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VIVA EDWARD ST AUBYN! MIGUEL ESTEVES CARDOSO A VERVE DE WILDE, A LEVEZA DE WODEHOUSE E A ACRIMÓNIA DE WAUGH. BRILHANTE! ZADIE SMITH A FAMÍLIA MELROSE TRADUÇÃO DE DANIEL JONAS

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Deixa láEdwardSt aubyn

VIVA EDWARD ST AUBYN!MIGUEL ESTEVES CARDOSO

A VERVE DE WILDE, A LEVEZA DE WODEHOUSE E A ACRIMÓNIA DE WAUGH.BRILHANTE!ZADIE SMITH

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A F A M Í L I A M E L R O S E

Más novasEdwardSt aubyn T R A D U ç ã O D E D A n I E L J O n A S

© Timothy Allen

Edward St aubynnasceu em Londres, em 1960, e estudou Lite-ratura Inglesa em Oxford. Os cinco romances sobre Patrick Melrose foram premiados, acla-mados pela crítica e pelos pares, e culminaram na consagração internacional do autor.

neste volume publicam-se os dois primeiros livros de um quinteto, escrito entre 1996 e 2012, que segue a vida de Patrick Melrose. Em Deixa lá, Patrick é o filho de cinco anos, frágil e filosófico, de um pai brutal e uma mãe omissa. reu-nida numa casa na Provença, a aristocrática família aguarda a chegada de visitas.

deixa láMás novas

a Some HopeMother’s Milkat Last

Nada nos pode preparar para a comédia rica e acerba do mundo de St Aubyn ou para a sua densi-dade filosófica.Zadie Smith

Um dos mais proeminentes autores da sua geração.Will Self

Dirão que St Aubyn é um classicista mas a ver-dade é que é moderno. Escreve é muitíssimo bem. É capaz da maior frieza e da maior empatia. Tem um sentido de humor monumental, no verdadeiro sentido da palavra. É um gozão e um gozador; um tarado e um observador.Miguel Esteves Cardoso, Público

Patrick, agora com vinte e dois anos, recebe más notícias: o pai morreu, e ele terá de voar até nova Iorque para reco-lher as suas cinzas. aí chegado, gasta dinheiro a rodos num festim de drogas e bebida, na tentativa de silenciar o bizarro circo de feras em que se tornou a sua mente.

Talvez o mais brilhante romancista inglês da sua geração.Alan Hollinghurst

Uma verve fulgurante e cáustica. Talvez a própria vivacidade da prosa – a sua concisão lapidar e segurança moral – represente a cura que as personagens procuram. Uma prosa tão bem escrita é em si mesma uma forma de sanidade.Edmund White, The Guardian

Os romances sobre a família Melrose são uma obra--prima do século xxi, escrita por um dos nossos maiores prosadores.Alice Sebold

St Aubyn observa uma família inteira ao micros-cópio e desvela todas as suas dolorosas e inevitá-veis complexidades. A um tempo épicos e íntimos, chocantes e cómicos, os romances são, todos eles, obras-primas.Maggie O’Farrel

St Aubyn transmite o caos das emoções, a confu-são de sensações demasiado vívidas e as flagran-tes contradições do esforço intelectual, e fá-lo com uma força e subtileza que surtem um efeito libertador, quase terapêutico.Francis Wyndham, New York Review of Books

A prosa de St Aubyn tem um charme espontâneo que mascara um intelecto feroz e inquiridor. Um dos melhores escritores da sua geração.The Times

www.sextanteeditora.pt

ISBN 978-972-0-07182-8

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DEIXA LÁ

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Para a Ana

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Às sete horas e meia da manhã, trazendo a roupa que havia passado a ferro na noite anterior, Yvette estava de regresso a casa. A sua sandália ia percutindo uma toada surda à medida que cer-rava os dedos do pé para a segurar, e a correia rompida obrigava-a a um andar escapadiço sobre o chão sulcado e pedregoso. Do outro lado do muro, sob a linha de ciprestes pontuando ao longo da estrada, viu o médico no jardim. No seu roupão azul, e já com ócu-los de sol, embora fosse ainda demasiado cedo para que o Sol de setembro se viesse alcandorar sobre a montanha calcária, ele diri-gia um decidido fluxo de água desde a mangueira que segurava na mão esquerda até à coluna de formigas movendo-se apressada-mente através do saibro sob os seus pés. A sua técnica era experi-mentada: deixaria as sobreviventes fazendo pela vida sobre a pedra molhada, recuperando por um momento a sua dignidade, antes de trazer novamente o dilúvio sobre elas. Com a mão livre tirou o charuto da boca, deixando uma nuvem de fumo subir-lhe aos caracóis cas-tanhos e cinzentos na sua fronte. A seguir asfixiou o jato de água com o polegar de modo a metralhar mais energicamente uma formiga a que determinara um fim certo e inapelável.

Yvette teria apenas de passar a figueira e esgueirar-se para dentro da casa sem que o Dr. Melrose desse pela sua chegada. O costume deste, no entanto, era chamá-la sem levantar o olhar do chão assim que julgasse havê-la vislumbrado atrás da árvore. No  dia anterior falara-lhe um bom bocado, o suficiente para lhe exaurir os braços, não o suficiente, contudo, para lhes fazer capitu-lar a roupa. Ele media as coisas com muita precisão. Começara por

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lhe pedir opinião sobre o mistral, com exagerado respeito pelo seu conhecimento nativo da Provença. No momento em que lhe mostrou suficiente simpatia a ponto de lhe perguntar pelo emprego do filho no estaleiro, a dor alastrara-se já aos ombros e começava a fazer incur-sões agudas ao pescoço. Estava determinada em fazer-lhe frente, até mesmo quando ele a inquiria sobre as dores lombares do marido e se era caso para o deixarem arredado do trator durante as colheitas. Hoje não lhe atirara o «Bonjour, chère Yvette» que sempre inaugu-rava estas solícitas cavaqueiras matinais, e ela procurava curvar-se sob os ramos baixos da figueira para chegar à casa.

O château, como Yvette chamava ao que os Melroses apelida-vam de velha herdade, fora edificado numa inclinação de terreno, pelo que a estrada de acesso estava nivelada com o primeiro andar da casa. Um grande lanço de degraus conduzia um lado da casa a um terraço em frente à sala de visitas.

Novo lanço contornava o outro lado da casa até uma pequena capela devotada ao abrigo dos baldes do lixo. No inverno, a água gorgolejava ladeira abaixo através de um conjunto de charcos, mas a calha que corria atrás da figueira estava muda nesta altura do ano, obstruída com figos esmagados e partidos que manchavam o lugar onde caíam.

Yvette dirigiu-se à sala escura de cima e pousou a roupa da lavandaria. Acendeu a luz e começou a separar as toalhas dos len-çóis e os lençóis das toalhas de mesa. Havia dez armários apinha-dos até ao topo com roupa meticulosamente dobrada, apartada de qualquer uso. Yvette abria por vezes estes armários para admirar a coleção protegida. Algumas das toalhas de mesa tinham ramos de loureiro e cachos de uvas bordados de modo a apenas se revelarem quando olhados de certa perspetiva. Ela fazia percorrer o dedo sobre os monogramas dos lençóis alvos e suaves, e sobre as coroas em torno da letra V ao canto dos guardanapos. O seu preferido era o unicórnio que pontificava sobre um cordão de termos estrangei-ros em alguns dos lençóis de mais idade, mas nem mesmo estes eram usados, e a Sr.a Melrose insistia em que Yvette reciclasse a mesma pilha batida de panos singelos do armário mais pequeno que ficava junto à porta. •

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Deixa lá

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Eleanor Melrose subiu com estrépito os degraus baixos desde a cozinha até à estrada. Tivesse caminhado mais lentamente, e tal-vez até vacilasse, parasse, e em desespero fosse acabar por sentar--se no parapeito baixo que ladeava os degraus. Sentiu-se abertamente indisposta, a ponto de não admitir a afronta de qualquer comida após ter permitido o agravo do cigarro. Tinha escovado os dentes depois de vomitar mas não conseguira livrar-se do sabor bilioso na boca. Tinha também escovado os dentes antes de vomitar, incapaz de dominar cabalmente a veia otimista da sua natureza. As manhãs tinham arrefecido desde o começo de setembro e o ar já trazia o aroma do outono, mas isto pouco importava a Eleanor, que exsu-dava através das densas camadas de pó de arroz na testa. A cada passo empurrava as mãos contra os joelhos para arrimar o seu pro-gresso, observando através dos grandes óculos escuros a lona branca dos sapatos que lhe cingiam os pés lívidos e as calças em seda crua, de um rosa-escuro, como malaguetas, coladas às pernas.

Pensou em vodca derramado sobre gelo e no degelo de cubos aclarando-se e colapsando e estalando no copo, como a espinha nas mãos de um osteopata experimentado. Todos os cubos embaraça-dos e viscosos boiando juntos, tinindo, os cristais atirados às bor-das do copo, e o vodca frio e untuoso na sua boca.

A estrada subia agudamente à esquerda da escadaria até um círculo de chão plano onde o seu Buick castanho-avermelhado se encontrava estacionado debaixo de um pinheiro-manso. Parecia despropositado, alongado sobre os seus pneus de faixa branca con-tra as vinhas em socalcos e os pomares de oliveiras, mas para Elea-nor o seu carro era como um consulado numa cidade estranha, pelo que se dirigiu para ele com a urgência de um turista roubado.

Sobre a capota do Buick tinham-se acumulado glóbulos de resina translúcida. Um salpico de resina com uma agulha de pinheiro estava colado à base do para-brisas. Ela tentou removê-lo, mas ape-nas conseguia esborratar mais o vidro e enlear as pontas dos dedos. Apesar de ansiar muito entrar no carro, deteve-se a arranhar com-pulsivamente a resina, sujando as unhas. A razão pela qual Eleanor estimava tanto o seu Buick era porque David nunca o conduzira, nem mesmo nele se sentara. Ela era a proprietária da casa e da terra,

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era ela quem pagava aos criados e quem pagava pelas bebidas, mas a verdade é que só este carro lhe pertencia realmente e por inteiro.

Quando conhecera David doze anos antes, foi a sua aparência que a fascinou. A  expressão facial que os homens se sentem no direito de ostentar no momento em que dominam com um só olhar toda a propriedade a partir de uma sala britanicamente fria tinha sido apurada por cinco séculos de teimosia e havia-se notoriamente aperfeiçoado no semblante de David. A presunção inglesa de achar distinto não fazer nada durante muito tempo no mesmo lugar nunca fora inteiramente evidente para Eleanor, mas David não deixava dúvidas sobre essa evidência. A sua linhagem remontava a Carlos II através de uma prostituta. «No teu lugar, calava-me bem caladinho», gracejara ela ao saber da história. Em vez de sorrir, ele mostrou-lhe o perfil de um modo que ela aprendeu a abominar, eri-çando o lábio inferior e olhando-a como se estivesse a exercitar uma espécie de tolerância magna ao resistir a responder-lhe com algo de devastador.

Houve um tempo em que ela admirava o trajeto de David até se licenciar em medicina. Quando este contou a sua intenção ao pai, viu o General Melrose cortar-lhe imediatamente a anuidade, prefe-rindo fazer reverter o dinheiro para a criação de faisões. Disparar sobre homens e animais eram as ocupações de cavalheiros, sendo o tratar das feridas da competência de curandeiros da classe média. Era essa a opinião do General, que tirava mais prazer dos disparos em resultado de a manter. Não achava o trato frio para com o seu filho uma experiência especialmente difícil. A  primeira vez que mostrou algum interesse nele foi quando David deixou Eton, e lhe perguntou o que queria ser. David tartamudeou: «Receio ainda não saber muito bem, Pai», não ousando admitir que gostaria de ser compositor. Não escapavam à atenção do General as estroini-ces do filho à volta do piano, e com justeza entendia que uma carreira militar haveria de moderar este impulso efeminado. «É melhor o exército», disse-lhe, oferecendo ao filho um charuto num gesto de camaradagem inusitada.

E contudo, para Eleanor, David parecia radicalmente distante daquela tribo de pequenos snobes ingleses e primos afastados dema-siado próximos, sempre prontos para uma emergência, ou para um

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fim de semana, repletos de memórias das vidas dos avós, as quais não eram de todo fiéis às vidas dos avós. Quando conheceu David, tinha-o como a primeira pessoa a compreendê-la verdadeiramente. Agora era a última pessoa a quem pediria compreensão. Era uma mudança difícil de explicar, e procurava resistir à tentação de pen-sar que ele apenas esperava o dinheiro da mulher para poder patro-cinar as suas fantasias pessoais sobre o modo como entendia merecer viver. Talvez, pelo contrário, tivesse sido o dinheiro dela que o empo-brecera. Acabara com a prática clínica logo após o casamento. No início, houve conversas sobre a aplicação de parte do dinheiro na abertura de uma residência para alcoólicos. Em certo sentido, foram bem-sucedidos.

A ideia de se cruzar com David alarmou outra vez Eleanor. Livrou-se da resina no para-brisas, marinhou para dentro do carro e conduziu o pesado Buick pela estrada poeirenta, parando apenas quando se encontrava a meio da colina. Ia a caminho da casa de Vic-tor Eisen a fim de se dirigir cedo ao aeroporto com Anne, mas antes tinha de se recompor. Enrolada numa almofada debaixo do banco do condutor estava meia garrafa de brandy Bisquit. Na carteira ti-nha os comprimidos amarelos para a manterem alerta e os brancos para fazerem adormecer o sentimento de pânico e o terror que o es-tado de alerta despertava. Com o longo caminho à sua frente to-mou quatro em vez de dois dos amarelos e depois, com a preocupação de que a toma dupla pudesse agitá-la, tomou dois dos brancos, e bebeu metade da garrafa para os empurrar. A princípio estreme-ceu violentamente, e então, antes mesmo que chegasse à corrente sanguínea, sentiu o ataque agudo do álcool, enchendo-a de grati-dão e calor.

Deixou-se cair no lugar no qual apenas se empoleirara, reco-nhecendo-se ao espelho pela primeira vez naquele dia. Ambientou--se ao seu corpo, como um sonâmbulo que procura de novo a cama após uma arriscada expedição. Silenciadas, atrás dos vidros fecha-dos, viu pegas alvinegras disparando das vinhas, e as agulhas dos pinheiros pronunciadas contra o céu pálido, varrido por dois dias de ventos fortes. Ligou novamente a ignição e partiu, guiando ao longo das alamedas estreitas e alcantiladas.

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David Melrose, cansado de afogar formigas, abandonou a rega no jardim. Assim que o entretenimento perdera o seu interesse particular, encheu-se de desespero. Havia sempre outro formigueiro, outro terrapleno cheio de formigas. O seu modo de pronunciar for-migas trazia-lhe sempre uma especial ressonância familiar, e acres-centava um sabor especial às suas investidas assassinas se lhes associasse a ideia das sete arrogantes irmãs de sua mãe, mulheres orgulhosas e egoístas a quem mostrara os seus dotes no piano em criança.1

David abandonou a mangueira no caminho de saibro, pen-sando quão inútil Eleanor se tinha tornado. Há demasiado tempo que ela se mostrava paralisada de medo. Era como tentar palpar um fígado inchado de um paciente quando já se sabia que doía. Ela apenas conseguia relaxar de vez em quando.

Recordava uma noite passada há doze anos quando a convi-dara para jantar no seu apartamento. Que confiante nessa altura ela era! Já tinham dormido juntos, mas Eleanor tratava-o ainda com uma certa timidez. Usava um vestido branco sem formas com grandes pintas pretas. Tinha vinte e oito anos mas o corte simples do seu cabelo louro corredio fazia-a mais nova. Ele achava-a bonita naquela sua maneira desorientada e deslavada, mas era a sua inquie-tação que o estimulava, a quieta exasperação de mulher que anseia lançar-se a alguma coisa significativa, mas que não consegue ainda identificar.

Serviu um prato marroquino de pombo recheado com amên-doas. Preparou-o numa cama de arroz de açafrão e, após servi-lo, retirou-lhe em seguida o prato.

– Fazes-me um favor? – perguntou.– Claro – respondeu ela. – O quê?Colocou o prato no chão atrás da cadeira dela e disse-lhe:– Não te importas de comer sem faca e garfo, nem mãos sequer,

apenas comer do prato?– Como um cão, queres tu dizer? – perguntou ela.– Como uma rapariga a imitar um cão.– Mas porquê?

1 Ants (formigas) e aunts (tias) é o par fonético que está no centro desta pronúncia familiar. (N. do T.)

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– Porque me apetece.Tirava prazer do risco que corria. Ela poderia dizer que não e

sair. Se ficasse e fizesse o que ele lhe pedia, já não lhe escaparia. O estranho foi que nem um nem outro pensou em rir.

Uma submissão, ainda que absurda, era uma verdadeira ten-tação para Eleanor. Estaria a sacrificar certas coisas em que não queria acreditar – maneiras à mesa, dignidade, orgulho – diante de outra coisa em que queria acreditar: o espírito de sacrifício. O vazio do gesto, o facto de ser completamente inútil, fazia-o parecer puro na altura. Ajoelhou-se de quatro no tapete persa cediço, com as mãos espalmadas dos dois lados do prato. Os seus cotovelos proje-taram-se quando se abaixou para apanhar uma porção de pombo entre os dentes. Sentiu a tensão na base da espinha.

Endireitou-se, com as mãos nos joelhos, e mastigou calma-mente. O pombo tinha um sabor estranho. Levantou um pouco o olhar e viu os sapatos de David, um apontando para ela no chão, o outro balouçando perto dela no ar. Não levantou o olhar acima dos seus joelhos cruzados, antes voltou a dobrar-se, comendo mais avida-mente desta vez, fossando no montículo de arroz para apanhar uma amêndoa com os lábios e sacudindo gentilmente a cabeça a fim de soltar um pouco de carne do osso. Quando acabou por erguer o olhar, uma das faces reluzia com molho e alguns bagos de arroz amarelo estavam agarrados à boca e nariz. A desorientação tinha abandonado o seu rosto.

Por breves momentos David experimentou uma adoração por ela, por aceitar fazer o que lhe tinha pedido. Esticou o pé e acariciou--lhe a face com a ponta do sapato. A confiança que ela mostrara cativara-o totalmente, mas não sabia o que fazer com isso, uma vez que já tinha alcançado o seu propósito, que era demonstrar ser capaz de conquistar a sua submissão.

No dia seguinte contou o sucedido a Nicholas Pratt. Nesse dia, como era, aliás, prática frequente, dera instruções à secretária para dizer que estava ocupado e passou-o a beber no clube, imune às crian-ças febris e às mulheres que fingiam que as suas ressacas eram enxaquecas. Gostava de beber debaixo do teto azul e dourado da sala de estar, onde havia sempre uma ondulação deixada pela pas-sagem de homens importantes. Os membros aborrecidos, dissolutos

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e obscuros sentiam-se a flutuar nesta atmosfera de poder, como peque-nas baleeiras que, subindo e descendo, aparecem e desaparecem subitamente nas suas ancoragens quando um grande iate se despede do porto comum.

– Porque a levaste a fazer isso? – perguntou Nicholas, pai-rando entre velhacaria e aversão.

– A conversa dela é tão limitada, não achas? – disse David.Nicholas não respondeu. Sentia que estava a ser forçado a

conspirar, tal como Eleanor a comer.– Conversava melhor do chão? – perguntou.– Não sou mágico – disse David. – Não consigo fazer dela uma

diversão, mas ao menos mantive-a calada. Comecei a sofrer horro-res de antecipação ante a iminência de outra conversa sobre as agruras de ser rico. Sei tão pouco disso como ela do que quer que seja.

Nicholas riu entredentes e David mostrou-os. Qualquer que fosse a posição sobre o desperdício de talento de David, pensou Nicholas, ele nunca fora grande coisa em sorrisos.

David subiu pela direita a dupla escadaria que levava do jardim ao terraço. Apesar de ter agora sessenta anos, o seu cabelo continuava espesso e selvagem. O rosto era surpreendentemente gracioso. A sua correção a sua única pecha; era como o esquema de um rosto e trans-mitia um certo sentimento a inabitado, como se nenhum vestígio do modo de vida do seu utente pudesse modificar a perfeição das linhas. Os conhecidos de David procuravam sinais de decadência, mas a sua máscara tornava-se a cada ano mais nobre. Atrás dos óculos escuros, por mais rígido que tivesse o pescoço, os seus olhos bruxu-leavam inconspícuos, avaliando as fraquezas dos outros. O  diag-nóstico fora a sua especialidade mais inebriante enquanto médico, e depois de a brandir com destreza perdia normalmente o interesse nos pacientes, a não ser que algo no seu sofrimento o intrigasse. Sem os óculos escuros, mostrava uma expressão distraída, até o mo-mento em que se apercebesse da vulnerabilidade de alguém. Nesse caso a expressão dos seus olhos enrijecia como um músculo fletido.

Parou no cimo das escadas. O charuto apagara-se, e ele ati-rou-o sobre o muro para as vinhas em baixo. À sua frente, a hera que cobria o lado sul da casa estava já raiada de vermelho. David

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admirava aquela cor. Via-a como um gesto de desafio contra a decadência, como um homem que cospe na cara do seu torturador. Assistira à pressa de Eleanor em sair no seu carro ridículo. Repa-rara até mesmo em Yvette tentando entrar discretamente em casa. Quem as poderia censurar?

Não ignorava que a sua falta de gentileza para com Eleanor só poderia surtir efeito se a alternasse com mostras de preocupação e justificações elaboradas para a sua própria natureza destrutiva, mas acabou por abandonar estas variações quando concluiu que o seu desapontamento em relação a ela tinha transposto todos os limites. Sabia que ela não poderia ajudá-lo a desenredar o nó inar-ticulável que transportava dentro de si. Em vez disso, sentia-o a aper-tar, como uma promessa de asfixia que ensombrava cada golfada de ar que colhia.

Era absurdo; mas durante todo o verão obcecara-o a memória de um estropiado mudo que vira no aeroporto de Atenas. Este homem, tentando impingir pequenos sacos de pistacho, atirando pequenos anúncios impressos para o regaço dos passageiros em espera, inclinava-se para a frente com esforço, britando o chão com pés incontroláveis, a cabeça pendendo e os olhos rebolando para cima. Cada vez que David mirava aquela boca retorcendo-se em silêncio, como um peixe arfando na margem de um rio, experi-mentava uma espécie de vertigem.

Prestou atenção ao silvo dos seus chinelos amarelos ao subir o último lanço de degraus até à porta que levava do terraço à sala de visitas. Yvette ainda não tinha afastado as cortinas, o que lhe poupou o trabalho de as voltar a fechar. Apreciava aquele aspeto sombrio e valioso da sala de visitas. Uma cadeira vermelho-escuro e pesada-mente dourada, que a avó americana arrebatara a uma família veneziana num dos seus périplos mercantes pela Europa, reluzia na parede oposta da sala. Tinha prazer no escândalo implicado nessa aquisição e, sabendo que aquilo deveria pertencer aos cuidados de um museu, fazia questão em sentar-se nela tão frequentemente quanto possível. Às  vezes, quando estava sozinho, sentava-se na cadeira do Doge, como sempre lhe chamavam, inclinando-se para a frente no assento, com a mão firmada num dos braços intrincada-mente entalhados, arriscando uma pose que recordava da História

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ilustrada de Inglaterra, que lhe tinha sido oferecida na escola pre-paratória. A imagem era a de Henrique V, mostrando uma soberba cólera quando presenteado com bolas de ténis pelo insolente Rei de França.

David estava rodeado pelos despojos da família matriarcal ame-ricana de Eleanor. Gravuras de Guardi e Tiepolo, Piazetta e Novelli pendiam densamente das paredes. Um biombo francês setecentista, habitado por uma multidão de macacos castanho-acinzentados e rosas, dividia em metade a grande sala. Parcialmente escondido atrás dele, do ângulo de visão de David, estava um móvel chinês preto, o topo ostentando uma bem proporcionada fileira de garrafas, e as prateleiras interiores carregadas com as suas recargas. Ao servir-se de uma bebida, David pensou no seu sogro defunto, Dudley Craig, um escocês agradável e bêbedo dispensado dos serviços de Mary, mãe de Eleanor, quando sustentá-lo se tornara demasiado dispendioso.

A seguir a Dudley Craig, Mary casara com Jean de Valençay, com o firme sentimento de que, se era para manter um homem, então que fosse um duque. Eleanor fora educada numa fiada de casas onde cada objeto parecia ter pertencido a um rei ou a um impe-rador. As casas eram maravilhosas, mas os convidados deixavam--nas com alívio, conscientes de que não eram bons o suficiente, aos olhos da duquesa, para as cadeiras em que se sentavam.

David caminhou para a janela alta ao fundo da sala, a única com a cortina afastada, dando sobre a montanha em frente. Con-templava amiúde os afloramentos despidos do calcário lacerado. Pareciam-lhe modelos de cérebros humanos deixados naquele lado verde-escuro da montanha, ou, por vezes, um único cérebro, irrom-pendo de uma série de incisões. Sentou-se no sofá junto à janela e olhou para fora, procurando cinzelar um sentimento de reverência primordial.

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