de gauber a santos 16
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Uma carta aos meus alunos de Cinema. É momento de refletir sobre nossa participação na sociedade como diria Salvador Dali Agente Provocadores da alma humana. Uma introdução e justificativa para a proposta do Santos 16.TRANSCRIPT
Uma mensagem para meus alunos e colegas
De Toni Martin
07/03/2014
O dia 14 de Março de 1938 foi certamente uma data especial para o cinema
brasileiro e mundial. Nesse dia nascia na pequena cidade baiana de Vitoria da
Conquista o maior cineasta que o Brasil gerou: Glauber Rocha. Em Janeiro de
2014 a sua maior parceira e devota companheira dona Lúcia Rocha morria aos
95 anos de idade, talvez a chama de todo um movimento pessoal, de um gênio
criativo, ímpar como foram Tarkovisky e Passollini.
Maior exponente do Cinema Novo, o projeto Glauber se fundamenta num
movimento que parte do desejo de comunicar, de expressar seu ideário sócio
politico, mas sobre tudo de um grande artista, com a construção de uma
estética singular, de códigos magnéticos deliberadamente elaborados, nascidos
da simplicidade, da observação do seu povo, da poesia do cordel, da música
ritmada, da dor de sua gente que via padecer no sertão nordestino, de renegar
o cinema imposto pela indústria americana.
Apesar do seu jeito prepotente, falador, egocêntrico se colocava como um
profeta visionário. Pouco antes de sua morte boa parte de seus colegas e
amigos não se relacionavam mais com ele devido ao seu jeito Glauber de ser...
Mas logo após sua morte, ele deixou um vazio insubstituível... Quem o
conheceu não se esquece deste baiano arretado e sente saudades, como afirma
Othon Bastos, ator de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.
Muito tem sido falado do Glauber e da sua trajetória relâmpago, fulminante.
Morto aos 42 anos, (ler coincidência no próximo texto) a idade invertida de
Castro Alves, eles previram que morriam jovens... Deixou 17 filmes para a
humanidade se deliciar e aprender sobre o seu tempo, através de sua visão
particularmente ácida e direta impressos em negativos, assim como em livros,
poemas e seus manifestos.
Hoje sou professor da única universidade de cinema da Baixada Santista.
Percebo, com surpresa e tristeza, que a maioria dos jovens estudantes
desconhecem a importância do Cinema Novo, movimento genuinamente
brasileiro, como também o legado e influência que ele exerce sobre todos nós
realizadores cinematográficos.
Assim aproximandose da data comemorativa do seu aniversário, é certamente
tempo de retomar as suas imagens e sons, de colocar nas roda de discussões o
valor dos seus filmes, nas classes, nos bares, e compartilhar com amigos e
parentes. Glauber não é obra morta, prostrada ao cemitério de bibliotecas.
Mesmo se alguns contestam a sua estética, ela permanece uma opção para
tantos que desejam se expressar através da arte de realizar filmes.
Queridos alunos e colegas, é hora de refletir sobre a nossa realidade, temporal
e espacial (2016 Brasil América Latina). Como podemos nos preparar para
alcançar voos criativos? Termos consciencia da nossa missão de comunicadores,
de artistas que entendem a importância de nossa contribuição na sociedade?
Além de buscar a fama e dinheiro, de pousar na revista Caras e esperar uma
oportunidade de fazer parte do elenco seleto de emissoras de TV, podemos sim
servir nosso país ampliando não somente nossos títulos mundiais de futebol
mas exercitar o desejo de ver nossa sociedade mais feliz, colaborativa, menos
gananciosa. Exemplos de revoluções na educação como na Coréia do Sul
deveriam nos inspirar, assim como os resultados de democracias como as dos
países nórdicos europeus que conseguiram a melhor distribuição de renda entre
a população, onde os políticos andam de metro, de bicicleta, no lugar de
esnobar em jatinhos gozando de imunidades desnecessárias, afinal de contas
são nossos servidores, eles certamente são empregados do povo brasileiro.
Darci Ribeiro no enterro de Glauber discursou sobre o papel deste baiano que se
preparava para ser colocado na cova, expunha o porque valeu ter tido um
Glauber entre nós, o porque ele mesmo se destruiu, a sua dor profunda pela
situação de crianças que morriam de fome e da desigualdade no mundo dividido
entre ricos e pobres.
Segue aqui o discurso de Darci Ribeiro “Glauber passou uma manhã abraçado
comigo chorando, chorando, chorando compulsivamente. Eu custei a entender,
ninguém entendia que Glauber chorava a dor que nós devíamos chorar, a dor
de todos os brasileiros. O Glauber chorava as crianças com fome. O Glauber
chorava a brutalidade. O Glauber chorava a estupidez, a mediocridade, a
tortura. Ele não suportava, chorava, chorava, chorava. Os filmes do Glauber são
isto. É um lamento. É um grito. É um berro. Esta herança que fica de Glauber
para nós é de indignação, ele foi o mais indignado de nós. Indignado com o
mundo qual tal é. Assim”.
Hoje talvez tenhamos entrado na pior crise econômica do pais, nós realizadores
cinematográficos, devemos pensar como lidar e agir diante da situação
econômica do Brasil. Somos antes de mais nada "comunicadores", somos a
"voz" dos que não sabem se expressar, e, meus caros alunos e colegas, esta
função social deve ser em todo momento relembrada. Glauber previa o que
parece obvio hoje em dia: cinema é coisa para poucos iluminados e
avantajados. É obra para quem está próximo dos recursos volumosos, que
certamente não estão ao alcance de todos os amantes da arte cinematográfica.
Nas escolas nos ensinam a correr os 100 metros e por motivos óbvios de
custos e função acadêmica, se esquecem de experimentarlhes a maratona. Se
ensinamos/aprendemos a realizar curtasmetragens, porque não motivamos o
exercício do longametragem? Muitos dirão, estas louco? para isto precisamos
de 1 milhão de reais e gente da indústria como atores famosos, técnicos e
profissionais que certamente estão disponíveis e protegidos pelas tabelas dos
sindicatos. Assim se torna uma tarefa descomunal para o ainda despreparado
"aluno de cinema". A realidade é que não se estimula a produzir um história de
mais de 70 minutos.
Na época do Glauber e a pouco tempo atrás, as barreiras tecnológicas, como a
compra de negativos, laboratórios, câmeras e sofisticadas traquitanas tornavam
o processo inviável e se dependia absolutamente da extinta Embrafilme, e da
sua substituta Ancine, democratizados aparentemente em editais municipais,
estaduais e federais, consolidados na ideia de obter o recurso público pela
isenção fiscal de empresas. Horas, me pergunto, o governo passa o crivo do
julgamento do valor de uma obra, para servir de marketing para um empresa
de bolachas, sapatos, carros? Que pais é esse?
E logo vem outro drama: a aceitação dos distribuidores e deste processo
sobram o que vemos hoje no cinema nacional: filmes absolutamente
comerciais, moldados nos formatos hiperrealistas do cinema americano, do
cosmético da fome e da violência extrema, da comédia formatada por roteiros
clássicos e previsíveis. Vejam vocês alunos e colegas, a distancia a percorrer
para alcançar o tão almejado filme e assim ter a chance de dizer, mamãe
consegui fazer o meu longametragem!
Mas temos exemplos após Glauber de pessoas geniais como o Afonso Brazza,
bombeiro apaixonado por fazer cinema trash, se considerava o pior cineasta do
mundo, competindo com Eddie Wood, (Jô Soares o entrevistou, mas deu pena,
tive a impressão que zoava dele, não o levou a sério, pensei: mais um palhaço
para divertir a plateia do apresentador). O ponto relevante do Brazza é que ele
enfrentou o sistema, e produziu diversos longas, no seu jeito, do seu jeito,
com as sua condições na grande Brasília. Hoje, saudoso Brazza, ele também
nos deixou um legado. Se há desejo, vontade, é possível sermos criativos e
insolentes, assumir o que se tem, contagiar seus amigos, colegas, se organizar
e transformar sua imaginação em realidade.
Assim, meus alunos e colegas, o que esperamos para exercitar uma maratona?
Não há como tornarse um especialista nesta distancia sem ter treinado para
isto, 20 Km, 30Km, 40 Km e mais.
Se Santos é o hoje a Cidade do Cinema, outorgado pela Unesco, unindose a
diversas cidades no mundo também agraciadas, acredito que seja a hora de
mostrar nossa cara, contar nossas histórias com a força e frescura da
juventude, com a insolência dos que não temem um sistema complexo de
distribuição cinematográfica, mesmo na era digital e globalizada.
Pensamos assim lançar o Santos 16, um movimento sem dono, com apenas o
desejo de fazer filmes de mais de 70 minutos, com gente da baixada santista,
sem precisar importar famosos atores e atrizes, equipes de elite, equipamentos
sofisticados. Um exercício criativo, sobre tudo um ato de estudo, para
estudantes de escolas e universidades, para profissionais cansados de esperar
pelo dinheiro de fomentos, de julgamentos, de panelas formadas nas esferas
federais, estaduais e municipais.
Apesar de surrada a ideia do Glauber: “Uma ideia na cabeça e uma câmera na
mão”, ela está ainda mais viva e útil do que nunca, neste nosso tempo de crise.
Alias, hoje nem precisamos de uma câmera, mas apenas um Smartphone e
Gente entusiasmada para fazer o sonho realidade.
Vem ao Santos 16…. vamos nessa?
Toni Martin