deleuze e proust o eu

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    SIGNOS DELEUZEANOS DA DIFERENA E AS APORIAS DO EU EM PROUST

    Roberto Duarte Santana Nascimento

    Universidade Estadual de Campinas

    RESUMO: A filosofia de Deleuze sempre se efetivou a partir de uma relao peculiar nosomente com textos que compem a histria da filosofia, mas tambm pela articulao comoutros domnios do saber, exteriores s praticas tecnicamente filosficas. Assim juntamente aseus estudos sobre os pr-socrticos, sobre Espinosa, Hume, Nietzsche, Foucault, Bergson,etc, ganham igualmente importncia, quando se trata de acompanhar seu pensamento, seusestudos sobre literatura, pintura, cinema, bem como lingstica, matemtica, biologia, fsica,psicanlise, entre outros. No tocante s artes, um dos autores que recebeu especial atenopelo filsofo foi Marcel Proust. Dessa maneira, interessa neste estudo, em especial, comentar

    algo do encontro filosfico entre o pensamento deleuzeano e a obra La recherche du tempsperdu, de Proust, basicamente no que diz respeito s aporias do Eu encontradas em sua obra e conexo delas com o conceito de signo que Deleuze logra desenvolver a partir do contatocom a obra proustiana.Tomaremos como tarefa, ento, seguir alguns pontos deincidncia/emergncia do conceito de signo no livro Proust e os signos (1969) de Deleuze.Livro este no qual o autor apresenta uma leitura bastante original da Recherche e que seconstitui como um dos instrumentos de formulao da filosofia deleuzeana da diferena. Aanlise que Deleuze faz do texto proustiano bastante convincente ao mostrar que o Eu, oua pretensa autarquia da conscincia, nada mais do que uma apropriao, at certo pontodesptica, sobre eus larvares parciais, muito mais primitivos e essenciais. por isso que onarrador-heri em Proust no funciona como sujeito. Seus constantes deslocamentos e aimpossibilidade de foc-lo fixamente e por inteiro indica algo que lhe antecede e lhe constitui:a diferena complexa. Tal perspectiva parece importante, pois nessa dimenso larvar e deproduo sgnica que til os analistas se situarem se quiserem acompanhar bem os processosde subjetivao seja na clnica psicolgica, seja para evitar os reducionismos psicolgicosna apreenso de obras de arte. Cumpre informar, por fim, que a presente pesquisa surge depesquisa de mestrado financiada pela FAPESP.

    e-mail: [email protected]

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    Interessa neste estudo (que surge como resultado de pesquisa de mestrado financiada pela

    FAPESP), em especial, comentar algo do encontro filosfico entre o pensamento deleuzeano

    e a obra La recherche du temps perdu, de Marcel Proust, basicamente no que diz respeito s

    aporias do Eu encontradas na obra de Proust e conexo delas com o conceito de signo que

    Deleuze logra a desenvolver. Tomaremos como tarefa, ento, seguir, cartograficamente,

    alguns pontos de incidncia/emergncia do conceito de signo no livro Proust e os signos

    (1969) de Deleuze. Livro este no qual o autor apresenta uma leitura bastante original da

    Recherche e que se constitui como um dos instrumentos de formulao da filosofia

    deleuzeana da diferena.

    Co-funcionamento entre discursos

    Antes de tudo, devemos evitar as simplificaes ao considerarmos o encontro entre

    Deleuze e Proust, pois a anlise deleuzeana da obra de certos artistas no tem por objetivo

    subordin-las a pressupostos filosficos previamente estabelecidos. No se trata de um

    pensar sobre, de formulao de critrios de legitimidade ou de identificao. Trata-se, isso

    sim, de pensar com, em articulao com esferas diversas que no a da filosofia estritamente

    dita. Assim, Deleuze enxerga na obra de Proust um alcance filosfico, na medida em que ela

    nos apresenta o problema de uma juno de heterogneos que dispensa a aliana de uma

    aliana primeira ou de um todo fundador entre os elementos de um sistema de diferenas. Os

    diversos mundos, na obra de Proust, aparecem como signos que nos revelam a unidade como

    efeito de diferenas, de modo que a essncia ou verdade dos signos, enquanto expresso da

    diferena, implica, em ltima instncia, a fragmentao irredutvel do Eu e do pensamento

    soberano que o busca.

    Assim, os signos aparecem marcados pela posio de um contedo sem medida

    comum, ou seja, as pessoas e as coisas so continentes que encerram em si um sentido, ou

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    contedo, de natureza diversa, reveladora da alteridade. Desse modo, a expressividade o

    contedo de um ser, mas no possvel apreender esse contedo a partir de relaes

    associativas, pois ele aparece sempre como algo de desmedido, de incomensurvel. nesse

    sentido, por exemplo, que a vitalidade de um amor no se explica pela existncia

    simplesmente do ser amado, mas pelos mundos possveis, paisagens e lugares, modos de

    vida que ele traz implicado em si. Ou, ento, a arrebatadora alegria provocada pelo sabor da

    madeleine no se explica pelas cadeias da memria mas por uma Combray sem medida

    comum com o que fora vivido. E ainda: Guermantes no indica apenas um nome familiar; o

    fascnio sentido pelo heri est ligado ao contedo que faz esse nome explodir, lanando-o

    no mar da histria, do poder, da imaginao.

    Ao mesmo tempo, um outro aspecto que caracteriza o signo a coexistncia de partes

    assimtricas que no mantm comunicao entre si. Ou seja, o signo tambm envolve, em sua

    multiplicidade, a vizinhana de partes heterogneas e isoladas. Sendo que cada parte, por sua

    vez, no expressa nem advm de um todo, mas constituiu-se tambm de outras partes

    igualmente isoladas. Assim, h muitas Albertinas em Albertina, e a cada uma corresponde, no

    narrador, um eu diferente que a ama. Tambm as palavras, os seres e as coisas, os

    tempos e os lugares so complicaes de elementos diversos. O caminho de Meseglise e

    o de Guermantes, por exemplo, formam vasos hermticos e incomunicveis; o rosto de

    Albertina uma composio de mil rostos que podem inspirar tanto confiana quanto cime;Charlus contm diversos mundos, incomunicveis como astros distantes. H tambm uma

    multiplicidade de mundos na linguagem, e a mentira justamente um fragmento heterclito

    que revela naquela uma diferena. quando certa palavra, numa fala, torna-se fragmento de

    um outro mundo.

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    Signo e subjetivao

    A revelao da verdade enquanto pluralidade de sentidos ou substncia mltipla

    funo da essncia e no de um sujeito da percepo. Cada tipo de signo requer um sujeito

    especfico para sua apreenso, de modo a encontrarmos diferentes Eus na medida em que se

    atravessa por diferentes mundos de signos. Assim, quanto mais nos aproximamos da essncia,

    mais se dissolve no apenas iluses objetivistas do sentido unitrio e da totalizao implcita,

    mas se desfaz, igualmente, a soberania da conscincia que reivindica a suposta identidade de

    um sujeito da percepo (CARDOSO Jr., 1996, p.56).

    O que se apreende do pargrafo acima que a relao entre sujeito e essncia-diferena

    no do tipo sujeito-objeto. Ela constitutiva. Segundo Deleuze, no o sujeito que explica

    a essncia, mas o contrrio: a essncia, ao se enrolar sobre si mesma, constitui a

    subjetividade. Ou, por assim dizer, a essncia, enquanto diferena pura, sempre o

    nascimento do mundo (DELEUZE, 2003, pp. 41, 104) e o sujeito um ponto de vista dessa

    originalidade.

    O notrio caso da madeleine, a esse respeito, exemplar. O contedo do signo em

    questo, ou seja, o sentido da arrebatadora sensao experimentada rompe com toda cadeia

    associativa individual vivida pelo heri; isso faz com que o reencontro do antigo momento

    seja sempre uma criao, sempre uma reinveno que abarca, num s lance, ou em imanncia,

    o mundo e o eu. Mais do que individual, a essncia princpio de individuao(DELEUZE, 2003, pp. 41 e 104).

    Acrescente-se a isso o fato de que um signo somente se torna realmente signo para um

    sujeito na medida em que este est em mudana, em devir, cindido entre duas individuaes.

    O signo e o processo de pensamento que ele desencadeia no operam segundo os esquemas de

    um sujeito substancialmente acabado, bem constitudo: o pensamento muito mais estes

    movimentos terrveis que somente podem ser suportados nas condies de um sujeito larvar

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    (DELEUZE, 1968, p.156, traduo nossa). Nessa tica, diga-se de passagem, parece que

    nessa dimenso larvar e de produo sgnica que os analistas precisam se situar se quiserem

    acompanhar bem os processos de subjetivao seja na clnica psicolgica, seja para evitar os

    reducionismos psicolgicos na apreenso de obras de arte.

    Deleuze ento coloca a seguinte pergunta: o que o narrador heri que no funciona

    como sujeito?. A resposta que ele tece ao longo de seu livro sobre Proust que o sujeito da

    Recherche no finalmente nenhum eu, esse ns (DELEUZE, 2003, pp. 122, 172), um ns

    impessoal e mltiplo, funcionando por desarranjos e disjunes, verdadeiro Corpo sem

    rgos.

    Signo eCorpo sem rgos

    Segundo Deleuze, Proust nos apresenta o narrador-heri como um enorme corpo sem

    rgos1 (DELEUZE, 2003, p.172). O narrador no possui rgos porque se apresenta como

    materialidade aberta, como uma aranha e sua teia, compondo-se com os mais diferentes

    estmulos/signos, e tambm no sentido em que privado de todo uso voluntrio e organizado

    de suas faculdades (DELEUZE, 2003, p.173). Sensibilidade, memria e pensamento surgem

    como efeito de encontros diversos do corpo do narrador com diferentes naturezas de signos.

    O Eu, ou a pretensa autarquia da conscincia, nada mais do que uma apropriao,

    at certo ponto desptica, sobre eus larvares parciais, muito mais primitivos e essenciais. por isso que o narrador-heri em Proust no funciona como sujeito. Seus constantes

    deslocamentos e a impossibilidade de foc-lo fixamente e por inteiro indica algo que lhe

    antecede e lhe constitui2.

    1 O conceito de corpo sem rgos mais longamente desenvolvido nos livros O anti-dipo (1972) e MilPlats (1980).2 curioso notar que, em toda a busca, em suas mais de trs mil pginas, citado apenas duas vezes o primeironome do narrador-heri (Marcel) e nenhuma vez seu sobrenome, ou patrnomo. (Agradeo prof Jeane MarieGagnebin por esta lembrana, que refora a idia de que o eu na Recherche encontra-se a todo movimento emaporias inevitveis)

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    Da, mais uma vez, a insuficincia das explicaes psicanalticas que enxergam a

    impossibilidade do narrador de ver, de perceber, de lembrar-se, de compreender...

    (DELEUZE, 2003, p.172), como efeito da pulso de morte. Pois esta, apesar de pensar a

    fragmentao do eu, no deixa de assinalar a existncia de uma unidade-identidade absoluta e

    originria.

    O sentido do signo ultrapassa o indivduo (DELEUZE, 2003, p.104) e seus estados de

    alma. Assim, pode-se at dizer, por exemplo, que nossos amores repetem, como Proust

    descreve, sentimentos outrora direcionados para a me, mas estes sentimentos, conforme

    afirma Deleuze, repetem, por sua vez, outros amores que ns mesmos no vivemos

    (DELEUZE, 2003, pp. 68 e 104), remetendo a realidades transpessoais mais vastas.

    Ora, mesmo o to famoso beijo da me, to desejado pelo heri, cujo alcance, numa

    primeira expectativa, seria um ponto de equilbrio e sossego para o eu, mesmo a satisfao

    heurstica desse beijo vai se mostrar um engodo, na medida em que se d o contraste entre a

    grande expectativa e a desiluso na consumao. Desiluso que se manifesta de diferentes

    maneiras na vida do heri: desiluso em relao infncia (paisagens de Combray), em

    relao ao amor com as mulheres e ao eu enquanto amante, em relao literatura ( alto-

    imagem como escritor potencial).

    Por fim, Deleuze destaca na obra de Proust as aporias por que passa o Eu. Este,

    conectado dinmica da Recherche, realmente colocado num beco sem sada na medidaem que nunca se encontra, em que toda expectativa de centramento logo corroda. As

    coordenadas espao-temporais mais familiares so desfeitas, colocadas em questo. Talvez

    por isso, palavras como hesitar, vacilar, oscilar, tremer, trapacear, rodopiar, girar, turbilhonar,

    vibrar, etc sejam to freqentes nessa obra.

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    Bibliografia

    CARDOSO JR., Hlio R. Teoria das Multiplicidades no pensamento de Gilles Deleuze.

    Campinas, SP: [s.n.], 1996. Tese (doutorado) - Unicamp.

    DELEUZE, Gilles. Proust e os signos, tr. br. de Antnio Piquet e Roberto Machado, Rio

    de Janeiro: Forense, 1987. (1 ed.: 1964)

    ______ Diferena e repetio. Tr.br. de Luiz B.L.Orlandi e Roberto Machado: RJ, Graal,

    1988. (1 ed.: 1968b).

    ______; GUATTARI, FLIX.O Anti-dipo. Lisboa: Assrio & Alvim, 1995a (1 ed.

    1972).

    ______. Mille Plateaux. Minuit, Paris, 1980. Editado no Brasil pela Ed. 34 (Rio de

    Janeiro), 1995, em cinco volumes.