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Jornal de Psicanálise, São Paulo, 41(75): 25-48, dez. 2008. 25 DEBATE – TRANSFERÊNCIAS Em 2 de dezembro, o corpo editorial do JP – na ocasião, representado por Leda Maria Codeço Barone (editora), Alice Paes de Barros Arruda, Beatriz Helena Peres Stucchi, Iliana Horta Warchavchik e Marta Úrsula Lambrecht – rece- beu Mariângela Mendes de Almeida, Orlando Lúcio Neves De Marco e Suzana Kiefer Kruchin para um debate a respeito do tema presente número: Transferências. Também foi convidada a colega Cândida Sé Holovko, que responderá pela editoria do Jornal de Psicanálise no biênio 2009-2010. JP: De obstáculo à alavanca da análise, de estatuto periférico a estatuto central no processo de cura, a Transferência viaja ao sabor dos ventos ao longo da obra freudiana, na qual se abrigou no coração do método: sem transferên- cia, o paciente é inacessível à psicanálise e não pode por ela ser curado. Que conseqüências podemos tirar desta afirmação na atualidade? De que maneira tal afirmação pode ser considerada, levando em conta a clínica de cada um de vocês? Mariângela: Penso que a transferência carrega o espírito da psicanálise no sentido ter sido ao mesmo tempo uma questão muito inicial, que passou por muitas transformações e foi alvo de reflexões, aportes, de mudanças derivadas da própria clínica e da prática ao longo dos anos. Acho que isso faz com que a transferência seja um tema muito importante em termos de repre- sentar a psicanálise, o trabalho em psicanálise, as mudanças, as evoluções. E o que me atraiu muito, particularmente, antes de conversar com vocês, são os novos aspectos da transferência nos ter-

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Jornal de Psicanálise, São Paulo, 41(75): 25-48, dez. 2008. 25

DEBATE – TRANSFERÊNCIAS

Em 2 de dezembro, o corpo editorial do JP– na ocasião, representado por Leda Maria CodeçoBarone (editora), Alice Paes de Barros Arruda,Beatriz Helena Peres Stucchi, Iliana HortaWarchavchik e Marta Úrsula Lambrecht – rece-beu Mariângela Mendes de Almeida, OrlandoLúcio Neves De Marco e Suzana Kiefer Kruchinpara um debate a respeito do tema presentenúmero: Transferências. Também foi convidadaa colega Cândida Sé Holovko, que responderápela editoria do Jornal de Psicanálise no biênio2009-2010.

JP: De obstáculo à alavanca da análise, deestatuto periférico a estatuto central no processode cura, a Transferência viaja ao sabor dosventos ao longo da obra freudiana, na qual seabrigou no coração do método: sem transferên-cia, o paciente é inacessível à psicanálise e nãopode por ela ser curado. Que conseqüênciaspodemos tirar desta afirmação na atualidade? Deque maneira tal afirmação pode ser considerada,levando em conta a clínica de cada um de vocês?

Mariângela: Penso que a transferênciacarrega o espírito da psicanálise no sentido tersido ao mesmo tempo uma questão muito inicial,que passou por muitas transformações e foi alvode reflexões, aportes, de mudanças derivadas daprópria clínica e da prática ao longo dos anos.Acho que isso faz com que a transferência sejaum tema muito importante em termos de repre-sentar a psicanálise, o trabalho em psicanálise, asmudanças, as evoluções. E o que me atraiu muito,particularmente, antes de conversar com vocês,são os novos aspectos da transferência nos ter-

Leda Barone, Alice Arruda, Beatriz Helena P. Stucchi, Iliana H. Warchavchik, Marta Úrsula Lambrecht,Mariângela M. de Almeida, Orlando Lúcio N. De Marco, Suzana Kiefer Kruchin e Cândida Sé Holovko

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mos de como ela tem se colocado paranós na clínica atual com a consideraçãodos estados primitivos da mente, se élegítimo se falar em transferência ou não.A própria evolução da transferência emtermos do trabalho com crianças, toda apolêmica em torno do trabalho com bebêstambém. Então, o que me atraiu muito, naquestão proposta pelo Jornal de Psica-nálise, foi a possibilidade de discutir asmudanças.

Leda: Essa foi também uma idéianossa. Pensar a transferência a partir dediferentes lugares e práticas clínicas.

Alice: Considerando todas essasmudanças que você aponta, talvez vocêpudesse fazer um link e dizer como elasse dão em sua clínica.

Mariângela: Trabalho muito comcrianças, com pais e bebês e também comadultos, sempre a partir de uma reflexãodo aqui e agora presente na sessão. Aíjá se põe toda a questão da transferênciaem termos de como ela acontece naqualidade da relação. A transferênciacomo situação total, que se estabelecena transposição para relação ali com oanalista de situações relacionais. Aspec-tos relacionais que não precisam, neces-sariamente, estar tão definidos e formula-dos em termos de sujeitos, pessoas oupadrões, mas em todo um aspecto quepode mesmo ser até mais primitivo. As-pectos presentes em cada indivíduo des-de o início da vida mental e aspectos

antecedentes em relação ao desenvolvi-mento dessa vida mental. Como é quepodemos falar em termos desses aspec-tos, que se atualizam numa relação comum analista de criança, também na ques-tão do atendimento a pais e bebês ou acrianças com transtornos autísticos?Como esses aspectos, tão característicosda forma de cada indivíduo se colocar nassituações, podem ser demonstrados, ex-pressos, manifestos numa relação nosetting analítico?

Marta: E você acredita que atransferência que se desenvolve na aná-lise de adulto é a mesma transferênciaque se tece numa relação de análises decrianças?

Mariângela: Essas são as ques-tões. Dá pra falar em transferência – ouprecisamos criar um novo termo, que dêconta nesse tipo de situação que é, dealguma maneira, levado ou manifesto?Temos aqui um aspecto muito interessan-te, que é essa nossa busca por conceitos,por palavras que possam abordar e abar-car esses novos desenvolvimentos. Nãodá para falar que a transferência se dá damesma forma – mas de que modo chamarentão isso que se dá? É um aspecto datransferência?

Leda: Ou transferências, no plu-ral?

Mariângela: É como o própriodesenrolar da questão do mental na psica-

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nálise, em termos de abarcar ou nãopsicóticos, abarcar ou não crianças de-senvolvendo transferência desde o início.Enfim, toda a polêmica de Anna Freud eMelanie Klein em termos de considerarse a criança é capaz ou não de fazertransferência desde o início. Na questãodos bebês, existe uma polêmica muitoparecida entre Serge Lebovici e BertrandCramer. Considera Cramer que o contatodo terapeuta é com o mundo representa-cional dos pais: não há transferência apartir do bebê. Já Lebovici acredita que atransferência pode passar também pelobebê, ou seja, o bebê também ali vaiexpressar corporalmente relações anteri-ores. Mesmo numa vida muito inicial, naqual ele viveu aquilo, vai se expressar narelação com quem está ali, numa relaçãode cuidado, de oferecimento de mentepara pensar a situação. Não dá para dizerque é uma transferência igual, mas achoque isso nos mobiliza a pensar naquilo queacontece. Podemos expandir o conceitode transferência a partir dessas novasconfigurações ou devemos criar outroconceito para dar conta disso? Trabalhomuito com crianças com transtornos au-tísticos, em que a mesma questão secoloca. Não existe identificação projeti-va, mas de alguma maneira existe umaforma de estar, uma não-relação. AnnaAlvarez aborda isso quando conta de umpaciente que atendeu durante muito tem-po, perguntando-se sobre o que está sen-do colocado ali em termos de relação deobjeto, ou de uma “não-relação de obje-to”, que se atualiza naquela situação.

Leda: Ao pensar nas questõespara o debate, colocamos esta em primei-ro lugar, salientando o que Freud conside-rava adequado para o tratamento psica-nalítico. Para ele, a possibilidade do surgi-mento da transferência era um divisor deáguas. Sem transferência, não há análise.A psicanálise é adequada para o que eledenominava de neuroses de transferên-cia, e não para as outras patologias deno-minadas de neurose narcísicas.

Alice: Se a gente for pensar hojenos borderlines, que compõem grandeparte da nossa clínica, como é que issovem desenvolvendo? O próprio Bion tra-balhou esses núcleos, que outros autores,como você diz, têm expandido.

Orlando: Quando vocês me en-caminharam a pergunta, não pensei notermo obstáculo – obstáculo ao trabalhoda associação livre, como aparece emFreud –, mas no percurso que a transfe-rência tem na psicanálise. Acho que atransferência é uma situação em que oanalista é um obstáculo ao paciente, por-que se o paciente pudesse ser só do jeitodele, sem nenhuma interferência, nãohaveria toda a dimensão da vivência edaquilo que é provocado muito além daspalavras. Acho, às vezes, que até o que apalavra procura esconder, o que ela reve-la daquilo que não é possível ainda serfalado, é que faz acontecer. No sentido dapergunta, a transferência tem um cami-nho que continua em outros autores de-pois de Freud. De alguma maneira, uma

Leda Barone, Alice Arruda, Beatriz Helena P. Stucchi, Iliana H. Warchavchik, Marta Úrsula Lambrecht,Mariângela M. de Almeida, Orlando Lúcio N. De Marco, Suzana Kiefer Kruchin e Cândida Sé Holovko

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das transformações que Freud fez foi nosentido de que o paciente e seu médicobuscando a cura mudam com isso a trans-ferência. Então, não se tem mais a cura,existe uma experiência que, vivida poressa dupla, pode gerar uma série de coi-sas. Entre elas, você pode falar de cura,lógico, mas acho que a transferência éuma conceituação que traz para a psica-nálise o estatuto de uma clínica muitoespecífica, daquela clínica que existe dopaciente e seu médico – tem o diagnósti-co, recebe tratamento, e assim por diante.A transformação que a transferência trou-xe é fundamental, porque ela coloca umnovo nível de investigação, um novo nívelepistemológico. Vamos conhecer a partirdas perdas, do objeto, das relações doobjeto que aparecem ali, dos objetos per-didos e projetados nessa relação. Há todauma experiência que pode variar na ma-neira em que é aproveitada. Mas isso nãoquer dizer que não aconteceu análise: agente não pode mais é falar em resultadono sentido de um resultado médico. Achoque a pergunta me levou a essa questãodo obstáculo: o analista é o obstáculo,porque ele vai se interpor às relações queestão sendo feitas, de maneira a produzirali alguma coisa nova.

Suzana: Ele é obstáculo, mas étambém aquele que propicia a criação deum espaço interno que faz com que hajaum diálogo interno, o diálogo é consigomesmo. Nesse sentido, o analista, o outroque escuta, é necessário e fundamental.É fundamental para que haja essa oportu-

nidade de falar de si. E acho que isso sóse estabelece no campo transferencial.Fora desse campo – do qual é tão difícilfalar, de definir e que é quase mágico –,você pode fazer conjecturas sobre o ou-tro, pode fazer especulações, mas nãoaceder à verdade do outro. Se é que sechega a uma verdade – talvez a aproxi-mações dessa verdade.

Leda: Pontalis nos diz que é im-possível descrever a transferência, es-crever uma sessão e relatar a transferên-cia. O que se pode é falar sobre a trans-ferência, chamando a atenção para oacontecimento em si, daquilo que ocorrena sessão, que é vivido pela dupla. Outroaspecto da questão: embora Freud játivesse falado que sem transferência éimpossível a análise, em outro texto (quetambém apontamos aqui, sobre o amor detransferência) Freud vai falar do aconte-cimento real. Vocês não acham que, aí,ele já está falando de outra coisa, que nãoé da mesma natureza daquilo que ele dizda transferência como atualização de algodo passado?

Cândida: Você está falando so-bre a repetição de uma história de rela-ções que os pacientes viveram com seusobjetos primitivos, que são transferidospara o analista, e desse reviver no aqui eagora da situação analítica, que pode pro-piciar o surgimento de uma outra história?

Leda: Estou tentando destacar oaspecto do novo, do inusitado da transfe-

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rência, lembrando o que Freud diz doincêndio no teatro. Uma encenação estáem curso, quando alguém de fora grita:“Incêndio!”. Algo então irrompe de for-ma inesperada e viva. Estou tentandopensar, trazer para a discussão, se mes-mo em Freud não há um paradoxo, umaoposição ou diferença nessas suas duasidéias.

Cândida: Penso que sim, há ummomento na teoria freudiana em queFreud acrescenta à idéia de transferên-cia como obstáculo, da transferênciacomo resistência ao trabalho analítico,a noção mais corrente entre nós datransferência como um instrumentofundamental facilitador de elaboraçõese expansões do universo psíquico. Essanova versão de antigos conflitos vai dara oportunidade de que algo novo irrom-pa naquela relação e que, embora possater vínculos com a experiência passa-da, estará emergindo a partir dessaexperiência com aquele analista espe-cífico. Penso que neste ponto Freudabre um caminho para as teorizaçõesposteriores da contratransferência, con-ceito que designa todas as respostasemocionais que o analista experimentana relação com seu paciente e que éuma importante ferramenta para al-cançar um entendimento do analisandoe formular uma interpretação pertinente.

Alice: E às vezes até de umaforma até muito intensa. Como a questãoda paixão, do agir.

Cândida: O que me faz recordarde uma colocação do filósofo psicanalistaPaul Assoun, no seu livro Freud e amulher, de 1983, que ilustra bem o quevocês estão dizendo. Ele fala que o para-doxo do amor transferencial é que ele é,ao mesmo tempo, motor e obstáculo àcura, “...o que obriga ao analista a posiçãode encarnar este mesmo paradoxo noprocesso analítico, onde o analisando pas-sa da demanda de ser amado, que conduzo sujeito ao estado de clausura alienante,ao desejo de amar, de onde eclodempossibilidades infinitas de outras constru-ções.”

Alice: Parece-me que sim.

Cândida: Nesse caso, a transfe-rência é um facilitador, um promotor dedesenvolvimento, de crescimento psíqui-co, não um obstáculo, muito pelo contrá-rio.

Mariângela: É um pouco por essabrecha que se pode fazer alguma cone-xão com a questão dos estados maisprimitivos. A idéia da irrupção e do queemerge como ação e como maneira de secolocar numa relação. Podemos discutirse a questão é com esse analista emparticular ou não, ou se é uma colocaçãomuito mais maciça, massiva, independen-te de uma relação específica com o outro,no caso de se pensar que não se trata deuma clássica relação de objeto. Quandoexaminamos material clínico, os momen-tos de relação daquele paciente, ou de

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não-relação – de qualquer forma, algo éali atualizado –, a gente pode ver algumasfinas e sutis modificações gradativas queapontam para estes modos de se colocarna situação.

Alice: Quando você fala que aju-da, pensei na transferência negativa. Querdizer, ajuda ou não, não é? Ao mesmotempo, quando Orlando falou do obstácu-lo e você de obstáculos como foco, penseina questão da resistência. Sem resistên-cia, você não trabalha. Se o material émole, entre aspas, flácido, você não temcomo trabalhar. Não se prega prego naareia. Acho que não dá para dizer que atransferência é sempre um obstáculo, namedida em que é algo que está a favor donosso trabalho, que o favorece. Na verda-de, mais que favorece, ela o viabiliza, sebem que existe também esse aspecto deviabilizar, levando em conta que se nãohouver ali algo com o qual é necessário vocêse haver, o trabalho analítico não acontece.

Cândida: Sim, mas mesmo a aná-lise de uma transferência negativa podeabrir a possibilidade de um campo novo.Lembro que Melanie Klein propunha ini-ciar o trabalho analítico com crianças apartir da interpretação da transferêncianegativa, já Anna Freud pensava diferen-te. Atravessar a transferência negativa é,assim, uma das funções do nosso trabalhode psicanalistas.

Alice: Sim, claro, se você conse-guir atravessá-la.

Suzana: Tanto a transferência posi-tiva como a negativa estão no campo dapaixão transferencial. Acho interessante oque Pontalis fala sobre a repetição transfe-rencial. Ele diz que é uma estranha reme-moração, pois não é algo que já aconteceu,mas que acontece agora. Advém algo quesó nessa situação transferencial pode sur-gir. É repetição e é primeira vez.

Orlando: O acontecimento real.

Leda: E é Freud quem diz isso.Pontalis retoma o tema.

Orlando: Fiquei pensando nessenovo encontro, duas pessoas que se en-contram – o fogo se dá nesse encontro –; esse novo encontro acontece entre duaspessoas e traz à tona a realidade psíquica,porque, ao mesmo tempo em que se fala,alguma coisa está sendo encenada, essaidéia da cena é uma idéia muito utilizadano conceito de transferência. Você, emanálise, está repetindo uma cena, essejogo interno das relações internas. Háuma cena acontecendo e, depois, apareceum alarme, quer dizer, aparece no encon-tro um fogo que traz, e, eu diria, traz deforma viva – porque no início da concei-tuação da transferência pensava-se nasrepetições de modelos anteriores: essefogo faz com que seja viva –, uma novainvenção. Uma nova neurose de transfe-rência foi vivida. Há a percepção do fogo,do acontecimento real, pois existe o acon-tecimento real, mas a realidade psíquica éque vai ser movimentada a partir disso.

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Suzana: Freud fala da realidade doincêndio, mas tenho a impressão de queaqui Pontalis usa a noção de real, que éum conceito de Lacan. Surge aquilo quenão está inscrito, que não foi simbolizado.Acho que esse fogo também é novo,ocorre agora: não ocorreu antes porquenão tinha inscrição psíquica. A coisa forteda transferência me parece ser isso, apossibilidade desse acontecimento.

JP: Pareceu-nos sobremaneirarefinada a observação de Pontalis – emseu texto “A estranheza da transferên-cia” – sobre o texto de Freud “Observa-ções sobre o amor de transferência”.Nesse texto, comentando o apaixona-mento da paciente e sua súbita mudança,quando renega o tratamento afirmandoestar curada, Freud faz o célebre comen-tário: “Há uma completa mudança decena; é como se uma peça de fingimentohouvesse sido interrompida pela súbitairrupção da realidade – como quando, porexemplo, um grito de incêndio se erguedurante uma representação teatral”. Pon-talis vai chamar a nossa atenção nessaafirmação de Freud não propriamentepara a imagem de fogo ou de materialexplosivo, mas para a oposição entrecomédia e cena, por um lado, e aconteci-mento real por outro. Tira ele algumasconseqüências importantes de sua obser-vação, entre as quais: “...a transferênciaé um agir, a transferência é uma paixão,e não um dizer”; “...a repetição que atransferência provoca é o que escapa àrepresentação, à cena representada e

figurada, e à série de ‘ensaios’ que, pre-cedendo-a, a permitiram”. Que implica-ções, úteis para a clínica, podemos buscarna observação de Pontalis? O que elaevoca considerando a clínica de vocês?

Suzana: Mais adiante, nesse texto,Pontalis diz que a repetição transferencialnos coloca em frente dessa realidade quese apresenta como um acontecimentoreal, ou seja, não simbolizado, sem repre-sentação psíquica, como esse incêndio noteatro que põe fim à representação emistura em desordem espectadores e ato-res. Quer dizer, analisando e analista:seus lugares ficam confusos. É um acon-tecimento que não ocorreu outrora, ocor-re agora, advêm. Estranho fenômeno emque se conjugariam repetição e primeiravez. O que se repete na transferência,age-se na paixão e, logo, não acontecera,não encontrara seu lugar psíquico. Inte-ressante é que ele diz que se ensaia semtexto, o que se repete é o que não tevelugar, não existe como evento psíquico,então se repete na ausência e no vazio detodo o texto. Se há um fracasso é nacapacidade de representação. Frisa, emseguida, Pontalis: “...é uma estranha re-memoração, pois que não é a do evento,de cenas vividas. A situação analíticaproduz tanto o evento, o que advém, assimcomo efeitos de sentido”.

Mariângela: Você falou de per-sonagens, de espectador. Acho que emtermos de mundo interno, de realidadepsíquica, também essas instâncias ficam

Leda Barone, Alice Arruda, Beatriz Helena P. Stucchi, Iliana H. Warchavchik, Marta Úrsula Lambrecht,Mariângela M. de Almeida, Orlando Lúcio N. De Marco, Suzana Kiefer Kruchin e Cândida Sé Holovko

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mais presentes. Um aspecto que estátentando ser representado e um aspectoem que há a emergência do personagemvivo, em “carne viva”. Nessa conversainterna que é mobilizada ali pela situação,como alguém já falou, pode haver umdiálogo interno entre as instâncias inter-nas mais relacionadas aos impulsos e àspossibilidades de representação mais sim-bólicas.

Suzana: Pontalis também se per-gunta, nesse texto, sobre o fundo daquiloque se repete na transferência, dizendoque não se reduz à repetição: “...não sereduz à constância de hábitos e de traçosde caráter, aos esquemas de comporta-mento, à prevalência de um tipo de rela-ção de objeto (oral, anal), à permanênciade um modo de prazer ou gozo, como omasoquista, por exemplo”. Diz ainda queassinalar tais clichês e, eventualmente,fazer com que o paciente tome consciên-cia deles, não somente é ineficaz comotambém pode ser o meio mais seguro dedeixar fora de alcance a fantasia subja-cente que agencia o cenário repetitivo.Penso que somente no campo transferen-cial é possível nos aproximarmos dasangústias e fantasias que estão por trás ouagenciando esse cenário repetitivo, quepode advir como evento psíquico apenasna repetição transferencial. Somente nes-te campo – que seria como que umaterceira margem – é que se pode, movi-mentando-se as representações e os afe-tos, construir-se uma história do sujeitoem análise. Digo história no sentido de

que não há história sem construção, na qualficção e verdade caminham juntas. Comodiz o historiador George Duby, em citaçãode Pontalis: “Inelutavelmente o historiadordeve sonhar. Seriamente, mas sonhar”.

Orlando: Isso me fez pensar quehá uma especificidade da observaçãopsicanalítica e que sem essa conceitua-ção a observação psicanalítica seria mui-to empobrecedora. Focada tão-somenteno rememorar: bastaria lembrar ou sabero que aconteceu, rememorar o passado.Acho que o enriquecimento que o concei-to trouxe é que toda a observação é umaobservação de um mundo que tem deestar presente, que não quer se presenti-ficar, que resiste a ele – mas aquilo quenão quer se presentificar é vivido ou écolocado no outro, para o outro viver paravocê ou, ainda, viver junto com você.Acho que a própria observação pode serchamada de uma observação específica,nossa, como psicanalistas, cria-se a ne-cessidade dessa conceituação. Lendo aprovocação, aqui, me voltou essa idéia doquanto a observação psicanalítica depen-de não só dos conceitos: de como funcio-na a vida mental, objetos internos, etc.,mas também de como se dá essa comu-nicação humana, para podermos obser-var essa comunicação específica, poisdesse modo podemos ter alguns esque-mas interpretativos que excluem o aspec-to causal do trabalho psicanalítico.

Mariângela: Nesse sentido, acho,foi o caminho de Freud sobre o qual você

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havia falado. Ele fez exatamente essepercurso, partindo de esquemas mais con-ceituais para outras formas de funcionarcomo receptor desse tipo de material.

Cândida: Nesse ponto, gostariade refletir com vocês sobre a importânciaou não do sexo/gênero do analista naevocação e elaboração das transferênci-as. Vários psicanalistas nos últimos anostêm se questionado sobre a importânciado sexo/gênero do analista no desenrolarde algumas análises, e as opiniões sãobastante contraditórias. Recentemente,em novembro de 2008, tivemos entre nósa psicanalista francesa Florence Guignard,que discorreu em uma de suas conferên-cias sobre os diferentes pares analíticos:analista mulher/analisanda mulher; ana-lista homem/analisanda mulher; analistahomem/analisando homem; analista mu-lher/analisando homem. Relatou ela que,há algum tempo, iniciou com um grupo decolegas da Sociedade Psicanalítica deParis uma investigação para verificar sehavia alguma interferência do gênero doanalista na escuta e discussão de ummaterial clínico. A experiência detectouvariações na escuta das transferências,segundo o gênero dos analistas. Pensoque essa é uma reflexão que esbarra emposições polêmicas sobre a relevância ounão da realidade externa no grau de de-terminação das transferências. A partirde sua experiência, o que vocês pensamsobre esse assunto?

Alice: Das transferências.

Suzana: Acho essa questão difícil.Não é fácil falar sobre ela.

Orlando: Talvez eu não consigapensar sobre ela em razão da minhaexperiência. Tenho pacientes com osquais, acho, sou uma supermãe: dou leite.Em relação a outros, me pergunto: porque dei tanta porrada? Por que fiqueidisputando com o cara que me solicitouuma coisa mais masculina, que quis bri-gar? Tenho a impressão que não saberia,no momento, falar sobre essa questão degênero. Poderia, claro, dizer que umaanalisanda tem uma coisa sedutora, queme provoca de uma maneira diferente dasedução de um homem: o material temessa óbvia diferença. O que penso équanto o analista se vê sob o foco devariadas forças femininas e masculinas.

Cândida: Trata-se da sexualidadepsíquica.

Suzana: A bissexualidade. Masexiste também ali o analista real, umhomem, uma mulher, mas que incluemtambém esses aspectos que temos ele-mentos masculinos e femininos.

Cândida: Resumindo, acho quevocês dois falaram – com o que con-cordo plenamente – que todo analista,em função de sua bissexualidade psí-quica, resultante tanto das disposiçõesbiológicas quanto dos processos de iden-tificação com ambas as figuras paren-tais, estaria a princípio equipado para

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receber as projeções e fantasias de seupaciente, independentemente do sexo/gênero deste e de qual papel de gêneroele pressiona a partir de sua transferên-cia.

Orlando: Ou até perceber de quenão foi capaz de receber, não é?

Mariângela: Na verdade, ia pen-sar um pouco em que status a genteestaria dando para a questão de gênerocomo real em relação às outras coisasque também estão presentes e que po-deriam também ter status de real e derepresentação. Às vezes, a gente aca-ba raciocinando em termos de que so-mos homens ou somos mulheres comotendo um status de real às vezes maiordo que outras coisas que também so-mos. Mesmo o ‘ser homem’ e o ‘sermulher’ têm uma representação dife-rente. Aquilo que você falou: com aqueleanalista, vão se dar alguns processosespecíficos – então, sob o aspecto ho-mem e o aspecto mulher, também comaquele paciente aquilo vai se configurarde uma determinada forma. Estava pro-blematizando um pouco isso, como édar um status diferente para essa ques-tão de gênero, que talvez a gente nãoproblematize com outras.

Cândida: Sim, mas você acha quedeveria se dar ou não?

Mariângela: Não sei – e me per-gunto por que deveria se dar?

Alice: Cândida, você acha quesim, pelo que estou percebendo, pelo seupercurso. Já que você levantou essa ques-tão, gostaria de ouvi-la.

Cândida: Penso que na maioriadas análises bem conduzidas a importân-cia do sexo/gênero do analista, bem comooutros aspectos da realidade, deve terpouco efeito no resultado final. Espera-seque todo analista esteja preparado pararesponder com passos flexíveis – queincluem uma múltipla variedade de movi-mentos e de posições – a esse bailado depapéis que sua bissexualidade psíquica ea do paciente propiciam e requerem. Assimcomo Alizade (2004), também acreditoque o analista “...recebe um golpe deprojeção em direção a um sexo-gênero ese des-genera ou des-sexa em formatemporária e invisível para assumir o gê-nero transferencial”. Alguns autores, en-tretanto, entre eles Karme (1979), acredi-tam que transferências maternas pré-edípicas podem ser experimentadas comanalistas de qualquer gênero, mas que astransferências edípicas maternas e pater-nas se estabeleceriam com maior facili-dade de acordo com o gênero real doanalista. Helen Meyer, 1994, observouque o sexo/gênero do analista parece terum peso maior na seqüência, intensidadee inescapabilidade de certos aspectostransferenciais de erotismo e hostilidade.Existem estudos, por exemplo, deGreenacre, 1959, que sugerem que ogênero do analista só é importante se eletiver que atuar o papel do pai do mesmo

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sexo. Muitos também afirmam que o sexodo analista favorece transferências parti-culares e maiores temores homossexuais,caso do paciente homem com analistahomem. Eu, particularmente, penso queem determinadas situações clínicas quan-do uma falta importante ocorreu ou gra-ves distorções na identidade sexual dealgum dos pais perturbou o desenvolvi-mento do paciente, o sexo/gênero do ana-lista pode ter alguma relevância. Por exem-plo, analistas mulheres podem facilitar empacientes mulheres identificações femi-ninas positivas. Isso é mais freqüente-mente observado quando a figura da mãeé muito desvalorizada e falta no entornoda paciente uma mulher que dê suportepara as identificações tipicamente femi-ninas, ligadas às questões da integraçãode vivências corporais importantes comoda menstruação, aborto, gestação. Pensoque, no mínimo, se estamos debatendo oconceito de transferências, esse é umtema que deveria despertar nossa curio-sidade e questionamento.

Orlando: O que fala do real e doimaginário é para estar no nível do imagi-nário, assim como a gente poderia dizer,em outros termos, você está no nível dosensorial. Recebi muitos anos atrás o quea mim me pareceu ser uma moça quequeria fazer uma operação transexual.Ela chegou e, entre outras coisas, contouque no Hospital das Clínicas eles nãofariam aquela cirurgia, a não ser que elativesse uma autorização, um acompanha-mento, alguma coisa desse gênero. O

tempo todo ela insistiu nesse assunto, quepara mim estava totalmente fora de ques-tão. E assim foi indo a conversa, queterminou ante sua cobrança: “Afinal decontas, você vai ou não me atestar?”.Quando ela estava de saída, eu disse:“Olha, se você tiver alguma questão so-bre isso, estou à disposição, mas não vouatestar nem fazer você ficar para inves-tigar essa possibilidade”. Fico agora meperguntando o que é a representação, oque é esse imaginário, o que é esse sen-sorial? Até então tinha pensado que setratava de uma mulher: e era um homem,geneticamente um homem. Senti um alí-vio. Como trabalhar com uma pessoa quepretende se castrar? Acho que não agüen-taria isso.

Cândida: Aí entra a questão degênero do analista. Se fosse uma mulher,talvez suportasse.

Alice: Angústia de castração: bru-tal para um homem.

Orlando: Pois é, eu senti um alíviotremendo quando ela foi embora. Erauma pessoa com baixa de criatividadedemais. Uma mutilação.

Leda: Quando você falou que erauma moça, pensei que fosse uma moçaque quisesse virar homem.

Alice: Também entendi assim.

Orlando: Daí minha confusão.

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Vocês não fariam essa confusão. Só umhomem faria.

Marta: Parece claro, aqui, o que éo subjetivo, o intersubjetivo e o transub-jetivo, isto é, algo que está além da trans-ferência e que aparece como a figura realdo analista. Alguma coisa que já vempronta e determina um caminho, determi-na um campo na relação.

Alice: A transferência precederiaa figura real do analista?

Marta: Aquilo que é transubjetivo,por exemplo, a história infantil do analista,os objetos internos do analista, aquilo quejá vem predeterminado, que se joga nocampo da transferência, isso vai ter umaforma diferente de se manejar e de setecer de acordo com a constituição inter-na do analista, e é uma coisa que estáalém da transferência porque já vem pron-ta.

Cândida: Você está falando decontratransferência?

Marta: Não diria contratransfe-rência, a palavra contratransferência temoutra conotação. Quando falo detransubjetivo refiro-me a alguma coisapredeterminada, e a contratransferênciaé uma reação que surge a partir do movi-mento da transferência e naquela situação.

Alice: Trazendo para a cena, naverdade.

Iliana: O gênero do analista é umadessas variáveis. É preciso considerar seesse fator está atrapalhando a relação.De alguma forma, isso deve ser explicita-do.

Leda: Quero marcar uma diferen-ça entre real e realidade. Real e realidadesão dois conceitos diferentes, mas queparecem estar sendo tomados por um sónesta discussão.

Mariângela: Além das pergun-tas, vão surgindo outros estímulos a partirdo que cada um falou. Estava pensandoem outro aspecto de gênero e se tambémele não vai se tecendo. Quer dizer, o querepresenta para aquele paciente aquelamulher, porque não é só o bloco mulher-homem, mas, sim, como aquela pessoafunciona como mulher ou com os aspec-tos masculinos. Do mesmo modo comovocê falou do transubjetivo, Marta, essesaspectos culturais internos do analista,que vão sendo transmitidos para o pacien-te, a maneira como o analista se relacionacom esse paciente, também acho quetoca a questão de gêneros. Um pacientecom o qual vinha trabalhando há muitotempo, uma criança, a gente tinha feitomuito progresso, evoluído bastante – maso paciente estava realmente contandocom muito pouco da figura masculina. Opai distante, a mãe de filho único muitoonipresente, o tratamento comigo trans-correndo desde que ele era pequenininhoaté então, aos 8 anos. Naquele momento,a questão da realidade – não que com um

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homem ele também não fosse ver aspec-tos masculinos e femininos, assim comocomigo –, a idéia de que o paciente preci-sava também de um continente externo,masculino, para que não ficasse só norepresentativo, me reconfortou. A preo-cupação era a seguinte: talvez ele trans-fira todas essas representações femini-nas e masculinas com o continente exter-no exclusivamente feminino, já que elenão tem convívio com o continente exter-no, no contato com o mundo real, que sejatambém uma representação identificadacom um homem. Foi uma situação impor-tante.

Cândida: Lembrei-me agora quan-do no texto “Sobre a psicogênese de umcaso de homossexualidade feminina”, de1920, Freud recomenda que uma analistamulher tome em tratamento uma pacientehomossexual sua em função da impossi-bilidade que ele encontrava de analisar asresistências dela. Em 1931, em “Sobre asexualidade feminina”, ele também afir-ma que as mulheres analistas têm umacesso maior às transferências pré-edípi-cas não observáveis nos tratamentos depacientes femininas que ele havia condu-zido. Aqui, vemos claramente como ques-tões de ordem psíquica, precariamenteelaboradas em Freud, e a influência doseu contexto sociocultural afetavam apercepção e observação de determina-das transferências. O próprio Freud rece-bia mal as transferências maternas, mascom o tempo e as influências das analistaspioneiras que o cercavam, finalmente re-

conheceu a alta importância das relaçõespré-edípicas na estruturação da identida-de sexual da menina. Como se vê, aquestão de gênero do analista, que nonosso meio discutimos pouco, já estavacolocada por Freud. Lembro tambémque em “Sobre o amor de transferên-cia”, de 1915, ele faz alusão à interfe-rência das diferenças sexuais, ou seja,ao gênero do analista no estabeleci-mento da transferência. Diz Freud quea combinação paciente mulher comanalista homem favorece muito a trans-ferência erótica.

Alice: É o que Orlando comenta-va há pouco.

Beatriz: Toda essa história come-ça com a Dora. Não existe toda essaquestão de que ele não podia pensar paraquem era o amor da Sra. K., então, issoestá sempre presente.

Cândida: Acho interessante tra-zer isso à tona, porque normalmente agente não pensa sobre essa questão. Édifícil para os analistas falar disso.

Suzana: Acho que a questão dosexo do analista faz diferença. Difícil éavaliar até que ponto isso pesa e a impor-tância que tem em cada análise. Mas nãome parece que seja indiferente.

Cândida: Estou falando que é im-portante ter isso em mente. Penso que éalgo para ser revisto e pensado.

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Leda: Alguém ainda quer falarsobre a questão? Podemos então passarpara a seguinte?

JP: Interessante ainda é outra con-seqüência que o autor tira da observaçãoaqui apontada. Diz Pontalis: “Concebe-seque quando a análise acaba assim falandoa linguagem da paixão (a paixão estásempre lá, adormecida, e volta à superfí-cie entre os grupos psicanalíticos e maisainda no interior deles), o analista, numasituação inversa à de Ferenczi evocandoa confusão das línguas entre a criança eo adulto, fique tentado a se proteger pelalinguagem da ternura: tentação da qualtalvez não escapou Winnicott, desconhe-cendo o pai e, principalmente, recobrindo,com a solicitude da ‘mãe suficientementeboa’, a mulher excitante, desejável, perdi-da, esquiva e maliciosa...”. Do ponto devista de vocês, que cuidados tal afirma-ção de Pontalis impõe ao analista? Queimplicações a afirmação traz para a for-mação do analista?

Leda: Esta pergunta também mefez pensar que, com freqüência, o analistaacaba se protegendo também com a teoriae não só com a ternura. Para não viver oimpacto da transferência, muitas vezes difí-cil de suportar, o analista se apega à teoriacomo defesa. O que vocês pensam disso?

Suzana: Esta questão me fez per-guntar: será que eu entendi ou não? Pen-sei que essa fala se referia à resistênciado próprio analista à análise, que, como a

criança traumatizada, nega a linguagemda paixão, ou melhor, recusa sua entradaem cena, refugiando-se na linguagem daternura. Ao se encobrir, ao não se darlugar às paixões, a sua reabertura, cujomanejo transferencial por vezes não énada fácil, corre-se o risco de perpetrar aviolência vivida pela criança. Por queinversamente à Ferenczi? Este nos falada violência sofrida pela criança quandoinvadida pela linguagem da paixão, que éa do adulto. Ferenczi foi muito sensível aessa confusão de línguas que se estabele-ce entre as crianças e os adultos. Naanálise, então, é fundamental que isto sejareconhecido e não negado.

Leda: Pontalis chama a atençãopara o fato de o analista não suportar verque o que está acontecendo ali, é a paixãomesmo, que ele tenta então ‘suavizar’ –lidar com a transferência é perigoso, édifícil.É nesse sentido, o de o analista nãopoder suportar algo que é da natureza dapaixão e usar a ternura para se defender.Lógico que não para atuar, mas parasaber do que se trata.

Cândida: Sair de uma interpreta-ção edípica e passar para uma interpreta-ção pré-edípica ou pré-genital? Porque àsvezes o paciente está vivendo uma trans-ferência edípica erotizada, e o analistaacaba usando uma linguagem pré-edípicapara se defender da turbulência evocada.

Leda: Não é nisso que estou pen-sando, conceituando se a transferência é

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edípica ou pré-edípica, mas de o analistaperder de vista aquilo vivo da transferên-cia. (Invocar os demônios e depois mandá-los embora, sem conversar com eles.)

Alice: Isso foi o começo da psica-nálise. Breuer se assustou com a transfe-rência de Ana O. e caiu fora. Freud entãoretoma a questão e, a partir daí, surge apsicanálise, para nossa felicidade. Achoque pesa, aqui, a experiência do analista.No início de meus atendimentos, lembro-me de ter atendido um moço, jovem tam-bém. E ele instalou maciçamente umatransferência amorosa muito grande, e eutentando desenvolver aquilo para o traba-lho poder seguir. Mas aquilo foi de umaintensidade– o tal do fogo que muitas vezesirrompe de um jeito que você não sabe o quefazer. Me lembro dele contando como pas-sava as noites: jogava o lençol para um lado,jogava o lençol para o outro, e depois perdiao sono. E eu tentando lidar com aquilo queacontecia naquele meu início profissional,com o ainda incipiente instrumental desen-volvido para dar conta de tudo o que surgia.Aí a pessoa do analista também é convoca-da. Porque tem isso, é a pessoa do analista,como você dizia no começo, que está lá eque é convocada. E é muito difícil: emdeterminado momento, ele se levantou eveio me dar um beijo, e, literalmente, segureio cara, porque não estava conseguindosegurar de outras maneiras.

Leda: No caso, aqui, estamos fa-lando da paixão amorosa, mas podemospensar também na agressividade.

Suzana: A agressividade e o ódiotambém estão no campo das paixões, nãoapenas as manifestações amorosas.

Iliana: Era sobre isso que eu fala-va: quando a transferência está atrapa-lhando, como é que você pode explicitar ecolocar isso em palavras, para não preci-sar de alguma maneira agir? Seria comodar cidadania ao que surge.

Mariângela: A pergunta me re-meteu a uma preocupação com essasvárias instâncias de compreensão, algona linha do que você estava falando, umpouco pelo lado inverso. Pensei no riscode muitas vezes a gente dar um tom efazer uma compreensão edípica para si-tuações que são até mais primitivas. Meocorreu um exemplo trazido recentemen-te pela colega Maria Angélica Braga deOliveira e Alves, em seminário sobreestados primitivos da mente, com CéliaKorbivcher. Era uma situação de umsonho de um paciente, que também envol-via um aparente enamoramento pela ana-lista. Ele sonhou que estava num mezani-no e cuspia nas pessoas lá embaixo. Apóso relato, diz ele para a analista: “Daqui apouco eu vou cuspir em você”. O casotinha outras vinhetas que a gente acabouvendo e discutindo o que seria esse cuspe,essa situação de uma transferência nega-tiva ou de um ataque ao analista. Estarianum nível de percepção dele “de eu eoutro”? Seria um cuspe projetivo, na linhada inveja, de aspectos edípicos de separa-ção? Ou o cuspe poderia – tratava-se de

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um paciente muito primitivo, praticamen-te borderline – significar, naquele mo-mento, uma dificuldade de aceitar quehavia uma separação entre ele a analista?Uma discriminação difícil para ele tolerar,sendo o cuspe muito mais próximo dacriança primitiva, que usa cuspe paragrudar? A analista se sentia extrema-mente invadida por citações de namoro eintenções de conquista por parte do paci-ente– mas por baixo disso havia toda umadificuldade de discriminação. Acho queesse sonho ilustra muito bem a possibili-dade desses vários níveis de compreen-são, há o risco alertado pela pergunta.Mas o cuidado, esse cuidado que se im-põe à função do analista é o de estar muitoatento ao nível do funcionamento do paci-ente. Muitas vezes, somos pegos, inicial-mente, por esse aspecto de enamoramen-to ou mesmo de ataque. Também associoum pouco isso à questão da ternura emWinnicott, com seu olhar para os aspec-tos mais primitivos do funcionamentomental. Cabe, então, ficarmos atentostambém nessas áreas e instâncias, comoo sonho do paciente sugeriu.

Orlando: Brincando um pouco como material: não surgiu nenhuma associa-ção ao cuspe, como se fosse uma coisaejaculatória?

Alice: Eu também. Pensei numelemento de fertilização ejaculatória.

Orlando: Disfarçar uma agressi-vidade.

Mariângela: A gente pode, aí,continuar pensando também nessa ques-tão ejaculatória, mas num nível tambémmais primitivo.

Orlando: Pensei nessa questãoda contratransferência. O analista podeser evasivo, malicioso, e ele está dentrodessa cena. Às vezes, o ser terno, avontade de ajudar pode atrapalhar muito.A vontade de ajudar pode ser algo que seinterpõeàquilo que o material está trazen-do. Acho que a transferência é forte paraabrir um espaço onde se dá esse contatocom essa cena viva, ligado àquilo que estáinconsciente, e, portanto, você não sabeainda. A possibilidade que essa perguntatraz é a de que o nosso trabalho é o daobservação constante, de auto-exame.Você estava até mencionando as carac-terísticas do analista. Acho que esse auto-exame constante, exame dentro da situa-ção vivida, é um exame de fato, e se vocêfica preso em ajudar, em ser terno, podeatrapalhar esse exame. Não que nessascoisas a gente não tenha mesmo umainclinação, uma vontade, às vezes atécomo resistência, pois o paciente chamapara isso (para a ajuda). Muitas vezes,não sabemos se estamos ajudando, maspode-se estar justamente num momentoem que é necessário perceber em quecena a gente está.

Cândida: Acho que você está tra-zendo claramente a questão dos aspectosconscientes e inconscientes da transfe-rência. Às vezes, o paciente vem com

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uma demanda bem consciente, achandoque sabe o que quer, mas sabemos que atransferência passa por outros caminhos.

Orlando: Esse campo é aquiloque não se sabe. É acreditar que existealgo que não se sabe. E eu acho que o quevocê trouxe é muito importante. Não seise é só uma questão de começo. Ah não, ésó uma fantasia! Não, é uma paixão real.

Alice: Claro.

Orlando: É uma paixão viva. Éum fogo que vai acender tudo aquilo queestá na vida psíquica de ambos, mas ela éreal, é viva ali. Senão, você não estárealmente trabalhando com algo vivo.

Alice: Quando você fala em vol-tar-se para dentro, fiquei pensando numacoisa que eu pelo menos tenho lido umpouco mais, justamente por conta dosborderlines e da proposta que Green trazdessa intersubjetividade, em que o analis-ta é totalmente convocado para fazeresse mergulho e tentar de alguma manei-ra figurar elementos que estão muitoaquém, não representados. Não sei comovocês vêem isso, o trabalho do negativona transferência, na atualidade? É umacoisa para se pensar.

Orlando: Só para acrescentar, émesmo uma coisa muito nova: Ogden, porexemplo, fala do terceiro analítico. Que ocampo transferencial cria um terceiroque precisa ser pensado por ambos. É

uma radicalidade em relação à transfe-rência.

Leda: A partir do que estamosconversando, penso que há outra questãoimportante: quando não é possível aoanalista colher o vivo da paixão, o pacien-te atua. Acho que é o caminho direto daatuação. Lembrei-me de algo que li hámuito tempo num dos “Seminários deLacan”. Creio que no texto Lacan faziauma crítica a certo uso da transferência,contando, então, um fragmento de umasessão na qual havia uma disputa entrepaciente e analista e a interpretação gira-va em torno de um ataque ao pensamentodo analista. O paciente retruca, sentindo-se incompreendido e, ao sair muito insa-tisfeito da sessão, vai comer miolos fritos.Preciso rever isso que li, porque faz muitotempo e não sei se estou contando corre-tamente, mas o que importa é que ela meocorreu a partir do que contou Alice sobreo beijo que levou do paciente.

Alice: Não levei, não. Mas quase.

Leda: Certo, mas gostaria de daroutro exemplo, quando de fato o pacienteage e agride o analista. Será, vamospensar, que aquilo que surge na relaçãotransferencial com tanta intensidade po-deria ser contido ou não? Porque, àsvezes, surge numa violência tal que sur-preende o analista.

Alice: Quando você falou em vio-lência, comecei a pensar: a violência das

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pulsões na situação transferencial, quemuitas vezes surge, surpreende e é muitodifícil de lidar. A violência da qual vocêpode ser alvo de fato. Me lembro deatender uma pessoa encaminhada por umserviço de ambulatório do terceiro setor:um investigador de polícia. Ele vinha comum volume que podia ser uma arma. Naocasião, eu tinha consultório em casa. Opaciente estava ali, mostrando um volumeque podia ou não ser uma arma. Erainvestigador, contava casos cabeludé-simos. Um clima de medo parecia seinstalar, eu me sentia acuada. Como é quevocê se protege num caso desses? Adecisão de não atender pode ser atécogitada. Você tem consultório em casa.Como o analista se protege de questõesassim do cotidiano?

Mariângela: Antes de chegar auma situação mais extrema, vamos pen-sar em algo que talvez junte estas coisasdas quais estávamos falando: a questãodo real, do intrapsíquico e do subjetivo.Lembro a contribuição de Antonino Fer-ro, que vai muito nesse sentido de trazerpara o campo tudo o que acontece, poisisso tudo diz respeito ao campo da formacomo Ferro conceitualiza sua prática clí-nica. Situações em que existe esse volu-me do real teriam volume psicanalíticotambém para a gente trabalhar. Acho queele é um autor importante e sua propostade trazer para o campo também essassituações extremadas, sempre tendo alium analista implicado, é que de algumamaneira aquilo teria a ver com o campo e

não necessariamente seria só uma atua-ção, mas algo que poderia ser compreen-dido. Agora, quando a gente chega asituações-limite como esta, não sei se agente deveria lançar mão de outras coisastambém. Quer dizer, a princípio não pre-cisaria, mas...

Alice: A dificuldade é a paralisiaque, no fundo, é como vocês estavamdizendo, a pessoa precisa usar para teparalisar como analista.

Leda: Mais alguma coisa sobreesta questão? Então, vamos para a próxi-ma.

JP: Naturalmente, o analista não éo único a ser objeto da transferência, sejaela de que natureza for: de amor ou deódio, persecutória ou idealizada. Tambémfiguras como o professor, o supervisor emesmo a instituição de formação encar-nam este lugar. Como vocês observamisto em nosso instituto e que efeitos têmsobre a formação do analista?

Orlando: Para falar dessa ques-tão, vou me utilizar de uma anedota quemeu primeiro analista, Nelson Coti, mecontou, dizendo ser muito representativada idéia que ele queria me transmitir.Antes da ponte Rio-Niterói ser construí-da, a travessia entre as duas cidades erafeita por barcas. A cena se inicia numabarbearia carioca, onde um cliente estásendo barbeado. Aparece então um sujei-to, aos gritos: “Ó, Manoel, corre! Seu filho

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está passando mal lá em Niterói. Vocêtem que pegar a barca: e ela já está desaída!”. O português dá um pulo da cadei-ra, joga longe a toalha e, cara cheia deespuma, barba pela metade, sai em dispa-rada, conseguindo chegar a tempo deembarcar. No meio da travessia, bate elea mão na testa: “Raios! Não me chamoManoel. Não sou casado, não tenho fi-lhos, tampouco moro em Niterói. O queestou cá a fazer?”. Nunca me esquecideste caso, que eu ouvi vinte e cinco anosatrás e ainda está vivo em mim.

Está muito vivo também o jeito depensar e trabalhar. Fiquei lembrando des-sa historinha por que o que significa a talda transferência? Não é um fenômeno sóda sessão: é o que a gente carrega dooutro e leva para as relações. E o que agente carrega que não é nosso? Se pen-sarmos na anedota, a gente carrega ummonte de coisas que não têm nada a vercom o que você vai viver. Mas você temque carregar a coisa transgeracional. Sevocê pensar por aí, é um negócio impres-sionante a relação humana, a comunica-ção humana. Nelson também falava coi-sas assim: “Eu sonhei um sonho queminha paciente fez, pôs em mim algumaangústia que à noite fui sonhar”. É umaidéia do trabalho analítico, que ele temessa intensidade, que a mobilizaçãoemocional traz de volta. A transferência,se a gente pensar por aí, transforma-senuma questão muito mais ampla da comu-nicação humana. Pode-se fazer uma ob-servação, desmontar e pensar essa co-municação a partir do conhecimento da

teoria psicanalítica, levando em conta quedependemos dessa intensidade da comu-nicação. Essa intensidade está ligada àsprimeiras experiências, as experiênciasvividas nas ligações mais primitivas quefazemos. Nunca teremos totalmente umaidéia do quanto isso está nos influencian-do. Nunca vamos saber direito quemsomos.

Cândida: Achei interessante a suaidéia de levantar a questão da transferên-cia transgeracional, um tema tambémpouco discutido entre nós.

Alice: E muito interessante se agente pensar em termos de instituto, dosdivãs, dos entrecruzamentos dos divãs.São situações difíceis, causadas por es-ses entrecruzamentos. O membro filiadomuitas vezes é colhido numa situaçãodessas, cuja virulência você está tão bemlembrando.

Mariângela: A especificidade donosso trabalho, considerando isso tudoque a gente falou, e a própria evolução dapsicanálise, é que estamos nos dispondo ase oferecer como uma mente que estásonhando naquele momento. Quem sabeseja isso o que nos torna diferentes dosoutros depositários de uma situação trans-ferencial, que talvez não tenham essamesma possibilidade de germinação e dereflexão sobre a situação transferencial.Essa possibilidade, quer dizer, o sonhonão vai acontecer só depois: na verdade,a gente está ali disponível para poder

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sonhar também sobre aquela situação.Isso distingue muito nosso trabalho. Achoque cada vez mais os instrumentos dapsicanálise estão se desenvolvendo nosentido de nos fazer pensar sobre essassituações, tanto as nossas anteriores quan-to aquelas que emergem com o paciente,em todas essas instâncias que a gentefalou.

Leda: Talvez essa questão nostenha sido inspirada pelo número do Jor-nal de Psicanálise que acabamos de fazere que tratou da “análise do analista”.

Alice: Acho que isso invoca mes-mo nossa experiência aqui na própriacasa.

Cândida: Faz pensar na questãodas transferências na análise didática,uma vez que esta apresenta a caracterís-tica peculiar de ser um analise que éinvadida por regras da instituição. Pensoque as turbulências, nesse entrecruza-mento de transferências e contratransfe-rências na instituição, também devem serconsideradas do lado do analista didata.

Iliana: Na época de Freud, ospacientes iam em sua casa. Não sei seisso é um defeito ou questões a seremtrabalhadas e estudadas.

Alice: Quando Leda relembra aquia recente experiência com o número so-bre “A análise do analista” ela apontapara a complicação que é discutir esse

tema. Porque se é uma instituição, sãoseres humanos, acima de tudo, que estãoali, com todas as características, todos osnarcisismos, com todas as limitações,enfim, e isso traz, às vezes de forma muitoviolenta, questões complexas e complica-das. E como a própria instituição, seguin-do um pouco isso que você está falando,pode oferecer condições, não digo deproteger, mas de preservar seus mem-bros dessa virulência? Disso que Iliana hápouco falou, que faz parte da instituição?

Suzana: Acho que essa é umaquestão importante para todos. Justa-mente por isso, por esse ambiente todo deformação em psicanálise, penso que éfundamental que se faça análise. Emboraessa complicação possa se dar com seupróprio analista que está na instituição,mas isso tem de ser trabalhado até que oanalisando consiga conquistar um lugarcom voz própria, não fique siderado emseu próprio analista e ao grupo ao qual elepertence, até conseguir um lugar de refle-xão para si mesmo.

A transferência com a instituição,com o supervisor, com o professor é defundamental importância para que se possainstaurar um processo de formação ana-lítica. Aquela e estes, supostamente, de-têm o saber, são detentores do segredo aoqual o analista em formação quer aceder.Essa transferência positiva fica como queum fundo que sustenta todos os conflitosque possam advir dessas relações trans-ferenciais que podem assumir as formasdo ódio, do amor, da persecutoriedade e

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da idealização. A instituição de formaçãoanalítica possui um caráter peculiar, poisnão é uma escola, no sentido de um lugarde transmissão de um saber instituído e,sim, poderíamos dizer, um lugar em quevamos nos apropriar de um fazer e de umpensar sobre esse fazer singular, cujoinstrumento de trabalho somos nós mes-mos, nosso mundo interno conjugado aum saber sobre o mesmo, o que já nosdeixa de saída implicados de forma visce-ral e, portanto, também mais vulneráveisàs emanações dessa instituição. É umprocesso delicado, que não escapa àsviolências do pulsional, assim como tam-pouco à severidade do superego. Pensoque a condição sine qua non para aformação é a análise pessoal concomi-tante a esse processo, para que o analistaem formação possa ir se apropriando desuas aquisições, no sentido de conquistarum lugar de fala com voz própria, paraque vá de fato se constituindo como ana-lista e não permaneça aprisionado a figu-ras idealizadas, únicas detentoras do sa-ber, ficando assim infantilizado.

É claro que há questões relativas àinstituição que são muito importantes eque podem favorecer esse processo deindividuação e outras que podem contri-buir para oprimir. Tenho a impressão que,aqui, no Instituto, os membros filiadosforam conquistando um lugar de partici-pação na instituição que permite outramovimentação, então não há uma hierar-quia rígida. Hierarquia é claro que há, sãolugares diferentes a que a pessoa vai,através de um percurso, acedendo, mas

não de uma forma massacrante. Tenho aimpressão que as coisas se tornaram maisleves. E aí há outras questões, como aanálise do analista, mas isso já é umcampo que se abre para discussões, parareflexões.

Iliana: Pelo menos as idealizaçõessão menos fomentadas na hora em quevocê está no campo próximo.

Suzana: Ou se acirram também

Iliana: Sim, mas se elas se acir-ram, têm a chance de ser trabalhadas.

Mariângela: Eu estava pensandoque existe uma situação real, vivencial einstitucional que a gente vive, mas nomomento em que aquilo vai para a sala deanálise ela é resignificada totalmente.Acho que nossa vivência como pacientese reconfigura na dupla. A gente tem umavivência dos nossos seminários, da nossarelação com os supervisores, com osnossos professores, mas na hora em quea gente leva isso para o nosso analista,acho, é outra realidade que vai aparecerali. Acho que aquilo é tomado de outrainstância, mesmo que esse analista façaparte da mesma instituição (ele vai ter asquestões dele ali, com aquela instituição),mas naquele momento ele vai estar volta-do para as representações internas queaquilo tem ali, naquela dupla. Acho que seesperaria que as coisas fossem assim,para que não resvalássemos para os limi-tes do não contido e do atuado.

Leda Barone, Alice Arruda, Beatriz Helena P. Stucchi, Iliana H. Warchavchik, Marta Úrsula Lambrecht,Mariângela M. de Almeida, Orlando Lúcio N. De Marco, Suzana Kiefer Kruchin e Cândida Sé Holovko

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Leda: Você está falando dentroda situação de análise, mas outra maneiraé pensar dentro da instituição, com osupervisor, com os coordenadores de se-minários. Uma parte da questão é pensarse nós ficamos presos ou não a respeitode nossas escolhas, sobre que semináriofazer, com quais coordenadores. Se va-mos escolher aqueles da mesma linhateórica ou amigos do nosso analista. Sa-bemos que isso acontece em qualquerinstituição de transmissão e talvez maisainda em instituições de transmissão depsicanálise. O que pensávamos era exa-tamente o que Susana trouxe, ou seja, emque medida a instituição, nossa formaçãoaqui, nos auxilia, ou não, a desenvolver ummodo próprio de trabalho, a construir umavoz própria. Ou se o que se percebe é umatendência para reproduzir. É mais oumenos isso que queremos discutir aqui.

Suzana: Mas eu acho que se oanalista não se colocar nesse lugar –Pontalis fala do lugar de dono, acho en-graçada a palavra dono –, do padre, domédico, no lugar de autoridade; na verda-de, o lugar de detentor do segredo, segre-do sobre o corpo, sobre o espírito, sobre asexualidade, no caso de analistas, se elenão se tomar por este que é o dono, elefavorece esse processo de desidealiza-ção, enfim, de constituição desse nomepróprio. Você não tem que ser igual aoseu analista, pode ter divergência ou não,mas ser uma pessoa separada, não umacópia do analista. É nesse sentido. Issofavorece, porque não sei se todo analista

consegue não se tomar por este quesupostamente sabe, a autoridade. Claroque, em início de análise, isso fica com umfundo: se acredita que o analista sabemesmo, mas você vai descobrindo quenão é bem assim, que você também sabee não só ele.

Alice: Vou fazer aqui um momen-to de publicidade. No número anterior doJornal de Psicanálise, publicamos umtexto de Bolognini, muito bonito, que falada família fantasmática institucional e dafamília pessoal do analista. É muito inte-ressante porque ele superpõe as duas,fala desse peso do suposto saber, dosanalistas mais velhos, dos colegas deformação que vão funcionando como ir-mãos, uma fratria que pode ajudar aconter situações novas, difíceis. E a opor-tunidade que o jovem analista tem, assimcomo a criança, de fazer introjeções im-portantes, que vão fundar e constituir asbases culturais, teóricas e clínicas de seuEu de trabalho.

Uma coisa que não está na pergun-ta, mas que eu estou pensando é a questãoda transferência no fim da análise. Elatermina? Ou ela é para o resto da vida?Como vocês vêem isso?

Suzana: Eu não sei se termina.Em algum lugar, o analista fica. Pen-sando em outras análises, na análiseatual, sei lá. Acho que essas paixões,que são o próprio movimento da análi-se, vão arrefecendo, vão se desencan-tando, mas desencantando no sentido

Debate – Transferências

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de que aquilo que estava encoberto,adormecido possa vir à luz, acordar. Atransferência vai se desfazendo à me-dida que o analisando passa a habitar-se, a ter um sentimento de existênciaprópria.

Alice: Como se o paciente fosserecuperando de alguma forma essa fun-ção analítica?

Iliana: Mas aí, pelo que você estádizendo, a transferência se dissolve, e oanalista permanece funcionando comouma função analítica. É isso?

Suzana: Talvez faça parte do pro-cesso analítico nos levar a fazer luto pelaperda do próprio analista, dessa figuraque ocupa esse lugar das idealizações.

Alice: É também de um lugar,talvez, em que você é acolhido; que lhe dáaquela sensação de segurança de um paiou de uma mãe.

Orlando: Mas não dá para vocêse apossar do seu próprio processo semisso. Sem abandonar esse lugar. Casocontrário, você nunca se apossa desseprocesso.

Alice: É verdade.

Orlando: O processo é seu. Aanálise é sua. De início, não. Quandovamos para uma análise, a gente nãosabe, mas aí temos que nos apossar desse

processo. E também da separação, senãovocê nunca se apossa.

Alice: Sim, mas eu acho que é umluto amplo. É nesse sentido que estoufalando que você tem que fazer um lutoamplo.

JP: Que experiências – na clínicaou na formação – o termo Transferênci-as evocou para cada um de vocês? Queoutras questões sobre este tema vocêsgostariam de comentar?

Orlando: Quero falar de uma ex-periência. Atendo alunos de medicina nafaculdade, e um que me procurou falou deuma timidez que atrapalhava sua vida. Nofinal da conversa, disse: “Não sei se euvolto”. Sugeri que continuássemos a con-versar, e ele repetiu: “Eu não sei se volto”.Eu quis aí saber por quê. “Pode ser que euencontre na sala de espera algum colega”– explicou – “e não queria que ninguémme visse na situação em que eu estouaqui, sabendo que preciso de ajuda.” Numcerto nível, a gente faz uma entrevista deapresentação aos alunos: contamos o quefazemos e como estamos inseridos nainstituição. Acho que essa questão tematé a ver com a transferência dentro dainstituição. Pela experiência de váriosanos trabalhando lá, a gente frisa algumascoisas: a conversa termina aqui, nós nãointerferimos com nota, com currículo, comavaliação. Essa função de esclarecimen-to é necessária para que o aluno saia deuma primeira conversa sabendo que, di-

Leda Barone, Alice Arruda, Beatriz Helena P. Stucchi, Iliana H. Warchavchik, Marta Úrsula Lambrecht,Mariângela M. de Almeida, Orlando Lúcio N. De Marco, Suzana Kiefer Kruchin e Cândida Sé Holovko

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ante de uma dificuldade, ele não estarásozinho, ele tem como e onde procurar.Quando ele afirmou que não voltaria (eraa primeira vez que ele vinha e não haviaparticipado daquela entrevista), eu disse:“A gente trabalha tentando criar umasituação a mais protegida possível. Porexemplo, não estamos no HC incidental-mente, onde os prontuários são comuns.Aqui não. Temos prontuários próprios,lugar próprio, dentro do departamento dafaculdade. Tudo isso tem importânciapara tornar o espaço específico do alunoe acessível a ele”. O menino insistiu:“Mas para mim é muito difícil”. Respondi:“Acho até que se você quiser uma indica-ção para um outro consultório, que eu nãovou te atender no meu, eu faço, é maisprotegido. Acho que é uma situação maisprotegida. Mas fica aqui o seu lugar, sevocê quiser, marca e volta. Se quiserpensa, pensa”. Depois que ele saiu – issoele me falou quando acabou a conversa –pensei que aquilo tudo era uma coisa maisexterna, institucional, a transferência que,eu diria, é relativa à instituição realmentesão persecutórias da própria instituição.Tem professor que indica, dizendo que ocara precisa ser avaliado. Algumas situ-ações são muito difíceis na instituição.Por outro lado, o potencial que tenho paratrabalhar com ele mesmo ali – porqueessas coisas são inerentes – é dizer paraele que alguma coisa precisa ser trabalha-da, relativa a algum medo que ele sentiucomigo. Alguma coisa que ele precisavame alertar: que ele queria sigilosa, paranão se sentir invadido, perseguido. Diria,

então, que o potencial do trabalho nosso éesse. Esse ‘onde’ em que a gente podeser potencialmente melhor. Sobre o restoa gente não tem controle. Eu acho que astransferências, pensando em transferên-cia numa situação muito especial, numasituação de formação, excepcional. Elese depara ali com a dificuldade de falar, ea gente tem que ajudá-lo a falar. Justa-mente com essa dificuldade de falar é quea gente trabalha, mais do que com opróprio falar.

JP: Alguém gostaria de acrescen-tar alguma coisa? Podemos terminar? OJP agradece a presença e a colaboraçãode todos.

Cândida: Eu também quero agra-decer, porque esta foi para mim umaoportunidadeúnica. Ver como funciona odebate.

Leda: Muito obrigado aos partici-pantes e, especialmente, aos colegas doeditorial, por estes nossos quatro anos detrabalho em conjunto no Jornal de Psi-canálise.