deleuze - aula 1

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Introdução á experiência intelectual de Gilles Deleuze Aula 1 Duas imagens [Quadro Las meninas, de Velásquez] Creio que todos vocês conhecem este quadro. Trata-se de Las meninas, de Velásquez. Este quadro teve uma grande importância nos debates próprios à filosofia francesa contemporânea, já que é através de um comentário a seu respeito que Michel Foucault abre esta que é uma das obras mais conhecidas do pensamento francês do pós-guerra: As palavras e as coisas. A escolha de Foucault em começar com este quadro não deixava de ter uma certa ironia. Basta lembrarmos que ele foi pintado em 1656. Aqueles que leram A história da loucura sabem muito bem o que esta data representa. 1656 é também a data do edito de criação do Hospital Geral e, conseqüentemente, data do início desta experiência de internamento da loucura que irá marcar, de maneira, definitiva o modo de partilha entre a razão e seu Outro. Assim, através do comentário do quadro de Velásquez, Foucault irá descrever a figuração de um processo semelhante ao “grande internamento” analisado em A história da loucura. Trata-se do início deste processo de constituição do sujeito através da exclusão do que não se submete mais a um regime de saber marcado pela disponibilização do objeto através da representação. No caso do quadro de Velásquez, o que chama a atenção de Foucault é fundamentalmente o fato dele ser a figuração estética de um corte epistemológico, dele ser a “representação da representação clássica” 1 , já que seu motivo central é o próprio ato de representar, o próprio processo de ordenação do campo de visibilidade. Neste sentido, ele marca o advento da episteme clássica, toda ela fundada na noção de representação, e a obsolescência da episteme em voga da Renascença. Mas, tal como em A história da loucura, tal corte 1 FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 31

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Page 1: Deleuze - Aula 1

Introdução á experiência intelectual de Gilles DeleuzeAula 1

Duas imagens

[Quadro Las meninas, de Velásquez]

Creio que todos vocês conhecem este quadro. Trata-se de Las meninas, de Velásquez. Este quadro teve uma grande importância nos debates próprios à filosofia francesa contemporânea, já que é através de um comentário a seu respeito que Michel Foucault abre esta que é uma das obras mais conhecidas do pensamento francês do pós-guerra: As palavras e as coisas.

A escolha de Foucault em começar com este quadro não deixava de ter uma certa ironia. Basta lembrarmos que ele foi pintado em 1656. Aqueles que leram A história da loucura sabem muito bem o que esta data representa. 1656 é também a data do edito de criação do Hospital Geral e, conseqüentemente, data do início desta experiência de internamento da loucura que irá marcar, de maneira, definitiva o modo de partilha entre a razão e seu Outro. Assim, através do comentário do quadro de Velásquez, Foucault irá descrever a figuração de um processo semelhante ao “grande internamento” analisado em A história da loucura. Trata-se do início deste processo de constituição do sujeito através da exclusão do que não se submete mais a um regime de saber marcado pela disponibilização do objeto através da representação.

No caso do quadro de Velásquez, o que chama a atenção de Foucault é fundamentalmente o fato dele ser a figuração estética de um corte epistemológico, dele ser a “representação da representação clássica”1, já que seu motivo central é o próprio ato de representar, o próprio processo de ordenação do campo de visibilidade. Neste sentido, ele marca o advento da episteme clássica, toda ela fundada na noção de representação, e a obsolescência da episteme em voga da Renascença. Mas, tal como em A história da loucura, tal corte implica na exclusão daquilo que, para o regime de saber próprio à razão moderna, é desprovido de verdade. O objeto desta exclusão será a crença na capacidade cognitiva da semelhança. É isto que Foucault tem em mente ao dizer que o espaço aberto pelo quadro de Velásquez é solidário de um vazio essencial:

O desaparecimento necessário daquilo que funda a representação – daquele a quem ela assemelha-se e daquele aos olhos de quem ela é apenas semelhança. O próprio sujeito – que é o mesmo – foi elidido. E finalmente livre desta relação que a aprisionava, a representação pode se oferecer como pura representação2.

Ou seja, o sujeito pode enfim nascer como sujeito da representação, como aquele que está no interior do campo de visibilidade do saber. Mas este “estar” não deixa de ter sua peculiaridade. O sujeito moderno traz uma estrutura peculiar do estar no mundo. Analisando os motivos internos ao quadro, Foucault lembra que um de seus eixos é a constituição de um lugar, lugar fundado na intercambialidade absoluta dos objetos que 1 FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 312 idem, p. 31

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porventura irão ocupá-lo. O assunto central do quadro não está apenas ausente. Ele será encarnado a todo momento que o quadro for visto. Mas encarnado sempre no interior de uma relação de representação, já que uma imagem está lá: a imagem dos soberanos Felipe IV e sua mulher que aparece ao fundo, em um espelho. Espelho que: “restitui a visibilidade àquilo que permanece fora de todo olhar”3. Mas esta restituição expõe a verdade de toda imagem especular: a verdade de ser uma imagem formadora e conformadora, ao invés de simples dispositivo de descrição de semelhanças. Este espelho não é o espelho que apenas reproduz o objeto que a pintura já apresenta. Ele é espelho que se coloca como única condição de possibilidade do objeto a ser apresentado.

A identificação entre o olhar de quem contempla o quadro e a imagem do espelho é, por um lado, abolição de toda relação de semelhança; por outro, constituição de uma nova relação de representação. Relação na qual o sujeito não aparece apenas como fundamento soberano de toda visualidade, mas como fundamento apenas à condição de submeter-se a um regime amplo de visibilidade, a uma ordem da representação que lhe ultrapassa. Submeter-se a esta ordem, ser capaz de reconhecer processos de relação e de ordenamento, é condição para que o olhar possa ser constituído com tal e desempenhar sua função no interior do quadro.

No entanto, não esqueçamos como este fundamento é um estranho fundamento negativo. Ele não está lá, posto diretamente no campo de visibilidade. Ele está pressuposto, sem nunca poder estar totalmente posto. O sujeito moderno se manifesta assim como o que um dia Hegel chamará de “negatividade” (ele é o que não pode ser integralmente posto, ele é o que não se confunde completamente com suas próprias representações) e o que Deleuze chamará de transcendência (ele nunca é integralmente fenômeno). Uma negatividade e uma transcendência que, ao menos aos olhos de Deleuze, seriam astúcias supremas da representação. Seriam a maneira do pensar representativo pôr um limite, pôr um para além da representação, mas apenas para absorvê-lo e calá-lo. Apenas para dizer que o fora da representação é caracterizado exatamente por isto, por não poder ser representado, por ser um limite da representação, por não ter, em si, nenhum princípio positivo, nenhum princípio outro de organização. É a representação que fornece a ordem própria ao pensar com suas regras e seus processos de recognição. O pensar não saberia se mover em uma ordem outra. Tudo se passa como nestas sonatas onde a dissonância é aceita, mas à condição de permitir a reiteração, o retorno à uma ordem que aceita o que lhe nega apenas para finalmente poder triunfar.

[Quadro Tríptico: estudos do corpo humano, de Francis Bacon]

Este, por sua vez, é um quadro menos conhecido. Trata-se de Tríptico: estudos do corpo humano, pintado por Francis Bacon em 1970. Ele é um dos principais quadros analisados por Gilles Deleuze em um livro dedicado à obra de Bacon: Lógica da sensação. Não creio estar incorrendo em erro se afirmar que, para Deleuze, este quadro tem, para a contemporaneidade, a mesma função que Las meninas teve para aquilo que Foucault chama de Idade Clássica. Ele descreve uma operação que diz respeito aos modos de posição do que serve de fundamento à visualidade. Ele diz respeito, tal como em Las meninas, à encenação de um modo de funcionamento do saber que servirá de vetor de desenvolvimento para a os padrões de racionalidade de toda uma época.

3 idem, p. 23

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Tais colocações nos forçam a perguntar: quais os vetores de caracterizam, ao menos segundo Deleuze, a época de Estudos do corpo humano? Notemos inicialmente que, se no quadro de Velásquez, a estrutura pictural visa apresentar o lugar do sujeito como fundamento transcendente, no caso de Bacon trata-se de apresentar este fundamento que só pode aparecer lá onde a “dissolução do Eu” toma a cena. Esta não é apenas dissolução de um Eu determinado em sua identidade e individualidade. Ela é a dissolução de todo um padrão de ordenamento dependente da aceitação tácita do princípio de identidade e dos modos tradicionais de determinação de individualidades. Deleuze partilha um grande diagnóstico de época que podemos encontrar em autores tais distintos entre si como Adorno, Foucault, Lacan, Derrida, Lyotard. Diagnóstico é aqui a palavra mais correta porque se trata de identificar as causas de um sofrimento social. Nossa época sofre, mas ela não sofre, por exemplo, da indeterminação advinda da perda de relações substanciais e seguras que nos permitiam saber claramente nossos papéis sociais. Se quiséssemos utilizar uma metáfora ilustrativa de Deleuze, diríamos: ela não sofre de desterritorialização. Ela sofre por não suportar mais as amarras da identidade, da individualidade, do Eu. É deste sofrimento que, ao menos segundo Deleuze, os quadros de Bacon seriam feitos..

Vejamos, por exemplo, como Deleuze pensa os quadros de Bacon. Há sempre um processo de isolamento, de extração que permite construir um lugar no qual a figura pode ser exposta em sua nudez. Não há estruturas de relações (fundo/forma, claro/obscuro, profundidade de cores que permitiram variações e gradações, motivos subordinados). O que ocupa o resto do quadro são cores imóveis e absolutamente uniformes. Por isto, Deleuze pode afirmar não haver “modelo a representar, nem história a contar”4. Aqui, o isolamento aparece como garantia de ruptura com a narrativa e a representação. Pois estas figuras não estabelecem relações de figuração (embora não possamos dizer que elas são exatamente abstrações).

Sabemos que tais figuras são corpos, mas corpos que fazem um grande: “esforço sobre si mesmos para advir Figura”5, como um corpo que tenta escapar de si mesmo através de um de seus órgãos. Deleuze é sensível, por exemplo, ao fato dos corpos das pinturas de Bacon não terem exatamente rostos, mas cabeças, como se seu projeto de retratista fossa o de: “desfazer o rosto, reencontrar ou fazer surgir a cabeça sob o rosto”6. Em Mil Platôs, quando dedicar um capítulo ao rosto, Deleuze e Guattari dirão: “O rosto tem um grande futuro, à condição de ser destruído, desfeito. Em direção ao a-significante, ao a-subjetivo” 7. Se pensarmos como nossa ideia de individualidade está visualmente vinculada ao rosto e a seus traços, podemos imaginar o que significa tal processo de dissolução. Ele é, no fundo, procura da imagem em apreender uma zona objetiva de indiscernibilidade, zona de indecidibilidade que nos remete a um estranho “fator comum” anterior a constituição de individualidades. Fator comum entre o homem e o animal, entre o corpo e a carne (viande).

Esta zona objetiva de indiscernibilidade anterior a toda constituição de individidualidades, fator comum que indica uma unicidade anterior a toda diferença ordenada pela representação é, no fundo, o verdadeiro objeto da filosofia de Gilles Deleuze. Que toda a experiência intelectual do filósofo da diferença, do nomadismo, da desterritorialização seja animada pela procura das condições para pensar a unicidade, esta unicidade que está em nós e cuja potência nos atravessa: eis algo que, como veremos no

4 DELEUZE, Logique de la sensation, Paris, Seuil, 2002, p. 125 idem, p. 236 idem, p. 277 DELEUZE e GUATARRI, Mille plateaux, Paris: Seuil, 1980, p. 270

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decorrer deste curso, não deve mais nos surpreender. Veremos como, neste sentido, devemos seguir uma indicação preciosa de Alain Badiou: “O problema fundamental de Deleuze não é certamente liberar o múltiplo, é dobrar o pensamento a um conceito renovado do Uno”8.

Mas se nós voltarmos a Bacon, veremos que as condições para pensar tal zona de indiscernibilidade estão vinculadas a um certo resgate do que Deleuze chama de “sensação”, ou seja, isto que: “age imediatamente sobre o sistema nervoso, que é a carne”9. Ele chega mesmo a falar da “violência” de uma sensação que não passa pela estruturação do diverso da experiência pela forma do conceito, que não passa pela espontaneidade de uma subjetividade constitutiva com suas formas a priori, que, por isto, pode se manifestar como “agente de deformação dos corpos”.

Não seria difícil enxergar, neste recurso ao imediato da sensação que parece descartar o trabalho de um conceito que sempre será confundido com a representação, alguma evidente forma de irracionalismo? Ou não seria melhor dizer que o sensível impõe sua “lógica”, que há uma “lógica da sensação” que exigiria uma “remodelação da estética transcendental, que libera o sensível de sua domesticação ou unificação conceitual”10? Uma remodelação que exigiria nos despedirmos de um conceito de sujeito que Francis Bacon parece nos dizer que ele já não nos diz mais respeito. Uma remodelação que seria condição sine qua non para apreendermos o “ser do sensível”11 (notemos esta construção, pois ninguém, em filosofia, fala impunemente do ser).

Sugiro levarmos a segunda hipótese a sério e descartarmos a primeira. Devemos descartá-la com a tranqüilidade de um leitor atento de Deleuze, Bento Prado Júnior. O mesmo Bento Prado que respondeu, nos seguintes termos, a uma pergunta sobre o pretenso irracionalismo do filósofo francês: “Irracionalismo é um pseudoconceito. Pertence mais à linguagem da injúria do que da análise. Que conteúdo poderia ter, sem uma prévia definição de Razão? Como há tantos conceitos de Razão quantas filosofias há, dir-se-ia que irracionalismo é a filosofia do Outro. Ou pastichando uma frase de Émile Bréhier que, na ocasião, ponderava as acusações de ´libertinagem’, poderíamos dizer: “on est toujours l´irrationaliste de quelqu´un”12.

Da peculiariedade da experiência intelectual de Gilles Deleuze

Dito isto, devemos nos perguntar sobre uma questão de método de leitura: qual a melhor maneira de abordar a experiência intelectual de Gilles Deleuze? De fato, esta não é uma questão simples, já que uma análise de sobrevôo parece nos apresentar uma obra fragmentada e dispersiva. Grosso modo, conseguimos enxergar três grandes fases.

A primeira começa com seu primeiro livro, publicado em 1953, quando o autor tinha então 28 anos. Trata-se de uma tese de mestrado, dirigida por Jean Hyppolite, sobre David Hume intitulada Empirismo e subjetividade. Durante oito anos, Deleuze não publica nada. Segue-se então uma seqüência de monografias que parecem firmá-lo como um historiador atípico da filosofia. São textos sobre Nietzsche, Kant, Bergson e Spinoza, isto além de dois livros sobre escritores: Marcel Proust e Sacher-Masoch. “Historiador atípico”

8 BADIOU, Deleuze: o clamor do ser, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997, p. 189 DELEUZE, Logique de la sensation, p. 3910 PRADO JR., Erro, ilusão, loucura, São Paulo, Editora 34, 2004, p. 24711 DELEUZE, Différence et répétition, p. 18212 PRADO JR., idem, p. 256

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porque, a primeira vista, é difícil identificar o que vincularia autores aparentemente tão distantes entre si como Hume, Nietzsche, Spinoza, Kant e Bergson. Mas se colocarmos um pouco de lado Kant, já que, segundo o próprio Deleuze, tratava-se de fazer um livro sobre “um inimigo sobre quem procuro mostrar como ele funciona, quais são seus mecanismos”13, veremos uma certa ligação patrocinada pela possibilidade recuperação de uma filosofia da imanência capaz de ser “a elaboração escrita de uma forma singular de intuição”14. Como ele mesmo dirá: “Desenhar um plano de imanência, traçar um campo de imanência, todos os autores dos quais me ocupei fizeram isto (mesmo Kant quando ele denuncia o uso transcendental das sínteses, mas ele se limita à experiência possível e não à experimentação real)”15.

Mas por que afinal a contemporaneidade precisaria reconstruir as condições para pensar a imanência? A resposta só será dada de maneira articulada através de dois livros que marcam a sistematização daquilo que estava em gestação durante todo este longo trajeto na história da filosofia. São eles: Lógica do sentido e, principalmente, Diferença e repetição, sua tese de Doutorado de Estado orientada por Maurice de Gandillac e publicada em 1969 (a tese suplementar era Spinoza e o problema da expressão, orientada pelo cartesiano Ferdinand Alquié).

Estes são, do ponto de vista da elaboração filosófica, os dois livros mais importantes de Deleuze e aqueles que determinam o que poderíamos chamar de um “programa filosófico” marcado sobretudo por aquilo que o filósofo francês entende por um “anti-hegelianismo” generalizado. A crítica ao hegelianismo é, no fundo, a crítica a uma tradição filosófica (cujas raízes se encontrariam em Platão, mas que englobaria ainda Descartes) incapaz de escapar das amarras de um pensamento da representação e de alcançar a identidade imediata. Impossibilidade, que no caso de Hegel, consistiria em criticar a representação, em insistir em seus limites, contradições e antinomias, insistir na negatividade que tais limites e contradições acarretam, mas sem ser capaz de pôr uma outra ordem positiva em seu lugar, sem ser capaz de realmente ultrapassar as dicotomias e os lugares que o pensamento articula (essência/aparência, necessidade/contingência, objetividade/subjetividade, forma/conteúdo). Uma impossibilidade de ultrapassar lugares que Deleuze chama de nomos sedentário. Platão, Descartes e Hegel: filósofos do nomos sedentário.

No entanto, esquecemos muitas vezes como esta crítica é sobretudo moral, até porque, um pouco como em Nietzsche, a crítica do conhecimento e a critica das categorias lógicas do pensar (identidade, diferença, unidade, repetição) têm sempre um fundamento moral, isto no sentido delas visarem um certo ethos por trás dos modos de operação da razão. De onde vem o medo por aquilo que não se submete ao conceito? De onde vem o medo do caos? Por que compreendemos a diferença como negatividade que pode ser superada pelo auto-movimento do conceito? De onde vem esta paixão pelo sistema e pela totalidade? Por que continuamos a falar em alienação quando estamos em uma posição na qual não mais nos reconhecemos, já que se alienar significa perder uma identidade, exilar-se de uma essência, ou seja, insistir na necessidade de não abandonarmos a noção mesma de essência? Por que compreendemos as individuações como produção de identidades estáveis e fixas? Por que ainda estamos aferrados ao sujeito quando vemos se abrir diante de nós uma zona de indiscernibilidade anterior à formação mesma da dicotomia sujeito-13 DELEUZE, Pourparlers, Paris, Minuit, p. 1414 BADIOU, idem, p. 4715 DELEUZE, idem, p. 199

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objeto? Todas estas perguntas receberão respostas ligadas, á sua maneira ao campo da moral. Trata-se de um ethos que deve se afirmar através das operações da razão, trata-se de, no fundo, validar uma forma de vida.

Por exemplo, uma das operações filosóficas maiores de Lógica do sentido e Diferença e repetição é a recuperação da noção de simulacro, ou seja, desta imagem que não é representação de um modelo, não é cópia de um modelo, mas cópia da cópia e que, por isto, contesta a relação de subordinação entre cópia e modelo. Mas o questionamento da relação ao modelo é, no fundo, questionamento da essência do fundamento, já que não posso mais garantir uma partilha das imagens, quais imagens têm relação ao fundamento e quais não o tem, quais são boas imagens e quais são imagens ruins. Até porque fundar é aqui estabelecer o existente através da sua relação a um padrão que me permite orientar-me no pensamento. Daí porque a essência do mal não é a posição de uma nova ordem, mas a confusão, o embaralhamento, a impossibilidade de julgar, a profusão dos simulacros. Ou seja, através da crítica ao simulacro, Platão procuraria afirmar uma visão moral do mundo.

Nós havíamos partido de uma questão: por que afinal a contemporaneidade precisaria reconstruir as condições para pensar o imediato e a imanência? A resposta de Diferença e repetição e Lógica do sentido será: para escapar do hegelianismo e de sua maneira de desqualificar o imediato através de um pensamento da negatividade. Veremos tudo isto com calma no interior do nosso curso. No entanto, não deve ter escapado a vocês o caráter circular e desonesto da minha resposta. Por que a contemporaneidade precisa reconstruir as condições para pensar o imediato? Para escapar de uma forma de pensar que nos impede de pensar o imediato. No entanto, Deleuze tem uma resposta melhor do que esta.

Podemos mesmo dizer que tal resposta é a essência do que devemos chamar de segunda fase do pensamento deleuzeano, esta que começa em 1972 e que é marcada pela sua colaboração com Felix Guatarri. A obra central desta fase é Capitalismo e esquizofrenia com seus dois grandes volumes: O anti-Édipo, de 1972, e Mil platôs, de 1980. Para além de seu caráter militante e polemista, o que devemos guardar destes livros a maneira peculiar com que eles tentam articular a reflexão filosófica anterior de Deleuze a um diagnóstico social de larga escala a respeito do capitalismo e de suas formações sócio-culturais. À sua maneira, Deleuze quer dizer que o hegelianismo, suas formações e sua maneira de insistir na identidade, no conflito que deve ser superado, na negatividade reativa são, no fundo, a ideologia do último estágio do capitalismo avançado. Este capitalismo marcado pela territorialização e pela produção regulada de identidades que na mesma época leva Theodor Adorno a afirmar: “a identidade é a forma originária da ideologia”.. A crítica da razão se transforma, a partir de então, em crítica social.

É desta forma que devemos compreender o sentido maior de O anti-Édipo. O título não poderia ser mais claro: trata-se partir da crítica deste dispositivo de socialização do desejo que a psicanálise chama de complexo de Édipo. Mas trata-se de partir dele a fim de lembrar como o modo de socialização no primeiro núcleo de interação social, ou seja, na família, determinará os modos de interação em esferas mais amplas da vida social (as instituições, o Estado, o Capital). Ao colocar a reflexão sobre o desejo e seu destino no cerne de uma reflexão sobre o social, Deleuze não fazia outra coisa que realizar aquilo que ele havia afirmado em seu primeiro livro, sobre David Hume: “só uma psicologia dos afetos pode constituir a verdadeira ciência do homem”16. O que mostraria a coerência

16 DELEUZE, Empirisme et subjectivité, p. 1

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profunda entre o passional e o social. A riqueza de O anti-Édipo está exatamente aqui, no fato de ter realizado o projeto de pensar a natureza dos vínculos entre o pathos e o socius a partir de uma perspectiva de tentativa de renovação da crítica ao capitalismo animada pelos movimentos de maio de 68. Vínculos estes que permitirão uma das operações centrais dos últimos quarenta anos: a elevação do corpo à condição de dispositivo central da política. Transformar seu corpo em espaço de manifestação da liberdade, espaço de afirmação de um projeto de estetização de si, de construção plástica e performativa da multiplicidade. Conjugar a “plasticidade” do corpo. Todas estas colocações aparecem para nossa sensibilidade contemporânea como dotadas de forte potencial disruptivo. Como se tivéssemos deslocado nossas aspirações de reforma social para dentro do corpo, como se tivéssemos transformado o impulso de reforma social em reforma do corpo e de suas potencialidades. Tais processos seriam impossíveis sem O anti-Édipo.

Mas voltemos à psicanálise. Durante anos, Deleuze fora um leitor atento da Freud, Melanie Klein, Lacan, Winnicott, entre outros. Basta ver a precisão de um trabalho sobre o masoquismo como Apresentação de Sacher-Masoch, assim como páginas brilhantes dedicadas à reflexão sobre a pulsão de morte em Diferença e repetição e sobre os objetos parciais em Lógica do sentido. Deleuze seguira de perto a produção de Jacques Lacan, que chegou mesmo a convidá-lo a fazer parte de sua Escola Freudiana de Psicanálise . No entanto, a partir de O anti-Édipo esta posição de acolhimento da psicanálise se inverte radicalmente. Um trajeto extremamente semelhante acontecerá com Michel Foucault a partir de História da sexualidade. Nos dois casos uma relação inicial de aproximação dará lugar a uma compreensão da psicanálise como fundamento dos processos de reprodução social e de miséria afetiva no capitalismo. No caso de Deleuze, a crítica era clara: a maneira com que a psicanálise procura socializar o desejo produz um desejo marcado pela negatividade, pela perda, pelo conflito, desejo como falta que nos remete, afinal de contas, a Hegel. Toda a moral hegeliana da negatividade estaria presente na clínica psicanalítica graças, principalmente, a Jacques Lacan. Contra isto, uma verdadeira crítica social deveria começar como clínica capaz de produzir um curto-circuito nesta forma de socialização.. Esta seria a função de conceitos como: corpo sem órgão, máquina desejante, inconsciente como fluxo, e tantos outros. Uma clínica que Deleuze Guatarri chamarão de esquizo-análise É sempre bom lembrar como, nesta tentativa de constituir uma clínica a partir de uma reflexão filosófico sobre o modo de ser do desejo, Deleuze acabava por dar seqüência a uma certa tradição francesa que podemos encontrar em Sartre com sua psicanálise existencial.

Por fim, haveria uma última fase do pensamento deleuzeano a partir de Mil Platôs. Ela estaria marcada por um certo retorno à história da filosofia (através de monografias sobre Spinoza e Leibniz) e, principalmente, por grandes trabalhos sobre estética visual, como: Imagem-tempo, Imagem-movimento (sobre o cinema) e Lógica da sensação (sobre Francis Bacon). Deleuze sempre escrevera sobre a literatura (Proust, Sacher-Masoch, Kafka), mas estes estudos demorados sobre a imagem não deixavam de ser surpreendentes, sobretudo se lembrarmos como Deleuze havia, em Diferença e Repetição, proposto uma filosofia capaz de ser a “crítica radical da Imagem e dos ‘postulados’ que ela implica” ou ainda, ser capaz de operar uma “luta rigorosa contra a Imagem, denunciada como não-filosofia”17. Esta crítica da Imagem com suas ramificações profundas na tradição filosófica francesa do século XX, será revista por Deleuze nos anos 80, isto graças à identificação de

17 DELEUZE, Différence et répétition, p. 173

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um novo regime de imagens vindo do cinema e, principalmente, da pintura pós-abstrata, esta que, como a pintura de Francis Bacon, resgata a figura em sua potencia de não-figuração, em sua forma de disposição do que não se reconhece mais na sua própria forma.

Alguns anos antes de morrer, Deleuze escreverá uma última contribuição com Félix Guatarri, uma espécie de obra póstuma em vida na qual eles se propõem a responder esta questão “que enfrentamos numa agitação discreta, à meia-noite, quando nada mais resta a perguntar”, uma questão própria àqueles que “desfrutam de um momento de graça entre a vida e a morte”18, a saber, O que é a filosofia?

Teoria e prática

Mas estas passagens entre história da filosofia, clínica, crítica social e estética no interior de uma experiência intelectual como a de Gilles Deleuze: o que elas podem querer significar? O que pode querer significar este movimento que parece exigir uma indistinção entre campos autônomos de saber, entre reflexão e empiricidades? No fundo, esta questão, ao menos segundo Deleuze, nos leva diretamente a um dos problemas maiores da filosofia contemporânea: os modos de relação entre teoria e prática.

A este respeito gostaria de lembrá-los de uma entrevista de Deleuze feita por Michel Foucault na qual Foucault começa colocando a questão: “Um maoísta me dizia : ‘ Sartre, eu compreendo bem porque ele está conosco, porque ele faz política e de que forma ele faz; você, em última instância, eu compreendo um pouco, você sempre colocou o problema do encarceramento. Mas Deleuze, este aí eu realmente não compreendo nada”19.

A resposta de Deleuze não deixa de ser surpreendente. Ele afirma estarmos vivendo de uma outra maneira as relações entre teoria e prática. Até então, ou concebíamos a prática como uma aplicação da teoria, como a exposição de um processo que já havia sido descrito e conceitualizado pela teoria, ou fazíamos a operação inversa e concebíamos a prática como a força criadora de uma forma de teoria a vir, ou seja, uma prática soberana que despediria a teoria ou, no máximo, que a obrigaria a se curvar diante de seu peso. Nos dois casos, concebemos as relações entre teoria e prática como a subsunção de um pólo pelo outro. Pensamos a aplicação como uma operação guiada por relações de semelhança ou analogia. Onde a prática é análoga à teoria? Onde a teoria se assemelha ao que vemos na prática? Mas, e se ao invés de pensarmos relações hierárquicas e verticais, começássemos a pensar relações horizontais? Poderíamos pensar que, quando a teoria se concentra em seu próprio domínio, ela começa a se confrontar com obstáculos, com muros que a impedem de avançar, que nos obrigam a substituí-la por um outro tipo de discurso, uma prática que nos permita passar a um domínio diferente. Graças a esta passagem, poderemos resolver um problema na teoria, retornar a teoria em outro ponto, a partir de outro lugar. Assim: “a prática é um conjunto de passagens (relais) de um ponto teórico a um outro, e a teoria, uma passagem de uma prática a outro. Nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro e é necessário a prática para perfurar este muro”20.

Deleuze não poderia ser mais claro: para continuar a fazer esta teoria pro excelência que é a filosofia, faz-se necessário saber abandonar a filosofia, passar a um outro domínio, a uma prática como a clínica, a estética, a crítica social. Mas este abandono é o que nos permite continuar a fazer filosofia. Parafraseando Nietzsche, a verdadeira filosofia é capaz 18 DELEUZE, O que é a filosofia? , p. 919 DELEUZE, L´île deserte, p. 28920 idem, p. 289

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de se perder para poder se realizar. É indiferente dizer que a prática é uma maneira de permitir a teoria avançar, de resolver um problema teórico que nos bloqueia ou que a teoria é uma maneira de permitir a prática avançar, de resolver um problema prático que nos bloqueia. É indiferente porque o movimento de passagem de um pólo a outro é constante (o que todos os grandes filósofos do século XX compreenderam: Foucault com suas passagens à análise das instituições, Adorno com suas passagens em direção à sociologia e à crítica da cultura, Wittgenstein com seus abandonos da filosofia em direção à análise da linguagem ordinária). Em última instância, era isto que o maoista de Foucault tinha dificuldade em compreender. Compreender que o político, enquanto campo de forças que visam implementar modificações estruturais em nossas formas de vida, enquanto campo de forças que visam impedir o bloqueio e a mutilação de uma vida que pode ser maior do que atualmente é, está presente na recuperação da duração em Bergson e nas experiência clínica de La Borde, ou melhor, está presente na passagem de um campo de problemas a outro. Maneira de afirmar que toda crítica social vigorosa é uma crítica da razão, e toda crítica da razão que vai às últimas conseqüências é uma crítica social. Veremos isto no interior de nosso curso.

Estrutura do curso

Como vocês sabem, nosso curso irá apenas até a leitura de O anti-Édipo, embora as últimas duas aulas serão dedicadas a desdobramentos do pensamento deleuzeano no campo da política (Zizek, Badiou, Negri) e da filosofia, até porque eu gostaria de utilizar uma aula para comentar a leitura que Bento Prado Júnior faz de Deleuze. Gostaria de mostrar como uma certa recepção do pensamento deleuzano é um elemento fundamental de constituição da tradição filosófica que se desenvolveu neste departamento.

Como nosso curso terá 18 aulas, as outras 16 aulas serão organizadas em três módulos. No primeiro módulo, será questão da leitura deleuzeana da história da filosofia, em especial as monografias sobre Hume, Bergson, Nietzsche e Spinoza. Veremos como os principais conceitos deleuzeanos de maturidade serão construídos a partir de uma confrontação criativa com alguns autores maiores da tradição filosófica. Esta gênese poderá nos mostrar como, no interior de uma experiência filosófica, não devemos operar distinções estritas entre história da filosofia e constituição de um programa filosófico singular. A historia da filosofia já é um campo tenso de produção de novos conceitos. Tentarei demonstrar como estas leituras de Deleuze se enquadram no interior de uma debate de idéias que definir o pensamento francês nos anos cinqüenta e sessenta e que gira em torno do estruturalismo, da fenomenologia e de um certo marxismo. Este módulo deverá ter em torno de cinco aulas expositivas.

O segundo módulo será dedicado a leitura de Lógica do sentido e, principalmente, de Diferença e repetição, até porque, a meu ver, trata-se do grande livro de filosofia de Deleuze. Devemos utilizar em torno de seis aulas para dar conta dos dois livros. Há algumas leituras de apoio que gostaria de sugerir neste módulo, isto a fim de esclarecer certos pontos de debate que encontraremos. A primeira é um pequeno texto de Lévi-Strauss chamado A estrutura dos mitos. Através dele, gostaria de discutir a maneira com que Deleuze tenta aproximar uma teoria do Ser como multiplicidade e alguns postulados fundamentais do estruturalismo. A segundo leitura é a Introdução ao primeiro livro da Enciclopédia de Hegel, este dedicado à Ciência da Lógica. Se possível gostaria também de trabalhar com vocês o trecho que vai do parágrafo 112 a 120 do mesmo livro, já que aqui

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Hegel discutirá seus conceitos de identidade, diferença e contradição. Como Diferença e repetição é profundamente marcado por um “anti-hegelianismo generalizado”, parece-me que o recurso ao texto hegeliano é fundamental para a compreensão da empreitada de Deleuze. Por fim, gostaria também de sugerir a leitura de um pequeno texto de Freud: Repetir, rememorar, perlaborar. Veremos como o recurso à noção freudiana de compulsão de repetição será fundamental para Deleuze pensar o vínculo entre diferença e repetição.

Por fim, teremos um módulo dedicado ao O anti-Édipo que deverá ser composto de cinco aulas. Também teremos aqui alguns textos de apoio, a começar pelo comentário de O anti-Édipo escrito por Jean-François Lyotard: Capitalismo energúmeno. Outros dois texto importantes para compreendermos o que está em jogo nas críticas de Deleuze a Guatarri à psicanálise são: Esboço para uma história do desenvolvimento da libido fundada na psicanálise de problemas mentais, de Karl Abraham e O desejo, a vida e a morte, uma sessão do Seminário II, de Jacques Lacan. Creio que estas leituras nos permitirão, por um lado, melhor contextualizar o debate entre Deleuze, Guatarri e as noções psicanalíticas de desejo, de objeto parcial e de corpo. Por outro, elas nos abrirão as portas para algumas questões políticas maiores derivadas deste livro de Deleuze e Guatarri.

Antes então de terminar a aula de hoje, eu gostaria de dizer duas ou três palavras mais pessoais a respeito do que me levou a apresentar para vocês, mais uma vez, um curso sobre Gilles Deleuze. Creio ser obrigado a dizer tais palavras porque aqueles que conhecem o que faço sabem que alguém que escreveu um livro chamado A paixão do negativo não parece ser a pessoa mais indicada para falar sobre a filosofia de Deleuze. Todos meus interesses maiores são por autores que Deleuze claramente afirma detestar (Hegel), dever criticar (Lacan) ou simplesmente ignorar (Adorno). Por isto, se decidi oferecer este curso sobre Deleuze é porque tive um professor que um dia me ensinou que só começamos realmente a pensar quando perdemos o medo de nos confrontar com autores que parecem nossos antípodas. Este professor era um profundo leitor de Sartre que, devido exatamente a esta crença, decidiu escrever uma tese sobre o aparente antípoda de seu autor: o mesmo Henri Bergson que irá influenciar profundamente Deleuze. Foi ele quem me mostrou, pela primeira vez, o interesse que pode existir na filosofia de Deleuze e, a cada dia que passa, tenho certeza de que sua própria filosofia em muitos pontos se encontrava, graças a caminhos absolutamente próprios, com dispositivos maiores do pensamento de Deleuze. Por isto, que este curso seja uma certa maneira de prestar uma pequena homenagem não apenas a ele, mas à forma de fazer filosofia que ele próprio representou. Um fazer filosofia que é, acima de tudo, o ato de pensar contra si mesmo. Se vocês me permitem, é isto que gostaria de fazer durante este semestre, é isto que gostaria de fazer junto com vocês.