deleuze - aula 10

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Introdução à experiência intelectual de Gilles Deleuze Aula 10 “A repetição não muda nada no objeto que repete, mas muda algo no espírito que a contempla”. Deleuze parte desta frase de Hume para começar o segundo capítulo de Diferença e repetição, “A repetição por ela mesma”. Esta maneira de vincular o fenômeno da repetição a uma “transformação do espírito” é maneira de insistir que um pensamento renovado da repetição nos abre para a redefinição da estrutura das individualidades. Ou seja, neste capítulo, a discussão a respeito da repetição se coloca mais claramente no interior do estabelecimento das estratégias de crítica do sujeito moderno e às suas ilusões de identidade. Mostrar como a repetição é o operador de transformação do sujeito, operador de liberação do sujeito das amarras da identidade e de abertura para a experiência da diferença é o que Deleuze procura. Mas, para tanto, o capítulo parte de um pressuposto kantiano: a crença de que a determinação da minha existência só pode se fazer em conformidade com a forma do sentido interno, ou seja, com o tempo. Desta forma, uma recompreensão da estrutura da subjetividade exige uma reconstrução da forma do tempo. Para Deleuze não há maneira mais adequada de produzir tal reconstrução do que repensar os modos de síntese subjetiva do tempo. Ele quer, desta forma, nos mostrar como temos três modelos de síntese do tempo que dão forma à individualidade. No entanto, em todos estes três modelos não encontramos um modo de síntese derivado do Eu como princípio ativo de produção de unidade. O que encontramos são processos que precisam, cada vez menos, de recorrer à forma do Eu. O primeiro deles é o hábito, o segundo a memória e o terceiro a repetição: três

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Introdução à experiência intelectual de Gilles Deleuze

Aula 10

“A repetição não muda nada no objeto que repete, mas muda algo no espírito que a contempla”. Deleuze parte desta frase de Hume para começar o segundo capítulo de Diferença e repetição, “A repetição por ela mesma”. Esta maneira de vincular o fenômeno da repetição a uma “transformação do espírito” é maneira de insistir que um pensamento renovado da repetição nos abre para a redefinição da estrutura das individualidades. Ou seja, neste capítulo, a discussão a respeito da repetição se coloca mais claramente no interior do estabelecimento das estratégias de crítica do sujeito moderno e às suas ilusões de identidade. Mostrar como a repetição é o operador de transformação do sujeito, operador de liberação do sujeito das amarras da identidade e de abertura para a experiência da diferença é o que Deleuze procura.

Mas, para tanto, o capítulo parte de um pressuposto kantiano: a crença de que a determinação da minha existência só pode se fazer em conformidade com a forma do sentido interno, ou seja, com o tempo. Desta forma, uma recompreensão da estrutura da subjetividade exige uma reconstrução da forma do tempo. Para Deleuze não há maneira mais adequada de produzir tal reconstrução do que repensar os modos de síntese subjetiva do tempo. Ele quer, desta forma, nos mostrar como temos três modelos de síntese do tempo que dão forma à individualidade. No entanto, em todos estes três modelos não encontramos um modo de síntese derivado do Eu como princípio ativo de produção de unidade. O que encontramos são processos que precisam, cada vez menos, de recorrer à forma do Eu. O primeiro deles é o hábito, o segundo a memória e o terceiro a repetição: três modos de síntese do tempo encadeados por Deleuze em uma certa sucessão.

Hábito e presente

A base de sua descrição sobre o hábito como síntese do tempo vem de David Hume. Ao fazer sua afirmação de que a repetição não muda nada no objeto que repete, mas muda algo no espírito que a contempla, Hume pensa nesta modificação de expectativa que ocorre quando vi muitas vezes uma sequência de acontecimentos do tipo AB. Assim que A aparece novamente B associa-se ao meu espírito. Hume não compreende tal associação que se imprime na imaginação como um ato da memória. Para ele, trata-se de uma síntese passiva da imaginação, pois: “ela não é feita pelo

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espírito, mas se faz no espírito que contempla, precedendo toda memória e toda reflexão”1. A memória produziria uma síntese ativa e reflexiva que individualiza os casos repetidos contextualizando-os no tempo descontínuo.

Hume, como sabemos, compreende tais sínteses passivas a partir da estrutura do hábito. Lembremos da afirmação de Hume sobre o hábito: "Onde quer que a repetição de qualquer ato ou operação particular manifeste uma propensão para renovar o mesmo ato ou operação, sem ser impulsionado por raciocínio ou processo algum do entendimento, dizemos sempre que essa propensão é o efeito do costume"2. Vemos como o hábito, enquanto princípio de repetição, é uma forma de síntese do tempo, já que ele é modo de projeção de um futuro a partir de modos de síntese do passado e do presente ou antes, maneira de organizar o tempo: “como um presente perpétuo a respeito do qual devemos e podemos nos adaptar”3. Esta ideia do hábito como construção da experiência do presente é fundamental na leitura de Deleuze.

Por outro lado, Hume insiste que a repetição de atos e operações não é, quando submetida ao hábito, impulsionada pelo raciocínio ou por processos do entendimento. Partindo deste ponto, Deleuze pode afirmar que Eu sou muito mais um paciente do que agente das sínteses do tempo feitas pelo hábito. Eu sou muito mais alguém que contempla a formação silenciosa do hábito, do que alguém que age para produzir unidades. No fundo, esta unidade do hábito permite à subjetividade liberar-se de um determinismo estrito para encontrar uma certa regularidade. Mas, acima de tudo, o hábito não é a função de um Eu, mas algo que permite a produção de um Eu. Não há hábito porque há um Eu. Mais correto seria dizer: há um Eu porque o hábito aparece como “princípio ativo que fixa e desdobra as sínteses passivas da

associação”4. Isto talvez nos explique porque Deleuze poderá dizer que, através de Hume, podemos aprender que: “nós somos hábitos, nada mais que hábitos, o hábito de dizer Eu ... Talvez não exista resposta mais surpreendente para o problema do Eu”5.

Partindo disto, Deleuze lembra que Hume nos permite quebrar uma certa “ilusão da psicologia” que consistira em transformar a atividade em uma espécie de fetiche que precisaria estar presente em toda função psicológica. Não é agindo que formamos hábitos, mas contemplando. Em sua essência, o hábito é uma contração do tempo que permite a fusão na repetição no espirito que contempla.

Desta forma, ao colocar o hábito na base da estruturação das sínteses do Eu, ao seguir a afirmação de Condillac, para quem, o hábito é o fundamento de todos os outros fenômenos psíquicos, Deleuze procura retirar tais sínteses do fundamento de uma síntese geral formada pela unidade do Eu. Por isto, ele poderá dizer: “sob o Eu

1 P. 972 HUME, idem, p. 473 DELEUZE, Empirisme et subjectivité, p. 1054 PRADO JR., Hume, Freud, Skinner, p. 445 DELEUZE, Deux regimes de fous, p. 342

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que age, há pequenos Eus que contemplam e que tornam possíveis a ação é o sujeito ativo. Nós só dizemos “Eu” através dessas milhares de testemunhas que contemplam em nós; e sempre é um terceiro que diz eu”.6 Este Eu passivo que se encontra na base de todo fenômeno psíquico, este “sujeito larvar” não se define simplesmente pela receptividade, ou seja, pela capacidade de ter sensações, mas por contemplações que contraem o tempo e constituem o organismo anteriormente à constituição das sensações.

Memória e passado puro

Vimos como a primeira síntese do tempo funda o presente e baseia-se no hábito como processo de contração do tempo. No entanto, segundo Deleuze: “Passas é precisamente a pretensão do presente. Mas o que faz passar o presente e que se apropria do presente e do hábito deve ser determinado como fundamento do tempo. O fundamento do tempo é a memória”7. Assim, o hábito será a síntese originária do tempo, aquela que constitui a vida do presente que passa; Já a memória será a síntese fundamental do tempo, esta que constitui o ser do passado.

Deleuze afirma que a memória conhece duas formas de síntese: uma ativa e outra passiva. A síntese ativa da memória constitui o tempo como encavalamento (emboitement) de presentes. Pois: “o presente antigo e o atual não são como dois instantes sucessivos sobre a linha do tempo, mas o atual comporta necessariamente uma dimensão a mais através da qual ele representa o antigo, e na qual ele também se representa”8. Ou seja, esta dimensão ativa da memória equivale ao que o idealismo alemão chamava de Erinnerung: rememoração que internaliza o passado e, com isto, transforma a compreensão do presente. Nisto a síntese ativa da memória difere-se da síntese passiva do hábito com suas contrações do tempo. Pois a síntese ativa da memória vê o presente como espaço de transformação através da recognição do passado, o que não ocorre com o hábito. Assim, a síntese ativa da memória tem um duplo aspecto: reprodução, rememoração do presente antigo e reflexão, recognição do atual.

Mas a síntese ativa da memória se funda, por sua vez, em uma outra síntese passiva. Não a síntese passiva do hábito, mas uma síntese passiva (transcendental) própria à memória e que constitui o “passado puro”. Este conceito de passado puro apareceu inicialmente no pequeno livro de Deleuze sobre Bergson. Esquematicamente, podemos dizer que o problema da memória em Bergson visa

6 P. 1027 P. 1088 P. 109

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dissolver a confusão entre o Ser e o estar-presente. A lembrança nos mostra que, da mesma forma que não percebemos as coisas em nós, mas lá onde elas estão, apreendemos o passado lá onde ele está, em si mesmo, e não em nós, em nosso presente. Na verdade, há uma espécie de passado puro, de ser em si do passado que acaba por invadir o presente. Temos normalmente uma concepção estática, instantaneista e pontilhista do presente. O presente aparece normalmente como este instante que se dá no agora. No entanto, se há algum fenômeno que determina o instante é o fato dele sempre estar passando, sempre estar profundamente imergido no passado. Como dirá Deleuze: “Como um presente qualquer passaria se não fosse passado ao mesmo tempo que presente? Jamais o passado se constituiria se não fosse inicialmente constituído ao mesmo tempo que ele foi presente”9. Passado e presente não são assim momentos sucessivos, mas dois elementos que coexistem, o primeiro como o presente que não cessa de passar, como a virtualidade que habita o real, o outro como o presente que não cessa de ser.

Vemos com isto que Deleuze esta a insistir que o passado não foi apenas um “presente passado”, mas algo que nunca se atualizou completamente. Por isto, Deleuze afirma que este passado puro é: “o em-si do tempo como fundamento último da passagem” de um presente a outro. Esta experiência do passado puro é uma maneira de livrar o tempo das amarras da origem ou do originário. Se há uma passado puro, que nunca foi completamente presente, é porque falta ao tempo a dimensão da origem. Da mesma forma, o tempo histórico não pode ser visto como o tempo da queda desde a origem, o tempo do esquecimento e da degradação do tempo imemorial. Se não há nenhum presente completamente determinado, se ele é, desde sempre, atravessado pela força daquilo que quer passar, então não há fato bruto originário algum a ser procurado no passado.

Isto fica claro em um exemplo literário que Deleuze traz a fim de dar forma àquilo que ele entende por “passado puro”. Pois se a repetição modifica algo naquele que a contempla, tal modificação é indissociável da capacidade de operarmos uma síntese do tempo através da qual possamos penetrar o em-si do passado sem reduzi-lo ao antigo presente que ele foi ou ao presente atual. Pois tal redução equivaleria à submeter a repetição à litania do mesmo. Daí porque: “toda questão para nós é de saber se podemos penetrar na síntese passiva da memória”10.

Neste ponto, Deleuze apela à memória involuntária da reminiscência em Proust. Ao falar da reminiscência de Combray, Deleuze afirma: “Combray não ressurge como foi presente, nem como poderia ser, mas em um esplendor que nunca foi vivido, como um passado puro que enfim revela sua dupla irredutibilidade ao presente que ele foi, mas também ao presente atual que ele poderia ser, isto em favor de uma

9DELEUZE, Le bergsonisme, p. 5410 DELEUZE, Différence et répétition, p. 115

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telescopagem entre os dois”11. Já em Proust e os signos, ao falar dos signos sensíveis, Deleuze afirmava que esta felicidade proustiana do tempo redescoberto não podia ser descrita através de um mecanismo associativo entre dois momentos que se assemelhariam. A reminiscência era modo de acesso a um passado puro que mostra a essência de Combray: “ não em sua realidade, mas em sua verdade”12. Uma verdade que coloca em jogo circunstâncias e contingências múltiplas (como a que associa Combray e o sabor das madeleines).

Neste ponto, Deleuze afirma que toda reminiscência é erótica, que seja de uma cidade, que seja de uma mulher. Pois é sempre Eros que nos faz penetrar no passado puro. Esta é uma maneira do texto produzir um deslocamento importante. Para compreender como a repetição produz o acesso a uma diferença irredutível (aqui representada pelo conceito de passado puro) devemos nos deslocar da consciência cognitiva para a consciência desejante. Como se as estruturas da consciência desejante nos fornecesse a chave para a compreensão dos processos de relação a objetos que parecem difíceis de serem pensados a partir da estrutura da consciência desejante. Há algo no interior do desejo que nos abre para a experiência do passado puro e da repetição como modelo de síntese do tempo, para além do hábito e da memória.

O cogito fendido

No entanto, antes de passar à tal temática, Deleuze introduz uma espécie de epílogo em seu capítulo, isto a fim de falar da diferença entre o cogito cartesiano e o cogito kantiano. Este epílogo é fundamental pois visa localizar o lugar no qual um pensamento renovado do tempo se vincula à crítica das ilusões identitárias do sujeito moderno. Kant lembra que o “eu penso” é um modo de determinação de uma existência indeterminada (“eu sou”). Eu sou uma coisa que pensa. No entanto, este pensamento não pode determinar a existência em sua qualificação. Que algo seja pensável, isto não me fornecer a determinação do que há a pensar. Por isto, Kant lembra que a forma através da qual a existência indeterminada é determinável pelo “eu penso” é a pura forma do tempo. Minha existência indeterminada só pode ser determinada como existência de um sujeito fenomenal no tempo. O tempo é forma que me permite representar-me como objeto que aparece à meu sentido interno.

No entanto, esta pura forma do tempo não é atributo de uma consciência empírica. Minha existência como sujeito fenomenal não se confunde com a pura forma vazia do tempo que me permite me pensar. Para eu pensar esta pura forma vazia do tempo, tenho que me confrontar com algo que, por sua vez, não se submete às formas

11 Idem, p. 11512 DELEUZE, Proust e os signos, p. 76

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gerais da determinação. Por exemplo, a consciência empírica só é capaz de pensar o que pode ser intuído no tempo e no espaço. Intuição no tempo que obedece a leis de movimento, mudança e simultaneidade. Mas a forma do tempo não muda e não se movimento. Apreendê-la implica intuir o que não é representável. O que nos explica porque Deleuze afirma, sobre a forma do tempo: “A formalidade extrema está aí apenas para um informal excessivo (o Unförmliche de Hölderlin). Foi assim que o fundamento foi ultrapassado em direção a um sem-fundo, universal afundamento (effondement) que gira em torno de si mesmo e que só faz retornar o futuro”13.

Descartes só resolveria este problema através de uma afirmação instantaneista do cogito (“quanto tempo dura a certeza do cogito? A certeza do instante de minha enunciação”). Tal instantaneismo só pode ser superado através do recurso a Deus. Assim, a unidade suposta do Eu no tempo só tem como garantia a própria unidade de Deus. Por isto, Deleuze pode afirmar: “Deus continuar a viver enquanto o Eu dispor da subsistência, da simplicidade e da identidade que exprimem sua semelhança com Deus”14. Neste sentido, o questionamento transcendental, se levado ao extremo, permite a quebra da estrutura teológica que sustenta os atributos do Eu moderno.

É desta forma que Deleuze compreende a posição do Eu transcendental. Para ele, o corte entre o Eu transcendental e o Eu empírico é de tal ordem que, do ponto de vista do Eu empírico, o Eu transcendental é um outro. Pois não há continuidade entre os modos de determinação do Eu empírico e a apreensão da forma pura e vazia do tempo. Deleuze chega a afirmar que tal pura forma produz uma fenda, um Eu fendido (Je fêlé). “De um lado a outro, o eu é como que atravessado por uma fenda: ele é fendido pela forma pura e vazia do tempo”15. Desta forma, Deleuze pode afirmar que a descoberta do transcendental implica clivagem insuperável do Eu. “Assim, o je, o eu transcendental, é distinto do moi, do eu fenomenal, porque o tempo os distingue no interior do sujeito”16.

Na verdade, esta é uma maneira deleuziana de recuperar uma temática geral do estruturalismo. Ela consiste em aproximar transcendental e inconsciente. Tal colocação vem do fato da estrutura não ser dada de maneira imanente no campo fenomenal. Ao contrário, ela determina de maneira transcendente este campo e seus atores, que agem de forma inconsciente. Ao falar, os sujeitos não têm consciência da estrutura fonemática que determina seus usos da língua, da mesma maneira que, ao operar escolhas matrimoniais, os sujeitos não têm consciência dos sistemas de parentesco que determinam tais escolhas. Na verdade, eles reificam um objeto cujo valor viria simplesmente do lugar por ele ocupado no interior de uma estrutura articulada. Ou seja, eles acreditam que o valor vem do objeto, enquanto ele vem da

13 Idem, p. 12314 Idem, p. 11715 Idem, p. 11716 MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia, p. 112

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estrutura. Tudo se passa assim como se as relações com o outro, como se as ações ordinárias escondessem as mediações das estruturas sócio-lingüísticas que determinam a conduta e os processos de produção de sentido.

Esta é uma temática que encontramos também no Foucault de As palavras e as coisas. Ao examinar as características fundamentais da episteme moderna, Foucault dirá que, para os modernos, trabalho, vida e linguagem são como transcendentais que constituem a coerência a priori das multiplicidades empíricas nos campos da economia, da biologia e da filologia. No entanto, eles também representam um limite à representação de objetos, um limite à consciência cognitiva. Pois haverá aqui uma duplicação. Por exemplo, a linguagem em seu funcionamento é o que se dá a conhecer no interior de uma empiricidade como a filologia. Mas ela será também o que determinará previamente o modo de conhecimento dos sujeitos que procuram conhecer a linguagem. O trabalho em seu processo de produção do valor é o que se dá a conhecer na economia política. Mas é o trabalho que determinará previamente as formas da práxis dos sujeitos que procuram desvelar a origem do valor. Há um movimento duplo no interior do qual os objetos a conhecer são determinados pelos sujeitos e os sujeitos são determinados pelos objetos a conhecer. Assim, reencontramos este vínculo entre transcendental e inconsciente, ou seja, procurar compreender as condições de um pensamento transcendental para além dos limites da filosofia da consciência17.

Inconsciente e repetição

Isto talvez nos explique porque Deleuze precisa caminhar em direção ao conceito freudiano de inconsciente para dar conta de sua discussão sobre a diferença. No entanto, ele pensa o inconsciente como uma dimensão temporal que quebra a temporalidade própria à consciência. Para tanto, são as discussões freudianas sobre a compulsão de repetição que interessam Deleuze, assim como a estrutura recorrente da fantasia. É neste ponto que encontramos a guinada em direção às estruturas da consciência desejante.

Deleuze começa lembrando como o prazer baseia-se em uma forma de repetição, já que ele pressupõe a ligação e o investimento de situações distintas a partir de um principio de repetição de situações de satisfação pulsional. Tenho prazer, dirá Freud, quando reencontro situações que se assemelham a situações prazeirosas

17 O que não poderia ser diferente, já que para Foucault se trata: “de refaire une philosophie transcendantale en inscrivant le transcendantal ailleurs que dans la subjectivité, c’est-à-dire de dissocier le problème des conditions du savoir et de l’expérience du problème des formes a priori de la synthèse subjective”.( GUCHET, Xavier; Pensée technique et philosophie transcendantale, Archives de Philosophie 2003/1, Volume 66, pp. 119-144).

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que tive. A própria noção de fantasia aparece na teoria psicanalítica para explicar como submeto situações distintas à repetição de experiência primeiras de satisfação. É através da fantasia que o desejo opera sínteses do tempo.

No entanto, Deleuze insiste que há dois modos de síntese própria ao desejo: uma ativa e outra passiva. A síntese ativa constitui objetos reais, a síntese passiva constitui objetos virtuais. Ao falar de “objetos reais” Deleuze pensa na ideia freudiana de que o sujeito aprende a distinguir uma percepção de uma alucinação através do reconhecimento de uma prova de realidade. Esta prova de realidade permite ao Eu se orientar na ação realizando, assim, exigências de auto-conservação e de realização ativa de interesses.

No entanto, há um modelo de constituição de objetos que devem ser chamados de “virtuais” por nos colocar diante de objetos que nunca estão completamente determinados no presente, objetos que “faltam à sua própria identidade”, que “faltam a si mesmo”. Tais objetos são aqueles que animam nossas fantasias. Para Deleuze, eles são compostos de “passado puro” porque não são a repetição de um objeto originário que esteve em algum momento no interior da experiência vivida da consciência.

Lembremos a este respeito como, para Freud, fantasias são processos ligados à filogênese da espécie. O fato de as fantasias se repetirem com os mesmos conteúdos em uma multiplicidade de indivíduos, ou seja, o fato de as fantasias não serem a dimensão da singularidade insubstituível, mas da repetição constante, do “esquema”, demonstra, para Freud, que elas são marcas de acontecimentos transmitidos através de gerações. Por isso, podemos mesmo dizer que não existem fantasias individuais ou, se quisermos, não existem indivíduos no interior das fantasias. Há apenas “fantasias sociais”, processos transindividuais e supratemporais que insistem no interior de indivíduos. Por meio das fantasias, o sujeito se confronta com camadas temporais que não se esgotam na dimensão da simples experiência individual. Fantasias são uma dimensão fundamental da experiência da historicidade, pois elas são os espaços de atualização das promessas de felicidade que mobilizaram aqueles que me antecederam, que mobilizaram a história dos desejos desejados. Por isso, fantasias são camadas temporais que sempre serão relativamente opacas por nos colocar diante do problema referente à significação do desejo de outros que nos precederam, e que nos constituíram153. Como dirá Deleuze, “e mesmo nosso amor de criança pela mãe repete outros amores de adultos diante de outras mulheres, um pouco como o herói de Em busca do tempo perdido reencena, com sua mãe, a paixão de Swann por Odette”

Isto permite a Deleuze afirmar a existência de um princípio de repetição como “diferença sem conceito que escapa à diferença conceitual indefinidamente continuada” (1969, p.23). Lembremos como Deleuze recusa a idéia de que “repete-se

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tanto mais seu passado quanto menos dele se lembra, quanto menos se tem consciência de dele se lembrar — lembrem-se, elaborem a lembrança, para não repetir” (1969, p.25). Todo o desafio consiste em compreender que, para além da repetição de objetos e situações recalcadas que não encontram lugar no universo simbólico dos sujeitos, há uma “paixão da repetição” (DELEUZE,2000, p.128) que não pode ser eliminada através da atualização dos objetos que estariam a ela submetidos. O princípio de repetição está para além dos objetos repetidos, ou seja, a nudez da repetição é anterior à determinação do repetido. Como bem lembra Bento Prado: “Com princípio, ele transcende os estímulos ou as impressões e, como instância diferente delas, empresta-lhes, retrospectivamente, sua coesão” (PRADO JR., 2000, p.44). Princípio transcendente de repe-tição (puro habitus) que não se submete mais à síntese ativa comandada pelas apropriações reflexivas do conceito.

Todo o esforço de Deleuze consistirá, pois, em insistir que esta paixão da repetição como síntese passiva é exatamente aquilo que Freud trouxe sob o nome de ‘pulsão de morte’, uma vez que “ o tempo vazio enfurecido, com sua ordem formal e estática rigorosa, seu conjunto esmagador, sua série irreversível, é exatamente o instinto de morte” (DELEUZE, 1969, p.147). É a partir deste ponto que podemos compreender a afirmação fundamental de Deleuze: “O instinto de morte é descoberto não em sua relação com as tendências destrutivas, não em sua relação com a agressividade, mas em função de uma consideração direta dos fenômenos de repetição. De maneira bizarra, o instinto de morte vale como princípio positivo originário para a repetição, ai está seu domínio e sentido. Ele desempenha o papel de um princípio transcendental, enquanto que o princípio do prazer é apenas psicológico” (DELEUZE, 2000,p.27).

Mas é claro que, neste caso, a morte deve ser compreendida não mais como este retorno ao inorgânico, não mais a partir do modelo objetivo de uma matéria indiferente inanimada. A morte: “não responde a um estado da matéria, ela corresponde ao contrário a uma pura forma que abjurou toda matéria — a forma vazia do tempo” (DELEUZE,1969, p.147). E aqui chegamos em um ponto-chave. A confrontação com esta pura forma vazia do tempo não se dá através da apropriação reflexiva de uma c o n s c i ê n c i a - d e - s i q u e f u n d a m e n t a s e u c a m p o a p a r t i r d e o p e r a ç õ e s e rememoração. Confrontar-se com a pura forma vazia do tempo que se apresenta através da repetição elevada a princípio transcendente — e isto nós sabemos ao menos desde Hegel — só pode significar uma dissolução do eu como operador de sínteses ativas. Daí porque a confrontação com a paixão de repetição só podeser pensada como morte simbólica através da qual eu me deparo com “um estado de diferenças livres que não são mais submetidas à forma que lhes era dada por um Eu, que se desenvolve em uma figura que exclui minha própria coerência ao mesmo tempo em que a coerência de uma identidade qualquer. Há sempre um ‘morre-se’ mais profundo do que um ‘eu morro’” (DELEUZE, 1969, p.148).

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