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De Londres para o Rio de Janeiro: João Jacinto de Magalhães e o deslocamento do Quarto de Círculo, 1777-1787. Heloisa Meireles Gesteira Pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins Professora do Departamento de História da PUC-Rio [email protected] Em finais do século XVIII desembarcou no Rio de Janeiro uma coleção de instrumentos científicos vindos da Europa, a maior parte fabricada e comprada em Londres. Composta por uma série de artefatos, a coleção foi organizada visando a dar condições de trabalho aos astrônomos e engenheiros encarregados de realizar levantamentos topográficos e determinar as coordenadas geográficas nos confins da América portuguesa após a assinatura do Tratado de Santo Ildefonso em 1777. Entre os instrumentos matemáticos, havia um quadrante astronômico. De acordo com relatos feitos pelo astrônomo Bento Sanches D’Orta, foram realizadas observações astronômicas no Morro do Castelo com auxílio de um quarto de círculo feito por Jeremiah Sisson no ano de 1779. Fornecendo elementos para as reflexões sobre o tema das viagens dos instrumentos científicos e sobre as formas de circulação de saberes e práticas astronômicas no âmbito dos Impérios ultramarinos durante a Época Moderna - neste caso a experiência de Portugal - esta reflexão se detém sobre alguns personagens que se tornaram fundamentais neste percurso, em particular João Jacinto de Magalhães, filósofo português criador de instrumentos filosóficos estabelecido em Londres entre 1764 e 1790; e o quarto de círculo fabricado por Jeremiah Sisson, este último, construtor de instrumentos matemáticos, com loja também na cidade de Londres. O objetivo de tratar um artefato como “personagem” liga-se à nossa estratégia de explorar os instrumentos científicos como fontes documentais nas análises aqui propostas, dando ao quarto de círculo, e às suas histórias, um lugar de protagonista, e não apenas como objeto ilustrativo. Como estratégia narrativa, algumas questões metodológicas serão apresentadas ao longo do texto. Nossa hipótese é de que João Jacinto de Magalhães desenhou o quarto de círculo fabricado por Jeremiah Sisson em 1779, uma vez que este artefato seria

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Page 1: De Londres para o Rio de Janeiro: João Jacinto de ... · importantes. As viagens realizadas com o propósito de estudos de Astronomia foram intensificadas como parte da construção

De Londres para o Rio de Janeiro:

João Jacinto de Magalhães e o deslocamento do Quarto de Círculo, 1777-1787.

Heloisa Meireles Gesteira

Pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins

Professora do Departamento de História da PUC-Rio

[email protected]

Em finais do século XVIII desembarcou no Rio de Janeiro uma coleção de

instrumentos científicos vindos da Europa, a maior parte fabricada e comprada em

Londres. Composta por uma série de artefatos, a coleção foi organizada visando a dar

condições de trabalho aos astrônomos e engenheiros encarregados de realizar

levantamentos topográficos e determinar as coordenadas geográficas nos confins da

América portuguesa após a assinatura do Tratado de Santo Ildefonso em 1777. Entre

os instrumentos matemáticos, havia um quadrante astronômico. De acordo com

relatos feitos pelo astrônomo Bento Sanches D’Orta, foram realizadas observações

astronômicas no Morro do Castelo com auxílio de um quarto de círculo feito por

Jeremiah Sisson no ano de 1779.

Fornecendo elementos para as reflexões sobre o tema das viagens dos

instrumentos científicos e sobre as formas de circulação de saberes e práticas

astronômicas no âmbito dos Impérios ultramarinos durante a Época Moderna - neste

caso a experiência de Portugal - esta reflexão se detém sobre alguns personagens que

se tornaram fundamentais neste percurso, em particular João Jacinto de Magalhães,

filósofo português criador de instrumentos filosóficos estabelecido em Londres entre

1764 e 1790; e o quarto de círculo fabricado por Jeremiah Sisson, este último,

construtor de instrumentos matemáticos, com loja também na cidade de Londres. O

objetivo de tratar um artefato como “personagem” liga-se à nossa estratégia de

explorar os instrumentos científicos como fontes documentais nas análises aqui

propostas, dando ao quarto de círculo, e às suas histórias, um lugar de protagonista, e

não apenas como objeto ilustrativo. Como estratégia narrativa, algumas questões

metodológicas serão apresentadas ao longo do texto.

Nossa hipótese é de que João Jacinto de Magalhães desenhou o quarto de

círculo fabricado por Jeremiah Sisson em 1779, uma vez que este artefato seria

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utilizado para observações em viagens pelos sertões da América portuguesa. Além

disto, em nossa análise, o protagonismo que pretendemos conferir ao instrumento que

desembarcou no Rio de Janeiro, nos permite explorar suas condições de uso e elucidar

aspectos da circulação de saberes, de práticas e de gestos importantes para a

construção do conhecimento científico na segunda metade do século XVIII. (Schaffer,

2011)

Após assinatura do Tratado de Santo Ildefonso entre Espanha e Portugal em

1777, expedições formadas por astrônomos, engenheiros e matemáticos foram

organizadas e marcharam pelos confins da América visando demarcar, no terreno, os

limites acordados entre as coroas. Os demarcadores utilizaram os melhores

procedimentos técnicos e saberes disponíveis à época. O diplomata português Luis

Pinto de Sousa Coutinho, encarregado de parte da missão, imediatamente contratou

João Jacinto de Magalhães para supervisionar a escolha, compra e embarque de uma

coleção de instrumentos científicos que deveriam seguir de Londres para Lisboa e,

posteriormente, Rio de Janeiro de onde seriam remetidos, junto com os homens de

ciências e técnicos, para os confins da América.

Da coleção, um pequeno número de artefatos sobreviveu e encontra-se hoje

em museus. No acervo museológico tridimensional do Museu de Astronomia e

Ciências Afins, situado na cidade do Rio de Janeiro, há um quarto de círculo

fabricado por Jeremiah Sisson, em 1779. (Malaquias, 2012; Gesteira, 2016).

Ao seguir as pistas de quartos de círculo fabricados por Jeremiah Sisson em

1779, alguns personagens importantes foram se juntando. As diferentes atuações

destes personagens nos auxiliaram a responder algumas perguntas relativas a este

processo de encomenda, construção, compra, remessa e utilização de um instrumento

matemático no século XVIII na América portuguesa. A partir da obra e das atividades

de João Jacinto de Magalhães na cidade de Londres, suspeitamos que o quarto de

círculo de Jeremiah Sisson, tenha sido desenhado pelo astrônomo português a fim de

ser transportado e utilizado na América. Esta suspeita foi ganhando contorno na

medida em que para entender este processo de trânsito dos instrumentos da Inglaterra

para o Rio de Janeiro, aos poucos fui desvendando as práticas sociais e culturais dos

indivíduos que de alguma forma estavam envolvidos com aspectos do comércio de

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instrumentos na cidade de Londres: fabricantes, vendedores, cientistas entre outros

agentes importantes.

João Jacinto de Magalhães, filósofo natural português, nasceu em Aveiro no

dia 04 de novembro de 1722. Aos onze anos ingressou na congregação dos cônegos

de Santo Agostinho, de Santa Cruz de Coimbra, onde realizou seus estudos de

Filosofia Natural. Em 1758, após receber licença do papa Benedicto XIV, deixou a

ordem e realizou uma longa viagem, passando uma temporada em Paris. Finalmente

se estabeleceu em Londres, tornando-se membro da Royal Society. Muitos de seus

trabalhos foram impressos em Londres e Paris. Em seus livros, Magalhães se

apresentava como “Gentil homem Português, Membro da Sociedade Real de Londres,

da Academia Imperial das Ciências de São Petersburgo, da Real Academia de Madri,

e correspondente da Academia Real das Ciências de Paris”. Aliás, Magalhães

estabeleceu correspondência com um elevado número de sábios em diversos lugares

da Europa, sendo este aspecto de sua vida ressaltado quando de seu ingresso na Real

Sociedade de Londres. O fato de ele ser conhecido em vários centros europeus e por

filósofos naturais dos variados campos foi assim enfatizado:

John Hyacinth de Magalhaens of Fetter Lane London, a Portuguese Gentleman,

descended from the eldest brother of the old Navigator who discovered the

Straits of that name, and a Corresponding Member of the Royal Academy of

Sciences at Paris, being a person well acquainted with several branches of

Philosophical Knowledge, and having resided many years in England, is very

desirous of the honour of becoming a Member of the Royal Society: We

therefore the under signed members do recommend him, on our personal

Knowledge, as well qualified, and likely to prove an usefull member thereof1

A maior parte das publicações de Magalhães versa sobre instrumentos, em

especial Octantes, Quadrantes e Barômetros. Para um conhecimento mais profundo

sobre sua atuação como filósofo natural seria necessário, a meu ver, fazer uma leitura

sistemática de sua correspondência com sábios da segunda metade do século XVIII, o

que não nos interessou diretamente, uma vez que nossa pesquisa trata mais de sua

atuação junto aos instrumentos remetidos para o Rio de Janeiro.

Entre os anos de 1778 e 1779, Magalhães esteve intensamente envolvido com

a preparação da encomenda para as cortes portuguesa e espanhola. Trataremos do

1 Royal Society Archieves, EC/1774/01.

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caso português. Em carta dirigida a Luis Pinto de Souza Coutinho, o astrônomo

registrou suas preocupações em realizar sua tarefa da melhor forma possível. Estas

anotações nos serviram como pistas para entender o procedimento adotado por

Magalhães na compra e no envio de instrumentos para América portuguesa. Para falar

do deslocamento do quarto de círculo, dividimos o artigo em dois pontos. No primeiro

algumas reflexões sobre as viagens dos instrumentos em geral. No segundo, aspectos

relacionados ao trânsito do quarto de círculo de Sisson, especialmente aquele que

partiu de Londres em 1779 e desembarcou no Rio de Janeiro em 1781; ao que tudo

indica no mesmo navio que Bento Sanches D'Orta.

O tema das viagens dos artefatos científicos vem sendo cada vez mais

explorado no campo da História das Ciências em geral, em particular na Astronomia.

Estudos sobre o deslocamento de instrumentos colocam questões metodológicas

importantes. As viagens realizadas com o propósito de estudos de Astronomia foram

intensificadas como parte da construção do conhecimento a partir do século XVIII e o

par de Trânsito do planeta Vênus pelo disco solar de 1761 e 1769 é considerado um

episódio importante para a História das expedições astronômicas, incluindo neste

tópico a necessidade de construção de estações de observação, ou, observatórios

portáteis, que podiam ser montados em qualquer parte do mundo, incluindo as áreas

coloniais.

Desde o século XVI, os instrumentos passaram a ter um papel central na

construção do conhecimento. Em viagens organizadas com finalidades científicas,

preparar uma boa coleção de instrumentos fazia parte dos cuidados para garantir

resultados satisfatórios das coletas de dados, sobretudo porque, entre tantos outros

aspectos que poderíamos explorar, os instrumentos possibilitaram a transferência e a

padronização de práticas, gestos e procedimentos. Além de garantir, cada vez mais,

observações acuradas da natureza. Esta tendência ficou ainda mais forte durante a

Ilustração, quando o uso de instrumentos matemáticos, filosóficos e óticos se tornou

uma prática considerada central para os filósofos naturais em suas observações acerca

dos fenômenos naturais. Os instrumentos permitiam traduzir em números ou em

formas geométricas aspectos relacionados ao clima de um lugar, à confecção de

mapas de terras distantes (pensando que este era um fenômeno Europeu), às feituras

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de novas tabelas de latitude e longitude, da declinação do Sol e outras estrelas, das

fases da Lua e de muitos outros fenômenos do mundo natural (Bourguet, Licoppe e

Sibum, 2003).

Os instrumentos também conquistaram papel de destaque na comunicação

entre os filósofos naturais. Além de possibilitar as conexões entre o observador e os

fenômenos da natureza, os instrumentos garantiam a troca entre os sábios de diversas

localidades, agilizando a troca de informações (Shaffer, 2011, p. 285). Quando a

coleta de dados é realizada em lugares distantes simultaneamente, o uso de

instrumentos construídos pelos mesmos fabricantes assegurava um resultado melhor,

uma vez que facilitava a reunião das informações. Incluindo as observações realizadas

em campo e nas instituições europeias.

No caso específico das expedições astronômicas, algumas transformações que

ocorreram no século XVIII foram importantes. Entre estas, podemos destacar os

levantamentos geodésicos, observações feitas em pontos com elevada altitude e

aquelas relacionada a observações de efemérides em lugares onde elas eram visíveis

da Terra (Lankford, 1997). Escolher para comentar o par do trânsito de Vênus

ocorrido em 1761 e 1769 como um modelo para identificar os procedimentos para

formar a coleção de viagem, justifica-se pelo fato deste episódio ser considerado

emblemático para a História da Astronomia e porque ele pode representar um

empreendimento relativo ao preparo de uma viagem para lugares nos quais a

efeméride poderia ser observada, envolvendo um número considerável de astrônomos,

e algumas instituições. No caso da Inglaterra, o patrocínio do Rei George III, a Royal

Society, o Observatório Real de Greenwich, a Marinha Real e a Companhia Inglesa

das Índias Orientais (Wolf, 1956). Um dos exemplos relacionados é justamente a

primeira viagem do Capitão James Cook no Endeavor para os mares do Sul. O

astrônomo contratado foi Charles Green, membro da Royal Society.

Lembrando que Magalhães vivia em Londres desde 1766, e desde então se

inteirando das novidades da Filosofia Natural e também dos instrumentos, e também

estabelecendo contato com os sábios, frequentando inclusive sessões da Royal

Society, e sabendo que entre os seus conhecidos estava o astrônomo real Nevil

Maskelyne, não é improvável imaginar que Magalhães tenha prestado atenção aos

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preparativos da segunda viagem para observação da segunda passagem de Vênus, em

1769, sobretudo porque um ano antes, Maskelyne publicou suas "Instruções relativas

à Observação do Trânsito de Venus pelo disco Solar".

Entre os cuidados, para além das condições naturais do local, levar os

melhores instrumentos era uma das condições centrais. Este fenômeno mobilizou

astrônomos de várias instituições europeias pois permitiria, a partir de cálculos,

determinar a paralaxe do Sol e com isto encontrar uma unidade astronômica, a

distância entre o Sol e a Terra, possibilitando determinar a grandeza do Sistema Solar,

um dos problemas centrais dos debates astronômicos do século XVIII (Wolf, 1956;

Lomb, 2011). Para isto, o fenômeno deveria obrigatoriamente ser observado de vários

pontos da Terra ao mesmo tempo.

Para construir a estação, neste caso, o local definido era o Tahiti. Maskelyne

organizou meticulosamente uma lista dos instrumentos que deveriam ser levados.

Entre estes, para acertar com precisão os relógios, levou um quadrante astronômico de

"um pé de raio construído por John Bird com duas divisões no arco". (Maskelyne,

1768, p.5). Entre os instrumentos que foram amplamente utilizados nos observatórios

de campo, encontra-se com frequência e destaque o quarto de círculo, e foi um dos

mais utilizados durante as viagens, sobretudo os portáteis. Não apenas nos

observatórios, mas nas viagens que se multiplicaram no século XVIII, entre elas, as

viagens demarcatórias que ocorreram na América portuguesa.

Embora o quadrante tenha se tornado um dos principais instrumentos

astronômicos nos Observatórios durante o século XVIII, o seu uso remonta a períodos

bem mais remotos. Desde a antiguidade os quadrantes eram frequentemente utilizados

para medir a distância angular entre os astros. Thyco Brahe, em Uraneburg, observou

estrelas e cometas com quadrantes de grande porte. Nesta mesma época, há notícias

de quadrantes náuticos levados em navios também para auxiliar nas observações

astronômicas. Contudo, o modelo que nos interessa apareceu descrito, muito

provavelmente pela primeira vez, na obra do astrônomo francês Jean Picard, em La

Mesure de La Terre. A novidade descrita por Picard eram as duas lunetas acopladas

ao quadrante cujo raio media 38 polegadas. O artefato foi utilizado para a medida do

arco do meridiano a partir do método da triangulação. (Daumas, Turner, ).

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O caso específico de compra e envio de instrumentos para América

portuguesa, busca ampliar algumas destas questões e contribuir para as reflexões

sobre as viagens dos instrumentos científicos. Um dos elementos que iremos explorar,

como dissemos, é o fato de que suspeitamos que o quarto de círculo fabricado por

Jeremiah Sisson, em 1779, tenha sido desenhado por Magalhães. Em primeiro lugar,

destacamos que pelas suas habilidades, conhecimentos e envolvimentos acreditamos

que o filósofo português não tenha agido apenas como comprador, mas aproveitou a

oportunidade de ter sido contratado para formar a coleção de instrumentos, para

desenhar, ele próprio, o quarto de círculo encomendado a Jeremiah Sisson, uma vez

que este era apenas um fabricante de instrumentos matemáticos renomado em

Londres, mas que por razões de sua vida particular, não conseguiu levar adiante os

seus negócios, vivendo de encomendas específicas.

Um dos indícios mais fortes para acreditarmos nesta possibilidade é que nas

instruções assinadas por Magalhães e enviadas junto com os instrumentos, apenas o

quarto de círculo fabricado por Sisson2(figura 1) e o Barômetro de sua criação foram

detalhadamente descritos por Magalhães, procedimento comum entre os fabricantes e

aqueles que desenhavam os instrumentos. Além disto, a gravura que acompanha a

descrição do instrumento e suas partes traz a referência “J. H. Magellandelinearit”.

(figura 2).

Le quadrante astronomiquedontjeviens de donnerladescription, appartenant à la première collection; &ledeuxQuadrans de laseconde& de latroisiemeCollection, furent fait, avectoutel’attention& soins possible, par Mr. Sisson, Artiste celebre de Londres, que ne manque pas d’executersesinstrumensavec tout laperfectionqu’onpeutdesirer, touteslesfoisqu’on ne lui refuse point de payerleprix de sonmeilleurtravail. (Magalhães, 1779, p. 170)

Magalhães esclarece alguns cuidados e fornece orientações básicas para o

uso dos instrumentos. O fato de ele ter elaborado esta descrição, no estilo dos

livros sobre fabricação e uso dos instrumentos, que muitas vezes se assemelham

a catálogos, também nos parece ser uma pista de que ele pode ter desenhado

este instrumento que encomendou a Sisson. Instrumentos carregam a assinatura

do fabricante, que em alguns casos pode coincidir com o seu, digamos,

2 Quadrantes de outros fabricantes aparecem na listagem.

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"inventor"3, mas nem sempre. E mais, muitas vezes o que diferencia um

exemplar de outro, é um detalhe técnico, o material utilizado, uma pequena

melhoria que pode não ser imediatamente detectada. Tópico que estamos

investigando no momento.

A escolha de um sábio para a aquisição dos artefatos que deveriam seguir

para América, à primeira vista pode apenas indicar um cuidado em adquirir os

melhores instrumentos para os demarcadores. A meu ver, porém, este cuidado

sugere que para além das tarefas meramente demarcatórias, havia uma intenção

maior de realizar um levantamento topográfico bastante atualizado das terras

americanas. Além disto, a presença de sábios envolvidos tanto na escolha e

compra, como no uso do artefato, nos mostra que de alguma forma estes homens

também aproveitavam tais oportunidades para realizar trabalhos específicos que

eventualmente pudessem ser compartilhados em ambientes letrados, quais

sejam as Academias de Ciências, Observatórios Astronômicos e Universidades,

para destacar alguns espaços de sociabilidade científica da Ilustração.

Finalmente, o texto de Magalhães relativo ao quarto de círculo instrui

sobre como o artefato deve ser carregado, empacotado, montado, desmontado

no sentido de garantir a qualidade do uso.

O primeiro desafio explicitado por Magalhães relacionava-se ao curto

espaço de tempo que ele teria para preparar o material. Estudos mostram que

muitas vezes uma encomenda poderia levar mais de um ano. Este aspecto é

importante para entender o mercado de instrumentos matemáticos no século

XVIII. Os fabricantes tinham suas lojas e oficinas, mas isto não implicava em ter

diversos produtos à venda, e, ainda que os tivessem, o uso do instrumento no

contexto de construção do conhecimento muitas vezes exigia maiores cuidados

por parte do fabricante para atender à demanda, o que poderia diferenciar um

artefato feito para ornamentar as salas de homens ilustres, ou mesmo aqueles

que os fabricantes construíam atendendo a pedidos dos monarcas. Magalhães

3 Outro ponto importante é chamar a atenção de que muitas vezes é problemática a ideia de invenção, pois por vezes o que diferencia um instrumento são detalhes, pequenas inovações. E, para complicar, neste momento patentes para instrumentos eram ainda poucas como demonstrou Mario Biagiolli.

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deixa transparecer a tentativa de encomendar os instrumentos, e lamenta o ter

feito a artesãos diferentes. No que diz respeito ao quarto de círculo sabemos que

ele encomendou aos fabricantes Jeremiah Sisson, George Graham e John Bird.

Chamamos a atenção para o fato de que os diferentes artesãos poderiam adotar,

para o mesmo instrumento, formas particulares, o que implica em formas

diferentes de uso e mesmo de cálculos. Por isto, ao separar os instrumentos em

cinco “coleções”, ele previne que fará a descrição de cada uma delas

separadamente, trabalhando para que o uso correto seja maximizado.

Ao dividir as caixas, Magalhães cuidou para que o peso não ultrapassasse

a capacidade de carga de um cavalo e também observou que as caixas deveriam

ter um peso que pudesse permitir que o animal aguentasse as viagens em “países

quentes, como o próprio D. Luis observou durante seu governo na América

portuguesa" (Magalhães, 1779, p. 23). As caixas deveriam ser arrumadas de

acordo com a forma e o peso dos instrumentos. Novamente alguns cuidados:

levou a cada artista a caixa na qual eles deveriam acomodar os instrumentos

encomendados. Além das caixas, cada instrumento tem um estojo particular para

suportar os percalços das viagens.

A primeira coleção de instrumentos foi composta por seis caixas,

“adaptadas a completar a carga relativa a três cavalos”, lembrando que segundo

os cálculos do astrônomo cada cavalo seria capaz de transportar um peso

relativo a duzentos livros aproximadamente. (Magalhães, p. 24). A primeira caixa

contém o “quadrante astronômico de um pé de raio, com parte de suas peças que

são desmontáveis e o pedestal. As peças mais pesadas foram empacotadas na

segunda caixa pelas razões apresentadas” (Magalhães, p. 24).

A determinação do tamanho do instrumento estava intimamente ligada

ao problema das viagens longas que tais artefatos fariam, diminuindo os riscos, e

garantindo os melhores resultados. Este ponto, além de sugerir que o quarto de

círculo de Sisson, neste caso, tenha sido desenhado para uso em viagens longas

por terras distantes, a América portuguesa, o torna um artefato emblemático

para nós.

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Para as observações que eram feitas durante as jornadas para o sertão da

América portuguesa, os quadrantes portáteis eram bastante utilizados. Não apenas

pelo seu tamanho e maior facilidade de transporte e montagem correta, mas também

pela versatilidade do instrumento que poderia ser usado para observações meridianas

e também para as alturas dos astros, tanto para determinação da latitude como para

ajuste dos relógios. Além do que, poderiam ser também utilizados para topografia.

Finalmente, tentar transformar o quarto de círculo em protagonista significa

que todo o processo de escolha do instrumento, seu desenho, sua fabricação e seu uso,

bem como o dos agentes envolvidos neste processo, nos permitem afirmar que, ainda

que comprometidos com as tarefas demarcatórias, Bento Sanches D´Orta, e tantos

outros profissionais que realizaram trabalhos de observações físicas e astronômicas

durante suas jornadas pelos confins da América, trabalhavam a partir de um conjunto

de procedimentos e métodos em condições similares às de seus pares que realizaram

viagens e expedições com objetivos científicos mais claramente definidos durante a

segunda metade do século XVIII.

Os instrumentos, e suas performances, tiveram papel importante no processo

de unificação de algumas práticas relacionadas à construção do conhecimento

astronômico. As viagens e deslocamento dos artefatos nos fornecem pistas

interessantes para pensar esta atuação. Finalmente, partir do instrumento não

significa perder de vista os indivíduos, textos e imagens que nos possibilita acessar

ideias e práticas científicas a partir dos artefatos.

Portanto, o estudo de um instrumento não pode prescindir do estudo dos

homens envolvidos com seu processo de desenho e construção feito pelos cientistas e

práticos. No conjunto, ainda que o instrumento seja aqui tratado como um

personagem, ele acaba por ganhar vida a partir dos múltiplos usos e funções, para

além de ele próprio materializar uma série de funções e simbolismos que serão por

vezes assinalados neste artigo. Ajuda-nos também a perceber como a Astronomia no

século XVIII passa a exigir um certo esforço de unificação de procedimentos, ainda

que os debates sobre diversos temas persistissem, os instrumentos acabaram por

impor, ainda que com alguns limites, linguagens e gestos universais.

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Bibliografia

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dansleStrand; & W. Brown, Libraire, aucoin D’Essex Street, presTemple Bar,

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