débora soarez karpowicz

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1 PRISÕES FEMININAS NO BRASIL: POSSIBILIDADES DE PESQUISA E DE FONTES Débora Soares Karpowicz Doutoranda PUCRS Bolsista CNPq [email protected] A história do encarceramento feminino no Brasil institucionalizou-se no final da década de 1930 a partir dos debates engendrados por penalogistas, médicos e\ou diretores das próprias instituições prisionais. Tais discussões trouxeram à baila a situação dos cárceres no Brasil e, como consequência, a necessidade da separação de homens e mulheres dentro do espaço prisional. Ao se falar sobre a história das prisões femininas no Brasil, uma instituição deve ser lembrada, a Congregação Bom Pastor d’Angers que, desde 1891, atuou no Brasil com a missão de auxílio e proteção às mulheres e meninas em situação de miséria, exclusão social e material. A atuação das Irmãs do Bom Pastor, juntamente com as deliberações do Estado, teve função crucial na reestruturação do cárcere, com a separação de apenados homens de apenadas mulheres em um contexto em que a lei penal não previa tal distinção. Para tanto, este trabalho pretende mostrar as possibilidades de pesquisa e de fontes disponibilizadas por esta Congregação, nos arquivos de São Paulo, Lisboa (Portugal) e Angers (França). A Congregação Nossa Senhora do Bom Pastor d’Angers, foi fundada na França em 1835 por Maria Eufrásia Pelletier. Surgiu com propósito muito amplo, o de dar assistência a pessoas em situação de marginalidade, especialmente meninas órfãs, prostitutas, presos e presas, conforme apronta documento: (...) Viver a misericórdia, Reconciliação, Luta pela justiça, Esperança e Solidariedade junto às pessoas marginalizadas, especialmente meninas e meninos abandonados, mulheres, presas e presos, mulheres prostitutas, famílias pobres das periferias, favelas e cortiços (...) (Manuscrito Irmãs do Bom Pastor, s/d). O serviço prestado por esta Congregação adquiriu o matiz característico do assistencialismo formato que a caracterizou e a acompanhou no curso dos anos , a partir do contexto histórico do início do século XIX, em decorrência das mudanças estruturais produzidas pelo final da Revolução Francesa e pela reorganização das leis do

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Page 1: Débora Soarez Karpowicz

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PRISÕES FEMININAS NO BRASIL: POSSIBILIDADES DE PESQUISA E DE

FONTES

Débora Soares Karpowicz

Doutoranda PUCRS – Bolsista CNPq

[email protected]

A história do encarceramento feminino no Brasil institucionalizou-se no

final da década de 1930 a partir dos debates engendrados por penalogistas, médicos e\ou

diretores das próprias instituições prisionais. Tais discussões trouxeram à baila a

situação dos cárceres no Brasil e, como consequência, a necessidade da separação de

homens e mulheres dentro do espaço prisional. Ao se falar sobre a história das prisões

femininas no Brasil, uma instituição deve ser lembrada, a Congregação Bom Pastor

d’Angers que, desde 1891, atuou no Brasil com a missão de auxílio e proteção às

mulheres e meninas em situação de miséria, exclusão social e material. A atuação das

Irmãs do Bom Pastor, juntamente com as deliberações do Estado, teve função crucial na

reestruturação do cárcere, com a separação de apenados homens de apenadas mulheres

em um contexto em que a lei penal não previa tal distinção. Para tanto, este trabalho

pretende mostrar as possibilidades de pesquisa e de fontes disponibilizadas por esta

Congregação, nos arquivos de São Paulo, Lisboa (Portugal) e Angers (França).

A Congregação Nossa Senhora do Bom Pastor d’Angers, foi fundada na

França em 1835 por Maria Eufrásia Pelletier. Surgiu com propósito muito amplo, o de

dar assistência a pessoas em situação de marginalidade, especialmente meninas órfãs,

prostitutas, presos e presas, conforme apronta documento:

(...) Viver a misericórdia, Reconciliação, Luta pela justiça, Esperança e

Solidariedade junto às pessoas marginalizadas, especialmente meninas e

meninos abandonados, mulheres, presas e presos, mulheres prostitutas,

famílias pobres das periferias, favelas e cortiços (...) (Manuscrito Irmãs do

Bom Pastor, s/d).

O serviço prestado por esta Congregação adquiriu o matiz característico do

assistencialismo – formato que a caracterizou e a acompanhou no curso dos anos –, a

partir do contexto histórico do início do século XIX, em decorrência das mudanças

estruturais produzidas pelo final da Revolução Francesa e pela reorganização das leis do

Page 2: Débora Soarez Karpowicz

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Estado da França efetuada por Napoleão Bonaparte. Concomitante à reorganização do

Estado e das leis napoleônicas, deu-se a consolidação do Estado Social moderno. No

entanto, as origens deste Estado Assistencial distam do período supracitado, pois estão

no seio do cristianismo, quando o trabalho assistencial estava ligado diretamente à

Igreja, ao trabalho prestado por religiosos e pela comunidade cristã, que via na ajuda

aos necessitados uma forma de perdão dos pecados. A esta prática de auxílio aos

desvalidos com intuito de salvação da alma e remissão dos pecados, Robert Castel

chamou de Economia da Salvação.

A base que constitui este ofício assistencial às mulheres emergiu da mesma

matriz do assistencialismo. A Congregação Bom Pastor d’Angers atuou na

administração de cárceres femininos desde o início do século XIX até final do século

XX nos quatro continentes. Foi possível constatar a importância desta Congregação ao

pesquisar em arquivos particulares nas cidades de São Paulo (Brasil); Lisboa (Portugal)

e Angers (França).

Possibilidades de pesquisa e de fontes: arquivo de São Paulo

Se pensarmos no sentido da palavra fonte, conforme aponta Maria Cury e

Edson Campos, teremos o significado de ponto primeiro, inicial, neste sentido, segundo

os autores, as fontes primárias na investigação e na pesquisa são consideradas a matriz

explicativa do objeto de estudo, estabelecendo uma relação de dependência. Essas

teriam a função de explicar ou até mesmo “provar” os significados que a pesquisa

pretende (1997, p. 02). Na história, o “problema” das fontes há muito é tempo discutido.

No início do século XX Seignobos dizia “sem documento não há história”, no entanto

esta afirmação foi criticada e ultrapassada pela escola dos Annales, Febvre então

afirmou “sem problema não há história”.

Em consonância com Febvre, a partir do meu problema de pesquisa sobre a

História da Penitenciária Feminina Madre Pelletier de Porto Alegre, fui em busca do

que Seignobos aconselhava já em 1901, das fontes. Nesta procura deparei-me com um

universo de fontes e possibilidades de pesquisa sobre as prisões femininas no Brasil e

no mundo.

Page 3: Débora Soarez Karpowicz

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O primeiro grande arquivo pesquisado foi o arquivo particular das Irmãs do

Bom Pastor em São Paulo (Capital)1. Neste, apesar do objetivo ser o “tal” problema de

pesquisa, não tive como furtar-me de observar, anotar, fotografar e catalogar os demais

materiais ali existentes. Este arquivo, e aí saliento – particular das Irmãs da

Congregação Bom Pastor d’Angers –, estava rigorosamente organizado, com armários

de aço bem identificados e caixa-arquivos também identificadas com a documentação

que continham.

Vamos ao que nos interessa – a documentação. Para os pesquisadores da

História da Igreja que têm interesse em investigar sobre Congregações, este arquivo

possui farta documentação, em especial sobre a própria Congregação Bom Pastor e sua

relação com a Igreja de Roma e a história de Santidades e membros da Igreja que foram

importantes para esta instituição, como: Santa Maria Eufrásia Pelletier, Maria Droste,

São João Eudes, dentre outros. Também há relação de todas as Irmãs Superioras da

Congregação desde sua fundação no Rio de Janeiro em 1891. Esta documentação é

específica da Igreja e da província do Brasil, assim como atas capitulares,

correspondências, recortes de jornais específicos sobre a Congregação e sua

administração encontram-se no armário A (MANUSCRITO, 2004).

A documentação amplia-se, no armário B encontram-se todas as

correspondências e histórico das relações da Província do Brasil com outras províncias,

divididas em: América2, América Central3, Canadá, Estados Unidos, Ásia, África e

Europa4. No armário C encontra-se uma documentação valiosíssima para os Estudos

sobre prisões femininas no Brasil, as atas de fundação das casas, bem como os relatórios

e todo o histórico destas fundações (MANUSCRITO, 2004).5 Ainda neste local de

resguardo, armário C, está toda documentação das casas desativadas, aqui temos a

divisão por Estado e na sequência por casas. Utilizarei três exemplos, os Estados de São

Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

1 Tal arquivo encontra-se no endereço: Rua Batista Cepello, 181 – Bairro Aclimação – São Paulo (SP). 2 Bolívia, Colômbia, Argentina, Paraguai, Chile, Peru, Venezuela, Equador, Uruguai. 3 México. 4 Portugal, Espanha, Alemanha, Budapeste. 5 Rio de Janeiro – Tijuca (1891); São Paulo – Ipiranga (1897); Caeté (1919); Barra (1920); Belo

Horizonte (1923); Casa de prevenção e reforma (1924); Escola Alfredo Pinto – Petrópolis (1936); Pelotas

– Rio Grande do Sul (1936); Barbacena – Minas Gerais (1942); Carandiru – capital – São Paulo (1942);

Bangu – Rio de Janeiro (1942).

Page 4: Débora Soarez Karpowicz

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A começar por São Paulo, o número de casas administrado pela

Congregação Bom Pastor é enorme. Não somente prisões são administradas por elas,

mas orfanatos, colégios, trabalhos de pastoral, em geral locais de ressocialização

voltados às mulheres em situação de vulnerabilidade. Neste Estado, temos a

Congregação Bom Pastor presente nos seguintes locais, conforme documento:

Santos, Campinas, São Sebastião, Lins, Cubatão, Guaianases (Jardim

Centenário), Belém (1983), Brás, Santo Antônio dos Campos. Centro

Comunitário Maria – plano de trabalho com as mulheres prostitutas e pessoal

ligados a elas (Brás);, Carandiru (correspondências, avaliação da presença

das Irmãs, discurso das internas, inventário, regimento interno e

regulamentos, procurações, prontuários , plantas arquitetônicas, documentos

sobre a fundação do presídio); Ipiranga (casa de menores); Tremembé

(Penitenciária) (MANUSCRITO, 2004).6

No Estado do Rio de Janeiro, a primeira casa foi fundada em 21 de

novembro de 1891, data de comemoração da chegada do Bom Pastor no Brasil, pelo

Decreto nº 173 de 10 de setembro de 1893 no qual foi lavrado em cartório o Contrato de

fundação da Congregação Nossa Senhora do Bom Pastor com o governo do Estado do

Rio de Janeiro (PÚBLICA FORMA, 1902, p. 37). A partir desta primeira instituição,

muitas outras foram fundadas, neste Estado e no restante do Brasil. Ao que se refere o

Rio de Janeiro, conforme aponta documentação temos:

Bangu (cartas pessoais das Irmãs, correspondências diversas, contrato,

regimento interno, relatórios, reportagens de jornal); Meier

(correspondências, bispado, Regimento interno e estatuto, cartas, relatórios);

Tijuca (primeiros registros da Congregação no Brasil, histórico da chegada

da Congregação Bom Pastor) (MANUSCRITO, 2004).

No Rio Grande do Sul a obra da Congregação do Bom Pastor iniciou-se na

cidade de Pelotas, interior do Estado. Por intermédio da Associação das Damas de

Caridade, que já conheciam a obra das Irmãs no Rio de Janeiro, correspondências foram

trocadas entre as Irmãs e a dama da sociedade até o ano de 1928, quando a irmã Maria

de São Francisco Xavier Novoa fez a primeira visita à cidade a fim de verificar as

condições para a fundação da Instituição. No final do mesmo ano, a provincial do Rio

6 Estas referências são parciais, não dão conta de todo o acervo, faço aqui uma amostragem do material

existente. Estes materiais encontram-se nos armários C e D.

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de Janeiro, enviou seis Irmãs7 para Pelotas com a incumbência de fundar o Bom Pastor.

Em 14 de janeiro de 1929 foi inaugurada a Casa provisória, pertencente às Damas de

Caridade. O lugar tornou-se pequeno para a obra almejada, motivando o início da

campanha de construção do Asilo. Mesmo com a ajuda da comunidade, da provincial e

da diocese, somente no ano de 1945 iniciou-se a construção da nova casa, que foi

oficialmente inaugurada em 1948 (CAMPOS, 1981, p.135-141).

A casa do Bom Pastor de Pelotas serviu como base de apoio – ao longo de

todo período de administração das Irmãs –, à casa de Porto Alegre. Em análise às Atas

do Livro de Capítulos observou-se uma transitoriedade constante entre as duas

instituições. Há remanejos seguidos entre as Irmãs, ora vindo de Pelotas, ora indo à

Pelotas, por diversos motivos: para ajudar na casa, para retiro espiritual, para tratamento

de saúde, dentre outras finalidades. Constatou-se também que as visitas regulares,

geralmente de dois em dois anos, feitas pela Superiora Provincial, seguiam uma

sequência, primeiro Pelotas, depois Porto Alegre e a partir da década de 1960, quando a

casa de Caxias do Sul foi fundada, a Superiora segue também para esta cidade para

efetuar visita regular. As casas do Sul se auto apoiavam com trocas constantes e

também apoiavam as novas casas que surgiram no restante do país. Conforme visto, três

casas são fundadas no Rio Grande do Sul, em Pelotas (1929), Porto Alegre (1936) e

Caxias do Sul (1960).

A documentação referente à casa de Pelotas está disponível no armário C,

neste local encontramos: certidões de batismos, correspondências, dados históricos

sobre a casa, estatuto e demais documentos dispostos em duas caixas. A documentação

de Porto Alegre, referente ao trabalho executado pelas Irmãs junto às meninas órfãs do

Estado e às mulheres em processo de julgamento ou condenadas, antes sob a custódia da

Casa de Correção, encontram-se no armário D. A documentação referente à casa de

Caxias do Sul encontra-se no armário O, dispostas em dez caixas arquivos.

(MANUSCRITO, 2004).

A administração das Irmãs do Bom Pastor em Porto Alegre passou por

diversas fases. A primeira foi em 1936, com a Escola de Reforma, responsável por

abrigar as mulheres “criminosas” antes recolhidas à Casa de Correção de Porto Alegre.

7 As Irmãs destinadas à fundação da nova casa em Pelotas foram: Me. Maria de Sta. Eufrásia Chaves

(superiora); Ir. Maria de Sta. Família Lemos Lessa (Assistente); Ir. Maria de São João Eudes Lourenço de

Moraes; Ir. Maria do Trânsito Oliveira; Ir. Maria Rosa Virginia Paranhos; Ir. Maria Rosa Ávila de

Oliveira. In: CAMPOS, op. Cit., p. 138.

Page 6: Débora Soarez Karpowicz

6

A segunda fase - Reformatório de mulheres criminosas (1940) – com o mesmo

propósito, no entanto com uma ampliação do número de mulheres albergadas. A

terceira fase – Instituto Feminino de Readaptação Social (1950) – foi um período de

extrema complexidade, abrigou mulheres condenadas ou em processo de julgamento,

meninas órfãs encaminhadas pelo juizado de menores de todo Estado do Rio Grande do

Sul, escola de reforma para “meninas indisciplinadas” encaminhadas por familiares, e

ainda, atuou como escola interna e externa, recebendo público diversificado, além de

convento de formação de freiras e asilo para senhoras. Na quarta e última fase de

administração das Irmãs do Bom Pastor - Penitenciária Feminina Madre Pelletier (1970)

– tal instituição passou a atuar apenas como prisão feminina, recebendo mulheres

condenadas ou em processo de julgamento de todo o Estado, inclusive durante a

ditadura militar, atuou como prisão política, sendo o espaço amplamente utilizado pelo

DOPS (livro do Capitulo, 1936-1977).

A documentação referente a estas fases da instituição está disponível no

armário D, disposta em quatro caixas (100, 101, 102 e 103). Nestas, encontramos

documentos como Regulamento Interno, Decretos de utilidade pública, reportagens,

correspondências particulares das irmãs, assim como correspondências com

autoridades; fichas das meninas encaminhadas pelo juizado de menores, assim como

toda documentação de doação do terreno e construção do prédio. Além destas caixas

com documentação sobre as diversas fases da “Penitenciaria Feminina Madre Pelletier”,

encontramos sete livro de registros, manuscritos pelas Irmãs do Bom Pastor, com

finalidades diversas: Livro 43 – Livro do Capítulo - Atas manuscritas pelas irmãs desde

1936 até 1977; Livro 44 – Registro de Benfeitores - Livro de registro dos fundadores e

benfeitores do Mosteiro de Nossa Senhora de caridade do Bom Pastor d’Angers em

Porto Alegre (1936 até 1978); Livro 47 – Atas de Reuniões - Atas das reuniões de

equipe de vida da comunidade de Porto Alegre (1969 – 1976); Livro 48 – Associação

das Damas de Caridade - Atas de reunião das Damas de Caridade de Porto Alegre (1916

até 1923); Livro 50 – Atas da Diretoria - Atas de eleição da diretoria do Bom Pastor

(1965 até 1981); 51b. – Livro dos empregados - Livro de registro de empregados (1968

até 1971); Livro 52 – Livro de Ouro - Livro de registro de doações para o Bom Pastor

(MANUSCRITO, 2004).

Page 7: Débora Soarez Karpowicz

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Nesta pequena amostragem é possível constatar a riqueza da documentação

e as possibilidades de pesquisa sobre prisões femininas no Brasil que este arquivo

dispõe, isto em nível de Brasil, se ampliarmos a pesquisa através da Congregação Bom

Pastor no mundo, teremos muitas outras possibilidades, conforme os arquivos de

Portugal e França demonstram.

Arquivo de Lisboa (Portugal) e Angers (França)

A possibilidade de pesquisar em Portugal e França8 surgiu ao eu ser

contemplada com uma bolsa de doutorado sanduíche pelo órgão de fomento CAPEs.

Tal dispositivo ampliou meu olhar de pesquisadora, a partir deste contato foi possível

atestar a amplitude da obra da Congregação Bom Pastor d’Angers em nível mundial. O

arquivo de São Paulo já havia dado uma prévia, mas a convivência com as Irmãs do

Bom Pastor em Portugal e França possibilitou-me além do contato físico com a

documentação, fazer observações participantes e entrevistas informais acerca da obra

desenvolvida pelas Irmãs em tempos passados e na atualidade.

No arquivo da Congregação Bom Pastor em Lisboa9 tive acesso a toda

documentação da história da Congregação Bom Pastor desde sua chegada em Portugal

(1881), até a documentação específica das obras e casas administradas pelas religiosas

no momento atual. A obra do Bom Pastor em Portugal dividiu-se em quatro grandes

fases, conforme manuscrito deixado pelas Irmãs. A primeira – de 1881 até 1910 – foi

chamada de fundação, período de chegada à cidade do Porto e consolidação da obra. Lá

permaneceram até a expulsão em 1910.10 Segunda fase – 1910-1937 –, chamado de

implantação. Terceira fase – 1937 - 1962 –, chamada de expansão. E a fase final

descrita no documento que iniciou em 1962 até a atualidade11, chamada de novos

rumos (MANUSCRITO, 1981, p. 2-3).

8 Fiquei hospedada na casa da Congregação Bom Pastor d’Angers de Lisboa do dia 25 de junho à 15 de

julho de 2015, quando fui pesquisas em Angers, na França, também ficando hospedada na casa da

Congregação. 9 O arquivo fica localizado na Rua Veloso Salgado 35, bairro Santos, Lisboa, Portugal. 10 Em 1881 quatro religiosas administravam a obra do Bom Pastor na cidade do Porto em Portugal. Em

1895 já eram 20 religiosas e 137 penitentes (mulheres e meninas acolhidas pelas religiosas). In: Manuscrito. Bom Pastor de Angers em Portugal: um século (1881-1981). Lisboa, arquivo da

Congregação Bom Pastor. 31 de agosto de 1981, p. 3. 11 Por atualidade entende-se à data de escrita desta documentação, em 31 de agosto de 1981.

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Ao que interessa sobre prisões femininas, encontra-se disponível neste local

de pesquisa toda documentação referente ao presídio de Tires, primeira prisão feminina

de Portugal, fundada em 1953, com a denominação inicial de Cadeia Central de

Mulheres e sob a administração do Bom Pastor até 1980, quando inicia o processo de

transição da administração Bom Pastor para o Governo de Portugal, conforme aponta

documento:

Logo, desde o princípio da restauração do om Pastor em Portugal se revelou

o interesse do Governo pelo apostolado específico a que a nossa

Congregação de dedica. Esse interesse subiu de ponto quando dos primeiros

contatos com o departamento da Assistência Social (fundação de Torres

Vedras), e dos contactos subsequentes com o Ministério da Justiça (idem de

Viseu) - contactos que visavam exatamente os dois objetivos principais do

apostolado do Bom Pastor: a preservação e a reabilitação feminina.

(MANUSCRITO, 1981, p. 19).

Neste montante de documentos estão disponíveis: manuscritos com relatos

das Irmãs, contrato firmado entre o governo de Portugal e a Congregação, livro de atas,

recortes de jornais da época, livro com a lista das Irmãs e funcionários da casa, ano-a-

ano; Livro dos anais, com o registro anual das atividades, desde os primeiros contatos

do governo Português até o ano de 1967, fotos das atividades do local e das atividades

desenvolvidas pelas Irmãs e pelas internas, assim como registros da creche entre outros

documentos referentes a esta casa de correção.

A cidade de Angers, localizada no centro da França, na região do “Val de

Loire”, data do período neolítico, passando pelos Romanos, Idade Média, auge do seu

crescimento, quando abrigou a Dinastia de Anjou que deu origem aos Plantagenetas. É

neste local que surgiu a Casa do Bom Pastor, que existiu na cidade de Angers de 1692

até a Revolução Francesa, quando foi destruída pelos ideais revolucionários da época.

Foi dirigida por uma comunidade sem clausuras e destinada a moças que, saídas do

refúgio, desejassem aperfeiçoar a sua reabilitação. Depois de permanecer 40 anos

desativada, foi reconstruída graças à iniciativa da Condessa Maria Inocência Joana de

Lentivy. No entanto, após sua morte em 1827, seu filho, Conde de Agostinho de

Neuville, impossibilitado de dar continuidade à obra, pediu ajuda ao Bispo d’Angers

para retomar o fruto deixado pela mãe (MANUSCRITO, 1976, p. 4).

Maria Eufrásia Pelletier, recebeu o convite de Dom Montault des Isles para

que fundasse, no seu bispado, na cidade de Angers, um novo refúgio. Em 1829 as

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primeiras Irmãs chegaram a Angers, no entanto, a administração ficou ao encargo da

Madre Bodin. Foi somente em 1831 que Maria Eufrásia se tornou superiora da Casa do

Bom Pastor, trazendo ao local inúmeras reformas, dentre as quais o aumento

significativo do número de noviças , bem como o número de mulheres assistidas,

incluindo as órfãs (MANUSCRITO, 1976, p. 5).

Pelletier fez propostas inovadoras e com isso enfrentou muitas oposições,

ficando sem, até mesmo, o apoio das Irmãs de convento. Dentre as mudanças aludidas,

sugeriu às Irmãs e Coordenadoras que os Mosteiros até então autônomos, funcionassem

em Rede ou Parceria, partilhando recursos humanos e financeiros, pois desejava que o

mundo inteiro se beneficiasse da obra iniciada por S. João Eudes. O seu desejo não foi

aceito e Maria Eufrásia rompeu definitivamente com o mosteiro de Tours e “do tronco

de N. Senhora da Caridade do Refúgio, destacou-se novo ramo, a Congregação de

Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor d’Angers.” Como fruto das suas obras, foi

expedido pelo Papa Gregório XVI em 16 de janeiro de 1835 o Decreto do Generalato o

qual conferiu à Casa do Bom Pastor o título de Casa Mãe. Desta forma, originou-se a

Congregação do Bom Pastor, sendo Superiora a Irmã Maria de Santa Eufrásia Pelletier

e tendo como data de fundação o dia 31 de julho de 1835 (CAMPOS, 1981, p.6).

A assistência às mulheres presas iniciou quando Maria Eufrásia, em 1846,

por motivos de saúde adquiriu uma chácara próxima à cidade de Angers. Devido ao

espaço e às condições materiais que o lugar proporcionava, este local tornou-se uma

colônia agrícola, recebendo prisioneiras com o objetivo de ensiná-las o trabalho de

campo e dar-lhes uma educação moral e religiosa, chamando-se Casa de Nazaré.

Posteriormente (1852) tornou-se um convento. Sob a administração de Maria Eufrásia,

o manuscrito feito pelas Irmãs do Bom Pastor em 20 de dezembro de 1976 afirma:

Em dez anos a Congregação do Bom Pastor, sob a administração de Maria

Eufrásia, já contava com vinte conventos na França, três nos Estados da

Sardenha, dois em Roma, dois na Bélgica, um na Baviera, um na Inglaterra,

um nos Estados Unidos e um na Argélia. Incluindo a casa mãe eram trinta e

duas casas (MANUSCRITO, 1976, p. 6).

A Congregação Nossa Senhora do Bom Pastor se espalhou pelo mundo

rapidamente, e em 1855 já existiam, somente na França, 29 novas casas e 27 em outros

países. A história desta Congregação, que tomou novos rumos a partir da remodelação

Page 10: Débora Soarez Karpowicz

10

feita por Maria Eufrásia Pelletier no início do século XIX e que sob a sua administração

espalhou-se pelo mundo, encontra-se disponível no arquivo particular da Congregação

bom Pastor em Angers12. Abaixo imagem que retrata a obra desta Congregação, cada

tronco da árvore representa uma província e cada folha uma casa.

IMAGEM I

Fundações Bom Pastor – Acervo da autora

12 Bon-Pasteur – 18 rue Marie Euphrasie Pelletier – 49100 – Angers – France.

Page 11: Débora Soarez Karpowicz

11

Neste local encontram-se, além da história desta Congregação e de sua

fundadora Maria Eufrásia Pelletier, os registros de todas as casas administradas pelas

Irmãs no mundo. Os registros das casas estão organizados em grandes livros de anais,

desde 1829 até o final do século XX. O arquivo está organizado por data e missão

apostólica, exemplo: Livro de fundações da América Latina. Aqui encontramos o

histórico e a documentação de todas as casas fundadas na América Latina, com atas de

fundações, pequeno histórico e imagens. Abaixo a imagem II retrata o arquivo aqui

mencionado e a imagem III, foto retirada do livro de fundações da América Latina

mencionando a casa do Rio de Janeiro.

IMAGEM II

Arquivo de Angers – Acervo da autora

IMAGEM II

Page 12: Débora Soarez Karpowicz

12

Livro de Fundações América Latina – Casa Bom Pastor no Rio de Janeiro

Acervo da autora

Estas instituições prisionais administradas pela Congregação Bom Pastor

d’Angers ao longo de todo século XIX e XX buscaram a docilidades dos corpos destas

mulheres através de uma rígida disciplina, imposta por regulamentos com horários e

tarefas bem definidas. Este poder disciplinar, segundo Foucault buscou a constante

vigilância e o controle dos corpos de forma a fazerem-se corpos dóceis a partir de

múltiplas facetas, técnicas e procedimentos específicos de poder (FOUCAULT, 2010).

Nos arquivos desta instituição é possível construir a história das principais

prisões femininas do mundo, grande parte, se não todas, passaram pela administração

das freiras. Infelizmente, o acesso a estes arquivos é restrito, tantos documentos, tantas

possibilidades de pesquisa encontram-se enclausuradas, sob a administração desta

importante Congregação que muito contribuiu para administração dos cárceres

femininos no Brasil e no mundo.

Ao que consta, até agora no arquivo de São Paulo e Portugal, somente eu

tive acesso a esta documentação. Ao passo que temos tamanha restrição de acesso, se

pensarmos em termos de conservação de documentação, comparando estes arquivos

com os existentes sobre prisões no Rio Grande do Sul, temos que agradecer a esta

Congregação que manteve esta história guardada. Neste sentido não me esquivo de

Page 13: Débora Soarez Karpowicz

13

afirmar ser é preferível que estes documentos fiquem sob a administração das freiras, na

torre do claustro, onde pesquisadores realmente interessados precisam passar por

verdadeiras provas de resistência para acessá-los, do que sob a égide do governo do

Estado13.

13 Neste caso, destaco o Estado do Rio Grande do Sul. Aqui trago minha experiência particular de

pesquisa, que em contato com as secretarias, arquivos e órgãos responsáveis por manter essa

documentação guardada, nada foi encontrado e o pouco que restou estava em péssimas condições de

conservação.

Page 14: Débora Soarez Karpowicz

14

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: Uma crônica do salário.

Tradução Iraci D. Poleti. Petrópolis: Vozes, 2008.

CAMPOS, Edson Nascimento and CURY, Maria Zilda Ferreira. FONTES

PRIMÁRIAS: SABERES EM MOVIMENTO. Rev. Fac. Educ. [online]. 1997, vol.23,

n.1-2, pp.-. ISSN 0102-2555. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-25551997000100016.

CAMPOS, Margarida de Moraes. Ir. A Congragação do Bom Pastor na Província

Sul do Brasil: Pinceladas Históricas. São Paulo: Editora da Congregação, 1981.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

FONTES PRIMÁRIAS

Livro do Capítulo. Acervo Bom Pastor. Armário F. 43 - Livro do Capítulo. Porto

Alegre – RS.

Manuscrito. Acervo Bom Pastor. Armário A, caixa 2. Santa Maria Eufrásia Pelletier

– Maria Droste. 2.8. Comemoração do Bicentenário de Santa Maria Eufrásia Pelletier.

Manuscrito. Bom Pastor de Angers em Portugal: um século (1881-1981). Lisboa,

arquivo da Congregação Bom Pastor. 31 de agosto de 1981.

Manuscrito. Acervo Bom Pastor. Armário A, caixa 2. Santa Maria Eufrásia Pelletier

e sua obra. Porto Alegre, 20 de dezembro de 1976.

Manuscrito. Armário A, pasta. Catálogo Arquivo Permanente. Belo Horizonte, 31 de

dezembro de 2004.

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