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A R T I G O , - DE INDIOS, CRANIOS E SEUS 'COLECIONADORES' DADOS SOBRE O EXOTISMO E A TRAJETÓRIA DA ANTROPOLOGIA, NO BRASIL DO SÉCULO XIX "Nada, no mundo distante, é exótico, senão o próprio viajante" (Bloch,1959:430)' O artigo pretende for- necer dados históri- cos sobre a antropo- logia brasileira, na sua fase pioneira, marcada pelo exo- tismo e as metodologias da anatomia comparada.' Desde os fins do século XVIII, surgiram coleções craniológicas com supostos objetivos científicos. Para anatomistas e antropólogos, tornou-se uma verdadeira 'mania' colecionar e classifi- car ossarias, e dentro das fa- culdades estabeleceram-se ra- mos pseudo-científicos como a craniologia e frenologia. Neste contexto, foram criados os primeiros mu- seus com objetivos didá- ticos, que se diferenciam dos antigos Gabinetes de Curiosidades, quando se for- maram e estabeleceram os principais rumos acadêmicos, ainda vigentes. No Brasil, crânios de índios ganharam a quali- dade de mercadorias preciosas, que 'enfeitaram' vários acervos museológicos. A linguística e a era- niologia formaram, na opinião de Ladislau Netto, os "dous fôcos de luz das sciencias anthropolo- gicas". (Netto, 1882:1V). Em suas viagens pela Europa, o próprio soberano Dom Pedro TI, pre- senteou instituições científicas, que ele visitava, com crânios de índios Boto- cudos, então a etnia brasilei- ra mais conhecida do Brasil. Não somente esqueletos, mas, também índios vivos, foram levados para a Euro- pa e exibidos em salões e fei- ras públicas. Tnus RIEDl * RESUMO O colecionador etnográfico do século XIX representava, como dizia Baldus um "espí- rito da última hora" (Apud Porto Alegre, 1994:631 Em conseqüência do falto de grandes tesouros, predominava, no Brasil, o gosto pelo grotesco e a observação do pato- lógico: as ossorios. os crãnios, os trófeus de cabeça, as máscaras, os botoques, o curare etc. substituiram pora o mercado emoçrófico. as pedras preciosos, metais brilhantes e frag· mentos de templos gigantescos, encontrados em outros países do hemisfério. A trajetória das ciências, no século XIX, mos- tra, que o pesquisador ainda não era capaz de penetrar num mundo diferente, de cornpreendê-lo em sua diversidade, e de amo- durecer através dos conhecimentos ganhos. Assim, o evolução do própria disciplina pa- rece, hoje, exótico, e não os seus alvos de observação. 10 MUNDO NA ÚIXINHA I - MOSTRAS DO MARAVILHOSO Durante a época da Renas- cença, surgiram na Europa os chamados Gabinetes de Artes e Curiosidades, onde se moldurava um modelo do universo, através de peque- nos objetos e obras de arte, delineado pela idéia de uma analogia entre o macro e mi- crocosmo. Segundo esta vi- são, na qual o maior se espe- lhava no minúsculo, o mun- do estava aleatoricamente simbolizado por 'peças anatômicas', naturalias, pedras preciosas e objetos etnográficos, com pro- cedência freqüêntemente ignorada. Com a expansão européia, na primeira fase co- lonial, não existiam limites para a curtositas, a curiosidade científica. Os enciclopedistas se ar- riscaram em viagens cansativas, de cidade para cidade, para conhecerem, nas coleções, as novi- dades recém-chegadas dos ultramares. (Goldmann, 'Professor do Universidade Regional do Cortrí. RIEDt, Titus. De índios,crânios e seus colecionadores .. pp. 115 a 124 115

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A R T I G O

, -DE INDIOS, CRANIOSE SEUS 'COLECIONADORES'DADOS SOBRE O EXOTISMO E A TRAJETÓRIA

DA ANTROPOLOGIA, NO BRASIL DO SÉCULO XIX

"Nada, no mundo distante, é exótico,senão o próprio viajante"

(Bloch,1959:430)'

O artigo pretende for-necer dados históri-cos sobre a antropo-

logia brasileira, na sua fasepioneira, marcada pelo exo-tismo e as metodologias daanatomia comparada.'

Desde os fins do séculoXVIII, surgiram coleçõescraniológicas com supostosobjetivos científicos. Paraanatomistas e antropólogos,tornou-se uma verdadeira'mania' colecionar e classifi-car ossarias, e dentro das fa-culdades estabeleceram-se ra-mos pseudo-científicos comoa craniologia e frenologia.

Neste contexto, foramcriados os primeiros mu-seus com objetivos didá-ticos, que se diferenciamdos antigos Gabinetes deCuriosidades, quando se for-maram e estabeleceram osprincipais rumos acadêmicos, ainda vigentes.

No Brasil, crânios de índios ganharam a quali-dade de mercadorias preciosas, que 'enfeitaram'vários acervos museológicos. A linguística e a era-niologia formaram, na opinião de Ladislau Netto,os "dous fôcos de luz das sciencias anthropolo-gicas". (Netto, 1882:1V). Em suas viagens pelaEuropa, o próprio soberano Dom Pedro TI, pre-senteou instituições científicas, que ele visitava,

com crânios de índios Boto-cudos, então a etnia brasilei-ra mais conhecida do Brasil.

Não somente esqueletos,mas, também índios vivos,foram levados para a Euro-pa e exibidos em salões e fei-ras públicas.

Tnus RIEDl *

RESUMOO colecionador etnográfico do século XIXrepresentava, como dizia Baldus um "espí-rito da última hora" (Apud Porto Alegre,1994:631 Em conseqüência do falto degrandes tesouros, predominava, no Brasil, ogosto pelo grotesco e a observação do pato-lógico: as ossorios. os crãnios, os trófeus decabeça, as máscaras, os botoques, o curareetc. substituiram pora o mercado emoçrófico.as pedras preciosos, metais brilhantes e frag·mentos de templos gigantescos, encontradosem outros países do hemisfério.A trajetória das ciências, no século XIX, mos-tra, que o pesquisador ainda não era capazde penetrar num mundo diferente, decornpreendê-lo em sua diversidade, e de amo-durecer através dos conhecimentos ganhos.Assim, o evolução do própria disciplina pa-rece, hoje, exótico, e não os seus alvos deobservação.

10 MUNDO NA ÚIXINHAI-

MOSTRAS DO MARAVILHOSODurante a época da Renas-

cença, surgiram na Europaos chamados Gabinetes deArtes e Curiosidades, onde semoldurava um modelo douniverso, através de peque-nos objetos e obras de arte,delineado pela idéia de umaanalogia entre o macro e mi-crocosmo. Segundo esta vi-são, na qual o maior se espe-lhava no minúsculo, o mun-do estava aleatoricamente

simbolizado por 'peças anatômicas', naturalias,pedras preciosas e objetos etnográficos, com pro-cedência freqüêntemente ignorada.

Com a expansão européia, na primeira fase co-lonial, não existiam limites para a curtositas, acuriosidade científica. Os enciclopedistas se ar-riscaram em viagens cansativas, de cidade paracidade, para conhecerem, nas coleções, as novi-dades recém-chegadas dos ultramares. (Goldmann,

'Professor do Universidade Regional do Cortrí.

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1982: 155-156). Nos palácios da nobreza multipli-caram-se herbários, jardins botânicos e menageries,onde não somente foram exibidos plantas e ani-mais dos trópicos, como também representanteshumanos de outras 'raças' e continentes longín-quos, empregados como servos domésticos e au-xiliares nas caças. (Melo Franco, 1937:52-99).

O lado a lado da vida e da morte, o calafrio,transmitido por crânios, ou esqueletos, semprefoi atração em exibições públicas e feiras popu-lares. Desde o final do século XVIII, tornaram-se populares os Gabinetes de Figuras de Cera, emque os reinantes tornaram-se acessíveis, literal-mente 'tocáveis', e os mortos pareciam 'vivos'.Nessas exibições, dificilmente, faltaram cenas deassassinatos, crimes, enforcamentos e tampoucofiguras picantes como a 'Venus Anatômica deCrombach, desmontável em 32 peças', apresen-tada com acréscimo de preço e somente exibidapara "homens adultos". (Geese, 1981:74-77). Aolado de tais objetos eróticos e horripilantes, lo-calizaram-se reproduções de diferentes 'raças domundo', e também, como nos Gabinetes decuriosidades, preparados anatômicos, múmias,e artefatos etnográficos.

Logo, começaram se misturar, nos mesmos pal-cos, verdadeiros 'selvagens', representantes vivosde outros povos, que alimentaram a fantasia ecuriosidade do público europeu acima das mara-vilhas do mundo. Geralmente, eles encenavamespetáculos, nos quais pouco importava uma su-posta fidelidade etnográfica.'

Ainda nos fins do século XVIII, a paixão cole-cionadora tornou-se sistemática, e, ao mesmo tem-po, mais intensiva. Museus naturais, que segui-ram, em sua fase inicial, nos moldes dos antigosGabinetes de Curiosidades, surgiram nas princi-pais cidades da Europa. Alguns objetos expostoschegaram a chocar os contemporâneos. O Gabi-nete de A rtes Físicas e Naturais em Viena, um dosprimeiros museus públicos da capital austríaca,guardava, em 1800, quatro negros empalhados, emseu acervo. O mais conhecido, entre eles, eraAngelo Soliman, de origem etiope, em vida ser-vidor dos príncipes de Lobkowitz e Liechtenstein.Durante a sua vida, as suas feições' admiravelmenteharmônicas e bem equilibradas' tinham sido elo-giado por inúmeros visitantes. O seu preparo, co-mo figura de exposição, efeituou-se por decisão

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do próprio imperador da Áustria, em 1796, de-pois da sua morte 'natural'. Autopsiado e empa-lhado, Angelo Soliman permaneceu alguns anosexibido numa sala principal do museu, onde eleestava erguido em pose teatral, dentro de um ar-mário vidrado, pintado de verde e vermelho; asua figura estava em pé, com a perna atrás e amão esquerda levantada; na sua cintura um cintode plumas, na cabeça, uma coroa de penas de aves-truz. As pernas e os braços estavam decorado comcolares de vidro, o pescoço ornamentado por umcolar de conchas.'

Com os anos, as faculdades de medicina e tam-bém pessoas particulares reuniram acervos, queserviram para fins didáticos e para os estudos; entreos cidadãos que possuiam tais Gabinetes de Rari-dades, destacou-se a classe profissional dos médi-cos. Para eles, as peças mais valorizadas eram oschamados lusus naturae, o que designava criatu-ras, ou, então, 'monstros' abortados.

Um pioneiro da antropometria e da anatomiacomparativa, o médico holandês Pieter Camper(1722-1789) ganhou celebridade como um dos pri-meiros colecionadores sistemáticos de crânios, queprovinham de todas as partes do mundo. Camperpensou em uma representação estética, que se "ini-ciava no macaco, subia através do negro, doeuropéu, etc. e se elevava até as imagens antigas, deuma Medusa, um Apolio, ou, a Venus de Medici".Um amigo de Goethe, o conselheiro alemão,Johann Heinrich Merck (1741-1791), negociantetanto de quadros do pintor Rembrandt, como tam-bém de peles de animais e de outras curiosidades,chamou o gabinete de Camper um verdadeiro "pa-raíso osteológico", que "merecia a romaria de todomundo". (Goldmann, 1985:248-249).

Em meados do século XIX foram implantadasas exposições universais, a primeira realizada noano de 1851, em Londres. Nestes eventos, o inte-resse para os povos e continentes distantes viveuum incentivo, até então, sem comparação; mos-tras dos produtos e das riquezas naturais dos paí-ses como também dos seus costumes pitorescoschegaram a alcançar milhões de espectadores.(Turazzi, 1995:42-52). A fotografia revolucionouos meios de comunicação, tudo parecia abarcávele acessível ao conhecimento geral. O mundo tor-nou-se menor e entregue a curiosidade do bur-guês, que elegeu o cosmopolitismo a sua nova dou-

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trina; viagens distantes, pouco a pouco, ganha-ram a qualidade de luxuosos empreendimentosde lazer, com o único objetivo de divertir, enfim,nasceu o turismo moderno.

Nações distantes, definitivamente, se aproxima-ram; nos centros da Europa ganharam notorieda-de as chamadas 'Mostras de Povos', nas quais seexibiam 'raças' de vários continentes, que alimen-taram o gosto do público pelo exótico com pro-vas de seus costumes, suas festividades e seus arte-sanatos pitorescos. As exibições, realizadas den-tro de parques zoológicos, atraíram, em um úni-co final de semana, até 100.000 visitantes.' O cien-tista, agora, nem se precisava deslocar para conti-nentes distantes; durante as temporadas de apre-sentação, as tropas desfilaram nas principais ins-tituições antropológicas, onde os seus membros,foram minuciosamente observados, sob portasfechadas, medidos, fotografados e submetidos aexames anatômicos. O procedimento foi seme-lhante em caso de mortes, pois, a mortalidadeentre os grupos convidados, por falta de acompa-nhamento e adaptação climática, era alta.

A '(RANIOMANIA', NO BRASll- DO TÚMULO AO MUSEUUm mês depois da sua (segunda)" chegada ao

Rio de Janeiro, o viajante alemão e emissário daRussia, barão Georg Heinrich von Langsdorff(1773-1852), em carta datada de 7.5.1813, narroua descrição de um índio Botocudo - ele escreveu"boticudo" - para a Academia de Ciências de SãoPetersburgo, na Russia. Em mais uma cana, de30.3.1814, ele retomou ao tema e destacou a se-melhança destes índios - chamados agora "bu-docudo" - com povos do oeste da América doN orte, que mantinham um costume comparávelde perfurarem os lábios para ornamentá-los comrolhas de madeira. (Manizer, 1967:47-48). Nasduas datas, o barão ainda não tinha realizado ne-nhuma expedição científica pelo interior do Bra-sil, mas, através de relatos dos viajantes JohannBaptist von Spix (1781-1826) e Karl Friedrich Phi-lipp von Martius (1794-1868), sabemos, que obarão 'possuía' um índio como servidor domés-tico. Com um teor bastante irônico, os dois bá-varos indicam-nos a sua origem:

"O primeiro americano autêntico, que vimos,foi um moço da tribo antropófaga Botocudos, de

Minas Gerais; ele se encontrava no domicílio donosso amigo v. Langsdorff. O então ministroportugúes, Conde da Barca, tinha pedido ao co-mandante do Distrito de Minas Gerais obter umcrânio de índio para o nosso famoso compatrio-ta, Senhor Conselheiro Blumenbach, mas, comoaquele não se viu na oportunidade de se apossarde tal documento mono, ele mandou ao Condedois Botocudos vivos, surpreendidos e presos emassalto por seus soldados; o Senhor v. Langsdorff,então, recebeu um deles, que logo apreciava, jáque este não lhe servia somente como peça degabinete, mas também, como colector de naru-ralias". (Martius, 1966, v.1 :96-97).8

O trecho do relato de Spix e Martius mencio-na o ministro Antônio de Araújo de Azevedo,Conde de Barca (1754-1817), o maior patrocina-dor das artes e ciências, no Brasil da segunda dé-cada do século XIX. O Conde conhecia pessoal-mente a Alemanha e a Rússia, e estava em conta-to com os mais renomados cientistas da sua épo-ca, entre eles, Alexander von Humboldt (1769-1859), que, em 1815-16, intermediou a vinda daComitiva Artística Francesa.

Alexander von Humboldt, que residia em Pa-ris, tornou-se uma influência notória na vida inte-lectual do Brasil, como também em outros paísesda América Latina." O seu famoso relato de via-gem Relation historique du vcryage aux régionéquinoxiales du nouveau continent, Jait em 1799,1800, 1801, 1802, 1803, et 1804, editado em Parisentre 1814 e 1825, salientou-se como uma matriz ereferência quase obrigatória para inúmeras outraspublicações, relacionadas a este genêro científico.Neste compêndio, como na obra posterior 'Kos-mos' (Humboldt, 1847), o famoso prussiano re-presentava para os seus contemporâneos, o exem-plo de um cientista moderno, com fones inclina-ções para as artes plásticas. Ele pensou e propagouo ideal da pintura romântico-naturalista, e aconse-lhou, protegeu e incentivou a vinda de vários artis-tas ao Brasil, entre ele Johann Moritz Rugendas(1802-1858);10 posteriormente, Alexander vonHumboldt tornou-se um dos primeiros admira-dores da nova técnica da Daguerreotipia, e previu,ainda em 1839, a sua enorme utilidade para as ci-ências e para a documentação de viagens. 11

A despeito do fato irônico, que Alexander von

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Humboldt, nunca teve oportunidade para conhe-cer pessoalmente a colônia portuguesa, um im-pressionante número de viajantes foi estimulado edesafiado por ele de visitar o Brasil, entre eles oprincipe de Wied-Neuwied (1782-1867), Avé-Lallemant (1812-1884), Tschudi (1808-1889),Burmeister (1807-1892), e o príncipe Adalbert daPrússia (1811-1873). Em relatos de viagem de lín-gua francesa, ou, alemã, escritos no século XIX,geralmente não faltam reminiscências e mençõeshonrosas, dedicadas a Alexander von Humboldt,e na análisa das narrativas encontram-se, com fre-qüência, alusões e comparações, que podem sercompreendidos, na sua plenitude, somente no con-texto da sua abrangente obra.

O que faz lembrar, aqui, o seu nome, é o fatocurioso, de Alexander von Humboldt ter sido umaluno do professor Johann Friedrich-Blumenbach(1752-1840), outro nome salientado por Spix eMartius, Blumenbach tinha fama como médico eanatomista e ocupou uma cátedra na pequena, masinfluente universidade de Gõttingen, na Alema-nha. O centro acadêmico desta universidade tor-nou-se, através do seu espírito iluminista e pós-kantiano, um centro do romantismo germânico."N os finais do século XVIII e nos começos do sé-culo XIX, surgiu em Gõttingen um importantenúcleo de pesquisa, que juntava informações cien-tíficas espalhadas pelo mundo, enciclopedicamentecolectados por estudantes, pesquisadores e outroscorrespondentes, em viagem. Os catedráticos en-viaram questionários junto aos seus alunos-viajan-tes, com perguntas, relacionadas a assuntos do seuinteresse científico. I3

Blumenbach era uma figura destacada, nestemeio, e ele reunia, no final da sua vida, a maiscompleta coleção craniológica da sua geração, ad-mirada por seus contemporâneos. Entre os seusalunos, com estreita ligação com o Brasil, mere-cem ser citados, além de Alexander von Hum-boldt, engenheiros como Friedrich Wilhelm Lud-wig Varnhagen (1783-1842, o 'pai' do 'pai da histo-riografia brasileira, Francisco Adolfo de Varnha-gen), e Ludwig von Eschwege (1777-1855), ambosno serviço da coroa portuguesa, o naturalistaGeorg Wilhelm Freyreiss (1789-1825), e os viajan-tes Maximilian, príncipe de Wied- N euwied e obarão Georg Heinrich von Langsdorff.

Como testemunharam os viajantes Spix e Mar-

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tius, nem o Conde da Barca, nem o barão vonLangsdorff encomendaram crânios indígenas para acoleção de Blumenbach. Houve outras tentativasmais bem sucedidas como as de Eschwege ouFreyreiss, que chegaram a encomendar parte deossarias, mas, foi do príncipe de Wied-Neuwied, queteve o mérito de ter encontrado um 'grande achado',um crânio 'verdadeiramente botocudo', como estemesmo comentou, orgulhosamente, em 1820: "Nofamoso gabinete antropológico do Senhor cavaleiroBlumenbach, em Côtringen, depús o crânio de umjovem Botocudo, de vinte a trinta anos, que repre-senta uma verdadeira curiosidade osteológica".(Wied-Neuwied, 1815-1817, v.2 :6).

Pela primeira vez, um crânio Botocudo estavano auge do interesse científico, analisado pelo pro-fessor Blumenbach, ele foi recebido com euforia:

"O Botocudo com que a Vossa Excelência enri-queceu a minha coleção etnológica e que constituiuma das peças das mais curiosas e raras, se asseme-lha no seu aspecto total (sem a maxila inferior) aodo Orangotango, mais expressivo ainda do que umdos oito crânios de negros que possuo, embora al-guns deles mostrem a maxila superior mais proemi-nente do que o caso do canibal brasileiro". (Blu-menbach,ApudWied-Neuwied, 1815-1817,v.2:70).

O crânio, cujo desenho aparece em destaque naobra do príncipe tornou-se posteriormente céle-bre e, de certo modo, iniciou uma corrida macabrapor cabeças brasileiras. No decorrer do século, eleainda foi muitas vezes mencionado e o seu valorcientífico apaixonadamente discutido. Em avalia-ções posteriores, os cientistas Wyman, Lacerda ePeixoto, e Frederic Hartt contestaram a sua exem-plaridade, e finalmente o etnólogo alemão PaulEhrenreich (1855-1914) concedeu, ainda em 1887,"que, com o tempo, tornou-se conivência julgareste crânio um exemplo patológico, ou pelo me-nos, uma curiosidade anatôrnica". (Ehrenreich,1887:12).

A busca por crânios botocudos, entretanto, ti-nha surtido efeitos horripilantes; o político e em-presário Teófilo Ottoni (1807-1869), que se en-volveu pessoalmente, e de forma bastante duvido-sa, com os habitantes indígenas das terras à mar-gem do rio Mucuri - das quais ele se apoderou -deu notícia de um assalto próximo ao foz do

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Mucuri, que vitimou fatalmente a tribo botocudode um cacique, chamado Shiporok:

"N o sítio do Marianno, duas legoas acima deS. José, os christãos tendo attrahido os selvagensa uma emboscada, attacarão-os a falsa fé e fizerãolarga carnificina. Dezeseis craneos forão vendidos(triste mercadoria) a um Francez que disse fazeresta acquisição por conta do Museo de Paris. Foiisto em 1846". (Ottoni, 1858:181).

Na época, surgiu em Salvador da Bahia umpequeno mercado negro, onde os colecionadoresestrangeiros tentaram obter ossarias de índios, viacompra; no entanto, muitos viajantes preferirammesmo saquear túmulos, entre outras razões, paraevitar fraudes, levando, ou, encomendando, semque as autoridades locais o percebessem, um gran-de número de crânios e esqueletos brasileiros paraa Europa."

N o Brasil, não faltou uma versão tupiniquimda 'crâniomania'; incentivava-se, aos meados doséculo XIX, com certa ambição, uma expediçãocientífica nacional, a 'Comissão Científica doNorte', que tornou-se mais conhecida sob a de-signação sarcástica 'Comissão das Borboletas","Entre 1859 e 1861, os membros percorreram prin-cipalmente a província do Ceará, passando porMaranhão, Pernambuco e Paraíba. Na função dechefe da Seção Etnográfica e de Narrativa de Via·gam foi escolhido 'o príncipe dos poetas brasilei-ros' Gonçalves Dias (1823-1864), o iniciador dacorrente indianista na poesia, já celebre na suaépoca. Ele manuseava uma câmera fotográfica -provavelmente a primeira empregada numa ex-ploração científica brasileira (as fotografias se per-deram, mas algumas podem ter sido usadas comomatrizes para estampas litográficas de HenriqueFleiuss, expostas em 1882).

A Comissão decepcionou a respeito dos seusresultados, mas, pelo menos, foram remetidos,além de preparos botânicos, uma certa quantiade artefatos populares e alguns crânios indígenas,exibidos nos museus da Capital. Bastante aten-ção ganharam ainda estudos paleontológicos domédico dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880), que concentrou as suas pesquisas em La-goa Santa, Minas Gerais, e propagou a pré-histó-ria brasileira, pelo mundo.

o Imperador Dom Pedro II carregou, na suabagagem para a Europa, vários crânios, que per-tenciam aos Botocudos, e que foram doados parainstituições científicas. A Sociedade Antropolôgi-ca, Etnológica e Pré-Histôria de Belim, na Alema-nha, da qual o Imperador era membro de honra,recebeu quatro crânios, na ocasião exaustivamen-te analisados e apreciados pelo então diretor Ru-dolf Virchow.

Já em meados do século, a coleção de crâniostinha ganho dimensões enormes, o que possibili-tou todas as comparações imagináveis. No finaldo século, Paul Ehrenreich resumiu a respeito decrânios botocudos:

"Atualmente o material de crânios aumentoutão significadamente, que já podemos reconstruiruma imagem bastante abrangente dos caraterescraniológicos deste povo. Todas as coleções im-portantes da Europa, hoje, possuem um ou maisespécimen". (Ehrenreich, 1887:62).

As obscuras metodologias craniológicas chega-ram a resultados nada satisfatórios, e se percebeum certo desespero na exigência do antropólogoA.v. Tôrõk, que proclamou, em 1897, que deve-riam ser tiradas cerca de 5.000 dados de um únicocrânio, para obter um aproveito científico. (Wie-ner, 1990:115). Esta constatação desalentadora ain-da não significava o fim do ramo científico, quevivia, desde a sua aplicação na criminologia, nosanos de 1970, um novo auge, e que ainda iria ga-nhar muitos adeptos, nos inícios do século XX.

'BONS SELVAGENS' - Dos TRÓPICOS AO HEMISFÉRIO NORTELembrando o caso do barão Langsdorff, um

outro ilustre viajante, o pintor francês Jean-Bap-tiste Debret (1768-1848), que desembarcou ape-nas três anos depois do primeiro, mal passava doisdias no Rio de Janeiro quando presenciou a pito-resca cena de um grupo de Botocudos, no cami-nho para serem apresentados perante a corte real.O pintor, impressionado, não deixou em brancoesta cena e desenhou-a posteriormente, emborade uma fidelidade etnográfica bastante suspeita.O álbum de Debret contém a seguinte descrição:

"Em 1816, nous avons vu á Rio-Janeiro unefamille de Botocoudos civilisés, qui y avait été

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amenée de bords du Rio Belmonté par le com-mandant Cardoso da Rosa, pour être présentéeau prince régent D. João VI... Le chef de ces sau-vages était remarquable par son costume, composéd'un manteau et d'un diadême de peau de taman-dauà (tamanois, espêce de fourmiller). Lors de leurprésentation à Ia cour, on ajouta au costume duchef, pour plus de décene, un gilet et un pantalonde nankin bleu; tous les autres individus furentrevêtus chacun dúne chemise et d'une pantalonde toile de coton blanc. Aussitôt leur retour dupalais de Saint-Christophe, ils se hâterent dequitter les vêtements qu' on leur avait prêtes, pourjouir, selon leur habitude, de Ia liberte de resterentiêrement nus. Peu de temps aprês, ils retour-nerent dans leur hameaux, enchantés d'ernporterdes haches de fer dont on leur avait fait présent",(Debret, 1834-1839, v.I, Il).

o desenho de Debret não correspondia ao tex-to; o grupo de figuras aparece deslocado em umapaisagem imaginária e em uma pose de marcha,em que ele dificilmente poderia tê-lo visto." Umcontemporâneo seu, o príncipe Wied-Neuwied,criticou com boa razão:

"O Botocudo com a pele de Tamanduá nas cos-tas, que Debret desenhava no Rio, sem dúvida,foi enfeitado pelo seu guia, como estes sujeitos ocostumam fazer, para aparentar estes coitados ín-dios, levados para as cidades grandes, mais inte-ressantes; pelo menos eu nunca vi algo semelhan-te entre estes índios, nem ouvi algo a seu respeitoe o disfarce dificilmente faz parte do 'jours depompe dans les forets', como se expressava o au-tor" (Wied-Neuwied, 1839, v. 1:684).

O príncipe Wied-Neuwied era um atento lei-tor de obras alheias, mas, ele, por sua vez, tam-bém não escapou de inúmeras críticas. 17 Um efei-to elucidativo tinha uma falha iconográfica sua.Depois de voltar para a Alemanha, ele encontra-va, na coleção Blumenbach, uma cabeça-troféumunducuru, que, na época, estava sem identifica-ção. Seja por excesso de entusiasmo, seja por sim-ples falha de interpretação, ele pensava, por uminstante, que a cabeça mumificada fosse um tro-féu de guerra de Botocudos, ou de tribos vizinhas.Orgulhoso desta descoberta, ele mandou repro-

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duzir O troféu na mesma ilustração em que se re-tratava os Botocudos, originalmente desenhadospor seu ajudante Friedrich Sellow (1789-1831),com o apoio de uma Câmera Lúcida. 18

Ilustrações posteriores, em obras de Jean-Bap-tiste Debret e Ferdinad Denis, mostram o mesmoconjunto de motivos, copiado apenas com ligei-ras modificações, o que indica, claramente, a suaverdadeira origem."

Não somente na capital brasileira, como tam-bém em países da Europa foram exibidos índiosvivos. O pioneirismo foi, mais uma vez, do prínci-pe de Wied-Neuwied que, segundo suas palavras"viveu bastante tempo entre os Botocudos, viu,observou e entrevistou uma boa quantidade epossuia um deles por muitos anos, em sua proxi-midade". (Wied-Neuwied, 1839, v.1:587). Este ín-dio, que foi exibido publicamente na Alemanha,tornou-se conhecido com o nome de 'Quack'. Elejá tinha servido ao príncipe como criado, ajudantena caça e como "lingua" (tradutor), durante as via-gens no Brasil e desembarcou um ano depois dopríncipe na Alemanha, onde chegou no dia12.02.1818, ao palácio de Neuwied."

O príncipe Wied-Neuwied não só tinha emQuack um servidor exótico - e provavelmenteum amante -, mas aproveitou a presença do índio,parecido às inúmeras coleções de animaisempalhados, plantas secas, insetos etc., como ob-jeto de estudo para a pós-análise dos resultados dasua viagem. Quack ficou à disposição de pergun-tas do seu proprietário, e serviu como informan-te para lingüistas; ele também posou, em váriasocasiões, para pintores, cujos quadros ainda seencontram em acervos alemães.

Dentro do palácio de N euwied, o Botocudoocupou uma sala especial, adequada exclusivamen-te à sua presença, onde ele manuseava, perante oassédio do público, arco e flecha. Um jornalistalocal, que o viu no ano da sua chegada, anotou aseguinte impressão:

"Ali, ele se encontrava sentado, esquentando-seno fogo do forno, calado, sério, sem pestanejar, ouse importar com o público boquiaberto, mas, eletotalmente contemplado. Quem o viu assim, jun-to à fraca iluminação, solitário, na calada da noite,poderia tê-lo considerado um filósofo, perdido noseu profundo pensamento." Ueber den Botokuden-

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Indianer Quack (In Reich der Todten, no. 16,Wied-Neuwied 1818;Apud Lôschner, 1988:40).

Esta impressão ignorava o fato, que Quack,num desfecho trágico, já estva sob a influênciafatal do álcool. Quâck faleceu em 1832, na au-sência do príncipe, que, nesta data, estava em maisuma viagem para a América do Norte.

Como causa de sua morte foi detectado umapneumonia, que ele tinha adquirido depois de tercaído bêbado pela janela, em meio à neve. (Rõder,1969:9). O príncipe comentou a perda numa car-ta para Martius, em 6.1.1835:

"Infelizmente, na minha ausência, faleceu omeu querido, coitado Quack (o Botocudo). Omeu irmão Karl, por sorte, acabou de pintar umretrato seu, em óleo, que ficou bastante verossímele a lembrança agora ficará bem viva. Eu gostariade ter trazido um norte-americano, somente istonão me foi fácil, já que estas criaturas, de repente,sentem saudades e então é preciso mandá-los devolta, o que causa geralmente grandes gastos".(Wied-NeuwiedApud Lãng, 1976:128).

Com a sua morte, o papel de Quack, em servi-ço do 'progresso científico', ainda não chegou aoseu fim. A sua cabeça foi doada para a SeçãoAnatômica da Universidade de Bona, onde ela foiexaminada e, finalmente, enfileirada na coleçãocraniológica da instituição. (Loetscher, 1992:15).

No ano de 1820, os viajantes Spix e Martiustambém não resistiram em levar índios brasilei-ros para a Europa, cujo destino trágico a históriabem tentou abafar. llustrativo é um trecho de umadas primeiras obras etnográficas, editadas na Ale-manha, em 1862, e que contém uma anotaçãosurpreendentemente sarcástica:

"[...] comenta-se que os citados senhores [Spixe Martius] para levarem alguns exemplares dosselvagens bípedes para a Europa, organizaram umapequena caça contra os Puris, ou, numa variante,eles oferecerem tanto e tal quantia em dinheiro,se alguém lhes entregasse tantos e tais Puris vi-vos, que causou a matança de uns vinte coitados,em emboscada sinistra, e dez ou onze, na maioriacrianças e mulheres, foram presos e lhes entre-gues. Para salvo da humanidade, preferimos acre-

ditar que isso não seja verdade, já que a cre-dibilidade deve ser questionada diante da existên-cia de duas variantes de relatos; e só uma pode serverdadeira.

Fato é, entretanto, que Spix e Martius, voltan-do da sua viagem, levaram uns oito ou dez Purispara a Europa, os quais, sem a devida fase de acli-mação, passando imediatamente do clima tropi-cal ao clima extremamente áspero de Munique,ficaram logo doentes e faleceram.

Os naturalistas, que acompanharam a princesaaustríaca Leopoldina para a América, levaram al-guns Botocudos, que, depois de satisfazer a curio-sidade do público em Viena e Munique, foramexibidos junto a outras naturalias e em troca pordinheiro, também em Berlim e em outras gran-des cidades." (Zimmermann, 1862:694).

Com a última observação, o autor, provavel-mente, mencionava o viajante Pohl, que, em 1821,apresentou um jovem casal de Botocudos em Vi-ena. Quando o Príncipe de Wied-Neuwied visi-tava o seu navio na chegada, ele foi reconhecidopelos dois índios, de nomes portuguêses João eFrancisca, que estavam aproximadamente com 20e 21 anos (Wied-Neuwied, 1850:97). As circuns-tâncias da sua posse, descreve o artigo de um jor-nal austríaco em Viena, datado em 17.11.1821,intitulado: "Die Botokuden-Indier in Wien". (Wie·ner Zeitschrift für Kunst, Literatur, Theater undMode, Nr. 131):

"O Senhor Dr. Pohl visitava estas tribos autên-ticas nas suas viagens pelo interior do Brasil emseus lugares de origem, e recebeu o casal na suavolta para o Rio de Janeiro, entregues pelo portu-guês Julião Fernandes da Leme, major da corte,que para a civilização destes índios, e para impediras investidas contra os aldeamentos portugueses jáestava há dez anos em São Miguel, na chefia de umquartel militar, levando para a capital uma hordade 50 sujeitos, diante do rei, para provar a avançadacivilização destes índios."

Imediatamente depois, os dois chegaram nasmãos do obscuro empresário Capitão Hadlock,que os apresentou, comercialmente, em feiraspúblicas e Mostras de Panorama. Entre as suas de-mais atrações, e ao lado de vários artigos etno-gráficos, foi exibida uma cabeça inteiramente co-

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berta por tatuagens, 'bem conservada e prepara-da' , pertencente a um 'cacique de Nova Zelandia',que, por ironia, enquanto vivo, tinha sido maisum membro da sua tropa.

Depois de dois anos de exibição, a jovemFrancisca faleceu, e o seu acompanhante João con-seguiu retornar para o Brasil, onde surgiam noti-cias de ele ter sido, como Quack, vítima de alco-olismo. (Goldmann, 1985:255).

Vinte anos mais tarde, dois jovens Botocudosforam levados para Paris, pelo viajante francêsMarcus Ponte, e submetidos a sessões de exameslingüísticos." O médico e viajante dinamarquêsFriis, em 1860, soube de um projeto fracassadode comerciantes brasileiros, que tinha adquirido,alguns anos atrás, dois chefes botocudos com suasmulheres, com o plano de enviá-los comercial-mente para a Europa. O empreendimento fracas-sou, e Friis comentou a lastimável perda de di-nheiro, que, nesta ocasião, os 'investidores' teri-am perdido, sem conseguir o seu retorno. (Auge,1980:101).

Ainda nos anos de 1880, um certo Ribeiro le-vou para Londres seis crânios botocudos, objetosetnográficos e cinco Botocudos vivos, dois ho-mens e três mulheres, que foram apresentados notradicional "Anthropological Institute'. (Keane,1883:198). É provável, que esta pequena tropa játinha participado, anteriormente, na ExposiçãoAntropológica, de 1882/83, no Rio de Janeiro.N este evento, os Botocudos estavam em destaque,com vários utensílios expostos, além de fotografi-as da autoria de Joaquim Ayres.23

Ainda hoje, quem entra pelas salas do MuseuNacional, no Rio de Janeiro, vai encontrar, ex-posta numa vitrine que trata da evolução huma-na, uma figura estilizada de um botocudo, repre-sentante do primeiro 'Homo Sapiens', em supos-to estado primitivo.

NOTAS1.As traduções do alemão, neste artigo, foram feitas pelo

autor.2. Partes do texto, foram apresentados durante a XX Reu-

nião Brasileira de Antropologia, em Salvador, Bahia,1996.

3. Entre as mostras, que atraíram maior curiosidade dopúblico europeu, constaram apresentações de esqui-mós, ou, patagônios. Um famoso empresário neste

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ramo, Capitão Samuel Hadlock, trocou durante umatemporada, sem escrúpulos, uma esquimó, a figuranteprincipal, falecida, por uma' cigana'. Famoso tornou-se ainda o caso de dois microcéfalos (uma anormalida-de patológica) Maximo e Burnetta, nascidos no Méxi-co, que, a partir de 1848, foram exibidos em Nova Yorke em várias cidades da Europa, apresentados como 'úl-timos sobreviventes' de Astecas, ou Tohecas. (Gold-mann,1985:255-260).

4. Desde 1798, estava colocada aos pés de Angelo Solimanuma menina africana, doada como presente pela rai-nha Maria de Napoli. Ela era uma criança de apenasseis anos, empalhada e igualmente decorada com cola-res e plumas. Nos primeiros anos do século XIX, ogrupo figurativo, já sob desaprovação do público, foiretirado do museu e colocado no acervo, fora do al-cance dos visitantes; num incêndio durante as revoltasde 1848, em que o fogo se espalhou por várias reparti-ções do prédio, o grupo foi destruido - como também,tragicamente, a maior parte da coleção brasileira doviajante Natterer, uma das mais importantes da suaépoca. (Hamann, 1976:19-44).

5. Estas apresentações viveram o seu apogeu nas últimasdécadas do século XIX, mas, ainda em 1931, exibia-seem vários parques zoológicos da Alemanha uma 'ca-ravana' provindo da Nova-Caledônia. (Thode-Arora,1989:169).

6. O barão já tinha passado por Rio de Janeiro, em 1803,durante a circum-navegação russa. Nesta ocasião, elefoi um dos primeiros viajantes que entraram no país,depois um longo período, em que a colônia permane-cia praticamente fechada para estrangeiros. (Becher,1987:1)

7. O nome 'Botocudo' designava genericamente gruposindígenas com um traço exterior, em comum; a pala-vra portuguesa era sinônimo de rolha de barril ou detonel e se referia aos rolos que certas tribos brasileirosusavam, introduzindo-os nos furos artificiais dos ló-bulos da orelha e do lábio inferior. (Ribeiro, 1988:154).Embora que a designação tenha sido aplicada a váriastribos, comparável com os nomes anteriores, Tapuaise Aymorés, com os quais os Botocudos foram confun-didos, ela foi usada, principalmente, para tribos dasregiões entre os rios Pardo e Doce, conhecidas tam-bém erroneamente como Naknenuk, mais recente-mente, como Krenak.

8. O Botocudo também é mencionado por Saint-Hilaire(1830, v. 1:51).

9. Depois da morte do Conde da Barca, Alexander vonHumboldt, manteve uma amizade cornJosé Bonifáciode Andrade e chegou a incentivar a criação do Institu-to Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838.

10. Rugendas foi, sem dúvida, um bom retratista de índi-

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os, mas particularmente os seus esboços e quadrosde Botocudos refletem estereótipos comuns da épo-ca; neles, ele reaproveitou material de outros viajan-tes como a obra do príncipe Wied-Neuwied; Os tex-tos sob o seu nome, aliás, eram provavelmente daautoria do político alemão Victor Aimé Huber (1800-1869).

11. Alexander von Humbold foi um dos membros daAcadémie de Sciencies de Paris, e, ao lado de FrançoisArago, avaliou a utilidade da nova invenção, ainda an-tes da sua proclamação oficial, no dia 19 de agosto de1839. (pohln, 1983:4).

12. Um dos professores de Gõrtingen, F riedrich Bou-terwek (1766-1828), editou a primeira história literá-ria moderna, que incluia autores tanto ponuguesescomo brasileiros. Ele foi percursor de Simonde deSismondi (1773-1842) e Ferdinand Denis (1798-1890),e deve ser considerado um pioneiro da crítica compa-rativa (Bouterwek, 1805).

13.Algumas perguntas eram esquisitas; em 1797, o profes-sor Blumenbach queria saber do viajante Hornemannpara a sua viagem àÁfrica, se 'realmente alguns negros,de propósito, ainda achatam os narizes dos recém-nas-cidos' e 'quanto tempo agüenta um camelo, no deserto,sem se encher com água' (Bitterli, 1976,312).

14. Entre os 'ladrões' de ossarias figuraram, ao lado dopríncipe de Wied-Neuwied, os viajantes Eschwege, Sel-low, Freyreiss, Spix e Martius, Saint-Hilaire, Tschudi,Hartt e Paul Ehrenreich. Eles, aliás, seguiram com estaatitude, mais uma vez, o exemplo de Alexander vonHumboldt.

15. O projeto de uma Comissão Científica nasceu nassessões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiroe foi idealizado como o primeiro empreendimentocientífico nacional, no Brasil do século XIX. Chefia-da por cientistas renomados, como Francisco FreireAlemão (1797-1874) e Guilherme Schuch, barão deCapanema (1824-1908), a expedição tinha um desfe-cho medíocre, deixando, sobretudo, vestÍgios para ofolclore, e não para as ciências. Famosos tornaram-se afracassada importação de camelos, que não se adapta-ram ao ambiente do Senão nordestino, e os deslizesamorosos, que provocaram, na época, uma designaçãoainda mais maldosa, 'Comissão Defloradora'.

16. As ilustrações de Debret não refletiam uma realidadeetnográfica, mas, eram, sobretudo, representações es-tereotipadas, às vezes, caricaturescas. O pintor apro-veitou, como Rugendas, vários' empréstimos', entreoutros, textos e desenhos do príncipe de Wied-Neuwied e de Spix e Martius (Hartrnann, 1975:79-81).

17. Iniciou-se um clima de animosidade, particularmen-te, entre o príncipe alemão e o naturalista francêsAuguste de Saint-Hilaire (1779-1853), que repreendia,

na sua obra, supostos erros onográficos e algumas dassuas classificações botânicas. O príncipe, que se viu,durante muitos anos, indevidamente citado e copiado,publicou, ainda em 1850, um suplemento em que elese defendia amargamente das críticas sofridas. Umoutro crítico de Wiecl-Neuwied, já depois da sua mor-te, foi o geólogo canadense Charles Frederick Hartt(1840-1878). (Wied-Neuwied, 1850).

18. Na sua viagem pelo Brasil, o príncipe de Wied-Neuwied estava acompanhado por Sellow e Freyreiss.Os dois, chamados inicialmente pelo barão de Langs-dorff, já tiveram experiências no país e dominavambem a língua ponuguesa. O uso de câmera lúcida -mais leve e melhor transportável do que a câmera obs-cura - era bastante comum entre os naturalistas, antesda invenção da fotografia. Os retratos de Sellow, queera botânico e também um excelente desenhista, fo-ram, muitas vezes, indevidamente copiados.

19. Anos mais tarde, em 1882, na ocasião da primeiraExposição Antropológica, divulgou-se, no Brasil, maisum erro etnográfico, igualmente relacionado aos Índi-os Mundurucu que se perpetuou por bastante tempo.Um troféu de cabeça 'tsantsa', no tamanho de umpunhal, que, na época atraiu uma enorme curiosida-de, foi atribuído aos Mundurucu, mas, provavelmen-te, era procedente dos Jivaro, de Equador.

20. O príncipe 'possuía' também um negro brasileiro,que faleceu logo depois da chegada à Alemanha.

21. O Botocudo João, depois do seu retorno da Europa,foi mencionado pelo famoso Diretor dos Índios, GuidoThomas Marliêre (1768-1836).Marliêre se queixava damá influência de João, entre os índios aldeados e ex-clamava melancôlicamente: "os selvagens não se de-vem expatriar". (Marliére, 1906, Revista do ArquivoPúblico Mineiro, v.x:517).

22. Os resultados lingüísticos foram publicados, posterior-mente, pela Revista do Instituto Histórico e Geográfi-co Brasileiro. (jomard, 1847:107-113).

23. Existem poucos dados sobre este fotógrafo. Algumasdas suas fotografias para a Exposição Antropológica,de 1882-1883, encontram-se, hoje, no Instituto Histó-rico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro ..

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