deleuze dizendo da ética aos olhos de spinoza

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Deleuze dizendo da ética aos olhos de Spinoza “As pessoas, as coisas, os animais se distinguem pelo que podem, ou seja, não podem a mesma coisa. O que é que eu posso? Nunca um moralista definiria um ser humano pelo que pode, um moralista define um ser humano pelo que é, pelo que é de direito. Então, um moralista define o ser humano como um anima racional. É a essência. Spinoza nunca define o ser humano como um animal racional, define o ser humano pelo que pode, corpo e alma. Se digo que “racional” não é a essência do ser humano, mas algo que o ser humano pode, isso muda por completo visto que o não-racional é também algo que o ser humano pode. Estar louco também faz parte do poder do ser humano. A nível de um animal, vemos muito bem o problema. Se tomam o que se chama a história natural, esta tem sua fundação em Aristóteles. Define o animal pelo que é. Em sua ambição fundamental, trata-se de dizer o que um animal é. O que é um vertebrado, o que é um peixe? E a história natural de Aristóteles está cheia dessa busca pela essência. No que se chama a classificação dos animais, se definirá o animal ente todo, cada vez que é possível, por sua essência, ou seja pelo que é. Imaginem esses tipos que chegam e procedem de fato de outro modo: se interessam pelo que a coisa ou pelo que o animal pode. Fazem uma espécie de registro dos poderes do animal. Esse pode voar, aquele come erva, tal outro come carne. O regime alimentício, sentem vocês que se trata de modos de existência. Uma coisa inanimada também, o que pode? Que pode o diamante? Ou seja, de que experiências é capaz? O que suporta? O que faz? Um camelo pode não beber água durante longo tempo. É uma paixão do camelo. As coisas se definem pelo que podem, o que abre para as experimentações. É toda uma exploração das coisas, o que não tem nada a ver com a essência. Temos que ver as pessoas como pequenos pacotes de poder. Faço como uma espécie de descrição do que podem as pessoas. Do ponto de vista de uma ética, todos os existentes, todos os entes estão relacionados por uma escala quantitativa que é a da potência. Têm mais ou menos potência. Essa quantidade diferencial, é a potência. O discurso ético nos falará permanentemente, não das essências, não crê nas essências, só nos fala da potência, a saber as ações e as paixões das quais algo é capaz. Não o que aquela coisa é, mas o que é capaz de suportar e capaz de fazer. E, se não há essência geral, é que, a esse nível da potência tudo é singular. Não sabemos nada de entrada enquanto que a essência nos diz o que é o conjunto das coisas. A ética não nos diz nada, não pode saber. Um peixe não pode o que um peixe vizinho pode. Haveria então uma diferenciação infinita da quantidade de potência segundo os existentes. As coisas recebem uma distinção quantitativa porque estão relacionadas à escala da potência. ..................................................................................................................................................... Vontade de potência quer dizer que definiremos aos seres humanos, às coisas, aos animais, segundo a potência efetiva que são. Uma vez mais, é a pergunta: o que é que pode um corpo? Muito diferente da pergunta moral: o que deves, em virtude de tua essência? O que podes em virtude de tua potência? Eis aqui que a potencia constitui a escala quantitativa dos seres. É a quantidade de potencia o que distingue um existente de outro. Spinoza diz frequentemente que a essência é a potencia. Compreendem o golpe filosófico que está dando?” (Gilles Deleuze, em aula de dezembro/1980, Cours Vincennes)

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Trecho de aula do Deleuze sobre Spinoza.

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Page 1: Deleuze dizendo da ética aos olhos de Spinoza

Deleuze dizendo da ética aos olhos de Spinoza

“As pessoas, as coisas, os animais se distinguem pelo que podem, ou seja, não podem a mesma coisa.

O que é que eu posso? Nunca um moralista definiria um ser humano pelo que pode, um moralista

define um ser humano pelo que é, pelo que é de direito. Então, um moralista define o ser humano

como um anima racional. É a essência. Spinoza nunca define o ser humano como um animal racional,

define o ser humano pelo que pode, corpo e alma. Se digo que “racional” não é a essência do ser

humano, mas algo que o ser humano pode, isso muda por completo visto que o não-racional é

também algo que o ser humano pode. Estar louco também faz parte do poder do ser humano. A nível

de um animal, vemos muito bem o problema. Se tomam o que se chama a história natural, esta tem

sua fundação em Aristóteles. Define o animal pelo que é. Em sua ambição fundamental, trata-se de

dizer o que um animal é. O que é um vertebrado, o que é um peixe? E a história natural de

Aristóteles está cheia dessa busca pela essência. No que se chama a classificação dos animais, se

definirá o animal ente todo, cada vez que é possível, por sua essência, ou seja pelo que é. Imaginem

esses tipos que chegam e procedem de fato de outro modo: se interessam pelo que a coisa ou pelo

que o animal pode. Fazem uma espécie de registro dos poderes do animal. Esse pode voar, aquele

come erva, tal outro come carne. O regime alimentício, sentem vocês que se trata de modos de

existência. Uma coisa inanimada também, o que pode? Que pode o diamante? Ou seja, de que

experiências é capaz? O que suporta? O que faz? Um camelo pode não beber água durante longo

tempo. É uma paixão do camelo. As coisas se definem pelo que podem, o que abre para as

experimentações. É toda uma exploração das coisas, o que não tem nada a ver com a essência.

Temos que ver as pessoas como pequenos pacotes de poder. Faço como uma espécie de descrição

do que podem as pessoas.

Do ponto de vista de uma ética, todos os existentes, todos os entes estão relacionados por uma

escala quantitativa que é a da potência. Têm mais ou menos potência. Essa quantidade diferencial, é

a potência. O discurso ético nos falará permanentemente, não das essências, não crê nas essências,

só nos fala da potência, a saber as ações e as paixões das quais algo é capaz. Não o que aquela coisa

é, mas o que é capaz de suportar e capaz de fazer. E, se não há essência geral, é que, a esse nível da

potência tudo é singular. Não sabemos nada de entrada enquanto que a essência nos diz o que é o

conjunto das coisas. A ética não nos diz nada, não pode saber. Um peixe não pode o que um peixe

vizinho pode. Haveria então uma diferenciação infinita da quantidade de potência segundo os

existentes. As coisas recebem uma distinção quantitativa porque estão relacionadas à escala da

potência.

.....................................................................................................................................................

Vontade de potência quer dizer que definiremos aos seres humanos, às coisas, aos animais, segundo

a potência efetiva que são. Uma vez mais, é a pergunta: o que é que pode um corpo? Muito

diferente da pergunta moral: o que deves, em virtude de tua essência? O que podes em virtude de

tua potência? Eis aqui que a potencia constitui a escala quantitativa dos seres. É a quantidade de

potencia o que distingue um existente de outro. Spinoza diz frequentemente que a essência é a

potencia. Compreendem o golpe filosófico que está dando?”

(Gilles Deleuze, em aula de dezembro/1980, Cours Vincennes)