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De Volta a ISTAMBUL Elif Shafak

Título Original:The Bastard of lstambul

Copyright 2007Tradução

Myriam Campello

Outrora havia; outrora não havia.As criaturas de Deus eram abundantes como grãos E falar demais era um pecado... - Preâmbulo de uma história turca ...e de uma história armênia.

SINOPSE:

Em "De Volta a Istambul", a autora turca Elif Shafak constrói um romance emocionante sobre segredos que se sobrepõem e pessoas que buscam suas

origens e uma maneira de viver o presente. Com uma narrativa arrebatadora, o livro apresenta a história de duas famílias, cujos

destinos se cruzaram há muitos anos."De Volta a Istambul" é um romance extremamente bem elaborado e

inteligente, repleto ao mesmo tempo de dramaticidade e humor, que fala sobre memória e esquecimento, sobre a necessidade de se conhecer o

passado e o desejo de apagá-lo. Um livro surpreendente.

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***1CANELA

SEJA LÁ O QUE CAIR DO CÉU, NÃO O AMALDIÇOARÁS. Isso inclui a chuva. Por mais que desabe o aguaceiro, por mais força com que as nuvens se rompam ou o gelo do granizo despenque sobre a terra, nunca se deve emitir blasfêmias contra qualquer coisa que o céu tenha reservado para nós. Todos sabem disso. Inclusive Zeliha. Mesmo assim, lá estava ela na primeira sexta-feira daquele mês de julho, caminhando por uma calçada que fluía próxima ao tráfego inevitavelmente congestionado, atrasada para um encontro, praguejando como um soldado, sibilando um palavrão atrás do outro para as pedras quebradas da calçada, para seus saltos altos, para o homem que a espreitava, para os motoristas que buzinavam freneticamente quando é sabido que buzinar não desatravanca tráfego algum, para 10 toda a dinastia otomana por ter conquistado no passado a cidade de Constantinopla e se aferrado a seu equívoco, e, sim, para a chuva... aquela porcaria de chuva. A chuva era uma agonia ali. Em outras partes do mundo, um aguaceiro provavelmente chega como uma dádiva para quase tudo e todos - bom para as lavouras, para a fauna, para a flora, e com um toque extra de romantismo, para os amantes também. Mas não em Istambul. Para nós, a chuva não significa necessariamente ficar molhado. Nem mesmo ficar sujo. Se significa alguma coisa, é nos deixar com raiva. É lama e caos e fúria, como se já não tivéssemos o suficiente. É luta. Sempre significa uma luta. Como gatinhos jogados num balde d'água, os dez milhões de nós travam uma luta fútil contra os pingos. Não se pode dizer que estamos completamente sozinhos nessa refrega, pois as ruas também participam, com seus nomes antediluvianos escritos a estêncil em placas de metal, as lápides de tantos santos espalhadas em todas as direções, as pilhas de lixo que esperam em quase todas as esquinas, os buracos gigantescos dos canteiros de obras que logo serão transformados em edifícios modernos e extravagantes, e as gaivotas... Todos nos enraivecemos quando o céu se abre e a chuva desaba sobre nós. Então, quando os pingos finais batem no chão e muitos outros descansam nas folhas agora sem poeira das árvores, naquele momento desprotegido em que não se tem certeza de que parou de chover, da mesma forma que a própria

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chuva não tem, exatamente naquele interstício tudo se torna sereno. Por um longo minuto, o céu parece desculpar-se pela bagunça que causou. E nós, com gotículas ainda nos cabelos, lama nas calças e cansaço no olhar, fixamos de novo o céu, agora com um tom mais leve de azul e mais claro do que nunca. Olhamos para cima e não podemos deixar de sorrir em resposta. Nós a perdoamos; sempre o fazemos. Porém, naquele instante, a chuva ainda caía e Zeliha tinha pouco perdão no coração - se é que tinha algum. Estava sem guarda-chuva, pois prometera a si mesma que, se fosse idiota de desperdiçar dinheiro comprando outro guarda-chuva num ambulante para esquecê-lo logo que o sol voltasse, merecia ficar ensopada até os ossos. Além disso, fosse como fosse, era tarde demais. Já estava encharcada. Esse era um aspecto da chuva que se assemelhava à tristeza: a pessoa fazia tudo para permanecer intacta, segura e seca, mas se e quando isso falhava, chegava um ponto em que se começava a ver o problema não em termos de gotas, mas de uma torrente incessante, e decidia-se então que pouco importava se encharcar. A chuva pingava de seus cachos escuros para os seus ombros largos. Como todas as mulheres da família Kazanci, o cabelo de Zeliha era formado por anéis crespos, negros como um corvo, mas, ao contrário das outras, gostava de mantê-lo assim. De tempos em tempos, seus olhos verde-jade, normalmente muito abertos e de uma inteligência feroz, apertavam-se em duas linhas de imaculada indiferença inerente apenas a três grupos de pessoas: os irremediavelmente ingênuos, os irremediavelmente retraídos e os irremediavelmente esperançosos. Não pertencendo a nenhum deles, era difícil entender sua indiferença, mesmo que fosse tão fugidia. Num minuto estava ali, cobrindo sua alma de uma entorpecida insensibilidade, mas no minuto seguinte desaparecia, deixando-a sozinha em seu corpo. Assim Zeliha se sentia naquela primeira sexta-feira de julho, insensível como se estivesse anestesiada, um estado de espírito poderosamente corrosivo para alguém tão cheia de entusiasmo. Seria por isso que não tinha absolutamente qualquer interesse em lutar contra a cidade hoje, ou mesmo contra a chuva? Enquanto a indiferença subia e descia como um ioiô de ritmo todo próprio, o pêndulo de seu ânimo oscilava entre dois pólos opostos: congelando e fervendo de raiva. Enquanto Zeliha passava rapidamente por ali, os ambulantes vendendo guarda-chuvas, capas e lenços de cabeça de plástico em cores vibrantes a olhavam atentamente, divertindo-se. Ela conseguia ignorar seus olhares do mesmo modo que

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ignorava o olhar de todos os homens que lhe fixavam o corpo com avidez. Os ambulantes olhavam também, com reprovação, para seu brilhante anel no nariz, como se ali estivesse a pista para seu desvio de decência e, conseqüentemente, o sinal de sua luxúria. Zeliha tinha um orgulho especial de seu piercing porque ela mesma o colocara. Doera, mas o piercing estava ali para ficar, assim como seu estilo. Apesar do assédio dos homens ou da censura das mulheres, da impossibilidade de andar sobre as pedras redondas quebradas ou de pular para dentro das barcas, e até do ralhar constante de sua mãe... não havia poder na terra que impedisse Zeliha, mais alta que a maioria das mulheres na cidade, de usar minissaias de cores vivas, blusas justas que exibiam seus seios fartos, meias acetinadas de náilon, e sim, aqueles saltos tremendamente altos. Quando pisou em outra pedra solta e notou a lama sob as manchas escuras respingadas na saia cor de alfazema, Zeliha despejou outra longa lista de palavrões. Ela era a única mulher de sua família e uma das poucas turcas a usar palavrões de modo tão solto, tão vociferante e com tanto conhecimento; portanto, sempre que começava a xingar, continuava a fazê-lo como se compensasse todas as outras. Daquela vez não foi diferente. Enquanto corria, Zeliha xingou a administração municipal passada e presente, porque, desde que era garota, nunca um dia chuvoso encontrara as pedras do pavimento ajustadas e presas. Contudo, antes de terminar os xingamentos, fez uma pausa abrupta, ergueu o queixo como se suspeitasse que a tivessem chamado; em vez de olhar em volta, porém, fez um bico com os lábios para o céu enfumaçado. Apertou os olhos, soltou um suspiro conflitante e em seguida despejou outro palavrão, só que desta vez contra a chuva. Entretanto, segundo as regras não-escritas e inflexíveis de Petite-Ma, sua avó, aquilo era pura blasfêmia. Você pode não gostar da chuva, certamente não tem de gostar, mas em nenhuma circunstância deve xingar coisa alguma que venha do céu, pois nada desce de lá sozinho, e por trás de tudo está Alá, o Todo-Poderoso. É claro que Zeliha conhecia as regras não-escritas e inflexíveis de Petite-Ma. Naquela primeira sexta-feira de julho, porém, sentiu-se suficientemente irritada para não dar importância a elas. Além disso, o que quer que tivesse dito já o dissera, da mesma forma que o que quer que tivesse feito agora já era passado. Não tinha tempo para remorsos. Estava atrasada para a consulta com o ginecologista. Na verdade aquele era um risco negligenciável, pois no momento em que se nota estar atrasada para uma consulta desse tipo, pode-se resolver não comparecer absolutamente.

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Um táxi amarelo com adesivos por todo o pára-lama traseiro parou de repente. O motorista, um homem moreno de aparência áspera, com um bigode tipo Zapata e um dente de ouro na frente, que poderia muito bem ser um molestador nas horas de folga, estava com todas as janelas abaixadas. Sintonizado numa estação de rock local, seu rádio tocava "Like a Virgin" de Madonna no volume máximo. Havia uma discrepância gritante entre a aparência totalmente tradicional do homem e suas preferências musicais. Ele freou bruscamente, meteu a cabeça para fora da janela, assobiou para Zeliha e exclamou: - Quero um pedaço disso! - Suas próximas palavras foram abafadas pela voz dela. - Qual é o problema, seu idiota? Uma mulher não pode andar em paz pela cidade? - Mas para que andar se eu posso lhe dar uma carona? - perguntou ele. - Não vai querer molhar esse corpinho sexy, vai? Enquanto Madonna exclamava ao fundo "My fear is fading fast, been saving it ali for you", Zeliha começou a xingar, transgredindo assim a regra tácita e inflexível, dessa vez não de Petite-Ma e sim da Prudência Feminina: "Nunca xingue um assediador." A Regra de Ouro da Prudência para uma Mulher de Istambul: Quando assediada na rua, nunca responda. Uma mulher que responde, sem se falar na que xinga o assediador, apenas ateará fogo ao entusiasmo dele! Zeliha conhecia a regra e sabia que era melhor não violá-la, mas aquela primeira sexta-feira de julho não era como nenhuma outra. Além disso, outro eu se desencadeara nela agora, um muito mais solto, atrevido e temivelmente furioso. Era essa outra Zeliha que habitava a maior parte de seu espaço interno que tomara as rédeas das coisas naquele momento, tomando decisões em nome das duas. Por isso continuou a xingar a plenos pulmões. Enquanto ela afogava Madonna com a voz, os pedestres e vendedores de guarda-chuva amontoaram-se para ver a confusão que se armava. No meio do tumulto, o homem que a espreitava se afastou, sabendo que não era bom se meter com uma louca. Mas o motorista do táxi não era prudente nem tímido, pois recebeu todo o alvoroço com um sorriso. Zeliha notou seus dentes surpreendentemente brancos e impecáveis, e cogitou se teriam sido encapados com porcelana. Pouco a pouco sentiu de novo aquela onda de adrenalina escalar seu ventre, revirando-lhe o estômago e acelerando-lhe o pulso, fazendo-a sentir que, mais do que qualquer outra mulher de sua família, poderia matar um homem algum dia. Felizmente para Zeliha, o motorista de um Toyota atrás do táxi perdeu a paciência e buzinou. Como se despertasse de um pesadelo, Zeliha recuperou o sangue-frio e estremeceu ante a desagradável situação. Sua tendência à

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violência a assustara, como sempre acontecia. Imediatamente ficou quieta e enveredou em outra direção, tentando abrir caminho em meio ao grupo de pessoas que se amontoaram. Na pressa, porém, o salto alto de seu sapato prendeu-se numa pedra solta do chão. Furiosa, Zeliha puxou o pé da poça sob a pedra. Enquanto pé e sapato se soltavam, o salto quebrou, lembrando-a assim de uma regra que, em primeiro lugar, jamais deveria ter posto de lado. A Regra de Prata da Prudência para uma Mulher de Istambul: Quando assediada na rua, não perca o sangue-frio. A mulher que o perde em face do assédio e reage excessivamente só piorará as coisas para si mesma! O motorista de táxi riu, a buzina do Toyota estrondeou novamente, a chuva ficou mais forte e diversos pedestres emitiram muxoxos em uníssono, embora fosse difícil saber o que exatamente estavam censurando. Em meio ao tumulto, Zeliha vislumbrou um adesivo furta-cor de pára-choque cintilando na parte de trás do carro: NÃO ME CHAME DE DESGRAÇADO! DESGRAÇADOS TAMBÉM TÊM CORAÇÃO. Enquanto permanecia ali, fixando vaziamente aquelas palavras, sentiu-se cansada além de seus limites - tão exausta e aborrecida que não parecia estar lidando com os problemas diários enfrentados por uma mulher de Istambul. Era mais uma espécie de código cifrado que uma mente à distância destinara especificamente a ela, e cujo código Zeliha, em sua mortalidade, jamais conseguira decifrar. O táxi e o Toyota não demoraram a partir, e os pedestres seguiram seus diferentes caminhos, deixando Zeliha segurando o salto quebrado do sapato de modo tão terno e desalentado como se carregasse um pássaro morto. Bem, no universo caótico de Zeliha poderia haver pássaros mortos, mas certamente nenhuma ternura ou desalento. Ela não aceitaria nenhum dos dois. Endireitou-se e, ainda que desajeitadamente, esforçou-se ao máximo para andar com um salto só. Logo corria por entre uma multidão com guarda-chuvas, expondo suas estonteantes pernas, claudicando pelo caminho como uma nota desafinada. Zeliha era um fio cor de alfazema, um tom que combinava muito mal numa tapeçaria de marrons, cinzas, e mais marrons e cinzas. Embora a cor que vestia fosse destoante, a multidão era cavernosa o suficiente para engolir a desarmonia dela e fazê-la voltar à cadência. A multidão não era uma aglomeração de centenas de respirações, suores e corpos doloridos, e sim uma única respiração, suor e corpo dolorido sob a chuva. Chuva ou sol faziam pouca diferença. Caminhar em Istambul significava andar atrelado à multidão. Quando Zeliha passou por dúzias de pescadores de aparência grosseira,

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instalados silenciosamente lado a lado ao longo da velha ponte Gaiata, cada qual segurando um guarda-chuva numa das mãos e um molinete na outra, ela os invejou por sua capacidade de imobilidade, essa capacidade de esperar horas por um peixe que não existia, ou, se existia, revelava-se tão pequeno que no final só podia ser usado como isca para outro peixe que nunca seria pescado. Como era surpreendente essa habilidade de realizar tanto realizando tão pouco, ir para casa de mãos vazias e ainda assim satisfeito no final do dia! Neste mundo, a serenidade gerava sorte e a sorte gerava felicidade, ou assim suspeitava Zeliha. Suspeitar era tudo que podia fazer nessa questão em especial, pois jamais sentira o gosto daquela serenidade e achava que jamais poderia senti-lo. Pelo menos não hoje. Hoje definitivamente não. Apesar de sua pressa, serpenteando através do Grande Bazar, Zeliha diminuiu o passo. Não tinha tempo para fazer compras mas mesmo assim entraria para dar uma espiada rápida, assegurou-se enquanto examinava as vitrines. Acendeu um cigarro e, com a fumaça espiralando-se ao sair de sua boca, sentiu-se melhor, quase relaxada. Uma mulher que fumava na rua não era bem vista em Istambul, mas quem se importava? Zeliha deu de ombros. Já não declarara guerra contra toda a sociedade? Com isso, andou em direção à parte mais antiga do bazar. Havia vendedores ambulantes ali que a conheciam pelo primeiro nome, especialmente os joalheiros. Zeliha tinha um fraco por acessórios brilhantes de todos os tipos. Grampos de cristal, broches com imitações de diamantes, brincos cintilantes, enfeites de pérola para lapela, echarpes com listras de zebra, mochilas de cetim, xales de chiffon, pompons de seda, e sapatos, sempre de saltos altos. Nunca se passava um dia em que, atravessando o bazar, não entrasse em várias lojas e barganhasse com os vendedores, pagando no final bem menos que a quantia proposta por coisas que nem sequer planejara comprar. Mas naquele dia vagara por algumas lojas e espiara algumas vitrines. Só isso. Demorando-se em frente a um quiosque cheio de jarras, panelas e vidros com ervas e temperos de vários tipos e cores, lembrou que uma de suas irmãs lhe pedira de manhã que comprasse canela, embora não conseguisse lembrar quem fora. Zeliha era a mais jovem de quatro moças que não concordavam em nada, mas tinham a idêntica convicção de que estavam sempre certas e sentiam que não tinham nada a aprender umas com as outras, apenas muito a ensinar. Era tão ruim quanto perder na loteria por um único número: de qualquer modo que considerasse a situação, não podia deixar de se sentir submetida a uma injustiça que

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estava além do castigo. Mesmo assim Zeliha comprou um pouco de canela; não em pó, mas em pau. O vendedor ofereceu-lhe chá, um cigarro e um bate-papo, e ela não recusou nenhum dos três. Enquanto sentava e conversava, seus olhos examinaram displicentemente as prateleiras até se fixarem num jogo de copos para chá. Aquilo também estava na lista das coisas a que não conseguia resistir: copos de vidro com estrelas douradas, colheres finas e delicadas, pires frágeis com faixas douradas cingindo os ventres. Já devia haver pelo menos trinta jogos de copo para chá diferentes em sua casa, todos comprados por ela. Mas não faria mal comprar outro, pois quebravam com muita facilidade. - São tão frágeis... - murmurou Zeliha. Era a única entre todas as mulheres Kazanci que se enfurecia quando os copos de chá quebravam. Enquanto isso Petite-Ma, nos seus 77 anos, abordava a questão de um modo totalmente diferente. - Lá se vai outro mau-olhado! - exclamava ela a cada vez que um copo de chá rachava ou se espatifava. - Ouviu aquele som agourento? Craque! Ah, ecoou no meu coração! Foi o mau-olhado de alguém, invejoso e malicioso. Que Alá proteja todas nós! Sempre que um copo quebrava ou um espelho rachava, PetiteMa suspirava de alívio. Já que não se podia eliminar completamente as pessoas más da superfície deste mundo louco, era muito melhor que seu mau-olhado caísse sobre o vidro do que penetrasse as almas inocentes de Deus e estragasse suas vidas. Vinte minutos depois, ao entrar correndo num escritório chique de um dos bairros mais abastados da cidade, Zeliha levava um salto quebrado numa das mãos e um novo jogo de copos de chá na outra. Uma vez lá dentro, lembrou desalentada que deixara o embrulho dos pauzinhos de canela no Grande Bazar. HAVIA TRÊS MULHERES NA SALA DE ESPERA, cada qual com um cabelo horrível e um homem quase sem cabelo nenhum. Pelo modo como se sentavam, Zeliha notou logo e deduziu cinicamente que a mais jovem era a menos preocupada de todas, folheando languidamente as fotos de uma revista feminina, preguiçosa demais para ler os artigos, tendo vindo provavelmente para renovar a receita de pílulas anticoncepcionais; a loura gorducha junto à janela, que parecia ter trinta e poucos anos e cujas raízes negras dos cabelos imploravam para ser pintadas, balançava nervosamente os pés, sua mente aparentemente longe, provavelmente ali para um check-up de rotina e o exame de papanicolau. A terceira, de véu na cabeça e que viera com o marido, parecia a menos tranqüila de todas; os cantos da boca puxados para baixo, as sobrancelhas unidas. Zeliha imaginou que ela tivesse problemas para

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engravidar. Bem, dependendo da perspectiva da pessoa, isso poderia ser perturbador. Ela pessoalmente não via a infertilidade como a pior coisa que pudesse acontecer a uma mulher. - Ei, você! - chilreou a recepcionista, forçando um sorriso tolo e falso, mas tão bem treinado que não parecia tolo ou falso. - Está marcada para as três horas? Como tinha dificuldade em pronunciar a letra r, a recepcionista parecia compensar isso com um grande esforço para acentuar o som e elevar a voz, oferecendo ainda um sorriso extra sempre que sua língua tropeçava naquela letra agourenta. Para lhe poupar o fardo, Zeliha concordou instantaneamente com a cabeça, talvez de um modo vigoroso demais. - E está aqui para que exatamente, senhorita das três horas? Zeliha tentou ignorar o absurdo daquela pergunta. Agora já sabia muito bem que era exatamente essa animação feminina incondicional e abrangente que lhe fazia tanta falta na vida. Algumas mulheres são sorridentes devotadas; sorriem com um espartano senso de dever. Zeliha imaginava como era possível aprender a fazer com tanta naturalidade algo tão pouco natural. Mas pondo de lado a pergunta que ecoava em sua mente, ela respondeu: - Um aborto. A palavra pairou no ar, e todos esperaram que finalmente caísse. Os olhos da recepcionista tornaram-se menores, depois maiores, enquanto seu sorriso desaparecia. Zeliha não pôde evitar sentir o alívio. Afinal de contas, a animação feminina incondicional e abrangente provocava nela um espírito vingativo. - Tenho uma consulta... - disse Zeliha, enfiando um anel de cabelo para trás da orelha e deixando o resto cair sobre seu rosto e ombros como uma burca espessa e negra. Ergueu o queixo, acentuando seu nariz aquilino, e sentiu necessidade de repetir, num tom mais alto do que pretendia. Ou talvez não. - Porque preciso fazer um aborto. Dividida entre registrar imparcialmente a nova paciente e lançar um olhar de censura àquela intrepidez, a recepcionista permaneceu imóvel, um enorme caderno de notas com capa de couro aberto à sua frente. Alguns segundos se passaram antes que ela finalmente começasse a escrever. Enquanto isso, Zeliha murmurou: - Desculpe o atraso. - Um relógio na parede indicava que chegara 46 minutos atrasada. Enquanto seu olhar pousava nele, por um segundo Zeliha deu a impressão de vagar para longe. - Foi por causa da chuva... Aquilo era um pouco injusto com a chuva, já que o tráfego, as pedras quebradas da calçada, a prefeitura, o espreitador e o motorista de táxi, sem falar na parada para a compra, também eram responsáveis por seu atraso, mas Zeliha decidira não trazer à baila nenhum deles. Podia ter violado a Regra de

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Ouro da Prudência para uma Mulher de Istambul, mas fazia questão de seguir a Regra de Bronze. A Regra de Bronze da Prudência para uma Mulher de Istambul: Quando assediada na rua, é melhor esquecer o incidente assim que retomar o seu caminho. Remoê-lo o dia inteiro só arrasará ainda mais os seus nervos! Zeliha era suficientemente esperta para saber que mesmo se mencionasse o assédio agora, as outras, longe de a apoiarem, tenderiam a criticar a irmã assediada em casos como aquele. Portanto, manteve a resposta curta e a chuva continuou sendo a única culpada. - Sua idade? - perguntou a recepcionista. Bem, aquela pergunta era irritante e totalmente desnecessária. Zeliha estreitou os olhos para a recepcionista como se esta fosse uma espécie de penumbra a que precisava se adaptar para ver melhor. De repente lembrou-se da triste verdade sobre si mesma: sua idade. Como tantas mulheres acostumadas a agir além de seus anos, perturbava-se com o fato de ser, afinal de contas, muito mais jovem do que gostaria. - Dezenove anos - admitiu. Assim que as palavras deixaram sua boca, Zeliha enrubesceu como se tivesse sido flagrada nua na frente de toda aquela gente.- Precisamos do consentimento de seu marido, é claro, continuou a recepcionista, agora sem a voz chilreante, e passou sem perder tempo a outra pergunta de cuja resposta já suspeitava. - Posso saber se é casada, senhorita? Com o canto do olho, Zeliha notou a loura rechonchuda à direita e a mulher de véu na cabeça à esquerda remexerem-se desconfortavelmente. Enquanto o olhar das pessoas na sala pesava com mais força sobre Zeliha, sua careta evoluiu para um sorriso beatífico. Não que estivesse usufruindo o momento tortuoso, mas sua indiferença íntima acabara de sussurrar-lhe que não se importasse com a opinião dos outros, já que não faria nenhuma diferença no final das contas. Ultimamente decidira eliminar certas palavras de seu vocabulário, e agora que lembrara daquela decisão, por que não começar pela palavra vergonha? Mesmo assim não teve a audácia de pronunciar alto o que todos na sala já haviam entendido. Não havia nenhum marido para consentir no aborto. Nenhum pai. Em vez de BA-BA havia apenas VÁ-CUO. Felizmente para Zeliha, o fato de não haver marido revelou-se uma vantagem nas formalidades. Aparentemente não precisava do apoio por escrito de ninguém. Os regulamentos burocráticos estavam menos interessados em auxiliar bebês nascidos fora do casamento do que os nascidos de casais casados. Um bebê sem pai em Istambul era apenas mais um bastardo, e um bastardo era apenas mais um dente mole na mandíbula da cidade pronto

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para cair a qualquer momento. - Naturalidade? continuou a recepcionista, aridamente. - Istambul! - Istambul? Zeliha deu de ombros como se dissesse: "De onde mais poderia ser?" De que lugar a não ser dali? Pertencia àquela cidade! Não era visível em seu rosto? Afinal de contas, Zeliha se considerava uma verdadeira filha de Istambul, e como se repreendesse a recepcionista por não ver um fato óbvio, virou-se de costas com seu salto quebrado e foi se sentar na cadeira junto à mulher de véu na cabeça. Foi * Baba significa "papai" em turco.Somente então que notou o marido desta, sentado imóvel, quase paralisado de constrangimento. Em vez de julgar Zeliha, o homem parecia mergulhado no desconforto de ser o único varão ali, naquela zona manifestamente feminina. Por um segundo Zeliha teve pena dele. Pensou até em lhe pedir que fosse à sacada para fumar um cigarro com ela, pois tinha certeza de que ele fumava. Mas isso poderia ser interpretado erradamente. Uma mulher solteira não podia sugerir tal coisa a homens casados, e um homem casado seria hostil para com outra mulher tendo a esposa por perto. Por que era difícil ser amiga dos homens? Por que sempre tinha que ser assim? Por que não podiam simplesmente ir até a sacada, fumar um cigarro, trocar algumas palavras e depois cada um seguir o seu caminho? Zeliha permaneceu sentada silenciosamente por um longo momento, não porque estivesse morta de cansaço, o que estava, ou porque estivesse farta de toda a atenção, o que também estava, mas porque desejava estar junto da janela aberta; tinha fome dos sons da rua. A voz rouca de um vendedor ambulante vinda de fora infiltrou-se na sala: - Tangerinas...Tangerinas frescas e cheirosas... - Ótimo, continue gritando - murmurou Zeliha para si mesma.Não gostava do silêncio. Na verdade, detestava o silêncio. Tudo bem que as pessoas a olhassem fixamente na rua, no bazar, na sala de espera do médico, aqui e ali, dia e noite; tudo bem que a observassem e fixassem estupidamente, confrontando-a longamente com os olhos de novo, como se a vissem pela primeira vez. De um modo ou de outro, sempre podia defender-se dos seus olhares. O que não podia era lutar contra o seu silêncio. - Tangerineiro... Tangerineiro... Quanto é o quilo? - berrou uma mulher na janela do andar de cima de um edifício do outro lado da rua. Sempre era divertido para Zeliha ver como os habitantes daquela cidade conseguiam facilmente, quase sem esforço, inventar nomes improváveis para profissões comuns. Era possível acrescentar um -eiro a praticamente qualquer coisa vendida no mercado, e logo um novo nome era incluído na

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longa lista de profissões urbanas. Assim, dependendo do que era vendido, podia-se facilmente ser chamado de "tangerineiro", "maçãzeiro", "aguadeiro" ou... "aborteiro". Naquele momento, Zeliha já não tinha mais dúvida. Não que precisasse de alguém para confirmar sua própria certeza, mas fizera também um teste na clínica recém-aberta nas vizinhanças. No dia da "grande inauguração", o pessoal da clínica ofereceu uma vistosa recepção para um grupo de seletos convidados, e enfileirou buquês e guirlandas do lado de fora da entrada para que os passantes também fossem informados do evento. Quando Zeliha visitou a clínica no dia seguinte, a maioria das flores já murchara, mas os folhetos continuavam tão coloridos quanto antes. TESTE DE GRAVIDEZ GRÁTIS COM EXAME DE GLICOSE!, diziam as fluorescentes letras maiúsculas. Zeliha desconhecia a correlação entre os dois, mas mesmo assim fizera o teste. Quando os resultados chegaram, sua taxa de glicose revelou-se normal e ela estava grávida. - Senhorita, pode entrar agora! - chamou a recepcionista parada na entrada, lutando com outro r, desta vez um r difícil de evitar em sua profissão. - O doutor está à sua espera. Pegando a caixa de copos de chá e o salto quebrado, Zeliha levantou-se de um pulo. Sentiu todas as cabeças se voltarem para ela, registrando cada gesto seu. Normalmente ela teria caminhado o mais rápido possível. Naquele momento, contudo, seus movimentos eram visivelmente lentos, quase lânguidos. Quando estava prestes a deixar a sala, fez uma pausa e, como que pressionada por um botão, virou-se sabendo exatamente para quem olhar. Lá, enquadrado por suas pupilas, estava um rosto muito amargo. A mulher de véu na cabeça fez uma careta, os olhos castanhos obscurecidos de ressentimento, os lábios se movendo, amaldiçoando o médico e aquela adolescente de 19 anos prestes a abortar o filho que Alá devia ter concedido não a uma garota desleixada, mas a si mesma. O MÉDICO ERA UM HOMEM ROBUSTO, que transmitia força com sua postura ereta. Ao contrário da recepcionista, não havia nenhum julgamento em seu olhar, nenhuma pergunta insensata em sua boca.

Pareceu acolher Zeliha irrestritamente. Ele a fez assinar alguns papéis e, em seguida, mais papéis para o caso de algo não dar certo durante ou depois do procedimento. Perto dele, Zeliha sentiu os nervos relaxarem e sua pele afinar-se, o que era muito ruim porque sempre que isso acontecia ela se tornava frágil como um copo de chá e não conseguia evitar as lágrimas. E aquilo era uma coisa que realmente odiava. Tendo

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um profundo desprezo por mulheres choronas desde pequena, Zeliha prometera-se nunca se transformar numa daquelas misérias ambulantes que espalhavam lágrimas e lamentações bobas por toda parte e das quais havia muitas à sua volta. Proibira-se de chorar. Até aquele dia, em geral conseguira manter sua promessa. Quando e se as lágrimas subiam a seus olhos, simplesmente prendia a respiração e lembrava a promessa feita. Assim, naquela primeira sexta-feira de julho, fez mais uma vez o que sempre fizera para sufocar as lágrimas: respirou profundamente e ergueu o queixo, como um sinal de força. Daquela vez, no entanto, algo saiu totalmente errado e a respiração que prendeu escapou como um soluço. O médico não demonstrou surpresa. Estava acostumado com aquilo; as mulheres sempre choravam. - Pronto, pronto - disse ele, tentando consolar Zeliha enquanto vestia um par de luvas cirúrgicas. - Tudo vai correr bem, não se preocupe. É apenas um sono leve. Você vai dormir, sonhar, e antes de terminar o sonho nós a acordaremos e você irá para casa. Depois disso não se lembrará de nada. Quando Zeliha chorava daquele jeito, todas as suas expressões se tornavam visíveis e as bochechas afundavam, acentuando-lhe o traço mais vigoroso: seu nariz! Aquele notável nariz aquilino que, como os irmãos, ela herdara do pai; diferente dos irmãos, porém, o dela tinha o dorso mais acentuado e era um pouquinho mais alongado nas bordas. O médico deu-lhe uns tapinhas no ombro, passou-lhe um lenço de papel e depois a caixa inteira. Sempre tinha uma caixa de lenços de papel de prontidão junto à sua mesa. As companhias farmacêuticas distribuíam caixas de lenços de papel grátis. Juntamente com canetas, agendas e outras coisas que traziam gravado seus nomes, as companhias fabricavam lenços de papel para as mulheres que não conseguiam parar de chorar. - Figos... Figos deliciosos... Figos ótimos, maduros! "Era o mesmo vendedor ou um outro? Como os clientes o chamariam...? Figueiro...?!", pensou Zeliha consigo mesma, deitada na mesa de uma sala perturbadoramente branca e imaculada. Nem os equipamentos nem as facas a assustavam tanto quanto aquela absoluta brancura. Havia algo na cor branca que se assemelhava ao silêncio. Ambos eram desprovidos de vida. Em seu esforço para afastar-se da cor do silêncio, Zeliha distraiu-se com uma mancha preta no teto. Quanto mais fixava o olhar, mais a mancha se parecia com uma aranha negra. Primeiro imóvel, depois começou a rastejar. A aranha tornava-se cada vez maior à medida que a injeção se espalhava pelas veias de Zeliha. Em poucos segundos estava tão pesada que não conseguia mover um dedo. Enquanto

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resistia a ser carregada para longe pelo sono da anestesia, começou a soluçar de novo. - Tem certeza de que é isso que você quer? Talvez queira pensar mais sobre o assunto - disse o médico numa voz aveludada, como se Zeliha fosse um monte de pó e ele tivesse medo de fazê-la voar para longe com o vento de suas palavras se falasse mais alto. - Se quiser reconsiderar sua decisão, ainda há tempo. Mas não havia. Zeliha sabia que aquilo tinha de ser feito naquela hora, naquela primeira sexta-feira de julho. Agora ou nunca. - Não há nada a reconsiderar. Não posso ter essa filha - ouviu-se dizer abruptamente. O médico fez um sinal afirmativo com a cabeça. Como se esperasse por esse gesto, a prece de sexta-feira inundou de repente a sala, vinda da mesquita próxima. Em segundos, outra mesquita juntou-se à primeira, e depois outra e mais outra. O rosto de Zeliha contorceu-se, desconfortável. Detestava quando uma prece destinada originalmente a ser emitida pela pureza da voz humana era desumanizada numa voz elétrica, estrondeando pela cidade, produzida por microfones e altofalantes. Logo o clamor era tão ensurdecedor que Zeliha suspeitou haver algum defeito no sistema de alto-falantes das mesquitas nas proximidades. Ou então seus ouvidos tinham se tornado extremamente sensíveis. - Vai terminar num minuto... Não se preocupe. Era o médico falando. Zeliha olhou-o interrogativamente. O desprezo pela eletroprece era tão óbvio no rosto dela? Não que se importasse. Entre todas as mulheres Kazanci, Zeliha era a única declaradamente não-religiosa. Quando criança, agradava-lhe imaginar Alá como seu melhor amigo, o que não era uma coisa ruim, claro, exceto por sua outra melhor amiga ser uma garota sardenta, loquaz, que passara a fumar aos oito anos. A garota era filha da faxineira da família, uma curda gorducha cujo bigode nem sempre se preocupava em depilar. Naquela época, a faxineira ia à casa de Zeliha duas vezes por semana, levando sempre a filha. Depois de um tempo, Zeliha e a garota tornaram-se boas amigas, chegando até a cortar seus respectivos dedos indicadores para misturarem o sangue e serem irmãs de sangue para sempre. Por uma ou duas semanas, as garotas andaram com curativos ensangüentados amarrados nos dedos como um sinal de sua irmandade. Naqueles tempos, sempre que Zeliha rezava, pensava nessas bandagens - se pelo menos Alá também pudesse se tornar uma irmã de sangue... sua irmã de sangue... "Perdão", instantaneamente se desculpou, e em seguida repetiu mais duas vezes, porque sempre que se pedia perdão a Alá era preciso fazê-lo três vezes: "Perdão, perdão, perdão." Era

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errado, ela sabia. Alá não podia e não devia ser personificado. Aliás, não tinha dedos nem sangue. Não se devia atribuir a ele - ou melhor, Ele - qualidades humanas, o que não era muito fácil já que cada um de seus - ou melhor, Seus - 99 nomes eram qualidades pertinentes também a seres humanos. Ele podia ver, mas não tinha olhos; podia ouvir, mas não tinha orelhas; podia alcançar todas as partes, mas não tinha mãos... De toda essa informação, Zeliha, aos oito anos, chegara à conclusão de que Alá podia se assemelhar a nós, mas nós não podíamos nos assemelhar a Ele. Ou seria o contrário? Fosse como fosse, era preciso aprender a pensar nele - ou melhor, Nele - sem pensar Nele como ele. É possível que não tivesse se importado muito com isso se não tivesse visto, numa certa tarde, um curativo ensangüentado no dedo indicador de sua irmã mais velha, Fende. Parece que a garota curda fizera dela uma irmã de sangue também. Zeliha sentiu-se traída. Somente então se revelou que sua verdadeira objeção a Alá não era que ele - ou melhor, Ele - não tivesse qualquer sangue, mas sim que tivesse irmãs de sangue demais, tantas que no final não conseguiria cuidar de nenhuma. A amizade com a garota não durara muito depois daquilo. Sendo o konak tão grande e dilapidado e a mãe de Zeliha tão resmungona e teimosa, a faxineira foi embora depois de certo tempo, levando a filha. Ficando sem sua melhor amiga, cuja amizade na realidade era dúbia, Zeliha sentiu um súbito ressentimento mas sem saber exatamente com quem - se com a faxineira por ir embora, com sua mãe por fazê-la ir, com sua melhor amiga por ter duas caras, com a irmã mais velha por roubar sua irmã de sangue, ou com Alá. Estando os outros totalmente fora do alcance, Zeliha escolheu Alá como objeto de seu ressentimento. Sentindo-se uma infiel desde tão tenra idade, não viu motivo para não continuar assim depois de adulta. Mais um chamado à prece de outra mesquita juntou-se aos demais. As preces multiplicavam-se em ecos, como se fizessem círculos dentro de círculos. Era estranho, mas naquele momento, no consultório médico, Zeliha se preocupou em chegar atrasada para o jantar. Imaginou o que seria servido à mesa naquela noite e qual das irmãs teria cozinhado. Cada uma era boa em uma determinada receita; assim, dependendo da cozinheira do dia, podia esperar por um prato diferente. Adorava pimentões recheados - um prato especialmente complicado, já que cada irmã o fazia de modo tão diferente. Pimentões... recheados... Sua respiração ficou mais lenta enquanto a aranha começava a descer. Ainda tentando olhar fixamente para o teto, Zeliha sentiu como se ela e as pessoas na sala não estivessem

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ocupando o mesmo espaço. Então penetrou no reino de Morfeu. Era muito brilhante ali, quase lustroso. Lenta e cautelosamente, caminhou por uma ponte fervilhando de carros, pedestres e pescadores imóveis, com minhocas se contorcendo na ponta de seus molinetes.Enquanto Zeliha navegava entre eles, cada pedra da calçada em que pisava se revelava solta, e para seu temor reverente havia apenas vácuo por baixo. Logo percebeu com horror que o que havia embaixo havia também em cima, e chovia pedras do céu azul. Quando uma delas caía do céu, era uma pedra a menos na calçada lá embaixo. Acima do céu e abaixo do chão havia a mesma coisa: VÁ-CUO. Enquanto as pedras choviam, alargando cada vez mais a cavidade abaixo, Zeliha entrou em pânico, temendo ser engolida pelo abismo faminto. "Pare!", gritou para as pedras que continuavam rolando sob seus pés. "Pare!", ordenou para os veículos disparando em sua direção e então atropelando-a. "Pare!", implorou aos pedestres que a empurravam com os ombros. - Pare, por favor! QUANDO ZELIHA ACORDOU, estava sozinha, nauseada e numa sala desconhecida. Como podia ter andado até ali era um enigma que não tinha vontade alguma de solucionar. Não sentia nada, nem dor nem tristeza. Portanto, concluiu, finalmente a indiferença deve ter ganhado a corrida. Não fora apenas o bebê mas também os seus sentidos que tinham sido abortados naquela mesa branca e pura na sala vizinha. Talvez houvesse um forro prateado em algum lugar. Talvez agora Zeliha pudesse ir pescar e conseguisse ficar imóvel por horas a fio sem se sentir frustrada ou deixada para trás, como se a vida fosse uma lebre veloz que ela só pudesse observar à distância, mas sem possibilidade de alcançar. - Aí está você, finalmente de volta! - disse a recepcionista de pé à porta, com as mãos na cintura. - Minha nossa! Que susto! Como você nos assustou! Tem alguma idéia dos gritos que deu? Foi horrível! Zeliha continuou imóvel, sem piscar.- Os pedestres lá fora devem ter pensado que estávamos torturando você ou coisa parecida... Não sei como a polícia não bateu aqui! "Porque você está falando da polícia de Istambul, não de um tira musculoso de um filme americano", pensou Zeliha consigo mesma quando finalmente se permitiu piscar. Ainda sem entender muito bem por que tinha irritado a recepcionista, mas vendo que não havia sentido em irritá-la ainda mais, deu a primeira desculpa que lhe veio à mente: - Talvez eu tenha gritado porque doeu... Mas a desculpa, por mais persuasiva que parecesse, foi imediatamente esmagada: - Isso não é possível porque o médico... não realizou a operação. Não chegamos nem a encostar em você!

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- Como assim...? - Zeliha emudeceu, mais para compreender o peso de sua própria pergunta do que tentar saber a resposta. - Quer dizer... vocês não... - Não. - A recepcionista suspirou, pondo a mão na cabeça como se estivesse no início de uma enxaqueca. - Não tinha como o médico fazer coisa alguma com você gritando a plenos pulmões. Você não desmaiou, mulher, de jeito nenhum; primeiro tagarelou muito e depois começou a berrar e a xingar. A morfina deve ter levado o dobro do tempo para fazer efeito em você. Zeliha suspeitou de algum exagero por trás daquela declaração, mas não tinha vontade de discutir. Duas horas depois de ter entrado no consultório, percebeu que naquele lugar só se esperava que uma paciente falasse quando lhe fosse dirigida alguma pergunta. - E quando você finalmente apagou, foi difícil acreditar que não ia começar a gritar de novo. O médico disse: "Vamos esperar que a mente dela clareie. Se ela tiver certeza de que quer fazer o aborto, pode tentar outra vez depois." Então trouxemos você para cá e a deixamos dormir. E como dormiu! - Quer dizer que não houve nenhum... - A palavra que pronunciara tão atrevidamente na frente de estranhos naquela tarde parecia impronunciável agora. Zeliha tocou o ventre enquanto seus olhos apelavam por uma palavra de conforto que a recepcionista seria a última pessoa do mundo a oferecer. - Então ela ainda está aqui... - Bem, você ainda não sabe se é uma menina! - disse a recepcionista com realismo. Mas Zeliha sabia. Simplesmente sabia. Uma vez na rua, apesar da escuridão se concentrando, teve a impressão de ser de manhã cedo. A chuva cessara e a vida parecia bela, quase dócil. Embora o tráfego ainda estivesse um caos e as ruas cheias de lama, o cheiro revigorante do pós-chuva dava à cidade um ar sagrado. Aqui e ali, crianças pisavam nas poças de lama, deliciando-se em cometer simples pecados. Se havia um momento certo para o pecado, devia ser naquele instante fugidio. Um dos raros momentos que davam a impressão de que Alá não apenas nos vigiava, mas também se importava conosco; um daqueles momentos em que Ele parecia próximo. Era quase como se Istambul tivesse se transformado numa abençoada metrópole, romanticamente pitoresca, igual a Paris, pensou Zeliha; não que já tivesse ido a Paris. Uma gaivota voou baixo, gritando uma mensagem codificada que Zeliha esteve perto de decifrar. Por meio minuto, a moça acreditou estar no ponto de partida de um novo começo. "Por que não me deixou fazer aquilo, Alá?", ouviu-se murmurar, mas assim que as palavras deixaram seus lábios ela se desculpou, em pânico, para a ateia dentro de

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si. "Perdão, perdão, perdão." Longe e sob o arco-íris, Zeliha claudicou para casa, agarrada à caixa de copos de chá e ao salto quebrado, de algum modo sentindo-se menos desalentada do que há semanas. ASSIM, NAQUELA SEXTA-FEIRA DE JULHO, por volta das oito da noite, Zeliha voltou para casa, para o konak otomano ligeiramente decrépito e de pé-direito alto, que parecia deslocado em meio aos modernos edifícios de apartamentos cinco vezes mais altos que o cercavam dos dois lados. Subiu exausta a escadaria curva e encontrou todas as mulheres Kazanci reunidas no andar de cima à larga mesa de jantar, ocupadas com a refeição, obviamente sem qualquer motivo para esperá-la. - Olá, estranha! Anda, vem jantar também - exclamou Banu, erguendo o pescoço que se inclinava sobre uma asa de galinha crocante feita no forno. - O profeta Maomé nos aconselha a compartilhar a comida com estranhos. Seus lábios e faces estavam reluzentes, como se ela tivesse esfregado por algum tempo a gordura da galinha no rosto, inclusive em seus brilhantes olhos castanho-claros. Doze anos mais velha e treze quilos mais gorda que Zeliha, ela parecia mais sua mãe que sua irmã. Por incrível que parecesse, Banu alegava ter um sistema digestivo esquisito que estocava tudo que ingeria, o que seria um argumento mais verossímil se ela não tivesse declarado também que seu corpo transformava em gordura até a água que consumia, e que por isso não podia ser culpada pelo próprio peso nem poderiam lhe pedir que fizesse uma dieta. - Adivinha o que temos no cardápio hoje? - continuou Banu alegremente, enquanto sacudia um dedo para Zeliha antes de agarrar outra asa de galinha. - Pimentões recheados! - Deve ser o meu dia de sorte - disse Zeliha. O cardápio daquele dia parecia esplendidamente familiar. Além de uma enorme galinha, havia sopa de iogurte, karniyarik, pilaki, kadin, budu, kofrte do dia anterior, tursu, çorek,turu, recém-preparado, um jarro de ayran e pimentões recheados. Zeliha imediatamente puxou uma cadeira, a fome prevalecendo sobre a falta de entusiasmo de participar de um jantar em família depois de um dia tão difícil. - Por onde andou, mocinha? - resmungou a mãe, Gülsüm, que poderia ter sido Ivan, o Terrível em outra vida. Endireitou os ombros, ergueu o queixo, franziu as sobrancelhas e então virou o rosto contorcido para o de Zeliha, como se ao fazer aquilo pudesse ler a mente da filha mais nova. Assim ficaram elas, Gülsüm e Zeliha, mãe e filha, franzindo as sobrancelhas uma para a outra, prontas para brigar, mas relutando em começar a briga. Foi Zeliha quem desviou os olhos primeiro. Sabendo

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muito bem que seria um grande erro ser geniosa na frente da mãe, forçou um sorriso e tentou responder, mesmo indiretamente. - Tinha boas promoções no bazar hoje. Comprei um jogo de copos para chá. São lindos de morrer! Têm umas estrelas douradas e pequenas colherinhas para combinar. - Ah, quebram com tanta facilidade - murmurou Cevriye, a segunda mais velha das irmãs Kazanci e professora de história turca numa escola particular. Ela sempre fazia refeições saudáveis e balanceadas e prendia perfeitamente o cabelo num coque preso na nuca, sem deixar uma mecha solta. - Foi ao bazar? Por que não comprou os paus de canela? Eu disse esta manhã que teríamos pudim de arroz hoje e não sobrou canela para pôr nele. - Banu franziu a testa entre duas mordidas no pão, mas o problema só a preocupou por uma fração de segundo. Sua teoria sobre o pão, que gostava de desfiar regularmente ao mesmo tempo em que a punha em prática, era que se não fosse dada ao estômago uma quantidade adequada de pão a cada refeição, o estômago não "saberia" que estava cheio e exigiria mais comida. Para que o estômago compreendesse que estava cheio, era preciso comer porções decentes de pão com tudo. Assim, Banu comia pão com batatas, com arroz, com massa, com b5rek e, nos momentos em que desejava enviar uma mensagem definitivamente clara ao estômago, comia pão com pão. Jantar sem pão era um pecado simples que Alá poderia perdoar, mas Banu definitivamente não. Zeliha apertou os lábios e permaneceu em silêncio, só agora lembrando o destino da canela. Evitando a pergunta, colocou um pimentão recheado em seu prato. Sempre podia saber com facilidade quem os preparara, se Banu, Cevriye ou Fende. Se fosse Banu, o recheio deles era repleto de coisas que, de outro modo, estariam certamente ausentes, inclusive amendoins, castanhas-de-caju e amêndoas.Se fosse Fende, estariam cheios de arroz, cada pimentão tão estufado que seria impossível comê-los sem estourá-los. Quando sua tendência de recheá-los em excesso se acrescentava a seu amor por condimentos de todos os tipos, os dólmãs de Fende estouravam de ervas e temperos. Dependendo da combinação, ficavam excepcionalmente saborosos, ou simplesmente horríveis. Quando era Cevriye quem fazia o prato, este era sempre mais doce, pois acrescentava açúcar a todos os alimentos, pouco importando quais fossem, como se para compensar o azedo de seu universo. E, naquele dia, coubera exatamente a ela fazer os dólmãs. - Fui ao médico... - murmurou Zeliha, cuidadosamente despindo o dolma de seu pálido manto verde. - Médicos! - Fende fez uma careta e ergueu o garfo

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no ar como a vareta que usaria para indicar uma longínqua cadeia de montanhas num mapa para uma platéia que não fosse sua família, mas sim alunos de uma aula de geografia. Fende tinha dificuldade em estabelecer contato visual. Sentia-se mais à vontade falando com objetos. Assim, dirigiu suas palavras ao prato de Zeliha: - Não leu o jornal esta manhã? Operaram uma criança de nove anos com apendicite e esqueceram uma tesoura dentro dela. Tem idéia de quantos médicos nesse país deveriam ir para a cadeia por imperícia? Entre todas as mulheres Kazanci, Fende era a que mais conhecia os procedimentos médicos. Nos últimos seis anos, recebera diagnóstico de oito doenças diferentes, cada uma parecendo mais estranha que a anterior. Se eram os médicos que não conseguiam chegar a uma conclusão ou a própria Fende que dedicadamente criava novas enfermidades, impossível saber. Depois de algum tempo, isso não tinha mais importância, de um modo ou de outro. A sanidade era uma terra prometida, o Shangri-la da qual fora deportada ainda adolescente e para o qual pretendia voltar um dia. A caminho de lá, ela descansava em escalas diferentes, que vinham com nomes erráticos e tratamentos melancólicos.Mesmo quando menina havia algo bizarro em Fende. Aluna muito difícil na escola, só se interessava pelas aulas de geografia física, e mesmo nelas seu interesse dirigia-se a poucos temas, começando com as camadas da atmosfera. Seus tópicos favoritos eram como o ozônio estava rarefeito na estratosfera, e a conexão entre as correntes da superfície do oceano e os padrões atmosféricos. Ela recolhera toda a informação que pôde sobre a circulação estratosférica de alta latitude, as características da mesosfera, ventos dos vales, brisas marinhas, ciclos do Sol e latitudes tropicais, assim como sobre a forma e o tamanho da Terra. Tudo que memorizara na escola Fende descarregava em casa, apimentando cada conversa com informações atmosféricas. Todas as vezes que demonstrava seu conhecimento de geografia física, falava com um entusiasmo sem precedentes, flutuando bem acima das nuvens, pulando de uma camada atmosférica para a outra. Então, um ano depois de sua formatura, Fende começou a dar sinais de excentricidade e distanciamento. Embora sua inclinação por geografia física jamais diminuísse com o tempo, esse tema inspirou outra área de interesse profundamente usufruída por Fende: acidentes e desastres. Todos os dias ela lia a terceira página dos tablóides. Acidentes de carro, assassinatos em série, furacões, terremotos, incêndios, enchentes, doenças terminais, enfermidades

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contagiosas e vírus desconhecidos... Fende passava todos em revista. Sua memória seletiva absorvia calamidades locais, nacionais e internacionais, simplesmente para transmiti-las aos outros inesperadamente. Nunca precisou de muito tempo para tornar qualquer conversa sombria, já que, desde seu nascimento, tendia a ver infelicidade em todas as histórias e fabricar um pouco da primeira quando não havia nenhuma. As notícias que transmitia, porém, não aborreciam as outras, já que há muito haviam deixado de acreditar nela. Sua família concebera um modo de lidar com a insanidade, tomando-a por falta de credibilidade. O primeiro diagnóstico dado a Fende fora "úlcera por estresse", que ninguém na família levara muito a sério, porque "estresse" tornara-se uma espécie de salvo-conduto para tudo. Logo que introduzido na cultura turca, ele fora recebido tão euforicamente pelos habitantes de Istambul que incontáveis pacientes com estresse haviam surgido na cidade. Fende migrava sem parar de uma doença causada pelo estresse para outra, surpresa por descobrir a vastidão da Terra, já que não parecia haver virtualmente nada que não fosse vinculado ao estresse. Depois disso, ela passou pelo transtorno obsessivo-compulsivo, amnésia dissociativa e depressão psicótica. Conseguindo se envenenar, fora certa vez diagnosticada como bipolar, o nome que mais apreciara entre todas as suas doenças. Em cada estágio da jornada para a insanidade, Fende mudava o penteado e a cor do cabelo, fazendo com que os médicos, após certo tempo, num esforço para seguir as mudanças de sua mente, passassem a elaborar um mapa capilar. Curto, médio, muito comprido e certa vez raspado; espetado, alisado, sacudido e trançado; submetido a toneladas de spray, gel, cera ou creme de pentear; com acessórios como prendedores, jóias ou fitas; curto no estilo punk, preso em coques de bailarina, com luzes e tingido de todos os tons possíveis. Cada um dos estilos fora um episódio fugaz enquanto a própria doença permanecia firme e forte. Depois de uma longa estada em "transtorno depressivo grave", Fende mudou-se para a "fronteira" - um termo construído de modo bastante arbitrário pelos diferentes membros da família Kazanci. Sua mãe interpretava a palavra "fronteira" como um problema associado à polícia, funcionários da Alfândega e ilegalidade, descobrindo assim uma "delinqüente estrangeira" na pessoa de Fende. Tornou-se, portanto, ainda mais suspeitosa dessa filha maluca em quem jamais confiara. Contrastando totalmente com isso, para as irmãs de Fende o conceito de "fronteira" invocava sobretudo a imagem de um

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penhasco mortal. Por muito tempo trataram a irmã com o máximo cuidado, como se ela fosse uma sonâmbula caminhando sobre um muro de muitos metros de altura e pudesse despencar a qualquer momento. A palavra "fronteira", contudo, invocava em Petite-Ma o remate de uma treliça, o que fazia com que estudasse a neta com profundo interesse e solidariedade.Fende emigrara recentemente para outro diagnóstico que ninguém conseguia sequer pronunciar, que dirá entender: "esquizofrenia hebefrênica". Desde então ela permanecera fiel à nova nomenclatura, como se finalmente conquistasse, contente, o esclarecimento nominal de que tanto necessitava. Fosse qual fosse o diagnóstico, Fende vivia segundo as regras de sua própria terra da fantasia, fora da qual jamais pusera os pés.Naquela primeira sexta-feira de julho, porém, Zeliha não prestou atenção à famosa aversão da irmã por médicos. Enquanto começava a jantar, notou como estivera com fome o dia inteiro. Quase mecanicamente, comeu um pedaço de çorek, serviu-se de um copo de ayran, colocou outro dolma verde em seu prato e revelou a informação que crescia dentro de si:- Fui a um ginecologista hoje...- Ginecologista! - repetiu Fende instantaneamente, sem fazer qualquer comentário específico. Ginecologistas eram um grupo de médicos com o qual tinha tido uma experiência mínima.- Fui ao ginecologista hoje para fazer um aborto. - Zeliha completou a frase sem olhar para ninguém.Banu deixou cair a asa de galinha e baixou os olhos para os pés, como se estes tivessem algo a ver com aquilo; Cevriye apertou os lábios com força; Fende soltou um grito e então, estranhamente, deu uma risada; a mãe esfregou tensamente a testa, sentindo o primeiro aviso de uma terrível dor de cabeça chegando; e Petite-Ma... Bem, Petite-Ma apenas continuou a tomar sua sopa de iogurte. Talvez porque tivesse ficado muito surda no decorrer dos últimos meses, talvez porque sofresse os primeiros estágios de demência, ou talvez porque simplesmente achasse que a coisa não merecia um estardalhaço. Com Petite-Ma nunca se podia saber.- Como pôde matar o seu bebê? - perguntou Cevriye, num temor reverente.- Não é um bebê! - Zeliha deu de ombros. - Nesse estágio é mais um embrião. Esse termo é mais científico.- Científico?! Você não é científica, é cruel! - Cevriye irrompeu em

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lágrimas. - Cruel! É isso que você é!- Bem, então aqui vai uma boa notícia. Não matei ele... ela... Seja lá o que for! - Zeliha voltou-se para a irmã calmamente. - Não que eu não quisesse. Eu queria! Tentei abortar o embrião, mas de algum modo não aconteceu. - Como assim? - perguntou Banu. Zeliha tomou um ar corajoso. - Alá me mandou uma mensagem - disse atonicamente, sabendo ser a coisa errada para dizer numa família como aquela, mas dizendo mesmo assim. - Eu estava lá deitada, anestesiada, com o médico de um lado e a enfermeira do outro. Em alguns minutos a operação ia começar e o bebê desapareceria. Para sempre! Mas justamente quando eu estava prestes a perder os sentidos na mesa de operação, ouvi a prece da tarde vinda de uma mesquita perto dali... A prece era suave como um pedaço de veludo. Envolveu todo o meu corpo. Então, assim que ela terminou escutei um murmúrio, como se alguém sussurrasse no meu ouvido: "Não matarás essa criança!" Cevriye encolheu-se, Fende tossiu nervosamente no guardanapo, Banu engoliu com dificuldade e Gülsüm franziu as sobrancelhas. Só Petite-Ma continuou distante, numa terra aprazível, tendo terminado a sopa e esperando obedientemente que chegasse o prato seguinte. E, então - Zeliha continuou a história -, a voz misteriosa ordenou: "Ooooh Zeliha! Ooooh sua ovelha negra da virtuosa família Kazancr! Deixe essa criança viver! Você ainda não sabe, mas ela vai ser um líder. Será um monarca!" - Não é possível! - interrompeu a professora Cevriye, não perdendo a oportunidade de demonstrar conhecimento. - Não há mais monarcas, somos uma nação moderna. - Ooooh sua pecadora, essa criança vai governar os outros! - continuou Zeliha, fingindo não ter ouvido a lição. - Não só este país, não só o Oriente Médio e os Bálcãs, mas todo o mundo conhecerá seu nome. Essa criança conduzirá as massas e trará paz e justiça à Humanidade! Zeliha fez uma pausa e soltou a respiração.- De qualquer forma, boa notícia para todos! O bebê ainda está comigo! Em breve vamos pôr outro prato na mesa. - Um bastardo! - exclamou Gülsüm. - Você vai trazer para esta família uma criança nascida fora do casamento. Um bastardo! O efeito da palavra espalhou-se como o de um seixo atirado na água imóvel. - Que vergonha! Você sempre causou vergonha à família. - O rosto de Gülsüm contorceu-se de raiva. - Veja esse piercing no nariz... Toda essa maquiagem e saias curtas revoltantes! Ah, e esses saltos altos! É isso que acontece quando você se veste... como uma puta! Devia agradecer a Alá noite e dia; devia ser grata por não haver homens nesta família. Eles a teriam matado. Não era

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bem assim. A parte de matar talvez fosse verdade, mas a parte de não haver homens na família, não. Havia homens na família, em algum lugar. Mas era também verdade que havia menos homens que mulheres na família Kazanci. Como uma maldição lançada sobre toda a linhagem, gerações e gerações de homens Kazanci morreram jovens e de forma inesperada, O marido de Petite-Ma, Riza Selim Kazanci, por exemplo, morrera de repente na rua aos sessenta anos, sem conseguir respirar. Na geração seguinte, Levent Kazanci morrera de um ataque do coração antes dos 51 anos, seguindo os padrões de seu pai e de seu avô. A impressão é que o tempo de vida dos homens da família tornava-se cada vez mais curto a cada geração. Havia um tio que fugira com uma prostituta russa e teve todo o dinheiro roubado por ela, morrendo congelado em São Petersburgo; outro parente fora para o descanso final depois de ser atropelado por um carro ao tentar atravessar a auto-estrada totalmente embriagado; vários sobrinhos tinham morrido na casa dos vinte, um deles afogando-se enquanto nadava bêbado ao luar, outro atingido no peito pela bala de um hooligan que se divertia depois que seu time de futebol conquistara o campeonato, e outro caindo numa vala de dois metros escavada pela prefeitura para reformar os esgotos da rua. Depois Zyia, primo em segundo grau, matou-se com um tiro sem qualquer motivo aparente.Geração após geração, como se obedecessem a uma regra tácita, os homens da família Kazanci haviam morrido na mocidade. A idade mais avançada que tinham conseguido atingir na presente geração era a de 41 anos. Determinado a não repetir o padrão, Outro tio-avô tivera o maior cuidado em levar uma vida saudável, evitando comer demais, sexo com prostitutas, contato com hooligans, álcool e qualquer outra droga, e terminou esmagado por um grande pedaço de concreto que caiu de uma construção sob a qual passava por acaso. Houve também Celal, um primo distante que foi o amor da vida de Cevriye e o marido que ela perdeu numa briga. Por motivos ainda obscuros, Celal fora sentenciado a dois anos sob acusação de suborno. Durante esse tempo, sua presença na família limitou-se a cartas esporádicas envíadas da prisão, tão vagas e distantes que, quando a notícia de sua morte chegou, para todos - com exceção da esposa - tinha sido como perder um terceiro braço, aquele que não se tem. Celal partira da vida numa luta, não por um golpe ou um soco, e sim por pisar num cabo elétrico de alta voltagem enquanto procurava o melhor lugar para assistir aos murros trocados por outros dois prisioneiros. Após perder o amor de sua vida, Cevriye vendeu a casa dos dois e juntou-se ao

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domicílio Kazanci como uma professora de história sem graça, com um autocontrole e um senso de disciplina espartanos. Da mesma forma que desencadeara uma guerra contra os plágios na escola, ela assumiu uma cruzada contra a impulsividade, a desordem e a espontaneidade em casa. Depois houve Sabahattin, o marido de Banu, também igualmente apagado, mas afável e de bom coração. Embora não fosse um parente de sangue e desse uma impressão de excepcional saúde e vigor, embora os dois ainda estivessem casados no papel - exceto por um breve período depois da lua-de-mel -, Banu passava mais tempo no konak da família do que em casa com o marido. Tão visível era a distância física entre eles que, quando Banu anunciou estar grávida de gêmeos, todos brincaram sobre aquela impossibilidade técnica. Mais uma vez o agourento destino que esperava por todos os homens Kazanci alcançou os gêmeos em tenra idade. Com a perda de seus meninos ainda engatinhando para doenças infantis, Banu mudou-se permanentemente para a casa da família, visitando o marido apenas esporadicamente nos anos que se seguiram. De vez em quando, ia verificar se ele estava bem, mais como uma desconhecida preocupada do que como uma esposa amorosa. Depois, é claro, veio Mustafá, o único filho da geração atual, uma pedra preciosa concedida por Alá em meio a quatro filhas. Como resultado da fixação de Levent Kazanci em ter um menino que levasse seu nome, as quatro irmãs Kazanci tinham crescido sentindo-se como visitantes indesejáveis. As primeiras três crianças eram meninas. Banu, Cevriye e Fende tinham se sentido como uma introdução ao fato principal, um prelúdio acidental na vida sexual dos pais, tão determinados estavam em ter um filho homem. Como quinta criança, Zeliha sempre soube que fora concebida na esperança de que a sorte pudesse ser generosa duas vezes consecutivas. Depois de finalmente ter um menino, os pais quiseram ver se teriam sorte suficiente para gerar outro. Mustafá era precioso desde o dia em que nasceu. Tomou-se uma série de medidas para protegê-lo do sombrio destino que aguardava todos os homens da árvore genealógica dos Kazanci. Quando bebê, empilharam sobre ele contas contra o mau-olhado e amuletos; ainda engatinhando, era vigiado constantemente; até os oito anos, seu cabelo foi mantido longo como o de uma garota para enganar Azrail, o anjo da morte. Sempre que alguém se dirigia à criança, dizia: "Menina", "Menina, venha cá!" Embora fosse bom aluno, a maior parte da vida de ginásio de Mustafá foi estragada por sua incapacidade em se socializar. Um rei em sua própria casa, o garoto parecia se recusar a ser mais um entre os

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muitos de sua turma. Tão impopular se tornara com o tempo que, quando Gülsüm quis fazer uma festa para ele e os amigos festejarem a sua formatura, não havia ninguém para convidar. Mustafá era tão arrogante e anti-social fora de casa, tão inquestionavelmente paparicado como um rei em seu lar, e, com o passar dos aniversários, tão agourentamente próximo da condenação sofrida por todos os homens Kazanci, que finalmente pareceu uma boa idéia enviá-lo ao exterior. Em um mês, as jóias de Petite-Ma foram vendidas pela quantia exigida e o filho de 18 anos da família Kazanci trocou Istambul pelo Arizona, onde se tornou um estudante de engenharia agrícola e de biossistemas, passando a ter esperanças de sobreviver até a velhice. Assim, quando naquela primeira sexta-feira de julho Gülsüm censurou Zeliha dizendo-lhe que fosse grata pela falta de homens na família, havia alguma verdade na declaração. Zeliha ficou em silêncio. Foi à cozinha para alimentar o único macho da casa - um gato malhado de fome insaciável, com um amor pouco comum pela água e muitos sintomas de estresse social, que na melhor das hipóteses poderia ser interpretado como independente e, na pior, como neurótico. O nome do gato era Paxá III. No konak Kazanci, as gerações de gatos tinham se sucedido como as dos seres humanos; mas à diferença dos seres humanos, todos foram amados e morreram, sem exceção, apenas de velhice. Embora cada gato mostrasse uma personalidade distinta, dois genes principais e antagônicos percorriam a linhagem felina da casa. De um lado, havia o gene "nobre", vindo de uma gata persa branca como a neve, de pêlo longo e focinho achatado, que Pente-Ma trouxera ainda como jovem noiva, no final da década de 1920 ("A gata deve ser o único dote que tem", zombaram as mulheres do bairro). Do outro, havia o gene de "rua", vindo de um gato aparentemente vira-lata, fulvo, não-identificado, com o qual a gata persa conseguira copular em uma de suas escapadelas. Por gerações e gerações, como num revezamento, prevalecia um dos dois traços genéticos nos habitantes felinos nascidos sob aquele teto. Depois de algum tempo, os Kazanci passaram a não se dar ao trabalho de procurar nomes diferentes; em vez disso, seguiram apenas a genealogia felina. Se o gatinho parecia um descendente da linhagem aristocrática, branco, peludo e de focinho achatado, batizavam-no sucessivamente de Paxá 1, Paxá II, Paxá III... Se pertencesse à linhagem do vira-lata, chamavam-no de Sultão - um nome superior, assinalando a crença que gatos de rua eram espíritos livres e independentes, sem necessidade de adular ninguém.

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Até aquele dia a diferença nominal, sem exceção, refletira-se nas personalidades dos gatos da casa. Os da nobreza revelavam-se distantes, exigentes e quietos, lambendo-se constantemente, apagando todos os traços do contato humano sempre que alguém passava a mão neles; os do segundo grupo eram, até agora, os tipos mais curiosos e vigorosos, que se deliciavam com luxos bizarros como comer chocolate. Paxá III personificava nitidamente os traços de sua linhagem, sempre num ritmo pomposo, como se caminhasse na ponta dos pés por entre cacos de vidro. Tinha duas atividades preferidas, que punha em prática em todas as ocasiões: mastigar fios elétricos e observar pássaros e borboletas, preguiçoso demais para caçá-los. Dos animais ele podia se cansar, mas dos fios jamais. Quase todos os fios da casa tinham sido mastigados uma ou várias vezes, esfolados, amassados e danificados pelo gato. Paxá III conseguira sobreviver até uma velhice avançada, apesar dos inúmeros choques elétricos que recebera. - Pronto, Paxá, bom garoto. - Zeliha alimentou-o com pedaços de queijo feta, o preferido dele. Então pôs um avental e mourejou em meio a uma montanha de panelas, frigideiras e pratos. Depois de terminar a louça e se acalmar, arrastou-se de volta à mesa de jantar, onde viu que a palavra bastardo ainda pairava no ar e sua mãe ainda franzia a testa. Todas estavam imóveis até que alguém se lembrou da sobremesa. Um cheiro doce e consolador encheu a sala quando Cevriye despejou o pudim de arroz de um enorme caldeirão nas pequenas tigelas. Enquanto ela distribuía a sobremesa com habilidade, Fende a ajudava polvilhando raspas de coco em cada tigela. - Ficaria muito melhor com canela - queixou-se Banu. - Você não devia ter se esquecido da canela... Apoiando-se no espaldar da cadeira, Zeliha ergueu o nariz e inspirou como se tragasse um cigarro invisível. Enquanto exalava pouco a pouco sua fadiga, sentiu a indiferença ioiô relaxar de novo. Seu 42 ânimo afundava sob o peso de tudo que acontecera e deixara de acontecer naquele dia prolongado e infernal. Esquadrinhou a mesa de jantar, sentindo-se cada vez mais culpada ante a visão das tigelas de pudim de arroz agora sob o dossel dos flocos de coco. Então, sem desviar o olhar, murmurou numa voz muito delicada e suave, muito diferente da habitual. Desculpem... - disse. - Desculpem.

***2GRÃOS-DE-BICO

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SUPERMERCADOS SÃO LOCAIS PERIGOSOS e cheios de armadilhas para os desanimados e ofuscados, ou assim pensava Rose ao se dirigir à ala das fraldas, desta vez decidida a não comprar nada exceto o que realmente precisasse. Além disso, não era o momento de perambular por ali. Tendo deixado a filha no carro parado no estacionamento, sentia-se pouco à vontade naquele momento. Às vezes, fazia coisas que lastimava imediatamente, mas das quais não podia fugir, e na verdade tais incidentes tinham se multiplicado de modo alarmante nos últimos meses - três meses e meio, para ser exato. Três meses e meio de inferno na terra enquanto resistia, lutava, chorava, recusava-se a aceitar, implorava para que não fosse assim, e finalmente concedia que seu casamento chegara ao fim. O matrimônio podia ser uma loucura fugaz, ludibriando a pessoa, fazendo-a crer que duraria para sempre, mas tornava-se mais difícil apreciar seu humor quando era o outro quem colocava o ponto final. O fato de o casamento arrastar-se antes de desmoronar irrecuperavelmente dava a falsa impressão de que ainda havia esperanças, até se entender que a esperança pela qual se vivia não era de que as coisas melhorassem, e sim de que o sofrimento afinal terminasse, para que ambos seguissem cada qual seu caminho. E seguir seu caminho era exatamente o que Rose decidira fazer dali em diante. Se tudo aquilo era equivalente a um túnel de angústia que Deus a impelia a percorrer, ela sairia dele não mais como a mulher fraca que fora antes. Como um sinal de sua determinação, Rose tentou forçar uma risadinha, mas esta não atravessou sua garganta. Em vez disso suspirou, um suspiro aparentemente mais perturbado do que o pretendido, apenas porque alcançara uma ala que preferia não visitar: Doces e Barras de Chocolate. Ao passar correndo pelo Chocolate Amargo Sabor Creme de Baunilha Sem Açúcar dos Vigilantes dos Carboidratos, parou bruscamente. Comprou uma, duas... cinco barras. Não que estivesse vigiando os carboidratos, mas gostava do nome daquilo, ou, mais precisamente, gostava da possibilidade de estar vigiando algo, qualquer coisa. Após ter sido repetidamente acusada de ser uma dona-de-casa desmazelada e uma mãe horrível, Rose estava ansiosa para provar o contrário a qualquer custo. Subitamente desviou o carrinho, mas viu-se em outra ala de guloseimas pouco nutritivas. Onde estavam as porcarias das fraldas? Seus olhos detectaram uma pilha de marshrnallows de coco tostado e, em seguida, Rose percebeu que havia um, dois... seis pacotes

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no seu carrinho. "Não, Rose, não... Nessa mesma tarde você devorou meio litro de sorvete Cherry Garcia... Já engordou muito..." Se aquilo era uma advertência interior, não foi feita num tom alto o suficiente. Mesmo assim um botão de culpa foi ativado em algum lugar de seu inconsciente e um quadro de si mesma pipocou-lhe na mente. Por um rápido segundo, olhou fixamente seu próprio reflexo num espelho imaginário, embora tivesse evitado habilmente o espelho real atrás das alfaces orgânicas. Com o coração apertado, observou os quadris e as nádegas aumentados, mas conseguiu sorrir para as maçãs do rosto salientes, os cabelos dourados, os olhos azuis agora marejados e as orelhas perfeitas! As orelhas são uma parte confiável do corpo humano. Por mais peso que se ganhe, elas permanecem exatamente as mesmas, sempre leais. Infelizmente, o mesmo não ocorria com o resto do corpo humano. A forma física de Rose era tudo menos leal. Seu corpo era tão volátil que nem conseguia classificá-lo segundo o modo como a Healthy Living Magazine categorizava os tipos de corpo das leitoras. Se pertencesse ao grupo em "forma de pêra", por exemplo, teria quadris mais largos que os ombros. Se ao tipo "forma de maçã", teria tendência a engordar na barriga e no peito. Juntando as qualidades de pêra às de maçã, Rose não sabia em que categoria se inserir, a não ser que houvesse outro grupo ainda não mencionado, a "forma de manga", larga em toda parte e mais larga ainda no traseiro. "Que droga", pensou consigo mesma. Trataria de se livrar dos quilos a mais. Agora que a fase infernal do divórcio terminara, se tornaria uma nova mulher. "Definitivamente", pensou. "Definitivamente" era a palavra que usava em lugar do "sim". Em lugar do "não", usava "definitivamente não". Motivada pela idéia de surpreender o ex-marido e sua extensa família com a nova mulher que se tornaria, Rose examinou o corredor. Suas mãos se estenderam para os doces e toffees - toffees de manteiga sem açúcar, caramelos de frutas, palitinhos de alcaçuz -, e assim que os jogou no carrinho impeliu-se rápido para frente como se alguém a perseguisse. Mas render-se ao açúcar deve ter provocado um efeito propulsor em sua consciência culpada, pois imediatamente defrontava um senso de remorso ainda mais profundo. Como podia ter deixado a filha bebê sozinha dentro do carro? Todos os dias se ouve falar na estação de TV KVOA de crianças pequenas raptadas na frente de casa ou de uma mãe acusada de exposição negligente do filho ao perigo... Na semana passada, uma mulher de Tucson pusera fogo na casa e quase matara os dois filhos que lá dormiam. Se algo parecido com isso lhe

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acontecesse um dia, pensou Rose, sua sogra ficaria encantada. Shushan-a-Matriarca-Onipotente entraria logo com uma ação pela custódia da neta. 46 Mergulhada nesses cenários sombrios, Rose estremeceu. Era verdade que tinha estado ligeiramente desligada nos últimos tempos, esquecendo coisas habituais, mas ninguém, nenhuma alma em sã consciência poderia acusá-la com justiça de ser uma mãe ruim! Definitivamente não! Rose provaria isso tanto ao ex-marido quanto àquela gigantesca família armênia dele. A família do ex-marido era de um país onde as pessoas tinham um sobrenome impronunciável e segredos que ela não conseguia decifrar. Sempre se sentira uma forasteira entre eles, sempre consciente de ser uma odar - a palavra grudenta que se colara a ela desde o primeiro dia. Como era terrível estar ainda mental e emocionalmente ligada a alguém de quem já havia se separado fisicamente! Quando a poeira baixara depois de um ano e oito meses de casamento, só restara a Rose puro ressentimento e um bebê. - Foi tudo o que me sobrou... - murmurou para si mesma. Na verdade, aquele era o efeito colateral mais comum da amargura crônica pós-marital: deixava a pessoa falando consigo mesma. Por mais diálogos que imaginasse, nunca lhe faltavam palavras. Nas últimas semanas, Rose discutira imaginária e repetidamente com cada membro da família Tchakhmakhchian, defendendo-se com determinação, vencendo todas as vezes, articulando fluentemente todas as coisas não expressadas durante o divórcio e que desde então lamentava não ter dito. Lá estavam elas! Fraldas superabsorventes sem látex! Enquanto as colocava no carrinho, notou um homem de meia-idade, grisalho e de cavanhaque sorrindo para ela. Na verdade, Rose gostava que seu lado materno fosse observado e, agora que tinha uma platéia, não conseguiu deixar de sorrir. Feliz, estendeu a mão para pegar uma enorme caixa de lenços de papel suavemente perfumados com aloe vera e vitamina E. Graças a Deus alguns apreciavam sua maternidade. Movida pelo anseio de mais reconhecimento, andou para cima e para baixo na ala de produtos infantis, descobrindo, a cada momento, algo que não tinha a intenção de comprar anteriormente mas que não via razão para deixar de comprar: três vidros de loção antibacteriana para brotoeja causada por fralda, um patinho de segurança para o banho do bebê que avisava quando a água estava quente demais, um jogo de seis prendedores plásticos de porta para proteger dedinhos pequenos, um saco de lixo "Max the Monkey" para carros e um objeto para morder em forma de borboleta cheio de água congelável.

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Rose colocou tudo no carrinho. Quem poderia chamá-la de mãe irresponsável? Como poderiam acusá-la de não prestar atenção às necessidades da filha bebê? Não desistiu da universidade quando ela nasceu? Não havia se esforçado arduamente para sustentar o casamento? De vez em quando Rose gostava de imaginar seu melhor eu ainda indo para a universidade, ainda virgem e, claro, ainda esbelto. Arranjara recentemente um emprego no restaurante self-service da universidade, o que podia ajudar o primeiro sonho a se concretizar mas não os outros dois. Quando entrou na ala seguinte, seu rosto se contorceu. Comida Internacional. Rose lançou um olhar nervoso aos vidros de berinjelas e às latas de folhas de uva em conserva. Chega de patlijan! Chega de .sarmas! Chega de comida étnica esquisita! Até a visão daquele medonho khavourma dava um embrulho em seu estômago. Dali em diante, faria qualquer comida que quisesse. Verdadeiros pratos do Kentucky para a filha! Por um longo minuto Rose ficou ali, vasculhando o cérebro para encontrar um exemplo de refeição perfeita. Seu rosto animou-se diante da idéia de hambúrgueres. Definitivamente, assegurou a si mesma. E mais: ovos fritos e panquecas embebidas em calda, cachorros-quentes com cebolas e churrasco de carneiro; sim, especialmente churrasco de carneiro... E em vez daquela pastosa bebida de iogurte que estava enjoada de ver a cada refeição, tomariam cidra de maçã! Daquele momento em diante, Rose escolheria seu cardápio diário da cozinha sulista, chili bem apimentado ou bacon defumado... ou... grãos-de-bico. Ela serviria esses pratos sem queixas. Só precisava de um homem que se sentasse à sua frente no final do dia. Um homem que realmente a amasse, e a sua culinária. Definitivamente era o que Rose precisava: um amante sem nenhuma bagagem étnica, sem nenhum nome difícil de pronunciar e sem uma família enorme; um amor novo em folha que gostasse de grãos-de-bico. Houve uma época em que Rose e Barsam se amavam. Uma época em que ele nem notava a comida que ela punha na mesa e certamente nem se importava, pois seu olhar estaria em outra parte, fixo no dela, imerso em amor. Rose suspirou ante a lembrança daqueles momentos lascivos, mas instantaneamente lembrou-se da fase seguinte. Ah, Deus, num piscar de olhos aquela horrenda família do marido entrara em cena, dominara-o para sempre e, desde então, a afeição que sentiam um pelo outro fora se dissipando. Se aquela gangue Tchakhmakhchian não tivesse enfiado os narizes aquilinos em seu casamento, pensou Rose, o marido ainda estaria a seu lado. "Por que vocês se intrometem o tempo todo na nossa vida?",

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perguntara a Shushan, que agora imaginava sentada em sua poltrona, contando os pontos do tricô, fazendo mais um cobertor de bebê para a neta. Mas a sogra não respondera. Frustrada, Rose repetira a pergunta. Na verdade, aquele era o segundo efeito colateral mais comum do ressentimento crônico pós-marital: fazia não só a pessoa falar consigo mesma como a tornava inflexível com os outros. Mesmo se estivesse perigosamente a ponto de desmoronar, nunca cedia. "Por que vocês nunca nos deixaram em paz?", Rose fez a mesma pergunta a cada uma das três irmãs do marido - tia Surpun, tia Zarouhi e tia Varsenig - enquanto olhava ferozmente para os vidros de babaganush nas prateleiras. Rose deixou a seção de comida étnica fazendo brusca e rapidamente uma curva em U para o corredor seguinte. Insuflada pela raiva e pela melancolia, deslocou-se pela ala de Comida Enlatada e Grãos Secos de uma ponta à outra, quase esbarrando num rapaz que fitava a prateleira onde se alinhavam diversas marcas de grãos-de-bico. "Aquele homem não estava ali um segundo atrás!", pensou Rose. Parecia ter se materializado como se tivesse caído do céu. Tinha pele clara, corpo esbelto e bem proporcional, olhos castanho-claros e um nariz pontudo, que lhe dava um ar atento e consciencioso. O cabelo era negro e curto. Embora achando que já o tinha visto antes, Rose não conseguia lembrar onde nem quando. - São gostosos, não são? - perguntou Rose. - Infelizmente nem todos têm a sensibilidade para apreciá-los... Arrancado de sua meditação num sobressalto, o rapaz virou-se para a mulher carnuda e rosada que surgira como um cogumelo ao seu lado e enrubesceu, ainda agarrando uma lata de grãos-de-bico em cada mão. Pego de surpresa, não conseguiu recuperar com facilidade sua defesa masculina. - Desculpe... - disse ele, inclinando a cabeça para a direita, um tique nervoso que Rose interpretou como sinal de timidez. Ela sorriu para mostrar que o perdoava e fitou-lhe o rosto sem pestanejar, deixando-o ainda mais nervoso. Além do ar de "coelhinha simpática" que assumia agora, Rose tinha mais outras três expressões animais inspiradas na Mãe Natureza que usava alternadamente quando lidava com o sexo oposto: a expressão "lealdade canina", escolhida quando queria transmitir total dedicação; a expressão "felina endiabrada", que usava quando queria seduzir; e a expressão "coiote briguento", que usava sempre que a criticavam. - Ah, eu conheço você! - De repente Rose abriu um sorriso radiante de orelha a orelha, satisfeita com sua memória. - Estava vasculhando meu cérebro, imaginando onde eu o

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havia visto. Agora já sei! Você estuda na Universidade do Arizona, não é? Aposto que gosta de quesadilias de frango! O rapaz olhou para o final do corredor, como se pensasse em fugir a qualquer momento mas não conseguisse decidir em que direção. - Trabalho em meio expediente no Cactus Grili - Rose se esforçava para ajudá-lo a compreender -, o grande restaurante no segundo andar no diretório acadêmico, lembra? Geralmente fico atrás do balcão onde servem comidas quentes... Sabe, omeletes e quesadilias. É um emprego de meio expediente, claro; não pagam muito, mas fazer o quê? É só por enquanto. O que quero mesmo é ser professora de escola primária. O rapaz agora a estudava interrogativamente, como se quisesse memorizar cada detalhe para referência futura. - De qualquer modo, deve ter sido lá que vi você - concluiu Rose. Apertou os olhos e umedeceu o lábio superior, mudando para a expressão felina. - Larguei a universidade quando tive um bebê no ano passado, mas estou tentando voltar... - É mesmo? - perguntou ele, mas calou-se imediatamente. Se Rose tivesse alguma experiência anterior com estrangeiros, teria dectectado o reflexo de apresentação do estrangeiro: o medo de começar uma conversa e nunca dizer as palavras certas no momento certo ou com a pronúncia certa. Contudo, desde adolescente Rose tinha a tendência de pressupor que tudo à sua volta era ou a seu favor ou contra ela. Assim, interpretou o silêncio dele como sinal de sua própria incapacidade de se apresentar corretamente. Para compensar o erro, estendeu a mão. - Ah, desculpe. Esqueci de me apresentar. Eu me chamo Rose. - Mustafá... O rapaz engoliu em seco, seu pomo-de-adão subindo e descendo. - De onde você é? - Istambul - respondeu ele, concisamente. Rose ergueu as sobrancelhas e um vestígio de pânico atravessou-lhe o rosto. Se Mustafá tivesse alguma experiência anterior com provincianos, poderia ter detectado o reflexo de desinformação do provinciano: o medo de não conhecer suficientemente geografia ou história do mundo. Rose tentou lembrar onde raios ficava Istambul. Seria a capital do Egito ou quem sabe algum lugar na Índia...? Franziu as sobrancelhas, confusa. Desde adolescente, porém, Mustafá abrigara o temor de perder o controle da situação e seu poder de atração sobre as mulheres. Então interpretou o gesto como se tivesse entediado Rose por não dizer algo interessante, e para neutralizar isso apressou-se em cortar a conversa. - Prazer em conhecê-la, Rose - disse, arrastando as vogais com um sotaque suave, mas óbvio. - Agora tenho que ir... Rapidamente, colocou de volta as latas de grãos-de-bico na prateleira, olhou o relógio, agarrou sua cesta e foi

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embora. Antes de Mustafá desaparecer, Rose o ouviu murmurar "tchau"; então, como um eco de si mesmo, outro "tchau". Então ele sumiu. Tendo perdido o misterioso companheiro, Rose percebeu de repente quanto tempo desperdiçara no supermercado. Pegou algumas latas de grãos-de-bico, inclusive as que Mustafá deixara para trás, e dirigiu-se rapidamente ao caixa. Passando pela ala de jornais e livros, avistou algo de que precisava tremendamente: O grande atlas do mundo. Sob o título estava escrito: "Um atlas mundial de bandeiras, fatos e mapas / Ajudando pais, alunos, professores e viajantes do mundo inteiro." Ela pegou o livro, procurou por "Istambul" no índice e, tendo encontrado a página que procurava, olhou no mapa para ver onde era.Fora do estacionamento, Rose encontrou o Jeep Cherokee azul ultramarino 1984 esquentando sob o sol do Arizona, enquanto sua menininha dormia lá dentro.- Armanoush querida, acorde. Mamãe voltou!A criança se mexeu, mas não abriu os olhos nem quando Rose cobriu-lhe o rosto de beijos. Seu cabelo castanho estava amarrado com uma fita dourada quase tão grande quanto sua cabeça, e ela vestia uma roupa verde felpuda, enfeitada com listras cor de salmão e botões roxos. Parecia uma árvore de Natal em miníatura decorada por alguém em estado de frenesi.- Está com fome? Mamãe vai fazer uma legítima comida americana hoje à noite! - exclamou Rose ao colocar as sacolas de plástico no banco de trás e reservar um pacote de marshmallows de coco para a viagem.Examinou o cabelo no retrovisor, colocou uma fita cassete que era a sua preferida naqueles dias e agarrou um punhado de marshmallows antes de ligar o carro.Sabia que o rapaz que eu acabei de conhecer no supermercado é da Turquia?! - perguntou Rose, piscando para a filha pelo retrovisor. Tudo em sua filhinha parecia perfeito: o nariz de botão, as mãos gordinhas, os pés, tudo exceto o nome. A família de seu marido quisera que a filha recebesse o mesmo nome da bisavó. Como Rose lamentava não ter posto nela um nome menos estrangeiro, como Annie ou Katie ou Cyndie, em vez de aceitar o que fora escolhido pela sogra! Uma criança deveria ter um nome infantil, e "Armanoush" era tudo menos isso. O nome parecia tão... tão maduro e frio, talvez apropriado para uma adulta. Teria de esperar o bebê chegar aos quarenta anos para usar seu nome sem que lhe formigasse a língua? Então ali mesmo teve uma revelação: chamaria a filha de "Amy" dali em diante, e como parte da cerimônía de batismo, mandou-lhe um

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beijo.No cruzamento seguinte, esperaram que o sinal abrisse. Rose batucava no volante, acompanhando Gloria Estefan."No modern love for me, it's ali a hustieWhat's done is done, now it's my turn to have fun..."MUSTAFÁ PÔS ALGUNS ITENS que escolhera na frente do caixa. Azeitonas Kalamata, espinafre congelado, pizza de queijo feta; uma lata de sopa de cogumelos, uma de creme de galinha e uma de galinha e macarrão. Até vir para os Estados Unidos, jamais havia cozinhado na vida. Todas as vezes que se esforçava na pequena cozinha do apartamento de estudante de dois quartos, sentia-se como um rei destronado no exílio. Há muito tinham ficado para trás os dias em que era servido e alimentado por sua avó, mãe e quatro irmãs dedicadas. Agora, lavar a louça, limpar o quarto, passar roupa e principalmente fazer compras eram um enorme fardo para ele. Não seria tão difícil se pudesse livrar-se da sensação de que alguém deveria fazer isso em seu lugar. Estava tão pouco acostumado a executar tarefas domésticas quanto a ficar sozinho. Dividia a casa com um colega, um estudante da Indonésia que falava muito pouco, trabalhava duro e, para dormir, escutava todas as noites velhas fitas como Canções dos riachos da montanha ou Canções das baleias. Mustafá tinha a esperança de que dividir a casa com alguém o tornaria menos só no Arizona, mas o resultado fora o oposto. À noite, sozinho em sua cama e a milhares de quilômetros da família, não conseguia deter as vozes em sua mente, vozes que o interrogavam e censuravam. Dormia mal. Passava muitas noites assistindo a velhas comédias ou navegando na internet, o que o ajudava. Em tais momentos, aqueles pensamentos cessavam. Voltavam, no entanto, com a luz do dia. Caminhando de casa para o cam pus, entre as aulas ou na hora do almoço, Mustafá se via pensando em Istambul. Como desejava poder apagar essa lembrança e reiniciar o programa, até que todos os arquivos fossem deletados! O Arizona devia poupar Mustafá do mau agouro que se abatia sobre todos os homens da família Kazanci. Mas ele não acreditava em tais coisas. Distanciar-se de todas aquelas superstições, contas contra o mau-olhado, leituras de borra de café e cerimônias predizendo o futuro em sua família era mais um reflexo involuntário do que uma escolha consciente. Achava tudo aquilo parte de um mundo obscuro e complicado característico das mulheres. De qualquer modo, as mulheres eram um mistério. Tendo crescido em meio a tantas, era esquisito que se sentisse tão distanciado

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delas por toda a sua vida. Mustafá cresceu como o único menino numa família onde os homens morriam cedo demais ou inesperadamente. Sentia desejos sexuais crescentes enquanto era rodeado por irmãs que eram um tabu em um universo de fantasia. Apesar disso, deslizava para pensamentos inomináveis sobre mulheres. No início, Mustafá se encantava por moças que o rejeitavam. Aterrorizado com a idéia de ser rejeitado, ridicularizado e insultado, passou a ansiar pelo corpo feminino à distância. Naquele ano, olhara com raiva para as fotos de top modeis em luxuosas revistas americanas, como se quisesse absorver o doloroso fato de que nenhuma mulher perfeita assim o desejaria algum dia. Jamais esqueceria o olhar feroz de Zeliha ao chamá-lo de "falo precioso". O embaraço daquele momento ainda ardia nele até hoje. Sabia que Zeliha podia ler, por trás da sua masculinidade forçada, a verdadeira história de sua criação. Ela reconhecia que Mustafá fora paparicado e mimado por uma mãe oprimida, intimidado e agredido por um pai opressor. "No final você se tornou narcisista e inseguro ao mesmo tempo", dissera. As coisas poderiam ter sido diferentes entre Zeliha e ele? Por que se sentia tão rejeitado e não-amado com tantas irmãs à sua volta e uma mãe apaixonada ao seu lado? Zeliha sempre zombava dele e sua mãe sempre o admirava. Mustafá queria ser apenas um homem comum, bom e falível ao mesmo tempo. Só precisava de compaixão e uma chance para ser uma pessoa melhor. Se ao menos tivesse uma mulher que o amasse, tudo seria diferente. Mustafá sabia que tinha de vencer nos Estados Unidos, não porque quisesse um futuro melhor, e sim porque precisava se livrar do passado.- Como vai? - A moça do caixa sorriu para ele. Era algo com que Mustafá ainda não se acostumara. Nos Estados Unidos, todos perguntavam como você ia, mesmo desconhecidos. Ele entendia que a frase era mais uma saudação do que uma pergunta de fato. Ainda assim não sabia como responder com a mesma facilidade dos americanos. - Estou bem, obrigado - disse. - E você, como vai? A moça sorriu. - De onde você é? "Um dia", pensou Mustafá, "vou falar essa língua de tal modo que ninguém mais me fará essa pergunta rude, pois não vão acreditar nem por um minuto que sou estrangeiro". Pegou sua sacola de plástico e saiu. UM CASAL MEXICANO-AMERICANO ATRAVESSOU A RUA, ela empurrando um bebê num carrinho, ele segurando a mão de uma criança que ainda mal andava. Caminhavam sem pressa enquanto Rose os observava, invejando-os. Agora que seu casamento terminara, cada casal que via parecia estar num abençoado contentamento. - Sabe de uma coisa? Gostaria que a bruxa de sua avó me visse flertando

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com aquele turco. Pode imaginar como ela ficaria horrorizada? Não consigo pensar num pesadelo maior para a orgulhosa família Tchakhmakhchian! Orgulhosa e cheia de si... orgulhosa e... Rose não terminou a frase porque foi distraída por um pensamento mais travesso, O sinal ficou verde, os carros enfileirados diante dela arrancaram e a van de trás buzinou. Rose, porém, continuou imóvel. A fantasia era tão deliciosa que ela não conseguia se mexer. Sua mente perdia-se prazerosamente em muitas imagens, enquanto seus olhos emitiam um raio de puro ódio num ângulo oblíquo. Aquele, de fato, era o terceiro efeito colateral mais comum do ressentimento crônico pós-marital: não somente fazia a pessoa falar sozinha e ser inflexível com os outros como a tornava muito irracional. Uma vez que a mulher sentia um ressentimento justificável, o mundo virava de cabeça para baixo e o irracional parecia totalmente racional. Ah, doce vingança... Recuperar-se era um plano a longo prazo, um investimento que daria retorno com o tempo. Mas a retaliação podia ser feita rapidamente. O primeiro instinto de Rose era fazer algo, qualquer coisa para exasperar sua ex-sogra. E na superfície da Terra, só existia uma coisa que pudesse aborrecer mais as mulheres da família Tchakhmakhchian do que um odar: um turco! "Como seria interessante flertar com o arquiinimigo do ex-marido! Mas onde achar um turco no meio do deserto do Arizona? Eles não cresciam em cactos, cresciam?" Rose deu uma risadinha, enquanto sua expressão mudava do reconhecimento para a profunda gratidão. Que adorável coincidência o destino ter acabado de apresentá-la a um turco! Ou não fora coincidência? Cantando junto com a música, Rose continuou dirigindo. Entretanto, em vez de continuar seu caminho, guinou para a esquerda, deu meia-volta e, já na outra pista, disparou na direção oposta. "Primitive love, 1 want what it used to be..." Num piscar de olhos, o Jeep Cherokee azul ultramarino 1984 alcançara o estacionamento do supermercado Fry's. "1 don't have to think, right now you've got me at the brink This is good-bye for ali the times 1 cried..." O carro fez um semicírculo e depois uma manobra transversa, alcançando a saída principal do supermercado. Quando Rose estava prestes a perder a esperança de encontrar o rapaz, ela o avistou esperando pacientemente no ponto de ônibus com uma sacola de plástico ao seu lado. - Ei, Mustafa! - gritou Rose, enfiando a cabeça pela janela aberta. - Quer uma carona?- Claro, obrigado. - Mustafá fez um sinal afirmativo com a cabeça numa

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frágil tentativa de corrigir a pronúncia dela: - É Musta-fá... No carro, Rose sorriu. - Mustafá, essa é a minha filha Armanoush... Mas eu a chamo de Amy! Amy, Mustafá; Mustafá, Arny... Enquanto o rapaz dava um sorriso radiante para a criança sonolenta, Rose estudou o rosto dele procurando sinais de reconhecimento, mas não encontrou nenhum. Então resolveu lhe dar outra dica, desta vez algo mais revelador: - O nome inteiro dela é Amy Tchakh-makh-chi-an. Se as palavras tinham causado algum reconhecimento negativo, Mustafá não demonstrou. Então Rose sentiu necessidade de repetir, caso ele não houvesse entendido da primeira vez. - Armanoush Tchakh-makh-chi-an! Chak-mak-chi-an... Çak-mak-çi...! Ei, parece turco! - exclamou ele, contente. - Bem, na verdade é armênio - disse Rose. De repente sentiu-se insegura. - O pai dela... Quero dizer, meu ex-marido... - Engoliu com dificuldade, como tentando se livrar de um gosto azedo. - Ele era armênio; quer dizer, é armênio. - Ah, é? - disse Mustafá com displicência. "Será que ele não percebeu?", cogitou Rose para si mesma enquanto mordia o interior da bochecha. Então, como se deixasse escapar um soluço há muito reprimido, soltou uma risada. "Mas ele é bonitinho... muito bonitinho... Ele será minha doce vingança!", pensou. - Olha, não sei se você gosta de arte mexicana, mas há um grupo que vai inaugurar uma exposição amanhã à noite - disse Rose. - Se não tiver outra coisa para fazer, podíamos ir e comer qualquer coisa depois. - Arte mexicana...? - Mustafá fez uma pausa. - Pessoas que viram a exposição em outro lugar disseram que é muito boa - acrescentou Rose. - Então, o que acha? Gostaria de ir comigo?- Arte mexicana...! - repetiu Mustafá com confiança. - Claro, por que não?- Fantástico. - Rose se animou. - Foi tão bom conhecer você, Mustafa - disse, novamente pronunciando errado o nome dele. Mas desta vez Mustafá achou que não precisava corrigi-la.

***3AÇÚCAR

- É VERDADE? DIGAM QUE NÃO É VERDADE! exclamou tio Dikran Starnboulian, escancarando a porta e entrando correndo na sala, procurando o sobrinho, as sobrinhas ou qualquer outro que pudesse consolá-lo. Seus olhos escuros estavam ligeiramente arregalados com a agitação. Tinha um bigode

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cheio e caído, levemente virado para cima nas pontas, dando a impressão de que sorria mesmo quando estava furioso. - Tio, sente e se acalme, por favor - murmurou tia Surpun, a mais jovem das irmãs Tchakhmakhchian, sem olhá-lo diretamente. Sendo a única da família que apoiara sem reservas o casamento de Barsam com Rose, agora sentia-se culpada. Não estava acostumada a essa autocensura. Professora de ciências humanas na Universidade da Califórnia, em Berkeley, Surpun Tchakhmakhchian era uma erudita feminista autoconfiante que acreditava que todos os problemas deste mundo eram negociáveis com um diálogo calmo e com a razão. Em certos momentos, essa convicção particular a fizera sentir-se muito só numa família temperamental como a sua. Dikran Stamboulian obedeceu e arrastou os pés para uma cadeira vazia, mordiscando as pontas do bigode. A família inteira estava reunida em volta de uma antiga mesa de mogno repleta de comida, embora ninguém parecesse estar comendo coisa alguma. As gêmeas de tia Varsenig dormiam pacificamente no sofá. O primo distante Kevork Karaoglanian também estava ali, vindo de Minneapolis para um evento social organizado pela Comunidade da Juventude Armênia na Bay Area. Nos últimos três meses, Kevork assistira religiosamente a todos os eventos organizados pelo grupo - Concerto Beneficente, Piquenique Anual, Festa de Natal, Festa da Luz da Noite de Sexta-Feira, Gala Anual de Inverno, Brunch de Domingo e uma corrida de balsas em benefício do ecoturismo em Yerevan. Tio Dikran suspeitava que o motivo de seu belo sobrinho ir a San Francisco com tanta freqüência não era apenas o compromisso com aqueles eventos, e sim porque tinha uma afeição ainda não revelada por uma moça que conhecera no grupo. Dikran Stamboulian contemplou com anseio a comida posta na mesa e estendeu a mão para apanhar uma jarra de bebida de iogurte, americanizada com cubos de gelo. Em tigelas de cerâmica de vários tons e tamanhos estavam muitos de seus pratos favoritos: fassoulye pilaki, kadzn budu ki te, karniyarzk, churek recém-preparado e, para a alegria do tio Dikran, bastirma. Embora ainda fumegasse de raiva, seu coração amoleceu à visão do bastirma e derreteu totalmente ao ver junto deste seu prato favorito: burma. Apesar da severa vigilância dietética da mulher sobre ele, a cada ano tio Dikran acrescentava outra camada de gordura à sua infame barriga, como um tronco de árvore ganhando mais um anel de espessura a cada ano que passava. Agora era um homem atarracado e corpulento, que não se incomodava de atrair a atenção para uma coisa ou outra. Há dois anos lhe haviam oferecido um papel num comercial de macarrão.

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Ele encarnara um alegre cozinheiro cujo ânimo não se abatia nem quando era abandonado pela noiva, desde que ainda tivesse sua cozinha e pudesse fazer espaguete. Na verdade, exatamente como no anúncio, tio Dikran era um homem tão bem-humorado que, quando um de seus muitos conhecidos queria demonstrar o clichê de que gente gorda era mais alegre do que o resto, citava o seu nome. Mas, naquele dia, tio Dikran não se mostrava em seu estado habitual. - Onde está Barsam? - perguntou, estendendo a mão para um ksfte da pilha. - Ele sabe o que a mulher anda fazendo? - Ex-mulher! - corrigiu tia Zarouhi. Como professora primária nova no emprego, engalfinhando-se com crianças rebeldes o dia inteiro, não conseguia deixar de corrigir qualquer erro que ouvia. - É, ex! Só que ela não sabe! Aquela mulher é doida, podem ter certeza. Está fazendo isso de propósito. Se Rose não está fazendo isso só para nos aborrecer, eu não me chamo Dikran. Achem outro nome para mim! - Não precisa de outro nome. - Tia Varsenig consolou o tio. - Sem dúvida ela está fazendo isso de propósito... - Temos que resgatar Armanoush - interrompeu avó Shushan, a matriarca da família. Ela saiu da mesa e arrastou-se para sua poltrona. Embora fosse uma cozinheira maravilhosa, nunca tivera grande apetite e ultimamente descobrira um modo de ficar viva tomando apenas uma xícara de chá por dia, o que assustava as filhas. Era uma mulher baixa e ossuda, com uma força excepcional para lidar com situações até mais terríveis do que aquela, e cujo rosto delicado irradiava uma aura de competência. Sua recusa em admitir a derrota, sua imperturbável convicção de que a vida era sempre uma luta mas que para os armênios era três vezes mais árdua, sua capacidade de convencer a todos com quem tinha contato perturbavam muitos membros da família ao longo dos anos.Nada é tão importante quanto o bem-estar da criança - murmurou avó Shushan, acariciando a medalha de santo Antônio que sempre usava. O santo padroeiro das causas perdidas a ajudara inúmeras vezes no passado a lidar com as perdas de sua vida. Com aquelas palavras, avó Shushan pegou as agulhas de tricô e sentou-se. As primeiras meadas de um cobertor azul bebê pendiam das agulhas com as iniciais A.K. tricotadas na barra. Houve silêncio por um momento, enquanto todos na sala observavam suas mãos movendo-se graciosamente com as agulhas. Seu tricô afetava a família como uma terapia de grupo. A cadência precisa e uniforme de cada ponto acalmava a todos que a observavam, fazendo-os sentir que, enquanto avó Shushan continuasse tricotando, não haveria nada a temer e no final tudo daria certo. - Tem razão. Pobre Armanoush -

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disse tio Dikran, que como regra apoiava Shushan em todas as discussões da família, sabendo muito bem que não devia discordar com a onipotente matriarca. Ele abaixou a voz ao perguntar:- O que vai ser daquele cordeirinho inocente? Antes de alguém responder, ouviu-se o tilintar de um objeto metálico na entrada e a porta foi aberta com uma chave. Barsam entrou com o rosto pálido, os olhos preocupados por trás dos óculos de aros de metal. - Ah! Olhem só quem chegou! - disse tio Dikran. - Barsam, sua filha vai ser criada por um turco e você não faz nada a respeito... Amot!- O que é que eu posso fazer? - lamentou-se Barsam, virando-se para o tio. Seus olhos se moveram para a parede, onde havia uma enorme reprodução de Natureza-morta com máscaras, de Martiros Saryan, como se a resposta se escondesse em algum lugar da pintura. Mas não deve ter encontrado alívio porque, quando falou de novo, sua voz parecia tão inconsolável quanto antes. - Não tenho nenhum direito de interferir. Rose é a mãe dela. - Aman! Uma mãe e tanto! - Dikran Stamboulian riu. Para um homem daquele tamanho, seu riso era estranhamente esganiçado, detalhe do qual ele tinha consciência e que era capaz de controlar, exceto quando sob estresse. - O que o inocente cordeirinho vai dizer a suas amigas quando crescer? "Meu pai é Barsam Tchakhmakhchian, meu tio-avô é Dikran Stamboulian, o pai dele é Vervant Stamboulian, meu nome é Armanoush Tchakhmakhchian, toda a minha árvore genealógica é composta com a terminação ian, eu sou neta de sobreviventes que perderam todos os parentes nas mãos dos açougueiros turcos em 1915, mas eu mesma sofri uma lavagem cerebral para negar esse genocídio porque fui criada por um turco chamado Mustafá!" Que brincadeira é essa!... Ah, marnim khalasim! Dikran Stamboulian fez uma pausa e observou atentamente o sobrinho para ver o efeito de suas palavras. Barsam ficou impassível. - Vá, Barsam! - exclamou tio Dikran mais alto desta vez. - Tome um avião para Tucson esta noite e acabe com essa comédia antes que seja tarde demais. Fale com sua mulher. Haydeh! - Ex-mulher! - corrigiu tia Zarouhi, servindo-se de um pedaço de burma. - Ah, eu não devia estar comendo isso! Tem tanto açúcar. Tantas calorias. Por que não experimenta adoçantes artificiais, mamãe? - Porque nada artificial entra na minha cozinha - respondeu Shushan Tchakhmakhchian. - Coma à vontade até ter diabetes na velhice. Tudo tem sua época. - Certo, acho que ainda estou na minha época do açúcar. - Tia Zarouhi piscou para ela, mas só ousou comer metade de um burma. Ainda mastigando, virou-se

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para o irmão: - O que Rose está fazendo no Arizona, afinal de contas? - Arranjou um emprego lá - disse Barsam, ironicamente. - É, e que emprego! - Tia Varsenig deu um tapinha no alto do nariz. - O que ela pensa que está fazendo, recheando enchiladas como se não tivesse um tostão? Ela faz isso de propósito, você sabe! Quer que todo mundo ponha a culpa em nós, pensando que não estamos dando nenhum sustento à criança. Uma corajosa mãe solteira lutando contra todas as dificuldades! É esse o papel que está querendo interpretar! 63 - Armanoush vai ficar bem - murmurou Barsam, tentando não parecer desesperançoso. - Rose ficou no Arizona porque quer voltar para a universidade. Trabalhar no diretório acadêmico é uma coisa temporária. O que ela realmente quer é ser professora primária, lidar com crianças. Não há nada de mal nisso. Enquanto ela estiver bem e cuidar de Armanoush, que diferença faz quem ela está namorando? - Você está certo, mas está errado também - disse tia Surpun enquanto colocava as pernas sob a cadeira e se acomodava de novo, endurecendo o olhar de repente com um traço de cinismo. - Num mundo ideal você poderia dizer: "Bem, a vida é dela, não é da nossa conta." Se você não tiver nenhuma percepção da História e da ancestralidade, nenhuma memória e responsabilidade, se viver apenas no presente, certamente pode afirmar isso. Mas o passado vive no presente, nossos ancestrais respiram através de nossos filhos, e você sabe disso... Já que Rose tem uma filha que é sua também, você tem todo o direito de intervir na vida dela. Principalmente quando ela está namorando um turco! Tia Varsenig, nunca à vontade com discursos filosóficos e preferindo uma fala direta a qualquer jargão intelectual, interveio: - Barsam querido, me mostre um turco que fale armênio, por favor!Em vez de responder, Barsam lançou à irmã mais velha um olhar de esguelha. Tia Varsenig continuou: - Diga quantos turcos já aprenderam armênio. Nenhum! Por que nossas mães aprenderam a língua deles e não vice-versa? Não está claro quem dominava quem? Apenas um punhado de turcos veio da Ásia Central, certo? Logo depois se espalharam por toda parte! O que aconteceu aos milhões de armênios que já estavam aqui? Assimilados! Massacrados! Orfanados! Deportados! E depois esquecidos! Como você pode entregar a filha de sua carne e de seu sangue aos responsáveis por sermos tão poucos hoje e termos sofrido tanto? Mesrop Mashtots se reviraria no túmulo!Sacudindo a cabeça, Barsam continuou em silêncio. Para diminuir o

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desalento do sobrinho, tio Dikran começou a contar uma história. - Um árabe vai a um barbeiro cortar o cabelo. Depois que acaba, ele tenta pagar, mas o barbeiro diz: "De forma alguma, não posso aceitar o seu dinheiro. É um serviço para a comunidade." O árabe fica agradavelmente surpreso e vai embora. Na manhã seguinte, quando o barbeiro abre a loja, encontra um cartão de agradecimento e uma cesta de tâmaras em sua porta. Uma das gêmeas dormindo no sofá mexeu-se inquieta, mas parou subitamente de chorar. - No dia seguinte, um turco vai ao mesmo barbeiro para cortar o cabelo. Depois do corte ele tenta pagar, mas o barbeiro diz novamente: "Não posso aceitar o seu dinheiro. É um serviço para a comunidade." Na manhã seguinte, quando o barbeiro abre a loja, encontra um cartão de agradecimento e uma caixa de lokum à sua porta. Acordada pelos movimentos da irmã, a outra gêmea começou a chorar. Tia Varsenig correu em sua direção e conseguiu silenciá-la apenas com o toque de seus dedos. - Então, no dia seguinte, um armênio entra na loja para cortar o cabelo. Depois que termina, ele tenta pagar, mas o barbeiro recusa: "Desculpe, não posso aceitar o seu dinheiro. É um serviço para a comunidade." Agradavelmente surpreso, o armênio vai embora. Na manhã seguinte, quando o barbeiro abre a loja... adivinhem o que encontra? - Um pacote de burma? - sugeriu Kevork. - Não! Encontrou uma dúzia de armênios querendo um corte grátis! - Está dizendo que somos um povo pão-duro? - perguntou Kevork. - Não, seu ignorante - disse tio Dikran. - Estou dizendo que nos importamos uns com os outros. Se vemos algo bom, imediatamente o compartilhamos com nossos amigos e parentes. Foi por causa desse espírito coletivo que o povo armênio conseguiu sobreviver.- Mas eles também dizem: "Quando dois armênios se juntam, criam três igrejas diferentes" - rebateu o primo Kevork, tomando uma posição firme. - Das' mader's mom'ri, noren koh chi m'nats - grunhiu Dikran Stamboulian, passando para o armênio como sempre fazia quando queria dar uma lição a um jovem e fracassava. Compreendendo o armênio doméstico mas não o armênio dos jornais, Kevork deu uma risadinha, talvez um pouco nervosa demais, tentando esconder que só entendera a primeira metade da frase. - Oglani kizdirmayasin. - Avó Shushan ergueu uma sobrancelha, falando em turco como sempre fazia quando queria passar uma mensagem a alguém mais velho na sala sem que os mais jovens entendessem. Tendo recebido a mensagem, tio Dikran deu um suspiro como um garoto recebendo uma reprimenda da mãe e voltou ao seu burma para se consolar. Houve um silêncio. Os três homens, as três gerações de mulheres, os numerosos

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tapetes decorando o chão, a prata antiga no guarda-louça, o samovar no aparador, a fita no videocassete (A cor da romã), assim como as múltiplas pinturas e o ícone da oração de santa Ana e o cartaz do monte Arará encoberto por neve branca e pura - tudo e todos silenciaram por um breve momento, enquanto a sala adquiria uma rara luminosidade sob a luz sonolenta de um lampião de rua que acabara de acender. Os fantasmas do passado estavam com eles. Um carro encostou e estacionou em frente à casa, seus faróis dourando o interior da sala, iluminando as letras da parede em uma moldura luxuosa: "EM VERDADE VOS DIGO QUE TUDO O QUE LIGARDES NA TERRA SERÁ LIGADO NO CÉU, E TUDO O QUE DESLIGARDES NA TERRA SERÁ DESLIGADO NO cÉu", SÃO MATEUS 18:18. Outro bonde passou tocando seus sinos, transportando crianças barulhentas e turistas de Russian Hili para o Parque Aquático, o Museu Marítimo e o Fisherman's Wharf. Os sons da hora do rush em San Francisco tiraram a família de seus devaneios. - No fundo, Rose não é uma má pessoa - arriscou Barsam. - Não foi fácil para ela se acostumar aos nossos hábitos. Era uma menina tímida do Kentucky quando nos conhecemos. 66 - Dizem que o inferno está cheio de boas intenções - rebateu tio Dikran. Mas Barsam o ignorou e continuou: - Podem imaginar isso? Nem vendem álcool lá! É proibido! Sabiam que o acontecimento mais excitante em Elizabethtown, no Kentucky, é o festival anual em que as pessoas se vestem como os Pais Fundadores dos Estados Unidos? - Barsam levantou as mãos para sublinhar o que dizia ou para chamar a atenção de Deus numa prece desesperada. - E depois andam até o centro da cidade para encontrar o general George Armstrong Custer!- É por isso que você não devia ter se casado com ela, em primeiro lugar - rebateu tio Dikran calmamente. Sua raiva já se dissipara, substituída pela certeza de que era impossível ficar aborrecido com o sobrinho favorito por muito tempo. - O que estou dizendo é que Rose não tinha nenhuma experiência com outras culturas - observou Barsam. - Filha única de um bondoso casal do Sul que administra a mesma loja de ferragens há séculos, levando uma vida de cidade pequena, de repente se vê no meio dessa enorme e unida família católica armênia em diáspora! Uma família gigante com um passado tão traumático! Como podiam esperar que fosse fácil para ela enfrentar isso? - Bem, não foi fácil para nós também - objetou tia Varsenig, apontando os dentes de seu garfo para o irmão antes de fisgar outro kofte. Ao contrário da mãe, tinha um ótimo apetite, e considerando-se a quantidade de comida que ingeria

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diariamente mais o fato de ter tido gêmeas recentemente, era quase um milagre que continuasse tão magra. - Quando lembro que o único prato que ela sabia fazer era aquele medonho churrasco de carneiro com pãezinhos! Todas as vezes que íamos à sua casa, ela punha aquele avental sujo e fazia carneiro. Todos riram, menos Barsam. - Ah, mas tenho que ser justa - continuou tia Varsenig, contente com a reação da platéia. - Ela mudava o molho de vez em quando. Às vezes tínhamos churrasco de carneiro com molho texano-mexicano picante, e outras vezes churrasco de carneiro com molho ranch... A culinária da sua mulher-era muito variada! - Ex-mulher! - corrigiu de novo tia Zarouhi. - Mas vocês também a fizeram sofrer - disse Barsam, sem encarar ninguém em particular. - Vejam só, a primeira palavra que ela aprendeu em armênio foi odar. - Mas ela é uma odar. - Tio Dikran projetou-se para frente, dando uma palmada nas costas do sobrinho. - Se é uma odar, qual é o problema em chamá-la disso? Mais trêmulo pela palmada do que pela pergunta, Barsam ousou acrescentar: - Alguns da família chegaram a chamá-la de "Espinho". - E daí? - Entre os dois pedaços finais de churek, tia Varsenig levou a coisa para o lado pessoal. - O nome daquela mulher devia ser Espinho, não Rose. Rose não é adequado para ela. Um nome tão doce para tanta amargura! Meu querido irmão, se os pobres pais tivessem a mais leve idéia de que a filha se transformaria numa mulher assim, pode ter certeza que a teriam batizado de Espinho! - Chega de brincadeira! Era Shushan Tchakhmakhchian. A exclamação não soou como censura nem como advertência, mas de algum modo provocou os dois efeitos nas pessoas da sala. Agora o crepúsculo transformou-se em noite, mudando a luz no interior do ambiente. A avó Shushan se levantou e acendeu o candelabro de cristal.- Temos que poupar Armanoush de qualquer mal, é só isso que importa - disse Shushan Tchakhmakhchian suavemente, as muitas rugas do rosto e as finas e arroxeadas veias das mãos ainda mais aparentes sob a deslumbrante luz branca. - Aquele cordeirinho inocente precisa tanto de nós quanto nós precisamos dela. Seu rosto mudou da determinação para a resignação enquanto balançava lentamente a cabeça. - Só um armênio pode entender o que significa ser drasticamente reduzido em número - acrescentou Shushan. - Nós diminuímos como uma árvore podada... Rose pode namorar e até casar com quem quiser, mas sua filha é armênia e deve ser educada como uma armênia. Então inclinou-se para frente e, com um sorriso, disse para a filha mais velha: - Me dê aquela metade do seu

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prato, sim? Com ou sem diabetes, como se pode recusar burma?***4AVELÃS TOSTADAS

ASYA KAZANCI NÃO SABIA O QUE HAVIA NOS ANIVERSÁRIOS para que certas pessoas gostassem tanto deles, mas pessoalmente os detestava. Sempre detestara. Talvez sua desaprovação tivesse a ver com o fato de ser obrigada a comer, em todos os seus aniversários, desde menina, exatamente o mesmo bolo - um bolo de maçã caramelada de três camadas (extremamente açucarado) com glacê de creme de limão batido (extremamente azedo). Não tinha idéia de como as tias esperavam agradá-la com esse bolo, já que só ouviam dela uma litania de protestos. Talvez simplesmente esquecessem. Talvez a cada ano apagassem todas as lembranças do aniversário anterior. Era possível. A família Kazanci tinha a tendência de jamais esquecer as histórias alheias, embora 70 fosse acometida por um branco quando se tratava de suas próprias histórias. Assim, em cada aniversário, Asya Kazanci comia o mesmo bolo e descobria, ao mesmo tempo, um fato novo sobre si mesma. Por exemplo, aos três anos de idade descobriu que poderia obter praticamente qualquer coisa que quisesse dando-se a acessos de raiva. Porém, três anos depois, em seu sexto aniversário, percebeu que era melhor parar com tais acessos, já que, embora suas exigências fossem cumpridas, cada episódio prolongava sua infância. Aos oito anos, tomou conhecimento de algo que até então fora apenas uma percepção, mas que não sabia com certeza: era uma bastarda. Olhando para trás, achava que o crédito dessa informação não lhe devia ser dado, pois se não fosse a avó Gülsüm levaria muito mais tempo para descobri-la. Um dia, as duas estavam sozinhas na sala; avó Gülsüm concentrada em molhar as plantas e Asya em observá-la enquanto pintava com lápis de cor um palhaço num livro infantil para colorir. - Por que você fala com as plantas? perguntou. - As plantas dão flor se falamos com elas. - É mesmo? - Asya ficou radiante. - É. Se você lhes disser que a terra é sua mãe e a água seu pai, elas brotam e se abrem. Sem perguntar mais, Asya voltou a colorir o livro. Fez a roupa do palhaço laranja e seus dentes verdes. Quando estava prestes a pintar os sapatos de escarlate brilhante, parou e começou a imitar a avó: - Queridinha, queridínha! A terra é a sua mãe, e a água, seu pai. Avó Gülsüm fingiu não notar. Atiçada por sua indiferença, Asya aumentou a

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dose das frases. Era a vez da avó Gülsüm molhar as violetas africanas, suas preferidas. Ela arrulhou para a flor: - Como vai, queridinha? Asya arrulhou ao seu lado, zombeteira: - Como vai, queridinha? Avó Gülsüm franziu as sobrancelhas e contraiu os lábios: - Está com um lindo roxo hoje! - disse.- Está com um lindo roxo hoje!Foi então que avó Gülsüm apertou a boca e murmurou: - Bastarda.Pronunciou a palavra com tanta calma que Asya não entendeu imediatamente que a avó se dirigia a ela e não à flor.Asya só soube o que significava a palavra um ano depois, perto de seu nono aniversário, quando foi chamada de bastarda por um garoto na escola. Então, aos dez anos, descobriu que diferentemente de todas as garotas da sala de aula, ela não tinha nenhuma figura masculina em casa.Seriam necessários mais três anos para compreender o efeito duradouro que aquilo poderia causar em sua personalidade. Nos aniversários dos 14, 15 e 16 anos, descobriu respectivamente três outras verdades sobre sua vida: que as outras famílias não eram como a dela e que algumas podiam ser normais; que em seus antecedentes familiares havia mulheres demais e segredos demais sobre homens que morriam cedo demais e de modo bizarro demais; e que, por mais que se esforçasse, nunca seria uma mulher bonita.Quando Asya Kazanci chegou aos 17 anos, compreendeu também que não pertencia mais a Istambul do que as placas de ESTRADA EM CONSTRUÇÃO ou ESTRADA EM REFORMA, colocadas temporariamente pela prefeitura, ou o nevoeiro que envolvia a cidade em noites sombrias e dispersava-se no raiar do dia, levando a lugar nenhum e acumulando-se em lugar nenhum.No ano seguinte, exatamente dois dias antes de seu 18° aniversário, Asya assaltou a caixa de remédios da casa e engoliu todos os comprimidos que encontrou. Abriu os olhos numa cama rodeada por todas as tias, Petite-Ma e avó Gülsüm, sendo forçada a tomar chás de ervas lamacentos e malcheirosos, como se já não fosse ruim o bastante ter sido obrigada a vomitar tudo que tinha no estômago. Asya começou seus 18 anos distinguindo um fato a mais a ser adicionado a suas descobertas anteriores: que neste mundo esquisito, o suicídio era um privilégio raro como rubis e, com uma família como a sua, ela certamente não seria uma das privilegiadas.É difícil saber se havia conexão entre essa dedução e o que se seguiu depois, mas sua obsessão pela música começou mais ou menos naquela

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época. Não era um amor abstrato e abrangente pela música em geral, nem um gosto por determinados gêneros musicais, e sim uma fixação por um único cantor: Johnny Cash. Sabia tudo sobre ele: os milhares de detalhes de sua trajetória de Arkansas para Memphis, seus companheiros de bebida, seus casamentos, seus altos e baixos, seus retratos, seus gestos e, claro, suas letras. Fazendo da letra de "Thirteen" seu lema de vida aos 18 anos, Asya decidira que também nascera da alma da infelicidade e que causaria problemas aonde quer que fosse. Naquele dia, em seu 19° aniversário, sentia-se mais madura, fazendo mais uma observação mental sobre outra realidade de sua vida: a de que agora chegara à mesma idade em que a mãe a trouxera ao mundo. Não soube muito bem o que fazer com essa descoberta. Mas sabia que dali por diante seria impossível que continuassem a tratá-la como criança. - Estou avisando a vocês! - resmungou. - Não quero bolo de aniversário este ano! Com os ombros aprumados, mãos na cintura, Asya esqueceu por um segundo que tal posição destacava seus seios grandes. Se tivesse reparado nisso, certamente teria voltado à sua posição corcunda, já que odiava seus seios fartos, que detectava como outro fardo genético vindo da mãe. Às vezes achava-se parecida com a enigmática criatura corânica Dabbet-ul Arz, o ogro destinado a surgir no Dia do Juízo Final, com cada um de seus órgãos tirados de um animal diferente encontrado na natureza. Da mesma forma que a híbrida criatura, tinha um corpo composto de partes desconexas herdadas das mulheres da família. Era alta, muito mais alta que a maioria das mulheres de Istambul, exatamente como sua mãe Zeliha, a quem também chamava de "tia"; seus dedos eram ossudos e de veias finas como os de tia Cevriye, o queixo irritantemente pontudo de tia Fende e as orelhas elefânticas de tia Banu. Tinha o nariz escandalosamente aquilino, que apenas outros dois possuíam na História do mundo - Sultão Mehmed, o Conquistador e tia Zeliha. O Sultão Mehmed conquistara Constantinopla - o que, quer queira, quer não, era um fato suficientemente significativo para desviar a atenção do formato de seu nariz. Quanto a tia Zeliha, tão imponente era sua personalidade e tão cativante seu corpo que ninguém lhe via o nariz - ou qualquer outra parte sua, na verdade - como fonte de imperfeição. Como não tinha nenhuma realização imperial em seu currículo e nenhuma capacidade natural de encantar as pessoas, Asya imaginava que diabos podia fazer com seu nariz. Entre o que herdara das parentas, havia

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também algumas qualidades. Uma delas era o seu cabelo - selvagem, encaracolado, negro -, teoricamente semelhante ao de todas as mulheres da família, mas na prática igual apenas ao de tia Zeliha. A disciplinada professora de ginásio tia Cevriye, por exemplo, mantinha os cabelos presos num coque apertado, enquanto tia Banu desqualificava-se para qualquer comparação, já que usava um véu na cabeça praticamente o tempo todo. Tia Fende mudava freneticamente a cor do cabelo e o penteado de acordo com seu estado de espírito. A avó Gülsürn tinha uma cabeça de algodão, cabelos da cor da neve que se recusava a pintar, afirmando não ser apropriado para uma velha. No entanto, Petite-Ma era uma ruiva devotada. Seu Alzheimer cada vez pior poderia fazer Petite-Ma esquecer um monte de coisas, inclusive o nome das filhas, mas até aquela data jamais esquecera de pintar o cabelo com hena. Finalmente, na lista de traços genéticos positivos, Asya Kazanci incluía seus olhos amendoados castanho-claros (de tia Banu), uma testa alta (de tia Cevriy e) e um temperamento que a inclinava a explodir rapidamente, mas que também, de um modo estranho, a mantinha viva (de tia Fend e). Contudo, detestava ver que, com o passar de cada ano, tornava-se cada vez mais parecida com elas exceto por uma coisa: a tendência que tinham à irracionalidade. As mulheres Kazanci eram categoricamente irracionais. Algum tempo atrás, para não agir do mesmo modo que elas, Asya prometera-se nunca se desviar do caminho de sua mente racional e analítica. Aos 19 anos, Asya era uma jovem tão profundamente estimulada pela necessidade de afirmar sua individualidade que se tornou capaz das rebeldias mais peculiares. Assim, se desta vez repetisse sua recusa ao bolo mais fervorosamente, haveria uma razão mais profunda por trás da sua fúria: 74 - Não quero mais esses bolos estúpidos! - Tarde demais, mocinha. Ele já está pronto - disse tia Banu, lançando um olhar para Asya por sobre um oito de pentáculos recém-revelado. Se as próximas três cartas não fossem excepcionalmente promissoras, o baralho de tarô sobre a mesa dirigia-se a um mau augúrio. - Mas finja que não sabe sobre ele ou sua pobre mãe vai ficar aborrecida. É para ser uma surpresa! - Como é que uma coisa tão previsível pode ser uma surpresa? - resmungou Asya. Mas já sabia muito bem que ser um membro da família Kazanci significava, entre outras coisas, professar a alquimia do absurdo, convertendo-o continuamente em uma espécie de lógica com a qual se poderia convencer a todos, e, com mais uma forcinha, até a si mesma. - Supostamente sou eu a encarregada de profecias e presságios nesta casa, não você. - Tia Banu deu uma

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piscadela. Era verdade, pelo menos até certo ponto. Depois de elaborar e tornar mais substancial seu talento para a clarividência ao longo dos anos, tia Banu começara a receber clientes em casa e ganhar dinheiro com aquilo. Era preciso apenas um segundo para um adivinho tornar-se lendário em Istambul. Se a sorte estiver do seu lado, basta ler com sucesso o futuro de alguém e logo você terá esse alguém como cliente principal. E com a ajuda do vento e das gaivotas, ela espalhará a notícia tão rapidamente pela cidade que, em uma semana, haverá uma fila de clientes à sua porta. Portanto, tia Banu abrira caminho escada acima na arte da clarividência, tornando-se mais famosa cada vez que a campainha da casa soava. Suas clientes vinham de toda a parte da cidade, virgens e viúvas, moças e avós desdentadas, pobres e ricas, cada qual mergulhada em suas próprias dificuldades e todas loucas para saber o que Fortuna, aquela caprichosa força feminina, lhes reservava. Chegavam com montes de perguntas e partiam com outras mais. Algumas pagavam grandes quantias para expressar sua gratidão ou esperando subornar Fortuna, mas outras não desembolsavam um tostão. Apesar de tão diferentes, as clientes tinham algo em comum: eram todas mulheres. No dia em que se batizou de adivinha, tia Banu jurou jamais receber clientes homens.Enquanto isso, várias coisas em tia Banu sofreram uma transformação radical, a começar por sua aparência. No início de sua carreira como clarividente, ela perambulava pela casa com xales escarlates extravagantemente bordados e jogados com displicência sobre os ombros.Em pouco tempo, entretanto, os xales foram substituídos por véus de caxemira, os véus por estolas pashmina, e as estolas por turbantes de seda amarrados frouxamente, sempre em tons vermelhos. Depois disso, tia Banu anunciou subitamente a decisão que secretamente vinha cogitando sabe Alá por quanto tempo: afastar-se de tudo que fosse material e mundano para dedicar-se totalmente ao serviço de Deus. Com esse fim, tia Banu solenemente declarou estar pronta para atravessar uma fase de penitência e abandono de todas as vaidades mundanas, exatamente como os dervixes tinham feito no passado.- Você não é um dervixe - disseram as irmãs em coro, determinadas a dissuadi-la de tal sacrilégio ainda desconhecido nos anais da família Kazanci. E, em seguida, todas as três começaram a levantar objeções com o tom mais desinteressado que conseguiram.- Pense bem, os dervixes costumavam vestir sacos ásperos ou trajes de lã, não véus de caxemira - interveio tia Cevriye, a mais emotiva de

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todas.Tia Banu engoliu em seco, constrangida, pouco confortável com suas roupas e com seu corpo.- Os dervixes dormiam no feno e não em colchões king size de penas - acrescentou tia Fende, a mais lunática de todas.Tia Banu ficou em silêncio, olhando através da sala para evitar contato visual com suas interrogadoras. O que podia fazer se sua dor nas costas era lancinante se não dormisse numa cama especial?Além disso, os dervixes não tinham nefs. Olhe só para você!- disse tia Zeliha, a mais excêntrica de todas.Ansiosa para se defender, tia Banu disparou um contra-ataque.- Nem eu. Não mais. Esses dias terminaram. - Então acrescentou em sua nova voz mística: - Combaterei os meus nefs e vencerei!!!Na família Kazanci, sempre que alguém tinha a audácia de fazer algo pouco comum, as outras reagiam do mesmo modo, seguindo o velho curso de ação que poderia ser resumido em: "Vá em frente.Não damos a mínima." Com isso, ninguém levou tia Banu a sério. Depois de notar o ceticismo geral, ela foi para seu quarto e bateu a porta, sem abri-la de novo nos próximos quarenta dias, exceto para rápidas visitas à cozinha e ao toalete. A outra vez que abriu a porta foi para pregar um aviso em cartolina contendo a seguinte frase:QUEM AQUI ENTRAR, ABANDONAI TODO O SEU EU!A princípio, Banu tentou levar consigo Paxá III, que naquela época passava seus últimos dias na Terra. Deve ter pensado que ele poderia lhe fazer companhia em sua solitária penitência, se bem que os dervixes não tinham animais de estimação. Entretanto, por mais anti-social que ele pudesse ser às vezes, a vida de eremita foi demais para Paxá III, pois ele tinha muito a perder abandonando as vaidades mundanas, a começar pelo queijo feta e os fios elétricos. Depois de apenas uma hora na cela de tia Banu, Paxá III soltou uma série de miados agudos e arranhou a porta com tanta força que foi imediatamente posto para fora. Após perder sua única companhia, tia Banu afundou na solidão e parou de falar, surda e muda para todos. Parou também de tomar banho, de pentear o cabelo e até de assistir à sua novela preferida, A Maldição da Hera da Paixão, um melodrama brasileiro em que uma supermodelo de bom coração sofria todo tipo de traição por parte daqueles que mais amava.Entretanto, o verdadeiro choque veio quando tia Banu, sempre com um imenso apetite, parou de ingerir qualquer coisa exceto pão e água. Era

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uma notória apreciadora de carboidratos, principalmente de pão, mas ninguém poderia imaginar que pudesse sobreviver só de pão. Para fazê-la cair em tentação, as três irmãs esforçaram-se ao máximo, fizeram muitos pratos, enchendo a casa com os aromas de sobremesas doces, peixe frito e carne assada, geralmente bastante amanteigados para que o cheiro fosse acentuado.Tia Banu não cedeu. Se houve algum efeito, foi o de deixá-la mais aferrada à sua devoção, assim como ao seu pão seco. Por quarenta dias e noites, continuou inalcançável sob o mesmo teto. Lavar a louça, pôr as roupas para lavar, assistir à TV, fofocar com os vizinhos - as rotinas da vida diária tornaram-se blasfêmias com as quais não queria manter nenhuma ligação. Nos dias que se seguiram, cada vez que as 77 verificavam como Banu estava indo, encontravam-na recitando o Sagrado Alcorão. Tão profundo era o seu venturoso abismo que ela tornou uma estranha para aquelas que a tinham conhecido por toda a vida. Então, na manhã do 41° dia, enquanto todas comiam sucuk grelhado e ovos fritos na mesa do café-da-manhã, Banu arrastou-se para fora do quarto com um sorriso radiante, uma faísca maliciosa nos olhos e um véu vermelho-cereja na cabeça.- O que é essa coisa lamentável na sua cabeça? - Foi a primeira reação de avó Gülsüm que, não amolecendo nem um pouco em todos aqueles anos, ainda mantinha sua semelhança com Ivan, o Terrível.- A partir deste momento vou cobrir a cabeça como exige minha religião.- Que bobagem é essa? - Avó Gülsüm franziu as sobrancelhas. - As mulheres turcas usavam véu há noventa anos. Nenhuma filha minha vai trair os direitos que o grande comandante-em-chefe Atatürk concedeu às mulheres deste país.- É, as mulheres conquistaram o direito de votar em 1934 - ecoou tia Cevriye. - Caso você não saiba, a História anda para frente, não para trás. Tire imediatamente essa coisa!Mas tia Banu não a tirou.Continuou de cabeça coberta e, tendo passado pelo teste dos três Ps - penitência, prostração e piedade -, declarou-se uma adivinha.Assim como sua aparência, as técnicas de clarividência que possuía passaram por uma profunda mudança durante sua trajetória psíquica.Inicialmente tia Banu só usava xícaras de café para ler o futuro das clientes; com o tempo, no entanto, passou gradualmente a empregar técnicas novas e altamente não-convencionais, incluindo cartas de tarô,

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feijões secos, moedas de prata, campainhas de porta, pérolas falsas, seixos do oceano - qualquer coisa, desde que trouxesse notícias do mundo paranormal. Às vezes, conversava apaixonadamente com seus ombros, onde afirmava sentar dois gênios invisíveis balançando os pés. O bom ficava no ombro direito e o mau no esquerdo. Embora soubesse o nome dos dois, para não emiti-los em voz alta simplesmente os chamava de sra. Doce e sr. Amargo, respectivamente.- Se há um gênio mau no seu ombro esquerdo, por que não o expulsa daí? - perguntou Asya certa vez. - Porque às vezes todos precisamos da companhia dos maus - respondeu tia Banu. Asya franziu as sobrancelhas e revirou os olhos, sem conseguir qualquer efeito com esses gestos senão um rosto infantil. Então, assobiou a melodia de uma canção de Johnny Cash, que gostava de lembrar em vários encontros com as tias: "Why me Lord, what have I ever done..." - O que está assobiando? - perguntou tia Banu, cheia de suspeita. Não sabia inglês e desconfiava profundamente de qualquer língua que a fizesse ignorar algo óbvio. - Uma música que diz que, como minha tia mais velha, você devia ser um modelo para mim e me ensinar a diferença entre o certo e o errado. Mas aí está você me ensinando a necessidade do mal. - Bom, vou lhe dizer uma coisa - decretou tia Banu, olhando atentamente a sobrinha. - Há coisas neste mundo de que as pessoas boas, que Alá abençoe a todas, não têm absolutamente a menor idéia. E isso é ótimo, posso lhe afirmar; é bom que não saibam nada sobre essas coisas porque isso prova que têm bom coração. Caso contrário não seriam boas, não é? Asya não pôde deixar de concordar com a cabeça. Afinal de contas, tinha a impressão de que Johnny Cash teria a mesma opinião. - Mas se algum dia você pisar numa mina de maldade, não será a uma dessas pessoas que vai pedir ajuda. - E acha que eu pediria a ajuda de um gênio mau?! - exclamou Asya. - Talvez peça. - Tia Banu sacudiu a cabeça. - Vamos esperar que nunca precise. E ficou nisso. Nunca mais falaram sobre as limitações dos bons e a necessidade dos inescrupulosos. Por volta daquela época, tia Banu mais uma vez remodelou suas técnicas de leitura clarividente e mudou para avelãs, geralmente tostadas. A família suspeitava que a origem dessa novidade, como na maioria das outras, devia ter sido uma pura coincidência. Provavelmente tia Banu fora pega comendo avelãs por uma cliente e deu a melhor explicação que lhe veio à mente: que podia lê-las. Essa era a crença compartilhada por todas na família. Os outros tinham uma interpretação diferente. Sendo a senhora santa que

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era, corria um boato em Istambul de que tia Banu não pedia dinheiro às clientes necessitadas, apenas um punhado de avelãs. A avelã tornou-se o símbolo de seu grande coração. De qualquer modo, a esquisitice de sua técnica só serviu para aumentar ainda mais sua fama. Começaram a chamá-la de "Mãe Avelã", ou mesmo de "Xeique Avelã", sem atinarem para o fato de que as mulheres, com suas limitações, não podiam assumir esse respeitável título. Gênios ruins, avelãs tostadas... Embora com o tempo Asya Kazanci já tivesse se acostumado com essas e outras excentricidades, havia algo na tia mais velha que lhe parecia difícil de engolir: seu nome. Era simplesmente impossível aceitar que "tia Banu" pudesse se metamorfosear em "Xeique Avelã"; assim, sempre que havia clientes na casa ou cartas de tarô postas na mesa, Asya simplesmente evitava a tia. Por isso, embora a sobrinha tivesse escutado perfeitamente as últimas palavras pronunciadas pela tia, fingiu não ouvir. E teria permanecido em sua santa ignorância se tia Fende não tivesse entrado na sala naquele exato momento, levando uma grande bandeja plana onde cintilava o bolo de aniversário. - O que está fazendo aqui? - Tia Fende franziu a testa ao ver Asya. - Você não devia estar aqui; tem uma aula de balé agora. Bem, aquele era outro grilhão nos tornozelos de Asya. Como inúmeras mães turcas da classe média que aspiravam ver as filhas brilharem em tudo que as filhas das classes altas supostamente brilhavam, sua família a obrigava a fazer coisas pelas quais não tinha nenhum interesse. - É um hospício - murmurou para si mesma. Essas três palavras se tornaram seu mantra naqueles dias, e Asya o repetia livremente. Então aumentou um pouco o tom da voz: - Não se preocupe. Na verdade eu já estava saindo. - De que adianta agora? - rebateu tia Fende, apontando para o prato. - Era para ser uma surpresa!- Ela não quer bolo este ano - interveio tia Banu de seu canto, virando a primeira das três cartas de tarô. Era A Sacerdotisa. O símbolo da consciência inconsciente, uma abertura para a imaginação e os talentos ocultos mas também para o desconhecido. Contraiu os lábios e voltou-se para a carta seguinte: A Torre. Um símbolo de tumultuadas mudanças, explosões emocionais e queda súbita. Tia Banu ficou pensativa por um minuto. Então virou a terceira carta. Parece que teriam um visitante em breve, um visitante inesperado vindo do outro lado do oceano. - Como não quer um bolo? É o aniversário dela, por favor! - exclamou tia Fende, com os lábios encrespados e um brilho irado nos olhos. Mas logo em seguida outro pensamento deve lhe ter ocorrido, porque virou-se para Asya e

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apertou os olhos: - Está com medo de que alguém tenha envenenado o bolo? Asya a encarou, atônita. Após todo aquele tempo e tanta convivência direta ainda não desenvolvera uma estratégia, a estratégia de ouro para permanecer calma e fria ante os rompantes de tia Fende. Após uma fiel estada de anos na "esquizofrenia hebefrênica", tia Fende migrara recentemente para a paranóia. Quanto mais se esforçavam para tentar trazê-la à realidade, mais ela se tornava paranóica e suspeitava das outras. - Se Asya tem medo de alguém ter envenenado o bolo? Claro que não, sua excêntrica inofensiva! Todas na sala se viraram para a porta onde estava tia Zeliha, jaqueta de veludo cotelê nos ombros, saltos altos nos pés, uma expressão interrogativa que a deixava pungentemente linda. Devia ter se esgueirado silenciosamente para a sala e ouvido a conversa, a não ser que tivesse adquirido o talento de materializar-se quando quisesse. Diferente da maioria das turcas que gostavam de saias curtas e saltos altos na juventude, Zeliha não havia encompridado as primeiras nem diminuído os segundos ao ficar mais velha. Seu estilo de se vestir era extravagante como sempre. Os anos só haviam aumentado sua beleza, enquanto pesavam em cada uma das outras irmãs. Como se soubesse o efeito de sua presença, tia Zeliha continuou parada à porta, contemplando as unhas manicuradas. Dava uma enorme importância 81

às mãos, pois as usava no trabalho. Como não tinha nenhum gosto pelas instituições burocráticas ou qualquer cadeia de comando e com tanta exasperação e raiva dentro de si, percebeu ainda cedo que teria de escolher uma profissão onde pudesse ser independente e inventiva ao mesmo tempo. E também, se possível, infligir um pouco de dor. Dez anos atrás, tia Zeliha abriu um estúdio de tatuagens onde começou a desenvolver uma coleção de desenhos originais. Além dos clássicos da arte - rosas vermelhas, borboletas iridescentes, corações cheios de amor - e da compilação usual de insetos peludos, lobos selvagens e aranhas gigantes, introduziu seus próprios desenhos inspirados num princípio básico: a contradição. Havia rostos meio masculinos, meio femininos; corpos meio animais, meio humanos; árvores meio viçosas, meio secas... Seus desenhos, porém, não eram populares. Os clientes queriam fazer uma declaração através das tatuagens, e não adicionar outra ambigüidade às suas vidas já incertas. Suas tatuagens tinham que expressar uma emoção simples, não um pensamento abstrato. Aprendendo bem a lição, Zeliha lançou uma nova série composta de imagens que intitulou "o gerenciamento

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da tristeza permanente".Cada tatuagem dessa coleção especial destinava-se apenas a uma pessoa: o ex-amor. Os abandonados e os desesperançosos, os magoados e os irados traziam um retrato do ex-amor que queriam banir para sempre de suas vidas, mas de algum modo não conseguiam deixar de amar. Então, Zeliha estudava o retrato e vasculhava o cérebro até descobrir com que animal em especial a pessoa se assemelhava. O resto era relativamente fácil. Ela desenhava o animal e, em seguida, o tatuava no corpo desolado do cliente. Toda essa prática ligava-se ao antigo costume xamanístico de simultaneamente internalizar e externalizar os totens da pessoa. Para fortalecer-se ante seu antagonista era preciso aceitá-lo, acolhê-lo e então transformá-lo. O ex-amor era interiorizado - injetado dentro do corpo - e ao mesmo tempo exteriorizado - deixado fora da pele. Depois que o ex-amante era colocado nessa fronteira entre o lado de dentro e o de fora, e desafiadoramente transformado num animal, a estrutura de poder entre o abandonado e o abandonante mudava. Agora o amante tatuado 82 sentia-se superior, como se a chave da alma do ex-amor estivesse em suas mãos. Logo que esse estágio era alcançado e o ex-amor perdia seu poder de atração, os que sofriam de tristeza permanente podiam finalmente se libertar de sua obsessão, pois o amor ama o poder. É por isso que podemos nos apaixonar de forma suicida por outros, mas raramente podemos retribuir o amor daqueles que se apaixonam de forma suicida por nós. Sendo Istambul uma cidade de corações partidos, não foi preciso muito tempo para que tia Zeliha expandisse o negócio, tornando-se lendária principalmente nos círculos boêmios. Asya desviou o olhar para não ter mais que fixar a mãe, a quem jamais havia chamado de "mamãe" e de quem tinha talvez esperado manter distância com a transformação em "tia". Uma onda de autopiedade a tomou. Que imperdoável injustiça Alá fazer uma filha muito menos bonita que a própria mãe! - Você não entende por que Asya não quer bolo este ano? - perguntou tia Zeliha ao terminar a inspeção das unhas. - Ela está com medo de engordar! Embora soubesse ser um grande erro mostrar seu gênio na frente da mãe, Asya berrou furiosamente: - Não é verdade! Tia Zeliha rendeu-se com um brilho endiabrado nos olhos: - Tudo bem, querida, se você diz isso... Só então Asya notou a bandeja que tia Fende carregava. Havia uma grande bola de carne e uma bola ainda maior de massa. Teriam mantz no jantar daquela noite. - Quantas vezes preciso dizer que não gosto de manti? - berrou Asya. - Você sabe que eu parei de comer carne. - Sua voz

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soava estranha para si mesma, rouca e desconhecida. - Eu disse que ela estava com medo de engordar. - Tia Zeliha sacudiu a cabeça e afastou uma mecha do cabelo negro que caiu sobre seu rosto. -Já ouviu falar na palavra vegetariana? - Asya sacudiu a cabeça também, mas resistiu a afastar uma mecha de cabelo, com medo de imitar os gestos da mãe.- Claro que já - respondeu tia Zeliha, aprumando-se. - Mas não esqueça, querida - continuou com uma voz suave, que sabia ser mais persuasiva -, você é uma Kazanci, não uma vegetariana. Asya engoliu com dificuldade, sua boca subitamente seca. - E os Kazanci adoram carne vermelha! Quanto mais vermelha e gordurosa, melhor! Se não acredita em mim, pergunte a Sultão V. Não é, Sultão? - Tia Zeliha inclinou a cabeça na direção do gato gordo deitado em sua almofada de veludo junto à porta da sacada. Ele se virou para tia Zeliha com olhos apertados, embaciados, como se tivesse entendido tudo e aprovado a declaração. Reembaralhando as cartas de tarô, tia Banu ralhou do seu canto: - Há gente nesse país numa miséria tão grande que nem conheceria o gosto da carne se não fossem as esmolas dadas pelos muçulmanos benevolentes durante o Banquete do Sacrifício. É a única vez que fazem uma refeição decente. Pergunte a essas almas indigentes o que significa realmente ser vegetariano. Você devia ser grata por cada pedaço de carne colocado em seu prato, porque é um símbolo de opulência. - É um hospício! Somos todas loucas aqui, todas nós. - Asya repetiu seu mantra, desta vez com a voz derrotada. - Estou indo, senhoras. Podem comer o que quiserem. Já estou atrasada para a minha aula de balé! Ninguém notou que Asya cuspira a palavra "balé" como se fosse uma secreção da qual tivesse que se livrar, mas ao mesmo tempo ficou descontente por não conseguir controlar o impulso de fazê-lo.

***5BAUNILHA

O CAFÉ KUNDERA ERA UM PEQUENO CAFÉ numa rua estreita e sinuosa no lado europeu de Istambul. Era o único bistrô da cidade onde não se gastava energia em conversa e dava-se gorjeta aos garçons para ser maltratado. Como e por que recebera o nome do famoso escritor ninguém sabia ao certo - desconhecimento ampliado pelo fato de que não havia nada, literalmente nada no lugar que lembrasse Milan Kundera ou qualquer um de seus romances. Nas quatro paredes havia centenas de molduras de todos os

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tipos e tamanhos, uma quantidade tão grande de fotos, pinturas e desenhos que se poderia duvidar da existência de paredes por trás. O lugar dava a impressão de ter sido construído com molduras em vez de tijolos. Em todas as molduras, sem exceção, brilhava a imagem de uma estrada. Amplas rodovias dos Estados Unidos, intermináveis estradas da Austrália, agitadas auto bahns da Alemanha, extravagantes boulevards de Paris, abarrotadas travessas de Roma, estreitos caminhos de Machu Picchu, rotas de caravana no Norte da África e mapas dos antigos caminhos ao longo da Rota da Seda, seguindo os passos de Marco Pólo - havia retratos de estradas de toda parte do mundo. Os clientes estavam perfeitamente satisfeitos com a decoração. Consideravam-na uma alternativa útil aos inúteis bate-papos que não levavam a lugar nenhum. Quando não tinham vontade de conversar, escolhiam um quadro daqueles, dependendo do ângulo da mesa onde estavam e para onde exatamente desejavam ser projetados naquele dia específico. Então fixavam com um olhar vago a imagem escolhida, embarcando aos poucos para a terra distante ante seus olhos, ansiando por estar lá, em nenhum outro lugar do mundo exceto lá. No dia seguinte, podiam viajar para outro local. Por mais distante que as imagens os levassem, uma coisa era certa: nenhuma delas tinha qualquer ligação com Milan Kundera. Quando o lugar acabara de ser inaugurado, correu a versão de que o autor estivera em Istambul e, a caminho de outro local, parara casualmente por ali para um cappuccino. O café não estava muito bom e o escritor teria detestado o biscoito de baunilha que o acompanhava; mas logo pediu outro e até escrevera um pouco ali, já que ninguém o perturbara ou nem sequer o reconhecera. Naquele dia, o lugar foi batizado com o seu nome. Outra versão, porém, afirmava que o dono do café era um ávido leitor de Kundera; tendo devorado todos os seus livros e, com autógrafos em todos eles, decidira dedicar o local ao seu autor preferido. Essa versão seria mais plausível se o dono do café não fosse um músico e cantor de meia-idade, sempre bronzeado e atlético, e com uma aversão tão profunda à palavra impressa que nem se dava ao trabalho de ler as letras das canções que sua banda tocava nas noites de sexta-feira. O verdadeiro motivo do bistrô ter sido batizado de Kundera, dizia outra versão, era que o local, em termos de espaço, seria apenas um fragmento da imaginação imperfeita do autor. O café era um local fictício com gente fictícia como cliente. Algum tempo atrás, Kundera havia começado a escrever sobre o lugar como parte do projeto de um novo

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livro, soprando nele vida e caos, mas logo fora distraído por projetos mais importantes - convites, mesas redondas e prêmios literários - e, em meio ao ritmo confuso, posteriormente esquecera aquele buraco sórdido em Istambul por cuja existência só ele era responsável. Desde então, os clientes e garçons no Café Kundera vinham sofrendo uma sensação de vazio, vagando pelos desconsolados cenários futuristas, fazendo caretas por causa do café turco em xícaras de expresso, à espera de uma inserção num drama intelectual onde desempenhassem o papel principal. Entre todas as teorias sobre a gênese do nome do café, a última era a mais amplamente defendida. Mesmo assim, de vez em quando alguém novo no local ou com necessidade de chamar a atenção surgia com outra versão, e, por um embalo efêmero, os outros clientes acreditavam nele, brincando com a nova teoria até ficarem entediados e afundarem de novo em seus pântanos de melancolia. Hoje, quando o Cartunista Dipsomaníaco começou a brincar com uma nova teoria sobre o nome do café, todos os amigos - até mesmo sua mulher - sentiram-se obrigados a ouvi-lo atentamente, como sinal de apoio por ele ter finalmente conseguido reunir coragem para fazer o que todos sempre lhe tinham implorado que fizesse: entrar para os Alcoólicos Anônimos. Havia, porém, outro motivo para todos na mesa serem mais solidários com ele do que habitualmente. Naquele dia, o Cartunista fora indiciado pela segunda vez por insultar o primeiro-ministro com seus desenhos e, se no dia do julgamento o juiz concordasse com a acusação, o autor da charge poderia ficar preso por três anos, O Cartunista Dipsomaníaco era famoso por uma série de charges políticas em que pintava todo o gabinete como um rebanho de ovelhas e o primeiro-ministro como um lobo em pele de ovelha. Agora que fora proibido de usar essa metáfora, planejava desenhar o gabinete como uma alcatéia de lobos e o primeiro-ministro como um chacal em pele de lobo. Se essa caricatura também fosse censurada, pensava numa estratégia alternativa: pingüins! Estava determinado a desenhar todos os membros do parlamento como pingüins de smoking.- Aqui vai minha nova teoria - disse o maníaco, sem ter noção da compaixão que evocava e um pouco surpreso ao ver tanto interesse de sua audiência e até da própria mulher. Era um homem grande com um nariz patrício, maçãs do rosto salientes e olhos de um azul intenso, com um Sorriso sem alegria nos lábios. Estava há muito acostumado com a infelicidade e a melancolia. Contudo, depois de apaixonar-se secretamente por uma mulher inalcançável, seu ar sombrio

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se agravara.Olhando para ele, era difícil imaginar que ganhasse a vida com o humor, e que, por trás daquele rosto pouco sociável, brotassem as piadas mais engraçadas. Embora sempre tivesse sido um bebedor notório, ultimamente seu problema com o álcool tinha atingido seu ápice. Começava a acordar em locais questionáveis que jamais vira antes. A última gota, contudo, foi quando em certa manhã, bem cedo, descobriu-se deitado no pátio de pedra de uma mesquita onde os mortos eram lavados, tendo aparentemente desmaiado enquanto tentava organizar seu próprio funeral. Quando conseguiu abrir os olhos, ao alvorecer, um jovem imame a caminho da prece matinal estava parado ao seu lado, chocado por encontrar um estranho roncando sobre as pedras dos mortos. Depois daquilo, os amigos do Cartunista Dipsomaníaco - e até sua mulher - ficaram tão alarmados que insistiram para que se tratasse e fizesse algo de sua vida. Hoje, finalmente, assistira a uma reunião dos AA e comprometerase a parar de beber. Por isso, todos na mesa - até sua mulher - encostaram-se nas cadeiras atentamente para ouvir sua teoria.- O café tem esse nome porque a palavra Kundera é um código.O ponto central da questão não é o nome em si, mas que sintoma representa!- E qual é? perguntou o Roteirista Não-Nacionalista de Filmes Ultranacionalistas um homem baixo e esquálido, com uma barba pintada de grisalho desde que chegara à conclusão da preferência das jovens pelos homens maduros. Era escritor e criador de uma popular série de TV, Timur, o Coração de Leão, que apresentava um violento e robusto herói nacional capaz de esmagar batalhões inteiros de inimigos, transformando-os em um purê sangrento. Quando perguntado sobre seus filmes e programas de TV vulgares, defendia-se argumentando que era nacionalista por profissão, mas um verdadeiro niilista por escolha. Naquele dia, aparecera com outra namorada - uma mulher atraente e vistosa, mas sem muita profundidade. Nos círculos masculinos, tinham um nome específico para mulheres superficiais como ela: "aperitivos" - não o prato principal, claro, mas bom para beliscar. Pescando castanhas-de-caju da tigela na mesa, o Roteirista deu uma risada áspera enquanto punha o braço em torno da nova namorada: - Vamos, conte qual é o código! - Tédio - disse o Cartunista Dipsomaníaco, soltando uma baforada de cigarro. Anéis de fumaça subiam de todos os lados, já que as pessoas fumavam como chaminés ali. A

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fumaceira do Cartunista juntou-se vagarosamente à nuvem espessa e cinzenta que pairava sobre a mesa. Entre eles, o único que não fumava era o Colunista Gay Enrustido. Detestava o cheiro de cigarro. Todos os dias, ao voltar para casa, tirava imediatamente a roupa para livrar-se dos odores fedorentos do Café Kundera. Apesar disso, não fazia objeções ao hábito de fumar dos outros nem parava de ir ao café, freqüentando-o regularmente em parte porque gostava de participar daquele grupo heterogêneo, e em parte por sentir uma atração secreta pelo Cartunista Dipsomaníaco. Não que o Colunista Gay Enrustido quisesse ter algo carnal com o cartunista. Só a idéia dele nu era suficiente para lhe dar calafrios na espinha. Aquilo não tinha a ver com sexo, assegurava-se, mas com espíritos afins. Além disso, havia dois grandes obstáculos bloqueando seu caminho. Primeiro, o Cartunista Dipsomaníaco era estritamente heterossexual e suas chances de mudar pareciam mínimas. Segundo, tinha uma paixonite por aquela garota mal-humorada, Asya - um fato que todos já haviam notado, exceto ela. Assim, o Colunista Gay Enrustido não cultivava esperanças de ter um caso com o Cartunista Dipsomaníaco. Queria apenas estar perto dele. De vez em quando sentia um repentino sobressalto quando o Cartunista, ao estender a mão para um copo ou um cinzeiro, acidentalmente tocava sua mão ou seu ombro. Mesmo assim, no ímpeto de assegurar a todos que não tinha qualquer interesse no Cartunista- ou em qualquer homem, por falar nisso -, em certos momentos o Colunista o tratava de modo distante, denegrindo inexplicavelmente suas opiniões. Era uma história complicada. - Tédio - repetiu o Cartunista Dipsomaníaco, depois de engolir seu café-com-leite. - O tédio é o resumo de nossas vidas. Dia após dia chafurdamos nele. Por quê? Porque não conseguimos abandonar essa toca de coelho por medo de um encontro traumático com nossa própria cultura. Políticos ocidentais presumem que haja uma lacuna cultural entre a civilização oriental e a ocidental. Como se fosse simples assim! A verdadeira lacuna de civilização é entre os turcos e os turcos. Somos um bando de urbanistas cultos rodeados de caipiras e rústicos por todos os lados. Eles conquistaram a cidade toda. Lançou um olhar oblíquo para as janelas, como se temesse que uma horda de camponeses pudesse atacá-los com seus porretes e balas de canhão. - As ruas pertencem a eles, as praças pertencem a eles, as barcas pertencem a eles. Toda área aberta é deles. Talvez em alguns anos este café seja o único lugar que nos reste. Nossa última zona livre. Corremos

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para cá todos os dias para nos protegermos deles. Ah, sim, deles! Deus me salve do meu próprio povo! - Você está poetizando - comentou o Poeta Excepcionalmente Sem Talento. Já que não tinha talento nenhum, seu hábito era comparar tudo à poesia. - Estamos presos. Presos entre o Oriente e o Ocidente. Entre o passado e o futuro. De um lado, os modernistas seculares, tão orgulhosos do regime que construíram que não se pode murmurar uma crítica. Do outro, os tradicionalistas convencionais, tão apaixonados pelo passado otomano que não se pode murmurar uma crítica. Conquistaram o público em geral e têm a metade do Estado ao seu lado. E o que restou para nós? Pôs novamente o cigarro entre os lábios pálidos e secos, onde permaneceu durante as contínuas queixas de seu dono. - Os modernistas nos dizem para seguir em frente, mas não temos nenhuma fé em sua idéia de progresso. Os tradicionalistas nos dizem para recuar, mas também não queremos voltar à sua ordem ideal. 90 Espremidos entre os dois lados, damos dois passos para frente e um para trás, exatamente como a banda do exército otomano fazia! Mas não tocamos sequer um instrumento! Para onde fugir? Não somos nem mesmo uma minoria. Gostaria que fôssemos uma minoria étnica ou um povo indígena sob a proteção da Carta da ONU. Então ao menos poderíamos ter alguns direitos legais. Mas niilistas, pessimistas e anarquistas não são encarados como minoria, embora sej amos uma espécie em extinção. Nosso número diminui a cada dia. Por quanto tempo sobreviveremos? A pergunta pairou pesadamente sobre a cabeça de todos, em algum ponto abaixo da nuvem de fumaça. A esposa do Cartunista, uma mulher tensa de olhos grandes e sombrios e com muito ressentimento dentro de si - e que era melhor cartunista que o marido, mas muito menos apreciada -, rangeu os dentes, dividida entre criticar o parceiro de 12 anos, como gostaria de fazer, e apoiar seu frenesi, como faria uma esposa ideal. Desgostavam sinceramente um do outro e, mesmo assim, haviam se agarrado ao casamento por todos aqueles anos; ela com uma esperança de vingança, ele na esperança de que o casamento melhorasse. Hoje, falavam com gestos e palavras roubados um do outro. Até suas caricaturas eram parecidas agora. Desenhavam corpos deformados e inventavam diálogos oblíquos envolvendo pessoas deprimidas em situações tristes e sarcásticas. - Sabem quem somos? A escória deste país. Uma lamentável polpa viscosa, nada mais do que isso! Todos, exceto nós, estão obcecados em entrar para a União Européia, ter lucros, comprar ações, trocar de carro e de namorada... O Roteirista Não-Nacionalista de Filmes Ultranacionalistas

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remexeu-se nervosamente. - É aqui que Kundera entra no quadro - continuou o Cartunísta Dipsomaníaco sem notar a gafe. - Toda a idéia de leveza permeia nossa vida na forma de um vazio sem sentido. Nossa existência é kitsch, uma bela mentira que nos ajuda a desafiar a realidade da morte e da mortalidade. É precisamente isso... Mas suas palavras foram abafadas pelo tilintar dos sinos da porta do café, que se abriu com uma corrente de ar. A jovem que entrou parecia irritada e cansada demais para sua idade. 91 - Oi, Asya! - gritou o Roteirista, como se ela fosse a tão aguardada salvadora que poria um fim àquela conversa maluca. - Aqui! Estamos aqui! Asya Kazanci sorriu levemente e franziu a testa com uma expressão que dizia: "Ah, posso me juntar a vocês um pouco, que diferença faz? A vida é uma droga de qualquer forma." Lentamente, como se sobrecarregada de invisíveis sacos de inércia, ela aproximou-se da mesa, cumprimentou a todos atonicamente, sentou-se e começou a enrolar um cigarro. - O que faz aqui a essa hora? Não devia estar no balé? - perguntou o Cartunista Dipsomaníaco, esquecendo seu monólogo. Os olhos dele faiscavam de afeto; um sinal notado por todos, exceto por sua mulher. - Mas é exatamente onde estou: na aula de balé. E, neste momento - Asya recheou o papel enrolado com fumo -, faço um dos saltos mais difíceis, juntando as panturrilhas no ar entre 45 e 90 graus: cabriole! - Uau! - O Cartunista sorriu. - Em seguida, faço um salto giratório - continuou Asya. - Pé direito na frente, demi plié, e salto! - Agarrou a bolsa de couro com tabaco e segurou-a no ar. - Vire 180 graus - ordenou enquanto virava a bolsa, salpicando a mesa de fumo - e desça sobre o pé esquerdo! - A bolsa pousou próximo à tigela de castanhas-de-caIu. - Então repita tudo mais uma vez e volte à posição inicial. Emboí'té! - O balé é como escrever poesia com o corpo - murmurou o Poeta Excepcionalmente Sem Talento. Um torpor taciturno se instalou entre eles. De algum lugar à distância, os sons da cidade se misturavam, um amálgama de sirenes, buzinadas, gritos e risos acompanhados pelos guinchos das gaivotas. Novos clientes entraram, outros saíram. Um dos garçons caiu com uma bandeja cheia de copos. Outro foi buscar a vassoura e varreu os cacos do chão, enquanto os clientes observavam com displicência. Os garçons do café mudavam freqüentemente. A jornada de trabalho era longa e o salário não era bom. Mesmo assim, nenhum garçom pedira demissão até aquela data; eram despedidos. Assim funcionava o Café Kundera: depois que se entrava, permanecia-se preso a ele até que o lugar o cuspisse para fora.

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Na meia hora seguinte, alguns na mesa de Asya Kazanci pediram café, e o restante, cerveja. Na segunda rodada, os primeiros tomaram cerveja, e os últimos, café. E assim continuaram. Somente o Cartunista permaneceu nos cafés-com-leite, mordiscando os biscoitos de baunilha que os acompanhavam, embora sua frustração já fosse visível. De qualquer modo, nada era feito com harmonia; entretanto, mesmo naquela dissonância havia uma cadência pouco comum. Era o que Asya mais gostava no café: sua indolência comatosa e desarmonia farsesca. O lugar era excluído do tempo e do espaço. Istambul vivia numa pressa constante e ali no Café Kundera só a letargia prevalecia. As pessoas fora do café grudavam-se umas nas outras para disfarçar a solidão, fingindo uma intimidade maior do que de fato havia, mas no café ocorria o contrário; todos fingiam ser muito mais distanciados do que eram de fato. O local era a negação da cidade toda. Asya deu uma tragada no cigarro, apreciando plenamente a inércia, até que o Cartunista olhou o relógio e virou-se para ela. - Sete e quarenta, querida. Sua aula terminou. - Ah, você tem mesmo que ir? Sua família é tão fora de moda - disparou a namorada do Roteirista. - Por que obrigam você a ter aulas de balé quando é óbvio que não curte isso? Era esse o problema de todas aquelas namoradas efêmeras como borboletas trazidas pelo Roteirista. Impelidas pelo impulso de se tornarem amigas de todos do grupo, faziam muitas perguntas e comentários de ordem pessoal, fracassando miseravelmente em reconhecer que era justamente o oposto, era a falta de qualquer interesse sincero na privacidade uns dos outros que atraía os membros do grupo para aquele lugar. - Como você consegue lidar com todas as suas tias? - continuou a namorada do Roteirista, não conseguindo interpretar a expressão de Asya. - Nossa, tantas mulheres desempenhando o papel de mãe na mesma casa... Eu não conseguiria agüentar um minuto! Aquilo fora demais. Havia regras tácitas num grupo tão eclético que não deviam ser violadas. Asya fungou. Não gostava de mulheres, com as quais seria mais fácil lidar se não fosse uma delas. Cada vez que conhecia uma mulher, esperava para ver quando a odiaria ou a odiava imediatamente. - Não tenho uma família no sentido normal da palavra. Asya encarou-a com condescendência, esperando que isso impedisse a outra de continuar. Contudo, no meio do esforço, vislumbrou na parede uma moldura brilhante de prata bem acima do ombro direito da mulher. Era o retrato de uma estrada para a lagoa Vermelha, na Bolívia. Como seria bom estar naquela estrada naquele exato momento! Asya

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terminou o café, esmagou a guimba do cigarro e começou a enrolar outro enquanto murmurava: - Somos um bando de animais forçados a viverem juntos. Não chamo isso de família. - Mas é exatamente isso que uma família é, meu bem - objetou o Poeta Excepcionalmente Sem Talento. Em momentos assim, ele lembrava que era o maisvelho do grupo, não só em anos de idade como também em anos de erros. Casado e divorciado por três vezes, vira cada uma de suas ex-esposas deixar Istambul e partir para algum lugar o mais distante dele possível. Tinha filhos de todos os casamentos, filhos que visitava somente de vez em quando, mas cuja posse sempre afirmava com orgulho. - Lembrem-se - balançou um dedo paternal na direção de Asya -, todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz a seu próprio modo. - É tão fácil para Tolstoi cuspir essa bobagem. - A mulher do Cartunista Dipsomaníaco deu de ombros. - O sujeito tinha uma esposa que tomava conta de cada detalhezinho, criava as dezenas de filhos que ele tinha e trabalhava como um cão para que sua majestade, o grande Tolstoi, pudesse se concentrar e escrever romances! - O que é que você quer? - perguntou o Cartunista Dipsomaníaco. - Reconhecimento! É isso que eu quero. Quero que o mundo inteiro admita que, se lhe fosse dada uma oportunidade, a mulher de Tolstoi poderia ser melhor escritora do que ele. - Por quê? Só porque era mulher?- Porque era uma mulher muito talentosa, oprimida por um homem muito talentoso - rebateu a mulher. Ah - disse o Cartunista Dipsomaníaco. Perturbado, chamou o garçom e, para a tristeza de todos, pediu uma cerveja. No entanto, quando esta foi servida, ele deve ter sentido uma certa culpa, pois repentinamente mudou de assunto, embarcando num discurso sobre os benefícios do álcool. - Este país deve sua liberdade a esta garrafinha que posso segurar tão livremente com minha mão. - O Cartunista levantou a voz para superar o barulho da sirene de ambulância que soava lá fora. - Nem reformas sociais nem regulamentos políticos. Nem mesmo a Guerra de Independência. É esta garrafinha que diferencia os turcos de todos os outros países muçulmanos. Esta cerveja aqui - ergueu a garrafa como num brinde,é o símbolo da liberdade e da sociedade civil. - Ah, que isso! Desde quando um bêbado desagradável é símbolo de liberdade? - retrucou o Roteirista asperamente. Os outros não entraram na discussão. Era um desperdício de energia. Em vez disso, escolheram um quadro na parede e se concentraram em uma foto de estrada. Desde o dia em que o álcool foi proibido e denegrido em todo o Oriente Médio

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muçulmano. Desde sempre grunhiu o Cartunista Dipsomaníaco. - Pensem na História otomana. Todas aquelas tavernas, todas aquelas mezes para acompanhar cada copo... Parece que os sujeitos estavam se divertindo. Como nação, nós apreciamos o álcool. Por que não aceitamos isso? Esta é uma sociedade que gosta de se embebedar 11 meses por ano e depois entra em pânico, se arrepende e jejua no Ramadã, simplesmente para voltar a beber quando o mês sagrado termina. Se nunca houve sharia neste país, se os fundamentalistas nunca tiveram o sucesso que tiveram nos outros países, digo a vocês, foi graças a essa tradição dístorcida. É graças ao álcool que há algo parecido com democracia na Turquia. - Bem, por que não bebemos então? - A mulher do Cartunista Dipsomaníaco deu um sorriso cansado. - E que melhor motivo para bebermos do que o Sr. Na Ponta dos Pés? Qual é mesmo o nome dele? Cecche?- Cecchetti - corrigiu Asya, ainda lamentando o dia em que se embebedara o suficiente para fazer um discurso sobre a história do balé para o grupo, e mencionar, de passagem, o nome de Cecchetti. O grupo adorou. Desde aquele dia alguém propunha de vez em quando um brinde a ele, o dançarino que introduzira o caminhar na ponta dos dedos dos pés no balé. "Então, se não fosse por ele, as bailarinas não andariam nas pontas dos pés, hein?", zombaria alguém e daria uma risadinha. "O que se passava na cabeça dele?", acrescentaria alguém e todos ririam. Todos os dias eles se encontravam no Café Kundera. O Poeta Excepcionalmente Sem Talento, o Roteirista Não-Nacionalista de Filmes Ultranacionalistas e quem quer que fosse sua namorada no momento, o Cartunista Dipsomaníaco, a mulher do Cartunista Dipsomaníaco, o Colunista Gay Enrustido e Asya Kazanci. Havia uma tensão enterrada bem abaixo da superfície, esperando o papo do dia para emergir. Enquanto isso, as coisas fluíam perfeitamente. Alguns dias, traziam novas pessoas, amigos, colegas ou completos estranhos; outros dias, vinham sozinhos. O grupo era um organismo auto-regulado onde as diferenças individuais podiam ser demonstradas mas nunca predominar, como se o organismo tivesse uma vida fora e além das personalidades que o compunham. Entre eles, Asya Kazanci encontrava paz interior. O Café Kundera era o seu santuário. Em casa, tinha sempre que corrigir os próprios modos, esforçando-se por uma perfeição além de sua compreensão, enquanto no Café Kundera ninguém a forçava a mudar, já que os seres humanos eram considerados essencialmente imperfeitos e incorrigíveis. Sem dúvida, aqueles não eram os amigos ideais que as tias escolheriam para a sobrinha. Alguns tinham idade suficiente para serem

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mães ou pais dela. Como a mais jovem do grupo, Asya gostava de observar a infantilidade deles. Era confortante ver que, de fato, nada melhorava na vida com os anos; se você era um adolescente anti-social, seria um adulto anti-social. Os padrões estavam conosco para ficar. É verdade que parecia um pouco desalentador, mas pelo menos - consolava-se Asya - isso provava que não era preciso virar outra pessoa, algo mais, como as tias defendiam, ralhando com ela dia e noite. Já que nada mudaria com o tempo e a anti-sociabilidade estaria ali para sempre, podia continuar com seu mesmo eu anti-social. - Hoje é o meu aniversário - anunciou Asya, surpreendendo a si mesma, já que não tinha nenhuma intenção de comunicá-lo. - Ah, é? - perguntou alguém. - Que coincidência! É o aniversário de minha filha mais nova também - exclamou o Poeta Excepcionalmente Sem Talento. - Ah, é? - Foi a vez de Asya perguntar. - Então você nasceu no mesmo dia que minha filha! Gêmeos! - O Poeta sacudiu teatralmente a cabeça cabeluda com júbilo. - Peixes - corrigiu Asya. E foi só. Ninguém tentou abraçá-la nem sufocá-la de beijos, assim como ninguém pensou em pedir um bolo. Em vez disso, o Poeta recitou para ela um poema horrível, o Cartunista bebeu três garrafas de cerveja em sua homenagem e a mulher do Cartunista desenhou a caricatura de Asya num guardanapo - uma moça pouco amigável de cabelos eletrificados, seios imensos e um nariz pontudo sob um par de olhos astutos e penetrantes. Os outros lhe ofereceram mais um café e, no final, não lhe deixaram pagar sua parte da conta. Foi simples assim. Não que não levassem o aniversário de Asya a sério. Ao contrário: tinham-no levado tão a sério que logo passaram a divagar sobre a noção de tempo e de mortalidade, especulando quando morreriam e se de fato havia uma vida após a morte. "Há uma vida após a morte e vai ser pior do que esta", foi a opinião geral do grupo. "Portanto, vamos aproveitar o tempo que nos resta." Alguns matutaram a respeito daquilo, outros pararam no meio de uma palavra e mergulharam num ou noutro quadro na parede. E o fizeram com todo o vagar, como se ninguém os esperasse do lado de fora, como se nem houvesse o lado de fora, suas caretas gradualmente mudando para sorrisos beatíficos de indiferença. Sem nenhuma energia, nenhuma paixão ou necessidade de conversa ulterior, afundaram ainda mais nas águas lamacentas da apatia, cogitando por que o diabo do lugar se chamava Café Kundera.Às NOVE HORAS DAQUELA NOITE, após terminar uma substancial refeição, com as luzes apagadas, em meio ao canto e às palmas, Asya Kazanci soprou as

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velas do bolo de maçã caramelada de três camadas (extremamente açucarado) com glacê de creme de limão batido (extremamente azedo). Só conseguiu apagar um terço delas. O resto das velas foi apagado pelas tias, pela avó e por Petite-Ma, todas soprando de todos os lados. - Como foi sua aula de balé hoje? - perguntou tia Fende ao acender as luzes de novo. Boa. - Asya sorriu. - Minhas costas doem um pouco por causa de todo o alongamento que a professora nos obriga a fazer, mas mesmo assim não posso me queixar. Aprendi novos movimentos... - Ah, é? - perguntou uma voz cheia de suspeita de tia Zeliha. - Quais? - Bom - respondeu Asya enquanto provava o bolo -, deixa eu ver... Aprendi o petit jeté, que é um pequeno salto, a pirouette e a glissade. - Sabe, isso é como matar dois coelhos com uma cajadada só - observou tia Fende. - Pagamos pelas aulas de balé e ela acaba aprendendo balé e francês. Economizamos um bocado de dinheiro! Todas concordaram com a cabeça; todas exceto tia Zeliha. Com uma fagulha de ceticismo no abismo dos seus olhos verde-jade, aproximou o rosto da filha e disse, com uma voz quase inaudível: - Mostre para nós! - Está maluca? - esquivou-se Asya. - Não posso fazer essas coisas no meio da sala! Preciso de um estúdio e da presença de um professor. Primeiro nos aquecemos e alongamos, e depois nos concentramos. E sempre tem música. Glissade significa deslizar, sabiam? Como posso deslizar aqui no tapete?! Não se pode dançar balé assim! Um sorriso melancólico formou-se nos lábios de tia Zeliha enquanto passava os dedos pelos cabelos negros. Ficou em silêncio, parecendo mais interessada em comer o bolo do que em brigar com a filha. Seu sorriso, contudo, foi suficiente para enfurecer Asya, que empurrou o próprio prato, afastou a cadeira e se levantou. Às 9h15 daquela noite, na sala de um konak outrora opulento e elegante mas agora dilapidado e fora da moda em Istambul, Asya Kazanci dançava balé num tapete persa, o rosto romanticamente composto, os braços estendidos, as mãos suavemente dobradas para que os dedos médios tocassem os polegares, enquanto sua mente turbilhonava com fúria e ressentimento.

***6PISTACHES

ARMANOUSH TCHAKHMAKHCHIAN OBSERVOU O CAIXA da livraria "A Clean Well-Lighted Place for Books" colocar, um por um, os 12 romances que acabara

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de comprar numa bolsa de lona, enquanto esperavam o cartão de crédito ser processado. Quando finalmente o recibo lhe foi entregue, ela assinou, tentando não olhar para o total. Mais uma vez gastara todas as economias mensais em livros! Era uma verdadeira rata de biblioteca, característica nada promissora, considerando-se que tinha valor zero aos olhos dos rapazes, servindo apenas para aborrecer sua mãe quanto às suas perspectivas de casá-la com um marido rico. Naquela mesma manhã, a mãe a fizera prometer, pelo telefone, não dar um pio sobre os romances quando saísse naquela noite. Armanoush sentiu uma onda de raiva em seu estômago ao pensar no encontro próximo. Depois de um ano sem sair com ninguém - um solene tributo à sua solteirice crônica de 21 anos, marcada por desastrosos pseudo-encontros -, hoje finalmente Armanoush Tchakhmakhchian daria uma nova chance ao amor. Se sua paixão por livros tinha sido uma razão fundamental para sua recorrente incapacidade de manter uma relação normal com o sexo oposto, havia dois fatores adicionais que atiçavam as chamas de seu fracasso. O primeiro e principal era que Armanoush era bonita, bonita demais. Com um corpo bem proporcional, rosto delicado, cabelos ondulados de um louro escuro, enormes olhos azuis-acinzentados e um nariz pontudo com uma ligeira protuberância que poderia ser considerado um defeito em outras mas que só lhe acrescentava um ar de autoconfiança, sua beleza física, combinada à inteligência, intimidava os homens. Não que preferissem mulheres feias ou que não apreciassem a inteligência. Mas não sabiam exatamente como poderiam classificá-la: no grupo das mulheres com quem estavam loucos para dormir (as queridinhas), no grupo a quem pediam conselhos (as amiguinhas), ou no grupo com quem eventualmente desejariam casar (as noivinhas). já que era suficientemente sublime para ser todas ao mesmo tempo, acabava não sendo nenhuma. O segundo fator era bem mais complicado, mas também fora de seu controle: os parentes. A família Tchakhmakhchian, em San Francisco, e sua mãe, no Arizona, tinham opiniões diferentes e antagônicas a respeito de quem seria o príncipe encantado de Armanoush. Como vinha passando quase cinco meses ali (férias de verão, feriado da primavera e visitas freqüentes nos fins de semana) e os sete meses remanescentes no Arizona quase todos os anos desde bebê, Armanoush teve a chance de aprender, em primeira mão, o que cada lado esperava dela e como essas expectativas eram totalmente inconciliáveis. Sempre que deixava um dos lados contente, estava condenada a desagradar o outro. A fim de não aborrecer ninguém,

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Armanoush tentava sair com rapazes armênios em San Francisco e com nenhum armênio no Arizona. Mas o destino parecia estar lhe pregando uma peça, porque em San Francisco só havia se sentido atraída por nãoarmênios, enquanto três dos rapazes por quem tivera paixonites no Arizona eram armênios naturalizados americanos, para decepção de sua mãe. Carregando suas ansiedades juntamente com a pesada mochila, atravessou a Opera Plaza enquanto o vento sibilante gemia melodias desagradáveis em seus ouvidos. Avistou um jovem casal no Café Max's Opera que parecia estar decepcionado com os sanduíches de corned beef à sua frente ou então tinha acabado de brigar. "Graças a Deus sou solteira", Armanoush meio que brincou consigo mesma antes de virar para a Turk Street. Anos atrás, quando ainda era adolescente, Armanoush mostrara a cidade a uma garota armênia-americana de Nova York. Ao chegarem naquela rua, a garota contraiu o rosto: "Rua Turco! Eles não estão por toda parte?" Armanoush lembrou sua surpresa com a reação da garota. Tentou explicar que a rua tinha esse nome por causa de Frank Turk, um advogado que ocupara o posto de segundo alcaide e era importante na história da cidade. "Não importa." A amiga interrompera a preleção, sem muito interesse pela história urbana. "Mesmo assim, eles não estão por toda parte?" Sim, realmente estavam por toda parte. Tanto era verdade que um deles casara com sua mãe. Mas Armanoush guardou essa última informação para si. Evitava falar sobre o padrasto com os amigos armênios. Não falava sobre ele com os não-armênios também. Nem mesmo com os que não tinham absolutamente nenhum interesse afora suas próprias vidas e por isso não davam a mínima para a história do conflito entre armênios e turcos. Mesmo assim, esperta o suficiente para saber que os segredos podem se espalhar mais rapidamente do que poeira ao vento, Armanoush mantinha silêncio. Quando não se contava a ninguém o extraordinário, todos presumiam o normal, descobrira Armanoush em tenra idade. Já que sua mãe era uma odar, o que seria mais normal para ela do que se casar com outro odar? Sendo essa a suposição de seus amigos, o padrasto de Armanoush era considerado americano, provavelmente do Meio-Oeste. Na Turk Street, passou por uma pousada GLS, um armazém do Oriente Médio, um pequeno mercado tailandês e caminhou junto a pedestres de todas as classes até finalmente tomar o bonde para Russian Hili. Apoiando a cabeça na janela empoeirada, refletiu sobre o "outro eu" no Labirinto de Borges enquanto observava as pequenas porções de nevoeiro perderem-se no

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horizonte. Armanoush também tinha outro eu, que ela conservava à distância, não importando para onde fosse. Gostava de estar naquela cidade, sua energia e vigor lhe pulsando no corpo. Desde muito pequena, gostava de ir para lá e morar com seu pai e a avó Shushan. Ao contrário da mãe, o pai não casara de novo. Armanoush sabia que ele tivera namoradas no passado, mas nenhuma lhe fora apresentada - ou porque os casos não eram suficientemente sérios ou porque o pai temia aborrecê-la de algum modo. Provavelmente fora o segundo motivo. Seria típico de Barsam Tchakhmakhchian. Era a alma menos egoísta e o homem mais sem gênero da face da Terra, acreditava Armanoush, e até aquele dia não podia deixar de se maravilhar como ele poderia ter terminado com uma mulher tão voltada para si mesma como Rose. Não que Armanoush não a amasse; amava-a a seu próprio modo, mas em certos momentos sentia-se sufocada pelo amor insatisfeito da mãe. Naquela época, fugia para San Francisco e caía direto nos braços da família Tchakhmakhchian, onde um amor satisfeito mas igualmente exigente a esperava. Ao saltar do bonde, pôs-se a andar depressa. Matt Hassinger a pegaria às 7h30 da noite. Tinha menos de uma hora e meia para se aprontar, o que basicamente significava tomar uma chuveirada e pôr um vestido, talvez o turquesa que todos diziam lhe cair bem. Só. Nenhuma maquiagem, nenhuma jóia. Não se embonecaria toda para aquele encontro e certamente não esperaria muito dele. Se tudo corresse bem, ótimo. Se não, estaria preparada da mesma maneira. Assim, abrindo caminho no nevoeiro que cobria a cidade, às 6h10 da noite Armanoush chegou ao condomínio de dois banheiros pertencente à avó em Russian Hili, um bairro animado, construído numa das colinas mais íngremes de San Francisco. - Olá, meu bem, bem-vinda ao lar! Para sua surpresa, não foi a avó e sim tia Surpun quem abriu a porta. - Estava com saudade - disse a tia amorosamente. - O que fez durante o dia todo? Como foi seu dia? - Foi bom - disse placidamente Armanoush, cogitando o que sua tia mais nova estaria fazendo ali numa noite de terça-feira. Tia Surpun morava em Berkeley, onde sempre lecionara, pelo menos desde que Armanoush era criança. Vinha de carro a San Francisco nos fins de semana, mas era muito raro que aparecesse durante a semana. A questão, porém, deixou de interessar Armanoush quando esta começou a fazer um relato do seu dia. Entusiasmada, comentou com um rosto radiante: - Comprei alguns livros para mim. - Livros?! Ela disse "livros" de novo? - berrou uma voz familiar lá de dentro. Parecia a voz de tia Varsenig! Armanoush pendurou

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o casaco, ajeitou o cabelo despenteado pelo vento e imaginou o que tia Varsenig estaria fazendo ali também. Suas filhas gêmeas estavam voltando naquela noite de Los Angeles, onde haviam participado de um torneio de basquete. Tia Varsenig ficara tão animada com a competição que não conseguira dormir direito nos últimos três dias, tagarelando constantemente ao telefone com as filhas ou com seu treinador. E mesmo assim, no dia em que o time voltava, em vez de chegar ao aeroporto horas antes, como sempre fazia, estava na casa da avó Shushan pondo a mesa do jantar. - É, eu disse "livros" - confirmou Armanoush, carregando nos ombros a mochila de lona enquanto entrava na sala espaçosa. - Não dê atenção a ela. Está ficando velha e resmungona - arrulhou tia Surpun atrás de Armanoush ao segui-la pela sala. - Estamos orgulhosas de você, meu bem.- Claro que estamos orgulhosas, mas mesmo assim Armanoush podia se comportar como alguém de sua idade. - Tia Varsenig encolheu os ombros ao colocar o último prato de porcelana na mesa e então deu um abraço na sobrinha. - Meninas dessa idade geralmente tratam de se embelezar. Não que precise disso, claro, mas se você só ficar lendo, lendo e lendo... Onde é que isso vai parar? - Sabe, livro é diferente de filme, não tem nenhum THE END no final. Depois que leio um livro, não sinto como se terminasse alguma coisa. Então começo outro. - Armanoush piscou para a tia, sem saber como estava bonita sob a luz do sol poente que entrava na sala. Pôs a mochila na poltrona da avó e imediatamente a esvaziou, como uma criança ansiosa para ver um monte de brinquedos novos. O Aleph e outras histórias, Uma conspiração de estúpidos, A Frolic of His Own, O gerenciamento do luto, Ficções, de Borges, Narciso e Goldmund, Os reis do mambo tocam canções de amor, Paisagem pintada com chá, Yellow Woman and a Beauty of the Spirit, e dojs de Milan Kundera, seu autor preferido: O livro do riso e do esquecimento e A vida está em outro lugar. Alguns eram novos para ela, outros havia lido há anos mas queria ler de novo. Considerando-se tudo, Armanoush sabia, talvez não de modo racional mas instintivamente, que a resistência da família Tchakhmakhchian à sua paixão por livros vinha de uma fonte mais profunda e sombria do que simplesmente do impulso de lembrá-la das coisas que uma garota de sua idade fazia. Não era só por ser mulher, mas também por ser armênia que esperavam que evitasse se tornar uma bibliófila. Tinha a sensação de que, sob a constante objeção de tia Varsenig à sua leitura, jazia uma preocupação mais estrutural, se não primordial: temor pela

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sobrevivência. Ela não queria que a sobrinha brilhasse demais, se destacasse do rebanho. Escritores, poetas, artistas, intelectuais tinham sido os primeiros no meio secular armênio a serem eliminados pelo antigo governo otomano. Primeiro, tinham se livrado dos "cérebros", e só depois extraditaram o resto - os leigos. Como tantas famílias armênias em diáspora, sãs e salvas onde estavam mas nunca verdadeiramente à vontade, os Tchakhmakhchian ficavam ao 105 mesmo tempo exultantes e irritados quando uma filha sua lia demais, pensava demais e se afastava demais do comum. Embora os livros fossem potencialmente prejudiciais, os romances eram os mais perigosos de todos. O caminho da ficção poderia facilmente conduzir erroneamente para um universo de histórias onde tudo era fluido, quixotesco e tão aberto a surpresas quanto uma noite sem lua no deserto. Antes que se desse conta, a pessoa poderia ser arrastada a ponto de perder contato com a realidade - aquela estrita e sólida verdade - da qual nenhuma minoria deve se afastar muito para não acabar vulnerável quando os ventos mudassem e o mau tempo chegasse. A ingenuidade de achar que as coisas não ficariam ruins não ajudava nem um pouco, pois os maus tempos sempre chegavam. A imaginação era uma mágica perigosamente cativante para aqueles que eram obrigados a ser realistas, e as palavras podiam ser venenosas para os que se destinavam sempre a ser silenciados. Se, como filho de sobreviventes, a pessoa ainda quisesse ler e ruminar, devia fazê-lo de modo quieto, apreensivo e introspectivo, nunca se transformando num leitor vociferante. Se não pudesse evitar ter aspirações mais elevadas na vida, devia ao menos cultivar desejos simples, reduzidos em paixão e ambição, como se tivesse sido desenergizada e só tivesse forças para ser mediana. Com um destino e uma família como aquela, Armanoush tinha que aprender a não exibir seus talentos e fazer o máximo para não brilhar demais. Um cheiro forte e picante evolou-se da cozinha, estimulando suas narinas e arrancando-a do devaneio. - Então - exclamou Armanoush, virando-se para a mais falastrona das três tias -, vai ficar para jantar? - Bem rápido, meu bem - murmurou tia Varsenig. - Preciso ir para o aeroporto logo; as gêmeas voltam hoje. Só parei para trazer manti feito em casa para vocês e... imagina só! - Tia Varsenig irradiava de orgulho. - Conseguimos bastirma de Yerevan! - Nossa, não vou comer manti e definitivamente não vou comer bastirma. - Armanoush franziu as sobrancelhas. - Não posso feder a alho esta noite. - Não tem problema. Se escovar os dentes e mascar chiclete de menta fica

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sem cheiro nenhum. Tia Zarouhi entrou então com uma bandeja de rnusaqqa, caprichosamente decorada com salsa e fatias de limão. Depositou a bandeja na mesa e abriu amplamente os braços para saudar a sobrinha. Armanoush recebeu o abraço, cogitando o tempo todo o que ela estaria fazendo ali... Mas começava a compreender. Que "coincidência" planejada era aquela, fazendo toda a família Tchakhmakhchian materializar-se na casa de avó Shushan quando Armanoush ia sair com um rapaz? Todas tinham dado um pretexto diferente, mas exatamente com o mesmo objetivo: queriam ver, testar e julgar com seus próprios olhos esse Matt Hassinger, o sortudo que sairia com a menina dos olhos delas naquela noite. Armanoush encarou as parentas com um olhar fixo que beirava o desespero. O que podia fazer? Como ser independente com as tias tão assustadoramente próximas? Como convencê-las de que não precisavam se preocupar tanto com ela, quando tinham tanto na vida com que se preocupar? Como poderia se libertar de sua herança étnica, especialmente quando parte de si tinha tanto orgulho disso? Como se podia lutar contra a bondade dos entes queridos? Podia-se lutar contra a bondade? - Isso não vai adiantar! - Armanoush engoliu em seco. - Nem pasta de dente, nem goma de mascar, nem aqueles horríveis líquidos de bochechar com gosto de menta... Não há nada na Terra forte o suficiente para fazer desaparecer o cheiro de bastirma. Ele leva uma semana para sumir. Se a gente come bastirma, transpira, respira e tem cheiro de bastirma por dias a fio. Até o xixi cheira a bastirma!

- O que o xixi tem a ver com o encontro? Armanoush ouviu tia Varsenig sussurrar confusa para tia Surpun logo que virou as costas. Ainda protestando, mas sem vontade de discutir com as tias, Armanoush dirigiu-se ao banheiro e deparou-se ali com tio Dikran, sua cabeça dentro do armário debaixo da pia, aquele homem corpulento de quatro no chão. 107 - Tio? - Armanoush quase gritou. - Olá! - exclamou Dikran Stamboulian, de dentro do armário. - Esta casa está cheia de personagens de Tchecov - murmurou Armanoush para si mesma. - Se você diz... - ecoou uma voz sob a pia. - Tio, o que você está fazendo? - Sua avó sempre se queixa das torneiras velhas da casa. Então, esta noite eu me perguntei: por que não fecho a loja cedo, passo na Shushan e conserto os danados dos canos? - É, estou vendo - observou Armanoush, segurando o riso. - Por falar nisso, onde ela está? - Tirando uma soneca. - Dikran se torceu para fora do armário para pegar uma ferramenta e arrastou-se para lá novamente.

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- A velhice... o que se pode fazer? O corpo precisa de sono! Mas ela vai acordar antes das 7h30, não se preocupe.Sete e meia! A impressão é que todas as pessoas da família tinham posto o alarme biológico para soar no momento em que Matt Hassinger tocasse a campainha.- Me dá a chave inglesa mais lisa, por favor? - pediu ele com uma voz frustrada. - Acho que esta aqui não está funcionando.Armanoush fez um bico para a bolsa no chão, onde cintilavam mais de cem ferramentas de todos os tamanhos. Então passou ao tio uma tenaz, um mandril e uma bomba hidrostática HTP300 de teste antes de encontrar, por acaso, a chave inglesa. Agourentamente, aquela chave inglesa também mostrou que "não funcionava". Vendo a impossibilidade de tomar uma chuveirada com tio Dikran, o Bombeiro Impossível trabalhando ali, Armanoush foi para o quarto da avó, abriu ligeiramente a porta e espiou.Lá estava ela dormindo levemente, mas com a bem-aventurada placidez encontrada apenas nas mulheres idosas que são rodeadas por filhos e netos. Uma mulher miúda, que sempre tivera um corpo frágil e problemas demais para enfrentar, Shushan fora diminuída e afinada pela velhice. À medida que envelhecera, passara a precisar cada vez mais de sono durante o dia. À noite, no entanto, estava desperta como sempre. A velhice não diminuíra nem um pouco a insônia de Shushan. O passado não a deixava dormir por muito tempo, pensava a família; permitia-lhe apenas essas sonecas fugidias. Armanoush fechou a porta e deixou-a dormir. Ao voltar para a sala, a mesa estava posta. Tinham posto também um prato para ela. Armanoush pensou como poderiam querer que ela comesse se sairia para um encontro em menos de uma hora, mas preferiu não perguntar. Ser racional naquela família era um equívoco estúpido. Poderia beliscar um pouquinho para todos ficarem felizes. Além disso, gostava daquela culinária. Sua mãe, no Arizona, queria manter a comida armênia o mais longe possível de sua cozinha e adorava falar mal dela para vizinhos e amigos. Gostava principalmente de chamar a atenção para dois pratos, que depreciava publicamente em todas as ocasiões possíveis: pés de vitelo cozidos e intestinos recheados. Armanoush lembrou como Rose se queixara certa vez à sra. Grinnell, sua vizinha de porta. - Que horror - exclamou a sra. Grinnell com um traço de nojo escalando-lhe a voz. - Eles comem intestinos mesmo? - Comem sim. - Rose balançou afirmativamente a cabeça com vigor. - Acredite em mim. Eles o temperam com alho e ervas, recheiam com arroz e engolem aquilo. As duas

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mulheres deixaram escapar uma risada condescendente e meio espremida, e provavelmente teriam rido mais se naquele momento o padrasto de Armanoush não se virasse para elas e, com um olhar afiado, observasse: - Grande coisa! Parece muito com mumbar. Você devia experimentar um dia, é muito bom. - Ele é armênio também? - sussurrou a sra. Grinnell quando Mustafá saiu da sala. - Claro que não - respondeu Rose, sua voz diminuindo. - É que eles têm algumas coisas em comum.A CAMPAINHA TOCOU, arrebatando Armanoush de seu transe e fazendo todos darem um pulo de susto. Não eram nem sete horas ainda. Aparentemente, a pontualidade não era uma das qualidades de Matt Hassinger. Como acionadas por um botão, as três tias correram para a porta, mas pararam antes de abri-la. Tio Dikran bateu com a cabeça no armário onde ainda estava trabalhando e avó Shushan abriu os olhos, assustada. Só Armanoush continuou calma e composta. Em passos deliberadamente controlados, foi até a porta e abriu-a sob o olhar fixo das tias. - Papai!!! - cantarolou Armanoush, encantada. - Achei que você tivesse uma reunião esta noite. Por que está em casa tão cedo? Entretanto, antes de chegar ao final da pergunta, Armanoush já sabia a resposta. Barsam Tchakhmakhchian abriu seu suave sorriso de covinhas e abraçou a filha, os olhos brilhando de orgulho e uma certa ansiedade: - É., mas não adiantou, tivemos que remarcar a reunião - disse para Armanoush. Depois que esta se afastou, Barsam murmurou para as irmãs: - Ele já chegou? Os últimos trinta minutos antes da chegada de Matt Hassinger foram marcados por uma apreensão crescente em todos, exceto em Armanoush. Fizeram-na colocar vários vestidos e desfilar na frente deles até chegarem unilateralmente a uma decisão: o vestido turquesa. A roupa foi realçada com brincos combinando, uma bolsinha vinho enfeitada de contas que tia Varsenig afirmava dar um toque feminino, e um cardigã felpudo azul-marinho para o caso de fazer frio. Aquilo era outra coisa que Armanoush sabia que não deveria questionar. De algum modo, o mundo fora da casa da família tinha uma característica ártica aos olhos dos Tchakhmakhchian. "Fora" significava "terra fria", e para visitá-la era preciso levar um cardigã, preferivelmente tricotado à mão. Em parte, Armanoush sabia disso desde a infância, tendo passado seus verdes anos sob os grossos cobertores que a avó tricotava para ela com suas iniciais bordadas nas extremidades. Dormir sem nada cobrindo o corpo era simplesmente impensável, e sair à rua sem um cardigã seria um erro estúpido. Da mesma forma que uma casa precisava de um telhado acima das cabeças, os seres humanos precisavam

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de uma pele adicional entre eles e o resto do mundo para se sentirem seguros e aquecidos. Depois de Armanoush concordar em vestir o cardigã e encerrar o assunto da roupa, eles apresentaram outra demanda, fundamentalmente paradoxal, mas não para os Tchakhrnakhchian. Queriam sentar-se com ela à mesa e comer, para que ela pudesse estar pronta e forte para o jantar daquela noite. - Mas querida, você está comendo como um passarinho. Não diga que não vai nem experimentar meu manti - gemeu tia Varseníg, com uma concha na mão e um desalento tão grande nos olhos castanho-escuros que fez Armanoush pensar se haveria algo mais importante na vida que uma tigela de manti. Tia, eu não posso - suspirou Armanoush. - Você já encheu meu prato de khadayzf. Deixe eu terminar isto aqui, é mais do que suficiente. Bem, você não quer cheirar a carne e alho - ralhou tia Surpun, com um toque de malícia na voz. - Então lhe servimos o ekmek khadayif. Assim, seu hálito vai ter cheiro de pistache. - Eu não quero ficar com cheiro de pistache! - Armanoush arregalou os olhos em desespero e virou-se para o pai, lançando um sinal de desânimo na expectativa de ser salva. No entanto, antes que Barsam Tchakhmakhchian pudesse pronunciar uma palavra, o celular de Armanoush tocou uma música clássica de Tchaikovsky: a "Dança da fada do açúcar". Ela atendeu o telefone e fez um biquinho para a pequena tela. Número restrito. Podia ser qualquer um. Até Matt Hassinger, ligando para lhe dar uma desculpa esfarrapada e cancelar o jantar daquela noite. Armanoush ficou parada ali, segurando o telefone desconfortavelmente. Atendeu no quarto toque, esperando que não fosse a mãe. Era. - Querida, estão tratando você bem? - Foi a primeira coisa que a mãe perguntou. - Estão, mamãe - murmurou Armanoush atonicamente. Já estava acostumada com aquilo. Desde criança, sempre que ficava 111 na casa dos Tchakhmakhchian, a mãe agia como se a vida da filha corresse perigo. - Amy, não me diga que você ainda está em casa? Armanoush estava relativamente acostumada com aquilo também. Desde o dia em que os pais se separaram, uma separação diferente ocorrera entre a mãe e o nome da filha. Deixara de chamá-la "Armanoush", como se precisasse rebatizar a filha para continuar a amá-la. Até aquele dia, Armanoush não contara a ninguém da família do pai sobre a mudança de nome. Às vezes, as coisas tinham de ser mantidas em segredo, e havia muitas assim na vida da moça. - Por que não responde? - insistiu a mãe. - Não ia sair hoje à noite? Armanoush fez uma pausa, plenamente consciente de que todos na sala estavam ouvindo. - Sim, mamãe. - Foi tudo que disse depois de um

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constrangido intervalo. - Não mudou de idéia, não é? - Não, mamãe. Mas por que você tem um número restrito? - Bem, tenho meus motivos, exatamente como qualquer mãe. Você nem sempre atende meus telefonemas quando sabe que sou eu. - A voz de Rose minguou desoladamente, mas aumentou de novo. - Matt vai conhecer a família? - Sim, mamãe. - Não diga! É o pior erro de todos! Vão apavorá-lo! Ah, suas tias, você não as conhece... Você é uma menina tão boa que não vê o mal. Elas vão aterrorizar o pobre rapaz com suas perguntas e interrogatórios. Armanoush ficou em silêncio. Ouviu assobios bizarros na linha e suspeitou que a mãe estivesse escovando o cabelo enquanto desferia suas chicotadas verbais. - Querida, por que não diz alguma coisa? Eles estão aí? - perguntou Rose. Houve outro ruído abafado, mas o som não era mais como escovadelas. Parecia mais um objeto esponjoso caindo dentro de um líquido ou mais precisamente uma colherada de massa de panqueca jogada numa frigideira quente.- Ah, por que estou perguntando o óbvio? Claro que estão. Todos eles, aposto. Ainda me odeiam, não é? Armanoush não tinha resposta. Podia imaginar Rose na escuridão da cozinha, com os armários laminados cor salmão-claro que planejava reformar mas sem ter nunca o dinheiro ou o tempo para fazê-lo, o cabelo preso num coque frouxo, o telefone sem fio grudado à orelha, uma espátula na outra mão, fazendo uma pilha de panquecas como se houvesse um exército de crianças em casa, mas que comeria sozinha no final do dia. Podia ver também o padrasto, Mustafá Kazanci, sentado na mesa da cozinha, mexendo uma xícara de café-com-leite enquanto folheava o Arizona Daiiy Star. Após a formatura na Universidade do Arizona e o casamento com Rose, Mustafá começara a trabalhar numa companhia de minério na região, e até onde Armanoush sabia, ele gostava do mundo das rochas e pedras mais do que de qualquer outra coisa. Não era um mau homem; era apenas um pouco tedioso. Parecia não ter paixão por coisa alguma na vida. Nunca mais havia voltado a Istambul, embora tivesse família lá. Às vezes, Armanoush tinha a impressão de que ele desejava distanciar-se do passado, mas ela desconhecia o motivo disso. Algumas vezes tentara conversar com ele sobre 1915 e o que os turcos tinham feito aos armênios. "Não sei muito sobre essas coisas", respondera Mustafá, calando-a de um modo gentil mas também severo. "É tudo História. Você devia conversar com historiadores." - Amy, você vai falar comigo ou não? - perguntou Rose, agora írritada. - Mamãe, tenho que desligar. Ligo para você mais tarde.

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- Houve um dique abrupto acompanhado por um zumbido no telefone, como se a mãe tivesse colocado outra porção de massa de panqueca na frigideira ou tivesse deixado escapar um arroto. Armanoush preferiu pensar na primeira opção. Totalmente irritada, voltou para a mesa e sentou-se de novo. Pegando a colher e evitando encarar os outros, começou a engolir o que estava à sua frente mas que não era o que queria. Só após algumas colheradas percebeu o equívoco.- Por que estou comendo manti?! exclamou Armanoush. - Não sei, meu bem - respondeu tia Varsenig, olhando-a fixa e amedrontadamente, como se a sobrinha fosse uma criatura nova para ela. - Coloquei-o aí no caso de você querer experimentar. E parece que experimentou. Então Armanoush teve vontade de chorar. Pediu licença para sair da mesa e enfiou-se no banheiro para escovar os dentes, lamentando profundamente aquele encontro tolo. À frente do espelho, com um tubo de pasta de dentes meio espremido na mão, tinha o olhar de quem estava prestes a abandonar a sociedade e se tornar um eremita para sempre em alguma montanha perdida. O que podia fazer uma pasta de dentes Colgate Branco Total contra o infame manti? E se ligasse para Matt Hassinger e cancelasse tudo? Só queria ficar na cama, entregue ao desespero, e ler os romances que comprara. Ler e ler até que seu nariz sangrasse e os olhos caíssem. Era tudo que queria. - Você devia ter ficado na cama e lido seus romances - repreendeu o rosto familiar no espelho. - Bobagem! - Tia Zarouhi acabara de se materializar perto dela no espelho. - Você é uma moça bonita que merece o melhor homem do mundo. Agora vamos ver um pouco de glamour feminino. Ponha um pouco de batom, mocinha! Ela obedeceu. A parte de baixo do batom não dizia glamour feminino, mas, com as palavras CHERRY GLAMOUR, passava perto. Armanoush aplicou o batom generosamente para imediatamente enxugá-lo com um guardanapo e retirar a maior parte dele. Foi naquele exato momento que se ouviu a campainha da porta. Sete e trinta e dois! A pontualidade estava entre as qualidades do rapaz, afinal de contas. Um minuto depois, Armanoush sorria para um Matt Hassinger cuidadosamente vestido, visivelmente animado e um tanto perplexo de pé na porta. Era três anos mais novo do que ela; um fato trivial que Armanoush não havia visto necessidade de contar a ninguém, mas que estava muito evidente no rosto dele agora. Ou porque fizera algo diferente no cabelo aparado ou porque usava roupas que 114 normalmente não usaria - um biazer de pele de carneiro marrom- escuro e calças amarelas Ralph Lauren -, Matt Hassinger parecia um adolescente vestido

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de adulto. Entrou com um grande buquê de tulipas escarlates na mão esquerda, sorriu para Armanoush, notou a platéia ao fundo e congelou. Toda a família Tchakhmakhchian enfileirava-se atrás de Armanoush. - Entre, rapaz - disse tia Varsenig com seu tom mais encorajador, que era também o mais intimidador. Matt Hassinger apertou a mão de cada membro da família, sentindo seus olhares inquisitivos varrerem-lhe o rosto. Perdeu a auto-confiança e começou a transpirar. Alguém pegou as flores e outra pessoa recolheu seu biazer. Sem o casaco, parecendo um pavão depenado, andou desajeitadamente para a sala e jogou-se na primeira cadeira à sua frente. Todos se sentaram por perto, formando uma meia-lua em torno dele, e trocaram algumas palavras sobre o tempo, sobre o curso de Matt (estava na faculdade de direito, o que podia ser bom ou ruim), sobre sua família (era filho único, o que podia ser bom ou ruim), sobre seus pais (também advogados, o que podia ser bom ou ruim), sobre seu conhecimento a respeito dos armênios (pouco, o que era ruim, mas estava ansioso para aprender, o que era bom), e depois voltaram a falar sobre o tempo antes que um irritante silêncio se instalasse. Por quase cinco minutos ninguém disse uma palavra, mas todos sorriam radiantes como se tivessem algo alojado na garganta e achassem isso engraçado. Desse estágio constrangido, estavam prestes a desembocar num impasse deprimente quando ouviu-se de novo a "Dança da fada do açúcar". Armanoush examinou a tela: número restrito. Então desligou o telefone, colocando-o para vibrar. Ergueu as sobrancelhas e torceu os lábios para Matt, como se lhe dissesse "não tem importância", o que nem o rapaz nem os outros entenderam. Às 7h45 da noite, Armanoush Tchakhmakhchian e Matt Hassinger estavam finalmente do lado de fora, deslizando rapidamente pela Hyde Street num Suzuki Verona vermelho veneziano, dirigindo-se ao restaurante de que Matt ouvira muito falar e que imaginava ser bonitinho e romântico: o Skewed Window.- Espero que goste de fusion asiática com um toque de influência caribenha. - Matt deu uma risadinha, divertido com as próprias palavras. - O lugar é altamente recomendável. "Altamente recomendável" não era um critério para Armanoush, principalmente porque sempre fora cautelosa com os best-sellers "altamente recomendáveis". Mesmo assim não fez objeções, esperando que seu cinismo fosse corrigido no final da noite. Isso, entretanto, passou longe da realidade. Popular local de reunião para artistas e intelectuais urbanos, o Skewed Window era tudo menos um restaurante bonitinho e romântico. Era um armazém com teto alto estilo

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galpão, luzes pendentes art déco e paredes nas quais cintilavam exemplos de arte abstrata contemporânea. Vestidos de negro da cabeça aos pés, os garçons corriam por ali como uma colônia de formigas que tinha acabado de descobrir uma pilha de açúcar granulado. A colônia de garçons servia pratos engenhosamente criados, sabendo que o cliente atual logo seria substituído por outro, provavelmente alguém que daria uma gorjeta melhor. Quanto ao cardápio, era simplesmente incompreensível. Como se as descrições já não causassem bastante perplexidade, cada prato era modelado, enfeitado e guarnecido como se aludisse a uma determinada pintura expressionista abstrata. O chef holandês do Skewed Window tinha três aspirações na vida: tornar-se filósofo, pintor e chef de restaurante. Tendo fracassado tanto na filosofia quanto na arte durante a juventude, não via motivo para não levar seus talentos não apreciados à cozinha. Assim, orgulhava-se de rematerializar o abstrato e de reinserir no corpo humano a obra de arte que surgira do desejo do artista de exteriorizar seu estado emocional interior. No Skewed Window, o jantar era mais filosófico que culinário, e considerava-se o ato de comer como orientado não pelo ímpeto primordial de encher o estômago ou saciar a fome, mas sim por uma sublime dança com a catarse. Após várias tentativas sem êxito de escolher o que comeriam, Armanoush decidira-se por tartare de atum ahi encrustado de sésamo com foje gras yakiniku, e Matt resolvera tentar uma costela de primeira qualidade com molho de creme de mostarda condimentada num leito de vinagrete de maracujá e batata doce. Sem saber o vinho que combinaria com os pratos mas querendo causar boa impressão, Matt examinou a carta e, após cinco minutos de confusão, fez o que sempre fazia quando não tinha nenhuma idéia do que escolher: escolheu um vinho pelo seu preço. Um Cabernet Sauvignon 1997 parecia perfeito, suficientemente caro mas dentro de suas possibilidades. Portanto, fazendo os pedidos, tentaram interpretar o que os garçons pensavam das duas escolhas por aquele que os servia, mas só encontraram nele uma página em branco de polidez profissional. Conversaram um pouco; ele sobre a carreira vindoura, ela sobre a infância que gostaria de destruir; ele sobre os planos futuros, ela sobre os traços do passado; ele sobre suas expectativas na vida, ela sobre as lembranças familiares. A fada do açúcar começou a dançar quando estavam prestes a embarcar em outro assunto. Armanoush examinou o número impacientemente. Não era conhecido e também não era restrito. Então atendeu. Amy, onde você está?

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Estarrecida, Arrnanoush balbuciou: - Ma-mãe! Como você.., como está com um número diferente agora? - Ah, é porque estou ligando do celular da sra. Grinnell - admitiu Rose. Eu não precisaria me dar a esse trabalho se você atendesse às minhas ligações, claro. Armanoush pestanejou vaziamente ao observar o garçom depositar diante dela um prato de comida de aparência peculiar, composto de tons vermelho, bege e branco. Em meio a um molho que se assemelhava a pinceladas borradas, estavam três pedaços esféricos de atum cru e vermelho e uma gema de ovo amarelo brilhante, formando no conjunto um rosto triste de olhos vazios. Ainda segurando o celular junto à orelha mas já sem ouvir a mãe, Armanoush contraiu os lábios, como se estivesse tentando descobrir como comer um rosto. - Arny, por que não responde? Eu não sou sua mãe? Não pode me dar metade da atenção que dá aos Tchakhmakhchian?- Mamãe, por favor - disse Armanoush, porque a pergunta só poderia ser respondida implorando à mãe que não a fizesse. Ela curvou os ombros, como se o peso do corpo tivesse dobrado. Por que era tão difícil se comunicar com a mãe? Com uma rápida desculpa e a promessa de ligar para ela assim que chegasse em casa, Armanoush encerrou a ligação e desligou o celular. Olhou furtivamente para Matt para ver se ele se incomodara com o telefonema, mas vendo-o ainda examinar a própria comida resolveu não se preocupar. O prato de Matt não era redondo e sim retangular, e o alimento dividia-se em duas partes separadas por uma perfeita linha reta de creme de mostarda. O desenho e as cores o surpreendiam menos que o arranjo imaculado. Engoliu em seco, como se temesse estragar o retângulo perfeito. Seus pratos eram réplicas de duas pinturas expressionistas. O de Armanoush baseava-se numa pintura de Francesco Boretti, cujo título era A puta cega. O de Matt fora inspirado num dos quadros de Mark Rothko e era apropriadamente intitulado Sem título. Tão absortos nos pratos estavam os dois que não ouviram o garçom perguntar se estava tudo bem. O resto da noite foi agradável, mas só até onde a palavra agradável alcançava. A comida revelou-se deliciosa e rapidamente se acostumaram a devorar obras de arte, a tal ponto que, quando as sobremesas chegaram, Matt não teve problema em estragar os vacínios impecavelmente alinhados no Azuis de abril trazem amarelos de maio, de Peter Kitchell, e Armanoush não hesitou em enfiar energicamente a colher no molho trêmulo e aveludado representando a Substância resplendente, de Jackson Pollock. Mas quanto à conversa, não conseguiam fazer metade do progresso que tinham conseguido comendo. Não que Armanoush não gostasse de estar com

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Matt ou não o achasse atraente. Mas faltava algo crucial, não como um detalhe ausente do todo, mas como se o todo se dissolvesse em pedaços sem a parte que faltava. Talvez fosse uma comida filosófica demais. De qualquer modo, Armanoush entendera seus limites; para ela, era impossível apaixonar-se por Matt Hassinger. Após fazer tal descoberta, parou de se questionar e seu interesse por ele foi substituído por pura simpatia. Voltando para casa, os dois pararam o carro e caminharam pela Columbus Avenue, pensativos e silenciosos. A brisa soprava, e por um momento fugaz Armanoush sentiu a lufada penetrante e salgada do mar, ansiando por estar à beira d’água, desejando fugir daquele momento. Diante da livraria "City Lights", porém, não pôde deixar de se animar ao ver um de seus livros preferidos na vitrine: Um túmulo para Bons Davidovich. - Ah, você já leu esse livro? É fantástico! - irrompeu. Depois de ouvir um sonoro "não", começou a descrever o primeiro conto do livro e depois todos os sete. Como acreditava sinceramente que a obra não poderia ser entendida totalmente sem se mapear primeiro o acidentado terreno da literatura da Europa Oriental, aproximadamente nos dez minutos seguintes Armanoush Tchakhmakhchian discorreu sobre ela, quebrando a promessa feita à mãe naquela mesma manhã de não dar um pio sobre livros - pelo menos não no primeiro encontro. Já de volta a Russian Hill, em frente ao condomínio da avó Shushan, os dois se encararam, sabendo que a noite chegara ao fim, ansiosos para terminá-la melhor do que a noite anterior, da única forma que podiam imaginar. Isso significava um beijo de verdade, há muito esperado e fantasiado. Em vez disso, o beijo que houve foi gentil, selado com compaixão por parte de Armanoush e admiração por parte de Matt, já que ambos estavam a quilômetros de distância de sentir qualquer paixão. - Sabe o que eu quis lhe dizer a noite toda? - gaguejou Matt, como sobrecarregado com a desconfortável verdade que estava prestes a confessar. - Você tem um cheiro incrível... É pouco comum e exótico... Exatamente de... - De quê? - Armanoush empalideceu quando a visão de um prato de manti fumegante pipocou-lhe na mente. Matt Hassinger pôs um braço em torno dela e sussurrou: - Pistache... É, você cheira a pistache.Às 11h15 da noite, Armanoush pescava um molho de chaves para abrir as muitas fechaduras da porta de avó Shushan, temendo, nesse meio-tempo, encontrar a família inteira na sala falando sobre política, tomando chá e comendo frutas, à sua espera. Mas a casa estava escura e vazia, O pai

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e a avó dormiam e todos já tinham ido embora. Na mesa, viu um prato com duas maçãs e duas laranjas cuidadosamente descascadas e aparentemente deixadas para ela comer. Armanoush pegou uma das maçãs, agora escurecida do lado de fora. Seu coração se entristeceu. Na lúgubre serenidade da noite, mordiscou a maçã sentindo-se triste e cansada. Logo teria de voltar ao Arizona, mas não estava certa se podia agüentar o universo sufocante da mãe. Embora gostasse de San Francisco e talvez pudesse tirar um semestre de folga para ficar com o pai e a avó Shushan, também sentia que algo estava ausente ali, que faltava uma parte de sua identidade, sem a qual não podia começar a viver sua própria vida. O desbotado encontro com Matt Hassinger só servira para reforçar aquela sensação. Agora sentia-se mais sábia, mais consciente da situação, porém entristecida pelo preço dessa consciência. Chutou longe os sapatos e se apressou para o quarto levando a maçã consigo. Lá, prendeu o cabelo num rabo-de-cavalo, tirou o vestido turquesa e deixou o pijama de seda comprado em Chinatown deslizar por seu corpo. Quando estava pronta, fechou a porta do quarto e imediatamente ligou o computador. Passaram-se apenas alguns minutos até chegar ao único refúgio seguro para onde podia escapar em momentos assim: o Café Constantinópolis. O Café Constantinópolis era uma sala de bate-papo, ou, como o chamavam seus freqüentadores, um cibercafé, inicialmente criado por um monte de greco-americanos, sefarditas-americanos e armênios-americanos que, além de serem nova-iorquinos, tinham algo fundamental em comum: eram todos netos de famílias que tinham vivido outrora em Istambul. O site abria-se com uma melodia familiar: "Istambul era Constantinopla / Hoje é Istambul, não Constantinopla..." Com a melodia, surgia a silhueta da cidade, encimada pelos tons bruxuleantes do poente, véus e mais véus de ametista, negro e amarelo. No meio da tela havia uma seta piscando para indicar onde clicar para entrar na sala de bate-papo. Era preciso usar uma senha para continuar. Da mesma forma que muitos cafés da vida real, aquele era teoricamente aberto a todos, mas na prática reservado a freqüentadores regulares. De acordo com isso, embora inúmeros visitantes desavisados aparecessem dia sim, dia não, o grupo principal continuava mais ou menos o mesmo. Depois que se digitava a senha com sucesso, a silhueta dissolvia-se gradualmente ao fundo, abrindo-se como a cortina de veludo de um teatro antes da peça começar. Enquanto se entrava no cibercafé, ouviam-se os sinos bimbalhando e de novo a mesma melodia, só que desta vez à

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distância, como pano de fundo. Lá dentro, Armanoush descartou as salas dos Solteirosarmênios, dos Solteirosgregos, dos Somostodossolteiros e digitou Árvore de Anoush - uma sala onde só freqüentadores assíduos e com interesses intelectuais se encontravam. Arrnanoush descobrira o grupo há dez meses e, desde então, fora um membro regular dele, participando do debate quase diariamente. Embora alguns membros ocasionalmente entrassem durante o dia, os verdadeiros debates sempre ocorriam à noite, quando a agitação da rotina diária já terminara. Armanoush gostava de imaginar a sala como um bar encardido e enfumaçado onde ela parava habitualmente a caminho de casa. Da mesma forma, o Café Constantinópolis era um santuário onde você podia esquecer seu verdadeiro e monótono eu na entrada, como se deixasse uma capa de chuva encharcada no vestíbulo. A seção Árvore de Anoush do Café Constantinopla consistia em sete membros permanentes, cinco armênios e dois gregos. Não se conheciam pessoalmente e nunca sentiram necessidade de tal. Todos vinham de cidades diferentes, com vidas e profissões diferentes. Todos tinham nicks. O de Armanoush era Madame Minha-Alma-Exilada. Escolhera esse nome como um tributo a Zabel Yessaian, a única romancista mulher que os Jovens Turcos tinham posto em sua lista de mortos em 1915. Zabel era uma personalidade fascinante. Nascida em Constantinopla, vivera boa parte da vida no exílio, levando uma tumultuada vida como romancista e colunista. No retrato dela queArmanoush tinha em sua mesa, Zabel olhava sombriamente sob a aba do chapéu para algum lugar desconhecido além da moldura. Os outros membros da Árvore de Anoush tinham nicks estranhos, por motivos não perguntados. Todas as semanas, escolhiam um determinado tópico de discussão. Embora os temas variassem muito, todos tendiam a girar sobre sua história e cultura em comum - "comum" significando freqüentemente o "inimigo comum": os turcos. Nada unia mais rápida e fortemente as pessoas - embora de modo passageiro e instável - do que um inimigo compartilhado. Naquela semana, o assunto era "Os janízaros". Enquanto examinava algumas das mensagens mais recentes, Armanoush ficou feliz de ver que o Barão Baghdassarian estava conectado. Não sabia muito sobre ele, além do fato de que era neto de sobreviventes, assim como Armanoush; mas, ao contrário dela, ele resplandecia de raiva. Às vezes podia ser extremamente áspero e cético. Nos últimos meses, apesar da fugacidade do ciberespaço ou talvez graças a ele, Armanoush passara a gostar do Barão sem saber. O dia seria incompleto se não pudesse ler suas mensagens.

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Fosse lá o que sentisse por ele - amizade, estima ou pura curiosidade -, ela sabia que era recíproco. Quem acredita que o governo otomano foi justo não sabe nada sobre o paradoxo dos janízaros. Estes eram filhos de cristãos capturados e convertidos pelo Estado Otomano com uma chance de subirem na escala social, mediante o preço de desprezar seu próprio povo e esquecer seu próprio passado. O paradoxo dos janízaros étão relevante hoje para cada minoria quanto foi ontem. Seu filho de expatriados! Você precisa se fazer essa velha pergunta de vez em quando: qual seria sua postura em relação a esse paradoxo; aceitaria o papel dos janízaros? Abandonaria sua comunidade para fazer as pazes com os turcos e deixá-los apagar o passado para que, como dizem eles, todos possamos seguir em frente? Colada à tela, Armanoush deu uma mordida no que sobrara da maçã e mastigou nervosamente. Nunca sentira tal admiração por um homem - além de seu pai, é claro, mas era diferente. Havia algo no Barão Baghdassarian que a eletrizava e amedrontava ao mesmo 122 tempo; não tinha exatamente medo dele ou das coisas que afirmava tão atrevidamente - tinha mais medo de si mesma. Suas palavras tinham um longo alcance, capaz de desenterrar a outra Armanoush que morava dentro dela mas que ainda não emergira, um ser enigmático em sono profundo. De algum modo, o Barão Baghdassarian cutucava aquela criatura com a lança de suas palavras, incitando-a até que acordasse com um rugido e se revelasse. Armanoush ainda meditava sobre essa conseqüência assustadora quando vislumbrou uma longa mensagem enviada por Lady Peacockl Siramark - uma enóloga armênia-americana que trabalhava para uma vinícola baseada na Califórnia, viajava para Yerevan e era conhecida por suas comparações inteligentes e divertidas entre os Estados Unidos e a Armênia. Hoje, ela enviara um teste auto-avaliador que media o grau de sua "armenicidade". 1. Se você cresceu dormindo sob cobertores feitos à mão ou usando cardigãs feitos à mão para ir à escola. 2. Se recebeu um livro com o alfabeto armênio em cada aniversário até os seis ou sete anos de idade. 3. Se tem uma imagem do monte Arará pendurada em sua casa ou escritório. 4. Se está acostumado a ser amado e paparicado em armênio, censurado e disciplinado em inglês e evitado em turco. 5. Se serve a seus convidados homus com chíps de nacho e pasta de berinjela com bolos de arroz. 6. Se tem intimidade com o sabor do manti, o cheiro de sud±uk e a maldição do bastrma. 7. Se fica facilmente atormentado e exasperado com coisas extraordinariamente triviais mas consegue permanecer sereno diante de algo realmente grave, preocupante e digno de pânico. 8. Se fez (ou está

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planejando fazer) uma plástica no nariz. 9. Se tem um vidro de Nuteila na geladeira e um tabuleiro de tavla* em algum lugar da despensa. 10. Se tem um tapete muito querido no chão da sala de estar. Tavia significa "gamão" em turco.11. Se não consegue evitar a tristeza quando dança "Lorke Lorke", mesmo quando a melodia é saltitante e você não entende a letra.12. Se reunir-se para comer fruta depois do jantar é um hábito profundamente enraizado em sua casa e seu pai ainda descasca laranjas para você, por mais velho que você seja.13. Se seus parentes continuam enfiando comida em sua boca e não aceitam a frase "estou satisfeito" como resposta.14. Se o som do duduk faz um arrepio percorrer sua espinha e você não consegue deixar de pensar como uma flauta feita do damasqueiro pode gemer com tanta tristeza.15. Se, lá no fundo, você sente que há sempre mais no seu passado do que jamais lhe permitirão saber.Tendo respondido "sim" a todas as perguntas, Armanoush procurou abaixo o seu número de pontos:0-3 pontos: Desculpe, cara, você deve ser forasteiro.4-8 pontos: Você parece um forasteiro "por dentro das coisas". É possível que seja casado com alguém armênio.9-12 pontos: É quase certo que seja armênio.13-15 pontos: Não há dúvida, você é um orgulhoso armênio.Armanoush sorriu para a tela. Naquele momento, percebeu o que já sabia.Era como se um portão secreto fosse destrancado nas profundezas do cérebro, e antes que sua mente pudesse acomodar os pensamentos que entravam jorrando, uma onda de introspecção a invadiu. Tinha que ir até lá. Era disso que tanto precisava: uma viagem.Graças à sua infância fragmentada, não conseguira ainda encontrar um senso de continuidade e identidade. Tinha que fazer uma viagem ao seu passado para começar a viver a própria vida. Quando o peso dessa nova revelação se esclareceu dentro dela, também a fez digitar uma mensagem aparentemente para ninguém, mas especialmente para o Barão Baghdassarian:O paradoxo dos janízaros é estar dilacerado entre duas existências que se chocam. De um lado, os restos do passado se acumulam - um 124 ventre de ternura e tristeza, um senso de injustiça e discriminação. De outro, brilha um futuro prometido - um abrigo decorado com os enfeites e

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adornos do sucesso, um senso de segurança que você nunca teve antes, o conforto de se juntar à maioria e finalmente ser considerado normal.Olá, Madame Minha-Alma-Exilada! Fico feliz que esteja de volta. É bom ouvir a poeta em você.Era o Barão Baghdassarian. Armanoush não pôde evitar de reler a última parte em voz alta: "É bom ouvir a poeta em você." Perdeu o rumo das idéias, mas só por um momento.Acho que posso entender o paradoxo dos janizaros. Como filha única de pais divorciados e ressentidos vindos de culturas diferentes...Fez uma pausa, constrangida por revelar sua história pessoal. Mas o ímpeto de continuar era forte demais.Como filha única de um pai armênio, filho de sobreviventes, e de uma mãe de Elizabethtown, Kentucky, sei realmente como é se sentir dilacerada entre dois lados opostos, incapaz de pertencer totalmente a lugar algum, flutuando constantemente entre dois estados de existência.Até aquele dia, Armanoush jamais escrevera nada tão pessoal e direto para alguém do grupo. Com seu coração batendo forte, ela respirou fundo.O que o Barão Baghdassarian pensaria dela agora? Será que comunicaria seus verdadeiros pensamentos?Deve ser difícil. Para a maioria dos armênios em diáspora, Hai Dat é a única âncora psicológica que temos para sustentar uma identidade. Sua situação é diferente mas, afinal, somos todos americanos e armênios, e essa pluralidade é boa, contanto que não percamos nossas raizes.Aquela era Coexistência-Infeliz, uma dona-de-casa malcasada com o editor-chefe de um destacado jornal literário de Bay Area.Pluralidade significa o estado de ser mais de um. Mas não é o meu caso. Em primeiro lugar, nunca consegui me tornar armênia, escreveu Armanoush, percebendo que estava prestes a fazer uma confissão. Preciso encontrar minha identidade. Sabem em que ando pensando secretamente? Em visitar a casa da minha família na Turquia. Minha avó sempre fala sobre essa linda casa em Istambul. Vou lá e verei com meus próprios olhos. É uma viagem ao passado da família, assim como ao meu futuro. O paradoxo dos janízaros vai me perseguir a não ser que eu faça algo para descobrir meu passado. Espere, espere, espere, digitou Lady PeacocklSiramark, em pânico. Que diabos você está pensando em fazer? Está querendo ir à Turquia sozinha? Perdeu o juízo? Posso encontrar conexões. Não é tão difícil. Como assim, Madame Minha-Alma-Exilada?, insistiu Lady Peacockl Siramark. Até onde pensa que vai com esse nome no

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passaporte? Por que não vai direto à polícia de Istambul e se deixa prender de um modo simpático?!, irrompeu Anti-Khavurma, um estudante formado em Estudos do Oriente Próximo pela Universidade de Columbia. Armanoush sentiu que aquele poderia ser o momento perfeito para confessar outra verdade fundamental de sua vida. Encontrar as conexões certas pode não ser tão difícil para mim, já que minha mãe agora está casada com um turco. Houve uma pausa inquietante. Por um minuto, ninguém escreveu coisa alguma. Então Armanoush continuou: Ele se chama Mustafá, é geólogo e trabalha para uma companhia no Arizona. É um bom homem, mas completamente desinteressado de História, e desde que chegou aos Estados Unidos, há uns vinte anos, nunca mais voltou à Turquia. Nem convidou sua família para o casamento. Há alguma coisa esquisita nisso, mas não sei o quê. Ele simplesmente não fala a respeito, mas sei que tem uma família grande em Istambul. Certa vez perguntei como era sua família e ele respondeu: "Ah, são pessoas comuns, como você e eu."Não parece o homem mais sensível da face da Terra - se é que os homens têm sentimentos, interveio Filha de Safo, uma bartender lésbica que recentemente arranjara um emprego num desmazelado bar reggae do Brooklyn. Com certeza que não, acrescentou Coexistência-Infeliz. Ele tem coração? Ah, tem sim. Ele ama minha mãe e mamãe o ama, respondeu Armanoush. Percebeu que, pela primeira vez, reconhecia o amor entre sua mãe e seu padrasto, como se os visse pelos olhos de um estranho. De qualquer modo, posso ficar com a família dele; afinal de contas, sou sua enteada, acho que terão de me aceitar como hóspede. Para mim é um enigma saber como serei recebida por turcos comuns. Uma verdadeira família turca, não um desses acadêmicos americanizados. O que vai conversar com turcos comuns?, perguntou Lady Peacock/ Siramark. Olha, mesmo os instruídos são nacionalistas ou ignorantes. Você acha que gente comum está interessada em aceitar verdades históricas? Acha que vão dizer: "Ah sim, lamentamos ter massacrado e deportado vocês e depois negado tudo"? Por que quer arranjar problemas? Entendo. Mas você também devia tentar me entender. Armanoush sentiu, de repente, uma onda de desânimo. Revelar um segredo atrás do outro tinha desencadeado a sensação de estar solitária naquele mundo enorme - algo que sempre soubera, mas esperava o momento certo para enfrentar. Vocês todos nasceram na comunidade armênia e nunca tiveram de provar ser um deles, enquanto eu fiquei presa neste lar desde o dia em que nasci, flutuando constantemente entre uma família orgulhosa mas traumatizada e uma mãe histericamente anti-armênia. Para

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poder me tornar uma armênia-americana como vocês, preciso encontrar minha parte armênia primeiro. Se tiver de viajar ao passado para isso, que seja, é o que farei, pouco me importa o que os turcos vão dizer ou fazer.Mas como seu pai e sua família vão deixá-la ir para a Turquia?, interveio Alex, o Estóico, um greco-americano de Boston contente com a vida, contanto que estivesse rodeado de sol, comida saborosa e mulheres bonitas. Como um leal seguidor de Zenão, acreditava que as pessoas deviam fazer o máximo para não transporem seus limites e se contentarem com o que tinham. Sua família em San Francisco não vai ficar preocupada? Preocupada? Armanoush fez uma careta, enquanto os rostos das tias e da avó passaram por sua mente. Sabia que morreriam de preocupação. Eles não devem saber de nada disso, para o próprio bem deles. O feriado da primavera está chegando e posso passar os dez dias inteiros em Istambul. Papai vai pensar que estou com mamãe. E mamãe vai pensar que ainda estou aqui em San Francisco. Eles nunca falam um com o outro. E meu padrasto nunca fala com a família em Istambul. Não há jeito de descobrirem. Vai ser um segredo. Armanoush apertou os olhos examinando a tela, como se estivesse perplexa com a declaração que acabara de digitar. Se eu continuar ligando para mamãe diariamente e para papai de dois em dois ou de três em três dias, posso manter tudo sob controle. Belo plano! Depois que chegar a Istambul, pode mandar relatórios para o café todos os dias, sugeriu Lady PeacocklSiramark. Uau, você será a nossa correspondente de guerra, entusiasmou-se Anti-Khavurma, mas seguiu-se uma pausa ainda mais longa, já que ninguém se juntou à brincadeira. Armanoush encostou-se no espaldar da cadeira. Na calada da noite podia ouvir a respiração serena do pai e a avó virando-se na cama. Sentiu o corpo escorregando para o lado, como se parte dela ansiasse por ficar sentada naquela cadeira a noite inteira para saborear o que era a insônia, enquanto outra parte queria ir para a cama e mergulhar num sono pesado. Mastigou o último pedaço de maçã, sentindo uma onda de adrenalina acompanhar sua perigosa decisão. Então apagou a lâmpada da mesa, deixando uma luz irradiando-se do computador. No entanto, exatamente quando estava prestes a sair do Café Constantínópolis, surgiu uma linha na tela. Aonde for que sua viagem a leve, por favor cuide-se, querida Madame Minha-Alma-Exilada, e não deixe os turcos lhe tratarem mal. Era o Barão Baghdassarian.

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***7TRIGO

MAIS DE DUAS HORAS HAVIAM SE PASSADO desde que acordara, mas Asya Kazanci ainda estava na cama sob uma manta de penas de ganso, ouvindo os milhares de sons que só Istambul é capaz de produzir enquanto sua mente compunha meticulosamente um Manifesto Pessoal de Niilismo. Artigo Um: Se não encontrar um motivo para amar a vida que está levando, não finja amar a vida que está levando. Pensou um pouco nessa afirmativa e decidiu que gostava dela o suficiente para transformá-la na linha de abertura de seu manifesto. Enquanto passava ao segundo artigo, alguém freou o carro bruscacamente na rua. Ouviu logo o motorista xingando e berrando, a plenos pulmões, com algum pedestre que se materializara na rua, atravessando em diagonal o cruzamento com o sinal vermelho. O motorista continuou berrando até que sua voz foi engolida aos poucos pelo zumbido da cidade. Artigo Dois: A maioria esmagadora das pessoas jamais pensa, e os que pensam nunca são a maioria esmagadora. Escolha o seu lado. Artigo Três: Se não puder escolher, apenas exista: seja um cogumelo ou uma planta. - Não acredito que ainda esteja na mesma posição de meia hora atrás! Que diabo está fazendo na cama, menina preguiçosa? Era tia Banu, que enfiava a cabeça para dentro do quarto de Asya, achando desnecessário bater antes de entrar. Naquela manhã, usava um véu que chamava a atenção, num tom vermelho tão ofuscante que transformava sua cabeça num tomate enorme e maduro. - Terminamos um samovar inteiro de chá esperando Vossa Majestade. Anda, levanta, minha flor! Não está sentindo o cheiro de sucuk grelhado? Não está com fome? - Bateu a porta com força, sem esperar a resposta. Asya resmungou entre os dentes, enquanto puxava o cobertor até o nariz e virava para o outro lado. Artigo Quatro: Se não tem interesse nas respostas, então não faça perguntas. Em meio ao azáfama típico de um café-da-manhã de fim de semana, podia ouvir a água caindo da torneirinha do samovar, os sete ovos fervendo febrilmente na panela, as fatias de sucuk chiando na grelha e alguém mudando continuamente os canais de TV, passando de desenhos animados a vídeos de música pop, e dali para o noticiário local e internacional. Sem precisar olhar, sabia que era avó Gülsüm quem se encarregava do samovar; assim como podia dizer que era tia Banu quem grelhava o sucuk, com seu apetite

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agora de volta depois que os quarenta dias da penitência sufi haviam terminado e que ela se declarara, com êxito, uma clarividente. Asya sabia também que era tia Fende quem zapeava os canais, incapaz de se decidir por um, tendo espaço suficiente no vasto universo da paranóia esquizofrênica para absorver todos, desenhos animados, música pop e notícias ao mesmo tempo, da mesma forma que ansiava por sucesso nas diversas tarefas da vida sem realizar nenhuma. Artigo Cinco: Se não tem motivo ou capacidade para realizar coisa alguma, então pratique a arte de tornar-se. Artigo Seis: Se não tem motivo ou capacidade para praticar a arte de tornar-se, então apenas sej a. - Asya!!! - A porta escancarou-se e tia Zeliha entrou vigorosamente no quarto, os olhos verdes cintilando como duas pedras redondas de jade. - Temos que continuar enviando emissários para fazer você vir tomar café conosco? Artigo Sete: Se não tem motivo ou capacidade para ser, então apenas agüente. - Asya!!! - O que é?!!! - Asya colocou a cabeça para fora das cobertas, uma bola negra e encaracolada de fúria. Erguendo-se de um pulo, chutou os chinelos cor-de-alfazema ao lado da cama, perdendo um mas conseguindo catapultar o outro diretamente para cima da cômoda, onde atingiu o espelho e, de lá, desceu de pára-quedas até o chão. Então, puxou para cima o pijama frouxo na cintura de modo engraçado que, verdade seja dita, não realçou muito o efeito dramático que desejava causar. - Minha nossa, será que não posso ter um momento de paz numa manhã de domingo? 132 - Infelizmente não existe momento algum nesse mundo que dure duas horas - sublinhou tia Zeliha depois de assistir à desanimadora trajetória do chinelo. - Por que está querendo me irritar? Se anda passando por uma rebeldia adolescente, está atrasada, mocinha; devia ter tido isso há pelo menos cinco anos. Lembre que já está com quase 19. - É, a idade em que você me teve sem casar - rebateu Asya, sabendo que não deveria ser tão cruel mas sem conseguir evitar. Parada na porta, tia Zeliha olhou-a fixamente com a decepção de um artista visual que, depois de beber e trabalhar numa obra de arte a noite toda, dorme com satisfação mas acorda na manhã seguinte defrontando-se com a maluquice que criara embriagado. Apesar da descoberta sombria, não disse nada por um minuto. Então, seus lábios formaram um sorriso mal-humorado quando descobriu que o rosto que vinha olhando era, de fato, sua imagem no espelho, tão parecida com ela e ao mesmo tempo completamente distante. A filha se revelara exatamente igual a ela em personalidade, embora bastante diferente na aparência. Quanto à personalidade, era o mesmo

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ceticismo, o mesmo descontrole, o mesmo amargor que a própria Zeliha tinha na idade de Asya. Sem saber, passara cuidadosamente seu papel de filhote selvagem e independente da família Kazanci para a filha. Felizmente, Asya ainda não parecia cansada do mundo ou derrotada pela angústia, sendo jovem demais para tudo aquilo. Mas a tentação de demolir o edifício de sua própria existência estava ali, brilhando suavemente em seus olhos, a doce atração da autodestruição que só os sofisticados ou os sombrios sofrem algum dia. Entretanto, na aparência, Zeliha podia ver claramente que Asya pouco se assemelhava a ela. A filha não era e provavelmente nunca seria uma mulher bonita. Não que seu corpo ou seu rosto tivessem algo errado ou coisa assim. Na verdade, quando observada separa damente, cada parte dela estava em boa forma: a altura e o peso ideais, os cabelos cacheados e profundamente negros, o queixo ideal... mas quando reunidos, algo falhava na combinação. Também não era feia, de modo nenhum. Se havia algo ali, era uma beleza medíocre, alguém que é bom de se olhar mas que não fica na mente de ninguém. Seu rosto era tão comum que muitos que tinham acabado de conhecê-la ficavam com a impressão de já a terem visto antes. Era normal de forma única. Em vez de "bonita", o melhor elogio que receberia naquela altura seria o de "bonitinha", o que era perfeitamente aceitável, exceto pelo fato de estar atravessando penosamente uma fase da vida em que "bonitinha" era a última coisa que gostaria de ouvir. Vinte anos mais tarde, passaria a olhar o próprio corpo de modo diferente. Asya era uma daquelas mulheres que, embora não sendo bonita quando adolescente ou atraente na juventude, podia ficar linda na meia-idade, contanto que chegasse até lá. Infelizmente, Asya não era abençoada com nem um pouquinho de fé, sendo sarcástica demais para ter confiança no fluxo do tempo. Era um fogo ardente sem a mais leve fé na justiça da ordem divina. Nesse aspecto, também só se assemelhava à mãe. Com essa fibra moral e esse estado de espírito, não havia jeito de mostrar-se paciente e fiel, esperando o dia em que a vida transformaria seu corpo numa vantagem. Naquele momento, tia Zeliha podia ver nitidamente que a consciência da filha sobre sua aparência comum, entre outras coisas, pungia-lhe o jovem coração. Se pudesse lhe dizer que as belas só atraíam os piores sujeitos... Se pudesse fazê-la entender como tinha sorte de não ter nascido bonita demais; que na verdade homens e mulheres seriam mais benevolentes com ela e que sua vida seria muito melhor, sim, muito melhor sem a perfeição pela qual tanto ansiava... Mesmo assim, sem uma

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palavra, tia Zeliha foi até a cômoda, recolheu o chinelo e colocou o par, agora reunido, em frente aos pés nus de Asya. Ficou diante da filha rebelde, que instantaneamente ergueu o queixo e endireitou as costas, assumindo a postura de um orgulhoso prisioneiro de guerra depondo as armas, mas não a dignidade. - Vamos! - ordenou tia Zeliha. Em silêncio, mãe e filha formaram um comboio em direção à sala. A mesa desdobrável estava posta há muito para o café-da-manhã. Apesar de seu mau humor, Asya notou que a mesa enfeitada daquele jeito combinava perfeitamente, quase pitorescamente, com o enorme tapete de cor tijolo sob seus pés, fulgurando em seus intrincados padrões 134 florais limitados por uma linda borda coral. Da mesma forma que o tapete, a mesa parecia ornamentada. Sobre ela havia azeitonas pretas, azeitonas verdes recheadas de pimentão, queijo branco, queijo de cabra e de outros tipos, ovos cozidos, favos de mel, mussarela de búfala, doce de damasco e geléia de framboesa feitos em casa, tomates com hortelã no azeite de oliva em tigelas de porcelana. O delicioso cheiro do prato recém-preparado emanava da cozinha: queijo branco, espinafre, manteiga e salsa derretendo-se uns nos outros em meio a finas camadas de massa de farinha de trigo. Agora com 96 anos, Petite-Ma sentava-se na extremidade da mesa segurando uma xícara de chá mais fina do que ela própria. Com uma expressão absorta e um tanto confusa no rosto, ela observava o canário cantando na gaiola junto à porta da sacada, como se só naquele momento tivesse notado o pássaro. Talvez fosse verdade. Entrando no quinto estágio do Alzheimer, Petite-Ma começava a confundir os rostos mais familiares e os fatos de sua vida. Na semana anterior, por exemplo, no fim da prece da tarde, assim que ela se curvara e colocara a testa no pequeno tapete para o estágio de sajda, esquecera o que fazer em seguida. As palavras da prece que precisava pronunciar de repente tinham ficado unidas numa longa cadeia de letras e foram embora em fila indiana, como uma lagarta preta e peluda com pés demais para serem contados. Depois de algum tempo a lagarta parara, dera meia-volta e acenara para Petite-Ma à distância, como se rodeada por paredes de vidro, nitidamente visível mas inalcançável. Perdida e confusa, Petite-Ma permanecera sentada olhando o Qibla, colada a seu tapete, com um véu de prece na cabeça e um rosário de contas de âmbar na mão, sem se mover ou emitir som, até que alguém notou a situação e levantou-a. - Como era o resto dela? - perguntara Petite-Ma em pânico quando a fizeram deitar no sofá com almofadas macias sob a cabeça. -No sajda você tem que dizer

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Subhana rabbiyal-aia. Tem que dizer pelo menos três vezes. Eu disse. Disse três vezes. Subhana rabbiyal-ala, Subhana rabbiyal.-ala, Subhana rabbiyal-ala - recitou as palavras repetidamente, como num frenesi. - E depois o quê? O que vem depois?Quis o acaso que tia Zeliha estivesse ao lado de Petite-Ma quando testa fez a pergunta. Sem nenhuma prática de namaz ou, na verdade, de qualquer outra celebração religiosa, ela não tinha absolutamente nenhuma idéia do que a avó perguntava. Mas queria ajudar, acalmar a angústia da velha de qualquer forma possível. Então pegou o Sagrado Alcorão e folheou as páginas até esbarrar num verso com um ar consolador: - Olha o que ele diz: "Quando fordes chamados para as preces de sexta-feira, apressai-vos para invocar Deus... Observada a oração, dispersai-vos pela terra à procura das graças de Deus e lembrai-vos de Deus com freqüência, para que prospereis (62:9-10)." - O que quer dizer? - pestanejou Petite-Ma, agora mais perdida do que nunca. - Quer dizer, agora que a prece terminou de um modo ou outro, você pode parar de pensar nisso. É o que diz aqui, certo? Venha, Petite-Ma, dispersai-vos pela terra... e venha jantar conosco. Funcionou. Petite-Ma parara de se preocupar com a frase esquecida e fora jantar pacificamente com elas. Entretanto, fatos desse tipo vinham ocorrendo ultimamente com uma freqüência alarmante. Geralmente submissa e retraída, por momentos esquecia as coisas mais simples, inclusive onde estava, qual era o dia da semana ou quem eram as estranhas com quem se sentava à mesa. E, ainda assim, em alguns momentos era difícil acreditar que ela estivesse doente, já que sua mente parecia tão clara como vidro veneziano recém-polido. Naquela manhã era difícil dizer. Cedo demais ainda. - Bom dia, Petite-Ma! - exclamou Asya, arrastando os pés cor-de-alfazema para a mesa, tendo finalmente lavado o rosto e escovado os dentes. Inclinou-se para a mulher idosa e lhe deu um beijo molhado nas duas faces. Desde pequena, dentre todas as mulheres da família, Asya guardava um lugar especial no coração para Petite-Ma. Amava-a muito. Ao contrário de alguns outros membros da família, Petite-Ma sempre fora capaz de amar sem sufocar. Nunca ralhava, criticava ou implicava. Sua proteção não era possessiva. De tempos em tempos, secretamente, punha grãos de trigo abençoados com preces nos bolsos de Asya para protegê-la do mau-olhado. Em vez de decretar guerra contra o mau-olhado, o que mais e melhor fazia era rir - isto é, até que sua doença tornou-se mais grave. No passado, as duas costumavam rir muito juntas: Petite-Ma numa extensa corrente de

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risinhos melífluos; Asya numa súbita explosão de ricos tons ressonantes. Atualmente, embora muito preocupada com o bem-estar da avó, Asya era também respeitosa ante o independente mundo de amnésia em que Petite-Ma vagava, já que a autonomia lhe era também constantemente negada. E quanto mais a velha afastava-se das outras, mais perto se sentia dela. - Bom dia, minha linda bisneta - respondeu Petite-Ma, impressionando todas com a nitidez de sua memória. Com o controle remoto na mão, tia Fende falou alegremente, sem olhar para Asya: - Finalmente a princesa temperamental acordou. - Seu tom era jovial, apesar do pito nas palavras. Naquela mesma manhã, pintara o cabelo de um louro claro quase cinzento. Asya já sabia muito bem que uma mudança radical no cabelo era sinal de uma mudança radical no ânimo. Inspecionou tia Fende, procurando sinais de insanidade. Além do fato de parecer absorta na TV, assistindo encantada a uma cantora pop tremendamente sem talento saracoteando numa dança ridícula, Asya não encontrou nada de anormal. - Você tem que se aprontar, nossa hóspede chega hoje - disse tia Banu, entrando na sala com a bandeja de sucuk recém-saído do forno, visivelmente contente por ter seus carboidratos diários. - Precisamos arrumar a casa antes que ela chegue. Tentando afastar com os pés Sultão V da torneirinha gotejante, Asya serviu-se do chá fumegante do samovar e perguntou lentamente: - Por que estão todas tão empolgadas com essa garota americana? - Beberícou o chá, fez uma careta e procurou o açúcar. Um, dois... encheu a pequena xícara com quatro cubos de açúcar. - Por quê?! É uma hóspede! Está vindo do outro lado do planeta. - Tia Fende estendeu o braço à sua frente, na saudação nazista, para indicar onde e quão longe estava aquele outro lado do planeta. A idéia do globo terrestre dava um timbre alvoroçado à sua voz, enquanto o mapa da atmosfera e os padrões de circulação oceânica iluminavam-se brevemente em sua mente. A última vez que vira esse mapa no papel fora no ginásio. Ninguém sabia, mas tia Fende decorara o mapa nos seus menores detalhes, e ainda hoje permanecia tão gravado em sua memória como no dia em que o analisara pela primeira vez. - Mais importante ainda: é uma visitante mandada pelo seu tio - interveio avó Gülsüm que, tenazmente, ainda retinha a reputação de ter sido Ivan, o Terrível em outra vida. - Meu tio? Que tio? Aquele que nunca vi na minha vida? - Asya provou o chá. Ainda estava amargo. Pôs nele outro cubo de açúcar. - Alô, acordem todas! O homem de que estão falando não nos visita desde que pisou em solo americano. Só sabemos que está vivo porque ele nos manda postais vagabundos com paisagens do

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Arizona - disse Asya com um olhar venenoso. Cactos ao sol, cactos ao entardecer, cactos com flores roxas, cactos com pássaros vermelhos... O cara nem se preocupa em mudar o tipo dos postais! Ele também manda fotos da esposa - acrescentou tia Fende, para ser justa. - Pouco me importam essas fotos. Esposa loura gorducha sorrindo em frente a sua casa de adobe, à qual, por falar nisso, jamais fomos convidadas; esposa loura gorducha sorrindo no Grand Canyon; esposa loura gorducha sorrindo e usando um enorme sombrero mexicano; esposa loura gorducha sorrindo com um coiote morto na varanda; esposa loura gorducha sorrindo e fazendo panquecas na cozinha... Não estão enjoadas dele nos mandar todos os meses as fotos dessa completa desconhecida? Afinal de contas, por que ela está sorrindo para nós? Nem conhecemos essa mulher, pelo amor de Alá! - Asya engoliu o chá, ignorando o fato dele ainda estar escaldante. - As viagens não são seguras, as estradas cheias de perigos. Aviões são seqüestrados, carros sofrem acidentes... até trens saem dos trilhos. Oito pessoas morreram num acidente de carro ontem na costa do Egeu - observou tia Fende. Incapaz de fazer contato 138 visual com quem quer que fosse, suas pupilas traçavam círculos nervosos em torno da mesa até aterrissarem numa azeitona preta que estava em seu prato. Sempre que tia Fende transmitia notícias horríveis da terceira página dos tablóides turcos, seguia-se um silêncio sepulcral. Daquela vez não foi diferente. No silêncio reinante, avó Gülsüm fez uma careta, perturbada por ouvir seu único filho depreciado daquele modo; tia Banu puxou as pontas do véu; tia Cevriye tentou lembrar que tipo de animal um "coiote" era, mas como 24 anos ensinando a tinham tornado ótima com respostas mas igualmente ruim com perguntas, não ousou perguntar a ninguém; Petite-Ma parou de mordiscar a fatia de sucuk de seu prato; tia Fende tentou se lembrar de alguns outros acidentes que lera, mas, em vez de notícias macabras, pensou no sombrero azul-claro que a mulher de Mustafá estava usando numa das fotos - se ao menos pudesse encontrar algo parecido em Istambul, ela certamente o usaria dia e noite. Enquanto isso, ninguém notou que tia Zeliha parecia subitamente aflita. - Precisamos enfrentar a verdade! - anunciou Asya, com convicção. - Durante todos esses anos, todas vocês idolatraram o tio Mustafá como o único filho precioso desta família, e no instante que ele abandona o ninho, esquece vocês. Não é óbvio que o homem não liga a mínima para a família? Então por que ele deve significar alguma coisa para nós? - O rapaz é ocupado - interferiu avó Gülsüm. Na verdade preferia o filho, seu único filho varão, às

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filhas que tinha em excesso. - Não é fácil viver no estrangeiro. A América é muito longe. - Claro que é muito longe, especialmente se temos que atravessar a nado o oceano Atlântico e caminhar todo o continente europeu - disse Asya, mordendo uma fatia de queijo branco para aliviar a língua queimada pelo chá. Para sua surpresa, o queijo era muito bom, macio e salgado, exatamente como gostava. Achando um tanto difícil reclamar e apreciar a comida ao mesmo tempo, calou-se por um segundo, mastigando nervosamente. Aproveitando-se da pausa momentânea, tia Banu disparou uma fábula, como sempre fazia em momentos de desânimo. Contou-lhes a história de um homem que decidira dar a volta ao mundo repetidamente, a fim de escapar da própria mortalidade. Norte e sul, leste e oeste, ele perambulou por todos os caminhos que pôde. Certa vez, numa de suas inúmeras viagens, encontrou inesperadamente Azrail, o anjo da morte, no Cairo. O olhar penetrante de Azrail varreu o homem com uma expressão misteriosa. Não disse uma palavra nem o seguiu. O homem imediatamente deixou o Cairo, viajando sem parar até uma pequena e sonolenta cidade da China. Sedento e cansado, entrou rapidamente na primeira taverna do caminho. Lá, próximo à mesa na qual se instalara, sentava-se Azrail, pacientemente esperando por ele, dessa vez com uma expressão de alívio no rosto. "Fiquei surpreso de esbarrar com você no Cairo", disse o anjo num som áspero para o homem, "pois seu destino dizia que nos encontraríamos aqui na China". Asya conhecia aquela história de cor, assim como muitas outras narradas por tantas vezes sob aquele teto. O que não entendia e nem achava que fosse entender um dia era a excitação que as tias sentiam ante uma história de final já conhecido. Todas na sala fruíram quietas a segurança do ambiente, protegido e agasalhado pela repetição da rotina, como se a vida fosse um ensaio longo sem interrupções onde todas soubessem de cor suas falas. Nos minutos seguintes, enquanto as mulheres à sua volta pulavam de um assunto para outro, cada história disparando a seguinte, Asya aprumou-se, parecendo muito diferente da que fora antes na mesma manhã. Às vezes se surpreendia com suas próprias inconsistências. Como podia ser tão desagradável com as pessoas que mais amava? Era como se seu temperamento fosse um ioiô, subindo e descendo, numa hora exasperado, na hora seguinte satisfeito. Nesse aspecto, ela se parecia com a mãe. A voz monótona de um vendedor ambulante de simit infiltrou-se pela janela aberta, penetrando na tagarelice contínua. Tia Banu correu para a janela e pôs a cabeça para fora: - Simiteiro! Simiteiro! Venha

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cá! - berrou. - Quanto é? Não que não soubesse quanto custava um simit, claro que sabia. A pergunta era mais um ritual do que uma interrogação, executado 140 obedientemente. Por isso, assim que a pergunta saiu de sua boca, ela passou para a próxima sem esperar a resposta do homem. - Tudo bem, quero oito. Todos os domingos, no café-da-manhã, compravam oito simits, um para cada membro da família e um extra para o irmão agora distante. - Ah, que cheiro bom! Tia Banu estava radiante ao voltar para a mesa trazendo os simits em cada braço, como uma acrobata de circo pronta para fazer um número com argolas. Pôs um simit na frente de cada uma, espalhando sementes de sésamo por toda parte. Visivelmente relaxada agora que tinha em estoque uma pilha de carboidratos, tia Banu começou a devorá-los, combinando simit com brek e o bsrek com pão. Mas logo mostrou uma expressão consternada por ter sido atingida pela azia ou por um pensamento desanimador, como a que costumava exibir ao contar a uma cliente um mau presságio cintilando nas cartas de tarô. "Tudo depende de como você vê as coisas." Tia Banu fechou os olhos, traindo a gravidade da declaração que ia fazer. - Outrora havia; outrora não havia... Havia dois tecelões de cestas nos tempos otomanos. Ambos trabalhavam muito, mas um tinha fé e o outro estava sempre resmungando. Certo día, o sultão foi à aldeia e disse para um deles: "Vou encher suas cestas de trigo, e se vocês cuidarem bem desse trigo, os grãos se transformarão em moedas de ouro." O primeiro tecelão aceitou a oferta com alegria e encheu suas cestas. O segundo tecelão, que era tão mal-humorado quanto você, minha querida, recusou o presente do sultão. Sabe o que aconteceu no final? - Claro que sei - disse Asya. - Como posso não saber o final de uma história que devo ter ouvido pelo menos umas cem vezes? Mas o que você não sabe é o dano que essas histórias fazem com a criatividade de uma criança. Foi por causa dessa história ridícula que passei meus anos pré-escolares dormindo com trigo debaixo do travesseiro, esperando que ele se transformasse em moeda de ouro na manhã seguinte. Então comecei a ir à escola. Certo dia, contei às crianças que logo ficaria rica com meu trigo que viraria ouro e me 141 transformei no alvo de todas as piadas bobas da sala. Você fez de mim uma idiota! De todos os choques e traumas que Asya sofrera na infância, nenhum permanecera com mais amargura em sua memória que o incidente do trigo. Foi naquela época que ela voltou a ouvir a palavra que a acompanharia durante os anos seguintes, sempre nos momentos mais inesperados: "Bastarda!" Até o incidente do trigo, no primeiro ano da escola primária, Asya só tinha ouvido a palavra bastarda

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uma vez, mas não deu muita importância, principalmente por não saber o que significava. Os outros alunos trataram rapidamente de resolver seu problema de entendimento. Mas essa parte da história Asya guardava para si mesma. Serviu-se de outra xícara de chá escaldante. - Asya, pode continuar reclamando de nós tanto quanto quiser, mas quando a hóspede chegar, modere o seu tom e seja simpática com ela. Seu inglês é melhor do que o meu e o de qualquer uma da família. Não era uma declaração modesta de tia Banu, já que dava a impressão de que falava inglês quando na verdade não falava absolutamente nada daquela língua. Claro que tivera aulas de inglês no ginásio, mas, fosse lá o que tivesse aprendido, havia esquecido completamente. Já que a arte de predizer o futuro não exigia o conhecimento de uma língua estrangeira, tia Banu jamais sentira necessidade de estudar inglês. Quanto a tia Fende, em primeiro lugar nunca se interessara em aprender inglês, escolhendo alemão na escola. Mas como isso coincidira com a época em que perdera interesse por todos os cursos que não fossem sobre geografia física, seu alemão também não fez muitos progressos. Como Petite-Ma e avó Gülsüm eram membros desqualificados, restavam apenas tia Zeliha e tia Cevriye com um inglês suficientemente bom para passarem do nível iniciante para um estágio intermediário. Dito isso, havia uma nítida diferença no domínio da língua inglesa entre as duas tias. Tia Zeliha falava um inglês cotidiano, impregnado de gírias, expressões idiomáticas e jargões, praticado quase todos os dias com os estrangeiros que visitavam seu estúdio de tatuagem; já tia Cevriye falava um inglês de livro escolar, orientado pela gramática, congelado no tempo, ensinado apenas no segundo grau. Concomitantemente, tia Cevriye conseguia distinguir frases simples, complexas e compostas, identificar advérbios, adjetivos e orações, e até mesmo identificar modificadores ausentes e mal colocados na estrutura sintática, mas não conseguia conversar. - Por isso, querida, você vai ser a nossa tradutora. Vai transmitir o que ela disser para nós e o que nós dissermos para ela. - Tia Banu estreitou os olhos e franziu a testa, numa tentativa de sugerir a magnitude do que estava prestes a anunciar: - Como uma ponte estendendo-se entre as culturas, você vai ligar o Oriente e o Ocidente. Asya torceu o nariz como se acabasse de detectar um mau cheiro na casa aparentemente só sentido por ela e contorceu os lábios como se fosse dizer: "Até parece!" Enquanto isso, ninguém notara que Petite-Ma levantara da cadeira e se aproximara do piano, que ninguém

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tocava há anos. De vez em quando, usavam o piano fechado como um aparador para os pratos e travessas extras que não cabiam na mesa de jantar. - É maravilhoso que vocês duas tenham a mesma idade! - Tia Banu concluiu o monólogo. - Vão ficar amigas. Asya olhou atentamente tia Banu com renovado interesse, cogitando se algum dia a tia deixaria de vê-la como criança. Quando pequena, sempre que outra criança entrava na casa, suas tias punham as duas uma diante da outra e diziam: "Agora brinquem! Fiquem amigas!" Estar na mesma faixa etária significava automaticamente se dar bem uma com a outra; de algum modo, os colegas eram considerados fragmentos do mesmo quebra-cabeça, esperando-se que o completassem quando postos lado a lado. - Vai ser fantástico. E quando ela voltar para os Estados Unidos, vocês podem manter a amizade por correspondência - cantarolou tia Cevriye. Acreditava fortemente nas amizades por correspondência. Como uma professora-camarada no regime republicano turco, acreditava que cada cidadão turco, por mais comum que fosse na sociedade, tinha o dever de representar orgulhosamente a mãe-pátria diante do resto do mundo. Que melhor oportunidade para isso do que uma amizade por correspondência? - Vocês vão trocar cartas entre San Francisco e Istambul - murmurou tia Cevriye, meio que para si mesma. Sendo impensável para ela corresponder-se com uma estranha sem um objetivo educacional, dissertou então sobre o motivo pedagógico subjacente: - O problema conosco, turcos, é que somos constantemente mal interpretados e mal compreendidos. Os ocidentais precisam ver que não somos de modo algum como os árabes. Este é um país moderno, secular. Tia Fende aumentou de repente o volume da TV e todas ficaram distraídas com um novo vídeo pop turco. Quando viu a cantora ridiculamente cômica, Asya notou que o penteado da mulher parecia familiar, muito familiar. Seu olhar foi e voltou da telinha para tia Fende, reconhecendo agora de onde saíra a inspiração para seu novo estilo de cabelo. - Os americanos sofreram uma lavagem cerebral principalmente dos gregos e armênios, que infelizmente chegaram aos Estados Unidos antes dos turcos - continuou tia Cevriye. - Foram induzidos a acreditar erroneamente que a Turquia é o país do filme O expresso da meia-noite. Você vai mostrar a essa garota americana o belo país que é a Turquia e promover a amizade internacional e o entendimento cultural. Asya engoliu em seco com uma expressão frustrada e poderia ter continuado naquela posição se sua tia mais velha não se mostrasse incansável. - E mais: vai melhorar o inglês e quem sabe ensinar-lhe o turco. Não seria uma amizade maravilhosa? "Amizade"...

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Falando nisso, Asya levantou-se e agarrou seu simit meio comido, aprontando-se para sair e ver alguns amigos verdadeiros. - Onde é que está indo, mocinha? O café-da-manhã ainda não acabou - disse tia Zeliha, abrindo a boca pela primeira vez desde que se sentara à mesa. Trabalhando em meio ao azáfama do estúdio de tatuagem seis dias por semana das doze às nove, era ela quem mais saboreava a sonolenta lentidão dos desjejuns das manhãs de domingo. 144 - Tem o Festival de Cinema Chinês - respondeu Asya, sua voz se esforçando ligeiramente para parecer séria e convincente. - O professor de um dos meus cursos pediu que víssemos um filme nesse fim de semana para depois escrevermos um ensaio crítico sobre ele. - Que dever é esse? - Tia Cevriye levantou uma sobrancelha, sempre cansada das técnicas pedagógicas não-convencionais. Mas tia Zeliha não levou a coisa adiante. - Tudo bem, vá ver o seu filme chinês. - Concordou com a cabeça. - Mas não chegue tarde, mocinha. Quero você de volta antes das cinco horas. Vamos pegar a hóspede no aeroporto esta noite. Asya pegou sua bolsa hippie e se dirigiu rapidamente para a porta. Quando estava prestes a pisar do lado de fora, ouviu um som bastante inesperado. Alguém tocava piano. Notas tímidas, trôpegas, procurando uma melodia há muito perdida. Uma expressão de reconhecimento surgiu no rosto de Asya ao sussurrar para si mesma: - Petite-Ma!*PETITE-MA NASCEU EM TESSALÔNICA. Era ainda menina quando emigrou com a mãe viúva para Istambul em 1923. A época em que chegara à cidade era inconfundível, pois coincidira com a proclamação da república turca moderna.- Você e a república chegaram juntas a esta cidade. Eu estava esperando desesperadamente pelas duas - disse-lhe amorosamente seu marido Riza Selim Kazanci anos depois. - Vocês acabaram com o velho regime para sempre, o do país e o da minha casa. Quando você chegou, minha vida ficou iluminada.- Quando cheguei, você era triste, mas forte. Eu lhe trouxe alegria e você me deu força - devolveu Petite-Ma.Na verdade, Petite-Ma, bonita e afável como era, aos 16 anos tinha tantos pretendentes que estes poderiam fazer uma fila, indo de uma extremidade à outra da ponte Gaiata. Entre todos os candidatos que bateram à sua porta, houve apenas um por quem sentiu simpatia desde o momento em que o avistou por trás da gelosia: um homem alto e majestoso chamado Riza. Com uma barba espessa e

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um bigode fino, olhos escuros, grandes e sombrios, Riza era simplesmente 33 anos mais velho do que PetiteMa. Fora casado antes e os boatos davam conta de que a esposa, uma mulher sem coração, abandonara a ele e ao filho. Depois da traição da mulher, mesmo sozinho com uma criança ainda engatinhando, ele se recusara por muito tempo a se casar de novo, preferindo viver na mansão da família completamente só. Lá aumentava sua fortuna, que compartilhava com os amigos, e sua ira, que reservava aos inimigos. Era um homem de negócios que se fizera por si mesmo; anteriormente um fabricante de caldeirões, um artesão e por fim um empresário suficientemente inteligente para entrar no negócio da fabricação de bandeiras no momento certo e no lugar certo. Na década de 1920, a nova República da Turquia ainda pulsava com fervor, e o trabalho manual, apesar de sistematicamente venerado na propaganda do governo, dava pouco retorno. O novo regime precisava de professores para transformar os alunos em turcos patriotas, financistas para ajudar a gerar a burguesia nacional, fabricantes de bandeiras para enfeitar o país inteiro com a bandeira turca, mas certamente não precisava de um fabricante de caldeirões. Então Riza Selim pusera-se a fabricar bandeiras. Embora ganhasse rios de dinheiro e amigos influentes em seu novo negócio, quando a Lei dos Sobrenomes de 1925 obrigou todo cidadão turco a usar um sobrenome, Riza Selim escolheu homenagear seu primeiro ofício: Kazanci. Embora tivesse boa aparência e fosse definitivamente abastado, devido à sua idade e ao trauma do primeiro casamento ("Quem sabe por que a esposa o abandonou? Talvez fosse um pervertido", fofocavam as mulheres) Riza Selim Kazanci era um dos últimos homens na terra com quem a mãe de Petite-Ma gostaria de ver sua preciosa filha casada. Certamente havia melhores candidatos. No entanto, apesar das persistentes objeções da mãe, Petite-Ma recusou-se a ouvir qualquer um, exceto seu próprio coração. Talvez porque houvesse alguma coisa nos olhos escuros de Riza Selim Kazanci que levou Petite-Ma a entender, intuitívamente, que seu pretendente tinha algo raro em muitos no mundo: a capacidade de amar outro ser humano mais do que a si mesmo. Ainda que jovem e muito inexperiente aos 16 anos, Petite-Ma era sensível o bastante para compreender a bênção excepcional de ser amada e adorada por um homem com tal dom. Os olhos de Riza eram suaves e cintilantes, assim como sua voz; algo nele dava segurança à pessoa a seu lado, fazendo-a se sentir querida e protegida, mesmo em meio à turbulência à sua volta. Aquele

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homem não era um desertor. Se Petite-Ma acreditou intuitivamente em Riza Selim Kazanci, este, por sua vez, mereceria o mérito daquela confiança até o último suspiro. A esposa loura de olhos azuis que chegou acompanhada de uma gata felpuda e branca como a neve em vez do dote de praxe era a alegria de sua vida. Não houve um só dia em que Riza Selim Kazanci se recusasse a satisfazer qualquer desejo dela, por mais fantasioso que fosse. O mesmo não acontecia, porém, com seu filho de seis anos de idade: Levent Kazanci jamais aceitou Petite-Ma como mãe. Resistia a ela e a ridicularizava a cada chance nos anos seguintes, saindo da infância com reprimida amargura, se é que a infância pode chegar ao fim quando alguém permanece tão amargo por dentro. Numa época em que um casamento sem filhos era sinal de uma doença incurável ou certamente de um sacrilégio, Petite-Ma e Riza Selim Kazanci não tiveram filhos. Não porque ele fosse velho demais, mas sim porque inicialmente ela era jovem e desinteressada demais para tê-los; depois, quando ela mudou de idéia, ele já estava velho demais. Levent Kazanci continuou sendo o filho único a perpetuar a linhagem, um título que não o deixava nem um pouco empolgado. Embora ficasse triste e ofendida com a hostilidade do enteado, Petite-Ma era uma garota exuberante e extrovertida, com uma grande imaginação e uma lista ainda maior de desejos. Havia coisas muito mais interessantes no mundo do que cuidar de bebês, como aprender 147 a tocar piano, por exemplo. Pouco tempo depois, um piano Bentley fabricado pela Stroud Piano Co., Ltd., na Inglaterra, resplandecia no melhor local da sala de estar. Foi naquele Bentley que Petite-Ma recebeu as aulas de seu primeiro professor de piano - um músico russo branco que fugira da Revolução Bolchevista e se instalara permanentemente em Istambul. Petite-Ma era a sua melhor aluna. Tinha não só o talento como a perseverança de fazer do piano um companheiro de toda a vida e não um passatempo fugaz. Rachmaninoff, Borodin e Tchaikovsky eram os seus favoritos. Sempre que estava sozinha em casa, tocando para si mesma com Paxá no colo, eram aqueles os compositores que escolhia. No entanto, quando tocava para convidados, preferia músicas de um repertório totalmente diferente. Um repertório ocidental: Bach, Beethoven, Mozart, Schumann e, acima de tudo, Wagner, nas ocasiões especiais em que tinham como convidados funcionários do governo e suas exigentes esposas. Após o jantar, os homens se reuniam perto da lareira com drinques nas mãos para discutir a política mundial. No final da década de 1920, a política nacional só podia ser venerada ou reafirmada;

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quanto mais alto melhor, já que as paredes tinham ouvidos. Assim, sempre que surgia a necessidade de uma discussão genuína, a elite política e cultural da nova república turca passava instantaneamente à política mundial, que era uma confusão em si e, por isso, sempre interessante. Enquanto isso, as senhoras reuniam-se na outra extremidade da casa segurando cálices de cristal com licor de menta e observando as roupas umas das outras. No grupo das senhoras havia dois tipos radicalmente diferentes de mulheres: as profissionais e as esposas. As profissionais eram as mulheres-camaradas, epítomes da nova mulher turca: idealizada, glorificada e defendida pela elite reformista. Constituíam as novas profissionais - advogadas, professoras, juízas, administradoras, burocratas, acadêmicas... Diferentes de suas mães, não eram confinadas à casa e tinham a chance de subir a escada social, econômica e cultural desde que se despissem da própria sexualidade e feminilidade pelo caminho. Freqüentemente vestiam tailleurs de duas 148 peças de cores marrom, preto e cinza - as cores da castidade, modéstia e partidarismo. Usavam cabelos curtos, nenhuma maquiagem, nenhum acessório. Tinham corpos pouco femininos, assexualizados. E quando as esposas davam risadinhas de um modo irritantemente feminino, as profissionais pressionavam os dedos nas pequenas bolsas de couro debaixo do braço, como se levassem nelas alguma informação secreta e tivessem empenhado a palavra de protegê-las a qualquer preço. Ao contrário destas, as esposas compareciam às reuniões sociais com vestidos de noite de cetim branco, rosa pálido e da azul pastel, tons da inocência e da vulnerabilidade, que combinavam com verdadeiras senhoras. Não gostavam muito das profissionais, a quem consideravam mais "camaradas" que mulheres, enquanto que as profissionais não gostavam das esposas, considerando-as maís "concubinas" que mulheres. No final ninguém considerava ninguém suficientemente "mulher". Todas as vezes que a tensão entre camaradas e concubinas aumentava, Petite-Ma, que não se identificava com grupo nenhum, fazia secretamente um gesto à empregada para que servisse licor de menta em cálices de cristal e doces de amêndoa em travessas de prata. Descobrira que tal dupla era a única coisa que podia acalmar os nervos de cada mulher na sala, pouco importando o grupo do qual fizesse parte. Mais tarde, durante a reunião, Riza Selim Kazanci chamava a mulher e lhe pedia que tocasse piano para os respeitáveis convidados. Petite-Ma nunca se recusava. Além dos compositores ocidentais, tocava hinos nacionais, exalando fervor patriótico. Os convidados aplaudiam entusiasmados.

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Sobretudo em 1933, quando fora composta a "Marcha da República", o hino do décimo aniversário, Petite-Ma tinha que tocá-lo repetidamente. Naquela época, o vigoroso hino estava por toda parte, e até mesmo bebês no berço eram postos para dormir ao seu som. Conseqüentemente, quando as turcas passavam por uma radical transformação na esfera pública graças a uma série de reformas sociais, Petite-Ma saboreava a própria independência na esfera particular de sua casa. Embora seu interesse pelo piano jamais diminuísse, ela não tardou a aparecer com uma lista de novos divertimentos. Assim, nos anos seguintes aprenderia francês, escreveria contos nunca publicados, dominaria diferentes técnicas de pintura, se enfeitaria com sapatos brilhantes e vestidos de baile de cetim, arrastaria o marido para bailes, daria festas malucas e jamais teria um só dia de trabalho doméstico. Fosse lá o que sua jovial esposa pedisse, Riza Selim Kazanci consentia plenamente. Em geral, era um homem calmo, com muita estima pelos outros e um profundo senso de justiça. Contudo, como tantos outros de molde semelhante, uma vez quebrado não conseguia se emendar. Assim, um assunto fazia emergir seu lado ruim: a primeira esposa. Mesmo depois de anos, sempre que Petite-Ma perguntava algo sobre a primeira mulher do marido, Riza Selim Kazanci mergulhava no silêncio, os olhos sombreados por um desalento pouco comum. - Que espécie de mulher pode abandonar o filho? - disse ele, o rosto contraído de aversão. - Mas não quer saber o que aconteceu com ela? - Petite-Ma aproximou-se alguns centímetros e sentou no colo do marido, acariciando-lhe o queixo suavemente, como se o induzisse a encarar a pergunta. - Não tenho nenhum interesse em saber do destino daquela puta - disse Riza Selím Kazanci rigidamente, sem se dar ao trabalho de baixar a voz para que Levent não o ouvisse ofender a mãe. - Ela fugiu com alguém? insistiu Petite-Ma, sabendo que estava ultrapassando seus limites, mas sabendo também que só poderia conhecê-los tendo-os ultrapassado. - Por que está metendo o nariz em coisas que não lhe dizem respeito? - retrucou Riza. - Está pretendendo fazer a mesma coisa? Diante disso, Petite-Ma descobriu quais eram os seus limites. Excetuando-se os momentos em que a primeira esposa vinha à tona, a vida do casal fluiu tranqüila, confortável e feliz nos anos seguintes. Na realidade, um tanto incomum, considerando-se que as famílias em torno deles eram tudo menos felizes. A felicidade dos dois era fonte de inveja para parentes, amigos e vizinhos, que se metiam sempre que possível. Seu tópico preferido era a ausência de filhos naquela união. Muitos

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amigos tentaram persuadir Riza Selim Kazanci a casar com outra mulher antes que fosse tarde demais. Já que a nova lei civil exigia que os homens tivessem apenas uma mulher, ele teria de se divorciar de sua atual esposa, que, segundo todos suspeitavam, deveria ser estéril ou boichevique. Riza Selim Kazanci fazia ouvidos de mercador para tais conselhos. No dia em que Riza Selim Kazanci morreu, uma morte totalmente inesperada, comum a gerações de homens Kazanci, Petite-Ma passou a acreditar no mau-olhado pela primeira vez na vida. Estava certa de ter sido o olhar dos invejosos à sua volta que penetrara as paredes daquele outrora abençoado konak e matara seu marido. Hoje em dia, ela mal se lembrava daquilo. Enquanto seus dedos enrugados e ossudos acariciavam o velho piano, os dias de Petite-Ma com Riza Selim Kazanci bruxuleavam à distância como um indistinto, antigo farol, conduzindo-a erroneamente pelas águas tempestuosas do Alzheimer. No DIVÃ DE UM APARTAMENTO REFORMADO que dava para Torre Gaiata, um bairro onde as ruas nunca dormiam e suas pedras redondas conheciam muitos segredos, sob os raios de um sol poente refletindo-se nas janelas das construções decrépitas e em meio aos guinchos das gaivotas, Asya Kazanci sentava-se nua e imóvel como uma estatueta absorvendo o talento do artista que a tivesse esculpido de um bloco de mármore. Enquanto sua mente perambulava pela terra da fantasia, a espessa fumaça recém-inalada serpenteava por dentro do seu corpo, queimando-lhe os pulmões e animando-lhe o espírito, até que finalmente a exalasse, lenta e relutantemente. - Em que está pensando, meu amor?- No artigo oito do meu Manifesto Pessoal de Niilismo - respondeu Asya, abrindo os olhos enevoados. Artigo Oito: Se entre a sociedade e o Eu há um abismo cavernoso, e sobre esse abismo somente uma ponte trêmula, você pode muito bem queimar a ponte e ficar no lado do Eu, segura e tranqüila, a não ser que seja aquele o abismo que esteja procurando. Asya deu outra tragada e reteve a fumaça. - Vou lhe dar uma comidinha - disse o Cartunista Dipsomaníaco, pegando o baseado da mão dela. Inclinou-se, seu peito peludo apertado contra Asya, que abriu a boca como um bebê cego pronto para ser alimentado. Ele soprou a fumaça diretamente em sua boca, enquanto ela a absorvia vorazmente como alguém sedento ao beber água. Artigo Nove: Se o abismo interior a escraviza mais do que o mundo exterior, você pode muito bem deixar-se cair nele, cair em si mesma. Repetiram o ato, o Cartunista dirigindo a fumaça para a boca de Asya e esta recebendo-a repetidamente até que a última

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baforada desaparecida em sua garganta fosse liberada. - Aposto que está se sentindo melhor agora - arrulhou o Cartunista Dipsomaníaco, seu rosto exprimindo o desejo de mais sexo. - Não há melhor remédio do que uma boa trepada e um bom baseado. Asya mordeu o interior da bochecha para lutar contra o impulso de fazer objeções. Em vez disso, inclinou a cabeça para a janela aberta e esticou os braços como se estivesse prestes a abraçar a cidade inteira, com todo seu caos e esplendor. Enquanto isso, o Cartunista Dipsomaníaco se ocupava em aperfeiçoar sua declaração: - Vamos ver. Não há nada tão superestimado quanto uma trepada ruim e nada tão subestimado quanto uma boa...- Cagada - ajudou Asya.Assentindo vigorosamente com a cabeça, o Cartunista Dipsomaníaco levantou, vestido apenas com as cuecas de seda, expondo uma ligeira barriga de bebedor de cerveja. Andou desajeitadamente até o aparelho de CD para pôr uma música de Johnny Cash, que porventura era uma das favoritas de Asya: "Hurt". Balançando-se no ritmo de abertura da canção, ele voltou com os olhos brilhando: "I hurt rnyselftoday / To see if I still feel..."Asya contraiu o rosto, como se tivesse sido picada por uma agulha invisível.- É uma pena tão grande...- O que é uma pena, meu amor?Ela o encarou com olhos muito abertos e perturbados, que pareciam de alguém com o triplo de sua idade.- É uma droga - gemeu Asya. - Esses empresários e organizadores, seja lá como são chamados, organizam turnês européias, asiáticas ou até turnês viva-a-perestróica na União Soviética... Mas se a pessoa é fã de música em Istambul não se enquadra em nenhuma definição geográfica. Nós caímos no esquecimento. A única razão de não termos tantos shows quanto gostaríamos é a posição geoestratégica de Istambul.- É, deveríamos fazer uma fila na ponte do Bósforo e soprar com toda a força possível para empurrar a cidade na direção do Ocidente. Se isso não funcionasse, poderíamos tentar do outro lado para aproximá-la do Oriente. - Deu uma risadinha. - Não é bom ficar entre os dois. A política internacional não gosta de ambigüidades.Alta, acima das nuvens, Asya não o escutava. Ela acendeu outro baseado e o pôs entre os lábios secos, tragando profundamente com indiferença, ignorando depois a sensação dos dedos dele em sua pele, a língua dele na

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sua.- Devia haver um jeito de chegar até Johnny Cash antes dele morrer. Quer dizer, ele tinha que ter vindo a Istambul, o cara morreu sem saber de seus fãs fervorosos daqui...O Cartunista Dipsomaníaco sorriu suavemente. Beijou o pequeno sinal no rosto esquerdo de Asya, acariciou gentilmente seu pescoço até que suas mãos começaram a descer para os seus seios avantajados, cobrindo-os com as suas mãos. O beijo foi impetuoso, sem pressa, mas também com um toque de força ou mesmo de ferocidade. Com olhos tremeluzentes, ele perguntou:- Quando vamos nos encontrar de novo?- Sempre que a gente se esbarrar no Café Kundera, acho. - Asya deu de ombros, afastando-se dele. Quando ela fez isso, ele se aproximou.- Mas quando vamos nos encontrar aqui na minha casa? - Você quer dizer "quando vamos nos encontrar aqui no meu prostíbulo"? - retrucou Asya, não mais refreando o impulso de criticar. - Porque como ambos sabemos, esta não é a sua casa! Casa é onde está a sua esposa de tantos anos. Este lugar é o seu prostíbulo secreto, onde você pode se embebedar e transar sem que sua mulher saiba. É aqui que você trepa com suas gatinhas. Quanto mais jovens, mais superficiais e mais bêbadas, melhor! O Cartunista Dipsomaníaco suspirou e pegou o copo de raki, bebendo tudo de um gole só. Seu rosto mostrava uma desolação tão intensa que, por um segundo, Asya temeu que ele gritasse com ela ou que começasse a chorar. Não conseguia imaginar que tanta mágoa permanecesse calma. Em vez disso, ele murmurou, com voz rouca- Às vezes você consegue ser tão cruel!Um silêncio sombrio envolveu a sala, abafado pelos gritos das crianças que jogavam futebol na rua. Os gritos agudos davam a impressão de que um dos meninos havia acabado de receber cartão vermelho e todos os jogadores de seu time discutiam agora com o juiz, quem quer que fosse este. - Você tem um lado tão negro, Asya. - A voz do Cartunista Dipsomaníaco vinha de longe. - Como isso não transparece em seu rosto doce, é difícil perceber à primeira vista. Mas está lá. Você tem um potencial infinito para a destruição. - Bem, eu não destruo ninguém, não é? - Asya sentiu necessidade de se defender. - Só quero ser livre, ser eu mesma e toda essa merda... Se ao menos pudessem me deixar em paz...- Se ao menos deixassem você em paz para que se destruísse mais rápido e

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mais cedo... É isso que quer? Você é atraída pela autodestruição como uma mariposa pela luz. Asya deu uma risadinha tensa. O Cartunista Dipsomaníaco continuou: - Quando você bebe, bebe demais; quando critica, passa com um trator; quando cai, chega ao fundo do poço. Francamente, não sei como abordá-la. Você é tão cheia de fúria, meu amor... - Talvez porque eu seja uma bastarda - observou Asya, dando outra tragada no cigarro. - Não sei quem é meu pai. Nunca pergunto, elas nunca me dizem. Às vezes, quando mamãe olha para mim acho que o vê no meu rosto, mas não diz uma palavra. Todas fingimos que essa coisa de pai não existe. Em vez disso, existe apenas Pai com P maiúsculo. Quando se tem Alá no céu para tomar conta de nós, quem precisa de pai? Não somos todos Seus filhos? Não que mamãe acredite nessa merda. Vou lhe dizer: ela é mais cínica do que qualquer mulher que já conheci. E é exatamente esse o problema. Mamãe e eu somos muito parecidas e, no entanto, muito distantes. Soprou uma nuvem de fumaça na direção da mesa de mogno onde o Cartunista Dipsomaníaco guardava seus melhores trabalhos, os que temia que a esposa destruísse depois de uma de suas brigas freqüentes. Também guardava alí os primeiros esboços do Político Anfíbio e Rhinoceros Politicus, duas novas séries em que mostrava os membros do parlamento turco como diferentes animais. Planejava publicar a série logo, especialmente agora que o tribunal concordara em adiar indefinidamente sua pena de prisão de três anos por desenhar o primeiro-ministro como um lobo em pele de ovelha. O principal pré-requisito do adiamento era que ele não repetisse a infração, o que não estava determinado a fazer. De que adiantava lutar pela liberdade de expressão, pensava, se não lutasse pela liberdade do humor primeiro? No canto da mesa, sob a luz acre de uma lâmpada curva de mesa art déco, via-se uma enorme escultura de madeira de Dom Quixote curvado sobre um livro, perdido em ruminações. Asya gostava muito da peça.- Minha família é um bando de maníacas por limpeza, varrendo a sujeira e a poeira das lembranças! Elas falam sempre sobre o passado, mas apenas uma versão expurgada do passado. Essa é a técnica Kazanci de lidar com os problemas: se algo o incomoda, feche os olhos, conte até dez, deseje que nunca tenha acontecido e pronto, nunca aconteceu, viva! Todos os dias engolimos mais um comprimido de hipocrisia... O que estaria lendo Dom Quixote?, imaginou Asya em sua mente bêbada. O que teria escrito naquela página aberta? O escultor teria se dado ao trabalho de escrever algumas palavras? Curiosa, projetou-se do sofá, aproximando-se da

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escultura. Infelizmente não havia palavra nenhuma na página de madeira. Asya deu uma longa tragada no cigarro antes de voltar para o seu lugar e começar as queixas de novo. - Fico irritada de ver todos esses lares-doces-lares. Tristes cópias de famílias felizes. Sabe, às vezes invejo minha Petite-Ma, com seus quase cem anos; como eu gostaria de ter sua doença... Doce Alzheimer. A memória vai se esfiapando. - Isso não é bom, meu amor. - Pode não ser bom para os que estão à volta, mas é bom para a própria pessoa - insistiu Asya. - Bem, geralmente as duas coisas estão interligadas. Asya ignorou aquilo. - Sabe, hoje Petite-Ma abriu o piano depois de muitos anos e a ouvi tocar uns sons dissonantes. Foi deprimente. Aquela mulher costumava tocar Rachmaninoff e agora não consegue tocar nem uma música infantil boba. - Fez uma pausa rápida, refletindo sobre o que acabara de dizer. Às vezes falava primeiro e pensava depois. - Mas a questão é que ela não sabe disso, nós é que sabemos! - exclamou Asya com um entusiasmo forjado. - O Alzheimer não é tão terrível quanto parece. O passado é só uma algema da qual procuramos nos livrar. É um fardo tão penoso! Se eu pudesse não ter passado nenhum, se pudesse não ser ninguém, começar do zero e ficar assim para sempre... Leve como uma pluma. Sem família, lembranças e toda essa merda...- Todos precisam de um passado. - O Cartunista Dipsomaníaco tomou um gole de seu copo, com a expressão pairando entre a pena e a ira. - Não me inclua nisso porque tenho certeza de que não preciso! - Asya pegou o isqueiro Zippo na mesinha do café e acendeu-o com o polegar, fechando-o em seguida com um ruído brusco. Gostava do som e repetiu-o várias vezes, sem saber que deixava o Cartunista Dipsomaníaco levemente irritado. Clique! Clique! Clique! - Acho melhor eu ir - disse Asya. Entregou-lhe o Zippo e procurou suas roupas. - Minha querida família me incumbiu de um importante dever. Tenho que ir ao aeroporto com mamãe para receber minha correspondente americana. - Você tem uma correspondente americana? - De certo modo. A garota surgiu do nada. Um dia acordei e havia uma carta na minha caixa de correio, adivinha de onde? San Francisco! De uma garota chamada Amy. Ela diz que é enteada de meu tio Mustafá. Nem sabíamos que o homem tinha uma enteada! Então agora descobrimos que esse é o segundo casamento da mulher dele. Ele nunca nos contou isso! Minha avó quase teve um ataque do coração quando descobriu que a mulher que está casada com seu precioso filho há vinte anos não era virgem quando se casaram. De modo nenhum, nada de virgem, mas uma divorciada! Asya fez uma pausa para honrar a música que começara a tocar. Era "It Ain't Me, Babe".

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Assobiou a melodia e então pronunciou as palavras antes de voltar a seu discurso. - Enfim, do nada essa Amy me escreve dizendo que estuda na Universidade do Arizona e está profundamente interessada em conhecer outras culturas, ansiosa por entrar em contato conosco um dia, blablablá. E então diz a que veio: "Por falar nisso, vou para Istambul daqui a uma semana. Posso ficar na casa de vocês?" - Uau! - exclamou o Cartunista Dipsomaníaco, colocando três cubos de gelo em seu copo reabastecido de rakz. - Mas ela diz por que está vindo para cá, entre tantos outros lugares? Só como turista? - Não sei - murmurou Asya, ajoelhada no chão, procurando uma de suas meias debaixo do divã. - Mas levando-se em consideração que ela é uma estudante universitária, aposto que está fazendo uma pesquisa sobre "o islã e a opressão das mulheres" ou os "precedentes patriarcais no Oriente Médio". Caso contrário, por que ia querer ficar no nosso hospício cheio de mulheres quando há tantos hotéis na cidade, baratos e na moda? Tenho certeza de que ela quer nos entrevistar sobre a situação das mulheres nos países muçulmanos e toda essa... - Merda! - O Cartunista Dipsomaníaco completou a frase para ela. - Exatamente! - exclamou Asya triunfante, tendo encontrado opé de meia perdido. Rapidamente vestiu a saia e a blusa e passou uma escova nos cabelos. Bem, leve-a ao Café Kundera um dia desses. - Vou convidá-la, mas acho que em vez disso vai preferir um museu - grunhiu Asya ao colocar as botas de couro. - Bem, certamente terei que passar algum tempo com ela, já que minha família continua insistindo que eu a leve a todos os lugares para que ela se maravilhe com Istambul. Querem que ela cante a cidade em prosa e verso quando voltar aos Estados Unidos. Apesar das janelas abertas, o quarto ainda cheirava pesadamente a maconha, raki e sexo. Ao fundo, Johnny Cash cantava alto. Pegando a bolsa, Asya caminhou em direção à porta. Entretanto, quando estava prestes a sair, o Cartunista Dipsomaníaco bloqueou-lhe o caminho. Encarando-a, agarrou seus ombros e puxou-a suavemente para si. Seus olhos castanho-escuros tinham as olheiras e as bolsas comuns aos alcoólatras, aos sofredores ou a ambos. - Asya querida - sussurrou, o rosto tocado por uma compaixão que ela jamais vira antes -, apesar de todo o veneno que guarda em si, e talvez exatamente por causa disso, você é, de um modo estranho, uma alma gêmea da minha, muito especial. Eu amo você. Me apaixonei por você no primeiro dia em que apareceu no Café Kundera, com aquela expressão perturbada. Não sei se isso significa algo para você, mas vou confessar mesmo assim. Antes de

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ir embora, precisa entender que isto não é um prostíbulo, que eu não trago "gatinhas" para cá. Venho aqui para beber, desenhar e ficar deprimido, ficar deprimido, desenhar e beber, e às vezes desenhar, ficar deprimido e beber... Só isso... Totalmente atônita, Asya agarrou a maçaneta e ficou imóvel por um momento na entrada. Sem saber onde colocar as mãos, enfiou-as nos bolsos da saia, tateando algo ali que pareciam migalhas. Retirou as mãos e viu as pontas dos dedos cobertas de sementes de um tom marrom, abençoadas por Petite-Ma, para protegê-la contra o mau-olhado. - Olhe só isso! Trigo.., trigo... - Asya emitiu arrastadamente a palavra de todos os modos. - Petite-Ma está tentando me proteger do mal. - Abriu a mão e deu a ele um grão de trigo. Assim que o fez, contudo, enrubesceu como se tivesse revelado um segredo de amor. Com as faces ainda vermelhas, a amargura não mais temperada pela assertividade, Asya abriu a porta. Saindo o mais rapidamente que pôde, ela hesitou por um segundo antes de se virar. Deu a impressão de querer dizer algo, mas em vez disso deu um enorme abraço nele. Então lançou-se pelos cinco lances de escada abaixo e correu o mais rápido que pôde de todos os tormentos que perseguiam sua alma.

***8PINHÕES

- COMO É POSSÍVEL QUE ELA AINDA ESTEJA DORMINDO? - perguntou Asya, apontando com o queixo na direção do quarto. Ao voltarem do aeroporto, para seu desânimo, descobrira que as tias haviam colocado uma segunda cama bem em frente à dela, transformando seu único espaço privado no "quarto das garotas". Tinham feito isso por estarem sempre procurando novos meios de atormentá-la ou porque o quarto tinha uma vista melhor e queriam dar uma boa impressão à hóspede; ou então tinham considerado o arranjo mais uma oportunidade de promover a aproximação das meninas segundo o projeto PAIEC - Promover a Amizade Internacional e o Entendimento Cultural. Não tendo absolutamente nenhum desejo de compartilhar seu espaço com uma total desconhecida, mas incapaz de protestar 160 na frente da hóspede, Asya relutantemente consentira. Agora, porém, sua tolerância estava chegando ao fim. Como se não bastasse colocarem a garota americana em seu quarto, as mulheres Kazanci

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pareciam determinadas a não jantar antes que a convidada de honra se juntasse a elas. Assim, embora o jantar tivesse sido posto há mais de uma hora e todas já estivessem sentadas à mesa, inclusive Sultão V, ninguém tinha terminado de comer, inclusive Sultão V. De vinte em vinte minutos mais ou menos, alguém levantava para aquecer a sopa de lentilhas e reaquecer o prato de carne, carregando as panelas entre a cozinha e a sala, enquanto Sultão V seguia o cheiro todas as vezes com miados implorantes. Assim estavam todas, grudadas nas cadeiras, assistindo à TV no volume mais baixo e falando em sussurros. Entretanto, já que continuavam beliscando um ou Outro prato, todas, exceto Sultão V, já tinham comido mais do que normalmente fariam de uma só vez. - Talvez ela já tenha acordado e esteja deitada por ser muito tímida ou coisa assim. Por que não vou lá e dou uma espiada? - perguntou Asya. - Fique aí, mocinha. Deixe a menina dormir. - Tia Zeliha franziu as sobrancelhas. Com um olho na tela e outro no controle remoto, tia Fende concordou: - Ela precisa dormir. É por causa do cansaço da viagem. Ela atravessou não só as correntes oceânicas, como também diferentes fusos horários. - Bem, pelo menos algumas pessoas nesta casa podem dormir o tempo que quiserem - resmungou Asya. Naquele exato momento, uma trilha sonora começou a tocar ao fundo e o programa que todas esperavam apareceu na telinha: a versão turca de "O Aprendiz". Num transe silencioso, viram o Donald Trump turco materializar-se por detrás da cortina de cetim de um espaçoso escritório que dava para o maravilhoso panorama da ponte do Bósforo. Após um rápido e condescendente olhar para as duas equipes que esperavam suas ordens, o empresário informou-lhes suas tarefas. Cada equipe era instruída a desenhar uma garrafa de água, 161 mineral, encontrar um jeito de fabricar 99 delas e depois vendê-las o mais rapidamente possível pelo preço mais alto num dos bairros mais luxuosos da cidade. - Não considero isso um desafio - arfou Asya. - Se eles querem um verdadeiro desafio, deveriam mandar os concorrentes aos bairros mais religiosos e conservadores de Istambul e fazer com que vendessem vinho tinto lá. - Ah, fique quieta - rebateu tia Banu, suspirando. Estava descontente com as zombarias constantes da sobrinha sobre religião e religiosidade; naquele aspecto, conseguia ver nitidamente a quem Asya puxara: sua mãe. Se a blasfêmia passasse geneticamente de mãe para filha, mais ou menos como o câncer de mama ou a diabetes, de que adiantava corrigi-la? Então suspirou de novo. Ignorando a angústia que instilava na tia, Asya encolheu os ombros: -

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Mas por que não? Seria muito mais criativo do que essa absurda imitação turca dos Estados Unidos. Devemos sempre amalgamar o material técnico tirado do Ocidente com os traços particulares da cultura a que nos dirigimos. Éo que eu chamo de um Donald Trump engenhosamente à moda turca. Portanto, ele deveria pedir aos competidores para vender porco enlatado num bairro muçulmano, por exemplo. Isso sim. Isso seria um desafio. Vamos ver essas estratégias de mercado florescerem. Antes que alguém pudesse comentar, a porta do quarto se abriu com um estalo e de lá saiu Armanoush Tchakhmakhchian, um pouco tímida, um pouco tonta. Usava jeans desbotado e uma camiseta azul-marinho comprida e solta o suficiente para esconder as formas de seu corpo. Ao fazer a mala para a viagem à Turquia, ela pensara muito em que roupa levar e acabara escolhendo trajes mais modestos para não parecer estranha num lugar conservador. Assim, foi com um choque que se deparou, no aeroporto de Istambul, com tia Zeliha de saia escandalosamente curta e saltos ainda mais escandalosamente altos. Contudo, o mais surpreendente foi encontrar depois tia Banu de véu na cabeça e vestido comprido e saber como era devota, orando cinco vezes por dia. O fato de aquelas duas mulheres, apesar do contraste gritante na aparência e obviamente na personalidade, serem irmãs vivendo sob o mesmo teto era um enigma que Armanoush imaginou que levaria tempo para decifrar. - Bem-vinda, bem-vinda! - exclamou tia Banu alegremente, esgotando rapidamente seu vocabulário de inglês. Assim que a viram se aproximar, as quatro tias à mesa mexeram-se constrangidas com a falta de intimidade, mas mesmo assim sorrindo de orelha a orelha. Curioso para conhecer o cheiro de uma estrangeira, Sultão V imediatamente se ergueu e traçou um círculo estreito em volta de Armanoush, farejando seus chinelos até chegar à conclusão de que não havia nada de interessante ali. - Desculpem, não sei como dormi tanto tempo - gaguejou Armanoush, num inglês em câmera lenta. - Claro, seu corpo precisava de descanso. Foi um longo vôo - disse tia Zeliha. Embora seu sotaque fosse patente e tendesse a acentuar as sílabas erradas, parecia bastante confortável em se expressar em inglês. - Não está com fome? Espero que goste de comida turca. Capaz de reconhecer a palavra comida em todas as línguas possíveis, tia Banu disparou para a cozinha a fim de trazer a sopa de lentilhas. Quase roboticamente, Sultão V pulou por cima de sua almofada para segui-la, miando e implorando pelo caminho. Ao sentar na cadeira reservada a ela, Armanoush examinou a sala pela primeira vez. Olhou em volta, cautelosa e rapidamente, parando em

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certos pontos: a cristaleira esculpida em pau-rosa com porta de vidro que guardava xícaras de café douradas, jogos de copos para chá e várias anrigüidades; o velho piano junto à parede; o requintado tapete no chão; os vários paninhos de crochê fulgurando em cima das mesas de café, das poltronas de veludo e até da televisão; o canário numa gaiola enfeitada que balançava junto à porta da sacada; os quadros nas paredes - a bucólica pintura a óleo de uma paisagem campestre pitoresca demais para ser real -; um calendário com as fotos de um sítio natural e cultural da Turquia, diferentes para cada mês do ano; um amuleto contra mau-olhado; um retrato de Atatürk de smoking e chapéu Fedora, acenando com ele para uma multidão invisível na foto. A sala toda pulsava com lembranças e tons vívidos - azuis, marrons-avermelhados, verdes-mares, turquesas - fulgurando com tal luminosidade que parecia haver uma luz a mais, além da irradiada pelas lâmpadas. Armanoush olhou então para os pratos na mesa com grande interesse. - Que mesa deslumbrante - disse, encantada. - São as minhas comidas preferidas. Vejo que fizeram homus, babaganush, yalancz sarma... e olha só, churek! - Aaaah, você fala turco?! - exclamou tia Banu, perplexa, ao voltar com uma panela fumegante nas mãos e Sultão V atrás dela. Armanoush negou com a cabeça, meio divertida, meio solene, como se lamentasse decepcionar tanta expectativa. - Não, não, eu não falo turco, infelizmente, mas acho que falo a culinária turca. Incapaz de entender o último trecho, tia Banu virou-se para Asya em desespero, mas esta parecia desinteressada em desempenhar seu papel de tradutora, absorta na tarefa atribuída pelo Donald Trump turco. Os competidores agora tinham sido instruídos a mergulhar fundo na indústria têxtil para redesenhar o uniforme amarelo e azul-celeste de um dos maiores times de futebol que competiam na liga nacional. O desenho mais apreciado pelos próprios jogadores ganharia a disputa. Enquanto isso, Asya também imaginava um plano alternativo para essa tarefa específica, mas dessa vez resolveu guardá-lo para si. Não estava com vontade de falar. Para dizer a verdade, a garota americana era bem mais bonita do que esperava; não que esperasse coisa alguma, mas, bem lá no fundo, Asya tinha imaginado e talvez desejado que tivessem recebido no aeroporto uma loura burra. Por alguma razão desconhecida, Asya queria confrontar a hóspede, mas não tinha motivo nem energia. Naquele momento, preferia continuar distante e reservada para deixar claro que repudiava aquela hospítalidade turca.- Então, conte tudo - pediu tia Fende depois de examinar o penteado da

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garota americana e achá-lo muito comum. - Como são os Estados Unidos? O absurdo da pergunta foi suficiente para fazer Asya perder a compostura, por mais firme que fosse sua decisão de permanecer distante. Lançou à tia um olhar desalentado. Mas se Armanoush também achara a pergunta ridícula, não demonstrou. Era boa com tias. Tias eram a sua especialidade. Com a bochecha direita ainda cheia do homus, Armanoush respondeu: - É um país ótimo. É muito grande, vocês sabem. Dependendo de onde se vive, há diferentes Estados Unidos. - Pergunte como está Mustafá - pediu avó Gülsüm, descartando completamente as últimas informações, que não tinha entendido. - Ele está bem, trabalhando muito - respondeu Armanoush, enquanto ouvia simultaneamente a melodiosa voz de tia Zeliha traduzir suas palavras. - Eles têm uma casa adorável e dois cachorros. O deserto é lindo. E o clima no Arizona é sempre bom, vocês sabem, agradável e ensolarado... Depois da sopa e das entradas, avó Gülsüm e tia Fende fizeram uma visita à cozinha e voltaram de lá cada qual com uma enorme bandeja, num caminhar egípcio perfeitamente sincronizado, depositando as bandejas na mesa. - Vocês fizeram pilaf! - Armanoush sorriu e se inclinou para a frente, examinando os pratos. - Tem turu e... - Uau! - exclamaram as tias em uníssono, impressionadas com o domínio da hóspede sobre culinária turca. Subitamente, Armanoush viu a última panela trazida para a mesa. - Ah, gostaria que minha avó visse isso. Puxa, é um manjar dos deuses, kaburga... - Uau! - ecoou o coro. Até Asya se animou com uma pontinha de interesse. - Restaurante turco muitos Estados Unidos? - perguntou tia Cevriye. - Na verdade eu conheço essa comida porque é parte também da culinária armênia - respondeu Armanoush lentamente. Apresentada à família como Amy, enteada de Mustafá, uma garota americana de San Francisco, pretendera inicialmente revelar aos poucos o segredo da outra metade de sua identidade e só depois de construir uma certa relação de confiança entre ela e as anfitriãs. Mas ali estava, galopando a toda velocidade para o âmago da questão. Agora tensa mas igualmente autoconfiante, Armanoush endireitou as costas e olhou de uma ponta à outra da mesa para ver como cada uma estava reagindo. As expressões vazias diante dela a impeliram a se explicar melhor. - Sou armênia... Bem, armênia-americana. Daquela vez as palavras não foram traduzidas. Não era necessário. As quatro tias sorriram simultaneamente, cada uma a seu modo: a primeira educada, a segunda preocupada, a terceira curiosa e a última afavelmente. Mas a reação mais

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visível veio de Asya. Parando de assistir a "O Aprendiz", lançou um olhar de genuíno interesse à hóspede pela primeira vez, percebendo que, afinal de contas, ela poderia não estar ali para pesquisar sobre "o islã e as mulheres". - Ah, é? - Asya finalmente abriu a boca, inclinando-se para frente e colocando os cotovelos na mesa. - Diga, é verdade que o System of a Down nos odeiam? Armanoush pestanejou, sem ter a menor idéia do que ela estava falando. Bastou um rápido olhar para fazê-la entender que não estava sozinha em sua perplexidade; as tias também pareciam confusas. -É uma banda de rock de que eu gosto muito. Os caras são armênios e há todas aquelas lendas urbanas sobre como eles odeiam os turcos e não querem que os turcos gostem da música deles, então eu estava curiosa. - Asya deu de ombros, visivelmente descontente de ter que dar tal explicação para um bando de gente tão ignorante. - Não conheço nada deles. - Armanoush apertou os lábios. De repente se sentiu tão pequena, tão débil, vulnerável e solitária por ser estrangeira numa terra estranha. - Minha família era de Istambul... Isto é, minha avó. - Apontou para Petíte-Ma como se precisasse de uma pessoa idosa para ilustrar melhor a história.- Pergunte o nome da família dela. - Avó Gülsüm tocou Asya com o cotovelo, parecendo possuir a chave de um arquivo secreto no porão onde os registros de todas as famílias de Istambul, do passado e do presente, eram cuidadosamente guardados. - Tchakhmakhchian - respondeu Armanoush quando pergunta lhe foi traduzida. - Podem me chamar de Amy se quiserem, mas meu nome inteiro é Armanoush Tchakhmakhchian. O rosto de tia Zeliha animou-se ao exclamar: - Sempre achei isso interessante. Os turcos acrescentam o sufixo -ci a toda palavra para gerar a profissão. Olhe o nome de nossa família: Kazan-ci. Somos os "fabricantes de caldeirões". Vejo que os armênios fazem a mesma coisa. Çakmak... Çakmakçi, Çakmakçi-yan. - Então há mais uma coisa em comum. - Armanoush sorriu. Tia Zeliha tinha algo que ela apreciara imediatamente. Seria o modo como se portava, com aquele piercing no nariz que chamava a atenção, as minissaias radicalmente curtas e a maquiagem excessiva? Ou seria o seu olhar? De algum modo, seu olhar demonstrara compreender sem julgar. - Olhe, tenho o endereço da casa. - Armanoush pescou um pedaço de papel do bolso. - Minha avó Shushan nasceu nessa casa. Se vocês puderem me explicar como chego lá, gostaria de visitá-la qualquer dia desses. Enquanto tia Zeliha examinava o que estava escrito no papel, Asya notou que algo aborrecia tia Fende. Lançando olhares de pânico à porta

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parcialmente aberta da sacada, ela parecia agitada, como alguém enfrentando uma situação perigosa e sem saber para onde fugir. Asya se inclinou de lado e, curvada sobre o pilaf fumegante, murmurou para a tia maluca: - E aí, qual é o problema? Tia Fende também se inclinou de lado, curvada sobre o pilaffumegante, e, com fagulhas excêntricas nos olhos verde-acinzentados, sussurrou:- Ouvi histórias de que alguns armênios voltam para suas antigas casas para desenterrar os baús que os avós esconderam antes de fugir. - Apertou os olhos e subiu a voz um tom. - Ouro e jóias... - Ofegou e fez uma pausa para pensar um pouco naquilo até conciliar-se afavelmente consigo mesma: - Ouro e jóias! Asya precisou de mais alguns segundos para entender o que a tia dizia. - Você sabe o que estou dizendo, essa menina está aqui para encontrar um baú de tesouro - acrescentou tia Fende agitada, despejando o conteúdo de um baú imaginário, seu rosto animando-se com o sabor da aventura e o fulgor dos rubis. - Você está certíssima! - exclamou Asya. - Não te contei? Ela saiu do avião carregando uma pá e empurrando um carrinho de mão em vez da bagagem... - Ah, cale a boca! - rebateu tia Fende, ofendida, cruzando os braços e encostando-se no espaldar da cadeira. Enquanto isso, tendo detectado um motivo muito mais profundo por trás da visita de Armanoush, tia Zeliha perguntou: - Então você veio conhecer a casa da sua avó. Mas por que ela foi embora? Armanoush sentia-se tão ansiosa para que lhe fizessem essa pergunta quanto relutante em respondê-la. Seria cedo demais para contar a elas? Quanto de sua história deveria revelar? Se não fosse agora, qual seria o momento certo? De qualquer modo, por que tinha que esperar? Tomou um gole do chá. Numa voz indiferente, quase insidiosa, respondeu: - Eles foram obrigados a ir embora. - Mas logo que disse isso, seu desalento sumiu. Armanoush ergueu o queixo e acrescentou: - O pai do meu avô, Hovhannes Stamboulian, era poeta e prosador. Era um homem importante, profundamente respeitado na comunidade. - O que ela está dizendo? - Tia Fende acotovelou Asya, entendendo a primeira metade da frase mas perdendo o resto. - Ela disse que a família dela era importante em Istambul - murmurou Asya. 168 - Dedim sana altin liralar icin gelmi olmali... Eu lhe disse que ela veio para cá em busca de moedas de ouro! Asya olhou para o teto de um modo menos sarcástico do que pretendia antes de se concentrar na história de Armanoush. - Eles me contaram que Hovhannes era um escritor e que gostava mais de ler e contemplar do que de qualquer outra coisa no mundo. Minha avó diz que eu

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a faço se lembrar dele. Também gosto muito de livros - acrescentou Armanoush, com um sorriso tímido. Algumas ouvintes sorriram também e, depois da tradução, todas sorriram. - Mas infelizmente o nome dele estava na lista - disse Armanoush com hesitação. - Que lista? - perguntou tia Cevriye. - A lista dos intelectuais armênios a serem eliminados. Líderes políticos, poetas, escritores, membros do clero... Duzentas e trinta e quatro pessoas no total. - Mas por que isso? - perguntou tia Banu, mas Armanoush preferiu não responder. - No sábado de 24 de abril, à meia-noite, dúzias de armênios ilustres que moravam em Istambul foram presos e levados à força para o quartel-general da polícia. Todos tinham se vestido com apuro, de um modo especialmente cuidadoso, como se fossem a uma cerimônia. Usavam colarinhos imaculados e ternos elegantes. Todos eram homens de letras. Foram mantidos no quartel-general sem nenhuma explicação até finalmente serem deportados para Ayash ou Chankiri. Os do primeiro grupo estavam em piores condições do que os do segundo. Ninguém sobreviveu em Ayash. Os levados para Chankiri foram executados gradualmente. Meu avô estava nesse grupo. Eles pegaram o trem de Istambul para Chankiri sob a supervisão de soldados turcos. Tiveram que caminhar cinco quilômetros da estação até a cidade. Até então, tinham sido tratados decentemente. Porém, durante a caminhada para a cidade receberam pancadas com bastões e cabos de picaretas. O lendário músico Komitas enlouqueceu pelo que presenciou. Chegando a Chankiri, foram libertados com uma condição: estavam proibidos de deixar a cidade. Então alugaram 169 quartos por lá e passaram a viver com os habitantes. Todos os dias, dois ou três eram levados pelos soldados para fora da cidade para uma caminhada e, em seguida, os soldados voltavam sozinhos. Um dia levaram meu avô para um passeio também. Ainda sorrindo, tia Banu olhou para a direita e para a esquerda, primeiro para a irmã e depois para a sobrinha, para ver quem iria traduzir tudo aquilo. Mas, para sua surpresa, só viu perplexidade no rosto das duas. - De qualquer modo, é uma longa história. Não vou tomar o tempo de vocês com todos os detalhes. Quando o pai da minha avó Shushan morreu, ela tinha três anos de idade. Eram quatro irmãos, minha avó era a mais jovem e a única menina. A família ficou sem seu patriarca. A mãe da minha avó se tornou viúva. Como achou difícil ficar em Istambul com as crianças, buscou refúgio na casa de seu pai, que ficava em Sivas. Mas assim que chegaram, começaram as deportações. A família toda recebeu ordem de deixar a casa e marchar com milhares de outros para um destino desconhecido. Armanoush

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estudou cuidadosamente sua platéia e resolveu terminar a história. - Caminharam por muito tempo. A mãe da minha avó morreu pelo caminho e logo os mais velhos também morreram. Não tendo nenhum parente para cuidar delas, as crianças mais novas se perderam umas das outras no meio da confusão e do caos. Mas depois de meses separados, os irmãos foram reunidos no Líbano por um milagre com a ajuda de um missionário católico. O único irmão perdido entre os sobreviventes era minha avó Shushan. Ninguém sabia o paradeiro dela. Ninguém sabia que fora levada de volta a Istambul e colocada num orfanato. Com o canto do olho, Asya podia ver que a mãe agora a olhava atentamente. No início, suspeitou que tia Zeliha tentava lhe dizer que censurasse a história ao traduzi-la. Mas então percebeu que os olhos da mãe vibravam com interesse pela história de Armanoush. Talvez estivesse cogitando também quanto de tudo isso a filha rebelde traduziria para as mulheres Kazanci.- O irmão mais velho da avó Shushan precisou de dez anos para descobrir seu paradeiro. Finalmente meu tio-avô Vervant encontrou-a e levou-a para os Estados Unidos para se juntar aos parentes - acrescentou Armanoush com suavidade. Tia Banu inclinou a cabeça para o lado e pôs-se a desfiar as contas do rosário de âmbar com seus dedos ossudos e de unhas nunca feitas enquanto murmurava: - "Todos os que estão sobre a terra passarão: só permanecerá o rosto, majestoso e munificente, de teu Senhor, o Poderoso, o Sábio." - Mas não entendo. - Tia Fende foi a primeira a levantar dúvidas. - O que aconteceu com eles? Morreram porque caminharam? Antes de traduzir, Asya olhou para a mãe para ver se devia continuar traduzindo. Tia Zeliha ergueu as sobrancelhas e fez um sinal afirmativo com a cabeça. Armanoush fez uma breve pausa e acariciou a medalha de são Francisco de Assis de sua avó antes de responder. Avistou Petite-Ma na outra extremidade da mesa, sua pele amarelada com as rugas de tantos anos, fixando-a com uma expressão tão cheia de compaixão que Armanoush suspeitou de duas possibilidades: ou ela não tinha prestado atenção à história e não estava mais ali, ou a tinha ouvido tão atentamente que a vivenciara e não estava mais ali. - Negaram-lhes água e comida e os obrigaram a andar por muito tempo. As mulheres, algumas delas grávidas, as crianças, os velhos e os debilitados... - A voz de Armanoush diminuiu gradualmente. - Muitos morreram de fome. Outros foram executados. Dessa vez, Asya traduziu tudo sem pular uma palavra. - Quem cometeu essa atrocidade?! - exclamou tia Cevriye, como diante de uma turma de alunos indisciplinados. Tia Banu juntou-se à reação da irmã,

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embora estivesse mais inclinada à descrença do que à raiva. Com os olhos muito abertos puxou as pontas do véu da cabeça, como sempre fazia em momentos de estresse, e depois murmurou uma prece, como sempre fazia quando puxar as pontas do véu não levava a nada. - Minha tia está perguntando quem fez isso - disse Asya. 171 - Os turcos - respondeu Armanoush, sem atentar às implicações. - Que vergonha, que pecado! Eles não são humanos? - rebateu tia Fende. - Claro que não, algumas pessoas são monstros! - declarou tia Cevriye, sem compreender que as repercussões poderiam ser muito mais complexas do que se preocuparia em saber. Com vinte anos de carreira como professora de história nacional turca, estava tão acostumada em traçar um limite impermeável entre o passado e o presente, distinguindo o Império Otomano da moderna República da Turquia, que realmente ouvira toda a história como notícias sinistras de um país distante. O novo Estado da Turquia fora estabelecido em 1923 e aquela data era o máximo a que a gênese daquele regime podia se estender. O que quer que tivesse acontecido antes daquela data inicial dizia respeito a outra era - e a outro povo. Intrigada, Armanoush olhou-as uma a uma. Estava aliviada ao ver que a família não recebera tão mal a história como temia, mas também não sabia se a tinham realmente recebido. Na verdade, elas não tinham se recusado a acreditar nem contra-argumentaram. Limitaram-se a ouvir atentamente e todas pareciam lamentar. Mas qual seria o limite de sua comiseração? E o que exatamente ela estava esperando? Armanoush sentiu-se levemente desconcertada ao imaginar se teria sido diferente se estivesse conversando com um grupo de intelectuais. Lentamente, ocorreu-lhe que talvez esperasse uma admissão de culpa, se não um pedido de desculpas. E mesmo assim as desculpas não vieram; não porque não lamentassem por ela, pois aparentemente lamentavam, mas porque não tinham feito nenhuma ligação entre si mesmas e os perpetradores dos crimes. Como armênia, Armanoush encarnava os espíritos de gerações e gerações anteriores de seu povo, enquanto o turco comum não tinha essa noção de continuidade em relação a seus ancestrais. Os armênios e os turcos viviam em diferentes estruturas de tempo. Para os armênios, o tempo era um ciclo no qual o passado encarnava-se no presente e o presente dava nascimento ao futuro. Para os turcos, o tempo era uma linha mista de formações ancestrais, onde o passado terminava em algum ponto definido e o presente começava de novo do zero, havendo apenas uma ruptura entre os dois. - Mas você não comeu nada. Vamos, minha filha, você viajou muito, agora coma -

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disse tia Banu, mudando o tópico para a comida, um dos dois remédios para a tristeza que ela conhecia. - É muito boa, obrigada. - Armanoush pegou o garfo. Notou que elas cozinhavam o arroz exatamente como sua avó, com manteiga e pinhões salteados. - Ótimo, ótimo! Coma, coma! - Tia Banu sacudiu a cabeça com o máximo vigor, num sinal afirmativo. Com o coração apertado, Asya observou Armanoush educadamente aceitar a oferta e pegar o garfo para voltar à sua kaburga. Abaixou a cabeça, perdendo o apetite. Não que estivesse ouvindo a história da deportação dos armênios pela primeira vez. Já tinha ouvido coisas antes, algumas a favor e a maioria contra. Mas era muito diferente ouvir o relato de uma pessoa em carne e osso. Nunca antes Asya encontrara alguém tão jovem com lembranças tão antigas. Contudo, não foi preciso muito tempo para que a niilista dentro dela se livrasse da depressão. Asya deu de ombros. Quem liga? O mundo era uma merda de qualquer forma. Passado e futuro, aqui e ali... era tudo a mesma coisa. A mesma infelicidade em toda a parte. Ou Deus não existia ou estava simplesmente distante demais para ver a miséria em que enfiara todos nós. A vida era mesquinha e cruel, e um monte de outras coisas que ela já estava cansada de saber. Seu olhar enevoado se direcionou para a telinha, onde o Donald Trump turco fritava os três membros mais culpados do grupo que perdera. Os uniformes desenhados para o time de futebol revelaram-se tão horríveis que mesmo o mais condescendente dos atletas tinha se recusado a usá-lo. Alguém precisava ser demitido. Como se um botão fosse apertado, os três competidores começaram a se insultar mutuamente para evitar a eliminação. Retraída, Asya passou a um sorriso desdenhoso. Aquele era o mundo em que vivemos. História, política, sociedade, competição, marketing, mercado livre, luta pelo poder, cada um pulando no pescoço do outro por mais uma dose de triunfo... Ela certamente não queria mais nada daquilo e de toda aquela... ...merda. Ainda com um olho na tela, mas já tendo recuperado totalmente o apetite, Asya puxou a cadeira para a frente e começou a encher o prato. Pegou um grande pedaço de kaburga e pôs-se a comer. Quando ergueu a cabeça, esbarrou com o olhar penetrante da mãe e rapidamente desviou os olhos. DEPOIS DO JANTAR, ARMANOUSH FOI PARA O QUARTO das garotas para dar dois telefonemas. Primeiro ligou para San Francisco, ficando cara a cara com um pôster de Johnny Cash na parede, bem acima da mesa. - Vovó, sou eu! - exclamou animada, mas parou imediatamente. - Que barulho é esse? - Ah, nada, meu bem - veio a resposta. - Estão consertando os canos do

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banheiro. Parece que seu tio Dikran fez alguma coisa errada neles um dia desses. Tivemos que chamar um bombeiro. Diga, como você está? Prevendo a pergunta, Armanoush falou sobre sua rotina diária no Arizona. Embora se sentisse mal por estar enganando-a, tentou diminuir sua culpa pensando que era melhor assim. Como podia dizer à avó "não estou no Arizona, estou na cidade onde você nasceu!"? Depois de desligar, esperou alguns minutos. Pensativa, respirou profundamente, reuniu coragem e deu um segundo telefonema. Decidiu ficar calma e não parecer frustrada; uma promessa que descobriu ser difícil de cumprir ao ouvir a voz tensa da mãe. - Amy, meu bem, por que não me ligou antes? Como vai? Como está o tempo em San Francisco? Estão tratando você bem? 174 - Estão, mamãe. Eu estou bem. O tempo está... - Armanoush lamentou não ter verificado o clima em San Francisco pela internet. - Bom, ventando um pouco, como sempre... - É - interrompeu Rose -, liguei para você muitas vezes, mas seu celular estava fora de área. Ah, fiquei tão preocupada! - Mamãe, escute, por favor - disse Armanoush, surpresa com a determinação da própria voz. - Não me sinto bem quando você fica ligando para a casa da vovó. Vamos combinar uma coisa, está bem? Prefiro ligar para você do que você me ligar. Por favor. - Eles estão te obrigando a dizer isso? - perguntou Rose, cheia de suspeita. - Não, mãe, claro que não. Pelo amor de Deus! Eu é que estou pedindo. Embora relutante, Rose aceitou o combinado. Queixou-se de não ter tempo nenhum para si mesma, com os dias divididos entre a casa e o trabalho. Mas então se animou ao lhe contar que havia uma liquidação no Home Depot e que ela e Mustafá tinham concordado em comprar novos armários para a cozinha. - Dê a sua opinião - entusiasmou-se Rose. - O que acha de cerejeira? Ficaria bem na nossa cozinha? - É, acho que sim... - Também acho. E carvalho escuro? É um pouco mais caro, mas é classudo. Qual dos dois acha melhor? - Não sei, mãe, o carvalho escuro é bonito também. - É, mas você não está me ajudando muito - suspirou Rose. Quando desligou, Armanoush olhou à sua volta e sentiu um estranho distanciamento. Os tapetes turcos, as antigas lâmpadas de cabeceira, a mobília pouco familiar, livros e jornais que falavam outra língua... Subítamente foi invadida por um pânico que não sentia desde criança. Quando tinha seis anos, ela e a mãe haviam ficado sem gasolina no meio do nada no Arizona. Tiveram de esperar uma hora antes que outro veículo passasse por elas. Rose ergueu o polegar e um caminhão parou para apanhá-las. Nele estavam dois sujeitos de aparência rude, musculosos, mal-encarados e assustadores. Sem dizer uma palavra,

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levaram-nas até o posto de gasolina mais próximo. Depois que saíram do caminhão e este desapareceu, Rose abraçou Armanoush com os lábios trêmulos, chorando de pânico. "Ah, Deus, e se fossem pessoas más? Podiam ter nos seqüestrado, estuprado e matado. Ninguém teria descoberto nossos corpos. Como fui me arriscar assim?" Armanoush tinha uma sensação parecida com aquela agora, embora não tão dramática. Estava em Istambul na casa de estranhas sem que ninguém da família soubesse. Como podia ter agido tão impulsivamente? "E se fossem pessoas más?"***9CASCAS DE LARANJA

No DIA SEGUINTE, Asya Kazanci e Armanoush Tchakhmakhchian saíram do konak de manhã cedo para procurar a casa onde a avó Shushan nascera. Encontraram o bairro facilmente - um bairro encantador, chique, no lado europeu da cidade. A casa, porém, não existia mais. Em seu lugar, havia um moderno edifício de apartamentos de cinco andares. O primeiro andar inteiro era um restaurante aparentemente de primeira classe especializado em peixes. Antes de entrar, Asya examinou o próprio reflexo no espelho, ajeitando o cabelo e observando os seios, insatisfeita. Como era muito cedo para o jantar, não havia ninguém lá dentro exceto alguns garçons, que varriam do chão os vestígios da noite anterior, e um cozinheiro troncudo de faces rosadas na cozinha preparando as mezes e os pratos principais da noite, entre uma nuvem de cheiros de dar água na boca. Asya falou com cada um deles, perguntando sobre o passado do edifício. Os garçons, porém, tinham chegado à cidade recentemente, migrando de um povoado curdo do sudeste, e o cozinheiro, embora vivesse há mais tempo em Istambul, não tinha lembrança alguma da história da rua. - Das famílias antigas de Istambul, poucas permaneceram onde nasceram - explicou o cozinheiro com ar de autoridade, enquanto começava a abrir e a limpar uma enorme cavalinha. - Esta cidade era tão cosmopolita no passado - continuou, quebrando a espinha central do peixe primeiro sob a cauda, depois abaixo da cabeça. - Tínhamos vizinhos judeus, vários deles. Tínhamos também vizinhos gregos e armênios... Quando garoto, eu costumava comprar peixe de peixeiros gregos. O alfaiate da minha mãe era armênio. O patrão do meu pai era judeu. Vivíamos todos misturados. -

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Pergunte a ele por que as coisas mudaram. - Armanoush virou-se para Asya. - Porque Istambul não é uma cidade - observou o cozinheiro, iluminando-se com a importância da declaração que estava prestes a fazer. - Parece uma cidade, mas não é. É uma cidade-barco. Vivemos num navio! Então, ele segurou o peixe pela cabeça e começou a mover-lhe a espinha para a direita e a esquerda. Por um segundo, Armanoush pensou que a cavalinha fosse feita de porcelana, temendo que se espatifasse nas mãos do cozinheiro. Em poucos segundos, no entanto, o homem conseguiu extrair o osso inteiro. Satisfeito consigo mesmo, ele continuou. - Somos todos passageiros aqui, chegamos e partimos em bandos; judeus vão, russos vêm, o bairro do meu irmão está cheio de moldávios... Amanhã irão embora e outros chegarão. É assim... Agradecendo ao cozinheiro, as duas lançaram um último olhar à cavalinha à espera de ser recheada, ainda de boca aberta. Com Asya decepcionada e Armanoush angustiada, saíram do restaurante e entraram na requintada paisagem do Bósforo, que brilhava ao sol tardio do inverno. Protegeram os olhos com as mãos para bloquear a luz. Então, ambas respiraram profundamente e perceberam que a primavera estava no ar. Não tendo plano melhor, caminharam pela vizinhança, comprando algo de quase todos os vendedores ambulantes por que passavam: milho doce cozido, mexilhões recheados, halvah de semolina e, finalmente, um grande pacote de sementes de girassol. Com cada nova guloseima elas começavam um novo assunto, falando de muitas coisas, exceto dos três assuntos geralmente intocáveis entre jovens ainda estranhas uma para a outra: sexo, homens e pais. - Gosto da sua família - disse Armanoush. - Elas são tão cheias de vida! - É, claro, nem me diga - contrapôs Asya, fazendo tilintar seus muitos braceletes. Usava uma saia hip pie comprida verde-acinzentada com estamparia de flores vinho, uma bolsa de patchwork e muitas jóias: colares de contas de vidro e anéis em quase todos os dedos. Perto dela, Armanoush sentiu-se vestida de forma simples demais, com seu jeans e casaco de tweed. Há uma desvantagem - continuou Asya. - É tão difícil ter nascido numa casa cheia de mulheres, onde todas te amam de um modo tão esmagador que acabam te sufocando; uma casa onde você, como a única criança, tem de ser mais madura do que todos os adultos à volta... Sou grata por ter sido mandada para uma escola de primeira classe e recebido provavelmente a melhor educação nesse país. O problema é que elas querem que eu me torne tudo o que não puderam realizar na vida. Entende o que quero

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dizer? Ah, como Armanoush entendia! - Por isso, tive que me desdobrar em dez para preencher os sonhos de todas ao mesmo tempo. Comecei a aprender inglês aos seis anos, o que seria ótimo se tivessem parado por aí. No ano seguinte, tive um professor particular de francês. Aos nove, me obrigaram a estudar violino o ano inteiro, embora fosse óbvio que eu não tinha nenhum interesse ou talento para aquilo. Depois, quando abriram um rinque de patinação no gelo perto da nossa casa, minhas tias decidiram que eu tinha de me tornar uma patinadora. Sonhavam comigo em roupas cintilantes, fazendo piruetas graciosas ao som da melodia do hino nacional. Eu seria a Katarina Witt turca! Logo eu estava rodopiando no gelo, caindo de bunda repetidamente enquanto tentava dar piruetas! O som dos patins raspando no gelo ainda me dá um frio na espinha. Por educação, Armanoush conteve o riso, embora achasse difícil resistir à imagem de Asya dando píruetas numa competição internacional. - Depois, teve uma época em que queriam que eu me tornasse uma maratonista. Se eu treinasse duro, poderia ser uma atleta maravilhosa e representar a Turquia nas Olimpíadas, competindo na maratona feminina com esses peitos tão grandes?! Pelo amor de Alá! Dessa vez Armanoush não segurou o riso. - Não sei como essas atletas fazem, mas todas têm um peito completamente reto. Devem tomar hormônios masculinos para murchar os seios. Mulheres como eu não foram criadas para serem atletas; é contra as leis mais básicas da física. O corpo se move para frente ganhando velocidade segundo a lei da aceleração. A variação de velocidade é proporcional à força imprimida no corpo e naquela direção. Então o que acontece? Os peitos aceleram também, embora se movam num ritmo completamente diferente e próprio, para cima e para baixo, e acabam diminuindo seu fôlego. A lei da inércia mais a lei da gravitação universal! É impossível lutar contra elas. Ai, eu sentia tanta vergonha! - exclamou Asya, agitada. - Ainda bem que essa fase terminou logo. Depois disso, tive aulas de pintura e, ai de mim, me fizeram ter aulas de balé até que mamãe recentemente descobriu que eu vinha matando as aulas e acabou perdendo as esperanças. Armanoush concordou com a cabeça, com a familiaridade de alguém que reconhece fragmentos de sua própria história pessoal na história de outra. Podia se identificar com o amor esmagador das tias, mas não se sentia à vontade para falar a respeito. Em vez disso, perguntou:- Tem uma coisa que eu não entendo. A senhora que estava com você no aeroporto, a de piercing no nariz. - Armanoush deu uma risadinha, mas

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parou instantaneamente. - Zelha... Ela é sua mãe, não é? Mas você não a chama de mãe... certo?- Certo. É um pouco confuso. Eu mesma fico confusa às vezes - disse Asya, acendendo o primeiro cigarro do dia. Já percebera então que Armanoush não gostava de cigarros. Embora ainda trabalhando para levantar o perfil de sua nova amiga, Asya classificara-a como uma "moça bem-educada". Se um cigarro parecia uma blasfêmia naquele seu estilo de vida decentemente estéril, Armanoush jamais poderia aceitar os outros maus hábitos dela, imaginou Asya. Soprou a fumaça na direção oposta, tão longe de Armanoush quanto podia, mas o vento a trouxe de volta, direto para as duas.- Não me lembro exatamente de quando comecei a chamar minha mãe de "tia", com que idade. Talvez desde o começo, bem no comecinho. - A voz de Asya era pouco mais que um sussurro, mas seu olhar era intenso. - Sabe, cresci com todas essas tias desempenhando o papel de mãe. Meu drama é que, de certo modo, eu fui a filha única de quatro mulheres. Tia Fende, como você deve ter notado, é um pouquinho biruta e nunca se casou. Já teve inúmeros empregos e saiu de todos eles. Era uma vendedora fantástica quando estava na fase maníaca. Tia Cevriye foi bem-casada uma vez, mas depois perdeu o marido e a alegria de viver. A partir daí se dedicou a ensinar história turca. Cá entre nós, acho que ela não gosta de sexo e considera as necessidades humanas revoltantes! Tem também a tia mais velha de todas, tia Banu. Ela é uma pessoa maravilhosa. Ainda é casada no papel, mas raramente vê o marido. Seu casamento foi tão trágico! Tinha dois filhos adoráveis que morreram. Os homens da família sofrem uma maldição, sabe? Não sobrevivem. Armanoush suspirou cansada, sem saber como interpretar essa última observação.- Sabe, consigo entender a necessidade de tia Banu de se refugiar em Alá - acrescentou Asya, alisando as contas do colar. - De qualquer modo, a questão é que, quando nasci, me vi rodeada de quatro mães-tias ou quatro tias-mães. Ou eu chamava todas de "mamãe" ou chamava minha mãe de "tia Zeliha". Foi mais fácil desta forma. - Ela não se sentiu ofendida? O rosto de Asya animou-se quando ela notou um navio cargueiro cor de ferrugem navegando para o mar aberto. Gostava de observar os navios deslizando pelo Bósforo, imaginando como seria a tripulação a bordo, tentando ver a cidade pelos olhos de um marinheiro constantemente em movimento, um marinheiro sem porto para desembarcar ou a necessidade de fazê-lo.

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- Ofendida? Não! Ela só tinha 19 anos quando ficou grávida de mim. Por mais esquisito que seja, o fato de eu não chamá-la de mamãe deve ter sido um alívio para ela. Eram todas minhas tias e, de algum modo, esse título tornava o pecado de mamãe menos visível aos olhos da sociedade. Não havia uma mãe pecadora para a qual se apontar. Na verdade, acho que posso ter sido estimulada a chamá-la de "tia", ao menos por um tempo, e depois foi difícil perder o hábito. - Eu gostei dela - disse Armanoush, mas em seguida fez uma pausa, confusa. - De que pecado está falando? - Ah, ter uma filha ilegítima. Minha mãe é... - Asya torceu o nariz, procurando a palavra certa. - Ela é... a ovelha negra da família. A guerreira rebelde que teve uma filha fora do casamento. Um navio-tanque russo passou, enviando pequenas ondas para a costa. Era uma embarcação grande, transportando petróleo. - Notei que não havia nenhum pai por perto, mas achei que ele poderia ter morrido ou coisa assim - gaguejou Armanoush. - Lamento. - Não se lamente por meu pai não ter morrido. - Asya deu uma risadinha. Lançou um olhar vacilante para Armanoush, que ficara vermelha. - Mas você tem razão - continuou Asya, com uma faísca de fúria nos olhos. Eu me sinto assim também. Quero dizer, se meu pai tivesse morrido, essa coisa vaga teria terminado de uma vez por todas. É isso o que mais me enfurece. Não consigo deixar de pensar que ele pode ser qualquer um. Quando não se tem absolutamente nenhuma idéia de que tipo de homem seu pai é, sua imaginação preenche o vazio. Talvez eu o veja na TV ou escute sua voz no rádio todos os dias sem saber. Ou possa tê-lo encontrado algum dia, em algum lugar. Imagino que poderia ter tomado o mesmo ônibus que ele; talvez seja o professor com quem falo depois da aula, o fotógrafo cuja exposição vou ver, ou o vendedor ambulante ali... Nunca se sabe.O foco da atenção das duas era um homem esbelto, de bigode fino, entre quarenta e cinqüenta anos. Na vitrine à sua frente havia dúzias de jarros enormes com picles de todos os tipos, que ele, com a ajuda de uma máquina automática, transformava em suco fresco de picles. Vendo que as duas moças o olhavam, o homem abriu um sorriso. Armanoush instantaneamente desviou os olhos, enquanto Asya franziu as sobrancelhas. - Quer dizer que sua mãe não lhe contou quem é o seu pai? - perguntou Armanoush delicadamente. - Mamãe é uma figura rara! Ela não me conta nada a não ser que queira. É a mulher mais teimosa e com a maior força de vontade que existe. Acho que as outras tias também não sabem quem é meu pai. Duvido que mamãe tenha contado a alguém. De

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qualquer forma, mesmo que elas saibam de alguma coisa, a família não compartilharia isso comigo. Ninguém me conta nada. Sou uma excluída naquela casa, eternamente exilada dos terríveis segredos familiares. Sob o pretexto de me protegerem, me afastaram delas. - Asya mordeu uma semente de girassol e cuspiu a casca. - Depois de algum tempo, passou a ser um jogo mútuo: elas se afastam de mim, eu me afasto delas. No mesmo momento, as duas diminuíram o passo. A quase mil metros de distância, no mar, um homem estava de pé num pequeno barco a motor com vários outros passageiros, segurando um cigarro recém-aceso numa das mãos e na outra um fantástico suporte com balões em amarelos, laranjas e roxos fulgurantes. Talvez fosse um exausto vendedor de balões, pai de muitos filhos, pegando um atalho de uma costa a outra ao voltar do trabalho, sem ter noção de que sua imagem fosse tão surpreendente enquanto deslizava numa chuva de cores e uma coluna de fumaça sobre as águas azuis. Totalmente surpreendidas pelo requinte da cena, Armanoush e Asya ficaram em silêncio observando o barco a motor até que os balões sumissem no horizonte. - Vamos sentar em algum lugar, vamos? - perguntou Asya, como se cansada com o que tinha visto. Havia um café vagabundo ao ar livre perto dali.- De que tipo de música você gosta? - perguntou Asya assim que acharam um lugar vago e fizeram os pedidos; Asya, chá com limão, Armanoush, Coca-Cola Light com gelo. Na pergunta havia uma tentativa evidente de se conhecerem melhor, já que a música era a principal ligação de Asya com o resto do mundo. - Música clássica, música étnica, música armênia e jazz. E você? - Um pouco diferente. - Asya enrubesceu, embora não soubesse por quê. - Durante um certo tempo ouvi coisa pesada: música alternativa, punk, pós-punk, metal industrial, death metal, dark wave, psicodélica. Também um pouco de third wave ska e de gótico, esse tipo de coisa. Acostumada a encarar "esse tipo de coisa" como um gênero perdido compartilhado por adolescentes decadentes ou adultos sem rumo com mais fúria que personalidade, Armanoush disse: - É mesmo? - É, mas algum tempo atrás fui fisgada por Johnny Cash. E pronto. Desde então, parei de ouvir o resto. Gosto de Cash. Ele me deprime tanto que não fico mais deprimida. - Mas você não ouve nada local? Como música turca... pop turco... - Pop turco?! De jeito nenhum! - Asya bateu as mãos em pânico como se tentasse empurrar um vendedor de rua atrevido. Percebendo os limites de Asya, Armanoush não insistiu, O ódio por si mesmos, deduziu, era algo que às vezes acometia os turcos. Mas Asya engoliu o chá e

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acrescentou: - Tia Fende gosta desse tipo de coisa. Para ser sincera, às vezes não sei se ela está mais interessada na música ou no penteado dos cantores. No meio da segunda Coca Light, Armanoush perguntou a Asya que tipo de livros ela lia, já que ficção era sua principal ligação com o mundo inteiro. - Livros. Ah sim, eles salvaram a minha vida. Adoro ler, mas não ficção... Um turbulento grupo de rapazes e moças irrompeu no café, instalando-se na mesa atrás das duas. Assim que se sentaram, puseram-se 184 a debochar de tudo e de todos. Riram das cadeiras de plástico vinho, das vitrines de vidro que exibiam a modesta seleção de pratos oferecidos pela casa, dos erros nas traduções de inglês dos itens no cardápio, e da inscrição Eu AMO ISTAMBUL na camiseta dos garçons. Asya e Armanoush puxaram as cadeiras mais para a frente. - Leio filosofia, especialmente filosofia política. Benjamin, Adorno, Gramsci, um pouco de Zizec... principalmente Deleuze. Esse tipo de coisa. Gosto deles. Gosto de abstrações, filosofia... Adoro filosofia. Principalmente filosofia existencialista. - Asya acendeu outro cigarro. - E você? - perguntou, em meio à fumaça. Armanoush desfiou uma longa lista de autores de ficção, sobretudo da Rússia e da Europa Oriental. - Está vendo? - Asya virou as palmas para cima, como se estivesse mostrando a situação das duas. - Quando se trata de seus autores preferidos, você é muito menos regional nas escolhas... Sua lista de leitura não me parece muito armênia. Armanoush ergueu levemente as sobrancelhas. - A literatura precisa de liberdade para florescer - disse enquanto sacudia a cabeça. - Não tivemos muita liberdade para expandir e aumentar a literatura armênia, não é? Sentindo seus limites, Asya não insistiu. A autopiedade, deduziu, era algo que às vezes acometia os armênios. Os adolescentes na outra mesa começaram a brincar de mímica. Cada jogador escolhido recebia o título de um filme do time rival e tinha que transmiti-lo aos membros de sua equipe. Uma garota sardenta e de cabelos ruivos pôs-se a fazer a mímica do título do filme que lhe fora destinado, e a cada vez que fazia um gesto, seus companheiros estouravam em gargalhadas ruidosas. Era estranho ver como um jogo baseado no princípio do silêncio podia provocar tanta algazarra. Talvez devido ao ruído ao fundo, qualquer que fosse o espírito que estivera orientando Armanoush a não ultrapassar seus limites havia agora se retirado. - A música que você ouve é tão ocidental! Por que não escuta suas raízes do Oriente Médio? 185 - Como assim? - Asya pareceu perplexa. - Nós somos ocidentais. - Não, vocês não são ocidentais. Os turcos são do Oriente

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Médio, mas de certo modo renegam isso constantemente. E se tivessem deixado ficar em nossas casas, ainda poderíamos pertencer ao Oriente Médio, em vez de sermos um povo em diáspora - retorquiu Armanoush. E ficou imediatamente constrangida, pois não pretendia falar com tanta aspereza. Asya mordiscou o interior da bochecha. Quando acabou de fazê perguntou: - Como assim? - Como assim? Da seguinte forma: o jugo pan-islâmico e pan- do sultão Hamid. Os massacres de Adana de 1909 ou as deportações de 1915... Não dizem nada pra você? Nunca ouviu falar do genocídio armênio? - Só tenho 19 anos. - Asya deu de ombros. Os adolescentes atrás delas aplaudiram quando a garota sardenta não cumpriu a tarefa a tempo e foi substituída por um novo jogador, um garoto bonito, magro e desengonçado, cujo pomo-de-adão projetava-se do pescoço em cada mímica. O garoto levantou dois dedos, indicando que o título do filme consistia de duas palavras. Ele partiu para a primeira palavra. Erguendo as mãos no ar, agarrou uma coisa imaginária e redonda entre as palmas, cheirou-a e apertou-a. Enquanto os membros de sua equipe não conseguiam entender o que dizia, a equipe rival dava risos abafados. - E isso é uma desculpa? - Armanoush encarou Asya. - Como pode ser tão refratária? Sem saber o que era refratária, Asya não viu nenhum problema em sê-lo até verificar a palavra num dicionário inglês-turco. Saboreando o breve ressurgimento do sol por detrás de nuvens espessas, ela continuou quieta por um bom tempo. Então murmurou: - Você é fascinada por História. - E você não? - perguntou Armanoush de modo arrastado, sua voz transmitindo descrença e escárnio.- De que adianta? - Foi a resposta lacônica de Asya. - Por que devo saber alguma coisa do passado? As lembranças são um fardo muito pesado. Armanoush virou a cabeça e seu olhar pousou involuntariamente nos adolescentes. Apertando os olhos, ela se concentrou nos gestos do rapaz. Asya se virou também, observou o jogo e, sem perceber,

deixou escapar a resposta:-Laranja!Os adolescentes estouraram numa risada, todos olhando para as garotas da mesa próxima. Asya enrubesceu, Armanoush sorriu. Pagaram a conta rapidamente e saíram de novo para a rua. - Qual é o filme que tem "laranja" no nome? - perguntou Armanoush quando chegaram no passeio ao longo do mar. - Laranja mecânica... Eu acho. - Ah é! - Armanoush concordou com a cabeça. Olhe, sobre o fascínio com a História... -

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disse, ordenando seus pensamentos. - Você tem que entender que, apesar de toda a tristeza que engloba, a História é o que nos mantém vivos e unidos.- Bem, acho isso um privilégio.- Como assim?- Esse senso de continuidade é um privilégio. Torna você parte de um grupo onde há um grande sentimento de solidariedade - retrucou Asya. - Não me entenda mal, consigo imaginar como o passado foi trágico para a sua família e respeito seu desejo de manter vivas as lembranças, venham como vierem, para que a tristeza de seus ancestrais não seja esquecida. Mas é exatamente aí que nossos caminhos divergem. Sua cruzada é pela lembrança, enquanto eu, se pudesse, gostaria de ser como Petite-Ma, que não tem absolutamente nenhuma capacidade de memória. - Por que o passado te assusta tanto? - Não assusta! - objetou Asya. Enquanto o vento inconstante de Istambul balançava sua saia comprida e a fumaça do cigarro de um lado para o outro, ela fez uma breve pausa. - Só não quero ter nada a ver com isso e ponto final. - Não faz sentido - insistiu Armanoush.- Talvez não. Mas com toda a sinceridade, alguém como eu não pode ser orientada para o passado... Sabe por quê? - perguntou Asya depois de uma longa pausa. - Não porque ache meu passado triste ou que não tenha importância para mim. É porque não sei nada sobre ele. Acho melhor conhecer os acontecimentos passados do que não saber coisa alguma sobre eles. Uma expressão intrigada passou pelo rosto de Armanoush. - Mas você também disse que não queria conhecer seu passado. Agora diz uma coisa diferente. - Disse? - perguntou Asya. - Bem, digamos assim: tenho opiniões conflitantes dentro de mim a respeito da questão. - Lançou à companheira um olhar cheio de malícia, mas em seguida ficou mais séria. - Tudo que sei do meu passado é que algo não estava certo, mas não consigo obter essa informação. Para mim a História começa hoje, sabe? Não há continuidade no tempo. É impossível se sentir ligada aos ancestrais se você não consegue nem localizar o próprio pai. Talvez eu jamais venha a saber o nome dele. Se eu continuar pensando nisso, vou ficar maluca. Então pergunto a mim mesma: por que quer desenterrar os segredos? Não vê que o passado é um círculo vicioso? É um circuito. Suga-nos para dentro dele e nos faz correr como um hamster numa roda. Então começamos a nos repetir indefinidamente. Enquanto subiam e desciam as ruas sinuosas, cada bairro parecia tão diferente uns dos outros que

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Armanoush começou a achar que Istambul era um labirinto urbano, cidades dentro de uma cidade. Imaginou se James Baldwin se sentira do mesmo modo quando fora para lá. À três horas da tarde, exaustas e com fome, entraram num restaurante que Asya dissera ser um must, já que ali se podia encontrar o melhor diiner de galinha da cidade. Cada uma pediu um diner e um copo grande de bebida de iogurte espumante. - Tenho que confessar - murmurou Armanoush depois de uma pausa -, Istambul é um pouquinho diferente do que eu esperava. É mais moderna e menos conservadora do que eu temia que fosse. - Bem, devia dizer isso à minha tia Cevriye uma hora dessas. Ela ficaria emocionada. E me daria uma medalha por ter representado tão bem o país!Riram juntas pela primeira vez desde que se conheceram. - Um dia desses, quero levar você a um pequeno café onde costumamos nos reunir. O Café Kundera - disse Asya. - É mesmo? Ele é um dos meus escritores favoritos! - exclamou Armanoush, encantada. - Por que tem esse nome? - Bom, essa é uma discussão interminável. Na verdade, cada dia debatemos uma nova teoria. No caminho de volta ao konak, Armanoush pegou a mão de Asya apertou-a, enquanto dizia: - Você lembra um amigo meu. Por um momento, Armanoush encarou Asya como se soubesse de algo que não pudesse dizer. Então observou: - Nunca vi ninguém tão perceptiva e... tão empática ser tão rigorosa e tão.., tão confrontadora ao mesmo tempo. Exceto uma pessoa! Você lembra meu amigo mais incomum, o Barão Baghdassarian. Vocês dois são tão parecidos em tantos aspectos que bem podiam ser almas gêmeas. - É mesmo? - perguntou Asya, intrigada com o nome. - O que foi? Por que está rindo? - Desculpe, não consigo deixar de rir das viradas do destino. É que de todos os meus conhecidos, o Barão Baghdassarian é o mais... o mais anti-turco!

NAQUELA NOITE, QUANDO TODAS AS MULHERES KAZANCI foram dormir, Armanoush saiu da cama, de pijamas, ligou a lâmpada fraca da mesa e esforçando-se para não fazer nenhum barulho, ligou o laptop. Jamais percebera antes como era aflitivamente barulhento entrar na internet. Então discou o número do telefone, achou o site e digitou sua senha para entrar no Café Constantinópolis.Onde vc esteve? Quase morremos de preocupação. Como vc está? As perguntas começaram a chegar de todo mundo. Estou bem, escreveu Madame Minha-Alma-Exilada. Mas não encontrei a casa da minha avó. No lugar dela há um edifício moderno feio. A casa sumiu sem deixar vestígios... Não há

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vestígios, nem registros, nem lembranças sobre a família armênia que morava na casa no início do século. Lamento, querida, escreveu Lady PeacocklSiramark. Quando vc volta? Vou ficar até o final da semana, respondeu Madame Minha-Alma- Exilada. Isso aqui é uma aventura. A cidade é linda. Em certos aspectos, parece San Francisco: as ruas de ladeira, o nevoeiro constante, a brisa do mar e os rostos boêmios nos lugares em que menos se espera. É um labirinto urbano. Mais do que apenas uma cidade, é como cidades dentro de uma cidade. Por falar nisso, a comida é fantástica. Qualquer armênio se sentiria no paraíso aqui. Armanoush parou, percebendo, em pânico, o que acabara de escrever. Quer dizer, em termos de comida, acrescentou rapidamente. Ei, Madame Minha-Alma-Exilada, você era a nossa correspondente de guerra e agora parece uma turca! Não foi "turquificada", foi? Era o Anti-Khavurma. Armanoush respirou profundamente. Pelo contrário. Nunca me senti tão armênia na vida. Mas para experimentar totalmente minha essência armênia, tive que vir à Turquia e conhecer os turcos. A família com quem estou morando é muito interessante, um pouco louca, mas talvez todas as famílias sejam assim. Mas há algo surreal aqui. A irracionalidade é parte da racionalidade cotidiana. Eu me sinto num romance de Gabriel García Márquez. Uma das irmãs tem um estúdio de tatuagem; outra é clarividente; outra é professora de história turca; e a quarta é uma retraída excêntrica ou uma lunática em tempo integral, como diria Asya. Quem é Asya?, digitou Lady PeacocklSiramark imediatamente. É a filha da casa. Uma garota com quatro mães e nenhum pai. Uma figura e tanto, cheia de fúria, sarcasmo e espirituosidade. Daria um bom personagem de Dostoiévski. Armanoush imaginou onde estaria o Barão Baghdassarian. Madame Minha-Alma-Exilada, você conversou sobre o genocídio com alguém?, quis saber Coexistência-Infeliz. Sim, várias vezes, mas é tão difícil! As mulheres na casa ouviram a história da minha família com sincero interesse e tristeza, mas isso é o máximo a que elas chegam. O passado é outro país para os turcos. Se até as mulheres param por aí, não dá para eu ter esperança nos homens turcos..., interveio Filha de Safo. Na verdade, ainda não tive chance de conversar com nenhum homem turco, respondeu Madame Minha-Alma-Exilada, só então percebendo isso. Mas qualquer dia desses, Asya vai me levar ao café onde eles se reúnem. Lá vou conhecer pelo menos alguns homens, eu acho. Tenha cuidado se beber com eles. O álcool traz sempre o pior das pessoas à tona, você sabe. Era Alex, o Estóico quem falava agora. Acho que Asya não bebe. Elas são

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muçulmanas! Mas certamente fuma como uma chaminé. Lady PeacocklSiramark digitou: Na Armênia as pessoas também fumam muito. Fui a Yerevan de novo recentemente. O fumo está matando a nação. 191 Armanoush remexeu-se na cadeira. Onde estava ele? Por que não escrevia? Estaria zangado ou aborrecido com ela? Teria chegado a pensar nela...? E continuaria a se torturar com perguntas se não fosse a linha seguinte na tela tremeluzente. Madame Minha-Alma-Exilada, desde que chegou à Turquia já ponderou sobre o paradoxo dos janízaros? Era ele! Ele! Ele! Armanoush releu as duas linhas e então digitou: Ponderei sim. Mas então não soube mais o que escrever. Como se sentisse a hesitação dela, o Barão Baghdassarian continuou: É muito simpático da sua parte ter se dado tão bem com essa família. E acredito quando diz que são pessoas de bom coração, interessantes à sua maneira. Mas não está reparando numa coisa? Você só é amiga delas na medida em que renega sua própria identidade. É assim que tem sido com os turcos por toda a História. Armanoush apertou os lábios, triste. No outro lado do quarto, Asya tossiu e se virou na cama, aparentemente nas garras de um pesadelo, e murmurou algo incompreensível. Fosse lá o que estivesse dizendo, repetiu-o muitas vezes. Tudo que nós armênios pedimos é o reconhecimento de nossa perda e de nossa dor, que é a exigência mais fundamental para que genuínas relações humanas floresçam. É isso que dizemos aos turcos: "Olhem, estamos de luto, estamos de luto por quase um século agora pois perdemos nossos entes queridos, fomos expulsos das casas e banidos das terras que nos pertenciam; fomos tratados como animais e esquartejados como ovelhas. Foi-nos negado até o direito a uma morte decente. Mesmo a dor infligida a nossos avós não é tão lancinante quanto a renegação sistemática que se seguiu." 192 Se você disser isso, qual será a resposta dos turcos? Nenhuma! Existe apenas um modo de nos tornarmos seus amigos: sermos tão desinformados e esquecidos quanto eles. Já que não vão se juntar a nós no reconhecimento do que aconteceu, os turcos esperam que nos juntemos a eles em sua ignorância do passado. De repente, ouviu-se uma leve batida na porta e em seguida muitas batidas. Armanoush pulou da cadeira, com o coração na boca. Impulsivamente, desligou o monitor. - O que foi? - sussurrou. A porta se abriu suavemente e surgiu a cabeça de tia Banu. Tinha um véu cor-de-rosa na cabeça, frouxamente amarrado, e uma longa e pálida camisola. Acordada àquela hora para a prece, notara a luz vindo do quarto das meninas. Com o desconforto estampado no rosto por todas as palavras que lhe faltavam

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em inglês, tia Banu fez uma série de gestos, como num jogo de mímica. Sacudiu a cabeça, cerrou as sobrancelhas e depois, sorridente, sacudiu o dedo, sendo tudo aquilo interpretado por Armanoush como: "Você estuda demais. Não se canse muito." Depois, tia Banu apresentou o prato em sua mão e fez uma mímica significando comer, os dois gestos óbvios demais para exigirem interpretação. Então sorriu, deu uns tapinhas de leve no ombro de Armanoush, pôs o prato perto do laptop e foi embora, fechando a porta suavemente. No prato havia duas laranjas descascadas e cortadas. Ligando novamente o monitor, Armanoush comeu um pedaço de laranja enquanto ponderava sobre o que responder ao Barão Baghdassarian.

***10AMÊNDOAS

No QUINTO DIA DE SUA ESTADA, Armanoush já descobrira a rotina matinal do konak Kazanci. Nos dias da semana o café-da-manhã era às seis horas, permanecendo na mesa até 9h30. Durante esse tempo, o samovar fervia continuamente e um novo bule de chá era feito de hora em hora. Em vez de todas se sentarem à mesa, os membros da família chegavam em intervalos diferentes, dependendo do seu trabalho, estado de ânimo ou horário. Assim, ao contrário do jantar, que era um evento totalmente sincronizado, o café-da-manhã nos dias de semana era um trem matinal parando em diversas estações, sempre com novos passageiros entrando e outros saindo. Quase sempre era tia Banu quem punha a mesa, sendo a primeira a levantar, pronta para a prece do alvorecer. Deslizava para fora da cama murmurando "É mesmo", enquanto o muezzin da mesquita mais próxima estrondeava pela segunda vez: "A prece é melhor do que o sono." Tia Banu então ia ao banheiro preparar-se para a prece, lavando o rosto, os braços até os cotovelos, e os pés até os tornozelos. A água estava gélida às vezes, mas tia Banu não se importava. "A alma precisa tremer para acordar", dizia a si mesma. "A alma precisa tremer." Também não se importava que o resto da família ainda estivesse dormindo profundamente. Rezava com duas vezes mais intensidade para que elas também fossem perdoadas. Assim, naquela manhã, quando o muezzin ecoou "Alá é grande, Alá é grande", tia Banu já abrira os olhos na cama e estava estendendo a mão para sua camisola e véu. Mas diferente dos outros dias, seu corpo parecia pesado, muito

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pesado. O muezzin clamou: "Testemunho que não há outro deus senão Alá." Mesmo assim, tia Banu não conseguia levantar. Até quando ouviu "Venham para a prece", e depois "Venham para o bem", não conseguiu mover nem a metade do corpo para fora da cama. Era como se o sangue tivesse sido drenado daquela parte do corpo, deixando para trás apenas um saco preguiçoso e pesado. "A prece é melhor do que o sono. A prece é melhor do que o sono." - Qual é o problema com vocês, pessoal, por que não deixam que eu me mexa? - perguntou tia Banu, num tom com um quê de frustração. Os dois gênios sentados em seu ombro esquerdo e direito se entreolharam. - Não pergunte a mim, pergunte a ele. É ele quem está causando problema - disse sra. Doce, de seu ombro direito. Como o nome sugeria, a sra. Doce era um gênio bom - um dos corretos. Tinha um rosto cintilante e amável, uma coroa na cabeça nas cores ameixa, rosa e roxo, um pescoço fino e elegante, e apenas um fiapo de fumaça onde o pescoço terminava e, tecnicamente, onde seu rosto deveria começar. Não tendo corpo, parecia uma cabeça num pedestal, o que estava perfeitamente bom para ela. Ao contrário das mulheres humanas, não se esperava que as mulheres gênios tivessem traços proporcionais.Tia Banu confiava totalmente na sra. Doce, pois ela não era uma das renegadas, mas sim um gênio bondoso que se convertera do ateísmo ao islamismo - doença muito disseminada entre os gênios. Sra. Doce visitava mesquitas e santuários freqüentemente e era profunda conhecedora do Sagrado Alcorão. Ao longo dos anos, ela e tia Banu ficaram muito íntimas. Mas não foi o que aconteceu de modo algum com o sr. Amargo, criado de uma forma completamente diferente e vindo de lugares onde o vento não parava de uivar. Sr. Amargo era muito velho, mesmo em termos de anos-gênio. Conseqüentemente, era muito mais poderoso do que demonstrava, pois como todos sabem muito bem, quanto mais velhos os gênios são, mais poderosos se tornam. Sr. Amargo só permanecia na casa das Kazanci porque tia Banu o subjugara anos atrás, na última manhã de seus quarenta dias de penitência. Desde então tinha-o sob controle, e nunca retirou o talismã que o mantinha cativo. Capturar um gênio não era coisa fácil. Primeiro de tudo era preciso saber seu nome, adivinhando-o corretamente - um jogo letal, pois se o gênio descobrisse seu nome antes de você descobrir o dele, ele se tornaria o amo e você o escravo. Mesmo após adivinhar corretamente seu nome e tê-lo sob controle, não se podia considerar essa autoridade garantida, já que isso seria uma tola ilusão. Em toda a História da Humanidade, sóo grande Salomão conseguira

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realmente derrotar os gênios, exércitos deles, embora tivesse precisado da ajuda de um anel mágico. Já que ninguém mais podia comparar-se ao grande Salomão, só um tolo narcisista poderia sentir orgulho de capturar um gênio, e tia Banu era tudo menos orgulhosa. Embora o sr. Amargo já a viesse servindo por mais de seis anos, ela encarava a relação entre eles como um contrato temporário, renovável de vez em quando. Nunca o tratara de modo insensível ou condescendente, pois sabia que, como os seres humanos, um gênio tinha uma lembrança duradoura do mal que lhe faziam. Jamais esqueceria qualquer injustiça. Como um dedicado escriturário anotando cada incidente em seus detalhes mais infinitesimais, a memória do gênio registrava tudo, apenas para evocá-los um dia. Assim, tia Banu sempre respeitava os direitos do seu prisioneiro e jamais se aproveitava de seu poder.No entanto, poderia ter usado sua autoridade de um modo totalmente diferente, pedindo vantagens materiais, como dinheiro, jóias ou fama. Mas não o fizera. Sabia que tudo aquilo não passava de ilusão, e o gênio era particularmente habilidoso em criar ilusões. Além disso, toda riqueza súbita que se adquiria era necessariamente roubada de alguém, já que não há na natureza um vácuo absoluto e os destinos dos seres humanos se inter-relacionam como as partes de uma máquina. Assim, em todos aqueles anos, tia Banu prudentemente evitara solicitar qualquer vantagem material. Em vez disso, havia uma única coisa que ela exigia do sr. Amargo: conhecimento. Conhecimento sobre fatos esquecidos, indivíduos não-identificados, disputas sobre propriedade, conflitos familiares, segredos não-revelados, mistérios não-resolvidos - o básico de que precisava para ajudar suas muitas clientes. Se uma certa família tinha um documento valioso há muito perdido, vinha a tia Banu para saber seu paradeiro. Ou se uma mulher suspeitava ser vítima de magia negra, vinha a Banu para perguntar quem lhe fizera o mal. Certa vez, tinham lhe trazido uma mulher grávida que adoecera subitamente e piorava assustadoramente dia a dia. Depois de consultar seu gênio, tia Banu disse à mulher grávida para ir a um limoeiro sem frutas em seu próprio jardim, onde encontraria, numa bolsa de veludo preto, uma barra de sabão de azeite contendo suas próprias unhas - magia feita por uma vizinha invejosa. Entretanto, tia Banu não contou à mulher o nome da vizinha, para que não houvesse mais rancor. Em poucos dias, chegaram notícias de que a mulher grávida tinha se recuperado rapidamente e estava passando bem. Posteriormente, tia Banu passou a usar o serviço do sr. Amargo em

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coisas desse tipo, exceto numa ocasião. Somente uma vez lhe pedira um favor especial, só para si, uma pergunta muito confidencial: quem era o pai de Asya? Sr. Amargo lhe deu uma resposta - a resposta -, mas tia Banu, indignada, recusou-se terminantemente a acreditar nele, embora soubesse muito bem que um gênio escravizado não poderia mentir para o seu amo. Recusou-se a acreditar nele, até que seu coração um dia simplesmente parou de negar aquilo que sua mente já sabia há muito tempo. Depois disso, tia Banu jamais foi a mesma. De vez em quando, ainda imaginava se não teria sido melhor não saber, já que o conhecimento, nesse caso, só lhe trouxera sofrimento e dor, a maldição do sábio. E hoje, anos depois do incidente, tia Banu pensava em pedir outro favor pessoal ao sr. Amargo. Por isso sentia-se tão debilitada naquela manhã; os pensamentos contraditórios atormentando sua mente a enfraqueceram ante seu escravo, que, com cada dilema da sua senhora, pesava cada vez mais em seu ombro esquerdo. Deveria fazer ao sr. Amargo outra pergunta pessoal agora, embora tivesse lamentado tanto tê-la feito da última vez? Ou talvez fosse a hora de terminar esse jogo e retirar o talismã, libertando o gênio de uma vez por todas? Ela poderia continuar realizando seus deveres de clarividente com a ajuda da sra. Doce. Seus poderes diminuiriam de certo modo, mas paciência. Não seria o suficiente? Um lado dela advertiu-a contra a maldição do sábio, recuando diante da horrível agonia que vem com o excesso de conhecimento. Seu outro lado, porém, estava louco para saber mais, sempre curioso e consciencioso. Sr. Amargo tinha plena noção do seu dilema e parecia usufruir aquilo, pressionando mais o ombro esquerdo da ama a cada dúvida, duplicando o peso das reflexões de tia Banu. - Desça do meu ombro - ordenou ela e murmurou uma prece aconselhada pelo Alcorão para ser proferida todas as vezes em que alguém se deparasse com um gênio manhoso. Aquiescendo de repente, sr. Amargo pulou para o lado e deixou-a se levantar. - Vai me libertar? perguntou ele, lendo os pensamentos da sua ama. - Ou vai usar meus poderes para alguma informação mais específica? Uma palavra sussurrada escapou dos lábios levemente entreabertos de tia Banu, mas, em vez de um "sim" ou um "não", pareceu mais um gemido. Sentia-se muito pequena ante a cavernosa vastidão da terra, do céu, das estrelas e das perplexidades que pulverizavam sua alma. - Pode me perguntar aquilo que anda louca para saber desde que a garota americana contou aquelas coisas tristes sobre a família 198 dela.

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Não quer saber se é verdade? Não quer ajudá-la a descobrir a verdade? Ou você guarda seus poderes somente para os seus clientes? - desafiou sr. Amargo, seus protuberantes olhos cor de carvão febrilmente triunfantes. Então acrescentou placidamente: - Posso lhe contar, sou velho o suficiente para saber. Eu estava lá. - Pare! - exclamou tia Banu, quase gritando. Sentiu o estômago embrulhar e uma queimação amarga de bile subir-lhe à garganta. - Não quero saber - retrucou ela. - Não sou curiosa. Lamento o dia em que lhe perguntei quem era o pai de Asya. Pelo amor de Alá, como gostaria de não ter feito aquilo! De que adianta saber as coisas se não se pode mudar nada? É um veneno que nos aleija para sempre. Não se pode vomitá-lo nem se pode morrer. Não quero que isso aconteça de novo... Aliás, o que você sabe? Tia Banu não conseguia entender por que fizera essa última pergunta. Sabia muito bem que se quisesse conhecer o passado de Armanoush, sr. Amargo seria a criatura certa para revelá-lo, uma vez que era um gulyabani, o mais traiçoeiro dos gênios e o mais conhecedor de tudo que incluía finais traumatizantes. Soldados desafortunados, emboscados e massacrados a quilômetros de distância de suas casas, homens congelados até a morte nas montanhas, vítimas da peste exiladas no meio do deserto, viajantes roubados e assassinados por bandidos, exploradores perdidos no meio do nada, criminosos condenados enviados para a morte em alguma ilha remota... os gulya bani tinham visto todos eles. Estavam lá quando batalhões inteiros foram exterminados em sangrentos campos de batalha, quando aldeias foram condenadas à fome ou caravanas reduzidas a cinzas pelo fogo inimigo. Também estavam lá quando o enorme exército do imperador bizantino Heráclio foi esmagado pelos muçulmanos na Batalha de Yarmuk; ou quando o berbere Tarik trovejou para seus soldados: "Atrás de vocês está o mar, diante de vocês, os inimigos! Ó meus guerreiros, para onde fugiriam?" e assim invadiram a Espanha visigótica, matando todos pelo caminho; ou quando Carlos, a partir daí denominado Martel, trucidou trezentos mil árabes na Batalha de Tours; ou quando os Assassinos, drogados 199 com haxixe, mataram o ilustre vizir Nizam-al-Mulk e espalharam o terror até que o mongol Hulagu destruísse sua fortaleza, juntamente com todo o resto. Os gulyabani testemunharam em primeira mão cada uma dessas calamidades. Eram principalmente conhecidos por espreitar os que se perdiam no deserto sem comida ou água. Sempre e onde quer que alguém morresse sem deixar uma lápide, eles apareciam ao lado do corpo. Se precisassem, podiam se disfarçar de planta, rocha ou

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animal, principalmente abutres. Espiavam as calamidades, observando a cena de lado ou de cima, embora também se soubesse que ocasionalmente assombravam caravanas, roubavam a comida de que os indigentes precisavam para sobreviver, assustavam os peregrinos em suas jornadas santas, atacavam procissões ou sussurravam uma aterrorizante melodia de morte nos ouvidos dos condenados às galés ou daqueles forçados a fazerem uma marcha da morte. Eram os espectadores dos momentos da História em que os humanos não tinham testemunhas nem registros escritos. Os gulya bani eram testemunhas imorais do horror que os seres humanos eram capazes de infligir uns aos outros. Assim, raciocinou tia Banu, se a família de Armanoush fora forçada a participar da marcha da morte em 1915, como afirmava a garota, sr. Amargo certamente saberia. - Não vai me perguntar nada? - perguntou sr. Amargo enquanto se sentava na beira da cama, deliciando-se com a perplexidade de tia Banu. - Eu era um abutre continuou amargamente, o único tom em que sabia falar. - Eu vi tudo. Observei-as caminharem incessantemente, mulheres e crianças. Voei sobre elas em círculos no céu azul, vendo-as caírem de joelhos. - Cale a boca! - berrou tia Banu. - Cale a boca! Não quero saber. Não esqueça que sou sua ama. - Sim, minha ama. - Sr. Amargo se encolheu. - Seu desejo é uma ordem para mim e assim será enquanto usar esse talismã. Mas se quiser saber o que aconteceu à família da garota em 1915, é só me avisar. Minha memória é toda sua, ama. Tia Banu sentou-se ereta na cama, mordendo os lábios com força para parecer inflexível, sem nenhuma intenção de mostrar fraqueza a sr. Amargo. Enquanto tentava agüentar firme, o ar começou a feder a poeira e mofo, como se a sala mergulhasse num estado de putrefação. Ou o momento presente decaía rapidamente num resíduo do tempo ou a decadência do passado embebia o presente. Os portões principais do tempo esperavam para serem abertos. Para mantê-los trancados e com tudo em seus devidos lugares, tia Banu pegou o Sagrado Alcorão que conservava numa capa perolada dentro da gaveta de sua mesinha-de-cabeceira. Abriu uma página ao acaso e leu: "Estou mais perto de você do que sua veia jugular (50:16)." - Alá - suspirou ela -, o senhor está mais perto de mim do que minha veia jugular. Ajude-me a sair desse dilema. Conceda-me a bênção da ignorância ou me dê a força para suportar o conhecimento. Ficarei grata com o que escolher, mas por favor não me deixe sem poder e com conhecimento ao mesmo tempo. Com tal oração, tia Banu deslizou para fora da cama, vestiu a camisola e, na ponta dos pés, foi para o banheiro

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aprontar-se para a prece da manhã. Consultou o relógio na prateleira: 7h45. Ficara na cama tanto tempo assim, discutindo com o sr. Amargo, argumentando com sua consciência? Apressadamente lavou o rosto, as mãos e os pés, esticou o pequeno tapete e preparou-se para orar. Se tia Banu se atrasara para preparar o café naquela manhã, Armanoush seria uma das últimas a perceber. Como ficara na internet até tarde, dormiu demais e gostaria de dormir mais ainda. Revirou-se na cama, puxou o cobertor para cima e para baixo do peito, fazendo o máximo para afundar de novo no sono. Abriu um olho aturdido e viu Asya em sua mesa, lendo um livro e ouvindo música com fones de ouvido. - O que está ouvindo? - perguntou alto Armanoush. - Hã? - gritou Asya. - Johnny Cash! - Ah, claro. O que está lendo? - O homem irracional: um estudo da filosofia existencial - respondeu a mesma voz firme e alta. - Isso não é um pouco irracional também? Como consegue ouvir música e se concentrar em filosofia existencial ao mesmo tempo? - Elas combinam perfeitamente - observou Asya. - Johnny Cash e a filosofia existencial sondam a alma humana para ver o que há dentro dela, e infelizes com o que descobrem, deixam-na em aberto! Antes que Armanoush pudesse refletir a respeito, alguém bateu na porta chamando-as para pegar o último trem do café-da-manhã. ENCONTRARAM A MESA POSTA SÓ PARA AS DUAS, pois todas já haviam comido. A avó e Petite-Ma tinham ido visitar um parente, tia Cevriye, à escola, tia Zeliha, ao estúdio de tatuagem, e tia Fende estava no banheiro pintando o cabelo de vermelho. E a única tia presente naquele momento parecia estranhamente mal-humorada. - Qual é o problema, tia? Seu gênio lhe deu o fora? - perguntou Asya. Em vez de responder, tia Banu foi para a cozinha. Nas duas horas seguintes, rearrumou as jarras de cereal alinhadas nas prateleiras, esfregou o chão, cozinhou biscoitos de nozes com passas, lavou as frutas de plástico do balcão e limpou caprichosamente com uma esponja a mancha de mostarda endurecida no canto do fogão. Quando finalmente voltou para a sala, encontrou as duas garotas ainda à mesa do café-da-manhã, debochando de cada cena de A Maldição da Hera da Paixão - a novela mais longa da televisão turca. Mas em vez de ressentir-se de vê-las zombando de sua querida novela, tia Banu ficou apenas surpresa por notar que esquecera completamente seu programa favorito pela primeira vez em muito tempo. A única outra vez em que perdera a novela fora anos atrás, durante seu período de penitência. Mesmo naquela época, que Alá a perdoe, pensava em A Maldição da Hera da Paixão, imaginando o

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que estaria acontecendo na novela enquanto se arrependia. Agora, porém, não havia motivo para perdê-la. Estaria sua mente tão preocupada assim? Não saberia se estivesse tão confusa?De repente, tia Banu notou que as duas moças a fitavam e ficou sem jeito, talvez porque percebesse que, com a novela terminada, elas poderiam estar à procura de um novo alvo para ridicularizar. Mas Asya parecia ter outra coisa em mente. - Armanoush estava pensando se você poderia ler as cartas de tarô para ela. - Por que ela quer isso? - perguntou tia Banu, calmamente. - Diga-lhe que é uma jovem linda, inteligente e com um futuro brilhante. Só aqueles que não têm futuro precisam conhecer o próprio futuro. - Então leia algumas avelãs tostadas para ela - insistiu Asya, sem traduzir a frase. - Não faço mais isso - respondeu tia Banu, contritamente. - Não é um bom método, afinal de contas. - Sabe, minha tia é uma sensitiva positivista. Ela mede cientificamente a margem de erro de cada adivinhação - disse Asya para Armanoush em inglês. Depois, voltou ao turco num tom sério. - Então leia nossas borras de café. - Bem, isso é outra coisa - concordou tia Banu, incapaz de dizer não às borras de café. - Essas eu posso ler a qualquer momento. Preparou-se o café. Sem açúcar para Armanoush e com muito açúcar para Asya, embora a última não quisesse ter sua xícara lida. Estava atrás de cafeína, não do destino. Quando Armanoush terminou o café, seu pires foi colocado em cima da xícara, apertado e girado em três círculos horizontais; a xícara foi então depositada de cabeça para baixo no pires, deixando as partículas do pó de café escorrerem lentamente para formar desenhos. Quando o fundo da xícara esfriou, tia Banu a ergueu e começou a ler os desenhos deixados na xícara de café, movendo o olhar no sentido horário. - Eu vejo uma mulher muito preocupada aqui. - Deve ser minha mãe - suspirou Armanoush. - Ela está extremamente preocupada. Pensa em você o tempo todo, ama muito você, mas sua alma está estressada. Há uma cidade com pontes vermelhas. Há água, mar, vento e... nevoeiro. Vejo uma família, muitas cabeças... Olha só, muita gente, muito amor e cuidados, muita comida também...Armanoush concordou com a cabeça, um pouco desconcertada de ser descoberta assim. - Então... - disse tia Banu, pulando a má notícia presente no fundo da xícara: flores que seriam logo espalhadas num túmulo muito, muito longe. Girou a xícara entre os dedos gorduchos. Suas próximas palavras saíram mais altas do que ela pretendia, assustando-as. - Ah, existe um rapaz que gosta muito de você! Mas por que há um véu na

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frente dele...? Algo como um véu. O coração de Armanoush quase parou. - Pode ser a tela de um computador? - perguntou Asya maliciosamente, enquanto Sultão V pulava em seu colo. - Não vejo computadores no meu pó de café - objetou tia Banu. - Não gostava de incorporar tecnologia ao seu universo psíquico. Depois de uma pausa solene, virou a xícara dois centímetros e fez outra pausa. Seu rosto pareceu perturbado. - Vejo uma garota da sua idade. Ela tem cabelos cacheados, negros, muito negros... seios fartos... - Obrigada, tia, entendi o recado. - Asya deu uma risadinha. - Mas não é preciso pôr seus parentes em toda xícara que lê. Isso se chama nepotismo. Tia Banu pestanejou, com o rosto completamente sem expressão. - Há uma corda aqui, uma corda grossa, forte, com um laço numa ponta. Vocês duas estarão ligadas uma à outra por um vínculo forte... Vejo um vínculo espiritual... Para a decepção das duas garotas, tia Banu não disse mais nada. Parou de ler, colocou a xícara no pires e encheu-a com água gelada para que os desenhos se misturassem e desaparecessem antes que mais alguém, bom ou mau, pudesse dar uma espiada. Isso era o bom na leitura das xícaras: ao contrário do destino escrito por Alá, o que estava escrito no café podia ser dissolvido na água. 204 A CAMINHO DO CAFÉ KUNDERA, tomaram a barca para que Armanoush pudesse ver a cidade em toda a sua amplitude e esplendor. Como a própria barca, seus passageiros tinham um ar de lassidão, rapidamente varrido para longe por um vento súbito quando a enorme embarcação cortou o mar azul. O burburinho da multidão lá dentro amplificou-se por um minuto, passando depois a um zumbido monótono para acompanhar outros sons: o ruído do motor externo, o barulho das ondas, os guinchos das gaivotas. Armanoush notou, encantada, que as preguiçosas gaivotas da praia estavam vindo com eles. Quase todos na barca as alimentavam com pedaços de simit - as roscas com sementes de sésamo eram uma guloseima irresistível para aqueles pássaros carnívoros. Uma mulher corpulenta vestida de modo clássico e seu filho adolescente estavam sentados no banco à frente delas, lado a lado mas em mundos diferentes. Pela expressão no rosto da mulher, Armanoush podia ver que não era grande fã do transporte público, que desprezava as massas; se pudesse, jogaria todos os passageiros malvestidos no mar. Por trás dos óculos de aro grosso, o filho parecia meio envergonhado pelos modos altivos da mãe. "São como personagens de Flannery O' Connor", pensou Armanoush. - Conte mais sobre esse Barão - disse Asya de repente. - Como ele é fisicamente? Que idade tem? Armanoush enrubesceu. Sob o vívido sol de inverno fulgurando por entre

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as nuvens espessas, seu rosto era o de uma jovem apaixonada. - Não sei. Nunca o vi pessoalmente. Somos amigos via internet. Admiro sua inteligência e seu entusiasmo, eu acho. - Não quer conhecê-lo um dia? - Sim e não - confessou Armanoush, depois de comprar um simit no pequeno mas apinhado bufê da barca. Pegou um pedaço do simit e, com ele na mão, inclinou-se sobre o parapeito que rodeava o convés, esperando que uma gaivota se aproximasse. - Não precisa esperar que elas apareçam. - Asya sorriu. - É só jogar um pedaço para o ar que elas o pegam imediatamente.Armanoush obedeceu. Uma gaivota se materializou do céu vazio engoliu a iguaria. - Estou louca para saber mais sobre ele, embora lá no fundo não queira conhecê-lo pessoalmente. Quando se conhece a pessoa, a mágica desaparece. Não suportaria que isso acontecesse. Ele é importante demais para mim. Namoro e sexo são outra história, e tão complicada... Estavam começando a entrar na obscura zona protegida pelos três assuntos intocáveis. Na verdade, era um bom sinal, indicando que se tornavam mais íntimas. - Mágica?! - disse Asya. - Para que mágica? As histórias de Layla e Majnun, Yusuf e Zuleica, a Mariposa e a Vela, ou o Rouxinol e a Rosa... Amor à distância, unir-se sem se tocar... Amor platônico! A escada do amor que se espera subir cada vez mais, animando o espírito do Eu e do Outro. Platão considera claramente qualquer contato físico como depravado e ignóbil porque pensa que o verdadeiro objetivo de Eros é a beleza. Não há nenhuma beleza no sexo? Segundo Platão, não. Ele está em busca de "objetivos mais sublimes". Mas se quer saber, acho que o problema de Platão, como o de muitos outros, é nunca ter tido uma transa magnífica com ninguém. Armanoush encarou a amiga, surpresa: - Pensei que você gostasse de filosofia... - gaguejou, sem saber muito bem porque dissera aquilo. Admiro a filosofia - admitiu Asya. - Mas isso não significa necessariamente que eu concorde com os filósofos. - Então devo supor que você não é muito fã do amor platônico?! Bem, Asya preferia guardar tal informação para si mesma; não porque a pergunta não pudesse ser respondida, mas porque tinha medo das implicações de sua resposta. Como Armanoush era tão educada e correta, Asya não queria intimidá-la. Que droga, como é que poderia dizer a Armanoush que, embora só tivesse 19 anos, já havia passado pelas mãos de muitos homens e não sentia nenhum remorso? Além disso, como poderia revelar a verdade sem passar uma impressão errada a uma estrangeira sobre a "castidade das garotas turcas"?Essa "responsabilidade nacional" era totalmente estranha a Asya Kazanci.

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Jamais se sentira parte de uma coletividade e não tinha nenhuma intenção de ser assim agora ou no futuro. Contudo lá estava ela representando muito bem um personagem, uma pessoa que se tornara patriota do dia para a noite. Como poderia se despir de sua identidade nacional e voltar a ser seu eu puro, pecador? Poderia dizer a Armanoush que acreditava, do fundo do coração, que só fazendo sexo com um homem a mulher pode descobrir realmente que aquele é o homem certo para ela? Que só na cama os mais imperceptíveis e inatos complexos das pessoas vêm à tona? E que não importa o que se pense, o sexo é na verdade muito mais sensual do que físico? Como poderia revelar que havia tido várias relações no passado, muitas mesmo, como se quisesse se vingar dos homens (apesar de não saber ainda do que exatamente se vingar)? Teve muitos namorados, às vezes simultaneamente, casos polígamos que sempre terminavam em corações partidos, acumulando uma pilha de segredos que ela havia conservado cuidadosamente longe da própria casa. Poderia dizer isso? Armanoush a compreenderia sem julgar? Poderia ela realmente entender a alma de Asya, do alto de sua torre imaculada? Asya poderia lhe confessar que já tentara o suicídio, uma péssima experiência da qual retirara duas lições: que tomar as pílulas de sua tia lunática não era o modo certo de fazê-lo e que alguém querendo se matar devia ter um motivo racional à mão caso sobrevivesse, pois "POR QUÊ?" seria a pergunta que choveria de todos os lados. Poderia confessar também que até então não conseguira entender a resposta para tal pergunta, a não ser lembrar que era jovem demais, tola demais, furiosa demais e intensa demais para o universo em que vivia? Isso faria algum sentido para Armanoush? Poderia então revelar que recentemente evoluíra em direção à estabilidade e tranqüilidade, já que agora tinha uma relação monogâmica, embora ele fosse casado, com o dobro de sua idade, e que o encontrava de vez em quando para compartilhar sexo, um baseado e um refúgio da solidão? Como poderia contar a Armanoush que ela, Asya, era meio que um desastre? Assim, em vez de responder, Asya puxou um walkman de sua mochila e pediu licença para ouvir uma música, apenas uma música.Naquele exato momento, precisava de uma dose de Cash. Ofereceu um dos fones de ouvido a Armanoush, que o aceitou cautelosamente, perguntando:- Que música dele vamos ouvir?- "Dirty Old Egg-Suckin' Dog"!- Esse é o nome? Não conheço.- É - disse Asya gravemente. - Vai começar. Ouça... E a música começou;

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primeiro o prelúdio apático e em seguida uma melodia country, mesclando-se aos guinchos das gaivotas e às vocalizações turcas ao fundo. Armanoush ouvia, atônita demais pela dissonância entre a letra e o cenário à volta para apreciar a música. Então ocorreu-lhe subitamente que a música era exatamente como Asya: cheia de contestações e raiva, totalmente em desarmonia com seu pano de fundo; emotiva, reativa e pronta para explodir a qualquer momento. Quando se inclinou para trás, o murmúrio ao fundo passou a um zumbido tedioso, pedaços de simit desapareceram no ar, um toque de encantamento navegou com a brisa. A barca deslizava suavemente e os fantasmas de todos os peixes que viveram outrora naquelas águas nadaram com as duas no mar de um azul denso e viscoso. Quando a música terminou, já tinham alcançado terra firme. Alguns passageiros pularam para fora antes que a barca chegasse ao cais. Armanoush observou a performance acrobática com surpresa, admirando os diversos talentos dos habitantes de Istambul para lidar com o ritmo da cidade. Quinze minutos depois, a porta de madeira desconjuntada do Café Kundera se abriu com um barulho estridente, e por ela entrou Asya Kazanci, num vestido hip pie lilás, e sua hóspede, de jeans e um suéter simples. Asya deparou-se com o grupo habitual, no lugar habitual, com o comportamento habitual. - Olá, pessoal! - gritou Asya. - Esta é Amy, uma amiga americana.- Olá, Amy! - saudaram todos em uníssono. - Bem-vinda a Istambul!- É a primeira vez que você vem aqui? - perguntou alguém. E em seguida outros começaram o interrogatório: - Gosta da cidade? Gosta da comida? Quanto tempo vai ficar? Pretende voltar?... Embora a recepção fosse calorosa, o grupo rapidamente voltou à sua postura habitual irredutivelmente lânguida, já que nada poderia perturbar o ritmo preguiçoso que prevalecia no Café Kundera. Os que tinham necessidade de velocidade e dinamismo podiam simplesmente sair, pois havia muito disso nas ruas. No café havia uma indolência obrigatória e uma recorrência eterna. Com um clima de fixações, repetições e obsessões, o lugar era destinado aos que não queriam ter nada a ver com algo maior, se tal coisa realmente existisse. Nas breves pausas entre as perguntas, Armanoush examinou o lugar e as pessoas, intuindo de onde havia vindo o nome do café. O conflito constante entre a realidade vulgar e a fantasia traiçoeira, o conceito pessoas de fora versus nós, pessoas de dentro, a qualidade de sonho do lugar e, finalmente, a expressão taciturna no rosto dos homens como se ruminassem desesperadamente sobre o que

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escolher - carregar o peso de casos de amor descabelado ou se tornar parcialmente real com leveza -, tudo evocava uma cena dos romances de Kundera. Contudo, eles não o sabiam nem poderiam saber, tão envolvidos, tão parte daquilo, como peixes que não pudessem imaginar a imensidão do oceano pelas lentes borradas das águas que os rodeavam. Comparar o café a uma cena de Kundera aumentava o interesse de Armanoush. Ela notou muitas outras coisas, inclusive o fato de que todos à mesa falavam em inglês, embora com sotaque e erros gramaticais. No conjunto, não pareciam ter problemas para passar do turco ao inglês. No início, Armanoush atribuiu tal facilidade à sua autoconfiança, mas depois suspeitou que o fator facilitador poderia não ser a confiança no próprio inglês, mas a falta de segurança em qualquer outra língua. Agiam e falavam como se, independentemente do que dissessem ou como o dissessem, não pudessem de fato expressar inteiramente o eu interior, e, afinal de contas, como se a linguagem fosse apenas uma carcaça fedorenta de palavras ocas há muito apodrecidas por dentro.Armanoush também notou que a esmagadora maioria dos quadros de estradas nas paredes representavam países ocidentais ou locais exóticos; pouco tinham a ver com o que existia entre uma coisa e outra. Tendo feito tal observação, não soube muito bem como interpretá-la. Talvez o vôo da imaginação ali fosse orientado para se mover em direção ao Ocidente ou para fugir para uma terra exótica bem distante. Um vendedor ambulante muito moreno e magro esgueirou-se para o interior do café quase às escondidas dos garçons, que poderiam têlo expulsado. Carregava uma enorme bandeja de amêndoas amarelas sem casca sobre cubos de gelo. - Amêndoas! - exclamou o homem, como se aquele fosse o nome de alguém por quem procurasse desesperadamente. - Aqui! - exclamou o Cartunista Dipsomaníaco, como se respondesse ao chamado de seu nome. Amêndoas combinavam perfeitamente com o que estava bebendo no momento: cerveja. Já havia abandonado abertamente os Alcoólicos Anônimos, mais por franqueza do que por causa do vício, não vendo nenhuma razão para chamar-se de alcoólatra quando não o era. Não lhe parecia verdadeiro. Em vez disso, resolvera tornar-se seu próprio supervisor. Hoje, por exemplo, beberia apenas três cervejas. Tendo já entornado uma, havia mais duas a beber. Depois disso pararia. Sim, assegurou a todos, poderia administrar essa disciplina sem a lamentável orientação profissional de outra pessoa. Com tal decisão, comprou quatro conchas de amêndoas e empilhou-as no meio da mesa para que todos pudessem facilmente alcançá-

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las. Enquanto isso, a mente de Armanoush estava ocupada, observando o garçom encurvado e de aparência perdida anotando os pedidos de cada cliente, um tanto surpresa de ver tanta gente bebendo. Ela se lembrou do comentário generalizante que fizeram na outra noite sobre a relação dos muçulmanos com o álcool. Deveria comentar sobre o gosto dos turcos pelo álcool com seus companheiros do Café Constantinópolis? Quanto deveria lhes revelar sobre o que estava acontecendo ali?Alguns minutos depois o garçom voltou com um grande copo de cerveja cheio de espuma para o Cartunista Dipsomaníaco e uma jarra de vinho tinto seco para os outros. Enquanto ele servia o líquido vermelho-escuro em copos elegantes, Armanoush aproveitou a oportunidade para observar as pessoas em volta da mesa. Imaginou que a mulher tensa sentada perto e, ao mesmo tempo, a quilômetros de distância do homem grande com o nariz bulboso fosse sua esposa. Examinou a mulher do Cartunista Dipsomaníaco e o Cartunista Dipsomaníaco, assim como o Colunista Gay Enrustido, o Poeta Excepcionalmente Sem Talento, o Roteirista Não-Nacionalista de Filmes Ultranacionalistas e... não pôde deixar de olhar um pouco mais demoradamente para a morena jovem e sexy à sua frente, que não parecia participar do grupo mas mesmo assim mostrava-se desajeitadamente ligada a ele. Definitivamente fã de celulares, a morena brincava com seu cintilante telefone cor-de-rosa, abrindo-o sem qualquer motivo aparente, apertando este ou aquele botão, enviando ou recebendo um torpedo, absorta no pequeno aparelho. De vez em quando, ela se aproximava um centímetro do homem barbado perto dela e tocava-lhe carinhosamente a orelha com o nariz. Evidentemente era a nova namorada do Roteirista Não-Nacionalista de Filmes Ultranacionalistas. - Fiz uma tatuagem ontem. As palavras estavam tão fora de contexto que Armanoush não entendeu imediatamente se eram dirigidas a alguém, muito menos a ela mesma. Mesmo assim, por puro tédio ou numa tentativa de ser amável com a única outra componente recente do grupo, a nova namorada do Roteirista Não-Nacionalista de Filmes Ultranacionalistas perguntou a Armanoush: - Quer vê-la? Era uma orquídea selvagem, vermelha como o inferno, formando uma espiral em volta do seu umbigo. - Bacana - disse Armanoush. A mulher sorriu, satisfeita. - Obrigada - disse, enquanto tocava os lábios com o guardanapo, embora não tivesse comido coisa alguma.Enquanto isso, Asya também vinha observando a mulher, ainda que com um olhar muito mais crítico. Como sempre fazia ao conhecer uma mulher, podia fazer uma coisa ou outra: esperar para ver quando começaria a

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odiá-la ou pegar um atalho e odiá-la imediatamente. Escolheu a segunda. Asya inclinou-se para trás e pegou o copo com o polegar e o indicador, observando o líquido vermelho. Mesmo quando começou a falar não tirou o olho do copo. - Na verdade, quando lembramos como é antiga a arte da tatuagem... disse Asya, mas não terminou a frase. Em vez disso, começou uma nova. - No início da década de 1990, exploradores encontraram um corpo bem conservado de mais de cinco mil anos nos Alpes Italianos. Ele tinha 57 tatuagens. As tatuagens mais antigas do mundo! - É mesmo? - perguntou Armanoush. - Que tipo de tatuagens eram feitas naquela época? - Geralmente animais, aqueles que eram seus totens... Provavelmente burros, cervos, corujas, carneiros da montanha... e cobras, claro. Tenho certeza de que as cobras sempre estiveram na moda. - Uau, mais de cinco mil anos! - exclamou a nova namorada do Roteirista Não-Nacionalista de Filmes Ultranacionalistas, entusiasmada. Mas acho que ele não tinha uma tatuagem no umbigo! - arrulhou ele para ela. E riram juntos, se beijaram e se abraçaram. Havia poucas mesas espalhadas pela calçada no lado de fora. Um casal sombrio instalou-se numa delas, e em seguida outro casal, com rostos urbanos sérios e estressados. Armanoush observou seus gestos com curiosidade, comparando-os a personagens de um romance de Fitzgerald. - De alguma forma, tendemos a associar tatuagens a originalidade, inventividade e até modernismo. Na realidade, ter tatuagens em volta do umbigo é um dos costumes mais velhos da História do mundo. Não sei se vocês lembram, mas no final do século XIX um corpo mumificado foi descoberto por um grupo de arqueólogos ocidentais. Era o de uma princesa egípcia, Amunet. E sabem o que mais? Tinha uma tatuagem. E sabem onde? - Agora Asya virou-se para o Roteirista e olhou-o diretamente nos olhos. - No umbigo! O Roteirista pestanejou, intrigado com a informação. Sua nova namorada parecia tão impressionada quanto ele quando perguntou: Como sabe de tudo isso? - A mãe dela tem um estúdio de tatuagem - interveio o Cartunista Dipsomaníaco, sem tirar os olhos de Asya. Ele afundou na cadeira, resistindo ao impulso de beijar-lhe os lábios raivosos, ao impulso de pedir outra cerveja sem fazer cerimônia, ao impulso de parar de bancar o homem que não era. Seu estado de espírito só foi captado por uma pessoa. Armanoush detectou o ardor com que olhava para Asya e achou que ele poderia estar apaixonado por ela. Enquanto isso, o humor de Asya parecia totalmente diferente, enquanto se preparava para desfechar outro ataque à nova namorada do Roteirista Não-Nacionalista de Filmes Ultranacionalistas. Inclinando-se para a frente

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com uma expressão dura no rosto, Asya comentou: - Mas tatuagens podem ser muito perigosas. Asya esperou alguns segundos para que a palavra perigosa fosse absorvida. - Os instrumentos usados no processo deveriam ser cuidadosamente esterilizados, mas a verdade é que nunca se está cem por cento seguro quanto ao risco de contaminação, o que naturalmente é uma questão séria já que a técnica de tatuagem mais comum é inserir tinta com agulhas... Pronunciou a palavra agulhas de modo tão ameaçador que todos na mesa sentiram arrepios. Apenas o Cartunista Dipsomaníaco a observou com uma faísca maliciosa nos olhos, usufruindo totalmente o espetáculo. - A agulha é repetidamente introduzida e retirada da pele por cerca de três mil vezes por minuto - continuou Asya. Pegou um cigarro de seu maço, movimentando-o repetidamente para frente e para trás como se ilustrasse o ato, até que finalmente o acendeu. A nova namorada do Roteirista Não-Nacionalista de Filmes Ultranacionalistas tentou sorrir diante do gesto explicitamente sexual, mas algo nos olhos de Asya a impediu. - Envenenamento do sangue e hepatite são apenas duas das muitas doenças fatais que se pode contrair num estúdio de tatuagem. O artista precisa abrir um novo pacote esterilizado a cada vez e lavar as mãos com água quente e sabão; além disso, tem que usar líquidos antissépticos e luvas de látex... Teoricamente, claro. Quer dizer, quem se preocuparia com todos esses detalhezinhos? - Ele tomou todos os cuidados. As agulhas eram novas e suas mãos estavam limpas - observou a nova namorada em turco com um toque de pânico. Asya não cedeu, continuando em inglês. - É, ótimo. Infelizmente isso não basta. E a tinta? Você sabia que não só as agulhas como também a tinta têm que ser renovadas a cada vez? É preciso usar tinta fresca em cada sessão, para cada cliente. - A tinta...? - Agora a nova namorada parecia realmente preocupada.- Certo, a tinta! - decretou Asya com convicção. - Há muitas infecções que surgem depois de um procedimento de tatuagem só por causa da tinta. Uma das mais comuns é a causada pelo Staphylococcus aureus, que infelizmente - franziu a testa - causa sérios danos ao coração. Embora tentasse não perder o controle depois de ouvir tal informação, o rosto da nova namorada do Roteirista Não-Nacionalista de Filmes Ultranacionalistas empalideceu. Seu telefone celular emitiu um sinal, mas ela nem sequer o olhou. - Você consultou um médico antes de fazer a tatuagem? - perguntou Asya com uma expressão preocupada que esperava ser convincente. - Não - respondeu a nova namorada do Roteirista Não-

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Nacionalista de Filmes Ultranacionalistas. Seu rosto agora estava muito sério, com novas linhas esboçando-se em torno dos lábios e dos olhos. -É mesmo? Bom, não tem importância, não se preocupe. - Asya gesticulou. - É quase certo que nada de ruim aconteça. E, com isso, apoiou as costas no espaldar da cadeira. O Cartunista Dipsomaníaco e Armanoush sorriram, mas nenhum dos outros teve reação alguma. Resolvendo entrar no jogo, o Cartunista Dipsomaníaco virou-se para Asya num divertimento sonso e perguntou: - Mas ela pode apagá-la se quiser, não pode? É possível tirar a tatuagem, não é? - É possível - respondeu Asya imediatamente. - Mas o processo todo é no mínimo doloroso e nada estimulante. Pode-se escolher um de três métodos: cirurgia, tratamento a laser ou peeling. Com isso, Asya pegou uma amêndoa da pilha e retirou sua pele. Todos na mesa, até Armanoush, olharam fixamente para a amêndoa com horror. Satisfeita com a reação de sua platéia, Asya jogou a amêndoa descascada na boca e mastigou-a vigorosamente. Os olhos da nova namorada do Roteirista Não-Nacionalista de Filmes Ultranacionalistas se arregalaram ao observar Asya mastigando a amêndoa. - Pessoalmente, eu jamais recomendaria o peeling. Não que os outros sejam melhores. É preciso encontrar um dermatologista ou um cirurgião plástico bom... muito bom. Custa muito caro, mas o que se pode fazer? Cada consulta custa muito dinheiro e é preciso pagar por diversas consultas. Mesmo quando a tatuagem é removida, fica uma cicatriz bem visível, sem falar na descoloração da pele. Quando a pessoa quer se livrar disso, precisa de outra cirurgia plástica. Mesmo assim, não há cem por cento de garantia. Armanoush controlou-se para não rir. - Bem, por que não bebemos? - interveio a mulher do Cartunista Dipsomaníaco com um sorriso cansado. - Existe melhor motivo para bebermos do que o Sr. Na Ponta dos Pés? Qual era mesmo o nome dele? Cecche? - Cecchetti - corrigiu Asya, ainda lamentando o dia em que ficara tão bêbada que acabou dando uma aula sobre a história do balé para o grupo.- Isso mesmo, Cecchetti. O Poeta Excepcionalmente Sem Talento deu uma risadinha e explicou para Armanoush: - Se não fosse por ele, as bailarinas não precisariam se esfalfar caminhando na ponta dos pés, sabia? - O que se passava na cabeça dele? - acrescentou alguém e todos riram. - Amy, conte para nós de onde você é - disse o Poeta Excepcionalmente Sem Talento para Armanoush em meio ao costumeiro murmúrio do café. - Na verdade, Amy é um apelido para Armanoush - interferiu Asya, ainda num estado provocativo. - Ela é armênia-

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americana! A palavra armênia não surpreenderia ninguém no Café Kundera, mas armênia-americana era outra história. Armênia-armênia não era problema mesma cultura, mesmos problemas -, mas armênia-americana significava alguém que desprezava os turcos. Todas as cabeças se viraram para Armanoush. Seus olhares revelavam interesse com uma ponta de medo, como se ela fosse uma extravagante caixa de presente de conteúdo desconhecido. Dentro dela, poderia haver um presente tão belo quanto o embrulho ou uma bomba. Armanoush firmou os ombros como se esperasse um golpe, mas como o grupo freqüentava o Café Kundera há muitos anos, absorvera a característica morosa do local para conseguir permanecer empolgado por muito tempo. Asya, contudo, não deixou a empolgação morrer. - Vocês sabiam que a família de Armanoush era de Istambul? - perguntou, mastigando duas amêndoas seguidas. - Foram vítimas de vários tipos de sofrimento em 1915. Muitos morreram durante as deportações... Morreram de fome, cansaço, maus-tratos... Silêncio total. Nenhum comentário. Asya colocou mais lenha na fogueira, sob o olhar preocupado do Cartunista Dipsomaníaco: - Mas o bisavô dela foi morto antes disso tudo. - Asya encarou Armanoush, embora sua declaração seguinte fosse dirigida mais aos membros do grupo do que à garota. - Principalmente porque era um intelectual! - Bebericou o vinho lentamente. - A questão é que a inteligensia armênia foi a primeira a ser executada para que a comunidade ficasse sem seus líderes. O silêncio não tardou a ser quebrado. - Isso não aconteceu. - O Roteirista Não-Nacionalista de Filmes Ultranacionalistas sacudiu vigorosamente a cabeça. - Nunca ouvimos falar de qualquer coisa desse tipo. - Deu uma baforada do cachimbo e, em meio à fumaça que os envolvia, encarou Armanoush, sua voz diminuindo até um sussurro compassivo.-Escute, lamento muito por sua família e lhe presto minhas condolências. Mas você precisa saber que era uma época de guerra. Morreu gente dos dois lados. Tem idéia de quantos turcos morreram nas mãos dos rebeldes armênios? Já pensou sobre o outro lado da história? Aposto que não! E o sofrimento das famílias turcas? É muito trágico, mas precisamos entender que 1915 não é 2005. Os tempos eram diferentes. Não havia nem um Estado turco naquela época, havia o Império Otomano, pelo amor de Deus! A era pré-moderna e suas tragédias pré-modernas... Armanoush comprimiu os lábios com tanta força que eles empalideceram. Tinha tantos argumentos para contrapor ao que acabara de ouvir que nem sabia por onde começar.

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Queria muito que o Barão Baghdassarian estivesse ali e pudesse ouvir tudo. A pausa de Armanoush foi preenchida imediatamente pela interrupção de Asya: - Ah é? Achei que você não fosse nacionalista! - E não sou! - exclamou o Roteirista Não-Nacionalista de Filmes Ultranacionalistas, subindo a voz duas oitavas. Para manter-se calmo, ele começou a alisar a barba. - Mas respeito as verdades históricas. - As pessoas sofreram uma lavagem cerebral. - Sua nova namorada recobrou-se, tentando apoiar o companheiro e vingar-se da conversa sobre tatuagem. Asya e Armanoush se entreolharam. Naquele breve momento, o garçom apareceu denovo e substituiu a jarra de vinho vazia por uma nova.- Como é que você sabe? - perguntou Armanoush lentamente. - Talvez você tenha sofrido uma lavagem cerebral também. - É, como é que você sabe? - repetiu Asya. - O que sabemos de 1915? Quantos livros você leu sobre o assunto? Quantos pontos de vista controversos comparou e verificou? Que pesquisa fez, que fontes usou? Aposto que não leu nada! Mas está tão convencida! Não estamos apenas engolindo o que nos transmitiram? Comprimidos de informação, comprimidos de desinformação. Todos os dias engolimos um punhado deles.- Concordo, o sistema capitalista anula nossos sentimentos e limita nossa imaginação - interrompeu o Poeta Excepcionalmente Sem Talento. - Esse sistema é responsável pelo desencanto do mundo. Só a poesia pode nos salvar. - Olhe - replicou o Roteirista Não-Nacionalista de Filmes Ultranacionalistas. - Ao contrário da maioria dos turcos, tenho feito muita pesquisa sobre essa questão devido ao meu trabalho. Escrevo roteiros para filmes históricos. Leio sobre História o tempo todo. Então digo isso não porque ouvi falar ou por ter sido mal informado. É exatamente o oposto! Falo como alguém que pesquisou meticulosamente sobre o assunto. - Fez uma pausa para tomar um gole do vinho. - As reivindicações dos armênios se baseiam em exageros e distorções. Ora, alguns chegam ao ponto de dizer que matamos dois milhões de armênios. Nenhum historiador em sã consciência levaria isso a sério.- Até uma única vítima é demais - rebateu Asya.Com uma expressão preocupada, o garçom tornou a se materializar com uma nova jarra de vinho na mão. Fez um gesto para o Cartunista Dipsomaníaco: - Vão continuar pedindo? - Recebeu como resposta polegares virados para cima. Tendo há muito terminado suas três cervejas e firme na decisão de só beber essa quantidade, o Cartunista Dipsomaníaco já tinha passado para o vinho. - Vou lhe dizer uma coisa, Asya. - O Roteirista tornou a

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encher o próprio copo. - Você ouviu falar dos julgamentos infames das feiticeiras em Salem, não é? O interessante é que quase todas as mulheres acusadas de bruxaria fizeram confissões semelhantes e mostraram sintomas iguais, inclusive desmaiar ao mesmo tempo... Estavam mentindo? Não! Estavam fingindo? Não! Sofriam de histeria coletiva. - O que está querendo dizer? - perguntou Armanoush, mal conseguindo controlar a raiva. - É, o que diabo está querendo dizer? - repetiu Asya sem conseguir controlar sua própria raiva. Um sorriso exausto apareceu no rosto sombrio do Roteirista. - Existe uma coisa chamada histeria coletiva. Não estou dizendo que os armênios são histéricos ou coisa assim, não me entenda mal. É um fato cientificamente conhecido que as coletividades podem manipular as crenças, os pensamentos e até as reações corporais de seus membros. A pessoa ouve uma história repetidamente e acaba internalizando a narrativa. Daquele momento em diante, essa história deixa de ser da outra pessoa. Não é nem mais uma história e sim a realidade, a sua realidade! - É como ser vítima de um feitiço - observou o Poeta Excepcionalmente Sem Talento. Passando a mão pelo cabelo, Asya encostou-se no espaldar da cadeira e tirou umas baforadas do cigarro. - Vou lhe dizer o que é histeria - falou. - Todos esses roteiros que você escreveu até agora, toda a série de Timur, o Coração de Leão, o turco musculoso e hercúleo correndo de uma aventura para outra contra o idiota bizantino, isso é o que eu chamo de histeria. E depois que você o transforma num programa de TV e faz milhões de pessoas internalizarem sua mensagem horrenda, ela se torna uma histeria coletiva. Dessa vez o Colunista Gay Enrustido interferiu: - É, todos esses heróis turcos vulgarmente machos que você criou para ridicularizar a efeminação do inimigo são sinais de autoritarismo. - Qual é o problema, pessoal? - perguntou com lábios trêmulos de raiva o Roteirista Não-Nacionalista de Filmes Ultranacionalistas. - Vocês sabem muito bem que não acredito naquele lixo. Sabem que esses programas são só para diversão.Armanoush fez o máximo que pôde para mudar o estado de espírito geral. Embora sabendo que o Barão Baghdassarian discordaria veementemente, ela acreditava que aumentar a tensão não ajudaria no reconhecimento do genocídio. - Aquela foto ali. - Armanoush apontou para a parede. Aquela estrada na moldura laranja fica no Arizona. Minha mãe e eu costumávamos passar muitas vezes por ali quando eu era criança. - Arizona - murmurou o Poeta Excepcionalmente Sem Talento. Suspirou como se o nome fosse uma

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terra de sonho para ele, uma espécie de Shangri-la. Asya, porém, não estava disposta a abandonar o assunto. - Mas a questão é essa - disse. - O que você vem fazendo é pior ainda. Se acreditasse no que faz, se tivesse o mínimo de fé nesses filmes, eu questionaria seus pontos de vista, mas não sua sinceridade. Você escreve esses roteiros para as massas. Escreve, vende e ganha um monte de dinheiro. E então vem aqui, se esconde nesse café intelectual e se junta a nós para debochar desses mesmos filmes. Quanta hipocrisia!A cor desapareceu do rosto do Roteirista, deixando-lhe uma expressão dura e olhos glaciais. - Quem é você para me falar de hipocrisia, sua bastarda? Por que não vai embora procurar pelo seu pai em vez de ficar me enchendo?Estendeu a mão para o copo de vinho, mas não precisava fazê-lo, já que dessa vez o copo de vinho foi até ele. O Cartunista Dipsomaníaco levantara de um pulo, agarrara o copo de vinho e o arremessara no Roteirista, errando o alvo por pouco. O copo chocou-se contra um quadro na parede, espalhando vinho por toda parte, mas espantosamente não se quebrou. Sem atingir o alvo, o Cartunista Dipsomaníaco enrolou as mangas da camisa. Embora não chegasse à metade do tamanho do Cartunista Dipsomaníaco e estivesse tão bêbado quanto ele, o Roteirista Não-Nacionalista de Filmes Ultranacionalistas conseguiu esquivar-se do primeiro soco. Então, retirou-se rapidamente para um canto, de olho na saída.Ele nem esperava pelo golpe. O Colunista Gay Enrustido levantou da cadeira de um pulo e voou para o canto com a jarra na mão. No momento seguinte, o Roteirista estava no chão, com sangue saindo da testa. Apertando um guardanapo ensangüentado contra o ferimento como uma vítima de guerra, primeiro olhou fixamente para o Colunista, depois para o Cartunista e em seguida para um ângulo oblíquo. Contudo, o Café Kundera era um estabelecimento intelectual confortável e monótono, onde o ritmo da vida, para o bem ou para o mal, jamais se quebrava. Não era local para uma briga de bêbados. Antes mesmo que a testa do Roteirista parasse de sangrar, todos no café voltaram às suas tarefas de antes da interrupção - alguns fazendo caretas, alguns conversando sobre o vinho ou o café, outros se perdendo nas fotos emolduradas nas paredes.

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DAMASCOS SECOS

ERA QUASE AURORA, a um passo do misterioso limite entre a noite e o dia. O único momento em que ainda era possível encontrar alívio nos sonhos, mas tarde demais para construí-los do início. Se existe um olho no sétimo céu, um Olhar Celestial observando a todos lá de cima, Ele teria que vigiar Istambul por algum tempo para saber quem fazia o que por trás das portas fechadas e quem proferia blasfêmias, se alguém o fazia. Para Aquele nos céus, a cidade devia parecer uma trama de cintilações intermitentes fulgurando em todas as direções, como fogos de artifício em meio à densa escuridão. Naquele momento, o modelo urbano fulgurava em tons de laranja, vermelho e ocre. Uma configuração de faíscas, cada ponto uma luz acesa por alguém que acabara de acordar. Do ponto de vista do Olhar Celestial, situado lá em cima, essas lâmpadas esporadicamente acesas devem exibir uma harmonia perfeita, tremeluzindo constantemente, como se enviassem uma mensagem criptografada para Deus. Excetuando-se os brilhos esparsos, Istambul continua densamente escura. Ao longo das ruas sujas e estreitas serpenteando pelas regiões antigas, nos modernos edifícios de apartamentos que dominam os bairros recém-construídos ou nos ricos subúrbios, as pessoas dormem profundamente. Todas, exceto algumas. Certos habitantes de Istambul, como sempre, acordam mais cedo que outros. Os imames de toda cidade, por exemplo. Velhos e novos, com vozes suaves e com vozes não tão suaves, os imames das diversas mesquitas são os primeiros a acordar, prontos para convocar os fiéis para a prece da manhã. Depois, despertam os vendedores ambulantes de simit. Dirigem-se às suas respectivas padarias para pegar as roscas crocantes de sésamo que venderão ao longo do dia. Assim, os padeiros estão de pé também. A maioria deles dorme apenas algumas horas antes de começar a trabalhar, enquanto outros nunca dormem à noite. Todos os dias, sem exceção, os padeiros aquecem seus fornos no meio da noite para que, antes do amanhecer, as padarias da cidade exalem o delicioso aroma do pão. Faxineiras de todas as idades também estão acordadas. Levantam cedo para tomar pelo menos dois ou três ônibus diferentes para chegar à casa dos abastados, onde esfregarão, limparão e encerarão o dia inteiro. Esse é um mundo diferente. As mulheres ricas usam maquiagem sempre e nunca mostram a idade que têm. Diferentes dos maridos das faxineiras, os maridos nos bairros opulentos estão sempre ocupados, são surpreendentemente educados e um tanto efeminados. O tempo

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não é um artigo escasso nos subúrbios. As pessoas o usam tão abundantemente e livremente quanto a água quente. Já alvoreceu. A cidade é uma entidade viscosa, quase gelatinosa neste momento, algo amorfo, meio líquido, meio sólido. Para o Olhar Celestial lá em cima, a residência Kazanci deve parecer uma esfera cintilante de faíscas manchadas em meio às sombras da noite. A maioria de seus aposentos continua escura e silenciosa, embora alguns já estejam iluminados.Uma das Kazanci acordada àquela hora era Armanoush. Despertou e imediatamente conectou-se à internet, ansiosa para contar aos membros do Café Constantinópolis sobre o chocante incidente do dia anterior. Contou-lhes sobre os círculos boêmios de Istambul e depois sobre a briga, resumindo cada personagem e detalhe que registrara no Café Kundera. Então, passou a lhes dar uma descrição completa do Cartunista Dipsomaníaco, acrescentando como ele descobrira uma nova função para o vinho à mesa.- Esse Cartunista parece engraçado, escreveu Anti-Khavurma. Você está dizendo que ele pode ir para a cadeia por desenhar o primeiro-ministro como lobo? O humor é um negócio sério na Turquia!- o cara parece legal, concordou Lady PeacocklSiramark. Conte mais sobre ele.No entanto, alguém pareceu ter interpretado o incidente de um modo totalmente diferente.Ora, pessoal, não há nada de legal ou interessante nele ou em qualquer outro personagem desse café sombrio. Não estão vendo que são todos rostos e nomes do lado boêmio, vanguardista e pretensioso- desprezível de Istambul? Típica elite de um país do Terceiro Mundo que odeia mais a si mesmo do que qualquer outra coisa.Armanoush se encolheu diante da áspera mensagem do Barão Baghdassarian e olhou em volta. Asya dormia do outro lado do quarto com Sultão V encolhido em seu peito, fones de ouvido na cabeça e um livro aberto na mão: Totalidade e infinitude: um ensaio sobre exterioridade, de Emmanuel Levinas. Havia também uma caixa de CDs junto à cama de Asya - Johnny Cash vestido de negro da cabeça aos pés contra um céu sombrío e escuro, com um cachorro de um lado e um gato do outro, olhando fixa e taciturnamente para algo bem além. Asya dormira com o walkman ligado na função repeat. Era bem filha de sua mãe também nesse aspecto, totalmente capaz de combater vozes de todos os tipos, mas incapaz de lidar com o silêncio.

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De onde estava, Armanoush não entendia a letra, mas podia ouvir o ritmo envolvendo o quarto. Gostava de ouvir a voz de barítono de Cash derramar-se dos fones de ouvido da mesma forma que gostava dos diversos sons de dentro e fora da casa: as preces matutinas ecoando das mesquitas distantes; o tilintar do leiteiro ao deixar as garrafas de leite em frente ao armazém do outro lado da rua; a surpreendente e sibilante cadência respiratória de Sultão V e Asya, uma fusão de roncos e ronrons, embora não fosse fácil saber quem fazia o quê; o som dos dedos movendo-se pelo teclado enquanto ela própria procurava responder da melhor forma ao Barão Baghdassarian. Era quase de manhã, e embora não tivesse dormido o suficiente, Armanoush se sentia estimulada pela sensação de triunfo que se tem quando se derrota o sono. No andar de baixo, ficava o quarto da avó Gülsüm. Esta poderia, de fato, ter sido Ivan, o Terrível em outra vida, mas a aspereza dela tinha lá suas razões. Como muitos que se tornaram amargos, a avó tinha a sua história. Crescer numa pequena cidade da costa do Egeu, onde a vida era idílica, embora pobre; casar-se com um homem da família Kazanci, muito mais rica e muito mais urbana que a dela, mas certamente com um destino pior; o constrangimento de ser uma jovem noiva rural do filho único de uma linhagem graciosa, propensa ao desastre; o fardo de ver-se destinada a ter filhos homens, quanto mais melhor, pois nunca se sabia quanto tempo sobreviveriam, e tendo uma filha atrás da outra; suportar a angústia de ver o marido afastar-se dela cada vez mais a cada nascimento. Levent Kazanci era um homem atormentado, que não hesitava em usar o cinto para disciplinar a mulher e os filhos. "Um menino, se pelo menos Alá tivesse lhe dadivado um menino, tudo seria perfeito." Três meninas seguidas e então o sonho, o quarto bebê, finalmente um menino. Esperando que o destino deles mudasse, tentaram um quinto bebê, mas desta vez veio de novo uma menina. Mesmo assim, bastava Mustafá, era tudo que precisavam para continuar a linhagem familiar.E lá estava ele, mimado, paparicado, estragado, sempre privilegiado em detrimento das meninas, cada desejo seu concedido... Então a melodia cessou e a escuridão e o desespero invadiram o sonho: Mustafá partiu para os Estados Unidos para nunca mais voltar. Avó Gülsüm era uma mulher que jamais fora amada; dessas que não envelhecem aos poucos e sim rapidamente, pulando da virgindade para as rugas sem a chance de permanecer um pouco entre os dois extremos. Ela se dedicava inteiramente ao filho único e o valorizava freqüentemente às custas das filhas,

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tentando encontrar nele um consolo para tudo que a vida lhe tirara. Apesar disso, uma vez no Arizona, a existência do rapaz reduzira-se a cartões-postais e cartas. Ele nunca mais voltara a Istambul para visitar a família. Avó Gülsüm enterrou a dor profunda da rejeição. Com o tempo, seu coração foi ficando cada vez mais insensível. Atualmente, exibia a expressão de quem chegara voluntariamente à austeridade e pretendia continuar assim. No canto direito do primeiro andar, Petite-Ma estava profundamente adormecida, as faces vermelhas, a boca aberta, roncando pacificamente. Junto à sua cama, havia uma mesinha de cerejeira, e sobre ela, o Sagrado Alcorão, um livro sobre santos muçulmanos e um abajur maravilhoso, que irradiava uma suave luz verde-acinzentada. Ao lado do livro, via-se um rosário ocre com uma pedra de âmbar na ponta, além de meio copo d’água contendo uma dentadura. O tempo para Petite-Ma perdera há muito seu comando linear; não havia sinais regulatórios, luzes de avisos ou rumos ao longo da estrada da História. Ela estava livre para se mover em qualquer direção ou mudar de pista. Ou podia parar no meio da estrada, recusando se mover, recusando a obrigação de continuar, já que não havia "progresso" em sua vida, mas só a perpétua recorrência de momentos isolados. Certas lembranças da infância lhe voltavam nesses dias, tão vívidas como se acontecessem ali e agora. Lá estava ela, uma menina de oito anos loura e de olhos azuis com a mãe em Tessalônica, enquanto ambas choravam silenciosamente após a morte do pai nas Guerras dos Bálcãs. Então, via-se em Istambul: era final de outubro, a modernaRepública da Turquia havia acabado de ser proclamada. Bandeiras. Ela via um monte de bandeiras, vermelhas e brancas, lua crescente e estrela, flutuando ao vento como roupas recém-lavadas. Atrás das bandeiras, pairava o rosto de Riza Selim, sua barba espessa, seus olhos grandes e sombrios. Então, via-se como uma jovem mulher sentada ao piano Bentley, tocando jovialmente para convidados bem-vestidos. No pequeno quarto acima do de Petite-Ma, dormia tia Cevriye. Tinha o pesadelo que se repetia inúmeras vezes nos últimos anos. Sonhava que era novamente uma aluna em sala de aula, usando um horroroso uniforme cinza, O diretor a chamava à frente da turma para lhe fazer perguntas. Ela começava a transpirar enquanto oscilava pouco firme, os pés pesados. Nenhuma das perguntas fazia qualquer sentido. Tia Cevriye descobria que realmente não havia se formado no ginásio. Em algum ponto dos registros houve um engano, e agora ela precisava passar para se formar e ser uma professora. Todas as vezes, acordava exatamente no mesmo ponto. O

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diretor pegava a pauta com as notas da turma, puxava uma caneta de tinta vermelha e escrevia um enorme zero vermelho ao lado do nome Cevriye. Era esse o pesadelo que ela vinha tendo nos últimos dez anos, desde que perdeu o marido na prisão por suborno - uma acusação em que tia Cevriye sempre se recusara a acreditar. E apenas um mês antes de ser libertado, morreu enquanto assistia a uma briga, levado por um estúpido cabo elétrico. Em seus sonhos, tia Cevriye via a cena repetidamente, imaginando o criminoso (tinha de ser um criminoso) que colocara o cabo ali e matara seu marido. Em seus sonhos, ela esperava junto aos muros da prisão, com o resto do roteiro sempre mudando. Às vezes, cuspia no rosto do assassino assim que este era libertado; às vezes, observava-o à distância; outras vezes, baleava-o enquanto este saía para a luz do sol. - O que fez com os retratos dele? - exclamou tia Cevriye, sabendo muito bem a quem acusar. - Devolva-os! - Não - respondeu avó Gülsüm, severa e seca. - Os retratos estão intactos, mas você não vai passar os dias chorando sobre eles.Para que o coração cicatrize, os olhos precisam deixar de ver seu marido por um tempo. Nada cicatrizava. Ela se acostumou a imaginá-lo sem olhar seu retrato. De vez em quando, descobria-se redesenhando o rosto dele, colocando-lhe um bigode grisalho ou outros tufos de cabelo aqui e ali. O desaparecimento das fotos coincidiu com a evolução de Cevriye para o papel de uma resoluta professora de história nacional turca. No quarto em frente ao dela, dormia tia Fende. Era uma mulher inteligente e criativa, uma mulher-colagem. Se pelo menos pudesse manter os pedaços juntos! É pouco comum ser tão sensível, é fabuloso ser tão sensível, é assustador ser tão sensível. Já que qualquer coisa podia acontecer a qualquer momento, ela nunca estava certa do chão sob seus pés. Não havia nenhuma sensação de segurança ou continuidade. Tudo vem em retalhos e pedaços que imploram para serem unidos e mesmo assim desafiam qualquer noção de inteireza. De vez em quando, tia Fende sonhava em ter um amante. Queria um amor que a absorvesse completamente, a ponto de abraçar suas múltiplas ansiedades, excentricidades e anormalidades. Um bem-amado que a adorasse totalmente. Tia Fende não queria um amor que fosse bom para o seu lado bom, mas que afugentasse seu lado sombrio. Precisava de alguém que pudesse agüentar ao seu lado os bons e os maus dias, a sanidade e a insanidade. "Talvez por isso os malucos tenham mais dificuldade de arranjar namorado", pensava, "não porque tenham dificuldade de comunicação, mas sim porque é mais difícil encontrar

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alguém que queira namorar tantas pessoas numa só". Mas eram apenas devaneios. Nos sonhos reais, tia Fende não via amantes, e sim colagens abstratas. À noite, criava um conjunto de retalhos de cores surpreendentes e inúmeras formas geométricas. O vento soprava forte, as correntes oceânicas deslizavam e o mundo se tornava um globo cheio de intermináveis possibilidades. Tudo que é construído pode ser desconstruído ao mesmo tempo. Os médicos disseram a tia Fende para ir com mais calma, tomar seus comprimidos regularmente. Mas eles conheciam pouco essa dialética. Fazer e destruir, fazer e destruir, fazer e destruir. A mente de tia Fende era uma excelente artista de colagens. Junto ao seu quarto ficava o banheiro, e depois o quarto de tia Zeliha. Acordada, esta se sentou ereta na cama, olhando o aposento como se este fosse de outra pessoa, como se memorizasse seus detalhes para se sentir mais próxima da estranha que ali habitava. Procurou suas roupas, as dúzias de saias curtas e extravagantes que eram o seu modo de protestar contra os códigos morais sob os quais nasceu. Nas paredes havia quadros, cartazes de tatuagens. Tia Zeliha era uma mulher de seus trinta e tantos anos, mas o quarto assemelhava-se, de muitos modos, ao de uma adolescente. Talvez ela jamais crescesse e perdesse a raiva dentro de si, a raiva que sem querer passou para a filha. Em seu modo de pensar, quem não se levanta e se rebela, quem não tem capacidade de discordar não pode ser considerado realmente vivo. Na resistência jaz a chave da vida. O resto das pessoas pertencem a dois grupos: os vegetais, que estão satisfeitos com tudo, e os copos de chá, que, mesmo insatisfeitos com várias coisas, não têm força para protestar. Os últimos são os piores. Tia Zeliha esboçou uma regra sobre eles no passado, quando costumava criar regras. A Regra de Ferro da Prudência para uma Mulher de Istambul: Se você é frágil como um copo de chá, arranje um jeito de nunca deparar-se com a água fervendo e torça para casar com um marido ideal. Ou faça com que durmam com você e a espatifem o mais cedo possível. Outra solução é parar de ser uma mulher-copo-de-chá! Tia Zeliha optara pela terceira opção, já que detestava a fragilidade. Até aquele dia, era a única das mulheres Kazanci capaz de ficar furiosa com copos de chá que rachavam sob pressão. Estendeu a mão para o maço de Mariboro Lights na mesinha de cabeceira e acendeu um cigarro. A idade não mudou nem um pouco seus hábitos de fumante. Sabia que a filha fumava também. Tudo isso parecia um trecho barato de um folheto do Ministério da Saúde: "Filhos de pais viciados em cigarro são três vezes mais

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propensos a também se tornarem fumantes." Tia Zeliha estava preocupada com o bem-estar de Asya e, mesmo assim, era sábia o suficiente para sentir que se interferisse demais ou mostrasse sinais de desconfiança apenas geraria uma reação contrária. Era difícil fingir despreocupação, assim como era difícil ser chamada de "tia" pela própria filha. Isso a matava. No entanto, ainda achava que era o melhor para as duas. De certo modo, libertou a filha e a mãe, que tiveram de se separar nominalmente para poder continuar ligadas física e espiritualmente. Alá era sua única testemunha. Seu único problema era não acreditar que Ele existisse. Pensativa, deu uma tragada profunda, segurou-a por um momento e exalou uma baforada raivosa. Se Alá existia e sabia tanto, por que não fazia nada com esse conhecimento? Por que deixava as coisas acontecerem como aconteciam? Não, tia Zeliha estava determinada, não havia possibilidade de ceder à religião. Viveu como agnóstica e morreria como tal. Sincera e pura em sua blasfêmia. Se Alá realmente existisse em algum lugar, deveria apreciar mais seus vigorosos sentimentos, característica apenas de poucos, em vez de ser engabelado pelas auto-referentes declarações formais dos fanáticos religiosos, que estão por toda parte. No quarto final do segundo andar estava tia Banu, que também já despertara àquela hora. A terceira pessoa acordada na casa. Havia algo pouco comum em tia Banu naquela manhã. Seu rosto estava pálido e seus grandes olhos castanho-claros brilhavam de preocupação. Diante de um espelho, olhou para si mesma e viu uma mulher envelhecida antes da hora. Pela primeira vez em anos, sentiu falta do marido - o marido de quem se afastara, mas que nunca abandonara inteiramente. Era um bom homem, que merecia uma mulher melhor. Nunca a tratou mal ou lhe disse uma palavra áspera, mas depois que ela perdeu os dois filhos, não conseguiu viver mais com ele. De vez em quando, tia Banu ia à sua velha casa, como uma estranha que conhece cada detalhe de um lugar em um déjà-vu. Sempre comprava damascos secos no caminho, os preferidos do marido. Chegando lá, ela fazia uma faxina, costurava alguns botões, preparava alguns pratos, sempre os favoritos dele, e arrumava o lugar. Não que houvesse muito para arrumar, pois ele era um homem que mantinha a casa em ordem. Enquanto tia Banu trabalhava, seu marido a observava de perto. E no final do dia ele sempre perguntava: - Você vai ficar? A resposta dela nunca mudava: - Hoje não. Antes de ir embora, tia Banu acrescentava: - Tem comida na geladeira, não se esqueça de esquentar a sopa, acabe com o

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pilaki em dois dias senão ele vai estragar. Não se esqueça de regar as violetas, coloquei-as perto da janela. Ele fazia um sinal afirmativo com a cabeça e murmurava suavemente, como se falasse consigo mesmo: "Não se preocupe, sei cuidar de mim. E obrigado pelos damascos..." Em seguida, tia Banu voltava à residência Kazanci. Assim era dia após dia, ano após ano. A mulher no espelho parecia mais velha naquela noite. Tia Banu sempre pensou que envelhecer rapidamente fosse o preço a pagar por sua profissão. A esmagadora maioria dos seres humanos envelhece ano a ano, mas não os clarividentes: eles envelhecem a cada história. Se ela quisesse, poderia ter pedido compensações. Da mesma forma que não pedira a seu gênio qualquer vantagem material, também não pedira beleza física. Talvez pedisse algum dia. Até então, Alá havia lhe dado forças para continuar sem pedir nada. Hoje, porém, tia Banu queria algo. "Alá, dê-me conhecimento, pois não consigo resistir ao impulso de saber. Mas também dê-me forças para suportar o conhecimento. Amin."Tirou um rosário de jade da gaveta e alisou suas contas. - Muito bem então, estou pronta, vamos começar. Que Alá me ajude!Pendurada na estante onde ficava a lamparina, sra. Doce fez uma careta, infeliz com o papel de observadora em que se viu de repente, infeliz com o que estava prestes a testemunhar naquele quarto. Enquanto isso, sr. Amargo sorriu amargamente, pois só assim sabia sorrir. Estava contente. Finalmente tia Banu se convenceu. Não foi o 231 comando genial do sr. Amargo que a convenceu mas sim sua própria curiosidade de mortal. Ela não conseguiu resistir à vontade de saber. A vontade antidiluviana de mais conhecimento... Quem poderia resistir. Agora, tia Banu e sr. Amargo viajavam juntos no tempo. De 2005 para 1915. Parecia uma longa viagem, mas eram apenas poucos passos em termos de anos gulya bani. Na frente do espelho, entre o gênio e a ama, pousou uma tigela de prata de água sagrada da Meca. Dentro da tigela havia água prateada, e dentro da água havia uma história, também prateada.

***12SEMENTES DE ROMÃ

HOVHANNES STAMBOULIAN ALISOU A ESCRIVANINHA de nogueira esculpida à mão junto à qual estava sentado desde o início da tarde, sentindo a superfície lisa e polida deslizar sob seus dedos. O comerciante judeu de

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antigüidades que a vendera dissera que peças como aquelas eram muito raras por serem tão difíceis de fabricar. Feitas de nogueira das ilhas do Egeu, tinham sido ornadas depois com pequenas gavetas e compartimentos secretos como um fino bordado. Apesar da delicadeza dos adornos, a escrivaninha era tão resistente que poderia durar muitas gerações. - Vai sobreviver a você e até a seus filhos! - O comerciante rira roucamente, como se o fato de a mercadoria sobreviver aos clientes fosse uma piada constante para ele. - Não é sublime que uma peça de madeira viva mais tempo que nós?Embora sabendo que o objetivo de tal observação fosse mostrar a qualidade da mercadoria, Hovhannes Stamboulian sentira uma fisgada de tristeza. Mesmo assim, comprara a escrivaninha. Junto com ela, comprara um broche na mesma loja - um gracioso broche em forma de romã, delicadamente coberto de fios de ouro por toda a superfície, levemente sulcado no meio, com sementes vermelhas de rubi fulgurando em seu interior. Era uma peça audaciosamente criada por um artesão armênio em Sivas, conforme lhe informaram. Hovhannes Stamboulian comprara a peça para a mulher, planejando entregar-lhe o presente naquela noite depois do jantar ou, melhor ainda, antes, assim que terminasse o capítulo. De todos os capítulos que escrevera, aquele era o mais desafiador. Se soubesse que seria tão penoso, poderia ter abandonado todo o projeto. Entretanto, como estava mergulhado até o pescoço no livro, a única saída era continuar com ele. Famoso colunista e poeta, Hovhannes Stamboulian escrevia secretamente um livro totalmente fora de seu gênero principal. Poderia ser rejeitado, ridicularizado ou criticado no final. Numa época em que todo o Império Otomano transbordava de empreendimentos grandiosos, movimentos revolucionários e divisões nacionalistas, em que a comunidade armênia fervilhava de ideologias inovadoras e ardentes debates, ele, na privacidade de sua casa, escrevia um livro infantil. Nunca fora escrito antes um livro infantil em armênio, sendo isso quase inconcebível. Por que não havia uma única obra de literatura nesse gênero? Seria porque a minoria armênia se tornara uma sociedade incapaz de considerar seus filhos como crianças? Seria a infância uma futilidade ou mesmo um luxo negado a uma minoria que precisava crescer tão rapidamente quanto fosse possível? Ou seria porque os literatos de Istambul tinham sido isolados das tradições orais fielmente contadas pelas avós armênias a seus netos? O Pombinho Perdido e o País Ditoso era sobre um pombo que se perdeu no céu azul enquanto voava com a família e

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os amigos sobre um país feliz. O pombo parava em inúmeras vilas, cidades e metrópoles procurando seus entes queridos, e em cada parada ouvia uma nova história.Dessa maneira, Hovhannes Stamboulian reunia no livro várias histórias do folclore armênio, a maior parte transmitida de geração a geração, outras há muito esquecidas. No livro, ele permanecia fiel à autenticidade de cada narrativa, raramente mudando uma palavra. Agora, porém, pretendia terminar o livro com uma história de sua própria autoria. O livro seria publicado em Istambul e distribuído nas cidades principais, como Adana, Harput, Van, Trabzon e Sivas, onde os armênios viviam em grande número. Embora os muçulmanos tivessem começado a usar a imprensa há uns dois séculos, a minoria armênia vinha imprimindo seus próprios livros e textos há muito tempo antes disso. Hovhannes Stamboulian queria que os pais armênios lessem essas histórias para os filhos antes de eles irem dormir. A ironia era que o livro o ocupara tanto nos últimos 18 meses que pouco tempo lhe restava para passar com seus próprios filhos. Todas as tardes entrava naquele aposento, sentava-se à escrivaninha e escrevia pelo tempo que quisesse. Todas as noites, quando saía do quarto, seus filhos já estavam dormindo. O impulso de escrever lançara um feitiço sobre tudo e todos em sua vida, mas felizmente estava prestes a terminar. Naquela noite vinha escrevendo o último capítulo, o mais exigente de todos. Quando terminasse, desceria, envolveria o livro com uma fita, esconderia o broche de ouro dentro do nó e entregaria o pacote à sua mulher. O Pombinho Perdido e o País Ditoso era dedicado a ela. "Leia isso, por favor", pretendia dizer. "Se não for bom o bastante, quero que o queime. Todo. Prometo que nem vou pedir que explique sua opinião. Mas se achar que é bom, quero dizer, bom o suficiente para ser publicado e distribuído, então por favor leve-o a Garabed Effendi na Editora Dawn." Hovhannes Stamboulian respeitava mais a opinião da mulher do que a de qualquer outra pessoa, por seu sofisticado gosto literário e artístico. Graças à hospitalidade dela, o konak branco junto ao Bósforo era um centro de intelectuais e artistas, visitado por inúmeros homens de letras, alguns escritores eminentes e alguns aspirantes a escritores. Eles iam comer, beber, ler, contemplar e discutir febrilmente as obras uns dos outros, e mais febrilmente ainda suas próprias obras. Após voar por tempo demais, o Pombinho Perdido se sentiu cansado e com sede, empoleirando-se num ramo carregado de neve que pertencia a uma romãzeira prestes a florir. Encheu seu pequeno bico com um pouco de neve e, tendo

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saciado a sede, pôs-se a chorar por seus pais. "Não chore, pombinho", disse a romãzeira. "Deixe-me lhe contar uma história. A história de um pombinho perdido." Hovhannes Stamboulian fez uma pausa, sem entender exatamente o que perturbava sua concentração. Suspirou exasperado, para sua própria surpresa. Na última hora mais ou menos, sua mente fora atravessada por inúmeros pensamentos sombrios. No fundo, não entendia por que estava tão preocupado, como se a mente operasse automaticamente, imaginando preocupações inomináveis. Fosse qual fosse a razão por trás de tal desconforto, tinha de se livrar do torpor. Escrevia o último capítulo, a última história. Tinha de ser boa. Ele contraiu os lábios e voltou a escrever. "Mas você está falando de mim. Eu sou esse pombo!", arrulhou o Pombinho Perdido, surpreso. "Ah, é mesmo?", perguntou a romãzeira, mas sem se mostrar nem um pouco surpresa. "Então ouça a história... Não quer conhecer o seu futuro?" "Só se for feliz", disse o Pombinho Perdido. "Se for triste, não quero." Subitamente, o ar imóvel foi cortado pelo som de vidro se quebrando. Hovhannes Stamboulian estremeceu na cadeira, parou de escrever e instintivamente virou-se para a janela, paralisado, escutando. Por um longo momento não ouviu nada, exceto o uivo do vento. Estranhamente, achou o silêncio mais agourento do que o som lúgubre. A noite estava envolta numa imobilidade fantasmagórica, enquanto o vento rugia lá fora como se transmitisse a ira de Deus, furioso por uma razão desconhecida aos mortais. Ao contrário do vento que chicoteava as paredes externas, o interior da casa se mostrava excepcionalmente silencioso. Nervoso por essa quietude pouco habitual, Hovhannes Stamboulian sentiu-se quase aliviado ao ouvir alguns sons vindos do andar de baixo. Alguém andava rapidamente de uma extremidade à outra da casa e depois voltava; em pânico, passos rigorosos e apressados, como se fugindo de algo ou alguém. "Deve ser Vervant", pensou, com uma nova preocupação nos olhos, um olhar pensativo e apreensivo. Vervant, seu filho mais velho, sempre fora travesso e tempestuoso, mas recentemente sua desobediência estava além dos limites. Na verdade, Hovhannes Stamboulian sentiu uma ponta de culpa por não passar com ele o tempo que deveria. Obviamente o garoto ansiava pelo pai. Comparado a ele, os três outros filhos, dois meninos e uma menina, eram tão dóceis que a energia frenética de Vervant parecia ter exercido um efeito soporífero sobre os demais. Os dois meninos mais jovens tinham três anos de diferença entre si, mas exibiam a mesma docilidade. Depois vinha a pequena Shushan, a filha caçula e a única menina da família.

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"Não se preocupe, pequeno pássaro ", sorriu a romãzeira, sacudindo a neve de seus galhos. "A história que vou contar é feliz." No corredor do andar de baixo, os passos se multiplicaram, alarmantes. Agora parecia haver dúzias de Vervants correndo em desobediência de um lado para o outro, batendo os pés e amassando o chão sob eles. No entanto, em meio ao tumulto, repentínamente Hovhannes Stamboulian achou ter ouvido uma voz, tão inesperada e breve que não teve certeza - severa e rouca, interrompida por uma fração de segundo. E só. Depois disso o silêncio se instalou de novo, como se tudo aquilo fosse fruto da sua imaginação. Normalmente, teria deixado imediatamente o escritório para verificar se tudo estava bem. Mas aquela não era uma noite comum. Não queria ser perturbado; não agora, quando estava prestes a terminar o trabalho de 18 meses. Hovhannes Stamboulian torceu-se angustiado como um mergulhador que, depois de afundar demais, não conseguisse nadar de volta até a superfície. O processo da escrita era cavernoso e capturante, mas também muito sedutor. As palavras pulavam para frente e para trás no papel ressecado, implorando ao autor que terminasse a última história e as guiasse até seu destino há muito esperado. "Então muito bem ", arrulhou o Pombinho Perdido. "Conte-me a história do pombinho perdido. Mas estou avisando: se eu ouvir algo triste, abro as asas e vôo para longe." Hovhannes Stamboulian sabia o que a romãzeira ia responder e como a última história começaria, mas antes que conseguisse colocar as palavras no papel, algo em algum lugar da casa despencou no chão e se espatifou. Em meio ao ruído súbito, percebeu um fungar; embora abafado e curto, reconheceu instantaneamente o choro da sua mulher. Ergueu-se de um pulo, agora inteiramente expelido do abismo da escrita, e subiu à superfície como um peixe morto. ENQUANTO DISPARAVA A CORRER na direção da escada, Hovhannes Stamboulian lembrou-se da discussão que tivera naquela mesma manhã com Kirkor Hagopian, célebre advogado e membro do parlamento otomano. - Estamos atravessando uma época ruim, muito ruim. Prepare-se para o pior. - Foi a primeira coisa que Kirkor murmurou quando se encontraram na barbearia. - Primeiro convocaram os armênios. "Não somos todos iguais, não somos todos otomanos?", disseram. "Muçulmanos e não-muçulmanos, todos lutamos contra o inimigo juntos!" Mas depois desarmaram todos os soldados armênios como se estes fossem os inimigos. Em seguida, reuniram os armênios em batalhões de trabalho. E agora, meu amigo, há boatos... Alguns dizem que o pior está por vir.

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Embora sinceramente preocupado, Hovhannes Stamboulian não ficara especialmente abalado com as notícias. Era velho demais para ser recrutado, e seus filhos, jovens demais. O único da família com idade para ser convocado era o irmão mais velho de sua mulher, Levon. Mas ele evitara o serviço militar durante as Guerras dos Bálcãs graças à classificação de "desprotegido" no processo de seleção. Homens que eram arrimo de família foram poupados do serviço militar. Essa regra otomana, contudo, poderia estar mudando. Na época vigente, ninguém podia ter certeza de nada. No início da Primeira Guerra Mundial, tinham anunciado que recrutariam unicamente os de vinte e poucos anos, mas à medida que a guerra se intensificou, os de trinta e até os de quarenta foram também convocados. Guerra não era para Hovhannes Stamboulian. Nem trabalho manual pesado. Ele amava poesia. Amava as palavras, sentindo cada letra do alfabeto armênio na língua e nos lábios. Após ampla reflexão, deduzira que a minoria precisava não de armas, como defendiam alguns revolucionários, mas sobretudo de livros, cada vez mais livros. Embora novas escolas tivessem sido fundadas após o Tanzimat, tinham uma tremenda necessidade de professores mais cultos e de mentes mais abertas, além de melhores livros. Um certo progresso adicional fora obtido depois da revolução em 1908. A população armênia apoiara os jovens Turcos na esperança de que estes tratassem os não-muçulmanos de modo justo e decente. A proclamação dos Jovens Turcos declarava: Todo cidadão gozará de completa liberdade e igualdade, independentemente da nacionalidade ou religião, e será submetido às mesmas obrigações. Todos os otomanos, sendo iguais perante a lei em relação a direitos e deveres para com o Estado, são elegíveis para postos do governo, segundo sua capacidade individual e sua educação. Na realidade, os Jovens Turcos não mantiveram a promessa, abandonando o otomanismo multinacional pelo turquismo, mas as potências européias observavam cuidadosamente o império; certamente interviriam se algo sinistro ocorresse. Hovhannes Stamboulian acreditava que, nas atuais circunstâncias, o otomanismo era a melhor opção para os armênios, não as idéias radicais. Turcos, gregos, armênios e judeus tinham vivido juntos por séculos e ainda podiam encontrar um modo de coexistir sob o mesmo teto. - Você não entende coisa alguma, não é? - rebatera furiosamente Kirkor Hagopian. - Você vive em seus contos de fada! Hovhannes Stamboulian nunca o vira tão nervoso e confrontador. Mesmo assim, não concordou com ele. - Acho que o fervor nacionalista não vai nos ajudar - disse, sua voz quase um

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sussurro. Acreditava que o nacionalismo apenas substituiria uma infelicidade por outra, trabalhando inevitavelmente contra os destituídos e despossuídos. O nacionalismo era apenas uma nova mudança de opressores. Em vez de serem oprimidos por alguém de uma etnia diferente, acabavam oprimidos por sua própria etnia. - Fervor nacionalista! - O rosto de Kirkor Hagopian espremeu-se numa máscara sombria. - Há notícias vindo de inúmeras cidadezinhas de Anatólia. Você não soube dos incidentes em Adana? Eles entram nas casas armênias com o pretexto de procurar por armas e as saqueiam. Você não entende? Todos os armênios serão exilados. Todos nós! E aí está você, traindo o seu próprio povo! Hovhannes Stamboulian ficou em silêncio por algum tempo, mordiscando a ponta do bigode. Então, murmurou lentamente, mas confiante: - Precisamos nos unir, judeus, cristãos e muçulmanos. Séculos e séculos sob o mesmo telhado imperial. Temos convivido todo esse tempo, embora em desigualdade. Agora podemos fazer algo justo para todos, transformar este império juntos. Foi então que Kirkor Hagopian emitira as palavras desalentadas, seu rosto já se fechando: - Meu amigo, acorde, já não há mais nada "junto". Uma vez que a romã se parte e as sementes se espalham em diferentes direções, não se pode mais reuni-las. Agora, parado no alto da escada, escutando o silêncio sinistro na casa, Hovhannes Stamboulian não podia deixar de ver aquela imagem em sua mente: uma romã partida, vermelha e triste. Com pânico visível, gritou para sua mulher: - Armanoush! Armanoush, onde está você? "Devem estar todos na cozinha", pensou consigo mesmo, arremessando-se para o primeiro andar. Após o início da Primeira Guerra Mundial, uma mobilização geral foi decretada. Embora todos em Istambul falassem sobre o assunto, seus efeitos tinham recaído mais sobre as cidades pequenas. Tambores eram rufados pelas ruas, ao som dos gritos: "Seferberliktir! Seferberliktir!" Fora então que muitos jovens armênios haviam sido convocados para o exército. Mais de trezentos mil. No início, todos esses soldados receberam armas, exatamente como seus colegas muçulmanos. Depois de um curto período, porém, pediram-lhes que devolvessem as armas. Ao contrário dos soldados muçulmanos, os armênios foram reunidos em batalhões especiais de trabalho. Fervilhavam boatos de que Enver Paxá estava por trás dessa decisão: "Precisamos de mãos trabalhadoras que construam as estradas para o deslocamento dos soldados", havia anunciado. Mas então chegaram notícias graves, dessa vez sobre os próprios batalhões de trabalho.

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Dizia-se que todos os armênios eram empregados em trabalho braçal nas estradas, embora alguns tivessem pago seu bedel para serem liberados. Dizia-se que os batalhões eram levados para construir estradas, mas que era só um pretexto; na realidade, eram obrigados a cavar buracos, bastante profundos e largos para... Diziam que os armênios eram enterrados nos mesmos buracos que haviam sido obrigados a cavar. - As autoridades turcas anunciaram que os armênios vão pintar seus ovos de Páscoa com o próprio sangue! - Foi o que Kirkor Hagopian declarou antes de deixar a barbearia. Hovhannes Stamboulian não dava muito crédito a esses rumores. Mesmo assim reconhecia que os tempos eram ruins. Embaixo, no primeiro andar, chamou a mulher mais uma vez e suspirou ao não ouvir resposta. Quando entrou no pátio e passou pela comprida mesa de cerejeira onde tomavam o café-da-manhã quando o tempo estava bom, uma nova cena do Pombinho Perdido veio à sua mente. "Então ouça sua história", disse a romãzeira ao sacudir alguns ramos, livrando-os dos flocos de neve. "Outrora havia; outrora não havia. As criaturas de Deus eram abundantes como grãos e falar demais era um pecado." "Mas por quê? ", perguntou o Pombinho Perdido. "Por que era pecado falar demais?" A porta da cozinha estava fechada. Isso era estranho naquela hora do dia; Armanoush devia estar trabalhando ali com Marie, sua empregada há cinco anos, enquanto as crianças se amontoavam a sua volta. Elas nunca fechavam a porta. Hovhannes Stamboulian estendeu a mão para a maçaneta, mas antes que pudesse girá-la, a velha porta de madeira foi aberta pelo lado de dentro e ele se viu frente a frente com um sargento turco. Os dois homens ficaram tão chocados ao se depararem um com o outro que por um longo minuto apenas se entreolharam. O sargento foi o primeiro a sair do estupor. Deu um passo para trás e examinou o outro da cabeça aos pés. Era um homem bronzeado, que teria um rosto suave e juvenil não fosse a aspereza de seu olhar. - O que está acontecendo aqui?! - exclamou Hovhannes Stamboulian. Viu a esposa, filhos e Marie enfileirados em pé contra a parede da cozinha, lado a lado como crianças de castigo. - Temos ordens para revistar a casa - disse o sargento. Não havia nenhuma hostilídade em sua voz, mas também nenhuma empatia. Parecia cansado, e qualquer que fosse o motivo de estar ali, queria fazê-lo o mais rápido possível e ir embora. - Por favor, pode nos mostrar onde fica o seu escritório? Voltaram para dentro de casa e subiram a escadaria grande e curva; Hovhannes Stamboulian à frente, o sargento e os soldados atrás

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dele. Uma vez no escritório no andar de cima, os soldados se movimentaram por ali, cada qual verificando uma peça de mobília, como abelhas sugadoras de mel num campo de flores silvestres.Revistaram os armários, as gavetas e cada prateleira da estante, que ia de uma parede à outra. Examinaram centenas de livros em busca de documentos escondidos entre as páginas; inspecionaram os livros favoritos de Hovhannes, folheando As flores do mal, de Baudelaire, As quimeras, de Gérard de Nerval, As noites, de Alfred de Musset, e Os miseráveis e O corcunda de Notre-Dame, de Victor Hugo. Quando um soldado musculoso de olhos redondos examinou com suspeita O contrato social, de Rousseau, Hovhannes Stamboulian não pôde deixar de refletir sobre os trechos para os quais o homem olhava fixamente sem vê-los de fato. O homem nasce livre, mas em toda parte está acorrentado. Na realidade, a diferença é que o selvagem vive dentro de si mesmo, enquanto o homem social vive fora de si mesmo e pode viver apenas na opinião dos outros, dando a impressão de que recebe a noção de sua própria existência apenas do julgamento que os outros têm dele. Quando terminaram com os livros, puseram-se a vasculhar as várias gavetas da escrivaninha de nogueira. Foi então que um dos soldados avistou o broche de ouro sobre a mesa. Passou-o ao sargento, que pegou a romã em miniatura, sopesou-a na palma da mão, girou-a no ar para ver melhor os rubis em seu interior e depois devolveu-a a Hovhannes Stamboulian com um sorriso. - O senhor não deveria deixar uma jóia tão preciosa à vista. Aqui, pegue - disse o sargento com um ar de plácida cortesia. - Sim, obrigado. É um presente para minha mulher - retrucou calmamente Hovhannes Stamboulian. O sargento deu-lhe um sorriso confidente, de homem para homem. Mas rapidamente sua expressão passou de cordial a zangada, e quando voltou a falar, não foi de modo suave. - Diga o que está escrito aqui - disse o sargento enquanto apontava para um maço de papéis que achara numa gaveta, todos escritos no alfabeto armênio.Hovhannes Stamboulian reconheceu imediatamente o poema que escrevera certa vez quando estivera doente e com febre alta, em um momento do outono passado. Ficara de cama por três dias inteiros sem poder se mexer, tremendo e suando ao mesmo tempo como se seu corpo tivesse se transformado num barril de água cheio de furos e escoando constantemente. Armanoush ficara ao lado de sua cama o tempo todo, pondo-lhe na testa toalhas frias embebidas em vinagre e esfregando-lhe o peito com cubos de gelo. No final do terceiro dia, quando a febre

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finalmente diminuiu, surgira um poema na mente de Hovhannes Stamboulian, que o recebeu como se fosse uma recompensa pelo seu sofrimento. Embora não fosse de modo algum um homem religioso, era um firme crente nas compensações divinas, que achava serem concedidas não em manifestações em larga escala, mas através de pequenos sinais e dádivas como aquela. - Leia! - O sargento deu um pequeno empurrão nos papéis. Hovhannes Stamboulian pôs os óculos e, com voz trêmula, começou a ler alto as primeiras linhas: A criança chora dormindo sem saber por quê, Um abafado mas incessante soluço de anseio Impossível de consolar É como anseio por ti... - Isso é poesia - intrometeu-se o sargento, enfatizando a última palavra com um tom aparentemente decepcionado. - Sim. - Hovhannes Stamboulian concordou com a cabeça, embora sem saber se isso era bom ou ruim. Mas o brilho que viu nos olhos do sargento não parecia tão hostil. Talvez a tivesse apreciado. Talvez agora ele fosse embora, levando seus soldados. - Ho-vhan-nes Stam-bou-li-an - murmurou o sargento, indistintamente. - O senhor é um homem erudito, um homem de conhecimento. Conhecido e respeitado. Por que um homem sofisticado como o senhor conspiraria com um bando de rebeldes ignóbeis?Hovhannes ergueu os olhos escuros do papel e pestanejou, distraído. Não sabia o que dizer em sua defesa, já que não tinha idéia de qual era a acusação. - Os rebeldes armênios... Eles lêem seus poemas e então se rebelam contra o sultanato otomano - disse o sargento enrugando a testa, pensativo. - O senhor os incita ao motim. De repente, Hovhannes Stamboulian percebeu do que estava sendo acusado e a gravidade da acusação. - Oficial - disse olhando fixamente para o sargento, que o olhava da mesma forma, temendo que, se interrompesse o contato visual, a única ponte de comunicação entre eles se desintegraria para sempre. - O senhor também é um homem instruído e entenderá a dificuldade da minha situação. Meus poemas são o eco da minha imaginação. Eu os escrevo e os publico, mas não posso de forma nenhuma controlar quem os lê e com que intenção. Pensativo, o sargento estalou os nós dos dedos, um a um. Depois limpou a garganta, como para acentuar a importância do que ia dizer.- Entendo perfeitamente esse dilema. No entanto, o senhor pode controlar suas próprias palavras. É o senhor que as escreve. O senhor é o poeta...Num esforço desesperado para diminuir o que rapidamente se tornava um pânico real, Hovhannes Stamboulian examinou a sala até deparar-se com o filho mais velho na porta, espiando. Quando o rapaz havia se esgueirado

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da cozinha para lá? Por quanto tempo os estava observando? As faces do rapaz estavam vermelhas pela intensidade da fúria contra os soldados. Contudo, algo em sua expressão denotava muito mais do que fúria. O rosto jovem de Vervant estranhamente não parecia nada confuso, mas de certo modo sábio. Sorriu para o filho tentando convencê-lo de que estava tudo bem e fez um gesto para que voltasse para junto da mãe. Mas Vervant não se mexeu.- O senhor precisa vir conosco - disse o sargento.- Não posso - disse Hovhannes inadvertidamente, mas viu como era lamentável a desculpa que estava prestes a dar. "Esta noite preciso terminar meu livro... É o último capítulo..." Em vez disso, pediu permissão para falar com a esposa. Antes que o levassem, a última coisa enraizada em sua memória foi a expressão da mulher, suas pupilas dilatadas e os lábios pálidos. No entanto, Armanoush não chorava nem parecia chocada. No máximo dava a impressão de extremamente cansada, como se ficar ali na entrada tivesse drenado suas forças. Como ele desejava segurar suas mãos agora, abraçá-la apertado e sussurrar que fosse forte, sempre forte, por seus filhos e pelo novo bebê a caminho! Armanoush estava grávida de quatro meses. Somente quando passou pela porta e entrou na rua escura com soldados dos dois lados, Hovhannes Stamboulian percebeu que esquecera de entregar o presente da mulher. Enfiou as mãos nos bolsos e ficou aliviado por não sentir a romã de ouro com as pontas dos dedos. Ele a deixara em casa, numa gaveta da escrivaninha. Sorriu suavemente imaginando como Armanoush ficaria contente quando a encontrasse. ASSIM QUE OS SOLDADOS FORAM EMBORA, passos rápidos ecoaram nos degraus da entrada. Era a vizinha turca da casa ao lado. Uma mulher afável e gorducha, sempre alegre, embora naquele momento estivesse longe de seu estado habitual. Ver a expressão aterrorizada no rosto da vizinha ajudou Armanoush a sair de seu transe e permitir-se ficar com medo. Puxou Vervant para si. - Meu filho - murmurou com os lábios trêmulos -, vá até a casa de seu tio Levon... Diga-lhe para vir imediatamente. Conte o que aconteceu. Tio Levon morava perto, na esquina da praça do mercado. Vivia sozinho numa casa modesta de dois andares, tendo instalado no primeiro sua oficina. Como a mão de uma bela armênia que ele amara na juventude (e talvez ainda amasse) lhe fora recusada, escolhera não se casar com ninguém. Dali por diante, passara os anos trabalhando duro em sua oficina, famosa pela qualidade de seus produtos. Tio Levon fabricava caldeirões, os

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melhores de todo o império. Na rua, Vervant deu alguns passos em direção à casa do tio, mas parou abruptamente. Virando-se para o lado oposto, por onde seu pai fora levado, começou a correr. Entretanto, por mais que percorresse a rua de uma extremidade à outra, não viu nenhum sinal do pai. Era como se os soldados turcos e o pai tivessem desaparecido totalmente. Chegou à casa do tio Levon pouco depois, mas não havia ninguém no andar de cima. Bateu na porta da oficina, esperando que o tio pudesse estar lá. Não era raro que ele trabalhasse até altas horas da noite na loja. A porta, contudo, foi aberta por seu aprendiz, Riza Selim - um adolescente turco, quieto e diligente, com pele tão branca quanto porcelana e cabelos volumosos com cachos negros e selvagens. - Onde está o meu tio? - perguntou Vervant. - Mestre Levon foi embora - disse Riza Selim com uma voz estrangulada, que saiu de sua garganta com custo. - Os soldados o levaram esta tarde. Assim que pronunciou tais palavras agourentas, Riza Selim deixou escorrer as lágrimas que retivera até então. O garoto era órfão e tio Levon fora como um pai para ele nos últimos seis anos. - Não sei o que fazer - disse. - Estou esperando... Voltando para casa, Vervant correu pelas ruas sinuosas e íngremes de um lado para outro, procurando algo, qualquer coisa que pudesse ser um sinal auspicioso. Passou por cafés vazios, praças sórdidas, casas decrépitas que emanavam o cheiro de türlü e o choro de bebês. O único sinal de vida que encontrou foi um gatinho amarelado miando dolorosamente junto a um bueiro imundo, lambendo seu pequeno ventre onde a carne fora aberta e o sangue coagulara-se numa ferida profunda e inchada. Anos depois, quando pensava no pai, Vervant se lembrava do gatinho solitário no escuro, na rua vazia. Mesmo em Sivas, no pequeno povoado católico armênio de Pirkinik, para onde foram depois em busca de abrigo com o avô e a avó apenas para serem expulsos por soldados que invadiram a casa uma noite; mesmo quando se viu caminhando entre milhares de armênios sedentos, famintos e espancados, vigiados por soldados a cavalo; mesmo quando pisava num longo e espesso tapete de lama, vômito, sangue e excremento; mesmo quando não sabia como conter os gritos da irmãzinha, Shushan, cuja mão largara por uma fração de segundo depois de um tumulto, perdendo-a de vista; mesmo quando observava os pés inchados da mãe, como duas almofadas azuis de dor cobertas de veias roxas e sangue; mesmo quando sua mãe morreu, quieta e leve como uma folha seca de salgueiro girando nas lufadas da brisa; mesmo quando viu cadáveres inchados e fedorentos ao longo da estrada, estábulos cheios de

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fumaça e fogo; mesmo quando, não tendo nada para comer, ele e os irmãos comeram a relva como ovelhas no deserto sírio; mesmo quando foram salvos por um grupo de missionários americanos dedicados a recolher órfãos armênios perdidos aqui e ali ao longo da estrada do exílio; mesmo quando foram levados de volta ao Colégio Americano em Sivas, que operava como um santuário, e de lá enviados para os Estados Unidos; mesmo quando, anos depois, conseguiu finalmente encontrar a irmãzinha Shushan em Istambul e trazê-la para San Francisco; mesmo após muitos jantares felizes rodeados por seus filhos e netos, o gatinho solitário permaneceu em sua memória. - CHEGA! - EXCLAMOU TIA BANU, ENCOLHENDO-SE. Desatou o véu da cabeça e cobriu a tigela de prata com ele. - Não quero ver mais isso. Já soube o que queria saber... - Mas não viu tudo - objetou sr. Amargo, com uma voz áspera. - Ainda não lhe contei sobre os piolhos. - Os pi... pi-o-lhos? - gaguejou tia Banu. Qualquer que fosse o impulso que a fizera terminar a sessão parecia ter passado agora. Ela suspendeu o véu e deu uma espiada na tigela de novo. - Ah sim, os piolhos são um detalhe importante, minha ama - disse sr. Amargo. - Lembra-se da parte em que a pequena Shushan soltou-se da mão do irmão mais velho e de repente se perdeu na multidão? Ela pegou piolho de uma família de quem tinha se aproximado na esperança de conseguir comida. A própria família tinha pouco para comer, então a afastaram. Alguns dias depois, a pequena Shushan ardia em febre: tifo! Tia Banu deixou escapar um suspiro alto, prolongado. - Eu estava lá. Vi tudo. Shushan caiu de joelhos. Ninguém naquele grupo de pessoas tinha qualquer condição de ajudá-la. Então deixaram-na lá no chão, com a testa coberta de suor e o cabelo cheio de piolhos! - Chega! - Tia Banu se levantou. - Mas não vai ouvir a melhor parte? Não quer saber o que aconteceu à pequena Shushan? - perguntou sr. Amargo, com ar ofendido. - Queria saber da família da hóspede, não queria? Bem, a pequena Shushan da minha história é a avó da sua hóspede. - Sim, imaginei isso - retrucou tia Banu. - Continue! - Muito bem! - entusiasmou-se sr. Amargo, saboreando o seu triunfo. - Depois de ter sido abandonada meio morta na estrada e depois que as pessoas sumiram no horizonte, a pequena Shushan foi descoberta por duas mulheres de um povoado turco próximo. Eram mãe e filha. Levaram a menina doente para casa, deram-lhe banho com pedaços de sabão de loureiro e tiraram os piolhos de seu cabelo com poções feitas com as ervas do vale. Deram-lhe comida e a curaram. Três semanas depois, quando um oficial de alta patente parou no povoado

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com seus homens e perguntou aos habitantes se por acaso tinham encontrado órfãos armênios na área, a mãe turca escondeu Shushan dentro do baú de dote de sua filha para que ela não sofresse nada. Um mês depois, a menina estava de pé de novo, embora não falasse muito e chorasse enquanto dormia. - Achei que ela tivesse sido trazida para Istambul... - Depois sim. Nos seis meses seguintes, mãe e filha cuidaram dela como se fosse da própria família e provavelmente teriam continuado a cuidar. Mas então apareceu uma horda de bandidos, revistando e saqueando as casas. Pilharam cada povoado turco e cada povoado curdo na região. Não demorou muito para que descobrissem a pequena armênia. Apesar dos lamentos da mãe e da filha, eles levaram Shushan. Sabiam das ordens de entregar órfãos armênios abaixo dos 12 anos de idade aos orfanatos do país. Em pouco tempo Shushan estava num orfanato em Aleppo e, quando não havia mais espaço ali, foi para uma escola de Istambul sob os cuidados de várias hocahanim, algumas benevolentes e atenciosas, outras frias e rígidas. Como todas as crianças do orfanato, Shushan usava um traje branco e um casaco preto sem botões. Havia meninos e meninas. Os meninos eram circuncidados e todas as crianças recebiam um novo nome. Shushan também. Todos passaram a chamá-la de Shermin. Recebeu também um sobrenome: 626. - Agora chega! - Tia Banu cobriu novamente a tigela de prata com o véu e lançou ao gênio um olhar fixo, longo e penetrante. - Sim, minha ama, como quiser - murmurou sr. Amargo. - Mas está deixando de lado a parte mais importante da história. Se quiser ouvi-la também, me avise, porque nós, gulyabani, sabemos tudo. Estávamos lá. Eu lhe contei o passado de Shushan, antes uma meninazinha e agora a avó de Armanoush. Eu lhe contei coisas que a hóspede não sabe. Vai contar a ela? Não acha que ela tem o direito de saber? Tia Banu ficou em silêncio. Será que algum dia transmitiria a Armanoush a história que ouvira naquela noite? Mesmo se quisesse fazê-lo, como poderia lhe contar que vira a história de sua família numa tigela de prata com água mostrada por um gulyabani, o pior tipo de gênio? Armanoush acreditaria nela? Aliás, mesmo se a garota acreditasse, não seria melhor que jamais soubesse daqueles detalhes tristes? Tia Banu virou-se para a sra. Doce em busca de consolo. Mas, em vez de uma resposta, só obteve de seu gênio benevolente um olhar tímido e um súbito brilho trêmulo da auréola rodeando-lhe a cabeça, cintilando em tons de roxo, rosa e púrpura. Juntamente com a auréola do gênio, crepitou outra espinhosa pergunta:

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seria realmente melhor que os seres humanos soubessem mais sobre o seu passado? cada vez mais e mais...? ou seria melhor saber o menos possível e até mesmo esquecer a pequena parte que foi lembrada? A AURORA FICOU PARA TRÁS. A um passo do misterioso limite entre a noite e o dia. O único momento do dia em que é cedo demais para se ter esperanças de realizar os próprios sonhos, mas tarde demais para se sonhar de fato; a terra de Morfeu agora é vista à distância. O olho de Alá é onipotente e onisciente, um olho que jamais se fecha e nem sequer pisca. Mesmo assim, ninguém pode dizer com certeza se a terra é também oniobservável. Se esta for um palco no qual espetáculos são exibidos sucessivamente para o Olhar Celestial, pode haver entre eles um intervalo em que as cortinas descem e um véu transparente cobre a superfície de uma tigela de prata. Istambul é uma confusa miscelânea de dez milhões de vidas. É um livro aberto com dez milhões de histórias misturadas. A cidade acorda de seu sono perturbado pronta para o caos da hora do rush. Daquela hora em diante, há preces demais para atender, blasfêmias demais para anotar, pecadores e inocentes demais nos quais ficar de olho. Já é manhã em Istambul.

***13FIGOS SECOS

Ao LONGO DO ANO, CADA MÊS CONHECE A ESTAÇÃO exata a que pertence e comporta-se de acordo com ela. Todos os meses o fazem, exceto março. Março é bastante desequilibrado em Istambul, psicológica e fisicamente. Ele pode concluir que pertence à primavera quente e perfumada, mas mudar de idéia no dia seguinte, transformando-se em inverno, arremessando ventos frios e granizo por toda parte. Hoje, 19 de março, o sábado está incomumente ensolarado, bem acima da temperatura média dessa época do ano. Asya e Armanoush tiraram a suéter enquanto caminhavam pela rua ampla, varrida pelo vento, de Ortakõy para a praça Taksim. Asya usava um vestido comprido de batik bege e marrom-caramelo. A cada passo seu, os vários colares e braceletes tilintavam. Fiel a seu próprio estilo, Armanoush vestia jeans e uma malha solta, rosa-pastel como uma sapatilha de balé, com as palavras UNIVERSIDADE DO ARIZONA. Iam visitar o estúdio de tatuagem. - Estou tão contente que

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você vai finalmente conhecer Aram! - disse Asya entusiasmada, mudando a bolsa de lona de um ombro para o outro. - Ele é muito simpático. - Já ouvi você falar dele antes, mas não tenho idéia de quem seja. - Ah, ele é... - Asya fez uma pausa, procurando a palavra certa em inglês. Namorado parecia leve demais para a situação; marido seria tecnicamente errado; futuro-marido não parecia plausível. Noivo parecia melhor, mas a verdade é que eles nunca tinham ficado formalmente noivos. - Ele é a cara-metade de tia Zeliha. Do Outro lado da rua, sob um arco otomano elegantemente talhado, vislumbraram dois meninos ciganos, um deles retirando latinhas das latas de lixo e em seguida empilhando-as sobre uma carroça velha, O outro estava sentado na beira da carroça, fingindo, da melhor forma possível, que trabalhava arduamente enquanto recebia o calor do sol. "Seria uma vida tão idílica", pensou Asya. Daria tudo para trocar de lugar com o garoto da carroça. Primeiro, compraria o cavalo mais lânguido que pudesse encontrar. Então todos os dias levaria sua carroça para cima e para baixo pelas ruas íngremes de Istambul, coletando coisas. Recolheria dedicadamente os artefatos menos atraentes da vida humana, abarcando os destroços que apodreciam sob sua superfície envernizada. Asya tinha a impressão de que um coletor de lixo de Istambul levava provavelmente uma vida muito menos estressante do que ela e seus amigos do Café Kundera. Se fosse catadora de lixo, perambularia pela cidade assobiando canções de Johnny Cash enquanto uma brisa balsâmica acariciaria seus cabelos e o sol lhe aqueceria os ossos. Se alguém ousasse perturbar uma harmonia tão abençoada, ela poderia apavorá-lo com a ameaça de seu enorme clã cigano, no qual provavelmente todos tinham sido condenados por algum crime. Apesar do problema da pobreza e desde que não fosse inverno, Asya concluiu que devia ser divertído ser catador de lixo. Anotou mentalmente para lembrar-se disso caso não surgisse profissão melhor depois que terminasse a faculdade. Com isso, pôs-se a assobiar; só no final da estrofe notou que Armanoush ainda esperava uma resposta mais detalhada à pergunta que fizera há poucos minutos. - Bem, sim, tia Zeliha e Aram estão juntos por tanto tempo que só Alá sabe. Ele é como meu padrasto, ou, por uma questão de coerência, acho que devia chamá-lo de tio-padrasto... Sei lá. - Por que não se casam? - Casar? - Asya cuspiu a palavra como se fosse um pedaço de comida entre os dentes. Passavam então pelos catadores de latas. Numa inspeção mais próxima de seus modelos, Asya percebeu que não eram garotos, e sim garotas, o que a

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fez gostar ainda mais da situação. Confundir as fronteiras dos gêneros era mais uma razão para se tornar catadora de lixo. Pôs um cigarro entre os lábios, mas em vez de acendê-lo sugou sua ponta por um momento como se ele fosse um cigarro de chocolate envolvido em papel comestível. Então revelou um pensamento seu: - Na verdade, tenho certeza de que Aram casaria, mas tia Zeliha não aceitaria nunca. - Por que não? - perguntou Armanoush. A brisa mudou de direção, o que fez Armanoush sentir uma pungente lufada do mar. A cidade era uma confusão de aromas, alguns fortes e rançosos, outros doces e estimulantes. Como quase todos os cheiros lembravam a Armanoush um tipo de comida, começou a perceber Istambul como algo comestível. Já estava ali há oito dias, e quanto mais tempo ficava mais tortuosa e multifacetada tornava-se Istambul. Talvez estivesse se habituando a ser uma estrangeira na cidade, se é que não estava se habituando à cidade em si. - Meu palpite é que tudo se deve à experiência de tia Zeliha com meu pai, seja lá quem ele for - continuou Asya. - Deve ser por isso que ela é tão contra o casamento. Acho que não confia muito nos homens. - Bem, dá para entender isso - disse Armanoush.Você não acha que há uma enorme diferença entre os dois sexos quando se trata de se recuperar de um relacionamento? Quer dizer, quando as mulheres sobrevivem a um casamento ou a um caso de amor horrível e toda essa merda, geralmente evitam outra relação por algum tempo. No entanto, com os homens é exatamente o Oposto: assim que acabam uma catástrofe, começam a procurar outra. Os homens não conseguem ficar sozinhos. Armanoush fez um curto sinal afirmativo com a cabeça, embora o padrão descrito por Asya não se ajustasse a seus pais. Fora a mãe quem tornara a se casar depois do divórcio, enquanto o pai continuava solteiro até aquele momento. - Esse Aram... De onde ele é? - Daqui mesmo, como nós. - Asya deu de ombros, mas de repente entendeu a pergunta. Surpresa com a própria ignorância, acendeu o cigarro que vinha sugando e soltou uma baforada. Como não tinha percebido a ligação? Aram vinha de uma família armênia de Istambul. Teoricamente, era armênio. E mesmo assim, num certo sentido, não podia ser armênio ou turco ou de qualquer outra nacionalidade. Ele só podia ser Aram, inteiramente sui generis. Era o único exemplar de uma espécie única. Era um sedutor, um tremendo romântico, um professor de ciências políticas que freqüentemente confessava preferir levar a vida de um pescador num povoado pobre do Mediterrâneo. Era um coração frágil, uma alma ingênua e um pedaço de caos ambulante; um utopista, um otimista e um prometedor inimputável; um

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homem notavelmente desleixado, espirituoso e honrado. Era único e, conseqüentemente, Asya jamais o associara a uma identidade coletiva. Tentada a dizer algo nessa linha, respondeu simplesmente: - Na verdade, ele é armênio. - Foi o que pensei. - Armanoush sorriu levemente. Cinco minutos depois, estavam no estúdio de tatuagem. - Bem-vindas! - exclamou tia Zeliha com sua voz levemente rouca e arrastada ao abraçar calorosamente as duas. Fosse qual fosse o perfume que usava, era forte; uma combinação de especiarias, madeira e jasmim. Seus cabelos escuros caíam pelos ombros em cachos fulgurantes, tendo ela feito luzes em alguns deles com uma substância tão cintilante que, cada vez que se movia sob as luzes incandescentes, seus cabelos brilhavam. Armanoush contemplou-a boquiaberta, entendendo pela primeira vez o temor e a admiração que imaginava que Asya tinha pela mãe desde criança. O interior do estúdio era como um pequeno museu. Em frente à entrada, havia uma enorme foto emoldurada de uma mulher de nacionalidade incerta, de costas para o espectador a fim de expor melhor a tatuagem de uma miniatura otomana detalhadamente desenhada em seu corpo. Parecia a cena de um banquete, com um acrobata acima dos convivas caminhando por uma corda bamba de um ombro a outro. Uma miniatura tradicional tatuada nas costas de uma mulher moderna era surpreendente. Abaixo estava a frase em inglês: A TATUAGEM É UMA MENSAGEM ENVIADA ATRAVÉS DO TEMPO! Havia mostruários por toda a loja exibindo centenas de desenhos de tatuagens e jóias de piercing. Os desenhos eram agrupados sob vários títulos: "Rosas e Espinhos", "Corações Sangrando", "Corações Apunhalados", "O Caminho do Xamã", "Criaturas Peludas Assustadoras", "Dragões Não-Peludos Mas Igualmente Assustadores", "Motivos Patriótícos", "Nomes e Números", "Simurg e a Família Pássaro" e, finalmente, "Símbolos Sufi". Armanoush não se lembrava de já ter visto tão poucas pessoas fazendo tanto barulho em um recinto. Além de tia Zeliha, havia um homem excêntrico de cabelos laranja e uma agulha na mão, um adolescente e a mãe (que parecia indecisa entre ficar ou ir embora), e dois homens de cabelos compridos e barba por fazer, dando a impressão de estarem completamente fora do espaço e do tempo, como roqueiros chapados da década de 1970 acabando de se recobrar de uma "viagem ruim". Um deles sentava-se numa grande e confortável cadeira, mastigando chiclete ruidosamente enquanto conversava com o amigo e um mosquito roxo era tatuado em seu tornozelo. O homem com a agulha era o assistente de tia Zeliha e também um talentoso artista. Armanoush o olhava atentamente trabalhando, surpresa

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de que uma agulha de tatuagem pudesse produzir tanto som.- Não se preocupe. O som é mais dramático do que a dor - observou tia Zeliha, lendo seus pensamentos. Então acrescentou com uma piscadela: - Além disso, esse cliente está acostumado; esta deve ser sua vigésima tatuagem. A tatuagem às vezes é um vício. Uma nunca é suficiente. Com cada uma você descobre o ímpeto de fazer outra. Não sei por que as clínicas de reabilitação ainda não incluíram isso nos programas. Armanoush ficou em silêncio por um longo momento, estudando o roqueiro bizarro com o canto do olho. Se ele sentia alguma dor, não demonstrava. - Por que alguém haveria de querer um mosquito roxo tatuado no tornozelo? Tia Zeliha deu uma risadinha compreensiva. - "Por quê"? Essa é uma pergunta que nunca fazemos aqui. Sabe, nesse estúdio nos recusamos a aceitar a tirania da normalidade. Qualquer que seja o desenho escolhido pelo cliente, tenho certeza de que há uma razão para isso e que talvez nem ele mesmo saiba. Nunca pergunto por quê. - E o piercing? - Mesma coisa - disse Zeliha sorrindo, apontando para seu piercing no nariz. - Esse aqui tem 19 anos. Eu o fiz quando tinha a idade de Asya. - É mesmo? - É. Fui para o banheiro, usei uma cenourinha, uma agulha esterilizada, cubos de gelo para anestesiar e também um monte de fúria. Eu tinha muita raiva de tudo, mas principalmente da minha família. Disse a mim mesma que faria isso e fiz. Minhas mãos tremiam de nervoso e então furei errado da primeira vez, atingi o septo. Sangrou muito. Mas depois aprendi a técnica e na vez seguinte furei a narina direito. - É mesmo? - repetiu Armanoush, dessa vez parecendo perplexa com o rumo que a conversa tomava. - É! - Tia Zeliha deu uns tapinhas no nariz com orgulho. - Enfiei um anel aqui e simplesmente saí do banheiro assim. Naquela época eu gostava de deixar minha mãe maluca. 257 De onde estava, Asya a ouviu e lançou à mãe um olhar divertido. - O que estou querendo dizer é que furei o nariz porque era proibido. Entendeu? Era impensável que uma moça turca de uma família tradicional tivesse um piercing, então coloquei um. Mas os tempos mudaram. É para isso que estamos aqui. Neste estúdio, damos conselhos aos clientes e às vezes até recusamos algumas pessoas, mas nunca as julgamos. Nunca perguntamos por quê. Foi uma coisa que aprendi bem cedo na vida. Mesmo se você criticar as pessoas, elas vão acabar fazendo de qualquer jeito. Nesse momento, o adolescente desviou os olhos dos mostruários para tia Zeliha e perguntou: - Dá para fazer essa cauda de dragão mais comprida para cobrir todo o meu braço? Quero ele esticado do cotovelo ao pulso... Sabe, como se estivesse

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rastejando pelo braço. Antes que tia Zeliha pudesse responder, porém, a mãe interferiu: - Está maluco? De jeito nenhum! Já tínhamos combinado que seria algo pequeno e simples, como um passarinho ou uma joaninha. Nunca dei permissão para rabos de dragão... Por duas horas, Asya e Armanoush observaram a atividade no estúdio, enquanto os clientes entravam e saíam. Cinco estudantes entraram para fazer um piercing na sobrancelha, mas assim que a agulha esterilizada penetrou na sobrancelha do primeiro, os outros mudaram de idéia. Em seguida, chegou um torcedor de futebol que desejava o escudo de seu time no peito. Depois, apareceu um ultranacionalista pedindo uma bandeira turca na ponta do dedo, para que, quando sacudisse o dedo para os outros, estivesse brandindo a bandeira. E finalmente chegou um travesti impressionante, uma cantora loura que queria ter o nome do amante tatuado nos nós dos dedos. Então, depois disso, entrou no estúdio um homem de meia-idade que parecia anormalmente normal em meio à clientela habitual do estúdio. Era Aram Martirossian. Aram era um homem alto e bonito, ligeiramente robusto, de rosto amável mas cansado, barba escura, cabelo grisalho e covinhas profundas, que surgiam a cada vez que ele sorria. Seus olhos brilhavam de inteligência por trás dos óculos de aro espesso. Podia-se perceber imediatamente o amor com que olhava Zeliha. Amor, respeito e sintonia. Quando ele falava, ela completava os gestos dele; quando ela gesticulava, ele completava as palavras dela. Eram dois indivíduos complicados que pareciam ter conquistado uma extraordinária harmonia. Quando começou a conversar com Aram, Armanoush usou seu inglês-como-segunda-língua, como fazia ao conhecer uma pessoa nova em Istambul. Portanto, se apresentou num inglês tão lento quanto possível, ritmado, quase infantil. Ficou surpresa ao ouvir o inglês fluente e com um sutil sotaque britânico de Aram. - Seu inglês é tão bom! - observou Armanoush. - Como conseguiu esse sotaque britânico, se me permite perguntar? - Obrigado - disse Aram. - Fiz graduação e pós-graduação em Londres. Mas podemos falar em armênio se quiser. - Não sei falar armênio. - Armanoush sacudiu a cabeça. - Aprendi um pouco quando criança com minha avó, mas como meus pais se separaram, nunca fiquei num único lugar por tempo suficiente; sempre havia interrupções. Depois, quando eu tinha entre dez e treze anos, ia todos os verões para um acampamento de jovens armênios. Era divertido e meu armênio melhorou lá, mas depois enferrujou de novo. - Aprendi armênio com a minha avó também. - Aram sorriu. - Para falar a verdade, tanto mamãe quanto vovó achavam que eu

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deveria ser criado bilíngüe, mas discordavam quanto à segunda língua. Mamãe achava que seria melhor para mim falar turco na escola e inglês em casa, já que quando crescesse eu estava destinado a morar aquí de qualquer modo. Mas vovó foi decidida. Ela queria turco na escola e armênio em casa. Armanoush estava intrigada com a aura de Aram, mas ainda mais fascinada com a sua humildade. Falaram sobre avós armênias por um tempo - as da diáspora, as da Turquia e as da Armênia. Às 6h30 da noite, tia Zeliha confiou o estúdio a seu assistente e os quatro dirigiram-se a uma taverna nas proximidades. - Antes que você vá embora de Istambul, Aram e tia Zeliha querem nos levar a uma taverna para que possa ver uma típica noitada na cidade - havia explicado Asya para Armanoush.No caminho, ao passarem por uma rua mal iluminada, depararam-se com um edifício de apartamentos, de cujas janelas prostitutas travestis olhavam os pedestres. Duas no primeiro andar estavam tão próximas que Armanoush pôde ver os detalhes de seus rostos pesada- mente maquiados. Uma delas, uma mulher forte, de lábios carnudos e cabelos de um vermelho tão vibrante quanto fogos de artifício no escuro, disse algo em turco, rindo. - O que foi que ela disse? - perguntou Armanoush para Asya. - Que meus braceletes são maravilhosos e que tenho uma quantidade excessiva! Para surpresa de Armanoush, Asya tirou um dos braceletes de contas e deu-o ao travesti de cabelos vermelhos. Este aceitou alegremente o presente, o pôs no braço e, com dedos de unhas perfeitamente manicuradas e vermelhas, ergueu uma lata de Coca-Cola Light como se fizesse um brinde a Asya. Observando a cena com olhos surpresos, Armanoush imaginou o que Jean Genet concluiria. Que Coca-Cola Light, pulseiras de contas, o odor penetrante do sêmen e a alegria infantil poderiam todos coexistir numa rua suspeita de Istambul? A TAVERNA ERA UM LOCAL CHEIO DE ESTILO porém jovial, próximo à Travessa das Flores. Assim que se sentaram, surgiram dois garçons com um cardápio de mezes. - Armanoush, por que não nos surpreende de novo com seu vocabulário culinário? - pediu tia Zeliha. - Bem, vamos ver, tem yalanci sarma, tourshi, patlijan, topik, enginar... - Armanoush começou a dizer os nomes dos pratos que os garçons iam depositando na mesa. Os clientes continuavam chegando em pares ou grupos, e em cerca de vinte minutos a taverna se encheu. Em meio a todos os rostos, sons e cheiros igualmente não-familiares, Armanoush perdeu sua noção de 260 localização. Sentia que poderia estar na Europa, no Oriente Médio ou na Rússia. Tia Zeliha e Aram bebiam rakz,

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Asya e Armanoush, vinho branco. Tia Zeliha fumava cigarros, Aram tirava baforadas de um charuto, enquanto Asya, aparentemente evitando fumar na frente da mãe, mordiscava o interior da bochecha. - Você não está fumando esta noite - disse Armanoush para Asya, sentada perto dela. - É, nem me fale! Asya suspirou. Então sua voz baixou a um murmúrio. Fique quieta! Tia Zeliha não sabe que eu fumo. Armanoush surpreendeu-se. Embora Asya tivesse um prazer rebelde, quase sádico, de enfurecer a mãe em cada oportunidade, quando se tratava de fumar na frente dela era uma filha dócil. Eles conversaram ociosamente por uma hora, enquanto os garçons traziam pratos e mais pratos. Primeiro serviram as mezes - os pratos frios - seguidos pelos pratos mornos, os pratos quentes, sobremesas e café. "Deve ser o estilo aqui", imaginou Armanoush, "em vez de se escolher algo no cardápio, o cardápio inteiro vem até você". Quando o barulho e a fumaça se intensificaram, Armanoush aproximou-se um pouco mais de Aram, tendo finalmente tomado coragem para lhe perguntar o que vinha martelando em sua mente: Aram, sei que você gosta de Istambul, mas nunca pensou em ir para os Estados Unidos? Quer dizer, poderia ir para a Califórnia, por exemplo. Há uma grande comunidade armênia lá, sabe... Aram a olhou atentamente por um minuto, como se absorvesse cada detalhe. Então recostou-se no espaldar da cadeira e deu uma risadinha enigmática. Armanoush ficou perturbada com seu riso, como se, de certo modo, isso a afastasse. Não tendo certeza se fora entendida corretamente, ela se inclinou para a frente e tentou explicar melhor: - Se o estão oprimindo aqui, você sempre terá a opção de ir para os Estados Unidos. Há muitas comunidades armênias lá que ficariam contentes de ajudar você e a sua família. Aram não riu desta vez. Em vez disso abriu um sorriso afetuoso, mas um tanto cansado. - Por que eu faria isso, querida Armanoush? Istambul é a minha cidade. Nasci e me criei aqui. A história da minha família nesta cidade remete a quinhentos anos atrás. Os armênios de Istambul pertencem a Istambul, assim como os turcos, curdos, gregos e judeus daqui. No início tentamos viver juntos e fracassamos totalmente. Não podemos fracassar de novo. Então o garçom se materializou novamente, desta vez servindo lulas fritas, mexilhões fritos e pastéis fritos. - Conheço cada rua desta cidade - continuou Aram, tomando outro gole de raki. - E adoro passear por elas de manhã, de tarde e de noite, quando estou alegre e embriagado. Adoro tomar café-da-manhã com meus amigos junto ao Bósforo aos domingos; adoro caminhar

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sozinho no meio da multidão. Sou apaixonado pela beleza caótica da cidade, pelas barcas, pela música, pelas histórias, pela tristeza, pelas cores e pelo humor negro... Mergulharam num silêncio constrangido, tendo um raro e distante vislumbre das posições um do outro, percebendo que poderia haver mais do que distância geográfica entre eles - Aram suspeitando que Armanoush fosse americanizada demais, Armanoush o imaginando excessivamente contaminado pela Turquia. A brecha pungente entre os filhos dos que tinham conseguido ficar e os filhos dos que tiveram que partir. - Sabe, os armênios da diáspora não têm amigos turcos. Só conhecem os turcos através das histórias que ouviram dos avós ou uns dos outros. E essas histórias são terrivelmente dilacerantes. Mas acredite, da mesma forma que em qualquer nação, na Turquia há pessoas boas e pessoas ruins. É simples assim. Tenho amigos turcos que são mais próximos de mim que meu irmão de sangue. E também há, é claro - ergueu o copo e levantou-o para tia Zeliha -, esse meu louco amor. Tia Zeliha deve ter sentido a menção ao seu nome, pois lhe deu uma piscadela, ergueu o corpo de raki e fez um brinde: - erefe! Todos a acompanharam e tocaram seus copos uns nos outros, repetindo: - erefe! - Esta palavra, como se tornaria claro depois, era uma espécie de refrão repetido a cada dez ou quinze minutos. Uma hora e sete erefes depois, os olhos de Armanoush brilhavam com o álcool. Divertida, ela observou um garçom albino trazer os pratos quentes: peixe grelhado no molho de pimentões verdes, bagre marinado no manjericão com creme de espinafre, salmão na brasa com folhas verdes e camarões fritos no molho de alho picante. Armanoush deu uma risadinha de pileque antes de se virar para Aram: - Você deve ter tatuagens também. Tia Zeliha deve ter tatuado você. - De jeito nenhum - disse Aram por trás da fumaça que saía do charuto. - Ela não me deixa fazer nenhuma. É - acrescentou Asya. - Ela não deixa ele fazer uma tatuagem. - É mesmo? - perguntou Armanoush, surpresa, para tia Zeliha. - Achei que você gostasse de tatuagens. - E gosto mesmo - respondeu tia Zeliha. - Não sou contra a tatuagem, mas sim contra o desenho que ele pede. Aram sorriu. - Gostaria de tatuar uma maravilhosa figueira. Mas ao contrário de outras árvores, eu quero uma de cabeça para baixo. Minha figueira tem todas as raízes para o ar. Em vez da terra, ela se enraíza no céu. É deslocada, mas não sem lugar. Ficaram em silêncio por alguns segundos, observando a luz bruxuleante da vela na mesa. - Só que a figueira... - Tia Zeliha acendeu o último cigarro do maço e soprou sem intenção em direção a Asya. - A figura é um sinal

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agourento. Não traz boa sorte. Nada contra a vontade de Aram de ter as raízes dela no ar, mas minha objeção é à própria figueira. Se ele escolhesse uma cerejeira ou um carvalho com as raízes no ar, eu faria a tatuagem imediatamente! Foi então que quatro músicos ciganos, todos de camisa de seda branca e calças pretas, entraram na taverna com seus instrumentos - um ud, um clarinete, um kanun e um darbuka. Houve uma animação geral entre os clientes que, após comerem e beberem muito, estavam mais do que prontos para cantar. 263 Quando os músicos surgiram ao lado deles, Armanoush sentiu um pouco de timidez. Mas, para seu alívio, eles não a obrigaram a cantar. Asya também não era muito de cantar. Então escutaram tia Zeliha acompanhar os músicos com um suave contralto - uma voz que não parecia nada com seu tom rouco de cigarro. Armanoush notou que Asya lançava um olhar interrogativo à mãe. Quando o líder da banda perguntou se queriam pedir alguma música em especial, tia Zeliha cutucou Aram com o cotovelo, flertando: - Vamos, peça uma música. Cante, meu rouxinol! Enrubescendo, Aram inclinou-se para frente, tossiu e então sussurrou algo no ouvido do músico principal. Quando a banda embarcou na melodia pedida, para a surpresa de Armanoush, Aram começou a cantar a música não em turco ou em inglês, mas em armênio. Toda manhã na aurora Ah... Eu digo ao meu amor, Aonde vai você? A canção fluía lenta, desolada, enquanto seu ritmo ia aumentando com uma subida nítida do clarinete e o darbuka difícil de conter ao fundo. A voz de Aram subia e descia em ondas suaves. Inicialmente, sua voz era pouco confiante, mas o tom se tornava cada vez mais assertivo. Ela é a corrente dourada De minhas lembranças, Ela é o caminho Para a história da minha vida. Armanoush prendeu a respiração, não conseguindo entender todas as palavras, mas sentindo o luto profundo de seu coração. Quando ergueu a cabeça, ficou intrigada com a expressão de tia Zeliha. Era um olhar que incorporava o temor da felicidade que só os que tinham se apaixonado inesperada e desprotegidamente podiam ter.Quando a canção terminou e os músicos passaram à mesa seguinte, Armanoush achou que tia Zeliha daria um beijo em Aram. Mas, em vez disso, tia Zeliha apertou ternamente a mão de Asya, como se reconhecesse que seu amor por um homem lhe permitira compreender melhor o amor pela filha. - Minha querida - murmurou, com um toque de angústia na voz. Mas se pretendia dizer algo à filha, tia Zeliha rapidamente afastou o impulso. Em vez disso, abriu um novo maço de cigarros e ofereceu um a Asya. Ver a mãe com sentimentos tão à flor da pele era muito mais

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surpreendente para Asya do que a oferta do cigarro. Então acendeu o dela e depois o da mãe. Enquanto a fumaça se erguia lentamente entre elas, mãe e filha sorriram uma para a outra desajeitadamente. Eram extremamente parecidas daquele ângulo e sob aquela luz, dois rostos moldados por um passado do qual uma não sabia nada e a outra escolhia não lembrar. Foi exatamente naquele momento que Armanoush sentiu a vibração da cidade pela primeira vez desde que chegara. Finalmente entendeu por que e como as pessoas podiam se apaixonar por Istambul, apesar de toda a tristeza que isso pudesse lhes causar. Não seria fácil deixar de amar uma cidade tão pungentemente bela. Reconhecendo isso, Armanoush ergueu o copo num brinde: - erefe!

***14

ÁGUA- ENTRO E LHES DIGO PARA FICAREM QUIETAS? - perguntou tia Fende. Estava diante da porta do quarto das garotas, seu olhar fixo na maçaneta. - Ah, deixe-as em paz! - exclamou tia Zeliha do sofá onde estava esparramada. - Estão bêbadas, e quando a gente está assim, ouve música alto.- Para frisar o que dizia, exclamou: - ALTO!- Bêbadas? - berrou avó Gülsüm. - Por que estão bêbadas? Não basta você sempre trazendo vergonha a esta família? Olhe só a saia que está usando! Os panos de prato são mais compridos do que suas saias! Você é mãe solteira, uma divorciada. Está ouvindo? Nunca vi uma divorciada com um anel no nariz. Você devia ter vergonha, Zeliha! Tia Zeliha ergueu a cabeça da almofada que estivera abraçando. - Mamãe, para que eu fosse divorciada, teria que ter me casado primeiro. Não distorça os fatos. Não posso ser chamada de "divorciada", "separada" ou qualquer desses termos desagradáveis que você reserva em seu vocabulário para mulheres sem Sorte. Esta sua filha aqui é uma pecadora que adora minissaia, adora o piercing que usa no nariz e adora a filha que teve fora do casamento. Quer você queira ou não! - Não basta você ter estragado sua filha e a forçado a beber? Por que obrigou também a pobre hóspede a beber? Ela é responsabilidade de Mustafá; ela é a hóspede do seu irmão nesta casa. Como ousa estragar a garota?! - Responsabilidade do meu irmão?! Tá, sei! - Tia Zeliha riu morosamente e fechou os olhos. Enquanto isso, no quarto das garotas, Johnny Cash

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tocava a todo o volume. Sentadas lado a lado à escrivaninha, as duas olhavam atentamente para a tela do computador, com Sultão V, de olhos meio fechados, aninhado entre elas. Estavam tão absortas na internet que nenhuma delas ouviu a discussão que acontecia na sala. Armanoush acabara de conectar-se ao Café Constantinópolis, decidida a levar Asya desta vez. Olá, pessoal! Não sentiram saudade de Madame Minha-Alma-Exilada?, digitou Armanoush. Nossa correspondente em Istambul está de volta! Onde você esteve? Os turcos te devoraram?, escreveu Anti-Khavurma. Bem, um dos devoradores está aqui neste momento. Quero apresentar a todos uma amiga minha turca. Houve uma pausa. Ela tem um nick, claro: Uma Garota Chamada Turca. O que é isso?, Alex, o Estóico perguntou imediatamente.É uma reinterpretação do título da música de Johnny Cash. De qualquer forma, você mesmo pode lhe perguntar. Aqui está ela. Meu querido Café Constantinópolis, apresento-lhes Uma Garota Chamada Turca. Uma Garota Chamada Turca, apresento-lhes o Café Constantinópolis. Olá! Saudações de Istambul!, escreveu Asya. Não houve resposta. Espero que da próxima vez vocês também venham a Istambul com Arman..., Asya só percebeu o erro quando Armanoush lhe deu um tapa na mão, . . .com Madame Minha-Alma-Exilada. Ah, obrigado. Mas sinceramente não estou a fim de fazer uma viagem turística a um país que causou tanto sofrimento a todos da minha família. Era Anti-Khavurma de novo. Foi a vez de Asya fazer uma pausa. Olhe, não nos entenda mal... Não temos nada contra você, tá?, interveio Coexistência-Infeliz. Tenho certeza de que a cidade é agradável, com um visual e tanto, mas a verdade é que não confiamos nos turcos. Mesrop se reviraria no túmulo, que Aramazt não permita, se eu esquecesse meu passado assim de repente. - Quem é Mesrop? - perguntou Asya para Armanoush, numa voz pouco acima de um sussurro, como se eles pudessem ouvi-la. Muito bem. Vamos começar pelo básico: os fatos. Se expormos os fatos, podemos depois falar de outras coisas, decretou Lady Peacockl Siramark. Comecemos com essa viagem turística por Istambul. Quem foi o arquiteto por trás dessas mesquitas magníficas que vocês mostram aos turistas hoje? Sinan! Ele projetou palácios, hospitais, pousadas, aquedutos... Vocês exploraram a inteligência de Sinan e agora negam que ele fosse armênio.

Eu não sabia que ele era armênio, escreveu Asya, perplexa. Mas Sinan é um nome turco. Bem, vcs são bons para turquificar os nomes das minorias, rebateu Anti-Khavurma. - Ok, entendo o que você está dizendo. É verdade,

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a história nacional turca está baseada na censura, mas a história nacional de todos os países é assim. Os Estados nacionais criam seus próprios mitos e passam a acreditar neles. Asya ergueu a cabeça, firmou os ombros e continuou a digitar. Na Turquia há turcos, curdos, circassianos, georgianos, pônticos, judeus, abazas, gregos... Acho tudo simplista demais, acho muito perigoso fazer esse tipo de generalização. Não somos bárbaros cruéis. Além disso, muitos estudiosos da cultura otomana lhes diriam que, de vários modos, ela foi uma grande cultura. A década de 1910 foi uma época especialmente difícil. Mas as coisas não são as mesmas que há cem anos. Lady PeacocklSiramark contra-atacou imediatamente: Não acredito mesmo que os turcos tenham mudado. Se tivessem mudado, reconheceriam o genocídio. Genocídio é um termo pesado demais, escreveu Uma Garota Chamada Turca. Implica um extermínio sistemático, organizado e com base filosófica. Honestamente, não tenho certeza se o Estado otomano da época fosse de tal natureza. Mas reconheço a injustiça feita aos armênios. Não sou históriadora. Meu conhecimento é limitado e deturpado, mas o de vocês também. Está vendo, essa é a diferença! O passado não tem nenhuma utilidade para o opressor. E os oprimidos só têm o passado, comentou Filha de Safo. Sem conhecer a história do seu pai, como você pode criar sua própria história?, acrescentou Lady Peacock-Siramark.Armanoush sorriu por dentro. Até então, tudo estava correndo exatamente como imaginara. Exceto o Barão Baghdassarian. Ele ainda não reagira a coisa alguma. Fixada na tela, Asya digitou: Reconheço sua perda e sua dor. Não nego as atrocidades cometidas. Estou distanciada apenas do meu passado. Não sei quem é meu pai ou como foi sua história. Se tivesse uma chance de saber mais sobre o meu passado, mesmo que fosse triste, eu escolheria saber ou não? O dilema da minha vida. Você é cheia de contradições, replicou Anti-Khavurma. Johnny Cash não se incomodaria com isso!, interveio Madame Minha-Alma-Exilada. Digam-me, como uma turca comum, o que eu posso fazer nesse exato momento para aliviar a dor de vocês?, perguntou Uma Garota Chamada Turca. Esta era uma pergunta que até então nenhum turco fizera aos armênios no Café Constantinópolis. Já tiveram visitantes turcos por duas vezes, ambos rapazes fervorosamente nacionalistas, surgidos não se sabia de onde, aparentemente com a intenção de provar que os turcos não tinham feito nada de errado com os armênios, e, se algo acontecera, era porque os armênios haviam se rebelado contra o regime otomano e matado os turcos. Um deles chegara ao

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ponto de argumentar que se o regime otomano tivesse sido realmente genocida, como afirmavam, não teria sobrado nenhum armênio para contar a história. O fato de haver tantos armênios criticando os turcos era um sinal claro de que os otomanos não os haviam perseguido. Até então, o encontro do Café Constantinópolis com os turcos tinha sido basicamente uma troca furiosa de desaforos e solilóquios. Daquela vez, o tom era radicalmente diferente.Seu Estado pode pedir desculpas, respondeu CoexistênciaInfeliz. Meu Estado? Não tenho nada a ver com o Estado, escreveu Asya, pensando no Cartunista Dipsomaníaco sendo processado por desenhar o primeiro-ministro como lobo. Olhem, eu sou niilista! Parou bruscamente, quase mencionando seu Manifesto Pessoal de Niilismo. Então você mesma pode pedir desculpas, retrucou Anti-Khavurma. Quer que eu peça desculpas por algo com que, pessoalmente, não tenho nada a ver? Diga você, escreveu Lady PeacocklSiramark. Todos nós nascemos numa continuidade de tempo, e o passado continua a viver no presente. Viemos de uma linhagem familiar, uma cultura, uma nação. Vai dizer para perdoarmos e esquecermos? Enquanto lia a mensagem, Asya pareceu perturbada, como se tivesse esquecido suas falas em meio a uma apresentação. Alisou distraidamente a cabeça de Sultão V algumas vezes antes que seus dedos voltassem ao teclado. Sou responsável pelo crime do meu pai?, perguntou Uma Garota Chamada Turca. Você é responsável por reconhecer o crime do seu pai, replicou Anti-Khavurma. Asya pareceu confusa com a frase abrupta; ficou brevemente irritada, mas também intrigada. Ante o brilho que irradiava da tela do computador, seu rosto estava pálido e imóvel. Sempre tentara manter tanta distância do passado quanto do futuro que esperava atingir. Esperava que, o que quer que as lembranças necessariamente acarretassem, por mais escuro e deprimente que fosse, o passado não a consumisse.

Detestava admitir, mas a verdade era que o passado realmente vivia no presente. Durante toda a minha vida eu desejei não ter passado. Ser uma bastarda significa mais não ter passado do que não ter pai... e agora vocês estão me pedindo para ser dona do passado e pedir desculpas por um pai mítico! Não houve resposta, mas Asya não parecia estar esperando por uma. Continuou digitando como se seus dedos agissem sozinhos, como se estivesse navegando de olhos fechados. No entanto, talvez seja exatamente o fato de eu não ter um passado que pode eventualmente me ajudar a simpatizar com o apego de vocês à História. Posso reconhecer o

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significado da continuidade na memória humana. Posso fazer isso... e realmente peço desculpas por todo o sofrimento que meus ancestrais causaram aos seus. Anti-Khavurma não estava satisfeito. Na verdade, o seu pedido de desculpas não significa muito para nós, cortou. Peça desculpas diante do Estado turco. Ah, que isso! Armanoush puxou de repente o teclado para ela e digitou, incapaz de resistir à tentação de interferir. É Madame Minha-Alma-Exilada quem está falando agora. De que adiantaria isso a não ser causar problemas para ela? Ela tem que enfrentar esse problema se estiver sendo sincera!, estourou Anti-Khavurma. Mas antes que alguém pudesse responder a isso surgiu um comentário totalmente inesperado. Bem, querida Madame Minha-Alma-Exilada e querida Uma Garota Chamada Turca, a verdade é que... alguns armênios em diáspora não gostariam que os turcos reconhecessem o genocídio. Se fizerem isso, eles puxarão o tapete debaixo de nossos pés e retirarão o laço mais forte que nos une. Do mesmo modo que os turcos vêm mostrando o hábito de negar seus erros, os armênios vêm mostrando o hábito de saborear o papel de vítima. Aparentemente, existem alguns velhos hábitos que precisam ser mudados dos dois lados. Era o Barão Baghdassarian. - ELAS AINDA NÃO DORMIRAM. - Tia Fende andava de um lado para outro do lado de fora do quarto das garotas. Há algum problema? As mulheres mais velhas tinham ido dormir e tia Cevriye também, como professora disciplinada que era. Tia Zeliha desmaiara no sofá. - Irmã, por que não vai dormir e deixa que eu tome conta da porta para ter certeza de que elas estão bem? - Tia Banu apertou o ombro da irmã. De vez em quando, sempre que sua doença progredia, tia Fende entrava em pânico com o mal que podia vir de alguém ou de algo do mundo exterior. - Eu fico com o turno da noite. - Tia Banu sorriu. - Você pode dormir. Não esqueça que sua mente vira uma estranha durante a noite. Não fale com estranhos. - Sim. - Tia Fende concordou com a cabeça e por um momento pareceu uma menininha perturbada com uma história. Então, visivelmente relaxada, arrastou-se em direção ao seu quarto. ASSIM QUE SE DESCONECTARAM DA INTERNET, Armanoush olhou o relógio. Estava na hora de dar um telefonema para a mãe. Naquela semana, ligara todos os dias na mesma hora, e todas as vezes Rose a censurara por não telefonar com mais freqüência. Tentando não ficar aflita com esse padrão invariável, Armanoush digitou o número e esperou que a mãe atendesse. - Amy!!! - A voz de Rose transformou-se num grito estridente. - É você, meu amor? - Sou, mamãe.

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Como você está? - Como eu estou? Como eu estou?! - repetiu Rose, agora parecendo perturbada e com a voz abafada. - Preciso desligar agora, mas me prometa, prometa que vai me ligar de novo daqui a dez... Não, não, dez não é suficiente, daqui a exatamente 15 minutos. Preciso desligar, organizar minhas idéias agora e então vou esperar sua ligação. Prometa, prometa - repetiu Rose, histericamente. - Tudo bem, mamãe, eu prometo - gaguejou Armanoush. - Mamãe, você está bem? O que aconteceu? - Mas Rose já se fora. Atônita, pálida e segurando desoladamente o telefone, Armanoush olhou para Asya. - Mamãe pediu que eu ligasse mais tarde em vez de me perguntar por que não liguei antes. Isso não é típico dela. Que esquisito! - Relaxe. - Asya mexeu-se na cama, pondo a cabeça para fora do cobertor. - Talvez ela estivesse dirigindo ou qualquer coisa assim e não pudesse falar no telefone. Mas Armanoush negou com a cabeça, com uma expressão aflita no rosto. - Ah, meu Deus, tem alguma coisa errada! Alguma coisa muito errada!COM OS OLHOS INCHADOS DE CHORAR e o nariz miseravelmente vermelho, Rose estendeu a mão para uma toalha de papel enquanto irrompia em lágrimas. Ela comprava toalhas de papel fortes, resistentes, sempre da mesma marca: Sparkle. A empresa as produzia em diferentes estilos e a favorita de Rose era chamada Meu Destino. Impressas no papel, havia imagens de conchas, peixes e barcos, todas em azul, e entre elas nadavam as seguintes palavras: NÃO POSSO MUDAR A DIREÇÃO DO VENTO, MAS POSSO AJUSTAR MINHAS VELAS PARA ALCANÇAR SEMPRE O MEU DESTINO. Rose gostava do slogan. Além disso, a tinta azul das imagens impressas combinava perfeitamente com a cor dos azulejos de sua cozinha, a parte da casa de que mais se orgulhava. Apesar de inicialmente ter gostado da cozinha, Rose não perdera tempo em reformála depois de comprarem a casa, acrescentando prateleiras de puxar, colocando num canto a armação para 36 garrafas de vinho laqueada na parte de cima - embora nem ela nem Mustafá bebessem -, e decorando todo o aposento com banquinhos giratórios de carvalho. Agora, num ataque de pânico, era sobre um daqueles banquinhos que deixara cair o corpo. - Ah, meu Deus, temos 15 minutos, O que vamos dizer a ela? Só temos 15 minutos para decidir - gritou para Mustafá. - Rose, querida, por favor acalme-se - disse Mustafá, levantando-se da cadeira. Não gostava dos banquinhos, então conservou duas cadeiras de madeira sólida de pinho na cozinha, as duas para ele. Abordou a mulher e segurou sua mão, tentando afastar suas preocupações. - Trate de ficar calma, muito calma, está

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bem? E pergunte a ela, com calma, onde ela está agora. É a primeira coisa que precisa perguntar, ok? - E se ela não me contar? - Vai contar. Pergunte de um modo suave que ela vai responder de um modo suave também. - Mustafá falava lentamente. - Mas nada de censuras. Você precisa manter a calma. Aqui, tome um pouco d'água. Rose pegou o copo com mãos trêmulas. - É possível isso? Minha filha mentiu para mim! Como fui idiota em confiar nela! Todo esse tempo achando que ela estava em San Francisco com a avó e a gente descobre que ela mentiu para todo mundo... E agora sua avó... Ah, meu Deus, como vou contar a ela? No dia anterior estavam ambos na cozinha, ela fazendo panquecas e ele lendo o Arizona Daily Star, quando o telefone tocou. Rose atendeu com a espátula na mão e soube que a ligação era de San Francisco. Seu ex-marido, Barsam Tchakhmakhchían, estava na linha.Quantos anos haviam se passado sem que os dois trocassem uma palavra? Após o divórcio, tinham sido forçados a se comunicar com freqüência por causa da filha pequena. Entretanto, depois que Armanoush crescera, as conversas entre eles tinham se tornado raras e então cessaram totalmente. De seu breve casamento, só duas coisas restaram: um ressentimento mútuo e uma filha. - Desculpe incomodá-la, Rose - disse Barsam com uma voz suave mas seca. -É uma emergência. Preciso falar com minha filha. - Nossa filha - corrigiu Rose asperamente, e assim que emitiu as palavras, lamentou imediatamente sua amargura. - Rose, por favor, preciso dar uma notícia ruim a Armanoush. Pode chamá-la ao telefone, por favor? Ela não está atendendo o celular. Tive que ligar para aí. - Espere... espere... Ela não está aí? - Como assim? - Ela não está em San Francisco com você? - Os lábios de Rose tremeram de pânico. Barsam imaginou se a ex-mulher estaria tentando lhe pregar uma peça. Tentou não parecer irritado. - Não, Rose, ela resolveu voltar para o Arizona e passar o feriado da primavera aí. - Ah, meu Deus! Ela não está aqui! Onde está minha filhinha? Onde está ela? - Rose começou a soluçar, mergulhando num dos ataques de ansiedade que pensava ter superado há muito tempo. - Rose, quer se acalmar, por favor? Não sei o que está acontecendo, mas tenho certeza de que há uma explicação. Confio totalmente em Armanoush. Ela não faria nada de errado. Quando falou com ela pela última vez? - Ontem. Ela liga todos os dias... de San Francisco! Barsam fez uma pausa. Não disse que Armanoush vinha ligando para ele também, mas do Arizona. - Isso é ótimo, significa que ela está bem. Precisamos confiar nela. Ela é inteligente e confiável, você sabe

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disso. Da próxima vez que ela ligar, diga-lhe para me telefonar. Diga que é urgente. Entendeu, Rose? Pode fazer isso?- Ah, meu Deus! - Rose começou a chorar ainda mais alto. Então, repentinamente, ocorreu-lhe perguntar: - Barsam, você disse que era uma notícia ruim. Qual é? - Ah... - Uma pausa grave. - É a minha mãe... - Não conseguiu terminar a frase. - Diga a Armanoush que vovó Shushan morreu dormindo. Ela não acordou esta manhã. NUNCA 15 MINUTOS PASSARAM TÃO LENTAMENTE. Armanoush andou pelo quarto sob o olhar preocupado de Asya. Finalmente chegou a hora de ligar para a mãe. Dessa vez Rose atendeu imediatamente. - Amy, vou lhe perguntar uma coisa e você vai me dizer a verdade. Prometa que vai me dizer a verdade. Armanoush sentiu uma onda de preocupação lhe subir pelo estômago. Onde é que você está? - bradou Rose, sua voz áspera. - Você mentiu para nós! Não está em San Francisco nem no Arizona. Onde é que você está? Armanoush engoliu em seco. - Estou em Istambul, mamãe. - O quê?! - Mamãe, eu lhe conto tudo, mas por favor se acalme! Os olhos de Rose faiscaram de pura indignação. Como detestava que lhe dissessem para se acalmar! - Mamãe, lamento profundamente ter preocupado tanto você. Eu nunca devia ter feito isso. Me desculpe, mas não há nada com que se preocupar, pode ter certeza. Rose colocou a mão sobre o fone. - Minha filhinha está em Istambul! - disse para o marido com um tom de reprimenda, como se fosse culpa dele. Então berrou no telefone: - Que diabo está fazendo aí? - Na verdade, estou hospedada na casa da sua sogra. É uma família maravilhosa.

Estupefata, Rose virou-se para Mustafá e dessa vez a censura foi ainda mais dura: - Ela está hospedada com a sua família! Então, antes que um pálido e alarmado Mustafá Kazanci pudesse dizer qualquer palavra, Rose falou: - Estamos indo para aí. Não vá para nenhum outro lugar. Estamos indo. E nunca desligue seu celular de novo! - Depois, desligou o telefone. - O que está dizendo? - Mustafá apertou o braço da mulher com mais força do que pretendia. - Não vou a lugar nenhum! - Vai, vai sim - disse Rose. - Nós vamos. Minha filha única está em Istambul!!! - gritou, como se Armanoush tivesse sido seqüestrada. - Não posso abandonar meu trabalho agora. - Pode tirar uns dias de licença. E se você não for, eu vou sozinha - retrucou Rose, ou alguém parecida com Rose. - Vamos lá para ver se ela está em segurança e trazê-la de volta para casa. NAQUELA MESMA NOITE, quando estavam prestes a ir para a cama, o telefone das Kazanci tocou. - Inshallah não seja nada de ruim - murmurou Petite-Ma de

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sua cama, um rosário na mão e uma sombra de ansiedade no rosto. Estendeu a mão para o copo de água com sua dentadura e, ainda orando, tomou um gole. Só a água podia acalmar o medo. Ainda acordada, tia Fende atendeu o telefone. Era a mais falastrona e comunicativa da família quando se tratava de conversas telefônicas. -Alô? - Oi, Fende, é você? - perguntou uma voz masculina. Sem esperar resposta, a voz acrescentou: - Sou eu... dos Estados Unidos... Mustafá... 278 Excitada de ouvir a voz do irmão, tia Fende sorriu. - Por que não nos liga mais vezes? Como você está? Quando virá nos ver? - Escute por favor, querida. Amy... Armanoush está aí? - Está sim, claro, você a mandou para ficar aqui conosco. Gostamos muitíssimo dela. - Tia Fende estava radiante. - Por que não veio com ela, você e sua mulher? Mustafá agüentou firme, a testa franzida de mal-estar. Além da janela por trás dele jazia o solo do Arizona, sempre confiável, sempre secreto. Com o tempo, aprendera a apreciar o deserto, sua infinitude aliviando seu medo de olhar para trás, sua tranqüilidade acalmando seu medo da morte. Em momentos como aquele, lembrava o destino que aguardava todos os homens de sua família, como se seu próprio corpo recordasse sozinho. Em momentos como aquele, sentia-se prestes a cometer suicídio. Encontrar a morte antes que ela o encontrasse. Vivera duas vidas muito diferentes. Mustafá e Mostapha. E às vezes lhe parecia que o único modo de preencher a lacuna entre os dois nomes seria silenciá-los ao mesmo tempo - fazer suas duas vidas terminarem abruptamente. Afastou aquele pensamento. Um som parecido com um suspiro. Talvez fosse ele. Talvez só o deserto. - Acho que vamos. Iremos por alguns dias para pegar Amy e ver vocês... Estamos indo. Tais palavras deram a impressão de saírem sem nenhum esforço, como se o tempo não fosse uma seqüência de rupturas, mas sim uma continuidade sem interrupções facilmente maleável, ainda que fraturada. Mustafá faria aquela visita como se não tivessem passado quase vinte anos desde que deixara seu lar.

***15PASSAS BRANCAS

A SURPREENDENTE NOTÍCIA DE QUE MUSTAFÁ iria visitá-las com a esposa americana desencadeou imediatamente uma série de reações na residência Kazanci. A primeira e principal envolvia sabão e detergentes líquidos e em pó. Em dois dias, toda a casa fora minuciosamente limpa de alto a

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baixo, as janelas esfregadas e polidas, as prateleiras desempoeiradas, as cortinas lavadas e passadas, cada azulejo dos três andares limpo e polido. Com um pano, tia Cevriye limpou uma a uma as folhas das plantas na sala, o gerânio e a campânula, o rosmaninho e a aspérula. Limpou até as folhas do heliotrópio. Enquanto isso, tia Fende surpreendeu a todas, fornecendo os mais preciosos e rendilhados panos de crochê de seu dote. Mas era, sem dúvida, a avó Gülsüm a mais animada com a notícia. No início, recusara-se a acreditar que seu filho único iria visitá-las depois de tantos anos.Quando finalmente se convenceu, enclausurou-se na cozinha entre pratos, talheres e ingredientes, preparando as iguanas preferidas do filho favorito. O ar na cozinha agora estava carregado de cheiros dos bolos recém-assados. Ela já havia cozinhado dois tipos diferentes de borek - espinafre e queijo feta -, feito sopa de lentilhas e costeletas de carneiro ensopadas, e preparado a massa de kõfte para ser frita assim que os convidados chegassem. Embora estivesse determinada a preparar mais meia dúzia de pratos antes do dia terminar, sem dúvida o item mais importante no cardápio da avó Gülsüm seria a sobremesa: ashure. Durante toda a sua infância e adolescência, Mustafá Kazanci gostava mais de ashure do que de qualquer outro doce, e se aquela horrível junk food americana já não tivesse estragado os hábitos alimentares do filho, como esperava a mãe, ele ficaria encantado de encontrar tigelas de sua sobremesa favorita na geladeira, como se a vida ali ainda fosse a mesma e ele pudesse retomá-la de onde a deixara. O asbure era um símbolo da continuidade e estabilidade, a epítome da bonança que vinha depois de cada tempestade, por mais assustadora que esta fosse. Avó Gülsüm pusera os ingredientes de molho no dia anterior e preparava-se agora para começar a cozinhar. Abriu o guarda-louça e tirou de lá um enorme caldeirão. Um caldeirão é sempre necessário para se fazer ashure. Ingredientes1/2 xícara de grãos-de-bico1 xícara de trigo inteiro, sem a casca 1 xícara de arroz branco 1 1/2 xícara de açúcar 1/2 xícara de avelãs tostadas e picadas 1/2 xícara de pistaches 1/2 xícara de pinhões1 colher de chá de baunilha

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1/3 xícara de passas brancas1/3 xícara de figos secos1/3 xícara de damascos secos1/2 xícara de cascas de laranja2 colheres de sopa de água de rosasGuarnição2 colheres de sopa de canela1/2 xícara de amêndoas sem a pele, fatiadas1/2 xícara de sementes de romãPreparoA maioria dos ingredientes deve ser deixada de molho em tigelas separadas, no dia anterior, da seguinte forma:Cobrir os grãos-de-bico postos numa tigela com água gelada, deixando-os de molho de um dia para o outro. O trigo e o arroz devem ser lavados cuidadosamente e depois colocados em diferentes tigelas com água. Deixar de molho na água quente os figos, os damascos e as cascas de laranja por meia hora, coar a água e reservá-la; picar as frutas e as cascas de laranja, misturá-las às passas e deixá-las à parte.Cozimento Cobrir os grãos-de-bico com quatro litros de água gelada. Pôr para ferver e cozinhar em fogo médio até que os grãos estejam tenros, em cerca de uma hora. Enquanto estiverem cozinhando, ferver de um a dois litros de água, jogar na água o trigo e o arroz, e levar à fervura em fogo baixo, mexendo constantemente até que a mistura de trigo e arroz fique tenra, em cerca de uma hora.Acrescentar a água em que as frutas ficaram de molho, o açúcar, as avelãs picadas, os pistaches e os pinhões, e ferver a mistura em fogo médio, mexendo constantemente. Manter em ponto de ebulição e mexer por trinta minutos ou mais. Deixar que a mistura engrosse ligeiramente até parecer uma sopa espessa. Acrescentar a baunilha, 282 as passas, os figos, os damascos e as cascas de laranja, cozinhando por mais vinte minutos e mexendo constantemente. Desligar o fogo e acrescentar a água de rosas. Deixar o ashure repousar à temperatura ambiente por uma hora ou mais. Polvilhar com canela e enfeitar com amêndoas fatiadas e sementes de romã.No QUARTO DAS GAROTAS, Armanoush estava quieta e pensativa desde o início da manhã. Não tinha vontade de sair ou fazer coisa alguma. Asya ficou com ela jogando tavia e ouvindo Johnny Cash.- Seis seis! Garota sortuda!

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Mas Armanoush não mostrava nenhum sinal de prazer com os dados. Em vez disso, tensa, ruminava ante suas peças como se esperasse movê-las com a força do olhar.- Estou com uma sensação horrível de que aconteceu algo ruim e mamãe não está querendo me contar.- Não tem por que se preocupar - disse Asya, mordiscando a ponta do lápis, ansiando por nicotina. - Você falou com sua mãe e ela estava bem.Graças a você, eles agora vão visitar Istambul, encontrar com você e logo todos voltarão para casa... - Embora as palavras de Asya tivessem o objetivo de acalmar, estranhamente haviam saído como uma objeção. A verdade é que se entristecia por saber que Armanoush iria embora tão cedo.- Não sei. Não consigo me livrar dessa sensação. - Armanoush suspirou. - Minha mãe nunca viaja para lugar nenhum, nem mesmo ao Kentucky. O fato dela vir a Istambul é difícil de imaginar. Mas ao mesmo tempo é tão típico dela! Mamãe detesta não poder controlar a minha vida. Daria a volta ao mundo para me manter à vista.Enquanto esperava que Armanoush resolvesse mover uma peça, Asya encolheu as pernas sob o corpo, elaborando outro artigo de seu Manifesto Pessoal de Niilismo.Artigo Dez: Se você achar uma amiga querida, certifique-se de não se acostumar com ela a ponto de esquecer que, afinal, cada um de nós é essencialmente só e, mais cedo ou mais tarde, a solidão permanente superará quaisquer amizades fortuitas. Por mais angustiada que estivesse, a capacidade de jogar de Armanoush certamente não fora afetada por seu estado de espírito. Com o "seis seis", ela invadiu a parte do tabuleiro de Asya e castigou a oponente, esmagando suas três peças de uma só vez. Triunfo! Asya afundou mais os dentes no lápis. Artigo Onze: Mesmo se achar uma amiga querida com quem ficou tão acostumada a ponto de esquecer o Artigo Dez, jamais negligencie o fato de que, mesmo assim, ela pode lhe dar uma surra em outras esferas da vida. No tabuleiro de tavia, da mesma forma que no nascimento e na morte, todos nós estamos sós. Tendo três peças esperando na barreira e com apenas dois portões ainda abertos ao tabuleiro oposto, Asya tinha agora que tirar um "cinco cinco" ou um "três três". Não havia outro número de pontos que pudesse salvá-la da derrota. Cuspiu na palma da mão para obter sorte e pensou numa prece para o gênio da tavia, que sempre imaginara como um ogro meio preto, meio branco, com dados no lugar dos

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olhos girando loucamente. Então jogou o dado: "três dois". Droga! Sem poder jogar, ela apertou as mãos e resmungou. - Coitadinha! - exclamou Armanoush. Asya pôs as peças pretas que esperavam na barreira, enquanto ouvia um vendedor ambulante berrando lá fora a plenos pulmões: "Passas! Passas brancas! Para crianças e vovozinhas sem dentes, passas brancas são para todos!" Quando Asya falou de novo, levantou a voz para superar a do vendedor. - Tenho certeza de que sua mãe está bem. Pense só, se ela não estivesse bem, como poderia vir do Arizona a Istambul?- Acho que você tem razão - disse Armanoush, concordando com a cabeça e jogando o dado. - "Seis seis" de novo! - Droga, vai continuar tirando "seis seis" pra sempre? Esses dados estão viciados! - retrucou Asya, desconfiada. - Está me passando a perna, madame? Armanoush deu uma risadinha. - Ah, quem me dera saber fazer isso! Mas no momento em que estava prestes a mover outras duas peças brancas pelo espaço aberto, Armanoush parou bruscamente, pálida e tensa.- Ah, meu Deus, como é que não vi isso?! exclamou Armanoush, angustiada. - Não é minha mãe, claro, é meu pai. É exatamente como mamãe reagiria se alguma coisa ruim acontecesse com meu pai... ou à família dele... Ah, meu Deus, aconteceu alguma coisa com meu pai!- Agora você está especulando. - Asya tentou acalmá-la, sem sucesso. Quando falou com ele pela última vez? - Há dois dias - respondeu Armanoush. - Liguei pra ele do Arizona e ele estava bem, tudo parecia normal.- Espere, espere, espere!- Como assim, ligou do Arizona?Armanoush enrubesceu.- Eu menti. - Então deu de ombros, como se saboreasse a satisfação de ter feito algo errado para variar. - Menti para quase todo mundo na família para fazer essa viagem. Se dissesse que vinha a Istambul sozinha, ficariam tão assustados que não teriam me deixado ir a lugar nenhum. Então pensei: vou para Istambul e conto tudo a eles quando voltar. Papai acha que estou no Arizona com mamãe, e mamãe acha que estou em San Francisco com papai. Quero dizer, ela achava, pelo menos até ontem.Asya olhou fixamente para Armanoush com uma descrença que logo se dissipou, substituída por algo mais perto da reverência. Talvez Armanoush não fosse a garota bem-comportada e imaculada que Asya suspeitara. Talvez em algum lugar de seu luminoso universo houvesse

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espaço para escuridão, sujeira e desvio. Longe de aborrecer Asya, a confissão só servira para aumentar sua estima por 285 Armanoush. Fechou o tabuleiro de tavia e o pôs debaixo do braço, um símbolo da aceitação da derrota, embora Armanoush não tivesse como reconhecer esse gesto cultural.- Acho que não está acontecendo nada... Mas por que não telefona para seu pai? - perguntou Asya.Como se esperasse tais palavras para entrar em ação, Armanoush estendeu a mão para o telefone. Dada a diferença de fuso, era de manhã bem cedo em San Francisco.O telefone foi atendido após um toque, mas não pela avó Shushan, como sempre, e sim pelo pai de Armanoush.- Queridinha. - Barsam Tchakhmakhchian emitiu um suspiro de intenso carinho ao ouvir a voz da filha. Houve um ruído sinistro na linha telefônica que os fez pensar na distância geográfica entre eles. - Eu ia ligar para você esta manhã. Sei que está em Istambul; sua mãe me disse.Um silêncio breve e incômodo seguiu essas palavras, mas Barsam Tchakhmakhchjan não fez nenhum comentário sobre elas nem censurou a filha.- Sua mãe e eu estávamos preocupados com você. Rose está indo para Istambul com seu padrasto... Vão aí buscar você. Chegarão em Istambul amanhã ao meio-dia.Então Armanoush congelou. Algo estava errado. Algo estava muito errado.Que o pai e a mãe estivessem falando um com o outro, e mais, dando notícias um para o outro, era definitivamente um sinal do apocalipse.- Papai, aconteceu alguma coisa?Barsam Tchakhmakhchian fez uma pausa, abalado de tristeza pelo peso de uma lembrança de infância que surgira do nada.Quando era garoto, todos os anos um homem com um capuz pontudo e escuro e uma capa preta visitava seu bairro, indo de porta em porta com o diácono da igreja local. Era um padre do velho país, procurando jovens inteligentes para levar à Armênia e treiná-los como padres. - Papai, está tudo bem? O que está acontecendo?- Estou bem, queridinha. Senti falta de você. - Foi tudo que ele pôde dizer. Barsam era fascinado por religião quando muito jovem, o melhor aluno na escola de catecismo. Conseqüentemente, o homem de capuz preto visitava sua casa com freqüência, falando com Shushan sobre o futuro do garoto. Certo dia, enquanto Barsam, a mãe e o padre estavam na cozinha

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tomando chá quente, o padre disse que se uma decisão tinha de ser tomada, aquele era o momento. Barsam Tchakhmakhchian nunca esqueceria o lampejo de medo nos olhos da mãe. Por mais que ela respeitasse o santo sacerdote, por mais que ficasse encantada de ver o filho como homem adulto com garbo pastoral, por mais que quisesse ter o filho único servindo ao Senhor, Shushan não conseguiu evitar se encolher de temor, como se enfrentasse um seqüestrador querendo roubar-lhe o filho. Recuou com tal força e medo que a xícara tremeu em sua mão, derramando-lhe chá no vestido. O padre, afável e suavemente, fez um sinal afirmativo com a cabeça, detectando a sombra de uma história obscura do passado daquela mulher. Deu uns tapinhas na mão de Shushan e a abençoou. Então foi embora, nunca mais voltando com o mesmo pedido. Naquele dia, Barsam Tchakhmakhchian sentira algo que jamais havia sentido antes e que nunca se repetiria. Uma premonição penetrante e sinistra. Só a mãe que já perdera um filho reagiria com um medo tão profundo ante o perigo de perder outro. Shushan poderia ter tido outro filho no passado que fora tirado dela. Agora, em luto pela morte da mãe, Barsam não conseguia reunir coragem para contar o que acontecera à filha. - Papai, fale comigo - insistiu Armanoush. Exatamente como a mãe de Barsam, o pai vinha de uma família deportada da Turquia em 1915. Sarkis Tchakhmakhchian e Shushan Stamboulian partilhavam algo em comum, algo que seus filhos podiam sentir mas jamais compreender inteiramente. Tantos silêncios espalhavam-se entre as palavras. Ao partirem para os Estados Unidos, tinham deixado outra vida no velho país, e sabiam que, por mais freqüente e fielmente que se evocasse o passado, certas coisas jamais poderiam ser contadas.

Barsam se lembrou do pai dançando em volta da mãe em um Hale, fazendo círculos dentro de círculos com os braços erguidos como um pássaro pairando nas alturas; a música começando lenta e tornando-se cada vez mais rápida, esse giro do Oriente Médio que as crianças só podiam observar à parte, com admiração. A música era o traço mais vívido deixado em sua educação. Durante anos, Barsam tocava clarinete numa banda armênia e dançava em traje tradicional, calções pretos até os joelhos e uma camisa amarela. Ele lembrava que saía de casa com esses trajes enquanto todas as outras crianças em seu bairro não-armênio o observavam com olhos zombeteiros. Sempre esperava que as crianças esquecessem o que tinham visto ou simplesmente não se dessem ao trabalho

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de se divertir às suas custas. Todas as vezes se enganava. Embora alistado numa atividade armênia atrás da outra, tudo que realmente queria era ser como as outras crianças; nada mais, nada menos - ser um americano e livrar-se daquela pele armênia morena. Mesmo anos depois sua mãe ainda o censurava de vez em quando, explicando-lhe que quando garoto perguntara aos inquilinos holandeses-americanos do andar de cima que sabonete usavam, pois queria ser branco como eles. Agora, enquanto as lembranças de infância voltavam à sua mente com a perda da mãe, Barsam Tchakhmakhchian acabou se sentindo culpado por desaprender o pouco armênio que sabia quando criança. Lamentava agora não ter aprendido mais a língua com sua mãe e não tê-la ensinado mais à sua filha. - Por que está em silêncio, papai? - perguntou Armanoush, com temor na voz. - Lembra-se do acampamento juvenil para onde foi quando era mais nova? - Claro que sim. - Ficou zangada comigo por não mandá-la mais para lá? - Papai, fui eu que não quis ir mais para lá, esqueceu? Era divertido no começo, mas depois cheguei à conclusão que eu era madura demais para aquilo. Fui eu que pedi para não me mandar mais para lá no ano seguinte... 288 - Certo - disse Barsam, hesitante. - Mas mesmo assim eu poderia ter procurado outro acampamento para garotas armênias da sua idade. - Por que está questionando isso agora? - Armanoush sentiu-se à beira das lágrimas. Não teve coragem de contar a ela. Não daquele jeito, não pelo telefone. Não queria que ela soubesse da morte da avó enquanto estivesse sozinha e a milhares de quilômetros de casa. Enquanto tentava murmurar algumas palavras para distraí-la, sua voz se ergueu suavemente acima de um zumbido que irrompeu ao fundo. O zumbido constante de uma reunião. A impressão é que toda a família estava lá: parentes, amigos e vizinhos sob o mesmo teto. Como Armanoush era bastante inteligente para saber, só poderia ser sinal de duas coisas: casamento ou morte. - O que está acontecendo? Onde está avó Shushan? - perguntou Armanoush suavemente. - Quero falar com vovó. Foi então que Barsam Tchakhmakhchian decidiu contar à filha.

DESDE O FINAL DA TARDE, tia Zeliha vinha andando por seu quarto com uma vigorosa energia que não sabia como conter. Não podia contar a ninguém em casa como se sentia mal, e quanto mais enterrava seus sentimentos, pior se sentia. Primeiro pensou em fazer um chá calmante na cozinha, mas o cheiro forte de todas as comidas que estavam sendo preparadas quase a fez vomitar. Então entrou na sala para assistir à TV, mas, ao esbarrar

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ali com duas irmãs freneticamente envolvidas na limpeza e conversando animadamente sobre o dia seguinte, mudou instantaneamente de idéia. De novo em seu quarto, tia Zeliha fechou a porta, acendeu um cigarro e puxou a companheira que conservava sob o colchão para dias difíceis como aquele: uma garrafa de vodca. Apressada mas com avidez crescente, bebeu um terço da garrafa. Agora, depois de 289 quatro cigarros e seis doses, não se sentia mais ansiosa; na verdade, não sentia mais coisa alguma, exceto fome. Para beliscar, só tinha no quarto um pacote de passas brancas comprado de um vendedor ambulante que berrava na frente da casa ao entardecer. Com a garrafa pela metade e apenas um punhado de passas, seu celular tocou. - Não quero que você fique nessa casa hoje à noite. - Foi a primeira coisa que Aram lhe disse ao telefone. - Ou amanhã, ou depois de amanhã. Na verdade, não quero que você passe nenhum dia longe de mim pelo resto da vida. Como resposta, tia Zeliha soltou um riso abafado. - Por favor, amor, venha ficar comigo. Deixe essa casa imediatamente. Comprei uma escova de dentes para você. Tenho até uma toalha limpa! - Aram tentou brincar, mas parou no meio do caminho. - Fique comigo até ele ir embora. - E como vamos explicar essa ausência repentina para minha querida família? - resmungou tia Zeliha. - Não precisa explicar nada - disse Aram, implorando. - Olhe, essa deve ser a única vantagem de ser a ovelha negra de uma família tradicional. O que quer que você faça, não vai chocar ninguém, tenho certeza. Venha. Por favor, fique comigo. - O que vou dizer a Asya? - Nada, não tem que dizer nada... Você sabe disso. Segurando firme o telefone, tia Zeliha se enrodilhou numa posição fetal. Fechou os olhos, pronta para dormir, mas logo reuniu as forças para perguntar: - Quando vai terminar isso, Aram? Essa amnésia obrigatória. Esse esquecimento perpétuo. Não diga nada, não lembre nada, não revele nada, nem a elas nem a você mesma... Algum dia isso vai acabar? - Não pense nisso agora - Aram tentou consolá-la. - Relaxe. Está sendo muito dura consigo mesma. Assim que acordar amanhã de manhã, venha para cá. - Ah, meu amor... Como gostaria de poder fazer isso... - Tia Zeliha virou seu rosto angustiado como se Aram pudesse vê-la pelo telefone.- Elas esperam que eu vá ao aeroporto para pegá-los. Sou a única da família que sabe dirigir, lembra? Aram continuava em silêncio, reconhecendo que ela tinha razão. - Não se preocupe sussurrou tia Zeliha. - Eu te amo... Te amo tanto... Agora vamos dormir. Após desligar, ela afundou aos poucos num sono pesado. Na manhã seguinte,

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acordando com uma dor de cabeça lancinante e sem um dos cobertores, não conseguia lembrar como havia desligado o celular, posto de lado a garrafa de vodca, esmagado o cigarro no cinzeiro, apagado a luz e se enfiado sob as cobertas. - É FRIO EM ISTAMBUL? Devo levar roupas mais quentes? - perguntou Rose, apesar de haver três razões para não fazê-lo: já tinha perguntado isso antes, já tinha feito a mala e, naquele momento, já estavam a caminho do aeroporto de Tucson. Embora tentado a lembrar essas três razões à mulher, Mustafá Kazanci manteve os olhos fixos na pista e sacudiu a cabeça. No dia do vôo, Rose e Mustafá saíram de casa às quatro da manhã para irem de carro ao aeroporto. Dois vôos os esperavam: um curto e o outro bastante longo. Iriam primeiro de Tucson a San Francisco, e depois de San Francisco a Istambul. Sendo aquela sua primeira viagem para um país de língua não inglesa e onde as pessoas não comiam panquecas embebidas de calda pela manhã, Rose sentia-se animada e aflita ao mesmo tempo. Na verdade, nunca fora do tipo aventureira, e se não fosse pelo sonho muito-desejado-mas-jamaisrealizado de ir a Bancoc, ela e Mustafá nem teriam passaporte. O mais perto que chegara de uma viagem internacional fora assistindo à coleção Descobrindo a Europa, composta de seis DVDs. Através dela, Rose teve uma noção de como era a Turquia - noção muito mais coerente do que os retalhos de informação que Mustafá soltava de vez em quando durante os muitos anos de seu casamento. No entanto, o problema era que, tendo visto os seis discos de uma só vez e pelo fato de o episódio de "Viajando pela Turquia" ser o último (depois dos que enfocavam as Ilhas Britânicas, França, Espanha, Portugal, Alemanha, Áustria, Suíça, Itália, Grécia e Israel), Rose duvidava se as cenas que lhe pipocavam na mente seriam da Turquia ou de algum outro país. A coleção Descobrindo a Europa era de fato prática para objetivos educacionais, principalmente para famílias americanas sem tempo, meios ou desejo de fazer uma viagem para o além-mar; contudo, seus produtores deveriam pôr um aviso nos DVDs alertando o público para não assistir aos seis discos seguidos, não "viajar" para mais de um país de uma só vez. No Aeroporto Internacional de Tucson, visitaram cada loja, o que significava um quiosque e uma lojinha de lembranças. Apesar da ostensiva placa AEROPORTO INTERNACIONAL (nome concedido devido a seus vôos internacionais para o México, que ficava a apenas uma hora de distância de carro), o aeroporto era tão modesto que parecia um terminal de ônibus, e nem o Starbucks se interessara em abrir uma filial ali. Mesmo

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assim, Rose conseguiu encontrar na loja de souvenires inúmeros presentes para a família de Mustafá. Apesar da natureza inesperada da viagem e da constante preocupação de Rose com o que a filha estaria fazendo, sem falar na sua preocupação em como lhe contar sobre a morte da avó, enquanto o momento da partida se aproximava, Rose caíra numa espécie de deslumbramento turístico. Pretendendo comprar um presente especial para cada membro da família de Mustafá, composta de mulheres, ela examinou cuidadosamente as mercadorias em cada prateleira, embora não houvesse muitas opções. Agendas em forma de cacto, chaveiros em forma de cacto, ímãs em forma de cacto, copos de tequila com imagens de cactos - um feixe de tchotchkes e pequenos artigos com imagens, se não de cactos, de lagartos ou coiotes pintados. Ao final, Rose comprou um presente para cada mulher Kazanci - todos iguais, para ser justa - composto de um lápis curvo na forma de um cacto, multicor e com as palavras Eu AMO O ARIZONA, uma camiseta branca com o mapa do Arizona impresso na frente, um calendário com fotos do Grand Canyon, uma enorme caneca com a inscrição MAS É UM CALOR SECO, e um ímã de geladeira com um cacto miniatura verdadeiro dentro. Comprou também dois shorts floridos como o que estava usando no momento, para o caso de alguém querer experimentá-los em Istambul. Após ter vivido em Tucson por mais de vinte anos, Rose, outrora uma garota do Kentucky, incorporou o Arizona à sua personalidade. Não era apenas as habituais roupas de lazer - camisetas leves, shorts de brim e chapéus de palha - que a entregavam ou os óculos escuros grudados ao seu rosto, mas também sua linguagem corporal, que irradiava o estilo do Arizona. Com 46 anos, Rose portava-se como uma funcionária de tribunal aposentada e animada que, com raras oportunidades de usar vestidos floridos na vida, agora os desfrutava ao extremo. Na verdade havia várias coisas que ela, na sua idade, lamentava profundamente não ter feito - inclusive ter tido mais filhos. Principalmente isso. Mustafá não ansiara muito por filhos e durante muito tempo Rose concordou com ele, sem suspeitar o quanto lamentaria tal decisão. Talvez fosse uma circunstância profissional: como estava rodeada de crianças da quarta série o dia inteiro, nunca notara a falta de crianças em sua própria vida. Fora isso, Rose e Mustafá, de modo geral, tinham um casamento feliz, mais caracterizado pelo consolo proporcionado por hábitos mutuamente desenvolvidos do que por devoção apaixonada. Mesmo assim, porém, era um casamento muito melhor do que milhares de outros que afirmavam serem amorosos na

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essência. Tinha sido uma guinada do destino, quando lembrava que começara a namorar Mustafá apenas para vingar-se dos Tchakhmakhchian. Entretanto, quanto mais o conhecia, mais gostava dele e o desejava. Embora a atração por casos românticos a fizesse de vez em quando ansear secretamente por uma vida diferente com um homem diferente, no geral Rose estava bem satisfeita com aquele que conseguira. - Deixe o molho aí - disse Mustafá ao ver Rose pensando em comprar um vidro em forma de cacto com um molho mexicano picante. - Pode ter certeza, Rose, você não vai precisar disso em Istambul. - É mesmo? A culinária turca é picante?Para perguntas tão dolorosamente óbvias, Mustafá tinha apenas respostas hesitantes. Após muitos anos de completa separação, sua familiaridade com a cultura turca, como o desenho de um pergaminho exposto ao sol e ao vento, fora pouco a pouco apagada. Istambul tornara-se imperceptivelmente uma cidade fantasma para ele, sem qualquer realidade, exceto aparecer de vez em quando em seus sonhos. Por mais que gostasse de muitos lugares da cidade, seus personagens e sua cultura, desde que se instalara nos Estados Unidos ele se anestesiara gradualmente em relação a Istambul e a quase tudo associado à cidade. Ainda assim, uma coisa era mudar-se da cidade onde nascera; outra, estar tão distanciado de sua carne e do seu sangue. Mustafá Kazanci não se importava muito em refugiar-se nos Estados Unidos para sempre, como se não tivesse uma terra natal para onde voltar, mas perturbava-o transformar-se num estrangeiro sem ancestrais, num homem sem infância. À medida que os anos passavam, fora tentado às vezes, a seu próprio modo, a voltar para ver a família e defrontar-se com a pessoa que fora anteriormente. Descobrira, contudo, que isso não era fácil, e que não se tornava nem um pouco mais fácil com a idade. Vendo-se cada vez mais distante do passado, cortara posteriormente todos os laços com sua antiga vida. Era melhor assim. Tanto para ele quanto para as pessoas que havia magoado tanto. Os Estados Unidos eram agora o seu lar. No entanto, verdade fosse dita, mais do que o Arizona ou qualquer outro lugar, foi no futuro que ele resolveu se instalar e chamar de lar - um lar com a porta dos fundos fechada para o passado. Mustafá estava visivelmente contemplativo e retraído no avião. Enquanto decolavam, permanecia muito quieto na poltrona, quase nunca mudando de posição, mesmo quando alcançaram velocidade de cruzeiro. Sentia-se cansado, exaurido pela viagem obrigatória que estava apenas começando. Rose, pelo contrário, estava empolgada e nervosa. Tomou xícaras e mais xícaras do café ruim do avião,

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comeu os esquálidos biscoitos salgados que serviram, folheou a revista de cortesia, assistiu a Bridget Jones: no limite da razão - embora já tivesse visto o filme – engatou um longo bate-papo com a senhora idosa a seu lado que ia a San Francisco visitar a filha mais velha e ver o neto recém-nascido. Quando a senhora adormeceu, Rose dedicou-se a tentar responder ao quiz na tela de vídeo à sua frente. Quem sofreu mais perdas na Segunda Guerra Mundial? A. Japão B. Grã-Bretanha C. França D. União Soviética.Qual é o nome do protagonista do romance 1984, de George Orwell? A. Winston Smith B. Akaky Akakievich C. Sir Francis Drake D. Gregor SamsaÀ primeira pergunta, Rose respondeu B com confiança, mas não tendo nenhuma idéia sobre a segunda, simplesmente chutou A. Logo ficaria surpresa ao descobrir que sua primeira resposta estava errada e a segunda certa. Se Amy estivesse perto dela, teria respondido às duas corretamente, e certamente não por acaso. Seu coração doeu ao pensar na filha. Apesar de todos os conflitos e brigas entre as duas, apesar de todos os seus fracassos pessoais como mãe, Rose ainda acreditava ter uma boa relação com Amy. Tanto quanto acreditara ter sido a Grã-Bretanha a sofrer o maior número de baixas na Segunda Guerra Mundial. Então, aterrissaram em San Francisco. Uma vez no aeroporto, Rose foi impelida por outro impulso de consumo: guloseimas para a viagem. Tão miseráveis haviam sido as migalhas servidas no primeiro vôo que ela agora decidira resolver o problema com as próprias mãos. Embora Mustafá tentasse lhe explicar que as companhias aéreas turcas, ao contrário dos vôos domésticos nos Estados Unidos, ofereceriam um monte de coisas deliciosas, Rose queria se precaver ao embarcar num vôo de 12 horas. Comprou um pacote de amendoins, bolachas de queijo, biscoitos com raspas de chocolate, dois pacotes de batatas fritas, um monte de barras de cereais e chicletes. A idéia de vigiar os carboidratos - pela simples possibilidade de vigiar algo, qualquer coisa - há muito desaparecera. Aquilo fora quando era muito jovem e ansiava para provar à família Tchakhmakhchian que a mulher que rotulavam de odar, sem nunca a considerarem um de seus membros, era de fato uma pessoa muito boa e até invejável. Agora, vinte anos depois, Rose apenas sorria ao se lembrar da jovem ressentida que fora rio passado. Embora sua amargura para com o primeiro marido e a família dele nunca tivesse desaparecido totalmente, com o tempo Rose aprendera a reconciliar-se com seus próprios defeitos e incapacidades, inclusive seus quadris largos e sua barriga. Entrara e

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saíra de dietas por tanto tempo que nem se lembrava mais quando desistira delas de uma vez por todas. Fosse quando fosse, Rose havia conseguido se livrar não dos quilos, mas pelo menos da necessidade de perdê-los. O impulso simplesmente cessara. Mustafá gostava dela assim como era. Nunca criticara sua aparência. O anúncio do embarque veio quando estavam na fila da lanchonete Wendy's à espera de dois Big Bacon Classic grandes e uma batata assada com creme-azedo para o caso da comida que servissem no avião turco fosse incomível. Receberam os pedidos em cima da hora e dirigiram-se ao portão de embarque, onde passariam por uma revista extra da segurança reservada aos passageiros de vôos internacionais, especialmente os que rumavam para o Oriente Médio. Rose observou, com preocupação, um guarda educado mas de cara fechada vasculhar entre os presentes que ela comprara em Tucson. O guarda pegou um lápis em forma de cacto e sacudiu-o no ar, como se a acusasse de algum crime que ela estivesse prestes a cometer. No entanto, já a bordo do avião, Rose relaxou rapidamente, usufruindo cada detalhe da experiência - os kits de viagem chiques que distribuíram, os travesseiros, cobertores, máscara de dormir, tudo combinando, e o contínuo serviço de bebidas interrompido pelos sanduíches de peru de cortesia. O jantar não demorou a ser servido: arroz e galinha assada com uma pequena salada e legumes salteados. NÃO HÁ PRODUTOS SUÍNOS EM NOSSOS ALIMENTOS, declarava um pedaço de papel na bandeja. Rose sentiu-se culpada pelos sanduíches da Wendy's. - Você tinha razão sobre a comida. É boa - disse, sorrindo timidamente para o marido e girando uma tigela de sobremesa na mão. - O que é isso? - Ashure - disse Mustafá, com voz estranhamente constrita enquanto olhava para as passas brancas que decoravam a pequena tigela.- Era a minha sobremesa preferida. Tenho certeza de que mamãe fez um monte disso quando soube que eu estava indo. Por mais que evitasse rememorar tais detalhes, Mustafá não conseguia apagar a visão de dúzias de tigelas de vidro com ashure nas prateleiras da geladeira, prontas para serem distribuídas aos vizinhos. Diferente das outras sobremesas, o ashure era sempre feito tanto para a própria família quanto para outras. Assim, tinha de ser preparado em grandes quantidades, cada tigela um epítome de sobrevivência, solidariedade e abundância. O fascínio de Mustafá com a sobremesa tornara-se visível quando, aos sete anos, ele fora pego devorando as tigelas que lhe haviam sido confiadas para que as

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levasse de porta em porta. Ainda se lembrava de esperar no silêncio do edifício de apartamentos vizinho ao konak deles com a bandeja na mão. Havia meia dúzia de tigelas na bandeja, cada qual para uma vizinha diferente. Primeiro pescou as passas salpicadas sobre cada tigela, achando que se comesse apenas aquelas ninguém notaria. Mas depois passou às sementes de romã e às amêndoas fatiadas usadas para enfeitar, e antes de se dar conta, havia comido tudo, devorando seis tigelas de uma só vez. Então escondeu as tigelas vazias no jardim. As vizinhas geralmente guardavam os recipientes até os devolverem com algum alimento que preparassem, geralmente outro ashure. Assim, levou algum tempo para que a família Kazanci descobrisse o crime de Mustafá. Ao descobri-lo, embora visivelmente envergonhada pela gula do filho, sua mãe não o censurou, mas passou a guardar na geladeira, de vez em quando, tigelas extras de ashure só para ele. - O que gostaria de beber, senhor? - perguntou a comissária de bordo em turco, meio inclinada para Mustafá. Tinha os olhos azul-safira e usava um colete exatamente do mesmo tom, que tinha na parte de trás nuvens gorduchas de cor pastel. Por uma fração de segundo, Mustafá hesitou, não porque não soubesse o que desejava beber, mas por não saber em que língua responderia. Após tantos anos, sentia-se muito mais confortável falando inglês do que turco. Apesar disso, parecia igualmente pouco natural e até mesmo arrogante falar em inglês com outro turco. Mustafá Kazanci tinha até então resolvido essa dificuldade pessoal evitando comunicar-se com turcos nos Estados Unidos. Contudo, o distanciamento em relação a seus compatriotas tornava-se dolorosamente visível em encontros comuns como aquele. Olhou ao redor como se procurasse uma saída; não tendo encontrado nenhuma, finalmente respondeu em turco: - Suco de tomate, por favor. - Não temos suco de tomate. - A comissária sorriu vivamente para ele, como se achasse aquilo muito engraçado. Era uma daquelas funcionárias dedicadas que nunca perdem a fé nas instituições em que trabalham, capazes de dizer não com o mesmo rosto alegre. - Gostaria de um bloody mary? Mustafá pegou a espessa mistura escarlate e encostou-se na poltrona, a testa vincada de pensamentos, os olhos castanho-claros distantes. Só então notou Rose olhando-o fixamente, estudando cuidadosa e apreensivamente seus movimentos. - O que foi, meu bem? Você parece nervoso. É porque vai ver sua família? - perguntou ela, com uma expressão sombria. Como aquela viagem já fora discutida exaustivamente, não havia muito mais o que dizer. Rose sabia

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que Mustafá não tinha a menor vontade de voltar a Istambul, apenas cedera a seu pedido inflexível para irem juntos. Embora apreciasse isso, não era gratidão o que sentia pela aquiescência do marido. "Uma mulher casada com um homem há 19 anos tem o direito de lhe pedir um ato de bondade uma vez na vida", pensou consigo mesma, segurando a mão de Mustafá e apertando-a ternamente. Esse gesto pegou Mustafá desprevenido. Uma imensa melancolia o invadiu enquanto se aproximava da mulher. Com ela, aprendera duas coisas fundamentais sobre o amor: primeiro que, ao contrário do que os românticos argumentam tão pomposamente, o amor era mais um caminho gradual do que um súbito florescer à primeira vista; e, segundo, que ele era capaz de amar. Com os anos, acostumara-se a amar a mulher e encontrara nela uma medida de tranqüilidade. Embora às vezes muito exigente e difícil, Rose era sempre fiel a sua essência, decifrável e previsível; um diagrama claro de energias cujas reações lhe eram todas familiares. Nunca o desafiara, assim como jamais contestara a vida realmente, tendo um talento natural para se adaptar ao ambiente à sua volta. Rose era um amálgama de forças em choque operando sozinhas sem dificuldade, puramente fora do tempo e, por isso, fora de genealogias familíares. Depois de encontrá-la, os tormentos familiares que o assombravam tinham se transformado num amor sem elasticidade mas fácil, talvez o mais próximo que ele poderia chegar do verdadeiro amor. Rose talvez não tivesse sido a esposa perfeita no primeiro casamento, onde não se adaptara a uma extensa família armênia, mas exatamente pela mesma razão, era o abrigo ideal para um homem como ele, tentando fugir de sua imensa família turca. - Você está bem? - repetiu Rose, com uma leve aspereza desta vez. E naquele momento uma onda de ansiedade varreu Mustafá Kazanci. Ele empalideceu, como se o ar que respirasse fosse insuficiente. Não deveria estar naquele avião. Não deveria ir a Istambul. Rose deveria ir sozinha, pegar a filha e voltar para casa... casa. Como ansiava por voltar ao Arizona agora, onde tudo tinha a fluência suave da familiaridade! - Acho que preciso andar um pouco - disse Mustafá, entregando seu copo a Rose e levantando-se para controlar o que rapidamente se tornava um acesso de pânico. - Não é bom ficar sentado por horas a fio.Enquanto caminhava para os fundos do avião pelo corredor estreito, lançou um olhar aos passageiros em cada fileira; alguns turcos, alguns americanos e alguns de outras nacionalidades. Empresários, jornalistas,

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fotógrafos, diplomatas, escritores de turismo, estudantes, mães com bebês recém-nascidos, estranhos com quem se compartilha o mesmo espaço e pode-se até compartilhar o mesmo destino. Alguns liam jornais ou livros, alguns assistiam ao Rei Artur matar seus inimigos num videogame fornecido pela companhia aérea para o vôo, enquanto outros dedicavam-se às palavras cruzadas. A dez fileiras atrás, uma morena bronzeada de seus trinta e poucos anos olhou-o intensamente. Mustafá desviou os olhos. Ainda era um homem bonito, não apenas pelo corpo alto e forte, os traços marcados e o cabelo muito negro, como também por suas maneiras educadas e um modo chique de se vestir. Embora tivesse chamado a atenção de inúmeras mulheres em sua vida, jamais traíra a esposa. O irônico era que quanto mais se mantinha longe das outras mulheres, mais estas se sentiam atraídas por ele. Ao passar pela fileira da mulher morena, Mustafá notou, constrangido, que ela usava uma saia ousadamente curta e cruzara as pernas de modo tal que talvez fosse possível vislumbrar sua calcinha. Não gostava da sensação desconcertante que a minissaia lhe causava; lembranças pesadas e espinhosas de que gostaria de se livrar de uma vez por todas; a visão de sua irmã mais nova, Zeliha, que sempre gostou dessas saias, palmilhando as pedras redondas de Istambul com passos dolorosamente apressados, como se quisesse fugir da própria sombra. Enquanto se impelia para frente, os olhos de Mustafá se lançaram em outra direção para evitar olhar o que não devia. Agora que chegara à meia-idade, cogitava às vezes se gostava mesmo de mulher. Além de Rose, é claro. Mas Rose não era uma mulher. Rose era Rose. No geral, fora um bom padrasto para a filha dela. Embora amasse verdadeiramente Armanoush, ele próprio não quisera ter filhos. Nada de filhos para ele. Ninguém sabia que, no fundo de seu coração, achava que não os merecia. Não tinha certeza se poderia ser um bom pai. A quem estava tentando enganar? Daria um pai horrível. Pior até do que o seu próprio pai.Lembrou-se do dia em que ele e Rose se conheceram, talvez um encontro não muito romântico num corredor de supermercado, com ele tendo em cada mão uma lata de grãos-de-bico. Tinham falado muitas vezes sobre aquele dia pelos anos afora, divertindo-se com cada detalhe de que se lembravam. Mesmo assim, as lembranças de cada um eram muito diferentes: Rose sempre evocava a timidez e o nervosismo de Mustafá, enquanto ele recordava o fulgurante cabelo louro dela e sua intrepidez, que inicialmente o intimidara. Nunca mais se sentiu intimidado por Rose de novo. Pelo contrário, estar com a mulher era como se deixar levar por

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uma corrente serena, sabendo que jamais o arrastaria para baixo, um fluxo imperturbável sem qualquer surpresa ao longo do caminho. Não precisou de muito tempo para começar a amá-la. De manhã, Mustafá observava Rose labutar na cozinha. Ambos adoravam a cozinha, embora por motivos completamente diferentes. Rose a adorava por gostar muito de cozinhar, e isso a fazia sentir-se à vontade. Quanto a Mustafá, simplesmente gostava de observá-la em meio aos múltiplos detalhes comuns: as toalhas de papel que combinavam com os azulejos, as canecas suficientes para uma tropa, a poça de calda de chocolate endurecendo sobre a bancada. Gostava principalmente de ver as mãos de Rose fatiando, mexendo, cortando e picando. Observá-la fazendo panquecas era uma das visões mais apaziguantes que a vida lhe concedera. No início, sua mãe e irmãs mais velhas lhe escreviam com freqüência, perguntando como estava indo, quando iria visitá-las. Faziam perguntas das quais ele diligentemente fugia; mas elas continuavam mandando cartas e presentes, sobretudo sua mãe. Durante todos aqueles vinte anos, Mustafá vira a mãe de novo apenas uma vez, não em Istambul, mas na Alemanha. Quando fora a Frankfurt para uma conferência de geólogos e gemólogos, ele lhe pedira que fosse ao seu encontro. Então mãe e filho se reencontraram na Alemanha, como os refugiados políticos que não podiam voltar à Turquia haviam feito por tantos anos. Naquela época, porém, sua mãe estava tão desesperada para vê-lo que nem questionou o motivo dele não ir a Istambul. Era espantoso 301 como as pessoas conseguiam acostumar-se rapidamente a circunstâncias tão anormais. Quando chegou à parte traseira do avião, Mustafá Kazanci parou em frente aos toaletes, atrás de dois homens na fila, e deixou escapar um suspiro ao pensar na noite anterior. Rose não sabia que, voltando do trabalho para casa, ele parara numa esquina em Tucson que vinnha secretamente visitando de vez em quando nos últimos dez anos. O santuário de El Tiradito. Era um local modesto e fora de mão no centro de Tucson, o único santuário dos Estados Unidos dedicado à alma de um pecador, como relatava a placa histórica que havia ali. A alma de um excomungado, um tiradito, um proscrito. Atualmente ninguém conhecia muito os detalhes da história, que remontava a meados do século XIX: quem fora exatamente o pecador, qual fora exatamente o seu pecado e, o que era mais significativo, como terminara com um altar dedicado a seu nome imoral. Os imigrantes mexicanos sabiam mais sobre ele do que os outros, sendo também os menos inclinados a partilhar o conhecimento com os forasteiros. No entanto, Mustafá Kazanci

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não estava interessado em investigar os detalhes históricos. Bastava-lhe saber que El Tiradito era um bom homem, pelo menos não pior do que os outros, e mesmo assim cometera feitos terríveis no passado, erros suficientemente baixos para transformá-lo num pecador. Contudo, fora poupado, e lhe haviam dado o que raramente davam a um mortal um altar. Assim, na noite anterior, Mustafá visitara o altar novamente, atormentado por seus pensamentos. Embora pequena, Tucson era rica quando se tratava de lugares santos, e ele poderia ter ido a uma mesquita se desejasse. A verdade é que não era um homem religioso, jamais o fora. Não precisava de templos ou de livros sagrados. Não ia a El Tiradito para cultuar, mas sim porque era o único lugar santo que não o obrigava a se transformar em outra pessoa para ser acolhido. Ia porque gostava do local, nada pretensioso e, no entanto, imponente e gótico ao mesmo tempo. A mistura de espíritos mexicanos com costumes americanos, as dúzias de velas e milagros ali colocados por diferentes pessoas, talvez também pecadoras, os papéis dobrados nas paredes onde os visitantes confessavam e escondiam seus pecados; tudo aquilo o atraía em seu atual estado de espírito. - O senhor está bem? - Era a comissária de bordo dos olhos de safira. Mustafá fez um breve aceno afirmativo com a cabeça e respondeu desta vez em inglês: - Sim, obrigado. Estou bem. Só um pouco enjoado...*SOB A LUZ AVELUDADA DO POSTE DA RUA entrando pelas cortinas, tia Zeliha jazia derreada com o celular ainda na mão, a garrafa de vodca apoiada no queixo e o cigarro ainda aceso na outra mão.Tia Banu entrou no quarto pé ante pé. Vigorosamente, bateu no cobertor em chamas e apagou o cigarro no cinzeiro. Pegou o celular, colocou-o sobre a cômoda e escondeu a garrafa de vodca debaixo da cama; então, pôs a irmã sob as cobertas e apagou a luz.Abriu as janelas. Sentiu o ar revigorante, o cheiro forte e salgado de uma brisa marinha. Enquanto a fumaça e o cheiro no quarto eram varridos para fora, tia Banu olhou o rosto pálido da irmã mais jovem, de aparência mais cansada do que sua idade poderia supor. Na pálida luz amarelada infiltrando-se do lado de fora, o rosto de Zeliha fulgurava incandescente, como se o álcool e a tristeza lhe dessem uma radiância raramente encontrada na natureza. Tia Banu beijou-a suavemente na testa, a compaixão marejando seus olhos. Então olhou para os seus dois gênios, um no ombro direito e outro no esquerdo, que observavam cuidadosamente

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cada movimento seu.- O que vai fazer, minha ama? - perguntou sr. Amargo, com um toque de satisfação triunfante na voz. Não se dava ao trabalho de esconder o prazer de ver sua ama tão desamparada e angustiada. Sempre o divertia ver a impotência dos poderosos.Tia Banu apenas franziu as sobrancelhas como resposta.

Sr. Amargo então pulou de seu ombro e sentou-se junto à cama, perigosamente perto de tia Zeliha, que dormia profundamente. Seus olhos brilharam ante a idéia que acabara de lhe ocorrer. Asperamente agarrou a ponta do lençol, quase acordando tia Zeliha, e amarrou o lençol na cabeça como um véu.- Vou lhe dizer uma coisa - declarou sr. Amargo, com as mãos na cintura, a voz afinada num tom feminino, imitando alguém. - Há coisas neste mundo...Tia Banu instantaneamente reconheceu quem ele imitava e sentiu um calafrio na espinha.- Há coisas tão horríveis neste mundo das quais as pessoas boas, que Alá abençoe a todas, não têm absolutamente a menor idéia. E isso é ótimo, posso lhe afirmar; é bom que não saibam nada sobre essas coisas porque isso prova que têm bom coração. Caso contrário não seriam boas, não é?Mas se você algum dia pisar numa mina de maldade, não será a uma dessas pessoas que vai pedir ajuda.Tia Banu olhou fixamente sr. Amargo com temor e reverência. Em seguida, o gênio tirou o lençol da cabeça, pulou novamente para a posição anterior, encarando o local de onde havia falado, pronto para representar o interlocutor da primeira voz em seu diálogo imaginário.Para imitar a segunda voz, ele agarrou as passas brancas que tia Zeliha deixara na noite anterior, e magicamente arrumou-as no ar num segundo, fazendo com elas um comprido colar e várias pulseiras. Então colocou o colar e as pulseiras e sorriu. Não era difícil imaginar a quem estava imitando agora, já que era fácil reconhecer o estilo de Asya.Tomado pela magia de sua criatividade narcisista, sr. Amargo continuou:- E você acha que eu pediria a ajuda de um gênio mau, tia?!Sr. Amargo tirou o colar e as pulseiras, pulou para a cama, pôs de novo na cabeça o lençol sobre Zeliha e replicou num tom mais grave:- Talvez sim, querida. Vamos esperar que nunca precise.- Chega! O que é isso? - interrompeu furiosamente tia Banu, embora

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soubesse a resposta.Isso - sr. Amargo curvou-se para frente e fez uma reverência como um humilde ator ante aplausos estrondosos no final da peça - foi um momento da História. Uma pequenina fatia de memória. Com perversidade nos olhos, ele então se esticou novamente e levantou a voz: - Foj um lembrete para você em suas próprias palavras, minha ama! Tia Banu sentiu um medo tão grande que todo o seu corpo estremeceu. Havia tanta malevolência no olhar da criatura que ela não conseguia entender por que não lhe dizia para ir embora de sua vida de uma vez por todas. Como podia ser atraída para ele assim, como se partilhassem um segredo impronunciável? Nunca tia Banu tivera tanto medo de seu gênio. Nunca tivera tanto medo dos atos que ela própria poderia cometer.

***16ÁGUA DE ROSAS

- LÁ SE VAI OUTRO MAU-OLHADO! Você ouviu aquele som agourento? Craque! Ah, fez um eco no meu coração! Isso foi o mau-olhado de alguém, malvado e invejoso. Que Alá possa proteger a todos nós! Assim exclamou Petite-Ma na manhã de domingo à mesa do café-da-manhã, enquanto um samovar fervia no canto da sala. Enquanto Sultão V ronronava sob a mesa à espera de outro pedaço de queijo feta e o candidato despedido naquela semana da versão turca de "O Aprendiz" aparecia na TV numa entrevista exclusiva anunciando o que dera errado e por que não deveria ter sido demitido, um copo de chá rachou nas mãos de Asya. Aquilo aconteceu tão inesperadamente que ela teve um sobressalto. Como sempre, servira até a metade o copo de vidro com o chá escuro já pronto e completara-o com água quente até a borda; então, quando estava prestes a tomar um gole, ouvira um craque. O copo de vidro rachara de cima a baixo num ziguezague, como uma fenda agourenta surgindo na face da terra abalada por um violento terremoto. Num segundo, o chá dentro do copo começou a vazar e uma poça marrom-escura formou-se na toalha de renda. - Estão com mau-olhado em você? - perguntou tia Fende espiando Asya com suspeita. - Mau-olhado em mim? - Asya riu amargamente. - Aposto que sim! Todos nessa cidade têm inveja da minha beleza! - Há um artigo no jornal de hoje sobre uma garota de 18 anos que caiu de joelhos e morreu enquanto atravessava a rua. Acho que

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pode ter sido mau-olhado disse tia Fende, com medo real. - Obrigada pelo apoio moral - disse Asya. Mas seu sorriso transformou-se rapidamente numa testa franzida quando notou que sua tia maluca agora estava de boca aberta diante do boneco e da boneca de neve, que serviam para armazenar sal e pimenta. Ontem mesmo Asya os escondera num guarda-louça, na esperança de que ninguém os encontrasse por pelo menos um mês. E lá estavam eles na mesa novamente. Os dois bonecos de cerâmica não só eram vagabundos e kitsch - e lamentavelmente duráveis - como também tão semelhantes que não se podia distinguir qual era o do sal e qual era o da pimenta. - Queria que Petite-Ma estivesse melhor de saúde, ela poderia derramar um pouco de chumbo para você - observou tia Banu, com a expressão mais irritada que Asya já vira em seu rosto. Embora fosse sem dúvida a mais experiente da casa nos assuntos crepusculares e paranormais, tia Banu não estava autorizada a derramar chumbo, já que isso requeria iniciação como praticante, um direito que lhe fora negado no passado. Estranhamente, há quase dez anos, ainda nos primeiros estágios do Alzheimer e decidindo que era o momento de escolher a próxima mulher na família a manipular o segredo de derramar chumbo, Petite-Ma resolvera determinar como sua sucessora não tia Banu, como todas naturalmente esperavam, e sim a maior agnóstica de todos os tempos, tia Zeliha, decisão que causou considerável tumulto na família.- Está brincando? - observou Zeliha ao ouvir a decisão da velha. - Não posso derramar chumbo. Não sou nem crente, sou agnóstica! - Não sei o que essa palavra significa, mas posso dizer que isso não é bom - retrucou Petite-Ma. - Você tem o talento. Aprenda o segredo. - Por que eu? - perguntou Zeliha, enquanto se forçava a considerar a possibilidade. - Por que não minha irmã mais velha? Banu ficará muito feliz de aprender o segredo. Eu sou a última pessoa a quem você deveria ensinar mágica. - Isso não tem nada a ver com mágica. O Alcorão nos proíbe de praticar magia! - retorquiu Petite-Ma, levemente afrontada. - Você é a pessoa certa. Tem determinação, espírito e fúria. - Fúria? Mas para que precisam de fúria? Eu poderia ser a candidata perfeita para derramar xingamentos em gente detestável, mas duvido que eu seja de alguma utilidade para ajudar os outros. - Zeliha sorriu. - Não subestime o bem que há em você - replicou Petite-Ma. Então Zeliha fez a observação que encerrou o assunto de uma vez por todas: - Não sou a pessoa certa para a tarefa. Posso ser uma agnóstica confusa, mas pelo menos tenho tido culhão para continuar assim! - Lave a boca com sabão! - disparou a

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avó Gülsüm severamente ao escutar a conversa. Depois daquilo, tia Zeliha evitou totalmente o assunto. Metade da família era adepta de Kemal Atatürk, ferrenhamente secularista, e a outra metade, muçulmana praticante. Embora os dois lados entrassem constantemente em choque, davam um jeito de coexistir sob o mesmo teto. A paranormalidade, atravessando divisões ideológicas, era considerada tão normal em suas vidas quanto consumir pão e água diariamente. Sendo esta a moldura geral, tia Zeliha escolhera implicar igualmente com os dois lados.

Devido a isso, mesmo depois daqueles anos todos, Petite-Ma continuou sendo a única derramadora de chumbo na residência Kazanci. Nos últimos tempos, entretanto, sentira-se obrigada a parar a prática ao se pegar, certo dia, com uma panela fervente de chumbo derretido nas mãos sem saber o que fazer com ela. - Por que me entregaram essa panela fervendo? - perguntara Petite-Ma, num pânico visível. As outras delicadamente pegaram a panela de suas mãos e, a partir dali, a tarefa jamais lhe foi confiada de novo. No entanto, agora que o assunto surgia novamente, todas as cabeças se voltaram para a velha a fim de observar se estaria acompanhando a conversa. Sendo o objeto da atenção geral à mesa do café-da-manhã, PetiteMa ergueu a cabeça e olhou a família com curiosidade, enquanto continuava a mastigar alto um pedaço de sucuk. Engoliu o que mastigava, arrotou e, justamente quando parecia voltar novamente para seu próprio mundo, chocou a todas com a nitidez de sua lembrança. - Asya, minha querida, vou derramar chumbo para você e desfazer qualquer mau-olhado que tenham lançado. - Obrigada, Petite-Ma. - Asya sorriu. Quando Asya era garota, Petite-Ma derramara chumbo derretido com freqüência para afastar qualquer mau-olhado sobre ela. Na verdade, dada a criança débil que fora outrora, Asya parecia precisar de um empurrãozinho para se estabelecer em sua vida mortal. Por alguma razão, costumava tropeçar e cair freqüentemente, de cara no chão, cortando todas as vezes o lábio inferior. Suspeitando de mau-olhado e não dos passos ainda desequilibrados da criança, elas a entregaram a Petite-Ma. No início a cerimônia tinha sido um jogo divertido para Asya, engraçado e animado, além de um certo modo gratificante, já que ficava lisonjeada de ser o centro de tanta atenção. Lembrava que sentia grande prazer nas façanhas paranormais quando criança, quando era ainda jovem demais para ter fé, não necessariamente na mágica, mas na capacidade de sua família em comandar o destino. Costumava apreciar cada detalhe do ritual:

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sentar-se de pernas cruzadas no tapete mais bonito da casa com um cobertor estendido sobre a cabeça, sentir-se protegida e bem escondida naquela tenda peculiar, escutar preces vindas de todos os lados e, finalmente, aquele som fervilhante, uma espécie de chiado quando Petite-Ma derramava chumbo derretido numa panela cheia de água enquanto repetia seguidamente: "Elemterefi kem gozlere Goz edenin gõzüne kzzgin O chumbo solidificava-se rapidamente em formas sempre mutáveis. Caso houvesse algum mau-olhado nas proximidades, um buraco surgiria no chumbo em forma de olho. Até aquele dia, Asya não se lembrava de uma única ocasião em que o olho não aparecesse. Entretanto, embora Asya tivesse crescido vendo tia Banu ler xícaras de café e Petite-Ma afastar o mau-olhado, posteriormente herdara o agnosticismo cético da mãe. Deduzira que tudo se resumia a uma questão de interpretação. Se você estivesse procurando unicórnios roxos, não levaria muito tempo para começar a vê-los por toda parte. Do mesmo modo, se houvesse uma relação entre o material divinatório - xícaras de café ou chumbo derramado - e o processo de interpretação, não era mais profunda do que a existente entre o deserto e uma lua do deserto. Embora a última precisasse do primeiro como um cenário de pano de fundo, indubitavelmente tinha uma existência em si. Uma lua do deserto existia fora do deserto. Da mesma forma, o que o olho humano via num pedaço de chumbo cinzento não podia ser reduzido à forma que se materializava lá. Se você olhasse por muito tempo e com devoção suficiente, poderia até esbarrar num unicórnio roxo ali. Contudo, apesar de sua incredulidade resistente, Asya não pretendia objetar agora que Petite-Ma se lembrara do procedimento. Sua afeição por Petite-Ma era profunda demais para recusar a oferta. - Tudo bem. Asya deu de ombros. Acreditava também que a velha fosse esquecer a questão em poucos minutos. - Depois do café-da-manhã você vai derramar chumbo para mim, como nos velhos tempos. A porta do banheiro no andar de baixo abriu-se e Armanoush juntou-se a elas, parecendo insone e exausta, um desalento nos belos olhos. Era uma Armanoush diferente, pouco conectada com o mundo à sua volta e, de certo modo, mais velha. Ela entrou lenta e cautelosamente. - Sentimos muito pela perda da sua avó - disse tia Zeliha após um breve silêncio. - Nossas sinceras condolências. - Obrigada - respondeu Armanoush, evitando os olhares de todas. Pegando uma cadeira vazia, sentou-se entre Asya e tia Banu. Asya a serviu de chá, enquanto tia Banu colocava em seu prato ovos, queijo e

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geléia de damasco feita em casa. Também lhe deram o oitavo simit para não quebrar o costume de comprar oito simits de um vendedor ambulante em todas as manhãs de domingo. Armanoush, porém, olhou com indiferença para a comida. Mexeu distraidamente o chá por alguns segundos e virou-se para tia Zeliha: - Posso ir ao aeroporto com vocês pegar minha mãe? - Claro, vamos juntas - disse tia Zeliha, e traduziu as palavras para as outras. Eu também vou - interveio avó Gülsüm. - Está bem, mamãe, vamos juntas - disse tia Zeliha. Asya soltou: - Eu também. - Nada disso, mocinha. Você fica aqui - disse tia Zeliha com um tom decidido. - Petite-Ma vai derramar chumbo para você. Asya olhou-a fixamente como se dissesse: "Mas que diabo?" Por que fora deixada de fora? A democracia e a liberdade de discurso naquela casa eram reservadas a todas, menos a ela. Quando se tratava dela, o regime doméstico automaticamente se metamorfoseava em puro totalitarismo. Asya suspirou com uma expressão que beirava o desespero. Então, sem saber por quê, mas de algum modo impelida por um súbito impulso de apimentar sua comida, agarrou o galheteiro. Uma incerteza fugaz lhe atravessou o rosto enquanto ela largava o feio boneco de neve e agarrava a feia boneca de neve, deixando cair sal demais nos últimos bocados de seus ovos mexidos. Durante o resto do café-da-manhã, Asya permaneceu distante e reservada. Observando-a de longe, tia Banu ergueu-se depois de algum tempo, aproximou-se e perguntou com a voz cheia de compaixão:- Por que não vamos fazer compras, minha querida? Podemos sair depois do café e voltar em duas horas. Vai ser divertido! Mas primeiro... - Tia Banu animou-se no meio da frase. - Venha até a cozinha para me ajudar a pôr o ashure nas tigelas. Asya concordou com a cabeça, rendendo-se. "Mas que diabo?", pensou ela. "Mas que diabo...?" A COZINHA TINHA O CHEIRO DE UM RESTAURANTE popular numa tarde cheia de fim de semana. O cheiro da canela superava pungentemente todos os outros. Asya pegou uma concha e começou a distribuir o asbure, retirando-o de uma enorme panela e passando-o a pequenas tigelas de vidro, uma concha e meia em cada. Perguntava-se por que tia Zeliha não quisera levá-la ao aeroporto. Espaço no carro havia. Estaria tentando mantê-la longe dos visitantes? Notou que a mãe não se mostrou empolgada com a notícia da volta de Mustafá depois de vinte anos.- Posso ajudar?Quando se virou, viu que Armanoush a observava. - Claro, por que não? Obrigada. - Asya lhe entregou uma vasilha com amêndoas fatiadas. -

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Poderia polvilhar um pouco disso em cada tigela? Nos dez minutos seguintes trabalharam lado a lado enquanto trocavam palavras breves e pungentes sobre avó Shushan. - Vim a Istambul porque achei que, se fizesse uma viagem sozinha à cidade da minha avó, poderia entender melhor minha herança familiar e meu lugar no mundo. Acho que queria conhecer os turcos para absorver melhor o que significava ser armênia. Essa viagem toda era uma tentativa de me ligar ao passado da minha avó. Ia contar a ela que tínhamos procurado sua casa... E agora ela se foi... - Armanoush começou a chorar. - Não pude nem vê-la uma última vez.

Asya abraçou Armanoush de modo desajeitado, já que não tinha o hábito de demonstrar amor e compaixão. - Sinto muito por sua perda - disse. - Antes que vá embora de Istambul, podemos procurar outras recordações do passado da sua avó. Podemos ir àquele lugar de novo e conversar com outras pessoas. Quem sabe descobrimos alguma coisa? Armanoush negou com a cabeça. - Obrigada, mas quando mamãe chegar vai ser difícil andar por aí sem ela. É superprotetora demais. Ficaram quietas ao ouvirem passos atrás delas. Era tia Banu, que vinha verificar como estavam se saindo na cozinha. A tia observou-as enfeitando as sobremesas por algum tempo. Armanoush conhece a história do ashure? - perguntou ela sorrindo, mais para começar uma história do que para ouvir uma resposta. Enquanto as moças trabalhavam juntas, abrindo romãs e polvilhando de canela e amêndoas fatiadas as dúzias de tigelas de ashure alinhadas na bancada, tia Banu começou: - Outrora havia, outrora não havia uma terra não muito distante, onde as atitudes dos seres humanos eram desprezíveis e a época muito ruim. Depois de observar essa infelicidade por algum tempo, Alá finalmente enviou para lá um mensageiro, Noé, a fim de corrigir as atitudes das pessoas e lhes dar uma chance de arrependimento. Entretanto, quando Noé abriu a boca para pregar a verdade, ninguém o escutou; suas palavras foram interrompidas por xingamentos. Chamaram-no de maluco, lunático, errático... Asya lançou um olhar divertido à tia, sabendo como atingi-la: - Mas foi principalmente a traição da esposa que arrasou Noé, não foi, tia? A esposa de Noé não se juntou às fileiras dos pagãos? - É verdade, aquela serpente na grama! - replicou tia Banu, dividida entre narrar adequadamente uma história religiosa e apimentá-la com algumas observações da própria lavra. - Noé tentou arduamente convencer a esposa e seu povo por oitocentos anos... E não me perguntem por que levou tanto tempo - aconselhou tia Banu.

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- O tempo é como uma gota no oceano, não se pode comparar uma gota a outra para ver qual é a maior. Portanto, Noé passou oitocentos anos orando por seu povo, tentando conduzi-lo ao caminho certo. Certo dia, Deus lhe enviou o anjo Gabriel. "Construa um navio", sussurrou o anjo, "e ponha nele um par de cada espécie". Traduzindo uma história que não precisava de tradução, Asya diminuiu o tom de voz, pois essa era a parte que menos apreciava. - Então, na arca de Noé havia pessoas boas de todas as crenças - continuou tia Banu. - Davi estava lá, assim como Moisés, Salomão, Jesus e, que a paz esteja com ele, Maomé. Assim equipados, começaram a esperar. Logo chegou o dilúvio. Alá ordenou: "Ó céu! É chegada a hora! Despeje suas águas. Não se retenha mais. Mande sobre eles sua água e sua ira!" Então ordenou à terra: "Ó terra, retenha sua água, não a absorva!" A água subiu com tanta rapidez que ninguém fora da arca conseguiu sobreviver. Então a voz da narradora aumentou de tom, pois essa era a parte preferida de Asya. Ela gostava de visualizar o dilúvio mentalmente, devastando aldeias e civilizações, assim como todas as memórias indesejadas do passado. - Por incontáveis dias eles navegaram e navegaram, era tudo água por toda parte. Logo a comida tornou-se escassa. Não havia alimentos suficientes para uma refeição. Diante disso, Noé ordenou: "Tragam tudo que tiverem." Assim o fizeram, animais e humanos, insetos e pássaros, pessoas de crenças diferentes trouxeram o pouco que lhes tinha sobrado. Cozinharam todos os ingredientes juntos e assim prepararam uma gigantesca panela de ashure. - Tia Banu sorriu orgulhosamente para a panela no fogão, como se esta fosse a mesma da lenda. - Eis a história desta sobremesa. Segundo tia Banu, todos os fatos significativos da História do mundo ocorreram no dia do ashure. Fora naquele dia que Alá aceitara o arrependimento de Adão. Assim como, no mesmo dia, Yunus fora libertado pelo golfinho que o engolira, Rumi confrontado por Shams, Jesus levado para os céus e os Dez Mandamentos entregues a Moisés.- Peça a Armanoush para nos dizer qual é a data mais importante dos armênios - observou tia Banu, pensando que havia uma boa chance de ser aquele mesmo dia. Logo que a pergunta foi traduzida, Armanoush respondeu: - O genocídio. - Acho que não se adéqua ao seu padrão. - Asya sorriu para a tia, pulando a tradução. Então tia Zeliha apareceu na cozinha segurando a bolsa. - Muito bem, passageiros para o aeroporto, hora de ir! - Vou com vocês! - Asya depositou a concha na bancada. - Já falamos sobre isso - respondeu tia Zeliha atonicamente. Não parecia

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muito uma reação dela. Um toque rouco e assustado infiltrara-se em sua voz, como se outra falasse por sua boca. - Você fica em casa, mocinha - decretou a estranha. O que mais aborreceu Asya foi o fato de não conseguir decifrar a expressão de tia Zeliha. Devia ter feito algo de errado para chatear a mãe, mas não tinha idéia do que fosse a não ser, claro, sua própria existência. - O que fiz pra ela dessa vez? - Asya levantou as mãos em desespero depois que tia Zeliha e Armanoush saíram.- Nada, querida. Ela ama muito você - murmurou tia Banu. Você fica comigo e com o gênio. Vamos acabar de enfeitar o ashure e depois faremos compras. Mas Asya não tinha vontade de fazer compras. Com um suspiro, pegou um punhado de sementes de romã e as foi espalhando uniformemente nas tigelas ainda não enfeitadas, como se deixasse uma trilha atrás de si para guiar até em casa a criança sem sorte de um conto de fadas. Ocorreu-lhe que as sementes de romã poderiam ter sido minúsculos e preciosos rubis em outra vida. - Tia - virou-se para Banu -, o que aconteceu com o broche de ouro que você tinha? O broche de romã, lembra? Onde está ele? Tia Banu empalideceu enquanto sr. Amargo, em seu ombro esquerdo, sussurrava-lhe ao ouvido: "Quando lembramos as coisas de que nos lembramos? Por que perguntamos o que perguntamos?"

O DILÚVIO DE NOÉ, EMBORA ATERRORIZANTE, começou suave e silencioso, com algumas gotas de chuva. Gotas esporádicas, anunciando a catástrofe por vir, mensagem que ninguém notou. Nuvens sombrias e escuras amontoavam-se no céu, tão cinzentas e pesadas que pareciam carregadas de chumbo derretido cheio de maus-olhados. Os buracos nas nuvens eram um imperturbável olho celestial derramando uma lágrima por cada pecado cometido na terra. Contudo, o dia em que tia Zeliha fora estuprada não estava chuvoso. Na verdade, não havia uma só nuvem no céu azul brilhante. Ela se lembraria do céu naquele dia agourento por anos a fio, não porque o tivesse encarado para orar ou pedir ajuda a Alá, mas sim porque durante a luta houve um momento em que sua cabeça ficou pendurada para fora da cama. Embora incapaz de se mexer sob o peso dele, incapaz de continuar lutando, seu olhar inadvertidamente fixou-se no céu, notando ali um balão de propaganda que deslizava lentamente, um balão preto e laranja com a palavra KODAK escrita em letras garrafais. Zeliha estremeceu ante a idéia de uma câmera colossal batendo fotos de tudo que acontecia lá embaixo naquele momento. Uma câmera Polaroid fotografando um estupro no quarto de um konak em Istambul. Estava sozinha em seu

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quarto desde o final da manhã, usufruindo a solidão, uma oportunidade rara na casa. Quando era vivo, seu pai não permitia que ninguém fechasse as portas de seus quartos. A privacidade era sinônimo de atividade suspeita; tudo tinha de ser visível, em aberto. O único lugar em que se podia trancar a porta era o banheiro, e mesmo assim alguém batia na porta se o ocupante permanecesse ali por tempo demais. Só depois da morte do pai Zeliha pôde fechar a porta do quarto e recolher-se à sua privacidade. Nem as irmãs nem a mãe compreendiam sua necessidade de isolar-se do mundo.

De vez em quando, Zeliha imaginava como seria fabuloso mudar-se e ter um canto só seu. No início daquela manhã, as mulheres Kazanci haviam saído de casa para visitar o túmulo de Levent Kazanci; Zeliha, contudo, pedira licença para ficar. Não queria ir ao cemitério com toda a família. Preferia ir sozinha, sentar no chão empoeirado e fazer ao pai várias perguntas que ele deixara sem resposta durante a vida. Por que tinha sempre de ser tão áspero e pouco amoroso com gente do seu próprio sangue? Zeliha também queria lhe perguntar se tinha idéia de quanto seu fantasma ainda as assombrava. Até aquele dia, ainda baixavam a voz durante o dia, com medo de perturbar papai com sua presença. Levent Kazanci não gostava de barulho, especialmente da algazarra das crianças. Quando eram bem pequenos, falavam em sussurros. Ser uma criança Kazanci significava, em primeiro lugar, aprender o significado de pai; não de "papai", mas de "PAI": Proposital Adiamento do Incômodo. O princípio do PAI era aplicado a cada momento da vida deles. Por exemplo, se uma criança tropeçava e se cortava num quarto perto de Levent Kazanci, ela segurava o choro, apertava o ferimento, descia pé ante pé até a cozinha ou o jardim, certificava-se de estar longe o suficiente para não ser ouvida, e somente naquele momento, somente ali soltava um grito de dor. E subjazendo a tudo, havia uma expectativa atraente, mas jamais realizada: a de que se você se comportasse corretamente, papai não se zangaria. Todas as noites, quando o pai chegava do trabalho, as crianças reuniam-se em frente à mesa antes do jantar, à espera de serem inspecionadas. Levent nunca lhes perguntava diretamente se tinham se comportado bem. Em vez disso, alinhava-as como um pequeno regimento e olhava-as fixamente no rosto por um tempo variável: Banu (mais preocupada com os irmãos do que consigo própria, sempre a irmã mais velha protetora), Cevriye (mordendo os lábios para não chorar), Fende

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(os olhos se movendo nervosamente), Mustafá, o filho único (esperando sair daquele grupo miserável, ainda presumindo ser o favorito do pai), e a mais nova, Zeliha (uma sutil amargura empoçando-se em seu coração). Esperavam até que o pai terminasse a sopa e então, aos poucos, pedisse a um, a dois ou a três... ou às vezes, se tinham sorte, a todos ao mesmo tempo, para se sentarem à mesa.

Zeliha não se importava tanto com as broncas constantes do pai ou mesmo com suas surras regulares quanto com aquelas inspeções pré-jantar. Para ela, era doloroso esperar junto à mesa para ser examinada, como se o que tivesse cometido de errado durante o dia estivesse escrito em sua testa com tinta tão invisível que só o pai podia ler. "Por que vocês nunca fazem nada certo?", perguntava Levent Kazanci a cada vez que via algum erro num dos filhos e decidia punir todos por aquilo. Era quase impossível relacionar esse Levent Kazanci ao homem que demonstrava ser quando fora de casa. Quem o encontrasse fora do konak, o teria considerado um ícone de confiabilidade, consideração, coesão e correção, o tipo de homem com quem as amigas mais próximas de suas filhas sonhavam em se casar um dia. Dentro de casa, porém, sua amabilidade era reservada somente aos estranhos. Da mesma forma que tirava os sapatos assim que entrava, calçando os chinelos, ele se transformava naturalmente de um gentil burocrata num pai autoritário. Petite-Ma dissera certa vez que o motivo dele ser tão severo com os filhos era ter sofrido o abandono da mãe quando criança. Às vezes Zeliha não conseguia deixar de pensar que fora uma sorte o pai morrer tão cedo, como todos os homens da família. Alguém tão dominador como Levent Kazanci provavelmente não teria sido feliz em sua velhice, quando se tornasse fraco, doente e precisando da piedade dos filhos. Se fosse ao túmulo do pai, Zeliha gostaria de falar com ele, e se o fizesse, poderia chorar, quebrando-se como um copo de chá sob mau-olhado. Mas a simples idéia de chorar na frente dos outros era suficiente para fazê-la desistir. Prometera-se recentemente que jamais se tornaria uma daquelas mulheres choronas e que, sempre que precisasse chorar, o faria sozinha. Por isso, naquele dia sem chuva, há vinte anos, Zeliha decidira ficar em casa. Passara a maior parte do dia deitada na cama, folheando revistas e devaneando. Junto à cama estava uma navalha, com a qual raspara as pernas, e um vidro de loção de água de rosas, que aplicara depois para suavizar a pele.

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Se sua mãe tivesse visto isso, ficaria extremamente aborrecida. A mãe acreditava que as mulheres deviam depilar com cera os pêlos corporais, jamais raspá-los. Raspar era para os homens. A depilação com cera era um ritual coletivo feminino. Duas vezes por mês as mulheres Kazanci reuniam-se na sala para depilar as pernas. Primeiro derretiam um pedaço de cera no fogão, o que liberava um cheiro doce como o de uma sobremesa. Depois, todas se sentavam no carpete e aplicavam a substância quente e grudenta nas pernas, conversando enquanto o faziam. Quando a cera endurecia, elas a puxavam. Às vezes todas iam para o hamam local e depilavam as pernas lá, na enorme laje de mármore sob o vapor. Zeliha detestava tanto o hamam, aquele espaço totalmente feminino, quanto o ritual da depilação. Preferia raspar as pernas com uma navalha; era rápido, simples e permitia maior privacidade. Zeliha deixou as pernas penderem da cama e examinou-se no espelho da parede oposta. Pôs mais um pouco de loção na palma da mão e, enquanto a passava lentamente na pele, estudou seu corpo cuidadosamente, com admiração. Tinha consciência da própria beleza e não tentava escondê-la. A mãe dizia que as mulheres bonitas tinham de ser duplamente modestas e cuidadosas com os homens. Zeliha achava aquilo pura conversa fiada de uma mulher que jamais fora bonita. Caminhou languidamente pelo quarto e pôs uma fita cassete para ouvir. Era um álbum "à moda turca" de um de seus cantores favoritos, uma transexual com uma voz divina. Ela começara a carreira como homem, desempenhando o papel de herói em filmes melodramáticos; posteriormente, passara por uma cirurgia para se tornar mulher. Sempre usava roupas extravagantes, com acessórios cintilantes e muitas jóias; Zeliha também o faria se tivesse tanto dinheiro. Adorava a cantora e tinha todos os seus discos. Já estava na hora de ela gravar outro álbum, mas recentemente fora banida pelos militares que ainda controlavam o país, embora o golpe de Estado tivesse ocorrido há três anos. Zeliha tinha uma teoria sobre o motivo dos generais não gostarem de uma cantora transexual no palco. 319 - Eles se sentem ameaçados pela presença dela. Piscou para Paxá III, enrodilhado na cama como uma pesada almofada de pêlos muito brancos, observando-a através das fendas estreitas de seus olhos brilhantemente verdes. - A voz dela é tão divina e suas roupas tão chamativas que eles temem que ninguém preste atenção nos generais, com suas vozes roucas e fardas verde-escuras, se ela aparecer na TV. Pode imaginar isso? O que poderia ser pior do que uma ocupação militar? Uma ocupação militar não notada! Foi quando bateram à porta. - Está falando

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sozinha, sua boba? exclamou Mustafá, enfiando a cabeça para dentro do quarto. - Abaixe essa música horrível! Com os olhos cor de avelã brilhando com o fervor da juventude, o cabelo escuro com gel e penteado para trás, Mustafá poderia ser considerado bonito se não fosse o tique que adquirira Alá sabe quando: inclinar a cabeça para a direita ao falar, um movimento mecânico e brusco que se intensificava quando se sentia especialmente nervoso ou no meio de estranhos. Às vezes, outros interpretavam aquilo como timidez, mas Zeliha o considerava apenas um sinal de pura insegurança. Apoiando-se num cotovelo, Zeliha encolheu os ombros. - Ouço o que eu quiser, como quiser. Em vez de brigar com ela ou bater a porta com força, como fizera em várias outras vezes, Mustafá fez uma pausa, como se distraído por um pensamento. - Por que você usa essas saias curtas? A pergunta era tão inesperada que Zeliha olhou-o atônita, só então detectando o véu enevoado de seu olhar fixo. "Este ano, mais do que nunca, ele está se transformando num idiota", pensou. E disse alto a última palavra: - Idiota! Fingindo não ter ouvido, Mustafá examinou o quarto. - Aquela é a minha navalha?- É - confessou ela. - Eu ia colocá-la de novo no lugar. - O que fez com a minha navalha? - Não é da sua conta - disse ela, embora com certa hesitação.- Não é da minha conta? - A testa dele se franziu mais ainda. - Você entra de fininho no meu quarto, rouba minha navalha, raspa as pernas para mostrá-las a todos os homens do bairro e diz que não é da minha conta? Bem, vou lhe dizer uma coisa. Está totalmente enganada, mocinha! É da minha conta fazer você se comportar. Os olhos de Zeliha tornaram-se mais brilhantes. - Por que não faz alguma coisa? Vá se masturbar! - rebateu. Mustafá enrubesceu. Encarou a irmã com uma expressão venenosa. Ficara claro recentemente que Mustafá tinha problemas em se relacionar com mulheres. Embora tendo crescido entre mulheres de todas as idades e estivesse acostumado a ser o centro da atenção delas, sua experiência com o sexo oposto ainda era dramaticamente atrasada em comparação com seus colegas homens. Apesar de ter vinte anos, Mustafá sentia-se ainda preso na perigosa fronteira entre o garoto e o homem. Não conseguia voltar para o primeiro nem pular para o segundo. Só sabia que tal fronteira o deixava nervoso e que não gostava disso nem um pouco. Detestava os desejos carnais de seu corpo e ao mesmo tempo sentia-se atraído por eles. No passado, tivera êxito em conter os impulsos, ao contrário de outros garotos de sua turma na escola, que se masturbavam

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continuamente. Entre os 13 e os 19 anos, conseguira suprimir o que chamava de "aquilo", conseguira não se masturbar. Mas no último ano, após não passar no exame para a faculdade, anos de autopunição e ódio a si mesmo haviam provocado nele uma reação contrária e AQUILO voltara com mais força ainda. AQUILO o dominava em qualquer lugar, a qualquer hora do dia. No banheiro, no porão, no toalete, sob as cobertas, na sala e, de vez em quando, quando se esgueirava para o quarto da irmã mais nova quando não havia ninguém ali, para sua cama, para sua cadeira, junto à escrivaninha... Como um patriarca caprichoso, AQUILO exigia obediência absoluta. Por mais que obedecesse, Mustafá nunca usava a mão direita naquela atividade. A mão direita era reservada para coisas limpas e sagradas. Era com a mão direita que ele pegava a mão dos mais velhos para beijar. Tão abençoada era a mão direita que a esquerda era reservada para o abominável. Ele só podia se masturbar com a esquerda.

Certa vez sonhara que se masturbava na frente do pai. Não havia qualquer expressão no rosto paterno; ele apenas observava de seu lugar à mesa. A última vez que Mustafá vira o pai olhá-lo fixamente assim fora aos oito anos, quando estava sendo circuncidado. Lembrava-se daquele garoto infeliz, deitado numa enorme e vistosa cama de cetim, com presentes espalhados por toda parte, esperando que aquilo fosse cortado, rodeado por parentes e vizinhos, alguns conversando, outros comendo, outros dançando, enquanto outros ainda tratavam de provocá-lo; setenta pessoas estavam lá para celebrar sua passagem de garoto a homem. Foi naquele dia, logo após a circuncisão, exatamente quando deixara escapar um terrível grito de choro, que o pai se aproximou, beijou-o no rosto e murmurou em seu ouvido: "Algum dia você já me viu chorar, meu filho?" Mustafá sacudiu a cabeça. Não, ninguém jamais vira o pai chorar. "Algum dia você viu sua mãe chorar, meu filho?" Mustafá fez um vigoroso sinal afirmativo com a cabeça. A mãe chorava o tempo todo. "Ótimo." Levent Kazanci sorriu suavemente para o filho. "Agora que você é um homem, comporte-se como um homem." Sempre que Mustafá se masturbava, nunca ousava abaixar totalmente as calças, tanto por medo de ser surpreendido quanto pela irritação de ter o fantasma do pai sussurrando em seu ouvido, repetidamente, a mesma frase. No ano passado, repentinamente, seu corpo fora mais forte não só do que sua própria vontade como também do que o olhar inspecionante do pai. Como alguma doença contagiosa - pois estava certo de que aquilo era uma espécie de doença -, começou a

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se masturbar a todas as horas do dia e da noite. Pare. Não posso parar. Pare. Não posso parar. Nos sonhos, via-se surpreendido pelos pais durante o ato. Eles empurravam a porta, escancaravam-na e o pegavam com a boca na botija. Em meio aos gritos e choros, a mãe o beijava e dava-lhe tapinhas nas costas, enquanto o pai cuspia nele e o espancava. Onde o pai deixava marcas da surra, a mãe o massageava com um pouco de ashure, como se a sobremesa fosse 322 uma espécie de ungüento. Acordava enojado e tremendo todas as vezes, com o suor escorrendo pela sua testa. E, para se acalmar, masturbava-se de novo. Zeliha não sabia de nada disso ao ridicularizá-lo. - Você não tem vergonha - disse Mustafá. - Não sabe como falar com as pessoas mais velhas. Não se importa que os homens assobiem para você nas ruas. Você se veste como uma puta e espera que a respeitem? Zeliha sorriu com desdém. - Qual é o problema? Ou será que você tem medo das putas? Mustafá simplesmente a olhou. No mês anterior, descobrira a rua mais infame de Istambul. Poderia ter ido a outros lugares, onde encontrasse sexo mais caro, de qualidade superior e menos vergonhoso, mas Mustafá ia lá deliberadamente - quanto mais cru e feio, melhor. Casas sórdidas alinhavam-se lado a lado nas quais pairavam os cheiros, as manchas e as brincadeiras lascivas dos homens, mais porque precisavam rir do que por uma diversão real; prostitutas nos quartos de cada andar, prostitutas que talvez nunca recusassem o dinheiro deles, mas que mesmo assim ridicularizavam suas performances. Mustafá voltara de lá sentindo-se imundo e fraco. - Você está me espionando? - perguntou. - O quê? - Zeliha riu, só então percebendo que descobrira algo sem saber. Você é tão burro. Se anda com prostitutas, o problema é seu, não dou a mínima. Afrontado, Mustafá sentiu um ímpeto repentino de bater nela. A irmã precisava entender que não podia zombar dele assím. Zeliha apertou os olhos como se tentasse ler os pensamentos dele. - O que eu visto e como vivo não é da sua conta - disse ela. - Quem você pensa que é? Meu pai já morreu e você não vai ficar no lugar dele. Estranhamente, assim que Zeliha pronunciou essa frase lembrouse de ter esquecido de pegar seu vestido de renda na tinturaria naquela manhã. "Faça um lembrete mental para ir até lá amanhã." 323 - Se meu pai estivesse vivo, você não falaria assim - retrucou Mustafá. Seu olhar enevoado de um momento atrás desaparecera, substituído por um brilho amargo. - Mas só porque ele morreu não significa que não temos regras nesta casa. Você não pode envergonhar o nome da família. - Ah, cale a boca! Qualquer vergonha que eu possa trazer não será nada em comparação

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à que você causou até hoje. Mustafá fez uma pausa, parecendo confuso. Teria ela descoberto sobre o jogo ou estaria blefando de novo? Vinha apostando nos esportes, mas andava perdendo cada vez mais. Se o pai estivesse vivo o espancaria, apesar de seus vinte anos de idade. O cinto de couro marrom-avermelhado com a fivela de metal. Haveria um motivo que explicasse o porquê de um determinado cinto doer mais do que os outros? Ou seria apenas sua imaginação concentrada num único cinto, o que o levava a acreditar que os outros não causavam tanta dor, e quando espancado por eles sentia-se grato e até com sorte? Mas seu pai morrera e alguém precisava ser lembrado de quem estava no comando.

- Agora que papai morreu - declarou Mustafá -, eu sou o chefe da família. - É mesmo? Zeliha riu. - Sabe qual é o seu problema? Você é mimado demais, falo precioso! Saia do meu quarto! Como num sonho, com o canto do olho, Zeliha viu a mão de Mustafá se erguer para esbofeteá-la. Ainda sem acreditar no que via, ela o olhou fixa e vaziamente, conseguindo se esquivar no último instante. Zeliha escapou da bofetada, mas aquilo só o enraiveceu. A segunda tentativa atingiu o rosto dela, fazendo-o arder. Então ela deu um tapa no rosto dele, tão forte quanto o que recebera. Em um minuto estavam se engalfinhando ferozmente na cama como duas crianças, embora nunca tivessem brigado quando crianças. O pai jamais aprovara tais bagunças. Por alguns segundos Zeliha sentiu-se vitoriosa, tendo batido nele com força, ou assim pensava. Era uma mulher alta, musculosa, não acostumada a se sentir frágil. Como um campeão no ringue, ela ergueu as duas mãos no ar e saudou um público invisível, encantada com seu triunfo:- Te peguei!Foi então que, torcendo o braço de Zeliha atrás das costas, Mustafá partiu para cima dela. Dessa vez tudo foi diferente. Ele estava diferente. Manteve-a deitada com uma mão em seu peito e com a outra puxou sua saia.A primeira coisa que Zelíha sentiu foi profunda mortificação. Tão intensa era a vergonha que não havia espaço nela para qualquer outro sentimento. Ficou instantaneamente debilitada, quase congelada de um modo humilde, um modo que revelava sua educação, o constrangimento de ser exposta de roupa de baixo predominando sobre qualquer outra coisa.Depois, contudo, um ímpeto de pânico tomou o lugar da humilhação. Zeliha tentou bloquear Mustafá com uma das mãos e com a outra procurou abaixar

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a saia, mas quase imediatamente ele a suspendeu de novo. Ela lutou, ele lutou, ela o esbofeteou, ele fez o mesmo com mais força, ela o mordeu, ele lhe socou o rosto, um único golpe. Ela ouviu alguém gritar "Pare!" a plenos pulmões, aguda e inumanamente, como um animal num abatedouro. Não reconheceu sua própria voz assim como não reconheceu seu corpo, como se este fosse um território estrangeiro quando Mustafá a penetrou.Foi então que Zeliha notou o balão da KODAK no céu claro.Fechou os olhos como se aquilo fosse uma brincadeira infantil, esperando que, se não visse, não seria vista. Havia apenas sons agora, sons e cheiros. A respiração dele ficou mais pesada, as mãos dele apertando seus seios e seu pescoço. Zeliha teve medo de que ele a estrangulasse, mas os dedos logo se soltaram e o movimento cessou. Mustafá emitiu um som ao desmoronar em cima dela, pressionando seu peito contra o dela.Zeliha podia ouvir o coração disparado dele, mas não conseguia ouvir seu próprio coração. Sentiu como se sua vida estivesse sendo sugada de seu corpo.Não abriu os olhos até ele desabar sobre ela, agora mole dentro de seu corpo. Quando levantou, Mustafá mal podia andar. Cambaleando, arquejando, atravessou o quarto e apoiou-se na porta. Respirou profundamente e percebeu um cheiro misto - suor e água de rosas.

Ficou ali brevemente, as costas viradas para a irmã, antes de conseguir se mover de novo e correr para fora do quarto. Assim que entrou no corredor, ouviu a porta da frente sendo aberta. Sua família voltava para casa. Mustafá correu para o banheiro, trancou a porta e abriu o chuveiro, mas em vez de entrar no banho desabou de joelhos no chão e vomitou. - Olá!!! Onde está todo mundo? - A voz de Banu veio da sala da frente. - Alguém em casa? Zeliha se levantou e tentou ajeitar as roupas. Tudo acontecera tão rapidamente que talvez pudesse se convencer de que nada ocorrera. O rosto que viu no espelho, contudo, revelava uma outra história. Seu olho esquerdo parecia inchado, com um semicírculo arroxeado debaixo dele. A primeira coisa que Zeliha sentiu ao ver o olho foi uma pontada de culpa ante seu ceticismo habitual. Por todos aqueles anos, torcera o nariz para os filmes de ação inconsistentes em que alguém ficava de olho roxo, sem acreditar que o olho humano realmente pudesse inchar e ficar daquela cor com um soco. Seu rosto fora danificado, mas seu corpo não, concluiu. Tocou-se para ver se ainda sentia algo. Como era possível que pudesse sentir o toque de seus dedos

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e nada mais? Se estivesse machucada ou triste, seu corpo não saberia? Ela não saberia? Ouviu uma batida na porta. Sem esperar resposta, Banu enfiou a cabeça para dentro do quarto. Estava prestes a dizer algo, mas abriu e fechou a boca, sem palavras, imobilizada, olhando fixamente a irmã mais nova. - O que aconteceu com o seu rosto? Zeliha sabia que o momento certo para revelar tudo era aquele. Poderia contar o que ocorrera naquele momento ou escondê-lo para sempre. - Não foi tão grave como parece - disse, lentamente. O momento passara e a escolha fora feita. - Saí para dar uma volta e vi um homem espancando a mulher no meio da rua. Tentei defender a mulher do marido, mas acho que acabou sobrando para mim. Acreditaram. Era algo que ela bem poderia fazer, algo que, se fosse ocorrer com alguém, só poderia ser com ela.

Zeliha foi estuprada quando tinha 19 anos e, segundo as leis turcas, atingira a maioridade. Nessa idade poderia casar, obter uma carteira de motorista ou votar quando os militares permitissem eleições livres de novo. Também poderia fazer um aborto se precisasse. Teve repetidamente o mesmo sonho. Via-se caminhando pela rua sob uma chuva de pedras; enquanto as pedras redondas caíam de cima, uma a uma, esburacando o chão, Zeliha entrava em pânico, com medo de ser atingjda, com medo de ser engolida sem deixar rastros pelo abismo faminto. "Parem!", gritava para as pedras que rolavam sob seus pés. "Parem! ", ordenava aos veículos que corriam em sua direção e a atropelavam. "Parem!", implorava aos pedestres que a empurravam. "Parem, por favor!" No mês seguinte, não ficou menstruada. Algumas semanas depois, foi a um laboratório recém-inaugurado perto de casa. TESTE DE GRAVIDEZ GRÁTIS COM EXAME DE GLICOSE!, dizia um aviso na entrada. Quando os resultados chegaram, a taxa de açúcar no sangue de Zeliha estava normal, mas sua gravidez fora confirmada. Outrora havia; outrora não havia. Numa terra muito distante, vivia um velho casal com quatro filhos: duas filhas e dois filhos. Uma das filhas era feia, a outra, bela. O irmão mais novo resolveu casar-se com a bela, embora esta não quisesse fazêlo. Ela ensaboou suas roupas de seda e foi até a água para enxaguá-las. Enxaguava e chorava. Fazia frio. Suas mãos e seus pés estavam congelando. Ao voltar para casa, ela bateu na porta, mas viu que estava trancada. Então bateu na janela de sua mãe e esta respondeu: "Só deixo você entrar se me chamar de sogra." Depois, bateu na janela do pai e este respondeu: "Só deixo você entrar se me chamar de sogro." Bateu na janela do irmão mais velho e este respondeu:

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"Só deixo você entrar se me chamar de cunhado." Bateu na janela da irmã e esta respondeu: "Só deixo você entrar se me chamar de cunhada." Bateu na janela do irmão mais novo e este a deixou entrar.

Depois que ele a abraçou e a beijou, ela disse: "Que a terra se abra e me enguia!" A terra se abriu e a jovem fugiu para um reino subterrâneo. COM UMA COLHER NA MÃO, ASYA SUSPIROU, observando pela janela da cozinha o Alfa Romeo prata metálico se afastar. - Está vendo? - Virou-se para Sultão V. - Tia Zeliha não quer que eu vá ao aeroporto com elas. Está sendo má comigo de novo. Como foi idiota de se permitir ser tão vulnerável na outra noite, quando tinham saído para beber! Como era idiota de esperar que finalmente a barreira entre as duas cairia! Ela nunca desapareceria inteiramente. Aquela mãe transformada em tia ficaria sempre a uma distância impossível de ser estreitada. "Compaixão maternal, amor filial, camaradagem familiar, certamente não precisava de nada daquela..." Asya fez uma pausa e soltou: - Merda! Artigo Doze: Não tente mudar sua mãe, ou melhor, não tente mudar sua relação com ela, já que isso só causará frustração. Simplesmente aceite e consinta. Se não pode apenas aceitar e consentir, volte ao Artigo Um. - Você não está falando sozinha, está? - perguntou tia Fende, entrando na cozinha. - Na verdade, estou sim. - Asya abandonou imediatamente seu transe de fúria. - Acabava de dizer ao meu amigo gato como era estranho que, da última vez que tio Mustafá esteve aqui, ele nem era nascido. Era Paxá III que reinava na casa. Faz vinte anos. Não é estranho?

O homem nunca nos visita e agora aqui estou eu, mexendo o seu ashure porque ainda lhe damos boas-vindas. - E o gato respondeu o quê? - perguntou tia Fende. Asya sorriu sarcasticamente. - Ele disse que tenho razão, isso aqui é um hospício. E que eu deveria perder totalmente a esperança e continuar trabalhando no meu manifesto. - Claro que daremos as boas-vindas a seu tio. Família é família, goste você ou não. Não somos como os alemães, que enxotam os filhos para fora de casa aos 14 anos de idade. Temos valores familiares fortes. Não nos encontramos uma vez por ano para comer peru... - Do que está falando? - perguntou Asya, intrigada, mas antes de terminar a pergunta já adivinhara a resposta. - Você está se referindo ao Dia de Ação de Graças dos americanos? - Seja lá o que for. - Tia Fende descartou a informação. - O que acho é que os ocidentais não têm valores familiares fortes. Não somos assim. Se alguém

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é seu pai, é seu pai para sempre; se alguém é seu irmão, será seu irmão até o fim. Além disso, tudo neste mundo já é bastante estranho. É por isso que gosto de ler a página três dos tablóides. Recorto aquelas notícias para a gente não esquecer como o mundo é maluco e perigoso. Como nunca ouvira a tia tentar racionalizar seu comportamento antes, Asya olhou-a com renovado interesse. Estavam sentadas na cozinha em meio aos cheiros apetitosos enquanto o sol de março entrava pela janela. Ficaram assim até tia Fende ir embora, ao ouvir seu VJ anunciar os clipes de uma nova banda e Asya ansiar por um cigarro. Ansiava não tanto pelo cigarro, mas por fumar aquele cigarro com o Cartunista Dipsomaníaco, embora ficasse surpresa por sentir tanto sua falta. Tinha pelo menos duas horas até que os hóspedes voltassem do aeroporto. "Aliás, mesmo que ela se atrase, que diferença isso faria para alguém?" pensou. Alguns minutos depois, Asya fechava a porta suavemente atrás de si.

TIA BANU OUVIU A PORTA, mas antes que pudesse chamar Asya, esta já saíra. - O que está pretendendo fazer, minha ama? - perguntou sr. Amargo com voz roufenha. - Nada - sussurrou tia Banu, enquanto abria uma gaveta da cômoda e pegava uma caixa. No forro de veludo repousava o broche de romã. Como a mais velha das filhas Kazanci, recebera o broche, um presente de seu pai que herdara da mãe - não de sua madrasta PetiteMa, mas da mãe de quem ele nunca falava, a mãe que o abandonara quando criança, a mãe que ele jamais perdoara. O broche era tão sublime quanto doloroso, pensou tia Banu. Isso ninguém sabia, mas ela mergulhara, certa vez, o broche de romã com sementes de rubis em água salgada para lavar dele sua triste saga. Sob o olhar vigilante do gênio, tia Banu acariciou o broche, sentindo o glamour dos rubis fulgurar lá dentro. Até conhecer Armanoush, nunca lhe ocorrera investigar a história do broche de romã. Contudo, agora que conhecia a história não conseguia pensar no que fazer em seguida. Tentada a dar o broche a Armanoush por achar que ele lhe pertencia mais do que a qualquer outra pessoa, hesitava por não saber como lhe explicar o motivo do presente. Poderia dizer a Armanoush Tchakhmakhchian que aquele broche pertencera outrora à sua avó Shushan sem lhe contar o resto da história? Quanto de seu conhecimento poderia partilhar com aquelas pessoas cujas histórias soubera através da mágica? QUARENTA MINUTOS DEPOIS, no outro lado da cidade, Asya passava pela porta de madeira guinchante do Café Kundera.

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- Ei, Asya! - chamou, animado, o Cartunista Dipsomaníaco. - Aqui! Estou aqui! Ele a abraçou. Depois, quando ela se afastou, ele exclamou: - Tenho notícias para você; uma boa, outra ruim e outra ainda não classificada. Qual delas quer ouvir primeiro? - A ruim - disse Asya. - Eu vou para a cadeia. Acho que meus desenhos do primeiro-ministro como pingüim não foram bem recebidos. Fui condenado a oito meses de prisão. olhou-o fixamente, com uma perplexidade que logo se tornou apreensão. - Calma, minha querida - murmurou o Cartunista Dipsomaníaco com voz humilde, pondo um dedo nos lábios dela. - Não quer ouvir a boa notícia? Estava radiante de orgulho. Decidi que precisava ser fiel a meu coração e me divorciar. Quando a perturbação que pairava no rosto de Asya desapareceu, ela perguntou finalmente:

- E a notícia ainda não classificada?- Hoje é meu quarto dia sem beber. Nem uma gota! Sabe por quê? - Você voltou para os Alcoólicos Anônimos. - Não! - disse lentamente o Cartunista Dipsomaníaco, parecendo magoado. - Porque hoje é o quarto dia desde o último dia que eu vi você e quis ficar sóbrio para a próxima vez que nos encontrássemos. Você é o meu único incentivo na vida para me tornar uma pessoa melhor. E então enrubesceu. - Amor! - disse. - Estou apaixonado por você, Asya. Os olhos cor de avelã dela se deslocaram para um quadro na parede, a foto de uma estrada trilhada no Camel Trophy de 1997 na Mongólia. "Seria bom correr para dentro daquele quadro agora", pensou ela. Atravessar o deserto de Gobi num jipe 4x4, pesado, com botas sujas e óculos escuros, deixando sair no suor todos os seus problemas até que ela se tornasse leve como o nada, leve como uma 331 folha seca ao vento, e assim ser transportada para o interior de um mosteiro budista na Mongólia. "Não se preocupe, passarinho ", a romãzeira sorriu e sacudiu a neve de seus ramos. "A história que vou contar é feliz." Hovhannes Stamboulian franziu os lábios, enquanto sua mente trabalhava febrilmente e o redemoinho do texto o engolia. A cada nova linha acrescentada à última história de seu livro infantil, as lições de gerações voltavam à sua mente, algumas animadoras e outras não, mas todas reverberando igualmente de outros tempos, tempos sem começo nem fim. As histórias infantis eram as histórias mais velhas do mundo, onde os fantasmas de gerações há muito desaparecidas se expressavam através das palavras. O ímpeto de terminar o texto era tão instintivo e fascinante quanto irreprimível. O mundo transformara-se num lugar

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sombrio desde que Hovhannes começou a escrever o livro, e agora tinha de terminá-lo sem delongas, como se tornar o mundo menos dilacerante dependesse disso. "Muito bem então ", arrulhou o Pombinho Perdido. "Conte-me a história do pombinho perdido. Mas estou avisando, se eu ouvir algo triste vôo para longe." Depois que Hovhannes Stamboulian foi levado pelos soldados, a família não teve coragem de entrar em seu escritório por dias. Saíam e entravam de todos os aposentos, menos do escritório, e mantiveram sua porta fechada como se o escritor ainda estivesse lá, trabalhando dia e noite. Mas o desalento que permeava a casa tornara-se intenso e concreto demais para fingir que a vida voltara ao normal. Em breve, Armanoush resolveu que todos estariam melhor em Sivas, onde ficariam com seus pais durante um tempo. Só depois dessa decisão entraram no escritório de Hovhannes Stamboulian e encontraram o manuscrito de O Pombinho Perdido e o País Ditoso à espera do término.Entre suas páginas, acharam também o broche de romã. Shushan Stamboulian viu o broche de romã pela primeira vez na escrivaninha de nogueira de seu pai. Todos os outros detalhes daquele dia fatídico haviam desaparecido, mas não o broche. Talvez o brilho dos rubis a tivesse hipnotizado, ou ver o mundo desmoronando à sua volta fizesse da jóia a única coisa que podia se lembrar daquele dia. Qualquer que fosse a razão, Shushan jamais esquecera o broche de romã. Nem quando quase morrera na estrada para Aleppo e fora deixada para trás; nem quando uma mãe e filha turcas encontraram-na e levaram-na para casa a fim de tratá-la; nem quando fora levada por bandidos para o orfanato; nem quando deixara de ser Shushan Stamboulian e se tornara Shermin 626; nem quando, anos depois, Riza Selim Kazanci esbarrara com ela por acaso no orfanato e, descobrindo que era a sobrinha de seu falecido patrão Levon, decidira casar-se com ela; nem quando soube que estava grávida e se tornaria mãe, como se ela própria não fosse ainda uma criança. A parteira circassiana revelara o sexo do bebê meses antes do nascimento, observando o formato do ventre de Shushan e os alimentos pelos quais ansiava. Creme bríilée de confeitarias chiques, apfelstrudel da padaria aberta por russos brancos fugidos da Rússia, baklava feito em casa, bombons e doces de todos os tipos... Nem uma vez sequer durante a gravidez Shermin Kazanci ansiara por nada azedo ou salgado, como seria o caso se estivesse esperando uma menina. Era realmente um menino, um menino nascido em tempos penosos. - Que Alá possa abençoar meu filho com uma vida mais longa do que qualquer outro homem da família já teve - disse Riza Selim

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Kazanci quando a parteira entregou-lhe o recém-nascido. Então, ele encostou os lábios no ouvido direito do bebê e disse: - Seu nome será Levon. Honrar o mestre de quem aprendera a arte de fabricar caldeirões não era o único incentivo por trás dessa escolha. Riza Selim esperava também que dar ao filho o nome de Levon fosse um favor à esposa por esta converter-se ao islã.

Assim, escolheu o nome e, como um bom muçulmano, repetiu-o três vezes: "Levon! Levon! Levon!" Enquanto isso, Shermin Kazanci permanecia tão silenciosa quanto uma pedra deslocada. Não demorou muito para que o eco tríplice voltasse a eles em forma de uma pergunta negativa. - Levon? Isso é lá nome muçulmano? Nenhum menino muçulmano pode ter esse nome! - retrucou a parteira, em voz alta. - O nosso terá - disse Riza Selim Kazanci, irritado, uma defesa que ele usaria todas as vezes. - Já decidi. Meu filho se chamará Levon! Mas na hora do bebê ser registrado, ele recuou. - Qual é o nome da criança? - perguntou o escrivão encurvado e tenso, sem levantar a cabeça do enorme livro forrado de pano e de lombada marrom-avermelhada diante dele. - Levon Kazanci. O escrivão levou os óculos de leitura ao nariz e lançou um longo olhar a Riza Selim Kazanci pela primeira vez. - Kazanci de fato é um bom sobrenome, mas Levon é um nome muçulmano? Não é um nome muçulmano, mas mesmo assim é um bom nome - replicou, tenso, Riza Selim Kazanci. - Senhor - elevou um pouco a voz o funcionário, parecendo importante e conhecedor. - Sei que os Kazanci são uma família influente. Um nome como Levon não vai pegar bem pra vocês. Se registrarmos esse nome, seu filho pode ter problemas no futuro. Todos pensarão que é cristão, embora ele seja cem por cento muçulmano... Ou estou enganado? Ele não é muçulmano? - Claro que é - corrigiu imediatamente Riza Selim Kazanci. - Elhamdülillah. - Por um momento fugaz, ocorreu-lhe confidenciar ao escrivão que a mãe do garoto era uma órfã armênia convertida ao islã e o nome seria um presente para ela, mas algo o fez manter a informação para si.- Bem, então, com o devido respeito ao bom homem a quem o senhor quer homenagear batizando a criança assim, vamos fazer uma pequena mudança. Escolha algo parecido com Levon, se quiser, mas que seja um nome muçulmano. Que tal Levent? - O escrivão então acrescentou, amável demais para a aspereza do que ia dizer em seguida: - Caso contrário, lamento ter que me recusar a registrá-lo. E assim foi. Levent Kazanci nasceu

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sobre as cinzas de um passado ainda latente; o garoto que ninguém sabia que o pai outrora quis chamar de Levon; o garoto que um dia seria abandonado pela mãe e cresceria fechado e amargo; o garoto que seria um péssimo pai para os próprios filhos... Se não fosse o broche de romã, será que Shermin Kazanci teria o ímpeto de abandonar marido e filho? É difícil dizer. Com eles, ela iniciara uma família e uma vida nova com apenas uma direção a seguir. Para obter um futuro, teria que se tornar uma mulher sem passado. Sua identidade de infância era formada apenas por fragmentos de lembranças, como migalhas de pão que tivesse deixado atrás de si para algum pássaro, já que ela própria jamais poderia voltar para casa. Embora até as lembranças mais queridas de sua infância posteriormente sumissem, o broche permaneceu nitidamente enraizado em sua mente. E anos depois, quando um homem vindo dos Estados Unidos aparecera em sua casa, aquele broche a ajudaria a descobrir que o estranho não era outro senão seu próprio irmão. Vervant Stamboulian surgira à sua porta com olhos escuros e brilhantes sob as espessas sobrancelhas negras, um nariz pontudo e um espesso bigode pendendo até o queixo, o que lhe dava a impressão de sorrir mesmo quando tristonho. Com uma voz trêmula e palavras hesitantes, ele anunciou quem era e lhe contou, metade em turco, metade em armênio, que viera dos Estados Unidos para encontrá-la. Embora quisesse abraçar a irmã naquele mesmo momento, sabia que ela era agora uma mulher muçulmana casada. Permaneceu na entrada, enquanto a brisa de Istambul desenhava círculos à volta deles. Por um segundo, era como se tivessem sido puxados para fora do tempo. Ao final da breve troca de palavras, Vervant Stamboulian deu a Shermin Kazanci duas coisas: o broche de romã de ouro e tempo para pensar.

Perplexa e aturdida, fechou a porta e esperou que a revelação fosse absorvida. Ao lado dela, no chão, Levent engatinhava e balbuciava com grande entusiasmo. Ela foi para o seu quarto rapidamente e escondeu o broche em uma das gavetas de seu guarda-roupa. Ao voltar, encontrou o garotinho rindo, tendo acabado de conseguir ficar em pé. O bebê ficou assim por um segundo, deu um passo, outro, e então, bruscamente, caiu de costas sobre o traseiro, o delicioso medo dos primeiros passos brilhando em seus olhos. Subitamente o garoto abriu um sorriso sem dentes e exclamou: "Ma-ma!" A casa inteira assumiu uma luminosidade rara e quase fantasmagórica enquanto Shermin Kazanci saiu de seu aturdimento e repetiu consigo mesma: "Ma-ma!" Era a segunda palavra que saíra da boca

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de Levent, depois que experimentara "Da-da" por um tempo e finalmente dissera "Ba-ba" no dia anterior. Agora ela percebia que o filho pronunciara a palavra pai em turco, mas a palavra mãe em armênio. Não apenas tivera que desaprender a língua outrora tão querida a ela como era obrigada agora a aplicar o mesmo processo ao filho. Olhou fixamente para a criança, perturbada e ruminando. Não queria corrigir "Ma-ma", substituindo a palavra por sua equivalente em turco. Os distantes mas ainda vívidos perfis de seus ancestrais vieram à tona. O nome, a religião, a nacionalidade, a família e o eu novos que passara a ter não haviam conseguido encobrir seu verdadeiro eu. O broche de romã sussurrava seu nome em armênio. Shermin Kazanci acarinhou o filho e por três dias inteiros conseguiu não pensar no broche. No terceiro dia, como se sua mente viesse pensando e seu coração doendo sem que ela soubesse, correu para a gaveta e segurou o broche com força, sentindo-lhe o calor na mão. Os rubis são pedras diferentes, conhecidas por sua cor vermelha ardente. Entretanto, é comum que a cor no interior da gema se altere, tornando-se cada vez mais escura, principalmente quando seus donos estão em perigo. Existe um tipo especial de rubi que os conhecedores chamam de "Sangue de Pombo" - um precioso rubi vermelho-sangue com um toque de azul, como se obscurecido bem no fundo.

Aquele rubi era a última lembrança de O Pombinho Perdido e o País Ditoso. Na véspera do terceiro dia, Shermin Kazanci conseguiu um breve momento de solidão após o jantar e esgueirou-se para o seu quarto. Apelando para um consolo que ninguém poderia lhe dar, fixou o Sangue de Pombo. Só então percebeu o que precisava fazer. Uma semana depois, num domingo de manhã, foi para o porto onde o irmão a esperava, com o coração batendo forte e duas passagens para os Estados Unidos. Em vez de uma mala, Shermin levava apenas uma pequena bolsa. Deixara todas as suas posses para trás. Quanto ao broche de romã, ela o pusera num envelope com uma carta, explicando sua situação e pedindo duas coisas ao marido: para dar o broche ao filho como uma lembrança dela e para perdoá-la. QUANDO O AVIÃO ATERRISSOU EM ISTAMBUL, Rose estava exausta. Moveu cuidadosamente os pés inchados, temendo que não entrassem mais nos sapatos, embora estivesse usando um confortável calçado DKNY de couro laranja. Pensou em como as comissárias de bordo conseguiam ficar de saltos altos durante um dia inteiro de vôo. Mustafá e Rose levaram meia hora para ter os passaportes carimbados, passar pela Alfândega, recolher

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a bagagem, trocar dinheiro e alugar um carro. Mustafá achara melhor dispor de seu próprio carro em vez de usar o da família. Em um folheto, Rose escolhera primeiro um Grand Cherokee Laredo 4x4, mas Mustafá sugeriu algo menor para as ruas abarrotadas de Istambul. Decidiram-se então por um Toyota Coroila. Pouco depois, os dois deixavam a área de desembarque empurrando um carrinho com malas combinando. Depararam-se com um semicírculo de estranhas esperando do lado de fora. A primeira que avistaram do grupo foi Armanoush, sorrindo e acenando; ao lado dela estava avó Gülsüm, apertando o coração com a mão direita, prestes a desmaiar de emoção. Um passo atrás via-se tia Zeliha, alta e distante, com óculos escuros de lentes roxas.

***17ARROZ BRANCO

RosE E MUSTAFÁ PASSARAM SEUS PRIMEIROS DOIS DIAS em Istambul comendo. À mesa, eles respondiam às inúmeras perguntas dos membros da família Kazanci vindas de todas as direções: Como era a vida nos Estados Unidos? Havia mesmo um deserto no Arizona? Era verdade que os americanos sobreviviam com porções gigantescas de fast food e depois faziam dieta em programas de TV? A versão americana de "O Aprendiz" era melhor do que a versão turca? E assim por diante. Então seguiu-se uma série de perguntas mais pessoais: por que não tiveram filhos? por que não vieram a Istambul antes? por que não ficavam mais tempo? POR QUÊ? As perguntas surtiram efeitos opostos no casal. De sua parte, Rose não parecia se importar com o interrogatório. No mínimo, gostava 339 de ficar sob os holofotes. Mas Mustafá prontamente refugiou-se no silêncio, retraindo-se cada vez mais. Falava pouco, passando a maior parte do tempo lendo jornais turcos, tanto conservadores quanto progressistas, como se tentasse ficar em dia com o país que deixara. De vez em quando, fazia perguntas sobre esse ou aquele político, perguntas respondidas por quem soubesse. Embora sempre tivesse sido um ávido leitor de jornais, jamais estivera tão interessado em política. - Então o partido conservador que está no poder parece estar perdendo força. Qual é a probabilidade deles vencerem nas próximas eleições? - Patifes! São um bando de mentirosos - resmungou avó Gülsüm, em vez de responder. No seu colo via-se uma bandeja com uma pilha de arroz cru, que ela limpava antes de cozinhar

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para livrá-lo de alguma casca ou pedrinha. - Só sabem fazer promessas e esquecem tudo assim que são eleitos. De sua poltrona junto à janela, Mustafá olhou para a mãe sobre o jornal que segurava. - E o partido da oposição? Os social-democratas? - A mesma coisa! - respondeu ela. - São todos um bando de mentirosos. Todos os políticos são corruptos. - Se tivéssemos mais mulheres no parlamento, tudo seria diferente - interveio tia Fende, usando a camiseta Eu AMO O ARIZONA que Rose lhe dera. - Mamãe tem razão. Se quer saber, a única instituição confiável neste país sempre foi o exército - disse tia Cevriye. - Graças a Deus temos o exército turco. Se não fosse por eles... - É, mas deveriam deixar as mulheres servirem o exército - interrompeu tia Fende. - Eu mesma me alistaria imediatamente. Asya parou de traduzir a conversa para Rose e Armanoush, sentadas perto dela, e deu uma risada enquanto dizia em inglês: - Uma de minhas tias é feminista e a outra uma militarista ferrenha! E se dão muito bem! Que hospício! A avó Gülsüm virou-se para o filho, subitamente preocupada. - E você, querido? Quando vai completar seu serviço militar?

Entendendo com dificuldade, apesar da tradução simultânea, Rose virou-se para o marido e pestanejou. - Não se preocupe comigo - disse Mustafá. - Contanto que eu pague uma certa quantia e mostre que vivo e trabalho nos Estados Unidos, não preciso cumprir um período integral de serviço militar. Apenas o treinamento básico. É só um mês, só isso... - Mas não há um prazo para isso? - perguntou alguém. - Há sim. É preciso fazer esse treinamento aos 41 anos. - Bem, então você vai fazer este ano - disse avó Gülsüm. - Está com quarenta agora... Sentada na ponta da mesa, pintando as unhas de cor cereja brilhante, tia Zeliha levantou a cabeça e lançou um olhar para Mustafá. - Que idade nefasta - sibilou de repente. - A idade em que seu pai morreu, assim como seu avô e bisavô... Você deve estar bastante nervoso por ter quarenta anos, meu irmão... Tão perto da morte... O silêncio que se seguiu foi tão mortal que fez Asya inadvertidamente encolher-se. - Como pode falar assim com ele? - Avó Gülsüm levantou, a bandeja de arroz ainda nas mãos. - Posso dizer o que eu quiser, para quem quiser. - Tia Zeliha deu de ombros. - Você me envergonha! Saia! - disse avó Gülsüm, irritada, numa voz baixa e metálica. - Saia da minha casa agora mesmo! Ainda com duas unhas por pintar, tia Zeliha mergulhou o pincel no vidro de esmalte, empurrou a cadeira para trás e saiu da sala. No TERCEIRO DIA DE SUA VISITA, Mustafá

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ficou no quarto o dia inteiro, alegando estar doente. A febre que vinha tendo devia estar diminuindo não só sua energia como sua capacidade de falar, pois ele se tornara excessivamente quieto. Seu rosto parecia cansado, sua boca estava seca, e os olhos, vermelhos, embora ele não estivesse bêbado nem houvesse chorado.

Por horas a fio, permaneceu deitado de costas, estudando desenhos indiscerníveis na sujeira e poeira do teto. Enquanto isso, Rose, Armanoush e as três tias caminhavam pelas ruas de Istambul, especialmente as ruas de shopping centers. Foram para a cama mais cedo do que o habitual naquela noite. - Rose, querida - murmurou Mustafá para a mulher, acariciando seu cabelo. Seus cabelos lisos, louros e macios sempre o acalmavam, como um dossel contra sua família de cabelo e passado negro. Ela se apoiou nele com o corpo tépido e macio. - Rose, meu amor. Temos que voltar. Vamos voltar amanhã. - Está maluco? Ainda estou me recuperando do fuso horário. - Rose bocejou, esticando os membros doloridos. Usava uma camisola de cetim bordado comprada naquele dia no Grande Bazar, e parecia pálida e cansada mais pelas compras frenéticas do que pelo fuso horário.

- Por que está tão impaciente? Não agüenta ver sua família por uns dias? Rose puxou as cobertas macias até o queixo e, no calor da cama, apertou os seios contra ele. Então deu-lhe uns tapinhas na mão como se quisesse convencer um menino e beijou-lhe o pescoço maliciosamente, suavemente, mas quando tentou se afastar Mustafá quis mais, faminto por paixão. - Meu bem... - disse Rose, enquanto seu corpo ficava tenso e sua respiração se acelerava e diminuía rapidamente logo depois. - Estou tão cansada. Desculpe, meu bem... Daqui a cinco dias vamos para casa. - Com essas palavras, apagou a lâmpada do seu lado e, poucos segundos depois, adormeceu. Deitado na escuridão, confuso, desapontado e tenso com a própria ereção, Mustafá não conseguia dormir, apesar das pálpebras pesadas. Permaneceu quieto por muito tempo até ouvir uma batida na porta. - Quem é? A porta se abriu um pouco e a cabeça de tia Banu intrometeu-se no quarto. - Posso entrar? - perguntou numa voz abafada e hesitante. Ouvindo uma resposta aparentemente afirmativa, tia Banu se esgueirou cautelosamente para dentro do quarto, os pés descalços sobre o carpete espesso, e depois parou.

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Seu véu brilhava como se aceso por uma luz misteriosa, e as bolsas escuras sob os olhos tornavam sua aparência fantasmagórica. - Você não desceu o dia inteiro. Só queria saber se estava bem - sussurrou, enquanto observava Rose adormecida e virada para o outro lado, os braços sob o travesseiro. - Não estava me sentindo bem. - Mustafá a olhou e rapidamente desviou os olhos. - Aqui está, meu irmão - disse Banu, entregando-lhe uma tigela de ashure enfeitada com sementes de romã. - Mamãe fez o ashure para você. - Seu rosto sério abriu-se num sorriso. - Quer dizer, ela o preparou, mas quem enfeitou as tigelas fui eu. - Ah, obrigado, você é muito gentil - gaguejou Mustafá enquanto sentia um frio percorrer-lhe a espinha. Sempre temera a irmã mais velha. Sua voz sumia quando ele notava o olhar de Banu a observá-lo. Embora tivesse o hábito de examinar os outros, ela própria permanecia inescrutável. Banu era exatamente o oposto de Rose, a transparência não estava entre as suas virtudes. No máximo, parecia um livro em código escrito com um alfabeto arcano. Por mais que Mustafá tentasse descobrir suas intenções, jamais conseguia decifrar sua expressão cheia de sombras. Entretanto, fez o máximo para parecer agradecido ao pegar a tigela de ashure. O silêncio que se seguiu foi pesado e inimaginável. Nenhum silêncio jamais fora tão cruel para Mustafá. Como se perturbada por isso, Rose revirou-se no sono, mas não acordou. Mustafá sentira muitas vezes um impulso repentino de confessar à esposa que havia nele mais do que ela podia ver. No entanto, em outros momentos, ficara satisfeito em personificar um homem sem passado, um homem com uma cultivada denegação. Sua amnésia era intencional, embora não calculada. Por um lado, havia em algum lugar de seu cérebro um portão que ele não conseguia fechar por mais que tentasse; algumas lembranças sempre escapavam. Por outro, havia o impulso de trazer à tona o que a mente cuidadosamente expurgara. Essas tendências gêmeas o tinham acompanhado a vida inteira. Agora, 343 de volta à casa de sua infância e sob o olhar penetrante da irmã mais velha, ele sabia que uma das correntes estava destinada a perder a força. Sabia que se ficasse por mais tempo ali, começaria a se lembrar. E cada lembrança traria outra. No momento em que pisara no lar da infância, a mágica que o protegera por todos aqueles anos contra sua própria memória se espatifara. Não poderia mais refugiar-se na amnésia fabricada. - Preciso lhe perguntar uma coisa. - Mustafá arquejou, quase como um garoto em meio a uma surra. Um cinto de

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couro com fivela de metal. Quando garoto, Mustafá se orgulhava de nunca derramar uma lágrima sequer quando o pai puxava o cinto de couro. No entanto, apesar de aprender a controlar as lágrimas, jamais conseguira suprimir o gemido. Como detestava aquele gemido. Lutando para respirar. Lutando por espaço. Lutando por carinho. Fez uma breve pausa, como se reunisse os pensamentos. - Isso está na minha cabeça já há algum tempo... - Um leve toque de medo pairava em sua voz tranqüila. Penetrando as cortinas, o luar projetava um círculo minúsculo no espesso tapete turco. Mustafá focalizou o círculo enquanto soltava a pergunta: - Onde está o pai de Asya? Virou-se para a irmã mais velha a tempo de vê-la fazer uma careta, mas Banu rapidamente se recompôs. - Quando nos encontramos na Alemanha, mamãe me contou que Zeliha tinha tido uma filha de um homem com quem fora brevemente comprometida. E que ele a havia abandonado. - Mamãe mentiu para você - interrompeu Banu. - Mas que diferença faz agora? Asya cresceu sem ver o pai. Não sabe quem ele é. A família também não sabe - acrescentou rapidamente. - Só Zeliha, claro. - Você também não? - perguntou Mustafá, sem acreditar. - Soube que é uma verdadeira clarividente. Fende disse que você escravizou um gênio mau para obter as informações de que precisa. Parece que tem clientes de toda parte. E agora vem me dizer que não sabe de algo tão importante? Seu gênio não lhe contou nada? - Na verdade, contou sim - revelou Banu. - Gostaria de não saber as coisas que sei. O coração de Mustafá bateu mais rápido ao absorver suas palavras; petrificado, fechou os olhos. Mas mesmo por trás das pálpebras cerradas, podia sentir o olhar penetrante de Banu. E outro par de olhos surpreendentemente brilhantes no escuro, vazios e horripilantes. Seria o gênio mau da irmã? Mas tudo aquilo provavelmente fora um sonho, pois quando Mustafá Kazanci abriu os olhos de novo, estava sozinho com a esposa. No entanto, na mesinha-de-cabeceira ao lado dele, viu a tigela de ashure à sua espera. Olhou-a fixamente. Repentinamente, soube por que fora colocada ali e o que lhe fora pedido para fazer. A escolha pertencia a ele... à sua mão esquerda. Fitou a mão esquerda, agora aguardando próximo à tigela. Sorriu para o poder de sua mão. Agora esta poderia pegar a tigela ou empurrá-la para o lado. Se escolhesse a segunda opção, Mustafá acordaria pela manhã para mais um dia em Istambul. Veria Banu na mesa do café-da-manhã. Não falariam sobre o diálogo da noite anterior. Fingiriam que aquela tigela de ashure jamais fora preparada e servida. Contudo, se escolhesse a primeira opção, o

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ciclo se completaria. Tendo chegado à idade-limite para um homem Kazanci, a morte estava próxima de qualquer maneira; um dia a mais ou a menos não faria tanta diferença naquele ponto da vida. No fundo de sua mente, ecoou uma velha história - a história de um homem que fugira para os confins da terra esperando evitar o anjo da morte e acabou esbarrando com ele onde estavam destinados originalmente a se encontrar. Era uma escolha menos entre a vida e a morte do que entre a morte autocontrolada e a morte repentina. Com tal herança familiar, ele tinha certeza de que morreria cedo de qualquer modo. Agora sua mão esquerda, a mão culpada, poderia escolher quando e como. Lembrou-se do pequeno pedaço de papel que enfiara na parede de pedra no altar de El Tradito. "Perdoe-me", escrevera. "Para que eu exista, o passado tem que ser apagado."

Agora, sentia que o passado estava voltando. E para que o passado existisse, ele tinha de ser apagado... Por todos aqueles anos, um remorso doloroso o roera por dentro, pouco a pouco, sem perturbar sua fachada externa. Mas talvez a luta entre a amnésia e a lembrança tivesse finalmente terminado. Como o mar estendendo-se até onde os olhos podiam alcançar depois que a maré baixava, as lembranças de um passado perturbado vinham à superfície aqui e ali nas águas que recuavam. Estendeu a mão para o ashure. Consciente e intencionalmente, começou pouco a pouco a comer o doce, saboreando os ingredientes em cada colherada. Era um alívio tão grande sair do seu passado e do seu futuro de uma vez. Era tão bom sair da vida. Segundos depois de terminar o ashure, foi acometido por uma dor abdominal tão forte que o impediu de respirar. Dois minutos depois, sua respiração parou completamente. Foi assim que Mustafá Kazanci morreu com a idade de quarenta anos e três quartos.***18CIANURETO DE POTÁSSIO

O CORPO FOI LAVADO COM UMA BARRA DE SABÃO de loureiro, tão perfumado, puro e verde quanto dizem ser os pastos no paraíso. Foi lavado, esfregado, enxaguado e deixado para secar nu sobre a laje do pátio da mesquita, antes de ser envolvido numa mortalha de algodão de três peças. Em seguida foi colocado num caixão e, apesar do inflexível conselho dos mais velhos para que o enterrassem no mesmo dia, posto num carro fúnebre

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para ser levado de volta à residência dos Kazanci. - Não podem levá-lo para casa de novo! - exclamou o esquelético lava-defuntos, bloqueando a saída do pátio da mesquita e amarrando a cara para as pessoas envolvidas na questão. - Ele vai feder, pelo amor de Alá! Vocês vão constranger o homem! Em algum momento entre o "vocês" e o "homem" começou a chuviscar; gotas esparsas e relutantes, como se a chuva também quisesse ter um papel em tudo aquilo mas ainda não tivesse escolhido o lado. Aquela terça-feira de março, sem dúvida o mês mais desequilibrado e instável em Istambul, parecia ter mudado de opinião novamente, chegando à conclusão de que pertencia de fato ao inverno. - Mas irmão lava-defuntos - fungou tia Fende, imediatamente integrando o nervoso homem em seu cosmos envolvente e igualitário da esquizofrenia hebefrênica -, vamos levá-lo para casa para que todos possam vê-lo pela última vez. Meu irmão morou no estrangeiro por tantos anos que quase esquecemos seu rosto. Finalmente depois de vinte anos ele voltou a Istambul, e no terceiro dia aqui deu o último suspiro. Sua morte foi tão inesperada que vizinhos e parentes distantes não vão acreditar que ele faleceu se não virem seu corpo. - Perdeu a razão, mulher? Não existe isso na nossa religião! - rebateu o lava-defuntos, esperando impedi-la de prosseguir. - Nós, muçulmanos, não exibimos nossos mortos numa vitrine. - Seu rosto endureceu-se visivelmente quando ele acrescentou: - Se os vizinhos querem vê-lo, que visitem seu túmulo no cemitério. Enquanto tia Fende fazia uma pausa para ponderar sobre a sugestão, tia Cevriye, a seu lado, olhou fixamente o homem com uma sobrancelha erguida, como costumava fitar os alunos numa prova oral quando desejava que percebessem como era ilógica a resposta que tinham acabado de dar. - Mas irmão lava-defuntos - continuou tia Fende, agora recuperando-se -, como poderão vê-lo se ele estiver numa sepultura a dois metros abaixo do chão? As sobrancelhas espessas do lava-defuntos se ergueram em frustração, mas ele preferiu não responder, sentindo afinal ser inútil discutir com aquelas mulheres. Tia Fende tingira o cabelo de preto naquela manhã. Era o seu cabelo de luto. Sacudindo a cabeça com determinação, ela acrescentou: - Não se preocupe. Pode ficar tranqüilo que não vamos exibi-lo como os cristãos fazem nos filmes.Numa expressão desgostosa ante os olhos de tia Fende, que se moviam sem parar, e suas mãos gesticulantes, o lava-defuntos imobilizou-se por um horrível minuto, parecendo agora mais angustiado do que irritado, como se de repente percebesse que estava diante da pessoa mais maluca que

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vira até aquele dia. Seus olhos de furão buscaram os que estavam em volta à procura de ajuda. Não encontrando ninguém, voltaram ao corpo, esperando pacientemente que chegassem a uma decisão sobre seu destino. Finalmente encarou as duas tias de novo, mas se havia alguma mensagem em seu olhar frio elas não conseguiram decifrar. Então tia Cevriye lhe deu uma generosa gorjeta. Assim, o lava-defuntos levou sua gorjeta, e as Kazanci, seu morto. Formaram rapidamente um comboio de quatro veículos. Abrindo a procissão estava um carro fúnebre verde-cinzento, como se exige de um carro fúnebre muçulmano, sendo a cor preta reservada aos funerais das minorias: armênios, judeus e gregos. O caixão ficava na parte de trás do furgão de três lados e, como alguém tinha que ir com o morto, Asya se ofereceu. Com o rosto confuso, Armanoush segurava bem apertado a mão de Asya, dando a impressão de que as duas tinham se oferecido juntas. - Não quero mulher nenhuma sentada na frente do carro fúnebre - disse o motorista, que surpreendentemente se parecia muito com o lava-defuntos. Talvez fossem irmãos; um lavava os mortos e o outro os transportava. Talvez ainda houvesse um terceiro, encarregado de enterrá-los. - Bem, vai ter que querer, já que não sobrou homem nenhum nessa família - ralhou tia Zeliha de trás, numa voz tão gelada que o homem ficou quieto. Talvez tenha pensado que se não havia nenhum homem para escoltar o morto no carro fúnebre, era melhor que as duas garotas o acompanhassem do que a mulher intimidante de minissaia e piercing no nariz. O homem parou de se queixar e o carro fúnebre partiu. Imediatamente atrás dele estava o Toyota Coroila de Rose. Seu pânico era quase palpável pelo modo como o carro dava saltos e parava, movendo-se centímetro a centímetro como se convulsionado por soluços rítmicos ou intimidado pelo tráfego selvagem. Considerando-se sua crescente e contínua trepidação, era agora difícil imaginar Rose ao volante de um Grand Cherokee 4x4 azul ultramarino de cinco portas, equipado com um motor de oito cilindros. A mulher que passava rugindo pelos amplos bulevares do Arizona transformara-se numa motorista diferente nas sinuosas e cheias ruas de Istambul. Na verdade, Rose estava completamente atônita no momento, sua frustração e desorientação quase superando a tristeza. Setenta e duas horas depois que haviam chegado, sua impressão era de ter caído num buraco de traça no cosmos e esbarrado em outra dimensão, uma terra estranha onde nada parecia normal e até a morte era sufocada pelo surrealismo. Sentada junto a Rose, avó Gülsüm não conseguia se comunicar com a nora, uma

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estranha para ela. Sentia também preocupação e piedade pela americana agora que perdera o marido, embora não tanta preocupação e piedade quanto sentia por si mesma, agora que perdera o filho. No banco de trás estava Petite-Ma. Vestia um véu azul-esverdeado de tom escuro e enfeitado de negro profundo nas bordas. Em seu primeiro dia em Istambul, Rose passara boa parte do tempo tentando entender os critérios básicos que determinassem por que algumas turcas usavam o véu e outras não. Contudo, não levara muito tempo para desistir, deixando de decifrar o enigma a nível local ou mesmo apenas dentro da casa. Por que afinal a ultra-idosa Petite-Ma usava o véu enquanto sua nora Gülsüm não o usava e por que uma das tias estava sempre com ele enquanto as três irmãs pareciam ignorá-lo estava além da compreensão de Rose. Logo depois do Toyota, vinha o Alfa Romeo prata-metálico de tia Zeliha, com suas três irmãs empilhadas lá dentro e Sultão V enroscado numa cesta no colo de tia Cevriye, surpreendentemente tranqüilo naquele dia, como se a morte humana acalmasse sua ferocidade felina. Ao lado do Alfa Romeo, sibilava um Fusca amarelo dirigido por Aram. Sem entender muito bem por que as Kazanci levavam o morto de novo para casa mas esperto o bastante para saber como era cansativo objetar às tias, especialmente quando em grupo, ele decidira não perguntar.

Assim, seguia simplesmente o cortejo, tentando certificar-se de que a namorada estava bem em meio à toda a comoção. Ante o atravancado sinal em Shishli, a apenas alguns quarteirões do cemitério muçulmano para onde o lava-defuntos tentava se dirigir, por sorte todos se alinharam lado a lado como o regimento de um resoluto exército com muito entusiasmo para lutar mas sem causa comum. Tia Fende pôs a cabeça para fora da janela e acenou à direita e à esquerda, aparentemente empolgada com o fato fortuito de estarem enfileirados assim, agindo em uníssono pela primeira vez, ainda que devido a um sinal vermelho mecânico. Rose ignorou o gesto, avó Gülsüm, a gesticuladora. No sinal vermelho seguinte, entre Armanoush e o motorista, Asya inspecionou novamente os carros à volta, verificando, contente, que tinham se perdido de vista. Sentiu um súbito e desavergonhado alívio de não avistar nenhum Kazanci exceto o que jazia no caixão atrás, claro, mas isso não podia ser incluído em seu espectro de visão se ela não se virasse. Enquanto deslizavam pelo tráfego gelatinoso, espesso e congelado, aqui e ali cortado por imprevisíveis aberturas, na frente deles materializou-se uma van vermelho-brilhante da

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Coca-Cola. Quando o sinal abriu e estavam de novo em movimento, na pista à direita surgiu uma frota de carros com torcedores de futebol. Usavam bonés, cachecóis, bandanas e bandeiras de todos os tipos, alguns com as cores vermelho e amarelo de seu time até nos cabelos. Frustrados com o tráfego em câmara lenta, a maioria dos torcedores haviam momentaneamente afundado numa letargia, conversando preguiçosamente entre si e acenando de vez em quando com uma ou duas bandeiras pelas janelas abertas. Entretanto, quando o tráfego impeliu-se de novo para frente, eles retomaram os cantos e gritos com vigor renovado. Logo depois, um táxi amarelo com dúzias de adesivos impacientemente enfiou-se no mínimo espaço entre o carro fúnebre e a van da Coca-Cola à frente. Ao lado de Asya, o motorista xingou furioso, reduzindo a velocidade. Enquanto o homem resmungava um pouco mais, Armanoush observava o táxi à frente deles com espanto crescente e Asya lutava para decifrar os adesivos do pára-lama.

Entre muitos outros, viu um adesivo iridescente que afirmava: NÃo ME CHAME DE DESGRAÇADO! DESGRAÇADOS TAMBÉM TÊM CORAÇÃO. O motorista do táxi era um homem bem moreno e de aparência áspera, com um bigode grisalho tipo Zapata; parecia ter pelo menos sessenta anos, velho demais para estar envolvido numa barulhenta torcida de futebol. Havia uma forte contradição entre sua aparência totalmente tradicional e o frenesi com que dirigia. Ainda mais interessante do que ele eram os clientes - ou amigos - no táxi. O homem ao lado do motorista tinha metade do rosto pintada de amarelo e a outra metade de vermelho. Asya podia ver isso com nitidez do carro fúnebre porque o homem enfiara a cabeça pela janela, brandindo a bandeira amarela e vermelha numa das mãos enquanto com a outra segurava-se frouxamente no banco da frente. Com a parte superior do corpo projetada para fora e a parte inferior escondida no carro, ele parecia ter sido cortado em dois por um mágico. Mesmo à distância, Asya notou que o nariz do homem estava tão vermelho pelo álcool que isso perturbava a simetria metade-amarela-metade-vermelha de seu rosto, fazendo a balança pender para o lado vermelho. Exatamente quando imaginava qual bebida em especial - cerveja ou raki ou os dois - podia dar ao nariz de um ser humano essa tonalidade particular, a janela atrás dele foi abaixada e outro torcedor ergueu um tambor no ar com uma das mãos, segurando-se no interior do carro com a outra. Em perfeito uníssono, os dois torcedores brotaram das janelas como os ramos de uma

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árvore amarela em forma de táxi. Então o homem do banco da frente puxou uma baqueta e começou a tocar o tambor que o outro segurava no ar. A impossibilidade da tarefa deve tê-los energizado, pois logo suplementaram as batidas da baqueta e dos pés com um hino. Vários pedestres nas calçadas pararam, atônitos, mas um bom número aplaudiu e juntou-se à dupla, cantando a letra num fervor crescente: Que a terra, o céu e a água ouçam nossa voz Que o mundo inteiro estremeça com nossos passos fortes.- O que estão dizendo? - Armanoush cutucou Asya, mas esta traduziu lentamente, pois sua atenção estava fixada num pedestre, um rapaz encurvado e esfarrapado que cheirava cola de uma bolsa de plástico enquanto batia no chão com os pés nus e escurecidos para acompanhar o ritmo da música. De vez em quando, parava de cheirar e cantava a letra do hino, mas atrás dos outros cantores, como um eco lúgubre: "...com nossos passos fortes..." Enquanto isso, os outros torcedores começaram também a brandir as flâmulas e bandeiras para fora das janelas do carro, enquanto se juntavam jovialmente à canção. De vez em quando o tambor parava e o homem usava sua baqueta para desenhar cobras imaginárias no ar para os pedestres e vendedores ambulantes na calçada, como se regesse a todos, orquestrando o burburinho da cidade. Quando a primeira metade da canção terminou houve uma breve confusão, já que poucos do diversificado coro pareciam conhecer a segunda metade da letra. Sem deixar que esse detalhe aborrecido perturbasse sua solidariedade, começaram a cantar do início de novo, dessa vez mais animados do que antes. Que a terra, o céu e a água ouçam nossa voz Que o mundo inteiro estremeça com nossos passos fortes. Assim todos fluíram ao longo da avenida num dilúvio de vermelho e amarelo, em meio ao caos e ao clamor. No carro fúnebre, Armanoush, Asya e o motorista observavam silenciosamente, os olhos fixos no carro à frente. Seguiam tão perigosamente próximos do táxi amarelo que Asya podia ver, pelo vidro traseiro do carro, as latas de cerveja vazias rolando. - Olhem só! É assim que homens adultos se comportam? - explodiu o motorista do carro fúnebre. - Isso acontece de vez em quando. Um fanático morre e a sua família ou os seus amigos maníacos querem cobrir o caixão com a bandeira do seu time de futebol. Então, sem nenhuma vergonha, esperam que eu transporte esses caixões sacrílegos para o cemitério! Se querem saber, acho uma blasfêmia total! Deveria haver uma lei proibindo esse absurdo. Só deveria ser permitido o

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manto verde da prece. Só. O que essa gente tem na cabeça? Não são muçulmanos, afinal de contas? A pessoa morre pela graça de Alá, para que precisa da bandeira de um time? Por acaso Alá construiu um estádio no céu? Há campeonatos lá? Sem saber como responder à última pergunta, Asya mexeu-se constrangida no banco; mas a atenção do motorista foi atraída novamente para o táxi amarelo. Uma musiquinha saiu do celular de um dos torcedores inclinados para fora da janela. Ainda segurando-se no táxi com uma das mãos, ainda regendo a cidade com a outra, o corpulento torcedor tentou atender o telefone que tocava, esquecendo que não lhe sobrara mãos. Então perdeu o equilíbrio e, depois, a baqueta do tambor e o celular. Ambos caíram na rua bem na frente do carro fúnebre. O táxi amarelo parou abruptamente e o carro fúnebre deu uma freada quando a distância entre os dois carros era de um fio de cabelo. Asya e Armanoush foram jogadas para a frente com a parada súbita e depois ambas verificaram simultaneamente o caixão na parte de trás. Estava firme. O dono dos itens perdidos saltou imediatamente ainda sorrindo e cantando, o rosto meio amarelo, meio vermelho, fulgurando de fervor. Olhou atentamente para trás, como se estivesse pedindo desculpas ao trânsito por detê-lo. Somente então notou que o veículo que o seguia não era comum, mas sim um carro fúnebre verde-acinzentado, o símbolo da morte acompanhando-o como uma sombra agourenta. Por um longo e irritante minuto o homem ficou parado em meio ao tráfego, parecendo perplexo. Finalmente, quando outro carro cheio de torcedores passou cantando-o mesmo hino e seu companheiro tocou impacientemente o tambor com a mão, ocorreu ao homem pegar o celular e a baqueta na rua. Depois de lançar um último olhar ao carro fúnebre, o torcedor se virou e entrou de novo no táxi. Dessa vez não pôs a cabeça para fora novamente, permanecendo quieto dentro do carro. Armanoush e Asya não puderam deixar de sorrir.- Você deve ter a profissão mais venerada da cidade - disse Asya ao motorista, que vinha observando toda a cena com elas. - Sua sombra aterroriza até o torcedor mais violento. - Não - disse o motorista. - Paga-se muito pouco, não há vínculo empregatício, nem plano de saúde, nem direito de greve, nada. Eu dirigia grandes caminhões no passado, transporte de longa distância, sabe? Carvão, petróleo, gás butano, água industrial... Várias coisas. Já transportei tudo. - Era melhor que isso? - Está brincando? Claro que era melhor! Você recebe a carga em Istambul e vai para outra cidade. Nada de patrão para agradar nem nenhum supervisor que a gente tenha que lamber as botas! Você é dono de si

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mesmo. Se quiser pode demorar na estrada, desde que o patrão não peça para entregar a carga rápido demais. Nesse caso, você tem que dirigir sem dormir. Fora isso, é um bom trabalho. Bom e digno. Não é preciso se curvar para ninguém. O tráfego começou a acelerar e o motorista engatou a primeira. Em pouco tempo, a frota de futebol rumava direto para o estádio. - Então por que não larga o emprego? - perguntou Asya. - Eu dormi ao volante. Num momento estava correndo pela estrada, no outro escutei um barulho medonho, como se fosse o Dia do Juízo Final e Alá estivesse convocando todo o mundo. Quando abri os olhos, vi que estava dento da cozinha de uma choupana à beira da estrada. - O que foi que ele disse? - perguntou Armanoush. - Acho que você não vai querer saber, acredite em mim - sussurrou Asya. - Pergunte quantos mortos ele transporta nesse carro por dia. Traduzida a pergunta, o motorista sacudiu a cabeça: - Depende da estação. A primavera é a pior; pouca gente morre na primavera. Mas aí chega o verão, a estação mais agitada. Se a temperatura estiver acima de 26 graus, a coisa fica muito confusa para nós, principalmente por causa dos velhos... Eles morrem feito moscas... No verão, o pessoal de Istambul morre em enxames! 355 Fez uma pausa pensativa, deixando Asya com o fardo semântico da última frase que construíra. Então deu uma olhadela para um pedestre de smoking que gritava ordens num telefone celular. - Todos esse ricos! Hã?! Acumulam dinheiro a vida inteira para quê? Que besteira! As mortalhas têm bolsos? É uma mortalha de algodão que todos usam no final. E pronto. Nada de roupa chique. Nada de jóias. Você pode usar um smoking no túmulo ou um vestido de baile? Quem segura o céu para essa gente? Asya não tinha resposta nem tentou achar uma. - Se ninguém está segurando o céu, como podemos viver debaixo dele? Não vejo nenhuma coluna celestial, vocês vêem? Como se pode jogar futebol nesses estádios se Alá diz: "Não estou segurando mais o céu"? Com essa pergunta ainda no ar, dobraram a esquina e finalmente chegaram à residência dos Kazanca. Esperando por eles em frente à casa, tia Zeliha trocou algumas palavras com o motorista e lhe deu uma gorjeta. O Fusca, o Alfa Romeo prata-metálico e o Toyota Corolla alinhavam-se junto ao meio-fio. Todos pareciam ter chegado antes delas. A casa estava cheia de gente à espera do caixão.

Ao ENTRAREM, ASYA E ARMANOUSH DEPARARAM-SE com um espaço cheio de mulheres. Embora a maioria se amontoasse na sala do primeiro andar, algumas estavam momentaneamente espalhadas pelos outros aposentos para

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trocar as fraldas de um bebê, ralhar com uma criança, fofocar um pouco ou orar, já que era hora da prece vespertina. Sem nenhum lugar para se recolher, as garotas dirigiram-se à cozinha, mas encontraram lá todas as tias murmurando sobre a tragédia enquanto preparavam bandejas de ashure para servir.Minha pobre mãe está arrasada. Quem pensaria que todo o ashure que fez para Mustafá seria servido no seu velório? - disse tia Cevriye, em pé junto ao fogão. - É, a noiva americana também está arrasada - observou tia Feri- de, sem tirar os olhos de uma misteriosa mancha no chão. - Pobrezinha. Vem a Istambul pela primeira vez e perde o marido. Que horror. Sentada à mesa, ouvindo as irmãs enquanto fumava um cigarro, tia Zeliha disse suavemente: - Bem, acho que ela vai voltar para os Estados Unidos e tornar a se casar lá. Vocês sabem que a conta de Alá é três. Se ela se casou uma segunda vez, vai se casar uma terceira. Mas fico pensando, depois de um marido armênio e um turco, qual será sua terceira escolha? - A mulher está e luto, como pode dizer essas coisas? perguntou tia Cevriye. - O luto é como a virgindade - suspirou tia Zeliha. - Deve-se dá-lo a quem o merece mais. Horrorizadas com o que haviam acabado de escutar, as duas tias encolheram-se numa surpresa atônita. Naquele instante, Asya e Armanoush entraram na cozinha seguidas por Sultão V, que miava de fome. - Irmãs, vamos dar alguma coisa para o gato antes que ele devore todo o ashure - disse tia Zeliha. Nesse instante, tia Banu, que havia trabalhado nos últimos vinte minutos na bancada fazendo chá, fatiando limões e ouvindo o incessante debate sem dar uma palavra, virou-se para a irmã mais nova e decretou: - Temos coisas mais urgentes a fazer. Então abriu uma gaveta, puxou uma faca enorme e brilhante, pegou uma cebola na bancada e cortou-a ao meio. Em seguida, agarrando uma das metades, empurrou-a para o nariz de tia Zeliha. - Que isso? - Tia Zeliha deu um pulo da cadeira. - Estou ajudando você a chorar, minha querida. - Tia Banu sacudiu a cabeça. - Não vai querer que as pessoas entrem e a vejam assim, não é? Por mais que seja um espírito livre, até você precisa chorar um pouquinho na casa do morto. 357 Com a cebola sob o nariz, tia Zeliha fechou os olhos, parecendo uma estátua de vanguardarguarda sem qualquer chance de ser exposta num museu famoso: A mulher que não conseguia chorar e a cebola. Tia Zeliha abriu os olhos verde-jade e uma lágrima escorreu por seu rosto. A cebola funcionara. - Ótimo! - Tia Banu sacudiu a cabeça, confirmando. - Vamos, todo mundo, precisamos ir para a sala. Os convidados devem estar perguntando onde

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estão as donas da casa, deixando o morto sozinho. Assim se pronunciou a irmã que no passado costumava brincar de "mãe" com tia Zeliha, cantando-lhe músicas de ninar meio inventadas, dando-lhe biscoitos em caixas de cartol,ina transformadas em mesas imaginárias, contando-lhe histórias que sempre terminavam com a moça bonita casando com o príncipe, acarinhando-a e lhe fazendo cócegas; a irmã que a fazia rir como ninguém. - Muito bem! - concordou tia Zeliha. - Então vamos. Foram calmamente para a sala, as quatro tias na frente, Armanoush e Asya atrás. Em passos harmonizados, entraram na sala cheia de gente onde estava o corpo. Sentada numa almofada sobre o chão, o cabelo louro coberto por um véu, os olhos inchados de tanto chorar, o corpo gorducho apertado entre estranhas, Rose imediatamente fez um gesto ao ver Armanoush, chamando-a para o seu lado. - Amy, onde é que você estava? - perguntou à filha. Mas antes de esperar a resposta, lançou-lhe outras perguntas. - Não tenho idéia do que está acontecendo. Pode descobrir o que vão fazer com o corpo dele? Quando pretendem enterrá-lo? Como também não sabia as respostas, Armanoush aproximou-se mais e segurou-lhe a mão. - Mãe, tenho certeza de que sabem o que estão fazendo. - Mas eu sou a espo-sa. - Rose estacou ante a última palavra, como se começasse a duvidar daquilo. Haviam colocado Mustafá no divã. Suas mãos estavam dispostas com os polegares unidos sobre o peito, onde jazia uma pesada lâmina de aço para que o corpo não inchasse. Duas grandes moedas de prata escurecida encobriam suas pálpebras para que não abrissem. Na boca do morto, foram derramadas umas colheradas de água da Sagrada Meca. Ao lado de sua cabeça, num prato de cobre, queimava um incenso de sândalo. Embora todas as janelas estivessem completamente fechadas, a fumaça movimentava-se vivamente em intervalos regulares, como se abanada por uma brisa indetectável que se esgueirava de algum local por trás das paredes. Nesse momento, a fumaça ziguezagueava à volta do divã, dissolvendo-se finalmente numa lufada acinzentada. Mas de vez em quando seguia uma rota distinta, descendo cada vez mais para junto do corpo em espiral, como um pássaro mergulhando sobre a presa na terra. O cheiro do sândalo, azedo e penetrante, tornou-se tão intenso que os olhos de todos lacrimejaram. A maioria não se importou, pois já estava chorando mesmo. Um imame aleijado estava espremido num canto. A parte superior de seu corpo balançava enquanto ele lia alto o Alcorão totalmente absorto. O ritmo e a cadência de sua recitação prosseguiam continuamente, até que parou de

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súbito. Armanoush tentou não prestar atenção à flagrante disparidade entre o corpo diminuto do imame e a robustez das mulheres que o rodeavam. Tentou também não olhar o vácuo onde deviam estar os dedos do homem. Em cada mão o imame tinha apenas um dedo e meio. Era impossível não pensar no que teria acontecido. Teria nascido assim ou seus dedos haviam sido cortados? Fosse qual fosse a história, seu corpo incompleto era uma razão de todas as mulheres estarem tão à vontade perto dele. Em sua imperfeição residia a chave de sua perfeição, em sua falta de inteireza, o segredo de sua santidade. Era uma alma dos limiares, e como todas as almas dos limiares, tinha algo lúgubre. Era um homem, mas ao mesmo tempo tão santo que não se podia considerá-lo um homem. Era um homem santo, mas mesmo assim tão aleijado que não se podia esquecer o quanto era mortal. Fosse como fosse, o imame aleijado não precisava de dedos para virar as páginas do Sagrado Alcorão na sua mente, já que tinha cada versículo dele guardado na memória. No final dos versículos específicos, o imame fez uma pausa por algumas frações de segundo, engolindo o sabor deixado na boca pelas sacrossantas palavras.

Então começou a recitar de novo. Era exatamente esse ritmo ondulante que tocava os corações das mulheres enlutadas; nenhuma delas entendia uma palavra em árabe. Mesmo quando se punham a soluçar, tinham sempre o cuidado de não fazê-lo muito alto para não abafar a voz do imame. Também nunca choravam de modo excessivamente suave, não esquecendo nem por um momentd que o lugar em que estavam apinhadas era um blüevi. Ao lado do imame, no segundo lugar mais respeitado, sentava-se Petite-Ma, seu corpo pequeno parecendo uma ameixa seca deixada ao sol, encolhida e enrugada. Toda pessoa que entrava beijava-lhe a mão e lhe dava os pêsames, mas era difícil saber se ela realmente as ouvia. Na maior parte do tempo, Petite-Ma olhava cada uma que lhe beijava a mão. Mas de vez em quando respondia uma pessoa ou outra com perguntas. "Quem é você, querida?", perguntava a parentes ou a velhas amigas. "Por onde tem andado esse tempo todo?", "Não vá a lugar nenhum, menina levada!", ralhava com totais estranhas. E então, entre silêncios significativos e observações silenciosas, seu rosto retirava-se para um completo vazio e ela pestanejava num pânico furtivo. Naquele momento, não compreendia o que toda aquela gente fazia em sua sala e por que choravam tanto. O divã estava parado; as mulheres, em constante movimento. O divã era branco; a maior parte das mulheres usava preto. O divã era silencioso; as mulheres

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eram todas voz - como se fazer exatamente o oposto do morto fosse um requisito para se estar vivo. Dentro de pouco tempo, cada uma delas ficou em pé e curvou a cabeça obedientemente. Com rostos alertas, cheios de dor e reverência, mas também abelhudos, elas observaram o imame aleijado sair da sala. Enquanto o acompanhava à saída, tia Banu beijou-lhe as mãos e lhe agradeceu muitas vezes depois de lhe dar uma gratificação. Assim que o imame foi embora, um grito agudo cortou o ar. Foi emitido por uma mulher gorducha que ninguém vira antes. Seu grito subiu em decibéis penetrantes e em seguida seu rosto ficou rubro, sua voz rascante, todo seu corpo tremia. Tão infeliz era o seu estado e tão palpável sua dor que os outros a observavam com temor e reverência. A mulher era uma carpideira, que fora contratada de antemão para prantear na casa do morto, chorando por pessoas que não vira sequer uma vez. Seu pranto era tão tocante que as outras mulheres não puderam deixar de chorar. Vendo-se rodeada por um bando de estranhas chorando (até sua mãe parecia uma estranha naquele momento), Armanoush observou o redemoinho de mulheres se mexer e se afastar. Em completa harmonia e movimentos infalíveis, as presentes trocavam de lugar com as recém-chegadas. Como pássaros iguais, elas se penduravam nas poltronas, no sofá e nas almofadas no chão, tão perto umas das outras que seus ombros se tocavam. Cumprimentavam-se sem palavras e choravam com estridência; elas que podiam ser tão quietas sozinhas e, no entanto, tão ruidosas quando pranteavam coletivamente. Armanoush passou a detectar algumas regras no rito do luto: não havia mais gente cozinhando na casa, por exemplo. Em vez disso, cada recém-chegada trazia uma bandeja de comida; a cozinha estava repleta de caçarolas e panelas. Não havia carne, sal ou bebida à vista, e nenhum cheiro apetitoso de alimentos assados. Da mesma forma que os cheiros, os sons também eram controlados. A música não era permitida; nada de TV ou rádio. Pensando em Johnny Cash, Armanoush olhou em volta à procura de Asya. Então a viu sentada no sofá com um bando de vizinhas, a cabeça erguida, distraidamente puxando um cacho enquanto olhava o corpo. Justamente quando ia fazer um movimento na direção dela, Armanoush viu tia Zeliha sentar-se perto da filha e, com uma expressão ilegível, dizer algo em seu ouvido. O CORPO ESTAVA ESTENDIDO NO DIVÃ. E no meio de um grupo de mulheres que se lamentava e chorava incessantemente, Asya sentava-se quieta, seu rosto totalmente sem cor. - Não acredito em você - disse Asya, sem olhar diretamente para a mãe.- Não precisa acreditar - murmurou tia Zeliha. - Mas percebi, afinal,

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que eu lhe devia uma explicação. E se não fizesse isso agora, não haveria outro momento. Ele morreu. Asya levantou lentamente e olhou o morto. Olhou intensamente, como se não quisesse esquecer aquele corpo, lavado com sabão de loureiro e envolvido numa mortalha de algodão de três peças; aquele corpo que agora jazia imóvel sob uma lâmina de aço e duas moedas de prata escurecida; aquele corpo que recebera água da Meca e fora incensado com sândalo era seu pai. Seu tio... seu pai... seu tio... seu pai... Ergueu a cabeça e varreu o lugar com os olhos até ver tia Zeliha sentada nos fundos da sala com uma expressão vazia que nem uma cebola recém-cortada poderia atingir. Quando engoliu em seco na direção da mãe, ocorreu-lhe por que esta não impedira que a filha a chamasse de "tia". Sua tia... sua mãe... sua tia... sua mãe... Asya deu um passo em direção ao pai morto. Um passo e depois outro, aproximando-se. A fumaça se intensificou num filete. Em algum ponto da sala, Rose soluçou de dor. Numa cadeia incessante, todas as mulheres também choraram; todas ligadas numa seqüência de reação e ritmo, cada uma das histórias entrelaçada nas outras, quer reconhecessem suas donas ou não. Houve uma calmaria em todos os prantos - ou talvez nas dores comunais houvesse alguém que não podia prantear com os outros. - Baba... - murmurou Asya. No início era o verbo, diz o islã, precedendo qualquer existência. De qualquer modo, com o pai de Asya fora exatamente o contrário. No início era a ausência da palavra, precedendo a existência. Outrora havia; outrora não havia. Há muito tempo, numa terra não tão distante, quando a peneira estava ainda em forma de palha, a mula era o arauto da cidade e o 362 camelo era o barbeiro... quando eu era mais velho que meu pai e balançava seu berço ao ouvi-lo chorar... quando o mundo estava de cabeça para baixo e o tempo era um ciclo que girava sempre, tornando o futuro mais velho do que o passado e o passado tão imaculado quanto campos recém-semeados... Outrora havia; outrora não havia. As criaturas de Deus eram abundantes como grãos e falar demais era um pecado, pois se podia contar o que não se devia lembrar e lembrar o que não se devia contar. O CIANURETO DE POTÁSSIO É UM COMPOSTO INCOLOR formado pelo sal de potássio e o cianureto de hidrogênio. Parece açúcar e é altamente solúvel em água. Ao contrário de alguns outros compostos tóxicos, tem um cheiro marcante. Um cheiro de amêndoas amargas. Numa tigela de ashure decorada com sementes de romã e gotas de cianureto de potássio, seria difícil detectar a presença do último, pois as amêndoas são um dos diversos ingredientes do doce. - O que fez, minha ama? -

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perguntou sr. Amargo com voz roufenha e sorriso mal-humorado, como era de se esperar dele. - Interferiu no andamento do mundo! Tia Banu contraiu os lábios. - Sim - concordou ela, as lágrimas lhe escorrendo pelo rosto. - É verdade, eu lhe entreguei o ashure, mas foi ele que resolveu comê-lo. Ambos decidimos que era melhor assim, muito mais digno do que sobreviver com o fardo do passado. Foi melhor do que não fazer nada com o meu conhecimento. Alá nunca me perdoará. Serei banida para sempre do mundo dos virtuosos. Nunca irei para o céu. Serei jogada diretamente nas chamas do inferno. Mas Alá sabe que há pouco remorso em meu coração. - Talvez o purgatório seja sua morada para sempre. - Sra. Doce tentou oferecer algum consolo, sentindo-se desamparada ao ver sua ama chorando. - E a garota armênia? Vai contar a ela o segredo de sua avó? Não posso. É demais. Além disso, ela não acreditaria em mim. - A vida é coincidência, minha ama. - Era o sr. Amargo de novo. - Não posso contar a história a ela. Mas vou lhe dar isso. - Tia Banu abriu uma gaveta e tirou o broche de romã de ouro com sementes de rubi. Avó Shushan, antiga dona do broche, fora uma daquelas almas expatriadas e obrigadas a adotar um nome depois do outro, para logo abandoná-los a cada novo estágio de sua vida. Nascida Shushan Stamboulian, tornou-se Shermin 626, passou a ser Shermin Kazanci e depois tornou-se Shushan Tchakhmakhchian. Com cada nome que adquiria, algo se perdia nela para sempre. Riza Selim Kazanci fora um astucioso homem de negócios, um cidadão dedicado e também um bom marido a seu próprio modo. Suficientemente astuto para passar da fabricação de caldeirões à produção de bandeiras no início da era republicana, no momento em que a nação precisava cada vez mais de bandeiras para enfeitar a mãe-pátria, tornou-se um dos empresários mais ricos de Istambul. Sua visita ao orfanato ocorreu pouco depois, quando visitou o diretor da instituição na tentativa de fechar negócios em potencial. Ali, na penumbra do corredor, viu uma garota armênia de apenas 14 anos convertida ao islã. Não foi preciso muito tempo para que descobrisse ser ela a sobrinha do homem que ele mais adorava no mundo: mestre Levon, aquele que lhe ensinara a arte de fabricar caldeirões e que tomara conta do garoto necessitado que ele fora no passado. Agora era sua vez de ajudar a família do mestre Levon, pensou Riza Selim Kazanci. E apesar disso, quando após inúmeras visitas ele finalmente pediu a garota em casamento, não era guiado pela bondade, mas sim pelo amor. Estava convencido de que, se a tratasse bem e a mimasse, desselhe

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um filho e uma casa magnífica, a garota esqueceria aos poucos o passado e posteriormente sua ferida cicatrizaria. Era só uma questão de tempo. "As mulheres não podem continuar arrastando o fardo de sua infância depois que elas próprias têm um filho", raciocinava. Portanto, quando lhe chegou a notícia de que a esposa o abandonara, indo para os Estados Unidos com o irmão, inicialmente recusou-se a acreditar. Em seguida expulsou-a de sua vida. Shushan desapareceu dos anais da família Kazanci, inclusive da memória de seu próprio filho. Ser chamado de Levon ou Levent fez pouca diferença para o filho de Shushan. De um modo ou de outro, tornou-se um adulto amargo. Tão gentil e educado fora de casa quanto cruel para os próprios filhos - quatro meninas e um menino. As histórias das famílias entrelaçam-se de tal modo que o acontecido há gerações pode ter um impacto sobre resultados aparentemente irrelevantes no tempo presente. O passado nunca morre. Caso Levent Kazanci não tivesse se tornado um homem amargo e cruel, seu único filho homem, Mustafá, teria sido uma pessoa diferente? Se gerações atrás, em 1915, Shushan não tivesse se tornado órfã, Asya seria uma bastarda? A vida é coincidência, embora às vezes seja necessário um gênio para percebê-lo. No FINAL DA TARDE, TIA ZELIHA FOI ATÉ O JARDIM. Sem querer entrar na casa, Aram ficara esperando ali por horas, tendo acabado há muito de fumar todos os seus cigarros. - Eu lhe trouxe chá - disse ela. A brisa da primavera acariciou o rosto dos dois, trazendo de longe os variados cheiros do mar, da grama crescendo e das flores das amendoeiras ainda por florir em Istambul. - Obrigado, meu amor. Que copo bonito! - Você gostou? - Tia Zeliha girou o copo de chá na mão enquanto seu rosto animou-se com a lembrança. - É tão esquisito. Sabe o que percebi agora? Comprei esse jogo de copos há vinte anos. Tão estranho!

-O que é tão estranho? - perguntou Aram, sentindo naquele momento uma gota de chuva. - Nada - respondeu tia Zeliha, abaixando a voz. - É que nunca pensei que fossem durar tanto tempo. Sempre tive medo de se quebrarem com facilidade, mas acho que vivem para contar a história, afinal de contas. Até os copos de chá fazem isso! Em poucos minutos, Sultão V saiu lentamente da casa, a barriga cheia, os olhos sonolentos. Fez um círculo em torno deles antes de se aninhar perto de tia Zeliha. Durante um tempo, pareceu absorvido em lamber meticulosamente uma pata; então parou, olhando em volta, alerta, para descobrir o que poderia ter perturbado sua serenidade. Em vez da resposta, uma gota indiferente

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pingou em seu focinho. Depois outra, desta vez em sua cabeça. O gato ergueu-se lentamente, profundamente descontente, e se alongou antes de se dirigir para a casa. Outra gota. Ele apertou o passo. Talvez não conhecesse as regras. Simplesmente não sabia que nada que caísse do céu era amaldiçoado. E isso incluía a chuva.

***FIM***