de mãos dadas com hooks

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Estudos Feministas, Florianópolis, 22(3): 987-1014, setembro-dezembro/2014 1001 De mãos dadas com hooks De mãos dadas com hooks De mãos dadas com hooks De mãos dadas com hooks De mãos dadas com hooks Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade WMF Martins Fontes, 2013. 283 p. HOOKS, bell. Bell hooks é professora de inglês, estudos afro-americanos e estudos da mulher no City College de Nova York, escritora e feminista negra. Nascida na zona rural do sul dos Estados Unidos, na época da segregação racial, ela conta que, nesse período, as meninas negras das classes trabalhadoras tinham três opções de carreira: casar, trabalhar como empregada ou tornar-se professora em uma escola. Para as negras 1 , lecionar era um ato fundamentalmente político, pois tinha raízes na luta antirracista. Aluna de escolas negras segregadas, suas professoras eram quase todas mulheres. Elas lhe ensinaram, desde cedo, que estudar era um ato contra- hegemônico, um modo de resistir às estratégias brancas de colonização racista. Para realizar um trabalho dessa envergadura, procuravam conhecer tudo o que dissesse respeito à vida de suas alunas (condições socioeconômicas, igreja que frequentavam, como era a casa onde mora- vam, como as famílias as tratavam). No entanto, com a integração racial, tudo mudou: o conhe- cimento passou a se resumir à pura informação, não tendo nenhuma relação com o modo como se vivia. Ele não tinha ligações também com a luta antirracista. Ali, a ânsia de aprender era vista como uma espécie de ameaça à autoridade branca. Ao assistir aulas de professoras brancas, hooks notou que elas reforçavam os estereótipos racistas, fazendo-a perder o gosto pela escola. Ela lembra-se como sentiu-se desprivilegiada com a dessegregação da escola em sua adolescência e de como o apartheid continuava existindo na maioria dos espaços sociais desse lugar. A partir disso, passou a dife- renciar dois tipos de educação: a educação engajada, que tinha como pressuposto a prática da liberdade, e a educação que se preocupava, unicamente, em reforçar a dominação. Ao iniciar a graduação na Universidade Stanford, foi refor- çada a ideia de que era necessário aprender a obedecer às autoridades. Aceitando a profissão de professora como destino, hooks se atormentava com a realidade das salas de aula, espaços geralmente usados para a execução de rituais de controle cuja essência era o exercício injusto do poder. As alunas provenientes de grupos marginalizados eram levadas a sentir que não estavam lá para aprender, mas para provar que eram iguais às brancas. Por isso mesmo, a obra de hooks reflete sua preocupação permanente com o processo de descolonização na medida em que afeta as afro-americanas que vivem dentro da cultura da supremacia branca nos Estados Unidos. Suas práticas pedagógicas nascem da interação entre as pedagogias anticolonialista, crítica e feminista, o que lhe permite questionar as parcialidades que reforçam os sistemas de dominação. Toda essa discussão pode ser verificada pela leitura dos 14 ensaios de seu livro. Eles se propõem a atuar como uma intervenção contrapondo-se à desvalorização da atividade das professoras. São ensaios de celebração por transmitirem a alegria que hooks sente ao dar aulas. Eles se preocupam em repensar as práticas de ensino, refletindo sua experiência em discussões críticas com alunas e professoras que participaram de suas aulas, nas quais são abordados temas como racismo, sexismo, imperialismo, classe social, experiência, feminismos, eros e erotismo no processo pedagógico. A educação como práti- ca da liberdade é um jeito de ensinar que qual- quer uma pode aprender. Inspirada no educador brasileiro Paulo Freire e no monge budista viet- namita Thich Nhat Hanh, ela entende que professoras e alunas devem ser vistas em sua integralidade. Profundamente tocada pela obra de Freire, ela conta que tê-lo lido inspirou-a a desafiar a educação bancária, a informação como consumo e a ênfase na memorização. Além disso, hooks sentiu-se fortemente identificada com as camponesas marginalizadas e com as negras de Guiné-Bissau trazidas por ele. Vinda de uma área rural, sentiu-se intimamente ligada à vida delas e sua relação com a alfabetização, já que a impiedosa política segregacionista do sul impedia as negras de lerem e escreverem, fazendo-as depender de pessoas racistas para ensiná-las. Freire matou a sede de hooks, sua grande carência enquanto sujeita colonizada, marginalizada e que não tinha certeza de como se libertar, além de fazê-la compreender as limitações do tipo de educação que havia

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Ensinando a transgredir: aeducação como prática daliberdadeWMF Martins Fontes, 2013. 283 p.

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  • Estudos Feministas, Florianpolis, 22(3): 987-1014, setembro-dezembro/2014 1001

    De mos dadas com hooksDe mos dadas com hooksDe mos dadas com hooksDe mos dadas com hooksDe mos dadas com hooks

    Ensinando a transgredir: aeducao como prtica daliberdade

    WMF Martins Fontes, 2013. 283 p.

    HOOKS, bell.

    Bell hooks professora de ingls, estudosafro-americanos e estudos da mulher no CityCollege de Nova York, escritora e feminista negra.Nascida na zona rural do sul dos Estados Unidos,na poca da segregao racial, ela conta que,nesse perodo, as meninas negras das classestrabalhadoras tinham trs opes de carreira:casar, trabalhar como empregada ou tornar-seprofessora em uma escola. Para as negras1,lecionar era um ato fundamentalmente poltico,pois tinha razes na luta antirracista. Aluna deescolas negras segregadas, suas professoraseram quase todas mulheres. Elas lhe ensinaram,desde cedo, que estudar era um ato contra-hegemnico, um modo de resistir s estratgiasbrancas de colonizao racista. Para realizar umtrabalho dessa envergadura, procuravamconhecer tudo o que dissesse respeito vida desuas alunas (condies socioeconmicas, igrejaque frequentavam, como era a casa onde mora-vam, como as famlias as tratavam). No entanto,com a integrao racial, tudo mudou: o conhe-cimento passou a se resumir pura informao,no tendo nenhuma relao com o modocomo se vivia. Ele no tinha ligaes tambmcom a luta antirracista. Ali, a nsia de aprenderera vista como uma espcie de ameaa autoridade branca. Ao assistir aulas de professorasbrancas, hooks notou que elas reforavam osesteretipos racistas, fazendo-a perder o gostopela escola. Ela lembra-se como sentiu-sedesprivilegiada com a dessegregao da escolaem sua adolescncia e de como o apartheidcontinuava existindo na maioria dos espaossociais desse lugar. A partir disso, passou a dife-renciar dois tipos de educao: a educaoengajada, que tinha como pressuposto a prticada liberdade, e a educao que se preocupava,unicamente, em reforar a dominao. Ao iniciara graduao na Universidade Stanford, foi refor-ada a ideia de que era necessrio aprender aobedecer s autoridades.

    Aceitando a profisso de professora comodestino, hooks se atormentava com a realidadedas salas de aula, espaos geralmente usadospara a execuo de rituais de controle cujaessncia era o exerccio injusto do poder. As alunasprovenientes de grupos marginalizados eramlevadas a sentir que no estavam l paraaprender, mas para provar que eram iguais sbrancas. Por isso mesmo, a obra de hooks refletesua preocupao permanente com o processode descolonizao na medida em que afeta asafro-americanas que vivem dentro da cultura dasupremacia branca nos Estados Unidos. Suasprticas pedaggicas nascem da interao entreas pedagogias anticolonialista, crtica e feminista,o que lhe permite questionar as parcialidadesque reforam os sistemas de dominao.

    Toda essa discusso pode ser verificada pelaleitura dos 14 ensaios de seu livro. Eles se propema atuar como uma interveno contrapondo-se desvalorizao da atividade das professoras.So ensaios de celebrao por transmitirem aalegria que hooks sente ao dar aulas. Eles sepreocupam em repensar as prticas de ensino,refletindo sua experincia em discusses crticascom alunas e professoras que participaram desuas aulas, nas quais so abordados temas comoracismo, sexismo, imperialismo, classe social,experincia, feminismos, eros e erotismo noprocesso pedaggico. A educao como prti-ca da liberdade um jeito de ensinar que qual-quer uma pode aprender. Inspirada no educadorbrasileiro Paulo Freire e no monge budista viet-namita Thich Nhat Hanh, ela entende queprofessoras e alunas devem ser vistas em suaintegralidade. Profundamente tocada pela obrade Freire, ela conta que t-lo lido inspirou-a adesafiar a educao bancria, a informaocomo consumo e a nfase na memorizao.Alm disso, hooks sentiu-se fortemente identificadacom as camponesas marginalizadas e com asnegras de Guin-Bissau trazidas por ele. Vinda deuma rea rural, sentiu-se intimamente ligada vida delas e sua relao com a alfabetizao, jque a impiedosa poltica segregacionista do sulimpedia as negras de lerem e escreverem,fazendo-as depender de pessoas racistas paraensin-las. Freire matou a sede de hooks, suagrande carncia enquanto sujeita colonizada,marginalizada e que no tinha certeza de comose libertar, alm de faz-la compreender aslimitaes do tipo de educao que havia

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    recebido como aluna. Criticando a teoria femi-nista, que, em seu incio, inclua apenas as mulhe-res brancas de classe mais privilegiada, hooksafirma que a obra do educador a incluiu muitomais do que a produo feminista, que, em suamaioria, no acolhia as experincias das mu-lheres negras e o fato de que o gnero profun-damente conectado com questes de classesocial e raa. A interseco do pensamento delecom a pedagogia trazida pelas professorasnegras de sua infncia causou um profundoimpacto em sua formao.

    Quando comeou a lecionar na gradua-o, o primeiro paradigma que moldou suapedagogia foi o de que aprender deve ser umprocesso prazeroso. Para criar um processo deaprendizagem empolgante, necessrio que apresena de todas seja reconhecida. A profes-sora, nesse caso, no a responsvel exclusivapela dinmica da sala, que deve ser vista comoum espao comunitrio de aprendizado. Doponto de vista da pedagogia engajada, as profes-soras tm compromisso de lutar contra cisesentre mente e corpo e sua consequente compar-timentalizao, bem como com rupturas entreos distintos campos produtores de conhecimento.Professoras e alunas devem compartilhar suasnarrativas conjuntamente, sendo que as primeirasprecisam correr o risco de ligar suas narrativasconfessionais s produes tericas, mostrandode que modo a experincia pode iluminar acompreenso do material acadmico.

    A experincia um elemento que auxiliana recuperao das vozes daqueles grupos dealunas que as tm silenciadas em sala de aula.Sua estratgia pedaggica afirmar a existnciadessas alunas, seu direito de falar de mltiplasmaneiras. Ela considera que todas levam para asala de aula um conhecimento que vem daexperincia, e esta deva ser apresentada comoum modo de conhecer que coexiste com outrasformas de conhecimento, sem hierarquias. Aarticulao entre teoria e prtica e dessas coma experincia permite o engajamento na lutafeminista. A experincia criada a partir da dor,da luta e da exposio de algumas feridas eserve para guiar as jornadas tericas. Com isso,hooks busca desconstruir o conceito de vozprivilegiada da autoridade. Seu convite paraque sejam questionadas as prticas pedag-gicas usadas em sala de aula, as parcialidadesimpostas por pontos de vistas essencialistas, queno levam em considerao as construeshistricas ao lado de perspectivas que insistemque a experincia no tem vez nesses espaos.

    A prpria universidade, em seu papel

    tradicional de busca pela verdade, a partir desuas parcialidades, sustenta a supremacia branca,o imperialismo, o sexismo e o racismo, distorcen-do a educao a tal ponto que esta deixou deser uma prtica emancipatria. Quanto sdiscusses sobre multiculturalismo introduzidasnesse ambiente, se, por um lado, acenam coma esperana de uma vivncia democrtica noespao educacional, por outro, mostram profes-soras temerosas de perderem o controle em salade aula. Em sua universidade, hooks observou aterrvel dificuldade que elas tiveram para com-preender que o reconhecimento das diferenas,muitas vezes, pode exigir mudanas na prpriaestrutura das aulas. O tratamento das diferenasobrigava-as a lidarem com antagonismos paraos quais no se encontravam preparadas. Dessaforma, muitas das que haviam abraado essacausa acabaram recuando. Isso porque, aindaque o multiculturalismo esteja em foco, sopoucas as discusses sobre como ele deve serlevado no contexto da aula. Mas, para honrar arealidade social e a experincia de grupos nobrancos e marginalizados, as professoras detodos os nveis de ensino devem reconhecer quea universalidade de suas teorias e posiciona-mentos precisa ser colocada prova. Os temaspodem ser abordados de inmeras maneiras,no existindo uma nica frmula absoluta paratodos.

    O medo das professoras deve ser levadoem considerao nos momentos de formao,assim como a criao de estratgias paraabordar a sala de aula e o currculo multiculturais.Para tanto, necessrio ter disposio paraabordar o ensino a partir de um ponto de vistaque inclua uma conscincia de raa, sexo eclasse social, fazendo da sala um espao dereflexo desses temas, associando-os com adisciplina oferecida. A adoo do multiculturalis-mo obriga as professoras a centrarem suaateno na voz, respondendo a questes como:quem fala? quem ouve? por qu? Num contextomulticultural, elas so convidadas a aceitar aaprendizagem de novos paradigmas e epistemo-logias e sustentar o desconforto que isso podegerar naquelas que esto envolvidas no processode aprendizagem. A perspectiva multiculturalobriga-as a reconhecer as estreitas fronteiras quemoldam o modo como o conhecimento par-tilhado. Leva-as a reconhecer sua cumplicidadena aceitao de todos os tipos de preconceitose as incita a usar o conflito provocado pelasdiferenas como catalisador de novos modosde pensar.

    Preocupada em fazer chegar suas teoriza-

  • Estudos Feministas, Florianpolis, 22(3): 987-1014, setembro-dezembro/2014 1003

    es para um pblico amplo, hooks defendeque uma escrita acessvel uma escolha polticaque possibilita que todas possam se responsabilizarpor projetos que levem em conta a quebra deparadigmas. O fato de no usar uma escrita estri-tamente acadmica, muitas vezes lhe rendeucrticas. Mas hooks est acostumada a ocuparas margens e no se intimida. Esse o seu primeiro

    livro traduzido em nossa lngua. hora, portanto,de formar nossa prpria opinio sobre ela!

    No taNo taNo taNo taNo ta1 Optei por adotar o feminino como referncia em todo otexto para referir-me a mulheres e homens.

    rika Oliveira Universidade Federal de So Paulo