

ameaçador e da porta trancada — se rebelava contra o plano de Jasmine.

— Nossos rivais perceberão. Se não tentarmos vencer, vai parecer que

estamos nos curvando diante de suas ameaças — ele respondeu em voz baixa.

— Você é tão tolo quanto Barda! — ela retrucou irritada. — Você quer

arriscar a nossa missão por causa de seu orgulho? Ah, você me faz perder a

paciência!

Ela virou as costas e se afastou.

Naquela noite, os finalistas comeram juntos no salão de refeições, servidos

por Mãe Brightly, sorridente e colorida em seu vestido vermelho franzido. Foi uma

refeição estranha, já que, somente uma noite antes, o aposento estivera

movimentado e repleto de ruídos, enquanto naquele momento encontrava-se vazio

e silencioso. Aparentemente, os competidores derrotados já haviam sido mandados

embora. Lief se perguntou como eles estariam, pois muitos haviam sido feridos, e a

maioria não tinha dinheiro.

Jasmine ainda estava zangada. Ela comeu pouco e bebeu apenas água.

— Essa sidra Abelha Rainha é forte demais para mim -justificou. —

Sinto-me mal só de pensar nela. Na arena, tudo tinha esse cheiro. As pessoas a

beberam o dia todo.

— Essa bebida não deveria ser vendida para elas — Barda censurou sério.

— Ela é destinada aos lutadores que precisam de muita energia, não para os que só

ficam sentados, assistindo. Não é de surpreender que eles queiram ver o sangue

dos lutadores.

Nesse exato momento, Mãe Brightly tocou um pequeno sino.

— Uma palavra antes que vocês se retirem para os seus quartos, meus

queridos — disse a mulher quando todos os finalistas se voltaram para ela. — Não

quero armadilhas nem problemas esta noite, de modo que eu mesma vou pegar as

chaves e trancar as portas. E vou destrancá-las logo cedo, imediatamente após o

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toque do sino de despertar.

Houve um silêncio profundo no aposento. A mulher olhou ao redor. Seu

rosto rechonchudo estava muito sério.

— Portanto, durmam bem e recuperem as forças — prosseguiu. — Amanhã

vocês não devem mostrar nenhum sinal de fraqueza ou falta de determinação. A

multidão... Bem, ela sempre fica muito excitada no último dia. Excitada demais.

Sabe-se que alguns finalistas que não apresentaram bom desempenho foram

atacados e despedaçados. Eu não gostaria que isso acontecesse a nenhum de

vocês.

Lief sentiu um embrulho no estômago. Ele não ousou olhar para Jasmine

nem para Barda. Então, era dessa forma que os organizadores dos Jogos

garantiam que todos os finalistas tentassem dar o melhor de si na última luta. A sua

arma era a multidão — agitada, agindo como se fosse composta de uma só mente,

excitada ao extremo e sedenta de sangue.

A arena já estava ficando quente quando eles chegaram pela manhã. O sol

brilhava sobre um dos lados da areia recém-nivelada. A outra extremidade

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encontrava-se debaixo de sombra. Nos bancos lotados, a multidão fervilhava de

excitação.

Os oito finalistas ergueram as mãos e reafirmaram o seu compromisso de

lutar da melhor forma possível. Em seguida, um a um, escolheram um cartão no

cesto trançado estendido pela sorridente Mãe Brightly.

Com o coração na boca, Lief viu que o seu cartão exibia o número 3.

Aliviado, notou que os cartões de Barda e Jasmine marcavam os números 1 e 4,

respectivamente. Portanto, pelo menos naquele round, eles não iriam lutar um

contra o outro. Porém quem seriam os seus oponentes?

Ele olhou ao redor e foi tomado pelo desânimo ao notar Perdição

caminhando na direção de Barda, erguendo o seu cartão no alto para que todos

pudessem ver o número 1. O gigante Orwen havia tirado o segundo número 4 e já

se encontrava parado ao lado de Jasmine, que parecia uma criança perto dele.

Glock e Joanna haviam tirado cartões com o número 2, portanto sobrara apenas

Neridah, a Veloz. De fato, lá estava ela, correndo na direção de Lief, exibindo o

cartão de número 3.

A multidão urrou quando os quatro pares de oponentes jogaram os cartões

no chão e se encararam.

Neridah olhou para as próprias mãos e depois para Lief.

— Confesso que estou com um pouco de medo — ela disse em voz baixa.

— Nem sei como cheguei às finais. E você é um dos favoritos de Mãe Brightly, não

é mesmo?

Lief devolveu-lhe o olhar desajeitado. Ele lutara com várias mulheres no dia

anterior e aprendera que era insensato encará-las como outra coisa senão

perigosas oponentes. Além disso, qualquer um que tivesse visto Jasmine em ação

sabia que não se devia subestimar uma lutadora pelo simples fato de ser mulher.

Contudo, Neridah parecia tão delicada. Ela tinha a mesma altura de Lief, mas era

magra e graciosa como uma gazela e tinha olhos grandes e escuros.

— A... multidão — ele balbuciou. — Precisamos...

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— Claro! — Neridah sussurrou. — Sei que devo tentar fazer o melhor. E não

vou censurar você por fazer o que deve. Seja lá o que for que aconteça comigo,

minhas pobres irmãs e minha mãe terão as 100 moedas de prata que já ganhei.

Mãe Brightly prometeu.

— Não tenha receio... — Lief começou gentil.

Mas, nesse momento, o sino de início tocou e, como se fosse uma serpente,

Neridah estendeu o pé, atingindo-o no queixo e atirando-o ao chão.

A multidão riu e vaiou.

Lief ergueu-se com dificuldade, sacudindo a cabeça atordoado. Seus

ouvidos zuniam, e ele não conseguia enxergar a oponente. Com velocidade

surpreendente, ela se colocou atrás dele. De maneira selvagem, chutou-lhe a parte

posterior dos joelhos, fazendo-o cambalear para a frente, gemendo de dor.

Segundos depois, ela corria ao redor dele, saltando e chutando-lhe os tornozelos,

os joelhos, a barriga, as costas, obrigando-o a se virar como um palhaço confuso,

que desferia golpes com os braços sem conseguir alcançá-la.

Ela o estava fazendo de bobo. A multidão o escarnecia, entoando aquele

nome tolo, "Twig", e rindo. Uma onda de raiva clareou um pouco a mente de Lief. Se

Neridah era rápida, ele também era. O garoto saltou para trás, para longe, de modo

que ela foi obrigada a encará-lo. Com cautela, ambos ficaram andando em círculos,

um de frente para o outro. Então, inesperadamente, ele saltou para a frente e

agarrou-a pela cintura, atirando-a ao chão.

A mulher caiu e ali ficou ofegante, um braço imóvel e impotente. Tudo o que

Lief tinha de fazer era desferir o golpe final. Impedi-la de erguer-se, chutar, bater...

Lágrimas corriam dos olhos da mulher enquanto ela se esforçava

debilmente para erguer-se na areia.

— Por favor... — ela sussurrou.

Por uma fração de segundos, Lief hesitou. E foi o bastante. No momento

seguinte, o braço "impotente" de Neridah atirou-se para a frente e agarrou o garoto

pelo tornozelo. A multidão urrou quando ela se ergueu de um salto e puxou-lhe os

pés. Lief cambaleou, caiu na areia e desfaleceu.

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Enquanto isso, Barda e Perdição lutavam, tentando derrubar um ao outro. A

competição estava equilibrada. Barda era mais alto, contudo os músculos de

Perdição pareciam de ferro, e a sua vontade era ainda mais forte. Os dois se

moviam de um lado para o outro, para a frente e para trás, às vezes oscilavam, mas

nenhum cometia erros, tampouco desistia.

"Seja lá de onde tenha vindo, Perdição de Hills, você certamente teve uma

vida de lutas e de muito sofrimento", pensou Barda. Ele se lembrou do sinal que o

homem da cicatriz havia feito na poeira do balcão da loja na primeira vez que o vira.

O sinal secreto dos que juraram lutar contra o Senhor das Sombras.

— O que você está fazendo aqui, Perdição? — Barda indagou arque-jante.

— Por que perde o seu tempo lutando comigo quando tem um trabalho mais

importante a fazer?

— Que trabalho? — sussurrou Perdição. A cicatriz longa e branca

contrastava com a pele brilhante. — Meu trabalho agora... é transformá-lo em pó...

Berry, de Bushtown — os lábios de Perdição formaram um sorriso sombrio quando

ele pronunciou esse nome. Era evidente que sabia tratar-se de um nome falso. — O

seu amigo Twig foi derrubado e não vai mais se levantar — rosnou. — Está vendo,

atrás de você? Está ouvindo a multidão?

Barda esforçou-se para manter-se concentrado, recusou-se a olhar ao

redor e tentou fechar os ouvidos para os urros do povo. No entanto, ele ainda podia

escutar os gritos frenéticos: "Neridah! Neridah! Chute! Isso!! Outra vez! Acabe com

ele!"

Perdição agarrou Barda com mais força e jogou o peso de seu corpo sobre

o oponente. Este vacilou, mas somente por alguns segundos.

— Não vai ser tão fácil, Perdição! — murmurou Barda, cerrando os dentes e

continuando a lutar.

Jasmine nada conseguia ver além do enorme vulto de Orwen rode-ando-a,

nada podia ouvir além dos grunhidos selvagens dele, quando investia contra ela, e o

bater do próprio coração quando saltava para os lados. Sua mente trabalhava tão

depressa quanto seus pés.

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Todos os competidores que havia enfrentado no dia anterior eram maiores

do que ela, mas nenhum com peso e altura iguais aos de Orwen. Se ele a

apanhasse com aquelas mãos gigantescas, quebraria os seus ossos. Ela sabia que

teria de agir como uma abelha que zune ao redor da cabeça de um grande animal

— teria de irritá-lo e cansá-lo até que ele cometesse um erro.

Orwen, porém, não era tolo. Ele percebeu o plano de Jasmine. Durante

muito tempo, ela se manteve fora do alcance dele, girando e saltando, desferindo

pequenos chutes fortes e doloridos nos tornozelos e joelhos do homem. O rosto

dele encontrava-se molhado de suor, mas o seu olhar firme não vacilava.

Jasmine saltou para longe dele mais uma vez. Há longos minutos, ela vinha

tentando fazer com que ele virasse o rosto na direção do sol. E estava quase

conseguindo. Mais um ou dois movimentos...

Então, de repente, a expressão de Orwen mudou, e ele olhou por cima do

ombro de Jasmine. Seus olhos estavam tomados pelo pânico. Seria um truque?

Ou...

Atrás dela, se ouviu um som terrível — o som de alguém sufocando, em

agonia. E a multidão urrava: "Glock! Glock! Mate! Mate! Mate!"

Orwen investiu para a frente. Jasmine disparou para o lado, mas quase

imediatamente percebeu que o homem, esquecido de sua presença, não olhava

para ela.

Joanna encontrava-se caída, presa ao chão, e Glock estava ajoelhado

sobre ela, as mãos enormes e peludas agarrando-lhe o pescoço, sacudindo,

apertando, os dentes à mostra num prazer selvagem, enquanto observava a vida

dela se esvair.

Não demorou muito para que Orwen pulasse em cima dele, arras-tando-o

para o lado como se fosse um monte de trapos. O público gritou excitado. O

rosnado de choque e raiva de Glock foi interrompido quando ele caiu pesadamente

no chão. Orwen atirou-se ao lado de Joanna, aninhando-a nos braços.

O corpo dela estava tão mole e imóvel que Jasmine pensou, a princípio, que

ela estava morta. Mas, quando Orwen chamou o seu nome, as pálpebras da mulher

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estremeceram, e ela pôs a mão hesitante na garganta machucada. Orwen inclinou a

cabeça com um gemido de alívio, alheio a tudo que não se referisse à esposa.

Portanto, não percebeu que Glock se erguia com dificuldade e investia

contra ele. Não ouviu o grito agudo de advertência de Jasmine. Não deu atenção à

multidão, que se levantou num excitamento febril. No momento seguinte, os punhos

fechados de Glock golpearam a nuca de Orwen como se fossem duas enormes

pedras. Orwen caiu para a frente sem um grito sequer e não se moveu mais.

Barda e Perdição ainda lutavam, presos num abraço que nenhum dos dois

pretendia afrouxar. Eles se encontravam sozinhos na arena. Barda teve a leve

impressão de ter visto duas pessoas sendo carregadas para longe, enquanto Glock,

contido por três fortes funcionários, ainda vociferava para eles com uma ira

mortífera.

— Glock é louco! — Perdição rosnou com a voz repleta de ódio.

— E nós? Não somos loucos? — Barda retrucou ofegante. — Um de nós

dois vai vencer e certamente terá de enfrentá-lo. Você quer mil moedas de prata

tanto assim?

— E você? — Perdição retrucou, os olhos escuros faiscando. — Eu preciso

estar aqui, não tenho escolha. Mas você... certamente não. Nós demos uma

excelente demonstração. Se um de nós cair agora, estará livre para seguir o seu

caminho. Pense!

Barda pensou e vacilou.

Foi somente um instante de hesitação. Uma pequena brecha na

concentração que o protegera por tanto tempo, mas foi o suficiente para Perdição.

Uma torção, um forte empurrão, e Barda perdeu o equilíbrio e cambaleou.

O punho de seu oponente o golpeou na mandíbula, fazendo com que visse

estrelas. De repente, o chão se aproximou dele como um raio e, em segundos, ele

se encontrava deitado com o rosto na areia, atordoado, a cabeça girando, todo o

corpo doendo, escutando a multidão berrar o nome de Perdição. Em meio à dor,

Barda se perguntou se Perdição o havia enganado ou se lhe fizera um grande favor.

Aquela derrota tinha ocorrido por vontade do oponente ou pela sua própria?

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Eram quatro os finalistas: neridah, Perdição, Glock... e Jasmine, pois ela foi

considerada vencedora em seu assalto, embora Orwen tenha sido derrubado por

outro competidor.

Jasmine teve somente alguns instantes para descobrir como Barda e Lief

estavam passando. Ambos se encontravam em péssimo estado, mas Mãe Brightly,

dançando ao redor deles, assim como de Joanna e Orwen, disse-lhe que eles se

recuperariam em breve. Seus ferimentos não eram muito graves e não ficariam

piores por causa da derrota.

Certa de que seus amigos se encontravam em boas mãos, Jasmine

permitiu ser levada para o centro da arena para juntar-se a Glock, Neri-dah e

Perdição.

Canecas espumantes de sidra Abelha Rainha foram trazidas para eles. O

jovem de cabelos escuros que os servia estava claramente entusiasmado por estar

atendendo a lutadores tão excelentes. Ele ofereceu a bandeja a Perdição, que se

serviu de uma caneca com uma palavra de agradecimento.

— Por que você o serviu primeiro? — Glock gritou furioso e apanhou outra

caneca da bandeja, esvaziando-a num instante.

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O jovem rapaz, evidentemente desconcertado e assustado, começou a

balbuciar palavras de desculpas.

— Está tudo bem — Perdição garantiu com calma. — Não fique aborrecido.

Ruborizado, o rapaz ofereceu outra bandeja a Neridah e Jasmine. Neridah

aceitou uma caneca e esvaziou-a de um só gole. Jasmine, contudo, recusou com

um aceno.

— Obrigada, mas não gosto dessa sidra — ela disse. — Eu tomei água, e é

o bastante.

Enquanto o jovem a olhava fixamente, Glock agarrou a caneca rejeitada.

— Melhor para mim! — exultou Glock, engolindo a sidra com sofreguidão.

Ele se virou para Jasmine, enxugando a boca molhada nas costas da mão.

— Reze para não me enfrentar no próximo round, pequena Birdie tomadora

de água. Vou quebrar os seus ossos como se fossem cascas de ovos. Eu vou...

Uma expressão estranha passou-lhe pelo rosto. Nesse exato momento,

Neridah deixou escapar um leve e curioso suspiro. Então, ficou de joelhos e caiu no

chão. Glock olhou para ela e depois para a caneca vazia que segurava. Em

seguida, levou a mão à garganta.

— Veneno! — ele balbuciou. — Virou-se vacilante e apontou o dedo trêmulo

para o jovem rapaz que segurava a bandeja. — Você... — conseguiu dizer.

O jovem soltou a bandeja e correu. Quando Glock caiu no chão sem

sentidos, ele já havia se perdido em meio à multidão.

Pessoas corriam na direção deles, gritando e apontando. Jasmine não

tirava os olhos de Perdição.

— Isso é obra sua! — ela sussurrou. — Aquele rapaz... você o conhece!

— Você está dizendo bobagens — ele se defendeu.

— Você tem certeza de que vai vencer se os outros estiverem fora do

caminho e se lutar somente comigo nas finais — ela disse devagar. — Mas você

está enganado, Perdição.

Ele virou-se para que Jasmine não visse o seu rosto. Os funcionários se

aproximaram deles e sacudiram Glock e Neridah, tagarelando e exclamando.

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Somente Jasmine ouviu a resposta de Perdição.

— Veremos — ele disse com suavidade. — Veremos.

"Se lutar contra Orwen é o mesmo que lutar contra um urso, lutar com

Perdição é como enfrentar um lobo", Jasmine pensou, enquanto ela e o adversário

giravam, um de frente para o outro, no centro da arena. "Um lobo magro e esperto."

O homem era perigoso. Muito perigoso. Todos os seus instintos lhe diziam

isso. Ela o temia como nunca temera outro ser humano antes, no entanto não sabia

por quê. Procurou um motivo e, então, imaginou tê-lo encontrado.

"Para ele, tanto faz viver ou morrer", Jasmine pensou e, sem querer,

estremeceu de pavor. Ela percebeu uma pequena centelha no olhar de Perdição e

esquivou-se bem a tempo de fugir de uma investida dele.

A multidão, sentindo-se enganada nas semifinais e zangada porque seu

favorito, Glock, não poderia lutar de novo, estava de péssimo humor. O rugido de

vaias e xingamentos se intensificou quando a presa de Perdição lhe escapou por

um triz. A platéia estava cansada desses rodeios e escapadas. Queria sangue.

Com a respiração ofegante, Jasmine girou para ficar de frente para o

inimigo outra vez. Ele deu um sorriso zombeteiro.

— Onde está o seu orgulho agora, passarinho? — provocou em voz baixa.

— Ora, você não consegue dominar o seu medo nem para fazer uma boa

apresentação para o povo. Corra para casa e esconda a cabeça no colo da mamãe!

Uma chama de raiva incontida invadiu o corpo de Jasmine e expulsou o

medo. Ela ergueu o olhar para Perdição e percebeu satisfeita que o sorriso do

homem havia desaparecido, pois ele sentira a mudança nela. Jasmine notou-lhe a

boca tensa, e uma expressão cautelosa havia tomado conta de seu olhar.

— Você está cansado, meu velho — ela rosnou. — Morrendo de cansaço.

E, ao dizer isso, percebeu que tinha razão. A longa luta de Perdição com

Barda drenara-lhe as forças e entorpecera-lhe os reflexos. Por que outro motivo não

a atingira ao atacar?

— Pegue-me se for capaz! — ela riu, dando meia-volta como se fosse

correr.

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Tomado de surpresa, Perdição deu um passo incerto para a frente. Jasmine

girou como um raio e chutou, depois girou e chutou mais uma vez. Afastou-se dele

com um salto quando ele tentou pegá-la, deixando-o agarrar o vazio. Então saltou e

atacou-o repetidas vezes.

Com um prazer selvagem, ela ouviu os gemidos de dor e raiva do

adversário e escutou a multidão começar a aplaudir. O entusiasmo do povo se

intensificara tanto quanto o dela. A luta prosseguiu, mas Perdição não conseguiu

sequer tocar Jasmine.

A arena parecia enevoada. A pequena garota não sentia nada além do

próprio desejo de punir e ferir. Era como se o seu sangue estivesse borbulhando,

como se a sua raiva se tivesse transformado em energia e estivesse percorrendo o

seu corpo, fazendo com que seus pés e suas mãos formigassem. Rindo, ela

moveu-se para trás quase dançando quando Perdição se aproximou mais uma vez

alto e furioso. A multidão uivava. Os urros eram ensurdecedores. Eram tão altos

que... por que estariam tão altos...?

Ela deu um passo para trás e sentiu o calcanhar bater em um objeto de

madeira. Assustada, Jasmine olhou para trás e viu uma parede; acima dela, havia

uma massa de rostos vermelhos, aos gritos. Somente então ela se deu conta de

como havia sido enganada, do quanto a sua raiva a levara a agir de modo tolo.

Pouco a pouco, Perdição a obrigara a ir para a extremidade da arena. Ela se

encontrava de costas para a parede baixa que a circundava, e o oponente estava se

aproximando.

Ela saltou para cima e para trás e aterrissou no alto da parede, como tantas

vezes fizera nos galhos das árvores nas Florestas do Silêncio. Atrás dela, a

multidão urrava. Porém Perdição estava cada vez mais perto e se inclinava para a

frente, as mãos estendendo-se para os tornozelos de Jasmine. Mãos que pareciam

gigantescas aranhas, braços que lembravam trepadeiras grossas e famintas...

Foi puro instinto que fez Jasmine atirar-se sobre Perdição. Durante uma

fração de segundo, os ombros curvados de seu oponente foram como galhos de

árvores para ela. Em seguida, ela deu um impulso para trás com os pés e se lançou

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ao ar mais uma vez, fazendo-o tombar para a frente. Jasmine o ouviu gritar e cair

contra a parede, enquanto ela dava uma volta no ar e aterrissava levemente na

areia bem atrás dele.

Jasmine atingiu o chão preparada para correr. Seu único pensamento foi o

de escapar, mas o seu salto para a liberdade conseguira muito mais do que isso.

Perdição encontrava-se encolhido junto à parede, imóvel. A multidão

levantara-se e gritava o nome dela. Devagar, assombrada, Jasmine percebeu que a

luta terminara. E ela vencera.

— Então, chegamos ao fim em mais um ano. E que prova emocionante foi a

nossa final! — riu Mãe Brightly, enquanto conduzia Lief, Barda e Jasmine

apressadamente de volta à pousada após a cerimônia de premiação. — Talvez um

pouco lenta no início, mas depois a diversão começou!

Ela deu tapinhas afetuosos no ombro de Jasmine.

— Você é uma campeã popular, querida. Não há nada que o povo goste

mais do que a agilidade vencendo a força.

Jasmine estava em silêncio. Uma medalha de ouro pesada pendia de seu

pescoço. Uma sacola de moedas de ouro pesava em seus braços. E, mais pesado

que ambos, estava o seu coração.

Ela sentiu-se mal ao lembrar em que se havia transformado durante

aqueles curtos momentos na arena: em um animal que sentiu prazer em ferir e punir

outro animal. Uma tola que esqueceu tudo diante do estonteante prazer da batalha.

Ela fora tão perversa quanto o repugnante Glock. Estivera tão embriagada de

violência quanto a multidão malcheirosa e barulhenta. Se a vaidade tivesse sido a

sua ruína, como quase realmente foi, teria sido merecido.

Lief e Barda entreolharam-se sem que Jasmine notasse. Eles a conheciam

bem demais e adivinharam o que ela sentia. Contudo, Mãe Brightly não podia

imaginar que Jasmine sentisse outra coisa senão orgulho.

— Para falar a verdade, — ela continuou a tagarelar, abaixando a voz —

fiquei muito satisfeita em ver Perdição derrotado. Um homem mal-encarado e

orgulhoso, com um passado desagradável, tenho certeza. Aposto que foi ele que

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mandou colocar aquele entorpecente na sidra. Sabe, ele partiu assim que acordou,

sem nem mesmo esperar por suas 100 moedas de ouro. É evidente que ele está

com a consciência pesada.

— Glock e Neridah já acordaram? — Lief perguntou.

— Eles ainda dormem como bebês — Mãe Brightly informou com tristeza,

suspirando. — Não vão poder partir antes de amanhã. Mas Joanna e Orwen já se

foram. Joanna mancava gravemente, e a cabeça de Orwen estava com um galo

muito feio, mas não consegui convencê-los a ficar — ela suspirou mais uma vez. —

Parece que, depois de terem posto as mãos no ouro, não tinham mais nada a fazer

em Rithmere.

Lief também não desejava ficar mais tempo ali, e Barda concordava com

ele.

— Infelizmente, também temos pressa em partir, Mãe Brightly

— o grande homem avisou com tato ao entrarem na pousada. — Mas

precisamos comprar alguns suprimentos antes de ir. Você pode nos recomendar...?

— Mas claro, tenho tudo de que precisam! — a senhora interrompeu.

— Vendo todo tipo de suprimentos para viajantes.

E, de fato, era verdade. Assim que apanharam Kree e Filli no quarto, os

companheiros seguiram Mãe Brightly a um depósito repleto até o teto de mochilas,

cobertores, cantis, cordas, alimentos desidratados e dúzias de outros artigos úteis.

Como Lief, Barda e Jasmine suspeitavam, tudo era muito caro, mas eles

tinham muito ouro para gastar e, como outros vencedores anteriores, estavam

satisfeitos em pagar mais para não ter de perambular pela cidade. Em meia hora,

reuniram tudo de que precisavam. Então, por insistência de Mãe Brightly, comeram

pela última vez no salão de refeições vazio.

A refeição não agradou a Lief. Ele se sentia perseguido pela sensação de

que algo estava errado. Sua pele não parava de formigar, como se eles estivessem

sendo observados. No entanto, quem os poderia estar vigiando? Neridah e Glock

ainda dormiam. Joanna e Orwen haviam partido.

Ele tentou afastar a sensação, dizendo a si mesmo que estava sendo tolo.

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Mãe Brightly mostrou-se animada durante toda a refeição, porém, mais

tarde, quando trouxe as armas dos três amigos, e eles se preparavam para partir,

ficou evidente que algo a preocupava.

Finalmente, ela mordeu o lábio e inclinou-se na direção deles.

— Para mim, é difícil dizer isso — ela começou em voz baixa. — Não gosto

de espalhar notícias desagradáveis sobre os Jogos nem sobre Rithmere. Mas...

vocês precisam saber. Sabe-se que campeões, e mesmo meros finalistas, são

vítimas de... má sorte quando saem da cidade.

— Você quer dizer que são atacados e roubados? — Barda indagou

secamente.

Mãe Brightly assentiu incomodada.

— As moedas de ouro são uma grande tentação — ela murmurou. — Vocês

se importariam se eu sugerisse que deixassem a pousada por uma saída secreta?

Há uma porta nos fundos que tem ligação com uma passagem que sai da adega. Os

barris de sidra são entregues ali, mas poucas pessoas a conhecem. A rua de trás é

estreita e está sempre deserta. Vocês podem sair sem serem vistos, num piscar de

olhos.

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— Obrigado, Mãe Brightly — Lief agradeceu, tomando-lhe a mão

calorosamente. — Você é uma boa amiga.

A passagem da adega era comprida, baixa, escura e exalava um cheiro

nauseante de sidra. As botas dos três amigos chocavam-se nas pedras ao

caminharem com dificuldade em fila única, Barda com o corpo quase dobrado. Eles

haviam dividido o ouro restante para facilitar o transporte, mas, mesmo assim, ele

pesava muito. Já doloridos pelas batalhas do dia, logo seus corpos ficaram rígidos e

tensos.

— Talvez devêssemos ter passado a noite na pousada e partido pela

manhã — Lief resmungou. — Mas eu não consegui nem pensar em passar mais

uma hora em Rithmere.

— Nem eu — Jasmine murmurou, quebrando um longo silêncio. Kree,

empoleirado em seu braço, grasnou, concordando.

— Pelo menos conseguimos o que viemos buscar — comentou Barda, que

estava na dianteira, resignado. — Agora temos ouro mais do que suficiente para

financiar o resto da jornada — ele fez uma pausa e, então, acrescentou,

desajeitado. — Você se saiu bem, Jasmine.

— De fato — Lief concordou rapidamente.

— Não me saí bem — Jasmine discordou em voz baixa. — Estou

envergonhada. Perdição zombou de minha mãe e eu me zanguei. E era essa a

intenção dele. Ele queria que eu esquecesse quem eu era... para que me exibisse

para a multidão.

— Então, ele se enganou — Barda concluiu. — Pois, no final, ele perdeu, e

você venceu. Pense nisso e esqueça o resto — ele parou e apontou. — Vejo uma

luz adiante. Acho que estamos chegando ao fim desse maldito túnel.

Os companheiros apressaram o passo, ansiosos para ver o sol e poder

andar eretos.

Como Mãe Brightly lhes informara, a passagem terminou diante de uma

porta baixa. Era possível entrever uma luz fraca por uma fenda, mas, quando Barda

virou o ferrolho e abriu a porta, a passagem foi inundada pela intensa luz do sol.

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Com os olhos lacrimejantes, quase cegos pela claridade bem-vinda, os três

rastejaram pela soleira da porta um após o outro. E, um após o outro, foram

atingidos na cabeça e capturados. Num piscar de olhos.

Quando Lief voltou a si, percebeu que estava coberto por um tecido áspero

de cheiro desagradável — sacos velhos, talvez. Estava amordaçado, e seus pulsos

e tornozelos haviam sido imobilizados por pesadas correntes.

Ele estava sendo transportado em algo que sacolejava e pulava,

provocando-lhe muita dor. Conseguiu ouvir vozes, um tilintar e o arrastar de cascos.

Percebeu que se encontrava em cima de uma carroça. Quem quer que o tivesse

atacado, estava levando-o para longe de Rithmere. Mas por quê?

O Cinturão!

Com um arrepio de pavor, ele levou as mãos acorrentadas até a cintura com

dificuldade e gemeu aliviado quando seus dedos tocaram a forma conhecida dos

medalhões sob suas roupas. A sacola de dinheiro se fora, e também a espada, mas

o Cinturão de Deltora estava a salvo. Seus captores não o haviam encontrado.

Ainda.

Seu gemido foi respondido pelo ruído surdo das correntes, de um suspiro

ao seu lado e de um murmúrio um pouco mais adiante. Então, Barda e Jasmine

encontravam-se na carroça com ele. Lief sentiu-se absurdamente confortado,

embora, é claro, melhor seria se um deles, pelo menos, estivesse livre. Nesse caso,

poderia haver alguma esperança de salvação. Mas do jeito que as coisas estavam...

Uma gargalhada veio da frente da carroça.

— Os carrapatos estão acordando, Carn 8 — uma voz áspera constatou. —

Devo dar-lhes outra pancada?

— Melhor não — a segunda voz respondeu. — Eles têm de ser entregues

em boas condições.

— Não sei se valem todo esse trabalho — o primeiro homem resmungou. —

O grandão talvez, mas os outros dois são lixo! Principalmente a fêmea magricela.

Campeã coisa nenhuma! Ela não vai durar cinco minutos na Arena das Sombras.

Lief permanecia deitado, rígido, aguçando os ouvidos para escutar em meio

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ao barulho da chuva, ao mesmo tempo em que lutava contra a sensação de medo.

— Não é da nossa conta dizer se eles valem a pena ou não, Carn 2 — a

outra voz respondeu. — É a velha que responde ao Mestre, não nós. O grupo foi

avisado desde o começo. Brightly fornece as mercadorias, e tudo que precisamos

fazer é entregá-las ilesas.

Lief sentiu o sangue subir-lhe à cabeça. Ao seu lado, Barda emitiu um som

estranho.

— Os carrapatos nos ouviram — comentou, entre risos, o homem chamado

Carn 2.

— E o que isso importa? Eles não vão contar nada para ninguém, não é

mesmo? — retrucou o companheiro. — Ou você acha que o pássaro preto vai

espalhar o que conversamos para o mundo? Sabia que ele ainda está aí, bem atrás

de nós?

Eles riram, e a carroça prosseguiu, aos solavancos.

A viagem continuou horas a fio. Lief dormiu, acordou e tornou a dormir. O

tempo ficou mais frio e escuro e, então, começou a chover novamente. Os sacos

que o cobriam ficaram encharcados, e ele começou a tremer.

— É melhor pararmos para cobrir os carrapatos — Carn 8 resmungou por

fim. — Dê-lhes algum grude e água também, ou vão acabar morrendo nas nossas

mãos. E aí vamos nos meter em apuros.

A carroça saiu da estrada aos trancos e finalmente parou. Em seguida, Lief

sentiu-se puxado para fora do veículo e jogado no chão com descaso. Uma dor

lancinante invadiu-lhe a cabeça, e ele deixou escapar um gemido alto. Somente a

chuva fria que caía em seu rosto mantinha-o consciente.

— Tenha cuidado, idiota! — resmungou Carn 8. — Quantas vezes tenho de

lhe dizer isso? Se aparecer qualquer osso quebrado que não tenha sido registrado

no relatório de Brightly, nós é que iremos para a arena. Você quer terminar seus

dias como gladiador, lutando contra um Vraal? Coloque-o debaixo da cobertura,

depressa!

O outro homem resmungou. Seu rosto e seus ombros surgiram da

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escuridão, curvando-se e agarrando Lief por baixo dos braços. Foi nesse momento

que as piores suspeitas de Lief se confirmaram. Seus captores eram Guardas

Cinzentos.

Os Guardas haviam preparado um abrigo rústico para os prisioneiros

esticando uma lona entre os galhos mais baixos de uma árvore. Barda, Jasmine e

Lief amontoaram-se sob essa cobertura, tremendo de frio.

Kree, que os seguira desde Rithmere, empoleirou-se no ombro de Jasmine,

mas nada podia fazer para ajudá-los. Não havia como escapar. As correntes que

lhes rodeavam as pernas estavam presas a uma estaca de ferro fincada no solo.

As mordaças foram tiradas, e eles receberam água e alguns pedaços de

pão. Em seguida, os Guardas se afastaram. Vagamente, em meio à escuridão e à

chuva, Lief viu-os arrastarem-se para debaixo da carroça onde, aparentemente,

planejavam dormir.

— Não consigo comer com o peso dessas correntes — Jasmine gritou.

— Dobre a língua ou vou cortá-la e jogar você nas Dunas, mesmo sem ser

essa a ordem que recebi! — ameaçou Carn 2. — Passamos por elas há uma hora.

— Lief, o Cinturão está em segurança? — Barda sussurrou.

— Sim — Lief sussurrou em resposta. — Você ouviu...?

— Sim. Não estamos longe das Dunas, mas essa informação de pouco

serve para nós neste momento. Mãe Brightly nos enganou direitinho.

— Eu pensei que ela era tola — Jasmine murmurou amarga, separando um

pedacinho de pão para Filli. — Mas a saída secreta da pousada era uma armadilha.

— Assim como os Jogos e as moedas de ouro, que servem de isca! — Lief

fechou os punhos com força. — Há maneira mais eficiente de atrair os melhores e

mais fortes lutadores e fazer com que mostrem o quanto são bons? E a querida Mãe

Brightly está lá o tempo todo, para se certificar de que o maior número possível de

finalistas seja documente levado ao cativeiro quando tudo termina.

— Ouvimos na estrada que são poucos os campeões dos Jogos de quem

se ouve falar novamente — Barda lembrou, sacudindo a cabeça revoltado. —

Agora, sabemos o motivo. Eles não fogem para gastar seu dinheiro em paz. Eles

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são levados à Terra das Sombras e morrem lutando com animais selvagens e entre

si, para a diversão das multidões.

— E as moedas de ouro, e até a medalha de campeão, são tomadas e

usadas novamente — Jasmine disparou com desprezo. — É monstruoso!

A chuva diminuiu, e eles ouviram roncos vindo de baixo da carroça. Os

Guardas haviam adormecido. Com urgência, os três amigos começaram a tentar se

libertar, embora, no fundo, soubessem que seria inútil.

Já haviam desistido de conseguir soltar-se e tiravam um cochilo intermitente

quando Kree deu um grito assustado, seguido de um leve estalido de galhos.

— Fiquem quietos! — uma voz sussurrou. — Não falem nem se mexam até

que eu mande. Eu já coloquei suas mochilas e armas num lugar seguro. Agora, vou

soltar as correntes. Quando estiverem livres, sigam-me no maior silêncio possível.

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Pouco tempo depois, atordoados com a libertação inesperada, os três

companheiros encontravam-se agachados dentro de uma caverna e encaravam,

atônitos, o seu salvador: Perdição.

Impaciente, ele recusou os agradecimentos.

— Ouçam com atenção — ordenou. — Temos pouco tempo. Sou o líder de

um grupo que prometeu resistir ao Senhor das Sombras. Faz tempo que

desconfiamos dos Jogos e tínhamos certeza de que eles não eram o que pareciam

ser. Meu objetivo ali foi o de verificar o que acontecia do lado de dentro. A presença

de vocês atrapalhou os meus planos. Eu tentei amedrontá-los...

— Foi você que nos trancou no quarto! — Lief interrompeu. — E que nos

atacou.

— Sim, e acabei sendo cortado — Perdição fez uma careta e tocou o pano

que lhe envolvia o pescoço. — Eu tentei impedi-los de competir... para protegê-los.

— Por quê? — Barda indagou secamente.

— Quando os vi pela primeira vez na loja de Tom, algo em vocês me

interessou. Eu estava com pressa, tratando de meus negócios, e não pude ficar.

Mas, desde então, em todos os lugares em que estive, ouvi rumores sobre três

viajantes — um homem, um garoto e uma garota selvagem acompanhados por um

pássaro preto. Dizem que, em qualquer lugar pelo qual eles passam, parte da

maldade do Senhor das Sombras é desfeita.

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Lief agarrou o braço de Barda. Se estavam espalhando rumores sobre eles,

em quanto tempo o Senhor das Sombras tomaria conhecimento de sua existência?

Contudo Jasmine, que ainda não conseguira se decidir a confiar em

Perdição, preocupava-se com outro detalhe.

— Você permitiu que fôssemos capturados — ela acusou. — Você escapou

furtivamente após as finais, mas não foi embora. Você se escondeu na pousada,

observou e não ergueu um dedo para nos ajudar.

— Eu não tinha escolha — Perdição justificou, dando de ombros. Eu tinha

de descobrir como eles agiam. Eu pretendia fazer com que Glock, aquele animal,

fosse proclamado campeão e passasse pelo destino que lhe estava reservado,

fosse ele qual fosse. Mas ele tomou a bebida destinada a você, garota e, em vez de

perder para ele, como planejei, tive de encontrar uma forma de fingir perder para

você.

— Você desempenhou muito bem o seu papel — Jasmine replicou fria,

erguendo-se. — Na verdade, eu juraria que você realmente perdeu. Ou estou

errada em achar que você bateu a cabeça na parede e caiu no chão quase

inconsciente?

— Você nunca vai saber, vai? — ele perguntou secamente, a expressão

sombria relaxando num meio sorriso.

— Se Glock tivesse sido capturado, você o teria resgatado? — Lief

perguntou curioso.

— Vocês fazem perguntas demais — Perdição retrucou, já sem o sorriso no

rosto. — A verdade é que preciso salvá-lo agora, pois ele e Neridah seguirão o

mesmo caminho que vocês amanhã, e não é justo libertar alguns e não libertar os

outros.

Ele olhou pensativo para a chuva por um momento e, então, voltou-se para

eles novamente.

— Há um grupo esperando perto daqui. Entre eles, está Dain, o garoto que

me ajudou nos Jogos. Ele vai levá-los às montanhas, onde temos um esconderijo

seguro. Lá, vocês ficarão em segurança.

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Barda, Lief e Jasmine se entreolharam.

— Nós lhe somos gratos — Barda disse finalmente. — E espero que você

não leve isso a mal, mas receio não podermos aceitar a sua oferta. Precisamos

continuar a nossa viagem. Há algo... importante que precisamos fazer.

— Seja lá o que for, — Perdição começou, franzindo a testa — precisa ser

abandonado por algum tempo. Não posso me arriscar a tentar matar os Guardas. Já

foi perigoso o bastante roubar as suas armas e suprimentos da carroça enquanto

eles dormiam.

— Suponho que eles estejam com o nosso ouro — Lief suspirou.

— Sim, eu vi quando eles o pegaram — Perdição confirmou. — Mas o

mestre deles não dá importância a isso. Ele quer vocês. Quando os Guardas

acordarem e descobrirem que vocês se foram, irão persegui-los em qualquer lugar.

Eles não descansarão enquanto não os encontrarem.

— Melhor assim, então, pois não os guiaremos ao seu esconderijo

— Barda replicou com calma. Ele colocou a espada na cintura, a mochila

nas costas e começou a rastejar para fora da caverna. Perdição pôs a mão em seu

ombro para impedi-lo.

— Somos muitos e, em nossa base, temos meios para lidar com os

Guardas — ele garantiu. — É melhor se juntarem a nós. O que poderia ser mais

importante do que a nossa causa? Que missão misteriosa é essa que não pode

esperar?

Com a expressão séria, Barda afastou a mão que lhe segurava o ombro e

continuou a rastejar para fora do abrigo. Jasmine e Lief o seguiram. Do lado de fora,

a chuva ainda caía, e o céu estava escuro e sem estrelas.

Perdição surgiu ao lado deles, silencioso como uma sombra.

— Sigam o seu caminho, então — disse ele com uma voz muito fria.

— Mas não contem a ninguém o que lhes disse esta noite ou vou desejar

que tivessem ido à Terra das Sombras.

Sem mais palavra, ele desapareceu entre os arbustos molhados.

— Como ele ousa nos ameaçar? — Jasmine perguntou furiosa.

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— Ele está zangado — Lief estava bastante deprimido. Sua cabeça doía.

Ele estava com frio e sentia muito ter de separar-se de Perdição naquelas

condições. — Acho que ele é um homem que raramente confia em alguém e,

mesmo assim, confiou em nós. Agora, receia ter feito uma tolice, pois não

retribuímos com a mesma confiança.

— Gostaria que as coisas tivessem sido diferentes — Barda acrescentou,

concordando com um gesto. — Ele teria sido um aliado valioso. Mas não podemos

arriscar. Perdição não ficaria satisfeito se não partilhássemos nosso segredo. E há

espiões em todo lugar — até mesmo o bando dele pode não ser confiável. Mais

tarde, se obtivermos êxito em nossa busca...

Kree grasnou impaciente.

— Não viveremos para ter êxito em nada se não sairmos daqui — Jasmine

concluiu. — Já está quase amanhecendo.

— Mas que caminho devemos seguir? — Lief olhou ao redor frustrado. —

Não temos a menor idéia de onde estamos. Nem ao menos temos as estrelas para

nos guiar.

— Você está se esquecendo de Kree — Jasmine lembrou. — Ele nos

seguiu e sabe exatamente onde estamos.

Os três companheiros começaram a caminhar, enquanto Kree voava à

frente deles. Logo encontraram um pequeno riacho, cujo volume aumentara com a

chuva. Entraram nele e caminharam ao longo da margem enquanto puderam, na

esperança de que a água encobrisse o seu cheiro. Sentiam-se doloridos e doentes

e desejavam descansar, porém o pensamento de que os Guardas Cinzentos

poderiam segui-los como cães cruéis estimulou-os a prosseguirem.

O dia nasceu e, com ele, o sol, que surgia debilmente entre as nuvens. Logo

depois, os amigos chegaram a uma estrada estreita, coberta de marcas de rodas de

carroças, que formavam poças cheias de água. Do outro lado, havia uma cerca de

madeira e, além dela, um trecho de terra pedregosa que terminava junto a uma

fileira de colinas cinzentas.

Kree voou até uma das estacas da cerca e bateu as asas impaciente,

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saltando para a esquerda.

— Se caminharmos em cima da cerca, pelo menos não deixaremos

pegadas — Jasmine murmurou. — Depressa!

Os amigos concentraram-se, buscando forças, atravessaram a estrada,

subiram na cerca e começaram a caminhar sobre ela. Jasmine equilibrava-se no

topo; Barda e Lief a acompanhavam pouco à vontade, com os pés na travessa

central.

Pouco tempo depois, os amigos atingiram uma encruzilhada. A cerca

acompanhava a curva da estrada e se perdia na distância, em meio às colinas

cinzentas. Exatamente ao lado da estaca de esquina, havia uma enorme pedra

desgastada pela ação do tempo. Ela era da altura de Lief e exibia uma inscrição

feita há tanto tempo que algumas letras já haviam desaparecido.

— As Dunas. Perigo! — Barda conseguiu decifrar. — Isso eu consegui ler,

mas não sei o que dizem as letras menores. Muitas delas desapareceram pela ação

do vento e da chuva.

— Acho que a primeira palavra é morte — arriscou Lief em voz baixa. Ele se

inclinou para fora da cerca e tocou a pedra, sentindo as letras com a ponta dos

dedos. Hesitante, usando o tato e a visão, começou a ler.

— A morte vive no interior de suas paredes de pedra, onde todos são um, e

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uma vontade domina as demais...

— Continue, Lief — Jasmine pediu quando ele parou. Lief balançou a

cabeça. Sua expressão estava séria.

— As duas linhas seguintes estão mais desgastadas que as outras. Elas

parecem dizer algo como: E aos mortos, os vivos lutam... com um desejo insano de

seguir acima. Isso não faz muito sentido.

— Faz sentido suficiente para nos dizer que as Dunas não serão um lugar

agradável — Barda concluiu secamente. — Mas acho que já sabíamos disso.

A mente de Jasmine se ocupava de detalhes práticos.

— Já que os versos falam de uma parede de pedra, acho que as Dunas

ficam exatamente atrás dessas colinas. Mas teremos de cruzar a planície para

chegar lá. É possível que as pedras escondam as nossas pegadas, mas não

teremos como dissimular o nosso cheiro.

— Então, nada podemos fazer a respeito — Lief acrescentou. Ele subiu na

cerca e saltou para o chão do outro lado satisfeito, esticando os dedos doloridos. —

Além disso, temos sido bastante cuidadosos. É muito provável que os Guardas já

tenham perdido a nossa pista.

— Não apostaria nisso — Barda discordou, mas também saltou para o

chão. Após um instante, Jasmine se juntou a eles.

Os amigos puseram-se a caminho quase correndo no chão árido, muitas

vezes olhando por sobre os ombros. Apesar das palavras esperançosas, Lief olhou

para trás tantas vezes quanto os companheiros. O pensamento de que os Guardas

Cinzentos os estariam seguindo em silêncio, de que uma bolha mortal voaria

invisível e explodiria em suas costas provocava-lhe arrepios de medo.

Ia ficando cada vez mais quente à medida que o sol surgia devagar por

detrás da cortina de nuvens, e o sereno sobre o solo começou a se transformar em

vapor. As colinas cinzentas adiante também logo ficaram ocultas pela névoa. Foi

somente quando se aproximaram que os amigos perceberam que aquelas não

eram colinas comuns, mas, sim, milhares de imensos blocos amontoados que

formavam uma parede alta, natural — a "parede de pedra" dos versos.

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Os companheiros iniciaram a escalada e, em pouco tempo, perderam a

planície de vista. Tudo ao seu redor era branco. O ar ficava denso, e todos os sons

pareciam indistintos. Com cautela, um passo por vez, eles subiram ao topo da pilha

de pedras e, com cuidado ainda maior, começaram a descida do outro lado.

Quando se aproximaram do solo, um som encheu-lhes os ouvidos — um

zumbido baixo, tão débil que Lief chegou a pensar que era fruto de sua imaginação.

E, no momento seguinte, sem aviso, ele estava debaixo da nuvem.

Devagar, ele se afastou das pedras a fim de verificar o que existia adiante.

Sua respiração ficou difícil, e o suor começou a brotar em sua testa.

Eles haviam chegado às Dunas.

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Areia. Nada além de muita areia, profunda e seca.

Dunas vermelhas rolavam para longe até onde a vista podia

Lief deslizou para baixo, nas últimas rochas, e sentiu os pés afundarem na

areia macia. Um sentimento de medo o invadiu — uma sensação tão intensa e real

quanto qualquer sabor ou cheiro.

"Eu já estive aqui."

Aquele era o local que vira na visão do futuro que a opala lhe proporcionara

na Planície dos Ratos. O terror que lhe assombrara os sonhos estava prestes a se

tornar realidade. Quando? Dali a uma hora? Um dia? Uma semana?

Em meio à sensação de medo, ele ouviu a voz de Jasmine.

— É impossível — ela dizia ao pular ao lado dele. — Se a pedra estiver

escondida aqui, nunca a encontraremos.

— O Cinturão vai se aquecer quando ela estiver próxima — Barda lembrou.

Ele também estava totalmente ciente da magnitude da tarefa que os esperava, mas

recusava-se a admitir o fato. — Dividiremos a areia em seções e a examinaremos,

metro por metro.

— Isso pode levar meses! — Jasmine exclamou. — Meses... ou anos!

— Não — Lief os contradisse com calma, e ambos se voltaram para o

garoto, que se esforçava para manter a voz firme. — Essa pedra é como as outras,

tem um Guardião terrível — ele afirmou, fitando as dunas imóveis e misteriosas. —

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E ele já sabe de nossa presença. Eu sinto.

"Ou é o Cinturão que percebe a presença dele?" pensou, enquanto

caminhava na areia como se estivesse em um sonho. "É o Cinturão que pressente o

perigo?"

Contudo, Lief não ousou colocar as mãos no Cinturão de Deltora. Ele sabia

que, se tocasse a opala, se visse o futuro novamente, fugiria.

Fechou os olhos a fim de afastar a imagem da terra estéril e do céu

ameaçador. Mas, sob as pálpebras, ele ainda via a areia vermelha. A vontade

faminta e invejosa que o atraía para o seu interior, como atraía qualquer coisa, tudo

que surgisse nesse lugar, para dentro de si, era cada vez mais forte.

Lief começou a galgar a primeira duna. Seus pés afundavam na areia

ondulada, transformando cada passo num esforço vigoroso, mas ele prosseguiu.

— Lief! — ele escutou Jasmine chamar. A voz da amiga penetrou em seu

sonho, e ele abriu os olhos. Mas não parou.

— Só precisamos continuar a andar — ele gritou sem olhar para trás. — O

Guardião está muito próximo. Não precisaremos procurá-lo. Ele irá nos encontrar.

Não demorou para que os companheiros ficassem cercados por dunas

altas e perdessem as rochas de vista. Mas as suas pegadas estavam claras na

areia, de modo que eles não tiveram medo de se perder.

Constataram que as Dunas não eram tão destituídas de vida como

imaginavam. Moscas vermelhas saíam voando da areia quando eles passavam e

pousavam em suas mãos, rostos, braços e pescoços, ferroando e picando.

Lagartos roxos, com longas línguas azuis, arrastavam-se para fora de tocas

invisíveis e caíam sobre as moscas como aves de rapina.

— Mas quem come os lagartos? — Jasmine perguntou, empunhando a

adaga.

Logo depois, os amigos passaram por um objeto estranho caído na areia.

Ele era redondo, rijo, achatado e enrugado, como uma sacola vazia ou uma

gigantesca uva achatada que fora cortada de um lado.

— Será algum tipo de vagem? — indagou Barda, observando-o.

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— Se for, é diferente de todas que já vi — Jasmine murmurou. Filli chilreava

nervoso no ouvido da dona, e Kree, que viajava em seu ombro, emitiu um som

preocupado e cacarejante.

Lief sentiu a pele formigar. Ele estava sendo perseguido pela sensação de

que alguém os observava. No entanto, além das moscas e dos lagartos, nada se

movia. Não havia nenhum som, exceto um leve zumbido, que ele concluiu ser

provocado pelo vento que gemia ao redor das Dunas, embora ele não sentisse

nenhuma brisa, e a areia estivesse parada.

Os amigos haviam chegado ao fundo de uma duna e começavam a escalar

a próxima quando Jasmine, que agora se encontrava na dianteira, enrijeceu o corpo

e ergueu a mão.

Barda e Lief pararam. No início, eles nada ouviram. Mas, em seguida,

flutuando no ar parado, surgiu uma voz que ficava mais alta a cada momento.

— Carn 2! Deixe as moscas para lá. Continue andando!

Lief olhou para trás ansioso. O rastro deles estava bem visível na areia. As

pegadas pareciam flechas que indicavam a sua posição. Não havia onde se

esconder. Não havia escapatória.

O zumbido pareceu se intensificar, como se o vento estivesse excitado com

o medo deles, Lief pensou. E, exatamente nesse momento, ele se lembrou de uma

estratégia que costumava usar em Del. Um truque que já havia enganado Guardas

Cinzentos antes e que talvez pudesse lográ-los mais uma vez.

Lief gesticulou para que Barda e Jasmine o seguissem e começou a andar

para trás, pisando com cuidado nas próprias pegadas deixadas anteriormente.

Quando atingiu a base da duna, ele saltou para o lado e deitou-se imóvel sob a fraca

sombra do monte de areia.

Seus companheiros imitaram-lhe os movimentos. Quando se encontravam

todos reunidos, Lief os cobriu com seu casaco, que rapidamente se misturou à

areia.

Em seguida, eles esperaram, imóveis como pedras.

Os Guardas apareceram, caminhando com esforço com suas botas

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pesadas. Desceram uma das dunas e começaram a seguir os rastros que subiam

pela outra.

Então, pararam perplexos, pois as pegadas pareciam desaparecer na

metade do caminho.

— Eles foram apanhados! — Carn 2 grunhiu. — Como eu lhe disse que

aconteceria, Carn 8. Eu lhe disse que seria inútil segui-los nas Dunas. Estamos nos

arriscando por...

— Fique quieto! — o companheiro ordenou. — Você não entende, idiota?

Causamos a desgraça de todo o nosso grupo. Deixamos escapar um campeão e

dois finalistas. Nossas vidas não valem nada — menos que nada — a menos que os

encontremos. Talvez eles não tenham sido apanhados. É possível que tenham se

enterrado na areia. Cave! Cave!

Ele começou a cavar a areia com ambas as mãos. Resmungando, Carn 2

abaixou-se para ajudá-lo.

De repente, a duna pareceu estourar debaixo deles. Com uma rapidez

surpreendente, uma criatura imensa e hedionda saltou da areia e agarrou-os,

erguendo-os no ar.

Os Guardas gritaram apavorados. Paralisados pelo susto, mal acreditando

nos próprios olhos, Lief, Barda e Jasmine permaneceram deitados, imóveis sob o

casaco que os ocultava. O monstro estivera escondido na duna, esperando. Se

tivessem dado mais um passo, eles, e não seus inimigos, teriam sido as presas.

Lief observava tudo hipnotizado pelo terror. A criatura tinha oito pernas e

uma cabeça minúscula, que parecia coberta de olhos espelhados. Dúzias de

sacolas de couro, como a que viram caída no chão, pendiam de seu corpo. A areia

ainda escorria de suas juntas e dobras. O monstro encarou sem interesse os

prisioneiros, que lutavam e balançavam presos às garras terríveis. Em seguida,

abriu a boca, inclinou-se para a frente... e, bruscamente, misericordiosamente, os

gritos e gestos pararam.

Tudo ocorreu em segundos. Perturbados pela cena que haviam

testemunhado, Lief, Barda e Jasmine permaneceram encolhidos sob o casaco sem

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ousar se mexer.

Delicadamente, usando suas pinças, o monstro retirou a roupas dos corpos

das presas como se fosse um pássaro tirando a casca de um caramujo. Os amigos

observaram roupas, botas, sacolas de dinheiro, o medalhão de Jasmine, latas que

guardavam bolhas, estilingues, bastões e cantis caírem com um ruído retumbante

na areia. A criatura sentou-se sobre as ancas espinhentas e começou a comer com

calma. Lagartos e moscas saíram da areia aos milhares para banquetear-se com os

restos que lhe caíam da boca.

Lief cobriu o rosto com os braços. Ele não gostava dos Guardas Cinzentos,

mas não conseguia olhar aquela cena.

A nuvem amarela, muito baixa, bloqueava o sol de tal maneira que Lief

havia perdido toda a noção de tempo. Durante o que lhe pareceram horas, ele,

Barda e Jasmine ficaram deitados, imóveis, enquanto a criatura comeu até se fartar.

Lentamente, as bolsas que pendiam de seu corpo incharam, até se assemelharem

a uvas gigantescas penduradas em uma haste.

— São estômagos! — Barda constatou enojado. Lief estremeceu e até

Jasmine, habituada às muitas criaturas estranhas existentes nas Florestas do

Silêncio, fez uma careta de repugnância.

Finalmente, as moscas e os lagartos se espalharam, e a besta se ergueu.

Um dos estômagos inchados, maior que os demais, soltou-se de seu corpo e rolou

até a areia, deixando somente um toco para trás. Aparentemente despreocupada, a

criatura arrastou-se e deitou-se sobre ele.

— O que ele está fazendo? — Lief indagou baixinho, incapaz de se manter

em silêncio.

— Acho que está perfurando o estômago e botando um ovo dentro dele —

Jasmine supôs. — Dessa forma, o bebê terá alimento enquanto se desenvolve.

Barda virou a cabeça para o outro lado.

O monstro terminou sua tarefa de pôr ovos e se moveu outra vez.

Indolentemente, atravessou a duna remexida na qual estivera escondido, subiu na

próxima e desapareceu. Os companheiros aguardaram alguns momentos para

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certificar-se de que ele não voltaria e, então, ergueram-se penosamente.

Sem hesitação, empunhando a adaga, Jasmine correu para onde lagartos e

moscas ainda fervilhavam sobre os ossos dos Guardas e os farrapos

ensangüentados de suas roupas. Espantando os animais com golpes de adaga,

rapidamente ela começou a separar os farrapos e formar uma pequena pilha de

objetos que poderiam ser úteis: os estilingues e bolhas dos Guardas, os bastões e

cantis, as bolsas de dinheiro. Depois de alguns instantes, ela olhou para cima

desconcertada.

— As sacolas de dinheiro estouraram quando foram atiradas ao chão —

avisou em voz baixa. — A maior parte das moedas caiu, mas não está mais aqui.

Elas sumiram. E a minha medalha também.

— Isso é impossível! — Barda espantou-se, aproximando-se e começando

a procurar. Lief seguiu-o mais devagar, pois sua atenção fora atraída por um trecho

liso de areia exatamente atrás de onde os amigos estavam agachados. E o que viu

o deixou paralisado.

— A criatura bloqueou nossa visão durante horas, enquanto comia —

Jasmine insistiu. — Alguma coisa ou alguém se aproximou sorrateiramente e

pegou...

— Não pode ser! — Barda exclamou impaciente, revirando a areia

inutilmente.

— Vejam! — a voz de Lief soou abafada até para ele mesmo. Ele pigarreou

e apontou.

Naquele trecho, a areia encontrava-se coberta por centenas de marcas

estranhas e circulares, que não estavam lá antes.

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— Nunca vi rastros iguais a esses — Jasmine comentou finalmente, depois

de observar as marcas. — que criatura poderia tê-los feito?

— Não temos como saber — Lief retrucou secamente. — Mas, seja lá quem

for, é algo que não teme o monstro da areia e que gosta de ouro. Talvez goste de

pedras também. Talvez seja o Guardião.

— Mas é claro que o monstro é o Guardião! — Barda exclamou.

— Acho que ele é somente uma das criaturas das Dunas — Jasmine

afirmou categórica. — Acabamos de vê-lo pôr um ovo. Além disso, vimos a pele de

um estômago vazio no caminho para cá. O filhote já nasceu e sabe se defender

sozinho. Pode haver centenas desses monstros da areia por aqui.

Barda praguejou em voz baixa.

O zumbido baixo martelava os ouvidos de Lief. Ele olhou fixamente os

círculos na areia. Pareciam zombar dele. O garoto tentou desviar o olhar, mas seus

olhos eram constantemente atraídos para eles. Ele se obrigou a observar o céu,

mas não encontrou alívio. O teto inalterável formado pela nuvem parecia

pressioná-lo, cercado, assim como ele, por dunas sem rosto. E o medo o atacava o

tempo todo, como as moscas que tinham retornado em grande número, picando,

picando...

De repente, ele não pôde mais suportar. Com um grito abafado, pisou nas

marcas e chutou-as, destruindo-as, mergulhando os calcanhares na areia fofa com

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determinação e espalhando-a para todos os lados.

— Lief, pare! — escutou Barda chamar. Mas ele não ouvia. Lief gritou e caiu

no chão, golpeando a areia. Barda e Jasmine correram até o companheiro,

tentaram erguê-lo, mas ele lutou para afastá-los.

O som de algo que se deslocava e um baixo retumbar encheram o ar, e a

terra começou a se mover. Lief escutou os gritos de Barda e Jasmine e conseguiu

agarrar-lhes as mãos no exato momento em que uma forte tempestade começou a

agitar a areia ao redor deles.

Os três companheiros perderam o equilíbrio, foram derrubados e rolaram

cegamente, indefesos, enquanto a areia rugia e estremecia sob seus pés. Lief ouvia

os gritos de Jasmine chamando por Kree e o grasnido do pássaro em resposta. Ele

também ouvia a própria voz, gemendo aterrorizado.

"Existe algo aqui."

Ele sabia. Lief nada conseguia ver, pois seus olhos encontravam-se

firmemente fechados por causa da areia que lhe machucava o rosto, mas podia

sentir uma presença terrível e enraivecida.

Ele sabia o que estava acontecendo. Era a força que o vinha atraindo. A

força faminta por aquilo que sabia que ele lhe daria.

"Ela quer o Cinturão... Ela não vai descansar enquanto não..."

Então, de repente, ele sentiu o poder diminuir. Imediatamente, tão rápido

quanto começou, a tempestade parou, e o solo se aquietou.

Lief estava deitado, tonto e ofegante quando a última nuvem de areia caiu

sobre ele como chuva.

Com um agitar de asas, Kree pousou no braço de Jasmine. Ele não se

ferira, embora estivesse coberto de poeira vermelha. O pássaro começou a afofar e

a ajeitar as penas, tentando se limpar. Filli chilreava excitado dentro do casaco da

dona. Jasmine murmurou algumas palavras para ele e o acalmou.

Lief esfregou o rosto com as mãos trêmulas.

— Um terremoto — Barda murmurou. — Então é por isso que este lugar é

tão temido. Deveríamos ter percebido...

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— Não foi um terremoto comum — Jasmine disparou. — Não pode ter sido

mero acaso ele ter começado depois que Lief chutou aquelas marcas. Lief, por que

fez aquilo? O que está acontecendo? Você está doente?

Lief não soube responder. Apenas continuou confuso a olhar ao redor.

Tudo havia mudado. Dunas haviam sido derrubadas e formadas novamente

em outros lugares, e grandes vales se abriram onde antes existiam colinas. Todos

os rastros e sinais que anteriormente desfiguravam a areia haviam desaparecido. A

duna destruída, o lugar em que os Guardas tinham morrido — tudo havia sumido.

Era possível que ele, Barda e Jasmine tivessem sido jogados em uma área

das Dunas que nunca tinham visto antes. Apenas o zumbido baixo continuava o

mesmo.

— Lief não quer falar comigo! — ele escutou Jasmine dizer em tom

assustado a Barda. Ela parecia estar muito distante.

O sol ainda estava oculto pela nuvem. Lief não conseguia distinguir onde

ficava o leste e o oeste. Além disso, tinha sido girado e revirado tantas vezes que

não tinha idéia de qual direção tinha vindo.

"Então, este é o começo", ele pensou.

Seu olhar vidrado caiu sobre uma marca na areia, bem perto de onde ele

estava deitado. Ao observá-la com mais atenção, ficou perturbado ao compreender

o seu significado.

Lief sentiu quando Barda o agarrou pelos ombros e o sacudiu. Ele molhou

os lábios e obrigou-se a falar.

— Não se preocupe, estou bem — garantiu com voz rouca.

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— Pois não me parece nada bem — Barda resmungou. — Você está agindo

como um doido!

— Foi Jasmine quem perdeu algo — Lief murmurou. — Ela perdeu a adaga,

a que tem um cristal incrustado no cabo.

— Ah, você a achou? — Jasmine exclamou. — Que bom. Eu a deixei cair

um pouco antes de a tempestade terminar. Ela pertenceu ao meu pai. Achei que a

tinha perdido para sempre.

— Pois receio que você tenha — Lief apontou para o desenho na areia.

Jasmine e Barda ficaram boquiabertos.

— A coisa cuja ira provocou a tempestade aceitou a adaga como um

presente e nos deixou em paz quando a levou embora — Lief murmurou.

— Os círculos na areia! Eles não eram rastros, mas desenhos das moedas

de ouro e da medalha! — Barda adivinhou, rangendo os dentes. — Que tipo de

criatura é essa? Por que deixa marcas para mostrar o que tomou?

— Por que escultores esculpem figuras de pedra, comerciantes exibem

listas de suas mercadorias nas vitrines e casais apaixonados escrevem seus nomes

nas árvores e paredes? Para mostrar o que amam. Para mostrar o que possuem.

Para deixar uma mensagem para todos os que passam.

— Você está muito esquisito, Lief — Jasmine retrucou, parecendo

desconfiada. — Não gosto disso. Você fala como se conhecesse essa coisa.

— Ela está além de nosso conhecimento — ele afirmou, sacudindo a

cabeça.

Os versos que tinham visto gravados na rocha, na encruzilhada, não lhe

saíam da cabeça.

A morte vive no interior de suas paredes de pedra,

Onde todos são um, e uma vontade domina as demais.

E aos mortos, os vivos lutam,

Com um desejo insano de seguir acima.

Ele sabia que não tinha decifrado corretamente as últimas linhas, mas tinha

certeza absoluta sobre duas palavras:

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Desejo insano.

Algo com um desejo insano reinava nas Dunas e tomava para si tudo que

era precioso naquele temível lugar. As criaturas aterrorizadoras que partilhavam o

seu domínio eram bem-vindas e podiam se apoderar da carne de suas vítimas. O

Guardião queria somente as riquezas que elas carregavam.

Pela primeira vez desde que chegara às Dunas, Lief tocou o Cinturão

debaixo da camisa a fim de verificar se estava bem fechado. Ao fazê-lo, os seus

dedos roçaram o topázio e, de repente, a sua mente se clareou.

Foi como se um véu enevoado tivesse sido arrancado de uma janela,

permitindo a entrada de ar e luz. Contudo, de alguma forma, ele sabia que aquele

instante não duraria, pois havia outra força em ação ali, uma força antiga e terrível.

— Precisamos continuar nossa jornada — ele insistiu, virando-se para

Barda. — Está escurecendo, e o lugar que procuramos está longe daqui, pois o

Cinturão ainda está frio. Mas quero que você nos amarre uns aos outros para que

não possamos ser separados. Eu devo ficar no meio, muito bem preso.

Sério, Barda fez o que lhe era pedido, usando a corda que haviam

comprado de Mãe Brightly. Ela era leve, mas muito forte. Lief testou-a e fez um sinal

de aprovação.

— Não me soltem, não importa o que eu diga — ele sussurrou. Os

companheiros concordaram sem perguntas.

Eles tomaram um pouco de água e partiram, empunhando suas armas e

unidos pela corda salva-vidas, tão lentamente quanto o cair da noite.

A noite estava escura, sem Lua nem estrelas. A nuvem, agora muito negra,

pairava sobre eles, e estava muito frio. Os três amigos assustavam-se diante de

cada sombra, pois haviam acendido uma tocha que lhes proporcionava somente

uma luz muito fraca. Fazia tempo que Barda e Jasmine queriam parar, mas Lief

insistia em prosseguir.

Finalmente, contudo, os dois recusaram-se a ir adiante.

— Não podemos continuar assim, Lief — Barda disse com firmeza. —

Precisamos comer e descansar.

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Lief ficou em pé, sacudindo a cabeça, o corpo oscilante. Tudo o que queria

era deitar-se, mas algo lhe dizia que estaria em perigo se dormisse.

Jasmine tinha desamarrado a ponta da corda que a prendia e ajoelhara-se

para remexer na mochila. Em instantes, ela abriu uma pequena cova na areia e nela

jogou os bastões dos Guardas.

— Duvido que tenham melhor utilidade do que esta — justificou,

encostando a tocha na madeira lisa e dura e jogando sobre a pilha algumas pedras

de fazer fogo que conseguira com Mãe Brightly. — Logo teremos uma boa fogueira.

Ela acenou impaciente, e Lief, incapaz de continuar resistindo, deixou-se

cair ao lado dela. Barda também se aproximou do fogo. Percebendo o silêncio de

Lief, grunhiu aliviado, soltando a corda da cintura e estendendo-se no chão.

A fogueira cresceu, estalando. Os pesados pedaços de madeira

começaram a brilhar, e o calor aumentou e se espalhou.

— Ah, que delícia! — Barda suspirou satisfeito, estendendo as mãos.

E essas foram as últimas palavras que Lief escutou. No momento seguinte,

ouviu-se um forte rugido, a areia se elevou, e o mundo pareceu explodir.

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Lief encontrava-se sozinho entre dunas onduladas sem fim. Ele sabia que,

de alguma forma, a noite tinha passado. A luz se infiltrava pela nuvem amarela e

espessa. A areia sob seus pés estava morna.

O dia tinha nascido. Sua terrível visão tinha se transformado em realidade,

como se sempre soubesse que aquilo iria acontecer.

Ele lembrou-se da areia erguendo-se debaixo de seu corpo na escuridão e

atirando-o ao ar. Recordou o som das vozes de Jasmine e Barda gritando o seu

nome e lembrou-se das brasas incandescentes sendo espalhadas na noite e

morrendo no ar.

Mas isso era tudo. Agora, restavam somente os próprios rastros

desaparecendo na distância no deserto de areia aveludada. Agora, existiam apenas

os pedaços inúteis de corda ainda presos à cintura. Agora, se ouvia somente o

zunido, mais alto nesse momento, que lhe enchia os ouvidos e a mente.

Lief segurava com força algo nas mãos. Olhou para baixo e esforçou-se

para abrir os dedos. Tratava-se do pássaro de madeira pintada que Jasmine

colocara no bolso em Rithmere. Ele deve tê-lo encontrado e apanhado depois de...

Sem sentir, deslizou o pequeno objeto para dentro do bolso superior da

camisa. Suas pernas doíam, e sua garganta estava tão seca quanto a areia. Seus

olhos ardiam, e ele mal conseguia enxergar. Lief sabia que devia estar andando há

muitas horas, mas não se lembrava de nada.

"O centro."

Ele estava sendo atraído para o centro. Era só o que sabia. Estava quase

sem forças. Sabia disso também. Mas não conseguia parar, pois, se parasse,

dormiria. E, se dormisse, a morte o procuraria. Disso ele tinha certeza absoluta.

Lief prosseguiu a jornada penosa, atingiu o pé de outra duna e deu um

passo para começar a escalada. Sem aviso, suas pernas cederam, e ele caiu. A

areia amorteceu-lhe a queda, macia como um colchão de penas. Ele se virou de

costas, mas não conseguiu mais se mover.

"Dormir."

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Seus olhos se fecharam...

Em Del, os amigos riem e chafurdam nas sarjetas entupidas e

transbordadas à procura de moedas de ouro. Ele quer estar com eles, mas seus

pais estão chamando... E agora ele vê que as sarjetas estão cheias não de lixo, mas

de abelhas vermelhas, que não param de zumbir. As sarjetas estão transbordando

de sidra Abelha Rainha, que verte dos barris quebrados caídos na rua,

perdendo-se. As abelhas voam para o alto, formando uma nuvem de ira. Seus

amigos são picados, e os Guardas Cinzentos os observam e riem... Seus amigos

estão morrendo, chamam por ele, mas ele está tão cansado... Seus olhos insistem

em se fechar, enquanto ele cambaleia na direção da nuvem vermelha sussurrante.

Seus braços e suas pernas estão pesados e curvados. Atrás dele, sua mãe diz:

"Com cuidado, garoto, com cuidado!", e Lief se vira para ela. Contudo, o rosto dela

se transformou no rosto da Abelha Rainha. Abelhas cobrem-lhe as costas e os

braços e aglomeram-se em seus cabelos. Ela mostra uma expressão carrancuda,

grita com ele, com voz estridente, agitando o punho: "Fumaça, não fogo! Fumaça,

não fogo...!"

Lief abriu os olhos assustado. Os gritos estridentes continuaram. Algo

circulava sobre sua cabeça, um vulto negro e desfocado que contrastava com o céu

amarelo e nublado.

"Ak-Baba! Corra! Esconda-se!"

Lief piscou e percebeu que o vulto que descrevia uma volta sobre ele era

Kree, voando baixo e gritando. Ele tentou sentar-se e constatou que afundara de tal

maneira na areia que tinha de lutar para se libertar. A areia já tinha coberto toda a

parte inferior de seu corpo, seus braços, seu pescoço...

Lief se ergueu com esforço, ofegante e trêmulo. Quanto tempo dormira? O

que teria acontecido se Kree não o tivesse acordado? Ele teria mergulhado cada

vez mais fundo na areia até ficar totalmente coberto? Teria acordado então?

O sonho ainda estava vivo em sua mente e, de repente, ele compreendeu o

seu significado. As palavras dos versos voltaram-lhe à lembrança.

— Não era e aos mortos, mas debaixo dos mortos — ele sussurrou. — Não

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era seguir acima, mas...

— Lief! — Barda e Jasmine surgiram no topo da próxima duna e, gritando,

começaram a deslizar por ela em sua direção. Lief sentiu lágrimas em seus olhos ao

vê-los e percebeu que acreditara que estivessem mortos. Com esforço, andou ao

encontro dos amigos.

Jasmine gritou com voz estridente, apontando para algo atrás dele.

Lief se virou e viu que, da duna, emergia outro monstro da areia ainda maior

que o primeiro. A areia escorria das articulações de suas pernas. A criatura o

estivera espreitando, mas, quando seus olhos espelhados avistaram Lief, ela

paralisou-se. Ele sabia que o animal saltaria a qualquer instante.

Lief recuou sem desviar o olhar, procurou a espada e, então, horrorizado,

tropeçou nas cordas que lhe pendiam da cintura e caiu desajeitadamente. No

momento seguinte, ele lutava para se levantar da areia, a espada presa sob o peso

de seu corpo. Freneticamente, ajoelhou-se com dificuldade, enquanto ouvia os

gritos de Barda e Jasmine e soube que era tarde demais. Lief foi invadido pela

sensação de que vivia um pesadelo. O monstro avançava cambaleante em sua

direção...

Então, a criatura estremeceu de repente e soltou um grito rouco quando

uma bolha explodiu em seu corpo. O monstro vacilou, investiu novamente e tombou

para o lado quando outra bolha o atingiu. A criatura esperneou e começou a girar,

cavando fundas valas na areia.

Com um tornozelo ainda preso na corda, Lief arrastou-se para longe,

soluçando e respirando com dificuldade, porém aliviado. Jasmine correu até ele

ofegante e ajudou-o a erguer-se e livrar-se da corda. Barda a seguiu de perto, com

um estilingue ainda nas mãos e uma bolha preparada.

Lief começou a despejar agradecimentos atrapalhadamente, mas Barda os

dispensou com um gesto.

— Se salvamos a sua vida, Lief, receio que não é a primeira vez nem será a

última — ele resmungou. — Parece que é o meu destino bancar a sua babá.

Chocado e profundamente magoado, Lief se refugiou no mau humor e virou

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as costas para os amigos.

Barda segurou-o pelo ombro e obrigou-o a encará-lo.

— Não me vire as costas! — ele gritou. — O que está acontecendo com

você? Por que saiu correndo sozinho? Por que não tentou nos achar depois do

terremoto?

Barda tremia de raiva e, lentamente, Lief se deu conta de que era uma raiva

originada pelo susto, pelo medo e pela preocupação. Era a raiva que, algumas

vezes, vira no rosto dos pais quando ele chegava em casa muito tempo após o

toque de recolher, arriscando-se.

— Barda, eu não podia... — Lief começou.

— Não há tempo para isso agora — Jasmine interrompeu, com o olhar

pousado na imensa criatura caída na duna. — Discutam numa outra hora.

Precisamos sair daqui e depressa. O monstro não morreu, ainda pode se recuperar

e nos perseguir.

Os amigos caminharam durante muitas horas, mas pouco falaram. Era

como se Lief estivesse escutando algo que nem Barda nem Jasmine conseguiam

ouvir, e eles também mergulharam no silêncio à medida que se aproximavam cada

vez mais do centro.

Eles o viram muito antes de chegarem lá — um pico solitário que se erguia

de um círculo plano rodeado por dunas arredondadas. Ele cintilava de encontro ao

céu amarelo, estranho e misterioso na luz que começava a desaparecer. Um cone

poderoso cujo topo se encontrava envolto na escuridão.

— Um vulcão — Barda constatou.

— Você verá — Lief retrucou com um gesto de cabeça.

Filli rastejou sob a proteção da gola de Jasmine, choramingando. Ela

falou-lhe baixinho, confortando-o, mas seus olhos verdes estavam escuros de

medo.

O zumbido se intensificou quando eles se aproximaram de seu destino. Ao

atingirem a base e, lentamente, iniciarem a penosa subida, o ar vibrava com o som.

Finalmente, os companheiros atingiram o topo e observaram o coração

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profundo do pico. Um redemoinho de areia vermelha girava bem abaixo, voando na

escuridão como se estivesse sendo impelido por uma brisa poderosa.

Mas não havia vento, e o som era semelhante ao zumbido de milhares de

abelhas.

O Cinturão queimava ao redor da cintura de Lief.

— O que é isso? — Barda respirava com dificuldade enquanto olhava para

baixo, as mãos grandes e ásperas agarradas à espada.

Com suavidade, Lief repetiu as rimas esculpidas na pedra. E, dessa vez, os

versos finais ficaram completos.

A morte vive no interior de suas paredes de pedra, Onde todos são um, e

uma vontade domina as demais. Debaixo dos mortos, os vivos lutam, Com um

desejo insano de servir a Colméia.

— A Colméia... — Jasmine repetiu devagar.

— A areia é o Guardião — Lief afirmou.

— Mas... não pode ser — Barda murmurou. — A areia não está viva!

Caminhamos sobre ela, vimos criaturas...

— As criaturas que vimos rastejam sobre um hospedeiro muito maior —

continuou Lief com voz muito baixa. — As dunas sobre as quais andamos são

somente uma cobertura formada pelos que foram mortos há muito tempo. Os vivos

agem debaixo dela, servindo a Colméia. São eles que reúnem os tesouros que

caem. São eles que fazem as marcas na superfície. São eles que provocam as

tempestades.

— A pedra...

— A pedra, caída em algum ponto das Dunas, acabou sendo atraída para o

centro — Lief murmurou. — É onde estamos agora.

Lief obrigou-se a desviar o olhar do redemoinho do centro e virou-se para

Jasmine.

— Precisamos de fumaça — ele disse. — Fumaça, não fogo.

Sem nada dizer, ela se ajoelhou e começou a tirar coisas da mochila. Lief

percebeu que as mãos dela tremiam.

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Suas mãos também estavam inseguras ao entregar a espada a Barda e

trocá-la pela corda. Mas, ao amarrá-la ao redor do peito, ele já conseguia sorrir, e

sua voz tremia somente um pouco.

— Receio que você tenha de ser minha babá mais uma vez, Barda — ele

brincou. — Preciso de sua ajuda e de sua força outra vez... e também de sua corda.

Mas, desta vez, eu lhe imploro, não me solte.

Lief subiu na orla da cratera e entrou no espaço vazio. Seu corpo ficou

suspenso e balançou de um lado para o outro, e ele olhou para os rostos

preocupados de Barda e Jasmine, cujas mãos agarravam a corda com força.

— Devagar — ele murmurou. Lief viu-os assentir, e suas mãos

movimentarem-se. Então, delicadamente, ele começou a mergulhar no centro do

cone.

O casaco de Lief estava bem preso ao redor de seu corpo. O capuz

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cobria-lhe a cabeça e o rosto, deixando somente os olhos descobertos. "Devo estar

parecendo uma enorme larva no casulo", ele pensou. Porém nenhuma larva seria

tão tola a ponto de invadir uma colméia. Se o fizesse...

A fumaça que se desprendia da tocha úmida, bem protegida por farrapos

molhados, crescia ao seu redor. Lief não tinha certeza de que ela seria útil, mas

nenhuma outra arma o ajudaria ali. Além disso, desde o sonho que tivera, as

palavras da Abelha Rainha insistiam em voltar à sua mente, e certamente havia

uma boa razão para isso.

Meus guardas não gostam de movimentos bruscos e se zangam facilmente.

Até eu preciso usar fumaça para acalmá-los quando colho o mel de sua colméia...

Lief se lembrava das palavras com clareza. Estranhamente, ali, no centro

das Dunas sussurrantes e agitadas, a sua mente se clareara e se tornara mais

alerta. A Colméia não o estava mais chamando, talvez por não haver necessidade.

Ele se encontrava onde ela queria que estivesse.

Lief olhou para cima. Os rostos dos amigos pareciam pequenos e ele mal

conseguia vê-los contra a claridade do céu. Mais abaixo, a massa agitada que

formava a Colméia rodopiava e subia para encontrá-lo.

Lief segurou-se com firmeza, fechou os olhos e sentiu-a como se fosse um

vento quente e turbulento, um redemoinho cortante que o puxava para si. Ela girava

violentamente ao seu redor, açoitando-o e pressionando-o com um som de trovão.

Aquela força era descomunal!

Lief não conseguia enxergar nem respirar. Apanhado numa torrente

enraivecida de som, havia perdido totalmente a noção da posição em que se

encontrava. Mas sabia de uma coisa: a Colméia não se importava com ele. Para

ela, ele não representava alimento ou um prêmio a ser capturado, ou mesmo um

odiado inimigo a ser derrotado. Para a Colméia, Lief era a pessoa que carregava o

objeto que ela desejava. A Colméia o sufocaria, arrancaria as roupas de seu corpo e

a carne de seus ossos. E depois tomaria o que buscava. O que queria desde o

início.

O Cinturão de Deltora.

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O pânico se instalou na mente de Lief. Ele começou a lutar, a gritar...

Com cuidado, garoto. Com cuidado!

A velha voz mal-humorada soou muito clara na mente de Lief, como se

tivesse falado junto ao seu ouvido, e teve o efeito de uma ducha de água fria em seu

rosto.

Os gritos morreram na garganta do garoto. Ele abriu os olhos, obrigou-se a

ficar imóvel, a parar de ofegar em busca de ar e a respirar suavemente.

Lief entreabriu os olhos e, pela estreita abertura, viu que a fumaça que

emanava da tocha finalmente se misturava ao turbilhão vermelho.

O redemoinho se acalmava. A Colméia perdia a velocidade e a força e se

recolhia à escuridão nas laterais do cone. A obra que a sua fúria antes ocultava foi

finalmente revelada: uma pirâmide reluzente, que se erguia do centro do cone.

Lentamente e com cuidado, Lief estendeu a mão e deu um puxão na corda.

A sua descida foi interrompida com um leve solavanco quando Barda e Jasmine

receberam o sinal.

Por alguns instantes, Lief apenas balançou no espaço e fitou, fascinado,

através da fumaça em suspensão no ar, a obra surpreendente que as Dunas vivas

haviam construído, tratado e guardado há inúmeros anos.

Era uma pirâmide muito alta, feita de alvéolos de ouro, vidro, pedras e ossos

brancos e descorados.

Lief disse a si mesmo que estava, de fato, esperando por aquilo, ou algo

semelhante àquilo. Mas a realidade estava além de qualquer coisa que pudesse ter

imaginado.

Diversos objetos que nunca iriam se deteriorar, ou que iriam se deteriorar

tão lentamente que precisariam ser substituídos somente após séculos, haviam

sido reunidos e usados na construção. Crânios e ossos de todos os formatos e

tamanhos haviam sido arrumados ao lado de garrafas e jarras de vidro, moedas,

cristais, pedras, correntes de ouro, anéis, braceletes e ainda mais ossos. Partes

pequenas e grandes haviam sido combinadas com tamanho cuidado que a torre

brilhava como uma enorme jóia.

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Era uma visão impressionante e inacreditavelmente horrível.

Era a pirâmide da morte. Quantos seres humanos haviam perdido a vida

para criá-la? E o que guardava dentro daqueles alvéolos secretos? As crias da

Colméia, sem dúvida. Ovos, depois minúsculos seres que se contorciam,

amontoados aos milhares, protegidos e cuidados, alimentados por uma repugnante

infusão de moscas vermelhas em decomposição, lagartos mortos e qualquer coisa

que deslizasse para baixo da areia. Até que crescessem e se transformassem —

em quê? Não em insetos de alguma espécie que ele conhecesse, talvez nem

mesmo em insetos, mas em alguma outra forma de vida que ele sequer podia

imaginar. Alguma entidade minúscula que se tornaria parte da força antiga, que

continuou a viver enquanto tudo ao redor mudava. A Colméia.

Abalado e nauseado, Lief ansiou por chutar e derrubar a torre, por vê-la cair

e despedaçar-se na escuridão. Sem dúvida, naquela escuridão, lá embaixo,

ocultava-se a gigantesca Rainha da Colméia. Ele era quase capaz de ver suas

formas intumescidas ondulando nas profundezas, botando ovos sem parar.

Mas Lief sabia que, se atacasse a pirâmide, a Colméia investiria contra ele,

e a fumaça não seria capaz de detê-la.

O Cinturão pulsava e queimava. Em algum lugar daquela torre reluzente

encontrava-se a pedra que ele procurava. Seria o diamante? A ametista? A

esmeralda? Lief podia ver pedras transparentes, roxas e verdes entre as que

cintilavam na pirâmide. Porém qual delas seria a preciosa?

Lief afastou o casaco e a camisa a fim de deixar o Cinturão à mostra e olhou

para ele por entre um véu de fumaça. Ele mal conseguia distinguir o topázio e o rubi,

mas a opala brilhava e parecia viva, refletindo as luzes cintilantes.

O que aquilo significava? Ele esforçou-se para lembrar-se das palavras

sobre os poderes da opala, lidas em 0 Cinturão de Deltora.

A opala, símbolo da esperança, brilha com todas as cores do

arco-íris. Ela tem o poder de permitir entrever o futuro e de ajudar aqueles

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que não podem ver bem. A opala...

O que vinha em seguida? Lief fechou os olhos com força para ajudá-lo a

pensar, mas tornou a abri-los logo depois, sacudindo a cabeça desesperado. Não

conseguia lembrar-se do final.

Lief olhou para o topo da pirâmide. Ele sabia que, provavelmente, a pedra

estaria ali. Ela tinha sido jogada nas Dunas logo após o Rei Endon ter sido

derrubado, pouco mais de dezesseis anos antes, e a pirâmide vinha crescendo há

muitos séculos.

A primeira coisa que viu foi a adaga de Jasmine, encaixada com a ponta

para baixo na parte mais alta da torre. Ela tinha sido o último objeto apanhado,

portanto encontrava-se no topo. Algum dia, o metal ficaria enferrujado, mas a cruz

de cristal sobreviveria, e outros objetos substituiriam as partes de metal.

Sob a adaga, arrumadas com perfeição, estavam muitas moedas de ouro e

a medalha de campeão dos Jogos de Rithmere. Junto a isso, havia uma massa de

ossos brancos e brilhantes.

Lief estremeceu. Nenhum pedaço de carne restava sobre os ossos, mas ele

sabia que aquilo era tudo o que sobrara de Carn 2 e Carn 8, os Guardas Cinzentos.

A Colméia trabalhava depressa.

Ele percebeu que a pirâmide parecia mais clara do que antes. Por um

instante, perguntou-se por quê. Então, viu que a tocha desprendia menos fumaça.

Ela estava começando a se extinguir.

O medo tomou conta de Lief. Por quanto tempo mais a Colméia ficaria

zunindo às margens do cone? À medida que a fumaça desaparecesse...

Lief procurou sob os ossos e viu alguns pequenos potes de vidro, alguns

braceletes, duas pedras e o que lhe pareceu o osso maxilar de um cavalo. E,

debaixo dele...

Seu coração pareceu deixar de bater. Ali, com pequenos pontos de luz

perfurando sua superfície lisa e azul-escura, encontrava-se uma pedra que parecia

um céu noturno estrelado. As palavras esquecidas de O Cinturão de Deltora

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voltaram-lhe à mente como um raio.

...A opala mantém uma relação especial com o lápis-lazúli, a

pedra celestial, um poderoso talismã.

O lápis-lazúli! Lá estava ele, cuidadosamente encaixado, sustentando o teto

de um alvéolo ainda vazio. A quarta pedra do Cinturão de Deltora.

Lief estendeu a mão em sua direção, mas afastou-a bruscamente. Se

retirasse a pedra do lugar, os objetos pousados sobre ela certamente cairiam, e a

Colméia atacaria. Ele poderia morrer antes de levar o seu prêmio à superfície. O

lápis-lazúli e o Cinturão estariam perdidos.

Sua única esperança era substituir a pedra por outro objeto. Algo quase do

mesmo tamanho. Freneticamente, ele procurou nos bolsos, embora soubesse que

não havia nada...

Então, seus dedos tocaram algo no bolso superior da camisa. Algo

pequeno, duro e de formato estranho. Lief o pegou.

Era o pequeno pássaro de madeira de Jasmine. Tinha o tamanho exato.

A Colméia zunia com crescente desconfiança, despertando e entrando em

atividade à medida que a fumaça começava a desaparecer. Prendendo a

respiração, Lief estendeu mais uma vez a mão para o lápis-lazúli. Desta vez, porém,

levava na outra mão o pequeno pássaro de madeira.

Lief tocou a pedra. Ela aqueceu-lhe os dedos e soltou-se facilmente, mais

facilmente do que ele esperara, como se quisesse ser libertada.

"A opala a está chamando", ele pensou, sentindo a resposta quente na

cintura. Ele sentiu o lápis-lazúli deslizar para a sua mão e, rapidamente, empurrou o

pequeno pássaro para o seu lugar.

Porém Lief não foi rápido o bastante. O topo da torre estremeceu. O

zumbido das paredes do cone tornou-se mais intenso, mais atento. A nuvem

vermelha oscilava para dentro e sua borda externa tocava levemente a pele nua do

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peito de Lief, marcando, queimando, fazendo-o abafar um grito de angústia.

Com calma, com calma...

Com o suor escorrendo-lhe nos olhos, tentando ignorar a dor, Lief ergueu

uma das mãos e puxou a corda. Uma vez, duas... Ao lado dele, a pirâmide oscilava

como se fosse cair. E se algo caísse...

A adaga caiu de seu lugar, girando no ar. Lief conseguiu agarrá-la pela

ponta com uma das mãos. A tocha, quase apagada, estava presa sob o braço.

Com uma lentidão torturante, ele foi puxado para a superfície. Abaixo dele,

o zunido se intensificava e se tornava retumbante, pois a Colméia se aproximava,

rodeando a pirâmide mais uma vez. Ela ainda não sabia que tinha sido roubada. Ela

estava sonolenta e distraída, pois a fumaça ainda pairava no ar. A fumaça estava

fraca agora, muito fraca... Mas ainda exercia o seu poder quando Lief arrastou-se

para cima em busca de ar fresco.

E, quando ele se levantou e se virou alegremente para Barda e Jasmine,

quando abriu a mão e mostrou-lhes a pedra celestial, as nuvens que cobriam o céu

separaram-se como se um pano tivesse sido rasgado. As estrelas e a Lua brilharam

outra vez sobre a terra escura como uma bênção, e o lápis-lazúli refletiu-lhes o

brilho como um minúsculo espelho.

A pedra deslizou para o Cinturão e reluziu viva sob a Lua.

— Tive de deixar o seu pequeno pássaro para trás — Lief contou,

virando-se para Jasmine. — Mas trouxe isto em troca — acrescentou suavemente,

entregando-lhe a adaga. Sem nada dizer, Jasmine a apanhou, guardou-a no casaco

e apertou-a junto a si.

Lief cambaleou, e Barda agarrou-lhe o braço.

— O lápis-lazúli é um talismã, Barda — Lief sussurrou. — Estaremos a

salvo agora. Vamos embora deste lugar.

Lief falou pouco enquanto os três desceram lentamente pela superfície

vermelha do pico. Lá embaixo, ele permitiu que Jasmine passasse o bálsamo

curativo sobre seus ferimentos no peito, o que aliviou um pouco a dor e tornou

suportável a caminhada até a extremidade das Dunas.

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Agora, os amigos tinham as estrelas para guiá-los, e o lápis-lazúli para

proporcionar proteção contra os perigos da noite. Mas foi somente quando

atingiram as rochas que circundavam as Dunas e as escalaram para chegar à terra

firme que Lief conseguiu falar do que tinha visto.

— Graças aos céus, você e o Cinturão estão salvos — Barda murmurou

quando o colega terminou.

— E, agora, temos a quarta pedra — Jasmine acrescentou alegre. —

Faltam apenas três e, comparado a tudo o que já enfrentamos, certamente será fácil

encontrá-las.

Lief estava em silêncio. Logo os amigos se deram conta de que ele tinha

adormecido.

— Será fácil, comparado a tudo o que já enfrentamos — Jasmine insistiu,

voltando-se para Barda.

Barda olhava para o rosto exausto e adormecido do amigo. Ele pensou no

quanto o garoto parecia mais velho e em tudo o que os três haviam enfrentado. E no

que ainda estava por acontecer.

Jasmine, não admitindo ser ignorada, puxou a manga de Barda.

— Barda! Você não concorda? — indagou.

Mas ele não estava usando o Cinturão. A opala não podia lhe oferecer

visões do futuro. Uma sombra atravessou-lhe o rosto, e ele exibiu um sorriso

preocupado ao responder.

— Veremos, Jasmine — ele disse. — Veremos.