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Revista da Faced, nº 10, 2006 195 Deixando o paraíso A emergência das representações e da linguagem: Comunicação preliminar RESUMO: Algumas idéias são introduzidas neste texto. No geral, podería- mos dizer: uma nova filogênese. O principal é o caminho que levou o homem a deixar o reino animal e vir a se tornar uma espécie singular. Como adquiri- mos um sistema de representações, como adquirimos a linguagem e como começamos a pensar? Alguns assuntos adicionais: uma lei de como funciona o neurônio; o rascunho de uma teoria do objeto; a anterioridade do sistema de representação à linguagem; o advento da biologia plástica; as gêneses da representação e linguagem; e, o pensamento como um acordo entre a estru- tura da linguagem e o arco das representações. Por fim, o convite para pensar as possíveis mudanças na educação que estas idéias introduzem. PALAVRAS-CHAVE: Filogênese; Representação; Linguagem; Biologia plás- tica; Educação. Apresentação Afora este trecho de apresentação, o presente artigo, cuja au- toria deve-se a Eduardo Sande Santosouza, está dividido em três partes, sendo a primeira, um texto introdutório no qual o autor convida o leitor a mergulhar na reflexão sobre a filogênese do humano segundo o seu entendimento. A segunda parte, subdivi- dida, inicialmente, em duas e depois em quatro, é a mesma que tem a quarta dessa segunda subdivisão dividida em mais quatro segmentos. A organização incomum na literatura sobre Educação está explicada na nota 2. Assim, o primeiro subtítulo, De uma filogênese possível com base em uma descontinuidade, juntamente com o outro, A concepção de uma biologia plástica e da automorfogênese cerebral constituem o conteúdo da segunda parte do texto, parte esta que está resumida pelo seu título central: Filogênese poliética. Após, há, então, o terceiro e último segmento do artigo que antecede uma listagem explicativa das siglas usadas. A primeira da segunda parte do texto corresponde a um bre- ve exercício introdutório ao tema da reflexão proposta. Neste exer- cício, o autor opõe a idéia de unidade do ente à de sua “perma- Dinéa Maria Sobral Muniz Professora adjunta da Faculdade de Educação/UFBA [email protected] Eduardo Sande Santosouza Doutorando em educação do PPGE da FACED/UFBA Bolsista CAPES [email protected] miolo FACED 10.pmd 16/8/2006, 11:54 195

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Revista da Faced, nº 10, 2006 195

Deixando o paraísoA emergência das representações

e da linguagem:Comunicação preliminar

RESUMO: Algumas idéias são introduzidas neste texto. No geral, podería-

mos dizer: uma nova filogênese. O principal é o caminho que levou o homem

a deixar o reino animal e vir a se tornar uma espécie singular. Como adquiri-

mos um sistema de representações, como adquirimos a linguagem e como

começamos a pensar? Alguns assuntos adicionais: uma lei de como funciona

o neurônio; o rascunho de uma teoria do objeto; a anterioridade do sistema de

representação à linguagem; o advento da biologia plástica; as gêneses da

representação e linguagem; e, o pensamento como um acordo entre a estru-

tura da linguagem e o arco das representações. Por fim, o convite para pensar

as possíveis mudanças na educação que estas idéias introduzem.

PALAVRAS-CHAVE: Filogênese; Representação; Linguagem; Biologia plás-

tica; Educação.

ApresentaçãoAfora este trecho de apresentação, o presente artigo, cuja au-

toria deve-se a Eduardo Sande Santosouza, está dividido em trêspartes, sendo a primeira, um texto introdutório no qual o autorconvida o leitor a mergulhar na reflexão sobre a filogênese dohumano segundo o seu entendimento. A segunda parte, subdivi-dida, inicialmente, em duas e depois em quatro, é a mesma quetem a quarta dessa segunda subdivisão dividida em mais quatrosegmentos. A organização incomum na literatura sobre Educaçãoestá explicada na nota 2. Assim, o primeiro subtítulo, De umafilogênese possível com base em uma descontinuidade, juntamentecom o outro, A concepção de uma biologia plástica e daautomorfogênese cerebral constituem o conteúdo da segunda partedo texto, parte esta que está resumida pelo seu título central:Filogênese poliética. Após, há, então, o terceiro e último segmentodo artigo que antecede uma listagem explicativa das siglas usadas.

A primeira da segunda parte do texto corresponde a um bre-ve exercício introdutório ao tema da reflexão proposta. Neste exer-cício, o autor opõe a idéia de unidade do ente à de sua “perma-

Dinéa Maria Sobral MunizProfessora adjunta daFaculdade de Educação/[email protected]

Eduardo Sande SantosouzaDoutorando em educaçãodo PPGE da FACED/UFBABolsista [email protected]

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nente transformação”. O segundo segmento dessa segunda parte,intitulado de A concepção de uma biologia plástica e daautomorfogênese cerebral, representa um eixo em torno do qualgiram as quatro subdivisões textuais desse segmento, obrigandoo autor a um contínuo retorno ao tema da concepção de sua bio-logia e da automorfogênese cerebral proposta, para, provavelmen-te, persuadir o leitor da convergência dos subtemas para o seueixo. A partir daqui, são desenvolvidas as quatro temáticas quesubjazem à sua concepção. Estão elas intituladas: Uma nova mo-delagem lógica para o objeto; Bipedalismo: causa, conseqüência ouvetor morfogenético?; O surgimento da representação, do objeto, dosujeito continuado e de um mundo associado e, finalmente, Osurgimento da linguagem e do pensamento. Este último tópico exi-giu do autor um detalhamento que foi construído em quatrosubtextos cujos títulos são: Do vínculo entre mundo real e demaismundos; A bilateralidade cerebral; As habilidades manual e facial:recentes aquisições teóricas e A gênese da linguagem. Todos ossubtextos correspondentes a tais subtítulos convergem para umeixo, sempre retomado ao modo do que foi feito com o tema daconcepção da biologia plástica e da automorfogênese cerebral. Sendoque este novo eixo está intitulado, como já foi mencionado, de Osurgimento da linguagem e do pensamento.

Ao dar por encerrado o artigo, o autor apresenta o que cha-ma de Conclusão-abertura, a terceira parte do trabalho, afirman-do o seu compromisso com o papel do educador, ao mesmo tem-po em que defende que o homem, de acordo com as concepçõesque apresenta, “se autoconstrói”, “é construído” e “se reconstróipermanentemente”. Com o título desta parte, está, segundo o queparece dizer, abrindo-se à possibilidade de interlocução, para tra-tar das idéias que, ao longo do trabalho, são introduzidas. Fica oconvite ao leitor para que aceite a provocação que o texto parecerepresentar.

Salvador, 14 de junho de 2006Dinéa Maria Sobral Muniz

Introdução1, 2

Uma pergunta nos provoca e instaura se como desconfiançamotivadora deste texto. É a seguinte: após nossos mais recentesesforços na busca que vimos realizando na tentativa de compreen-

(1) Adotaremos a estratégia dedeslocar para notas de rodapé adi-ções que funcionam como confirma-

ções ex post factum. Nestes casos,nestas notas, que identificaremos

com as letras EPF, serão citadas re-centes descobertas da neurobiologiaque caminhem na direção de confir-

mar nossas hipóteses. Adotar esteprocedimento foi a maneira que en-

contramos para tornar a leitura dotexto mais ‘limpa’ para os nosso

possíveis leitores.(2) A numeração adotada, neste

texto, seguirá a estratégia adotadano Tractatus por Wittgenstein: os nú-meros inteiros (1, 2 ...) apresentamo corpo principal do texto; os núme-

ros fracionados seqüenciais (1.1,1.2 ...) apresentam desdobramen-tos deste corpo principal; os núme-ros fracionados (1.01, 1.02 ...) ex-

plicações adicionais. A volta ao cursoprincipal trará a repetição parcial

de número e título.

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der o que somos e como viemos a ser3, estaremos aptos a proporuma filogênese inaugural? Se afirmativo: essa proposição pode terconseqüências para a educação? Quais? Desenvolveremos este es-crito como uma comunicação preliminar. Buscamos com isso a li-berdade especulativa e a instauração de um tempo posterior emque as hipóteses apresentadas poderão encontrar sua consistên-cia. A intenção é construir um ensaio prospectivo capaz de esti-mular o debate sobre suas premissas e, talvez, inspirar reflexões nocampo pedagógico. A tarefa é apaixonante, entretanto gigantesca.Precisa, além disso, adequar se à limitação do espaço editorial deque dispomos. Motivo que nos obriga a solicitar, aos nossos possí-veis leitores, compreensão. Optamos por tratar informações im-portantes, mas desvinculadas do objetivo central, de forma perifé-rica o que poderá apresentar algumas dificuldades à leitura.

Para concluir esta introdução, uma rápida explicação paraum procedimento incomum na academia: citaremos, muitas ve-zes, nossas próprias produções. Procedimento um poucoincomum no meio acadêmico justifica se, no nosso entendimen-to, no caso de textos autorais. Que pensamos ser o caso desseartigo. O possível vigor do pensamento, para cuja construçãofomos capturados, tensiona a tal ponto os quadros teóricos comque estamos acostumados, que somos muitas vezes levados, poruma espécie de mescla de fascinação e desejo, a considerar nossopensamento ou escritura de ontem, mesmo que nos pareça damais visceral cumplicidade, como de uma alteridade radical.

Filogênese poliética4

De uma filogênese possível com baseem uma descontinuidade

Durante milênios, a unidade do ente foi considerada, pormuitos pensadores, um fator preponderante e hegemônico parao entendimento do humano. Garantia de toda ação humana e dacristalização do mundo. Garantidor da cena em que esta açãopode, porventura, se desenrolar. A perenidade do ente –sejacontigenciada pela existência do ser vivo, seja levada para aquéme além dos limites da vida–, constitui o elemento operatório prin-cipal que parece necessário à maioria das interpretações de mun-do que temos estudado. Ilustrando a força deste paradigma, po-demos encontrar Freud em dificuldades quando se depara com a

(3) Reportamos aqui a toda umaprodução teórica que vimos desen-volvendo já a quase duas décadas eque tem em ‘A equação das almas’(ver referências) sua apresentaçãomais consolidada.(4) Poliética é uma noção propostapor nós mesmos. Tensiona com umaoutra noção: a dialética.

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proposição, ainda que pontual e aplicada ao caso da perversão,de um eu cindido em “A cisão do eu e seus mecanismos de defesa”(FREUD, 1980), um de seus últimos textos. Pois bem, o humanoque temos visto emergir da filogênese proposta por nós em umtexto anterior é absolutamente contingente e temporalmentepontual (SANTOSOUZA, 2004). Em outras palavras, nos arriscarí-amos a dizer, é um objeto5 em permanente transformação. Julga-mos que as implicações deste fato são importantes para qualquerárea de conhecimento que lide com o humano, sua formação esua transformação.

Com o objetivo de afastar qualquer possível confusão comenunciados teóricos anteriores que vêm mapeando esta anoma-lia6 do interior do paradigma da unidade é necessário afirmarsuas características essenciais: uma transformação contínua psí-quica e biologicamente determinada. Transformação que ocorre apartir seja da interação do homem com o mundo (principalmen-te o outro da espécie), seja da sua interação consigo próprio atra-vés do uso que faz da linguagem (seja da fala, seja do pensamentoenquanto fala silenciosa) e do seu sistema das representações (que,mais adiante, neste texto, será pensado e proposto como inde-pendente e anterior à linguagem).

A concepção de uma biologia plástica eda automorfogênese cerebral.

É necessário, para um melhor entendimento, retroagir às eta-pas preliminares que nos possibilitaram estas especulações.Estamos acostumados a ouvir falar da plasticidade cerebral7 e te-mos conhecimento da proposta freudiana para uma neurologiamoldada pelos acontecimentos psíquicos8. Entendemos, entretan-to, que a noção que precisaremos utilizar aqui, leva estaplasticidade a um maior grau. Vejamos porque pensamos assim.Supomos, com efeito, que alguns tipos de células se modificam ese multiplicam a partir de estados existentes no meio ao seu re-dor. Supomos, também, que toda célula embrionária é deste gru-po e algumas células especializadas, como os neurônios, mantêmesta característica. Mais do que isso; acreditamos que o conjuntodos neurônios, o cérebro, é de tal natureza que é capaz de alterarsua forma a partir de seu próprio funcionamento. Umaautomorfogênese. Esta é, em resumo, nossa concepção daplasticidade biológica. Nela, os fatos do mundo são capazes de

(5) A possibilidade de tratar o ho-mem como objeto pode nos ser as-

segurada, quiçá, pela arquitetura denossa filogênese e pela elaboraçãode uma teoria do objeto, propostaainda inédita e que vem sendo ela-borada em nossa tese “Gangues naEscola” em desenvolvimento na Fa-

culdade de Educação da Universida-de Federal da Bahia.

(6) Tomamos aqui a anomalia con-forme trabalhada por KUHN,

Thomas. A estrutura das revoluçõescientíficas. São Paulo: Perspectiva,

2005.(7) Entendida aqui como a capaci-

dade do cérebro de se recuperar delesões através da suposta substitui-

ção de áreas lesadas por outras pre-servadas.

(8) Ver as noções de Freud de bar-reiras de contato e vias de facilitação

em FREUD, Sigmund. Projeto parauma psicologia científica. EdiçãoStandard das obras psicológicas

completas de Sigmund Freud. Riode Janeiro: Imago, 1980.

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modificar, de maneira não reversível, a coisa biológica. Levada àssuas conseqüências, esta concepção, acreditamos, implica a pro-posição de que a morfogênese dos organismos pode, então, des-colar se do modelo finalista da genética clássica. Nesta, pareceexistir a proposição de uma fórmula que escrita por quem querque seja, um projetista universal, por exemplo, determina desde oinício o produto final que se obterá. Liberados deste legado e ba-seados em nossas proposições, queremos acreditar, que será pos-sível, por exemplo, pensar que o funcionamento maior ou menordos neurônios afeta não somente a morfologia dos cérebros, mas,também, a morfologia periférica dos organismos e vice versa. Emoutras palavras; um uso intensivo do aparelho motor pode terreflexo na morfologia cerebral e o desenvolvimento desta altera oprimeiro, mudando de forma importante à morfologia do corpo.

Uma nova modelagem lógica para o objeto.A teoria que apresentamos e que vimos desenvolvendo des-

de os impasses que encontramos no Projeto freudiano (FREUD,1980), foi capaz de traçar uma possível história das transforma-ções morfológicas dos cérebros (SANTOSOUZA, 2002). Pudemostraçar propostas para o caminho lógico de desenvolvimento des-de as redes neurais, os sistemas nervosos mais simples, até o maiscomplexo cérebro humano. Tivemos a oportunidade, para nossogládio, de antecipar, antes de se efetivarem, descobertas científi-cas recentes como, por exemplo, a morfogênese tardia dosneurônios e a identidade celular entre estes e as células glias. Odesenho conceitual-lógico do neurônio-glia nos permitiu formu-lar o que chamamos lei fundamental do funcionamentoneurônico: o neurônio é capaz de se formar, se manter, crescer edesaparecer em função do funcionamento dos outros neurônios emseu redor, mais precisamente, da quantidade de neurotransmissoresque encontra disponível em seu entorno (SANTOSOUZA, 2002). Estaproposição tem se mostrado essencial para o nosso entendimen-to das transformações morfológicas dos cérebros. A partir dela,foi possível reunir em um mesmo modelo soluções para as diver-sas causas implicadas em toda consciência possível de mundo.

O modelo conceitual que ousamos propor para o neurôniotrouxe consigo, para nossa surpresa, a emergência de uma novaabordagem formal: um objeto capaz de se associar por ser capaz dereceber e doar um mesmo tipo de partícula elementar. Haveria ou-tros objetos tais como o neurônio? Nossa pesquisa resultou afir-

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mativa. Encontramos o carbono e sua camada externa de elétronse o mercado e seu meio circulante: a moeda, como exemplos ime-diatos análogos ao cérebro e os neurônios. Surpreendemo noscom o fato de que esses três achados associavam se a importan-tes revoluções exponenciais. Começamos a pensar que estáva-mos diante de uma importante descoberta. Que havíamos alcan-çado, quiçá, um novo instrumental interpretativo.

A identificação desta característica especial (de se associarpor interação de partes), que ocorre a determinados objetos, comefeito, nos levou a argüir sobre os objetos que não a possuem. Foipossível, então, identificar dois outros tipos de objetos. Constata-mos que estes vinham sendo utilizadas pelo humano desde muitotempo atrás. Lográvamos, dessa maneira, uma abordagem doobjeto que nos pareceu nova. Estávamos verdadeiramente sur-preendidos. Como foi possível não ter nos percebido esse fatoantes? Como foi possível comunicar-nos nas diversas áreas doconhecimento quando nossos objetos eram de tipo diferentes?Foi possível pensar, a partir de então, o objeto como organizadoem três categorias ou classes organizadas a partir das interaçõesque são capazes de realizar com outros objetos. As duas classesidentificadas, nesse segundo momento, foram: a) objetos que têma capacidade de exportar e importar partículas elementares sem ne-nhuma causalidade identificável entre as interações que realizam; e,b) objetos capazes de estabelecer interações em que causalidades en-tre exportação e importação eram, supostamente, identificáveis. Amais importante aquisição, porém, provocada por estes desen-volvimentos foi constatar a existência de formas lógicas distintaspara o objeto.

A concepção...A noção da biologia plástica ganhou um ímpeto inesperado

quando identificamos a existência das retroações neurônicas.Constatamos, com efeito, a existência de retornos neurônicosdesde a musculatura até o cérebro, já conhecidas a muito tempo.Agora, entretanto, em virtude de nossas especulações, esse apa-rentemente trivial evento introduzia um novo e potente dínamoem cena. Pois agora, ao supor o retorno da produção sobre oprodutor e sobre células capazes de se transformar (os neurônios,segundo nossa lei fundamental do funcionamento neurônico),logramos construir um modelo em que o funcionamento do sis-tema é motor de suas próprias transformações. Conclusão: qual-

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quer incremento desse retorno implicaria em alteraçõesmorfológicas no cérebro. Pareceu nos que esse arranjo era capazde fornecer novas soluções para antigos e renitentes problemas!Como, por exemplo, o bipedalismo como motor das transforma-ções que, parecem, advieram dele.

Bipedalismo: causa, conseqüência ou vetor morfogenético?Há, com efeito, um momento que parece ter sido crucial, para

a humanidade, aquele em que nos tornamos bípedes. Este eventofoi utilizado entre outros por Freud e por Darwin como explica-ção causal da humanidade e sua cultura. Com efeito, para Darwin,a postura bípede, ao liberar os braços para os trabalhos manuais,deu origem ao processo de desenvolvimento sociocultural do hu-mano. Para Freud, este mesmo evento teve efeito semelhante poruma causalidade de outra natureza; ao afastar as narinas dosgenitais, proporcionou o início do processo de repressão sexual.Ainda hoje, o enigma da emergência da humanidade continua adesafiar teorias de diversos pensadores. Uma grande quantidadede hipóteses para sua solução tem sido proposta:

Mas indicações claras de bipedalismo – a característica que distinguiu os

antigos humanos dos outros macacos – são evidentes nas espécies mais

antigas conhecidas do australopithecus, que viveu na África por volta de

4 milhões de anos atrás. Idéias sobre a evolução do bipedalismo são co-

muns na literatura paleoantropológica.

C. Owen Lovejoy, da Kent State, propôs, em 1981, que a locomoção sobre

as duas pernas liberou os braços para carregar crianças e objetos. Recen-

temente, Kevin D. Hunt, da Indiana University, sugeriu que o bipedalismo

emergiu como uma postura de alimentação, por ter permitido o acesso a

alimentos que estavam fora do alcance. Peter Wheeler, da John Moores

University, Liverpool, acrescentou que, ao se erguerem, os antigos huma-

nos puderam regular melhor a temperatura corporal, expondo menos o

corpo ao calor abrasador africano.

A lista continua. Uma série de fatores provavelmente influenciou esse

tipo de locomoção. Minha própria pesquisa, conduzida em colaboração

com minha esposa, Márcia L. Robertson, sugere que o bipedalismo desen-

volveu-se em nossos ancestrais, pelo menos em parte, por ser menos

dispendioso energeticamente que o deslocamento sobre quatro mem-

bros. Nossas análise dos custos de energia do movimento em animais

demonstraram que, no geral, a maior demanda depende do peso do ani-

mal e da velocidade com que ele se desloca. O mais surpreendente no

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movimento bipedal humano é que ele é notadamente mais econômico

que o deslocamento em velocidade de marcha.”. (WILLIAM, 2004).

Propomos, a partir de nossas especulações, uma outra análi-se deste evento. Constatamos que, ao nos colocarmos comobípedes, atrofiamos, em conseqüência, a desenvolvida muscula-tura dos membros dianteiros9. Geramos, com isso, um motorperiférico de transformações: 1) a atrofia provocava menor ne-cessidade de neurotransmissores para colocar em movimento omúsculo; 2) esses neurotransmissores em excesso provocava ummaior desenvolvimento dos neurônios de retorno; 3) esse maiordesenvolvimento um incremento no arco de retorno ao cérebro;4) o incremento do arco de retorno neurônico pela nossa dedu-ção teria o potencial de provocar transformações morfológicasno cérebro10. Tínhamos acabado de encontrar o que procurávamos!Ao retorno encorpado que reconduz ao cérebro sua própria pro-dução demos o nome de arco retroativo motor ou endógeno quemereceu pela importância que adquiriu, em nossas especulações,ganhar um nome próprio: ARCM.

Pudemos constatar a seguir para nossa admiração do mode-lo lógico construído, que a atrofia de musculaturas previamentedesenvolvidas é um processo pelo qual parecem ter passado tam-bém alguns outros animais. Mamíferos, que retornaram aos ma-res, por exemplo, como as baleias e os golfinhos. O que nos deuuma interessante pista para explicar porque estes se constituem,na opinião da boa parte da comunidade científica, como as espé-cies mais ‘inteligentes’ deste ambiente11. Isso nos incentivava a iradiante, pois, segundo Kuhn, um novo paradigma se firma tam-bém quando começa a oferecer soluções para problemas científi-cos distantes daqueles que o originaram (KUHN, 2005). A hipóte-se da atrofia dos membros superiores, como passamos a chamála, tem, no nosso entendimento, o poder de recepcionar, no seuinterior, uma série de hipóteses anteriores, explicando-as e har-monizando-as. Outrossim, ao vincular a uma teoria de fundamen-to biológico, mudanças morfológicas e funcionais, pode apresen-tar um modelo amplo de entendimento para a gênese do huma-no. Esta pode ser uma grande vantagem. A sua maior desvanta-gem, por esse momento, é ser uma hipótese que se baseia emoutra hipótese, nossa lei fundamental do funcionamentoneurônico12.

(9) EPF Durante a evolução dos ver-tebrados os ‘centros do mielencéfaloficaram cada vez mais submetidos à

influência do córtex motor. Nestainstância superior de controle domovimento, que se estende por

uma faixa transversal no topo do cé-rebro, originam se todas as ativida-

des intencionais, tanto no caso deum felino carnívoro preparando se

para o salto como quando movi-mentamos a língua para falar.’

NEUWEILER, Gerhard. A origem denosso entendimento. In Scientific

Américan-Brasil nº 37, pag 66, SãoPaulo: Duetto Editorial, junho 2005.(10) EPF ‘Os filamentos da via pira-midal dos mamíferos estendem-seem primeiro lugar até os geradores

centrais de padrões na medula espi-nhal. Com isso, a parte anterior do

cérebro pode influenciar diretamen-te os centros motores da medula e,deste modo, controlar com mais fa-

cilidade as ações.’ NEUWEILER,Gerhard. A origem de nosso enten-

dimento. In Scientific Américan-Bra-sil nº 37, p. 67, São Paulo: Duetto

Editorial, junho 2005.(11) EPF ‘Os três planos hierárqui-

cos apresentados para o controle daatividade muscular valem para os

mamíferos em geral, mas neles co-meça a aparecer algo completamen-

te novo – uma aquisição que logoiria alterar em muitos aspectos o

comportamento dos primatas, em-bora só no homem assuma a máxi-

ma importância. O que surgiu foiuma “via expressa”, por assim dizer,ligando diretamente a parte anteri-

or do cérebro à medula espinhal,provocando um curto circuito nos

centros motores do mielencéfalo: achamada via cérebro espinhal, ou

via piramidal. Cerca de metade deseus filamentos neuronais vêm docórtex motor; e a outra parte, dasáreas pré motoras.’ NEUWEILER,

Gerhard. A origem de nosso enten-dimento. In Scientific Américan-Bra-

sil nº 37, p. 67, São Paulo: DuettoEditorial, junho 2005.

(12) EPF Recentemente encontra-mos, em texto científico, registro de

modificação morfológica que con-verge admiravelmente com nossa

hipótese lógica:‘Nos primatas ocorreainda outro acréscimo. Os

filamentos da via piramidal quecontrolam a mão e os dedos provo-

cam um curto circuito até mesmonos geradores de padrões e estimu-

lam diretamente os própriosneurônios motores, que se prolon-gam da medula até os músculos. É

provável que a peculiar destrezamanual dos primatas e do homem

funda se nesta ligação direta entre ocórtex cerebral e os neurônios mus-culares. Graças a ela, nós e os símiossomos capazes de mover os dedosindividualmente, de acordo com a

nossa vontade, coisa que outros ma-míferos, como os gatos, não conse-guem fazer.’ NEUWEILER, Gerhard.

A origem de nosso entendimento. InScientific Américan-Brasil nº 37, p.67, São Paulo: Duetto Editorial, ju-

nho 2005.

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A concepção...A proposta de que o ARCM retorna ao cérebro a própria pro-

dução cerebral e que com esse retorno transforma o, levou nos aidentificar uma nova espécie de objeto interacional (a quarta)ainda não prevista por nosso modelo formal: o objeto capaz deexportar uma partícula elementar e a seguir importá la. Nossomodelo agora tinha quatro tipos de objeto!

A concepção do ARCM nos levou a considerar a hipótese doretorno de um estado do homem de um momento anterior sobreele próprio no momento seguinte. Quer dizer, o retorno da confi-guração de ação motora do homem de um determinado momen-to sobre seu aparelho cerebral, no momento seguinte. Este even-to pode ter tido, como veremos a seguir, grandes repercussões13.

O surgimento da representação, do objeto, do sujeito conti-nuado e de um mundo associado.

Pode-se conceber, acreditamos, que a partir de um órgão desaída, a musculatura atrofiada, -cenário de unidade dos aconteci-mentos neurônicos14-, o que retorna sobre o aparelho nervosocentral são as configurações funcionais destinadas a gerar movi-mento. Mesmo considerando o caráter temporal desta unidade,pois a cada momento haverá uma hegemonia funcional distinta,é fácil imaginar que a expansão cortical correspondente criou nocérebro um aparelho com vocação unificadora. Associado funci-onalmente aos diversos aparelhos perceptivos motores. Associa-dos estes, por sua vez, às diversas funções fragmentadas desem-penhadas. Podemos agora, talvez, afirmar, a partir destas suposi-ções prévias, que o Homem estava diante de uma grande trans-formação de mundo. Dificilmente vivenciada antes por qualqueroutra espécie. Senão, vejamos:

– A resultante do encontro entre uma configuração de estí-mulos que retorna desde o mundo de um momento ante-rior que circula no ARCM e uma outra configuração queprovém do mundo no momento atual pode nos dar umanoção rudimentar de tempo. Este tempo rudimentar é tor-nado possível a partir da emergência do ARCM 15;

– A continuidade de elementos ‘fantasmas’, não mais pre-sentes, amplifica e expande o ARCm16, comum nos mamí-feros17. Durante o desenvolvimento de nosso pensamen-to, fomos levados à formulação de uma definição ‘dura’

(13) EPF Para que esta concepçãomostre se condizente é necessárioque a transformação anatômica doconjunto córtex cerebelo, isso é a viapiramidal, seja um receptor do re-torno dos estímulos que provémdesde o aparelho motor. Com efei-to: ‘Para que o córtex motor envieindicações de uma ação coordenadae adequada às necessidades e à si-tuação é necessária a integração deregiões cerebrais situadas imediata-mente à frente: as áreas prémotoras. Elas fornecem os progra-mas com a seqüência de estímulosnecessária para dirigir os movimen-tos a determinado objetivo. Paraisso, reúnem informações provenien-tes dos órgãos dos sentidos, damusculatura, e dos centrosassociativos na região anterior do cé-rebro. [...] Chama atenção o fato deque, já nos símios, a maioria dosfilamentos nessas vias rápidas quelevam à medula comandem ali jus-tamente os neurônios que controlammúsculos das mãos e dos dedos, eeste fenômeno acentua se nos huma-nos. Além disso, em nosso caso, osneurônios motores dos braços e om-bros recebem ordens diretamente“de cima”, da região anterior do cé-rebro. É por isso que os seres huma-nos podem atingir um alvo comgrande precisão, e os macacos nãoconseguem acertar nem uma únicavez a cabeça do prego com um mar-telo.’ NEUWEILER, Gerhard. A ori-gem de nosso entendimento. InScientific Américan-Brasil nº 37, p.66-67, São Paulo: Duetto Editorial,junho 2005. (Grifo em negrito denossa autoria.)(14) Os membros superioes são,aqui, considerados como órgão desaída de unidade a partir da sua ca-racterística intrínseca, nos mamífe-ros, qual seja: servir a qualquer ne-cessidade de locomoção motoracomo, por exemplo: a procura dealimento, a locomoção em busca deágua, o enfrentamento com outrosanimais, o coito etc.(15) Este tempo rudimentar está, éclaro, muito distante das diversas no-ções de tempo que temos hoje, masé uma espécie de tempo arcaico.(16) Ocorreu-nos denominar deARCm o correspondente nos mamí-feros do ARCM humano que se cons-titui a partir da atrofia dos mem-bros superiores.(17) É mister reconhecer que nãopodemos conceber uma ação conti-nuada motora como a perseguição auma presa, senão pela existência deum arcaico sistema desta espécie.

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para a representação: a continuação, através da circulaçãodinâmica, de elementos ausentes. Esta permite tratar o siste-ma das representações, a que já nos referimos antes nestetexto, de uma maneira operativa especial. Razão pela qualachamos que devemos destacar esta noção dando lhe umtratamento gráfico específico: RS. Desta forma, toda vezque for referenciado poderá trazer aos nossos possíveisleitores a lembrança desta especificidade;

– A constituição de objetos ganha um impulso inesperado.Se aceitarmos reconhecer que associações anteriores já ti-nham tornado possível à continuação dos ausentes (re-presentações) a partir, apenas, de fragmentos dos mesmos(eventos metonímicos), agora, a ampla teia associativaconstruída pode a partir de uma completa ausência fazer ohomem ‘alucinar’ o objeto. A produção dessa alucinaçãopode ser entendida através da combinação da biologia plás-tica e do incremento do ARCM. Enquanto o ARCM sofreincremento, o córtex vem se expandindo e suas associa-ções produzindo mundo onde, antes, só existia ação;

– A importância e incremento do ARCm previamente exis-tentes fazem que, através do retorno da configuração deestímulos anterior e seus sucessivos retornos seguintes,um fantasma se arraste ao longo deste arco tendendo aperenizar através da teia associativa algo que se torna umirredutível. Este irredutível pode, se assim quisermos, serreferenciado a partir de um nome: sujeito das representa-ções. Se geramos o filho é justo que o batizemos: SR. O SR éo emergente que corresponde ao RS;

– Ao aparecimento da representação, objeto e sujeito,corresponderá a construção de um mundo novo. A teiaassociativa fará que os diversos órgãos perceptivos sensoriaiscontribuam na construção do objeto. Este tem agregado a sivalores não imediatamente funcionais. Os nossos antepassa-dos começaram a construir categorias rudimentares. Como ofazemos ainda hoje quando somos bebês ou pequenos infan-tes. Entre estas categorias rudimentares podemos destacar omundo ou uma visão do mesmo como fundamental.

Logramos com nossa hipótese da atrofia, acreditamos, trazerpara o papel principal, na trama de causalidade da humanidade,

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um evento que sempre foi considerado secundário, quiçá umasimples seqüela: a atrofia dos membros superiores. Costumamosresumir a idéia principal desta concepção com uma frase de efei-to provocativa: a humanidade provém de uma atrofia.

A concepção...A expansão do córtex que, supomos, provocada pela atrofia

dos membros superiores aparece como especular à constituiçãodo ARCM. É, segundo nossa opinião, a face mais aparente destaprimeira grande exponencial de complexização por que passa ahumanidade. Pertence à categoria que chamamos bolhatransformativa em ‘A equação das almas’ (SANTOSOUZA, 2002).Devemos a ela e ao incremento progressivo do ARCM, segundonosso entendimento, um maior controle da habilidade manual.Característica que, apesar de ter sido colocada de lado, por muitotempo, começa a ser reconhecida pela comunidade científica comoimportante (ver adiante, neste texto). Esta maior habilidade éconseguida a partir de uma matriz de estímulos progressivamen-te enriquecida e pela existência de uma parte do ARCM que setornou perene, o SR. Este irredutível do ARCM, ainda que amorte-cido, dá ao SR , quando logra acontecer, o tempero de uma inter-pretação de mundo18. Note, leitor, que o que estamos propondonão é trivial. Vai, com efeito, no sentido contrário do muito quese acreditou nas últimas décadas no campo do conhecimentoocidental: propomos um RS que antecede à linguagem.

A expansão cortical que supusemos, por seu turno, segundonossa opinião, desempenhará uma função unificadora. O mundoe o sujeito se constituirão cada vez mais como unidades em cadalapso de tempo. Fragmentados ao longo do tempo como ‘fantas-mas’ de sujeito e mundo decaídos. Podemos propor que estes ‘fan-tasmas’ personificam um mundo não presente, ou seja, um mun-do não presente na cena vivenciada e, portanto, não presente naconsciência. Inconsciente.

A função do ARCM é pensada por nós como tendo duassubfunções importantes: a) a unificadora: capaz de somar o con-junto de estímulos ativos19 com os fantasmas de conjuntos an-teriores circulantes na matriz representacional do ARCM; e b) aintegradora: capaz de associar, a esta matriz, qualquer conjuntode estímulos neurônicos ativo. À primeira subfunção devemos ainstauração de um dispositivo metonímico. À medida que mais emais conjuntos de estímulos são integrados ao ARCM e associa-

(18) Um paralelo mais arcaico aeste maior habilidade motora gera-da por uma interpretação de mun-do podemos encontrar nos rituais decaça e acasalamento dos animais(principalmente os mamíferos). Ne-les, segundo nosso modelo permiteinterpretar, duas fontes sensoriaisdistintas (a fêmea no cio e o machooponente que desafia e é desafia-do) mesclam se em procedimentosque mereceram ser chamados de ri-tuais pelos pesquisadores.(19) Que, como já vimos acima, éuma característica presente pelomenos desde os mamíferos.

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dos entre si, menor é o conjunto de estímulos necessário ao de-sencadear das ações. A explicação deste efeito é relativamentesimples: colocar em movimento o aparelho que antes exigia umadeterminada quantidade de estímulos, agora, os exige em menorescala por contar com uma quantidade de estímulos de partida jápresente no ARCM. À segunda subfunção, devemos a próximagrande complexização no percurso do humano. Um dossubconjuntos de estímulos motores que, com efeito, serão asso-ciados à matriz constante é o da função fonadora. Ao ser integra-da, a função fonadora associa um potencial segundo arco retroa-tivo à unidade fantasmática circulante. Este segundo arco é res-ponsável por um tipo de interação especial, pois é exógeno.

O surgimento da linguagem e do pensamento.Um estímulo que enviado para o ambiente externo possa

retornar ao seu produtor, ou seja, possa ser reconhecido por elecomo um evento, é, na nossa opinião, um elemento organizadorpotencial. A partir desta suposição, acreditamos estarmos aptosa compreender o grande salto que ocorreu com o humano quan-do seu aparelho fonador foi associado ao seu RS.

A primeira e importante questão que se apresenta diante destanossa hipótese é a seguinte: desde que o aparelho fonador estevesempre à disposição como emissor de sons, por que propomosque sua incorporação ao ARCM se constituiu como fonte de mu-danças exponenciais? De forma sintética, podemos responder:porque no momento em que se associou ao ARCM, a fonaçãodeixou de ser um conjunto de atos eficientes para ser um conjuntode atos formadores20. Quer dizer, é um elo com causa: o RS, e conse-qüência: a linguagem. Mais ainda, passa a fornecer quantidades deestímulos que contribuirão com o desencadeamento das diver-sas ações motoras. Modalizando-as e sendo modalizado por elas21.Em um tempo posterior será capaz, quiçá, de determiná-las. Alinguagem, além disso, pode ser compartilhada com outros daespécie. O que significa que, a partir de sua emergência, um ele-mento constituinte da trama retroativa do um da espécie poderáinfluenciar as tramas retroativas de todos os demais. Os dois apa-relhos, o fonador e o auditivo, vão constituir um segundo arco,de igual qualidade formal que o primeiro, mas se distinguindodele por ser exógeno22 e compartilhado. Esse segundo arco, comessas características que acabamos de citar, gera um outro ele-mento importante de nossas especulações: o sistema de lingua-

(20) Atos eficientes devem ser en-tendidos como aqueles que tem uma

finalidade de ação sobre o mundobem determinada e atos formadores

como aqueles que originados pordeslizamento dos atos eficientes pa-recem que têm como conseqüência

apenas ser participe de uma organi-zação emergente.

(21) Repete, nesta modalização, omesmo processo de aquisição de

complexidade que examinaremosadiante para o ganho de habilidademanual. Modalização neurônica: pro-cesso pelo qual estímulos provenien-tes de processos associados, tempo-

ral, histórica ou epistemologicamente,são transferidos para outros conjuntos

de estímulos dando lhes um perfilque originalmente não possuíam.

(22) Assim como localizamos nas ba-leias e golfinhos exemplos de ARCM’sprovenientes de atrofias, reconhece-mos em alguns insetos como as abe-lhas e as formigas ARCL’s, provenien-tes da sintetização dos ferormônios e

de sua posterior recepção.

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gem. Vamos, portanto, dar ao arco e ao sistema que dele emerge,especificidades gráficas: ARCL para o segundo arco e LS para osistema de linguagem. São os tecedores da comunidade humana.

Do vínculo entre mundo real e demais mundos.Note-se que o ARCL adquire um caráter especial a partir de

sua integração ao ARCM23. Passa a contribuir para a constituiçãofantasmática deste. Cria, além disso, com ele, um vínculo não so-lidário24. Esta não solidariedade permitirá à linguagem refletir omundo de uma forma livre e criativa. Permitirá, também, que oARCL deslize sobre o ARCM pontualmente ou em ampla escala25.Garante, também, por sua vez, uma ‘realização’ material históricada interpretação de mundo que se constrói. Por outro lado, for-nece o vínculo necessário ao estabelecimento de qualquer crité-rio de validação de uma lógica proposicional. TomamosWittgenstein em dois momentos do Tractatus para desvelar partedessas questões. Primeiro:

A coisa é auto suficiente, na medida em que pode aparecer em todas as

situações possíveis, mas essa forma de auto suficiência é uma forma de

vínculo com o estado de coisas, uma forma de não ser auto suficiente.

(É impossível que palavras intervenham de dois modos diferentes, sozi-

nhas e na proposição.)”. ( WITTGENSTEIN, 2001)

Depois:

“2.022 É óbvio que um mundo imaginário, por mais que difira do mundo

real, deve ter algo – uma forma – em comum com ele.”. (WITTGENSTEIN,

2001).

A questão do vínculo que em Wittgenstein surge com umacerta indefinição ganha em nossa proposta, então, segundo acre-ditamos, uma consistência lógica e material. A existência de qual-quer interpretação de mundo ficaria consistida, desta maneira,material e logicamente. Damos razão, desta forma, a Wittgensteinem sua presunção do vínculo. Por outro lado afirmamos sua con-dição de proposição não trivial, e através de nossas suposiçõesprocuramos dar-lhe consistência.

O surgimento da linguagem...A existência, proposta aqui, deste arranjo especial de dois ar-

cos retroativos (o ARCM das representações e o ARCL da lingua-

(23) EPF ‘Isso tudo pode ser expres-so da seguinte maneira: a destrezamotora de uma parte do corpo étanto maior quanto mais extensa-mente estiver representada nocórtex motor. Nos homens e símios,isso significa que há um número mai-or de filamentos piramidais associa-dos a ela. Nos seres humanos, doisterços da superfície do córtex motorestão dedicados à face e às mãos;nos chimpanzés, isso é menos da me-tade. (Essa diferença também semanifesta no cerebelo.)’NEUWEILER, Gerhard. A origem denosso entendimento. In: ScientificAmérican-Brasil nº 37, p. 68, SãoPaulo: Duetto Editorial, junho 2005.(24)Vinculação não solidária é umanoção que vimos trabalhando emnossa tese de doutorado e pode sin-teticamente ser definida como aemergência de um sistema desdeoutro que lhe fornece sua fonte, masnão sua lógica de funcionamento.Inexistem, dessa maneira, causalida-de lógica identificável entre os even-tos de um e outro sistema.(25) Este deslizamento em maisampla escala é a hipótese que pro-pomos para uma possível explicaçãoda psicose.(26) Espécies que possuem apenasum dos tipos de arco têm ou umaprática individual bastante apuradae são considerados animais ‘inteli-gentes’ como os golfinhos e as balei-as ou complexos sistemas de organi-zação social como as abelhas e as for-migas e são considerados animais so-ciais.

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gem) é o que garantiria a especificidade da humanidade26. Umarica dialética se instalará com múltiplas interferências do ARCM noARCL e vice-versa. O resultad, desta dialétic, é o que chamamos decultura humana. Logramos obter, também, a hipótese de um sujei-to resultado de uma reunião. Reunião, esta, dos dois arcos retroati-vos. Esta concepção de uma unidade dinamicamente construída acada tempo no lugar de uma unidade, a priori, rompe, parece, comuma certa e hegemônica tradição filosófica ocidental. Tradição queimplica uma noção de existência identificaria27

O ARCL, enquanto se destaca do ARCM dando origem ao LS,deixa atrás de si sua participação no ARCM. Esta participação temseu extrato biológico no retorno motor desde o aparelho fonadoraté o cérebro. Constitui um arco ‘fantasma’ do ARCL, mas demesmo estatuto que o ARCM. Daremos a este, o arco do pensa-mento, o seguinte destaque gráfico: ARCP.

Notem, que na interpretação de mundo que aqui propomos, afala é anterior ao pensamento. Apenas depois que esta é internalizadafaz emergir o pensamento. Representação de mundo, concepçãode mundo e interpretação de mundo podem ser, aqui, a tríade cor-respondente aos ARCM, ARCL e ARCP. Com o advir do ARCP, o su-jeito se pereniza. Com ele, se pereniza, também, o mundo. O ad-vento do nome é o emergente lógico conseqüente e necessáriodeste passo. O nome próprio e os outros nomes. A transformaçãodo particular em universal opera se neste viés. Esta seria uma solu-ção possível distinta da solução durkheimiana28 (DURKHEIM,1998).A linguagem cristaliza o sujeito e o pensamento o pereniza, é a liçãoque retiramos deste desenvolvimento.

A bilateralidade cerebralA suposição da existência do ARCL, por seu turno, ajudou

nos a entender a organização peculiar do cérebro humano, noque diz respeito à localização funcional da linguagem. Referimonos ao estranho efeito que faz com que o centro da nomenclatu-ra e o a área responsável pela capacidade descritiva se encon-trem em hemisférios cerebrais opostos29. Podemos levantar a hi-pótese –ainda carente de maiores confirmações- de que o apa-recimento do ARCL, responsável pela linguagem, se dá no hemis-fério dominante (ou que veio a se tornar dominante por esseevento) e é suportado por ele, enquanto que a capacidade de darnomes aos objetos, associada ao centro de nomenclatura, depen-de da constituição do ARCP, independente do ARCL e que teria

(27) O conceito de existênciaidentificária aponta para o logro im-

plicado em milênios de lógica oci-dental de considerar a identidade

uma prova bastante para a existên-cia. Com relação a esta questão, ver

nosso livro A equação das almas.(ver referências bibliográficas).

(28) Com isso queremos dizer: cons-truir uma transição genética possívelentre o julgamento de realidade e o

julgamento de valor.(29) Estes centros não são fixos, mas

dependem da habilidade manual,quer dizer, o centro da linguagem sesituará nos destros no hemisfério es-

querdo (pois o controle motor docorpo encontra se sob um feixe cru-zado a partir do cérebro, o que in-verte a topografia corporal: o he-misfério esquerdo controla o lado

motor direito e vice versa) e nos ca-nhotos no hemisfério direito pare-

cendo indicar esta relação diretaque vemos ressaltando entre o apa-

relho motor e a expansão corticalem direção à linguagem.

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prioritariamente se desenvolvido no hemisfério cerebral domi-nante do movimento motor do qual é da mesma natureza.

O surgimento da linguagem...As diversas interpretações de mundo seriam, em nossa for-

mulação, a conseqüência desta rica poliética entre o ARCM pri-mário e o ARCL da qual o ARCP, o pensamento, é uma espécie desolução de compromisso ou acordo. A forma do ARCL, ou melhor,seu predicado, seu caráter exógeno, faz surgir uma organizaçãocom vocação social. Com efeito, este tipo de interação, a interaçãoretroativa quando se constitui como elemento de complexizaçãode uma espécie cria, para ela, um laço indelével – poderíamosdizer laço social, mas não seria rigoroso. Pois assim como o ARCM

através de sua circularidade irredutível30 nos forneceu fantasmasde sujeito e mundo, o ARCL nos fornece suas cristalizações.

Supomos que neste início histórico, presumido, de constitui-ção da linguagem, a palavra surgiu, originalmente, como um ele-mento metonímico apropriado do aparelho fonador e capturadopela função integradora do ARCM. Assim como o incremento doARCM contribuiu, em nossa hipótese, para um aumento da habili-dade motora, o incremento do ARCL deve ter contribuído parauma maior habilidade vocal. Isso implica um maior controle damusculatura da face e laringe. Fornece, outrossim, uma explica-ção para a futura emergência31 das oclusivas32.

As habilidades manual e facial: recentes aquisições teóricas.Nossa articulação pede determinados arranjos biológicos –

neurobiológicos para sermos mais exatos– que se confirmados emestudos experimentais e laboratoriais nos dariam uma maior confi-ança. Duas destas vertentes são: o refinamento dos aparelhos moto-res dos membros superiores e da musculatura da face e da laringe.Até bem pouco tempo atrás a habilidade manual foi consideradasecundária ou simplesmente desconhecida pelos pesquisadores.

Nossa habilidade manual ultrapassa em muito a dos outros primatas, e

isso é um fato que os pesquisadores que buscam as qualidades que carac-

terizam o humano até agora levaram menos em conta que uma outra

diferença: nossa posse da linguagem, ou nossa capacidade de articulação

vocal. No entanto, como já se sabe há alguns anos, ambas as habilidades

estão estreitamente ligadas do ponto de vista neurobiológico, pois os

mesmos centros cerebrais contêm as rotinas e instruções para a fala e

para o uso de nossas mãos. (NEUWEILER, 2005)

(30) A necessidade lógica de lançarmão de um irredutível perene não éprivilégio deste nosso desenvolvi-mento. Encontramo lo, por exemplo,no ‘Projeto para uma psicologia dosneurônios’ de Freud na forma dosneurônios permanentementecatexizados do núcleo do eu. A ino-vação aqui é que estairredutibilidade é dinâmica e múlti-pla (cada ARCM tendendo a possuira sua).(31) Deveremos tratar em outro lu-gar, com mais apuro, das requisiçõeslógicas para o aparecimento dasoclusivas.(32) J. Lacan afirma que as oclusivassão as responsáveis pela qualidadehumana da linguagem. Em um deseus seminários referindo se a suacadela Justine, que levava paraacompanhá-lo diz a seus ouvintesque se Justine não fala é porque lhefaltam as oclusivas.

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Em virtude da prioridade dada à fala e a importância assumi-da pela linguagem, essas funções são sempre mais destacadas.Nossas suposições, no entanto, cobram um maior desenvolvi-mento das duas musculaturas em relação aos demais sistemasmotores do corpo humano e um estreito vínculo entre elas:

Uma característica da fala é o perfeito controle da musculatura do parelho

fonador. É notável que nossa destreza manual também se apóie em uma

motricidade refinada. Somos capazes de controlar a musculatura das

mãos e braços com mais precisão do que qualquer animal. Mas é impor-

tante observar que esse controle motor já começa a se manifestar nos

primatas. Seus dedos se tornaram mais rápidos, e sua mímica mais pro-

nunciada, mas essas capacidades ainda não bastam para a articulação

vocal. Só o homem tem o dom da fala, assim como só ele é capaz de

realizar atividades manuais complexas. Essa extraordinária inteligência

motora, segundo minha tese, forneceu a base de nossa evolução cultural.

É ela que provê o fundamento para a fala e para a habilidade manual que

possibilitam a cultura e a técnica. (NEUWEILER, 2005)

Embora em desacordo com a ordem dos acontecimentos eda causalidade lógica presumida por Neuweiler, é interessanteobservar como parte das pesquisas científicas já parecem se in-clinar na direção de nossas proposições. Sabemos desde a décadade quarenta do século XX, através das experiências de Penfield eda construção de seu homúnculo, que a projeção dos movimen-tos motores sobre o córtex gera um homem deformado33. Quan-do comparada com a mesma projeção em um símio, temos umesquema muito revelador. (ver fig. 1)34.

(33) EPF ‘As pernas recebem poucaatenção na via piramidal, como se

mostra na conhecida figura dso (sic)“homúnculo motor”, um esquemadistorcido de um homem colocado

sobre o córtex motor, cuja grandezarelativa das partes individuais do

corpo corresponde à sua representa-ção neurônica. Em relação às pernas,

as mãos aparecem comosuperdimensionadas, com os dedos,particularmente o polegar, assumin-do proporções gigantescas. O esque-ma correspondente de um chimpan-

zé aproxima se muito mais às pro-porções naturais de seu corpo; ape-

nas as mãos e os pés parecem umpouco mais encorpados.

Mas não é apenas a competência dohomem no uso das mãos que se re-

vela no esquema do “homúnculomotor”. A figura ajuda também a

compreender a evolução da capaci-dade de articulação vocal do homem

– algo interessante para os biólogosevolucionistas. A grotesca imagem

representa o homem como constituí-do principalmente de mãos e rosto –um rosto com uma enorme boca. Lá-

bios e língua, em particular, apare-cem como fortemente representa-dos no córtex motor.” NEUWEILER,

Gerhard. A origem de nosso entendi-mento. In: Scientific Américan-Brasilnº 37, p. 64-65, São Paulo: Duetto

Editorial, junho 2005.(34) Figura retirada da Scientific

Américan-Brasil nº 2, pag 84, SãoPaulo: Duetto Editorial, junho 2005.

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O surgimento da linguagem...A fala do sujeito, em sua emergência deve ter sido repetitiva

e não significativa. Uma espécie de ecolalia primitiva35. Deve tertido, entretanto, um caráter de representação conforme a conce-bemos. Podemos supor que quando se deslocou entre conjuntosrepresentacionais adquiriu um caráter significante. O psicanalis-ta francês Jacques Lacan propôs a fórmula: o significante é o querepresenta o sujeito para outro significante. Embora contrariemos,neste texto, a perspectiva lacaniana em alguns aspectos funda-mentais, damos, em especial, uma concretude há muito buscadapara a proposição lacaniana apresentada acima. Pois o somvocalizado como resultado da captura da função da fala pelo ARCM

é, precisamente, isso: a saída motora de um arco integrador que aseguir vai gerar todo um sistema de linguagem36.

A gênese da linguagem.A especificidade, já apontada; de que o ARCL carrega consigo

a característica de ser compartilhado37 por todos os membros deuma espécie, introduz novos elementos para nossa análise. Pri-meiro, o elemento indutor: se acontecer a um elemento do grupoque seu ARCM lance mão de uma ação do aparelho fonador demaneira que passe a repetir um determinado som, este, ouvidopelos demais, passará a ser repetido. Temos, neste singelo even-to, uma transferência formativa em ato. Encontramos, tambémuma possível solução para a transformação de um particular emum universal restrito38. Segundo, o elemento interformador: é deri-vado da característica indutora e estabelece a regra de formaçãoexógena permanente, ou seja, toda vez que um da espéciemodalizar internamente uma cadeia fonética, ao ser ouvida, esta,provocará sua incorporação pelos outros. Temos com este mode-lo duas fontes transformadoras permanentes: uma endógena,provocada pela modularização, outra exógena pelo convívio ecompartilhamento de ações em grupos pelos outros da espécie39.Terceiro, o elemento ortopedizador: é derivado das duas caracterís-ticas anteriores e apresenta a necessidade de que qualquer umimergido num grupo de iguais tenderá a adotar as cadeias sono-ras hegemônicas. Implica que o efeito modularizador do grupotem, em relação a cada um, inicialmente um papel morfogenéticointenso em que um influencia o outro. A seguir, um efeitocristalizador. Eliminadas, com efeito, por indução e interformaçãoas principais diferenças, determinada apresentação de linguagem

(35) Ecolalia é a repetição silábicasem conteúdo significativo que ocor-re com as crianças no início da aqui-sição da linguagem.(36) EPF ‘Uma região da parte fron-tal do cérebro dos símios interessaespecialmente os neuropsicólogos: aárea F5, que participa de certasações particulares das mãos e daboca. Ela coincide, em boa parte,com o centro da fala nos humanos, achamada área de Broca. Só recente-mente se verificou que a área deBroca não está envolvida apenas nafala, mas também em atividadesdas mãos e dedos, o que torna essaregião do cérebro importante paraa evolução humana.’ NEUWEILER,Gerhard. A origem de nosso enten-dimento. In: Scientific Américan-Brasil nº 37, p. 68, São Paulo:Duetto Editorial, junho 2005.(37) Os efeitos miméticos eassociacionistas podem ter outrasformas de realização. Os cardumes ebando dos peixes e das aves sãoexemplos destas outrasmorfogêneses que também encon-tram justificativas em nossa ‘Teoriado objeto’. Por motivos de espaço eobjetivos serão, entretanto, tratadosem outro lugar.(38) Introduzo aqui a noção de uni-versal restrito para diferenciá-lo danoção posterior de universal amploque será introduzida com os nomes.(39) EPF Este modelo fornece umaexcelente solução para o enigma an-tropológico das substituições de es-pécies antropóides primitivas.“Embora a tendência minimalistapersista, descobertas recentes ereavaliações de fósseis deixam claroque a história biológica doshominídeos se parece com a de mui-tas outras famílias animais bem su-cedidas. Ela é marcada mais peladiversidade do que pela progressãolinear. Apesar dessa rica história –durante a qual a espécie hominídease desenvolveu, conviveu, ascendeue sucumbiu –, o H. sapiens final-mente apareceu como o únicohominídeo. As razões disso são emgeral impenetráveis, mas diferentesinterações entre os últimoshominídeos coexistentes – H.sapiens e H. neanderthlensis – emduas distintas regiões geográficasproporcionam hipótesesinstigantes.” (TATTERSALL, Ian. Nãoestávamos sozinhos. In: ScientificAmérican-Brasil Edição especial nº2, p. 80-87, São Paulo: Duetto Edi-torial,2004). Podemos propor, apartir de nosso modelo, que houveuma substituição por interformaçãoindutiva em que espécies inteirasem convício com outras mais com-plexas tendiam a saltoscomplexacionais rápidos e dramáti-cos (expansões de volumes cere-brais, morfogêneses corporais). Desobra, temos uma excelente matrizinicial que nos ajudaria a explicar adiversidade étnica atual.

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passa a ser hegemônica para aquele grupo e passa a exercer opapel cristalizador. Quarto, o elemento exponenciador: deriva dosoutros três. Caracteriza a possibilidade da emergência de um dis-positivo como o LS provocar um aumento exponencial da gamade seus produtos. Gerando, por exemplo, uma cultura. Esta ex-pansão exponencial que, em última análise, explica como conse-guimos construir, em um lapso de tempo tão diminuto, uma cul-tura tão vasta, se constrói a partir da dialética entre arcos, entreindivíduos de uma espécie, entre as palavras destes indivíduos. Àcomposição destes elementos vem se somar sua gênese biológi-ca. Notem, leitores, que a influência mútua entre cultura e biolo-gia e as interações morfogenéticas que fazem entre si, segundonossa hipótese, é de ampla magnitude. Falar podemos dizer é umato biológico em sua essência e a biologia humana tem um compo-nente cultural necessário.

Tratamos até agora a palavra como acessória à ação. Um com-ponente metonímico de uma determinada configuração de re-presentações. Chegou a hora de avançar. Por certo, não causaráestranheza ao leitor que vem acompanhando o desenvolvimentodas idéias apresentadas neste texto, a afirmação de que, em deter-minado momento, uma parte qualquer de um conjuntorepresentacional pode suficientemente determinar toda uma ação.Já observamos este evento anteriormente quando analisamos oaparecimento da função representacional. Quando a palavra forsuficiente, por si só, para determinar a ação, teremos uma trans-formação de dispositivo: de metonímico para metafórico. Esta-rão dadas, então, as condições para o aparecimento dos nomes.

Pensemos em um humanóide que caça em grupo. Em deter-minado momento ao começar a emitir sons associados à perse-guição da caça, digamos um ‘UH’, ele expandiu o conjunto deestímulos associados a esta ação e expandiu seu aparelhometonímico. No momento seguinte, pensemos este mesmo ho-mem, que está no sitio em que reside e que, antes mesmo de secolocar em movimento para o início da caça, diz: ‘UH’. Esta pala-vra que o representa por inteiro, naquele momento, escutadapelos outros põe todos em movimento. Ela é uma metáfora emação. Dá nome por inteiro à ação. O incremento do ARCL tendea tornar, pela modularização, mais extenso o discurso, a torná-locada vez mais constante, a denominar cada vez mais as ações ecoisas do mundo.

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Paralelo a este processo, suposto, um outro vem acontecen-do: o incremento do ARCP, entre o cérebro e o aparelho fonador edeste em retorno ao cérebro40. À configuração de estímulos queretorna ao cérebro pelos nossos ouvidos corresponde uma confi-guração que é correlata àquela que retorna a este como fantasmada configuração dos estímulos da fala desde o aparelho motor dafala. Este arco, o ARCP, corresponde à função do pensamento41.As fontes principais deste ARCP são: ele próprio, o ARCM e o ARCL.O ARCP tende a se perenizar. O discurso interno tende a seperenizar. A perenização do ARCP se dará a partir de umdeslizamento metonímico das palavras. Se não houvesse estedeslizamento não haveria pensamento. Entenda se: toda fala im-plica um pensamento, mas nem todo o pensamento implica uma fala.

Tanto o aparelho de representação, como o da fala, quanto odo pensamento do humano, são metonímicos. Os da fala e dopensamento são, ainda, metafóricos. O efeito metafórico é obti-do a partir dos conjuntos representacionais quando apenas a pa-lavra resta. O deslizamento de uma palavra à outra cria a metáfo-ra pura: o aparecimento da palavra na ausência de qualquer re-presentação. A tendência dos arcos retroativos é deixar decaídosos nomes. Os nomes são os restos mais resistentes das represen-tações da coisa.

O ARCL constrói comunidades de linguagem. O depósito dascristalizações da linguagem, a partir das hegemonias lingüísticas,consiste em um sujeito ideal não existente, mas reproduzido emcada um dos que habitam aquela comunidade. O sujeito ideal deuma comunidade de linguagem não existe porque, apesar de sub-sistir em cada um daquela comunidade, é apenas parte constitu-inte dos mesmos.

Podemos nos perguntar se assim como o ARCP se constituiu,segundo nossas proposições, a partir da interiorização do ARCL,e em associação com este, outros desenvolvimentos funcionaissimilares não teriam como conseqüência o desenvolvimento deoutros arcos retroativos. Sem pretender nos aprofundar, nestaquestão, neste texto, podemos adiantar que pensamos em umaresposta afirmativa. Acreditamos, com efeito, que a aquisição daescrita e da leitura, por exemplo, desenvolveram arcos desta es-pécie como bem já esboçara, anteriormente, Freud (FREUD, 1977).

(40) EPF ‘De fato, no homem, umespesso ramo da via piramidal aco-moda os nervos para a musculaturada face, lábios, língua e palato, bemcomo – e isto é um caso único entreos primatas – para a laringe. Nossímios, já há filamentos dessa via rá-pida que controlam a musculaturafacial e, entre outras coisas, a mími-ca, mas essa ligação direta só seacentua no ser humano. A isso seacresce – o que é mais interessante –que o controle fino da musculaturafacial agora permite produzir ossons da fala. Em outras palavras, foia grande ampliação da inteligênciamotora para controle da face e dasmãos que nos tornou humanos.’NEUWEILER, Gerhard. A origem denosso entendimento. In: ScientificAmérican-Brasil nº 37, p. 68, SãoPaulo: Duetto Editorial, junho 2005.(41) É fenômeno conhecido, no âm-bito da psiquiatria, o fato de duran-te as alucinações auditivas ospsicóticos fazerem vibrar suas cor-das vocais.

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Conclusão-aberturaQualquer um, que seja educador, que tenha lido estas páginas,

muito provavelmente, sentiu se convocado direto à sua prática.Deve se, este efeito, ao compromisso que tem o educador comuma visão de mundo e uma visão de humanidade. A visão de hu-manidade tem dois componentes: a história desta mesma humani-dade e a concepção do humano atual e de seu processo de forma-ção. Neste artigo, cuidamos da primeira parte desta visão de huma-nidade. Pretendemos, no lugar de minimizar, enfatizar as mudançassugeridas e destacar sua importância. Entregamos ao leitor o esboçopara uma hipótese contínua (desde a biologia até a lingüística) do apa-recimento deste evento singular no cenário do planeta Terra: a huma-nidade. Destacamos os principais elementos desta hipótese:

– a enunciação de uma lei de funcionamento neurônico, ca-paz de fornecer uma base material minimalista para umabiologia dinâmica;

– o esboço de uma teoria dos objetos baseada nas interaçõesque estes são capazes de realizar um com os outros;

– a afirmação da anterioridade do RS ao LS;– a proposição de uma biologia plástica que vê o corpo do

homem como um quadro em branco em que eventos desua vivência serão traçados de forma indelével. Mais queisso, em que os contornos e a forma do quadro serãoconstruídos por ele;

– a proposição de gêneses logicamente consistentes para oRS, o LS e a organização social dos homens;

– a concepção do pensamento como mediação negociada en-tre uma linguagem universal cristalizada e representaçõesparticulares construídas a partir de vivências singulares.

O homem que emerge destas páginas é um homem que seautoconstrói, que é construído e que se reconstrói permanente-mente. O educador é parte importante, diremos: essencial, destaconstrução. Sua responsabilidade, nesta perspectiva, é aumenta-da muitas vezes. A forma física que o corpo assume, a duração equalidade da vida que terá, a maneira como o discurso é susten-tado em suas diversas formas (fala, escrita, pensamento), têm noeducador, seu corpo, sua ética, sua capacidade interacional, aque-

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le que por vocação e ocupação se dedica exclusivamente e estamissão. Para além do compromisso com a pessoa é ao compromissocom a humanidade, que estamos convocados, nesta perspectiva, en-quanto educadores.

Siglas utilizadas nesse texto e suas significaçõesARCM – Arco retroativo motor ou endógeno primário: é re-

sultado do retorno dos estímulos neurônicos dos sistemas moto-res sobre o aparelho cerebral e, no caso do humano, incrementadopela atrofia dos membros superiores.

ARCL – Arco retroativo exógeno ou linguageiro: é resultadopela apropriação da função fonadora pelo ARCM, e se configurapelo retorno da fala sobre os ouvidos.

ARCP– Arco retroativo endógeno ou do pensamento: é resul-tado do retorno dos estímulos neurônicos do sistemas motorfonador sobre o aparelho cerebral.

RS – Sistema das representações: entendido como as repre-sentações que circulam, de uma forma autopoética, no humano.

SR – Sujeito das representações: sujeito arcaico correspon-dente ao irredutível do RS.

ABSTRACT: The idea of a new phylogenesis is introduced in this work. The

basic fact that humans left the animal kingdom to become a unique species

raises the following questions: How do we acquire a system of representation?

How do we acquire language? How have humans started thinking? To answer

these questions we propose and discuss: a law describing how the neuron

works; a draft idea of a theory of the object; the existence of a system of

representation prior to language; the advent of a plastic biology; the genesis

of representation and language; and finally, we define thinking as an

agreement between the structure of language and the arch of representations.

In addition, the text is also an invitation to reflect on the possible consequences

of these ideas to the field of education.

KEY WORDS: Phylogenesis; Representation; Language; Plastic biology;

Education.

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