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DE FRENTE PARA TRÁSLembranças de um Caatingueiro

Com José de Mariá

De Frente para Trás

Lembranças de um Caatingueiro

Esmeraldo Lopes 2

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DE FRENTE PARA TRÁSLembranças de um Caatingueiro

Com José de Mariá

FICHA TÉCNICA

Título: De Frente para Trás: Lembranças de um Caatingueiro

Entrevista de Esmeraldo Lopes com José de Mariá

Digitação: Esmeraldo Lopes

Diagramação: José Alberto Gonçalves Lopes

Capa e Arte Gráfica: José Alberto Gonçalves Lopes

Fotografias datadas de agosto de 2005: Marcelino Ribeiro

Fotografia de fundo de capa: Antônia Eulália

Demais fotografias: Álbum da Família

Tiragem: 06 exemplares

Produção Independente

Dezembro de 2005

Esmeraldo Lopes 3

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DE FRENTE PARA TRÁSLembranças de um Caatingueiro

Com José de Mariá

AGRADECIMENTOS

Agradecimentos a José Alberto Gonçalves Lopes, que se

debruçou sobre a entrevista, para

dar-lhe formato de livro, estudando o melhor lugar de inserir as

fotografias, experimentando

formas variadas de composição gráfica das páginas e,

principalmente, pela dedicação com que se botou

na concepção artística e

estruturação da capa. Tudo isso sem reclamar e consciente de que

além de não obter como retorno

retribuição financeira. Como se não bastasse, ainda tirou de seu

bolso dinheiro para

comprar material com a finalidade de testar seu trabalho, até

chegar à forma final.

Agradecimentos também a Marcelino Ribeiro, que, prontamente,

se dispôs a fazer as

fotografias, propondo-se,

inclusive, a contribuir para a edição da presente obra.

Uma obra como esta, só é viável por conta da dedicação de

profissionais que se entregam

a ela, ao abraçarem, sem medir esforços, o compromisso de uma

realização, dando o

melhor de si, independentemente de quaisquer

vantagens que venham além dela mesma.

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DE FRENTE PARA TRÁSLembranças de um Caatingueiro

Com José de Mariá

APRESENTAÇÃO

Eu só o conhecia de nome. A primeira vez que ouvi seu nome foi em Araguaína, hoje estado do Tocantins, na época, estado de Goiás. Meu irmão, Elu, que viera a Curaçá por ocasião da Festa dos Vaqueiros, voltara contando sobre ela, e no meio de seu contado aparecia o nome de Zé de Mariá, lembrado pela força de seus aboios. Isso lá pelos anos de 1974. Quando de meu retorno a Curaçá, aqui e ali, ouvia seu nome, mas não passava de um nome, já que nunca me dera a ver a imagem do homem. Os anos rolaram e eu, desde que comecei a procurar gente do lugar para ouvir suas histórias, nunca pautava Zé de Mariá e nem sequer lembrava dele. Somente no ano passado, quando eu estava contribuindo com um detalhe na preparação da Festa dos Vaqueiros é que Jumária, uma sua vizinha, falou que a presença dele seria muito importante, mas que dificilmente ele compareceria, pois se encontrava adoentado. Ela falou que ele gostava muito de contar sobre aspectos de sua vida.

Quando me botei na intenção de fazer um trabalho sobre Caatinga e caatingueiros, o nome de Zé de Mariá veio bem de frente e fui à sua captura, mas ele não estava mais morando em Curaçá. Foi Januário quem me endereçou a sua localização: “Ele está morando na rua Três, no bairro das Olarias, em uma casinha amarela que fica bem no começo do Canal. Eu passo lá e o vejo sentado na porta”. Um dia, me deu que chegara a hora e fui. Calculei mal. A localização e o nome da rua não conferia com as informações dos moradores do lugar. Parei em frente de uma casa onde um senhor estava sentado na porta, perguntei se ele sabia onde era a rua Três.

Ele falou que não, mas tão atordoado eu estava que não olhei a cor da casa onde ele estava sentado. Avistei uma casa amarela em uma esquina e para lá me dirigi. Bati e perguntei se ali era a rua e a casa que eu procurava. Nem o número da casa e nem a rua conferia. Mas a senhora perguntou por quem eu procurava. Respondi e ela disse, indicando com o dedo: “Ali. É aquele que está sentado na porta”. Vi-me idiota. Aproximei-me, identifiquei-me e disse o que queria. De pronto convidou-me a entrar e começamos a conversar. Ele se prestimou com animação. Eu perguntando e ele respondendo. De início se botou meio sem jeito, mas foi se soltando, se soltando e nesse se soltar foram sete horas de gravação em quatro rodadas de conversa, fora o tempo de conversa sem registro, mas que fazia parte da compreensão e esclarecimento das coisas. Quando terminava, por esgotamento, a rodada de gravação, marcávamos o próximo encontro e no momento aprazado, já se botava ansioso e esperava, como uma mulher que está vendo passar a hora de dar à luz: “Há muito tempo eu tinha essa ansiedade, de escrever a minha vida, e nunca me dediquei a fazer, mas que eu tinha vontade”. Foi ele quem decidiu que o que se fazia ali era a escrita de um livro e daí para a frente tratou aquela que seria, pela minha intenção, uma simples entrevista em um livro. E assim foi selado um compromisso. De início eu pensara em fazer uma encadernação simples, mas o conteúdo e sua profundidade passaram a pedir mais que isso. Cada sessão durou por volta de duas horas, no final das quais estávamos ambos cansados, chegando ele, às vezes, a dizer: “Vamos parar por hoje que estou esgotado”. Mas enquanto não chegava essa hora, ele ia soltando uma “porra” aqui, outra ali, e a coisa andando. Respondendo e me sondando o tempo todo. Hora dizia: “Ô pergunta boa da porra!”, em outro momento: “Êta

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Com José de Mariá

pergunta mais sem pé e nem cabeça! Quer comparar Nosso Senhor com Zé Buchudo?” E se alguma pergunta se reportava a questão já respondida ele indagava com força: “Você não me pega em mentira não, caba! Tá entendendo!?”

As palavras iam saindo sem esforço e minha tensão era grande, por saber que a qualidade de uma resposta depende, por comum, da qualidade da concernência da pergunta, convicção que se fortaleceu depois que li no livro O Homem no Vale do São Francisco, de Donald Pierson, a seguinte história: “Clyde Kluckhonhn, durante uma de suas últimas visitas de pesquisa aos Navahos, o seu amigo Bidaga, membro deste grupo ameríndio, finalmente exasperado com a falta de compreensão desse antropólogo bastante competente a respeito de certo aspecto da vida da tribo que procurava esclarecer, repreendeu-o e disse: ‘Há trinta anos venho tentando explicar-lhe estas coisas, mas o senhor nunca me fez as perguntas corretas”. Evidentemente que uma situação dessas deixa qualquer pesquisador nervoso, pois algumas vezes já me frustrei com entrevistas por estar certo que não estava sabendo fazer a pergunta correta. Acredito que uma entrevista exige, além de seriedade, empatia, adequação do momento e do lugar, assim como disposição do entrevistado e a perspicácia do entrevistador. Se este não conhece bem o assunto sobre o qual questiona, é melhor ficar atento e ir se orientando pelo que diz o entrevistado, prestando atenção em cada detalhe, pois nunca se sabe se há uma segunda chance e nunca se deve fazer suposição sobre o dito, quando aquele que diz está ali para esclarecer o seu próprio pensamento e a situação a respeito da qual está falando. No caso de Zé de Mariá, foi uma moleza, até onde percebo. Ele estava sempre à minha espera, e reclamando da minha demora em

aparecer. Ele queria se ajudar ao me ajudar, ou como nas palavras dele, “escrever um livro através de suas mãos”. O homem queria parir e eu estava com tempo de maturar o já dito, o que me permitia buscar o preenchimento das lacunas que eu ia encontrando. Para saber mais e me aprofundar no objetivo que embalava minha curiosidade, eu usava o recurso de perguntar até aquilo que aparentemente era óbvio, e não me surpreendi por obter respostas muito distantes do que eu esperava.

Eu recebi muito, muito mais do que esperava. Diante de mim, um homem de 69 anos, machucado pela vida da peleja nas caatingas, carregando no corpo as marcas de sua história sob a forma de cicatrizes que exibe como documento e que, portanto, lhe fazem lembrar, pernas enfraquecidas, passado sofrido, mas vivo, sem ressentimento, olhando para trás com a consciência de que fez o que estava ao seu alcance fazer e que procurou fazer o que fez da melhor forma. “Se hoje eu tô com os nervos das pernas arrombados desse jeito eu penso que foi isso que eu plantei naquela época, e agora tô colhendo”. Mesmo carregando o peso da dureza enfrentada, das pancadas dos paus nas carreiras atrás de boi, não se acha velho. A idade só lhe vem quando, ao falar dos tempos passados, vai se referindo aos companheiros, e ao anteceder seus nomes com o adjetivo de finado, exclama: “Menino! esse povo já morreu quase tudo. Virge Nossa Senhora!” Mas não se deixa parar e se lança para o futuro nas asas de Jaldes, filho adotivo, da turma formada por seus netos e de Mariazinha, sua dedicada esposa.

Não queiram muito, aqueles que lerem esta entrevista. Ela não pode ser caracterizada como a história da vida de Zé de Mariá. A

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Com José de Mariá

história de um homem não pode caber, nem de longe, em papéis sob o formato de páginas. Sete horas, que seja mil, não podem cobrir o percurso de uma jornada de 69 anos. Nessa estrada tem muito pau, bicho, gente, emoção, ilusão, sonho, experiência, frustração, vontade, alegria, tristeza... Esta entrevista, em verdade, não passa de fragmentos. Por outro lado não se buscou detalhes da vida familiar, se bem que alguns, muito poucos, foram referidos. Como em tudo que retrata a vida humana, muitas coisas não foram ditas propositadamente, por não convir ao entrevistado. Outras me foram ditas, mas com compromisso de silêncio.

Quero finalizar esta apresentação dizendo que talvez seja esta a obra escrita mais recente e mais rara do mundo, pois apenas seis exemplares foram produzidos, e externar meus agradecimentos a Zé de Mariá, por ter me acolhido, tolerado e acreditado.

Juazeiro – BA, 03/11/2005

Esmeraldo Lopes

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Com José de Mariá

Zé de Mariá (Agosto/2005)

JOSÉ DE MARIÁ

José Alves Dantas, nascido em 1936, aboiador, vaqueiro e proprietário do sítio Deus me Ajude, terrenos da Fazenda Salgado, município de Curaçá.

Entrevista realizada entre 30 de julho e 10 de agosto de 2005 em Juazeiro, Bahia.

Entrevista de Esmeraldo Lopes.

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Com José de Mariá

Zé de Mariá (Agosto/2005)

- Seu José, inicialmente eu gostaria que o senhor falasse de suas origens.

- Meu nome é José Alves Dantas. Eu nasci no dia 8 de fevereiro de 1936. De 36 a 42, eu não sei contar nada. Eu era muito criança e aí minha mãe é quem devia saber. A partir de 42, que eu já comecei a comer com a mão, aí eu já fui entendendo algumas coisas, muito poucas, mas mesmo assim mamãe me contava que pra me criar - quem me criou, para bem dizer, foi uma irmã minha - amarrava uma cabra no quintal que tinha pegado na casa pra tirar leite pra mim à noite, que minha mãe estava arranchada no riacho da Canavieira, tirando xiquexique pra nós sobreviver. Bem, lá

vem a história: quando chovia ficava ruim – o xiquexique -, nós ia tratar de roça. Eu ia botar semente na cova e coisa pra ajudar eles. Daí, eu já fui tomando gosto de trabalhar, nem só tomando gosto como a necessidade obrigava. Minha mãe era pobre, não tinha como, então a gente tudo tinha que criar. Quando a gente plantava roça, limpava, ficava esperando que o legume chegasse em ordem, a gente ia arrancar caroá. Ia arrancar caroá, puxar, trançar, bater pra vender no Barro Vermelho, pra comprar o que era necessário: a farinha, o café, a rapadura, essas coisas. Em 45, mamãe pagou a uma velha, lá, vizinha, que sabia ler pra ensinar a gente, desarnar a gente na escola. Ela pagou dois meses, setembro e outubro. Ela pagava cinco mil réis por mês – eu acho que era mil réis nessa época -, e foi a escola que esse Zé de Mariá teve. Pois bom, mas o dom que Deus me deu e a vontade que eu cheguei nessa escola... eu não tinha vontade, não tinha interesse, a velha ainda me deu dois bolos que eu ainda hoje sinto a chiada na telha, pra soletrar o nome de “antão”. Eu não dizia a-t-ante-te-o-te-litão, que naquele tempo que a gente estudava era assoletrando, pra depois ver por cima, pra depois desarnar. Eu só dizia na-te-o-tio-tão. Me ensinava, me ensinava mas não tinha jeito. Por isso essa véia me deu esses dois bolos. Depois desses dois bolos a memória abriu, e eu já passei na frente de uns que já tavam na minha frente. Venceu os dois meses, mas aí, eu já tinha chegado vontade, tava começando já a querer namorar com as meninas da escola, lá vai, lá vai, aí eu mandei mamãe fazer uma muchilinha e botava o ABC e a Cartilha da Roça na mochila, e quem eu via que sabia ler eu pedia uma lição. Aí, chegou minha idade, mais ou menos assim de 12 a 14 anos, eu fui trabalhar, jogar

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Com José de Mariá

lama numa cacimba1, no Juá de Ferreira, chamado pelo véi Zequinha – era meu tio, chamado por ele -, mas eu muito criança, o véio Ferreira achava que eu não trabalhava como um trabalhador. Justamente, eu não faria tanto, mas fazia bem aperfeiçoado. A lama eu jogava bem direitinho, aí ele me botou pra trabalhar. Eu tinha mais ou menos 12 anos, 13 anos quando comecei a dar o duro. Aí trabalhei muito, fizemos água na cacimba e tudo, eu e um irmão meu, demos água aos bichos, aí fiquei sempre trabalhando a esse velho. Cheguei o ponto de ir cavar uma cacimba dele, até cinqüenta palmos2, no Juá, quando nós chegamos a tirar água, que interrompemos o serviço. Nesse trabalho dele, além do furar da cacimba, ainda abrir o rebaixo, naquela era mais ou menos de 53 pra 54. Eu dei direto, só perdendo os domingos, 75 dias e meio. Eu não me alembro se comecei no mês de agosto ou no mês de junho. Salvo engano, foi no mês de junho. Bom, quando eu arriei o serviço da cacimba, deixei lá pronta, com rebaixo pronto, aí eu fui pra Santa Maria da Boa Vista, com o véio Ernesto do Juá, que era cunhado de Ferreira. Fui plantar cebola. Plantamo a cebola... deu boa, só que nessa época a cebola perdeu o valor e apodreceu na roça. Não apuremo um centavo, perdemo a despesa toda. Aí, os rapazes que foram comigo, trabalhar lá, vieram embora, aí eu me enraivei e disse que não vinha mais eles, até que eles falaram: - “Mas rapaz, a gente vai embora, você vai ficar sozinho no meio desses pernambucanos, não sei o quê” – Eu disse: -“Não tenho medo. Só tenho medo dos castigos de Deus” -. Aí fiquei lá. Eu disse: -“Eu trouxe minha rede, minha coberta e

1 Retirar lama do fundo de cacimba, o que inclui também quebrar pedra para aprofundar a cava na intenção de atingir veios d’ água.2 Palmo = 22 cm.

aqui acabei, e só volto daqui quando comprar outra” -. Abri cacimba de empleita – eu já tinha prática-, trabalhei muito em engenho, só não dei ponto em rapadura, mas o mais em serviço de engenho eu fiz lá. Quando terminou

Esmeraldo Lopes e Zé de Mariá (Agosto/2005)

as moagens, aí eu vim me embora, mas aí eu fiquei: “Mas do que eu vou viver? Porque aí não tinha mais serviço”. Aí fiquei comprando licuri ao pessoal daí, mando eles fazer rosário3 e eu comprando licuri, levando e vendendo em Santa Maria da Boa Vista, e lá eu comprava banana e vinha vender do lado de cá. Passei uns três meses, mais ou menos, nessa vida, comprando

3 Rosário de licuri: uma enfiada de semente de licuri em um cordão. Os vendedores de licuri faziam parte da paisagem das feiras. Carregavam vários rosários pendurados no pescoço ou no ombro e iam vendendo. Diga-se, para esclarecimento, que os caroços de licuri absorviam o suor dos vendedores e eram consumidos assim.

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Com José de Mariá

minhas coisas, e já com dinheirinho no bolso... mais ou menos. Aí quando, em 57, eu fui chamado pra ser vaqueiro em uma fazenda Morro Branco, que era de Juvino Ribeiro, aí passei 57... Morro Branco ficava na estrada que vai de Barro Vermelho pra Uauá, distante duas léguas de Barro Vermelho. Por lá eu fui vaqueiro de criação, mil e tantas cabeças de cabra, mais outro rapaz, mas não deu certo eu e o outro rapaz, aí depois ele me botou de vaqueiro do gado, mais um outro vaqueiro, que ele tinha muito gado, até agosto de 60. Em agosto de 60 aí eu... não tive muito resultado, mas também não perdi muito. Aí tirei meu gadinho que tirei de sorte4, tirei minha criação e aí, já eu namorava uma moça, que é essa dita Mariá. No dia 18 de dezembro de 60 eu me casei com Mariá. Aí eu deixei de ser Zé de Anísia e passei a ser Zé de Mariá... era minha esposa. Aí fiquei 60, 61. Em 62 eu fui ser vaqueiro no São Gonçalo, de madrinha Cota. O São Gonçalo fica arredado umas duas léguas, na beira da estrada que vai de Barro Vermelho pra Patamuté. Hoje é de Raimundo mais de comadre Alva. Eu, lá, fui vaqueiro dez meses. Trabalhei muito a campo, gado muito brabo, muito valente, levei muita pancada, mas graças a Deus, honrei e dei valor à profissão. Das fazendas... o trabalho de fazenda, de roça, labutar com os bichos, amuntar brabo (cavalo, jumento, burro não domados)... mas a profissão mais braba de que mais eu gostei foi trabalhar campo.

4 Sistema de remuneração dos vaqueiros com base em 25% das crias. A denominação popular era “quatro um”.

Eu gostava. Vestia os couros dia de domingo, ia pro Espírito Santo derrubar jegue, que o bicho era mais barato, se quebrasse uma perna era mais fácil da gente pagar. Pois bem, em 62 eu fui vaqueiro no São Gonçalo, aí voltei pra fazenda Cipó, aonde era a fazenda do pai de minha esposa. E aí fiquei até 66. Em 66 eu fui embora do Cipó lá pra fazenda de minha mãe, no terreno do Salgado. Aí eu fiz minha casinha, meu sítio, meu cercadinho de palma, meu tanque, minha cacimba, e aí cheguei a por o nome de Deus me Ajude, aonde teve gente que me chamou de egoísta, porque eu não tinha botado o nome de Deus nos Ajude. Essa pergunta me fizeram e essa resposta eu dei na fazenda Saudade, junto com Salvador e Maria dos Remédios, uma mulher que veio do Pilar, uma chefona lá. Ela me perguntou porque... - “Seu José o senhor é muito egoísta. Me desculpe, mas o senhor é muito egoísta. Porque o senhor não botou o nome Deus nos Ajude?” - Justamente, merecia, mas se eu estou aqui, sozinho, pelejando pra me ajudar com um peso e não tô podendo me ajudar, então qual era o meu... “Ô meu Deus, me ajude aqui!”. Se nós tamo pelejando com aquele peso, eu digo meu Deus nos ajude aqui, mas se tava eu só, eu tenho que dizer: “Deus, me ajude aqui”. Ela pegou em minha mão e disse: - “Seu José, muito obrigado, o senhor ganhou de mim” -. Pois bem, aí quando eu me casei, foi quando mudei o meu nome. Na Festa de Vaqueiro, em Curaçá, eu botei o meu nome de Zé de Mariá. Aí a turma pergunta por quê? Foi quando eu criei uns versos. Pra encabular mais a turma, eu dizia assim:

Eu nasci na Bahia,Me criei em Curaçá.Eu digo em praça pública

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Com José de Mariá

Pra todo mundo escutar.Eu já fui Zé de Anísia,E hoje sou de Mariá.

Ainda ficava uma dúvida, que a turma me perguntava: “Quem é Anísia e quem é Mariá?” Eu dizia:

Eu visto meu gibãoPor cima de minha camisa.Eu sou Zé de Mariá,Mas se ela me deixar,Eu volto a ser Zé de Anísia.

Ficava a mesma pergunta no ar: “Mas quem é Anísia e quem é Mariá?” Eu explicava que Anísia era minha mãe e Mariá era minha esposa. Acabou-se a dúvida. Aí, quando Deus chamou todas duas, aí a turma me perguntava: “Zé, e agora, como você vai modificar os versos?” Eu digo, isso pra mim é mole:

Eu visto meu gibãoPor cima de minha camisa.Eu já fui Zé de Anísia,Já fui Zé de Mariá.E hoje, meu Deus do Céu,Eu não se de quem será.

Mariá, Zé de Mariá e Janete.

Aí eu fiquei sozinho, mas é vida do cão, negócio de homem viver acostumado com mulher e depois ficar só. Aí fiquei: me bato prum canto, me bato pra outro... Você sabe, muié, hoje é muito fácil, mas mulé não é tão tão fácil assim, não. Aí, analise quem quiser.

Eu aboio a noite toda,Vou até madrugadinha.Se eu perder você me ganha,Se eu ganhar a fortuna é minha.Deus me tomou Maria,Mas me deu Mariazinha.

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Com José de Mariá

Fiquei morando lá na fazenda Deus me Ajude, com um pouco de criatório, mas sempre tinha um gadinho, uma criaçãozinha de ovelha, uma criaçãozinha de bode, fiquei vivendo. Foi quando a minha filha que nasceu em 62 casou-se, e morava em Sobradinho. O marido dela morreu em uma acidente em um poste, aqui em Juazeiro. Morreu ligado no poste de energia. Ela comprou uma roça muito boa, lá em Sobradinho, e me chamou pra mim ir pra lá. Eu fui. Já não ia com muita saúde, mas também não ia muito doente. Quando eu cheguei, e vi a roça, muito boa, com toda fruteira, eu achei que devia ir pra lá. Não foi assim que eu fiz um plano e Deus fez outro. Lá eu adoeci. Não pude mais dá conta da roça e chamei minha filha e entreguei, com dó, que ela comprou por causa de mim, mas eu não pude mais trabalhar. Voltei pra Juazeiro. Na fazenda, o criatório se acabou. Era pouco e se acabou. Voltei pra Juazeiro e hoje estou morando aqui. Não estou em cadeira de roda até por opinião ou por não poder comprar cadeira de roda, mas ando nas moletas, com dor nas pernas e uma fraqueza nos nervos das pernas, segundo dizem os médicos. Como o meu raciocínio já tá esgotado por hoje, eu vou parar e depois a gente continua.

- Como era o trabalho no caroá? Para que tirava, como era o serviço e o que faziam dele?

- Olhe, o que fazer lá na frente eu não sei. Mas do tronco do caroá eu lhe conto. Fui até mordido por uma jararaca, arrancando o caroá. A gente arrancava ele na caatinga, fazia aqueles feixes e botava debaixo de um pé de imbuzeiro, onde a gente se arranchava. A gente tinha aquelas máquinas feitas de mão, ia puxar aquele caroá, entrançar ele, amarrar aqueles móios, botar pra secar, depois levar ele na pedra, bater até ele ficar macio, depois enfardava, levava pra Barro Vermelho

pra vender a Virgílio Ribeiro. Lá, eles tirava pra Juazeiro, daí por diante eu não sei contar. Sei que era com muito sacrifício que a gente fazia isso na caatinga. Tempo de verde era mais fácil, ele enchia d`água, ficava melhor, mas tempo de seca o bicho murchava, pra gente puxar era preciso rachar, era preciso rapar à faca, o lodo, pra limpar aquela fita pra poder entrançar pra fazer o processo.

- Quem participava desse processo?

- Home, mulé e menino. Os menino que não podia arrancar, levava, pra gente tá arrancando e o menino tá juntando, fazendo aqueles mói. Morava no mato. Levava água, comida.

- Com o trabalho de uma semana todinha, dava pra comprar o quê, na feira?

- Olha, naquele tempo se comprava muita coisa. Dava pra sobreviver, sabe por quê? Uma arroba de caroá, a gente vendia por quinze mil réis, mas as coisas a gente compra... vamos dizer assim: uma rapadura das grandes custava quinhentos réis, um prato de farinha era vinte centavos – eu nem me lembro mais do dinheiro dessa época. Era quinhentos réis, era dez tões, era tostão, então a gente fazia a feira e ainda comprava uns pedaços de pano pra gente se vestir. Se na semana a gente tirava... uma pessoa puxava duas arroubas, ganhava trinta mil réis, então ainda sobrava dinheiro pra comprar o milho pra dá pro animal que transportava o caroá pra feira.

- O que é que se comprava em uma feira nessa época?

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Com José de Mariá

- Ele compra o café, um quilo de café em caroço, comprava uma rapadura e meia. A meia era pra torrar o café e a rapadura para comer, compra um prato de feijão... Comprava farinha, comprava café, comprava rapadura... tempero não se comprava, porque naquele tempo eu acho que nem existia. A gente tinha que ter uns cachorrinho bom pra pegar uma caça no mato, que nesse tempo tinha muita. Tudo isso... Naquele tempo era barato. Analisando bem as coisas, a gente comprava e ainda sobrava.

- O senhor falou que ficava em casa, quando era pequeno, e sua mãe ia para o xiquexique.

- Mamãe ia tirar xiquexique pra nóis comer assado e fazer crueira. Aquelas crueira... Ela descascava o xiquexique, abria ele às bandas, e pendurava ele numas fitas de caroá, pra secar. Depois de seco a gente leva pro pilão, pisar, penerar, lavar, pra fazer o cuscuz pra gente comer puxando o caroá. A gente comia cuscuz com mel de abelha e caça pra puxar o caroá.

- Esse trabalho do xiquexique demorava muito?

- Não, o trabalho era ligeiro. Dois, três dias, a casa estava montada de crueira. Xiquexique bom de assar e a croeira pra fazer o cuscuz.

- O senhor sentia vontade de comer xiquexique?

- Não era que tivesse vontade, era que a necessidade obrigava a gente comer. A gente tinha que comer mesmo.

- Não tinha muita caça?

- Mas se fosse só na caça, nem só diminuía a caça no meio em que nós caçava, como também qualquer comida que você coma... vamos dizer assim: feijão, arroz, que naquele tempo arroz era pra seu fulano, mas se você comer três, quatro semanas você não abusa? Então a gente fazia aquilo sortido. Quando a gente tava no mato puxando caroá, se comia mais a caça.

Mariazinha (esposa), Jaldes (filho) e Zé de Maria (Agosto/2005).

- Quais as plantas do mato que vocês comiam?

- Rapaz, eu não comi outra coisa independente de xiquexique, mas tinha muita gente lá, vizinhos, que comia mucunã, cumia

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Com José de Mariá

cuscuz da parreira, comia bró, que esse eu nem conheci... Tempo de verde se comia também araticum. A parreira é um mato que nasce nos pé-de-serra, naquelas pedras, é como cipó, se estende muito, e no tronco dela ela bota umas raiz, como mandioca. Arrancava aquela raiz, rapava, espremia e fazia o cuscuz.

- A mãe do senhor tinha terra, vocês não criavam nada?

- Um criatoriozinho... cabra muito pouco.

- Por que era assim, vocês não moravam na caatinga?

- Aí foi outra pergunta... Porque toda vida teve pobreza, nóis ainda tinha esse magotinho de cabra pra comer um leitinho tempo de verde, essa coisa. Teria muitos lá em redor que não criava uma cabra, sequer.

- Mas como se explica isso, uma pessoa no mato não criar nenhum animal?

- Acontecia muito. O criatório... que eu alcancei, não sou do tronco véio não, mas eu alcancei. O criatório tava na mão de seu fulano. Não era todo mundo que criava, não. Não criava porque não tinha como e nem podia comprar, o dinheiro era pouco, não dava pra comprar e criava quem criava. Quem não criava não criava mesmo não.

- Mas não tinha muitos cabritos que ficavam abandonados pelas mães?

- Mas se o pobre pegasse o cabrito abandonado era ladrão, aí não podia pegar. Podia ver a montoeira de cabritos abandonados. Se o dono lhe desse, tudo bem, mas você não podia pegar.

- E não acontecia de uma pessoa ter tanto enjeitados que dessem ao povo?

- Mas não daria pra todo mundo que tinha necessidade. A necessidade era mais do que os cabritos. Hoje em dia – fale mal que quiser, menos eu -, ai da pobreza se não fosse essa aposentadoria que eles têm. Naquele tempo não tinha, não. Era preciso contar nos dedos quem tinha, e ai de você que pegasse um cabrito ou uma criação de um fulano. Era chamado de ladrão, ia preso, ia ser deportado daquele lugar, como eu conheço muitos, e outros que eu já nem conheci mais.

- Como acontecia essa deportação?

- Tirava o caba da casa dele e fazia ele se lascar no mundo, sob pena de morrer ou de apanhar que só um cachorro, e ele com medo se arrancava na lapa do mundo.

- Eu ouvi falar que acontecia caso dos fazendeiros se juntarem e darem dinheiro para o camarada ir embora, é verdade?

- Eu acho que é verdade. Eu conheci caso assim, mas não vou citar porque ainda tem resto de gente vivo.

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Com José de Mariá

- A mãe do senhor tinha terra. Como ela obteve essa terra?

- Herança de meus avô. Eram donos... por sinal ele foi inspetor lá em Curaçá, que nesse tempo era aqueles home de mais oposição que era autoridade, que era dono da fazenda Salgado – chamava-se Bertolino Alves Sobral, por apelido Casumba. Então ele era dono no terreno Salgado. Quando ele morreu, minha mãe ficou de herdeira num terreno do Salgado. Como eram três irmãos... Dudu, esse eu não conheci, que era meu tio. Amarante, esse eu conheci. Tem família dele no Curaçá... E Anísia que era minha mãe. Então eles herdaram essa terra de meu avô, e que hoje nós todos somos dono dessa terra, por herança de minha mãe, que ela faleceu e a gente herdou.

- Seu avô era rico.

- Não, ele não era rico, mas tinha um pouco de condições e tinha saber. Não era rico, mas tinha o saber.

- E porque sua mãe não tinha saber e não herdou a riqueza dele?

- Home, não adianta você fazer essas perguntas pra me encabular, porque eu lhe digo. Como o saber naquele tempo não era para se comparar com hoje, porque hoje só não é sabido quem não quer. A educação tá à vontade. Naquele tempo, eu já lhe contei que mamãe pagou dois meses a uma velha pra nos desarnar na leitura, porque não tinha condições de pagar mais. Ela lia e escrevia, mas pouco, por causa do tempo que não tinha condições de estudar e quase do mesmo

jeito dela, nos criou. Não tinha como nos tirar pra botar em Juazeiro, em Curaçá – que Curaçá já tinha escola. Nós tinha que ser criado lá no mato.

Zé de Mariá e Janete (filha).

- A terra era grande?

- Ainda hoje é terra. Hoje tem terra absoluta, porque eu mesmo declarei nos meus documentos 25 hectares, tirado dessa terra, mas se eu tivesse condições de trabalhar e os anos ajudassem, como era antigamente, eu tinha possibilidade de tirar 100 ou 200 hectares de terra, que tem terra vazia, tem terra nua, mas como não tenho mais condições e como estou nesse estado de doença... e os anos... Você vê em nossa região como é as chuvas. Não é como antigamente, como eu alcancei. Chovia muito. Todo ano se plantava, todo ano se tinha legume. Hoje você vê a chuva, prepara a terra, aí não dá mais outra chuva. Quando vem outra, a terra já secou, aí você planta, suspende

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Com José de Mariá

o tempo, quando acontece de nascer não chega a se criar. É a origem de nosso meio tá ficando em abandono, por causa disso. É por causa dos anos que não vem chuvoso como era antigamente, mas que terra, a gente ainda tem.

- Como era a vida, do tempo do senhor rapazinho, lá no mato, na época da chuva?

- Na época da chuva era ir pra roça plantar. Nem o legume, que a gente tinha bastante... Quando a gente plantava, que eu acho que o senhor talvez não tenha visto, se empaiolava o milho na espiga de ficar de um ano pra o outro. Era só a gente ir lá pegar a espiga. Podia chover, fazer sol que não tinha nada.

- Se trabalhava mais no tempo da seca ou no tempo do verde?

- Se trabalhava mais no tempo do verde, porque no tempo da seca a gente trabalhava dando dia de serviço àqueles fazendeiros, dando uma semana pra um, uma semana pra outro... ficava naquele jogo. Pegava num dinherim, comprava um roupinha, algumas coisa, mas no verde a gente trabalhava, naqueles anos, vamos dizer assim, de novembro, dezembro, janeiro, fevereiro, março, abril... até abril se plantava, mas não era muito, até março era roça. A gente usava plantar no dia 19 de março, que era dia de São José pra comer milho assado na fogueira de São João. Aí a gente levava o tempo na roça, mais na roça do que trabalhado fora.

- O corpo sofria mais na seca o no verde?

- O corpo sofria mais era na seca.

- Mais não trabalhava menos na seca?

- Mas o serviço era mais pesado. Aí você ia jogar lama de cacimba, você ia trabalhar em cava de cerca no pindurado do picareta, trabalhar na lavanca cavando buraco... Não era pra comparar você tá com seu legume plantado e pegando numa enxadinha só correndo enxada no legume, aquilo ali era muito mais maneiro. Eu digo assim: eu queria trabalhar três semanas, vamos dizer, um mês na roça, e não queria trabalhar uma semana no picareta, no rabo de uma levanca.

- Como era para vocês, naquele tempo, a festa de São João?

- Era muito boa. Muito boa, muito animadas, a gente fazia aquelas fogueiras, ramos todos enfeitados, se juntava muita gente naquela festa, naquela farra, arrodiar fogo, ser compadre como eu mesmo tenho muitos e não ir nem sequer dizer ao outro que você é feio. A diferença que eu acho hoje, que hoje se você faz qualquer reunião em sua casa, convida seus amigos, sempre surge um elemento miserável pra tirar seus gostos, e por isso é que as festas daquele tempo era outras festas. A gente fazia aquelas fogueiras e naquelas fogueiras se brincava de roda a noite inteira, até amanhecer o dia. Se juntava os vizinhos, um dia nóis ia pra casa de fulano, depois pra casa de sicrano e a gente brincava a noite toda. Nós começava na véspera de São João, até São Pedro nóis ia de fora a fora.

- O que é arrodiar fogueira?

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Com José de Mariá

- Arrudiar fogueira é você pegar na mão da pessoa que queria ser seu compradre, aí ia jurando:

Juro por São João, São Pedro, São Paulo, todos os santos, o caminho de São Tiago como fula é meu compradre. Três vezes arrodiava a fogueira dizendo esse juramento. Quando acabava tomava a benção ou dizia adeus a meu cumpade e daí por diante era compade. Era sério, se jurava... mas se você dizia: “São João dormiu, São João acordou, boa noite meu compade que São João Mandou”, aí era brincadeira.

- Como eram as aulas de sua professora, o aprendizado.

- Você já gravou os dois bolos que ela me deu... Era séria, muito séria, e o menino tinha que aprender, sabe porquê?, porque ela passava a lição, que nem mesmo ela me passou umas poucas lições na tabuada... No livro... Eu já contei que os dois bolos que levei pra suletrar o nome de “antão” abriu minha memória, graças a Deus. Deus dê o céu a ela que no dia eu tive raiva, mas depois cheguei à realidade que ela tava fazendo a meu benefício.

- O que é antão?

- É um nome, agora não sei o que significa. Tinha no ABC. E a tabuada ela perguntava se a gente já tinha feito a lição. Ela chamava, tomava a tabuada, botava em cima da mesa, mandava a gente ficar em pé, cruzar os braços e mandava dá a lição. Ali eu em pé tinha que dizer cantando: “dois e um três, dois e dois quatro, dois e três cinco”... Pra dizer que

sabia tinha que ser assim. Era assim. Hoje eu me arrependo tanto... Naquele tempo, quando chegou a memória, como minha mãe não tinha condições de me ensinar, se eu tenho saído fora, como diz Vavá Machado (aboiador renomado e animador de festas), se eu tenho saído fora, talvez mesmo hoje no fim da picada, mas talvez eu fosse mais instruído.

Mariazinha, Jaldes e Zé de Mariá (Agosto/2005)

- E o livro?

- Eu li o ABC e a Cartilha das Mãe, das Mãe ou da Roça. Foi o ABC, um pouquinho da tabuada e a Cartilha da Roça. Só foi isso que eu vi. Eu gosto de ler, só não tinha tempo, agora que tenho tempo tá faltando a vista.

- Onde o senhor nasceu?

- Nasci nas fazenda Alto das Quixabeiras, terreno do Salgado.

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Com José de Mariá

- Tinha muitas casas lá perto?

- Tinha não.

- E como é que arranjava gente pra se juntar no São João?

- Olha, não era coisinha não, menino. Tinha aquelas casas, fazendas... Tinha o Juá de Ferreira - ele tinha um bocado de filho, moça e rapaz -, tinha a casa de Biano, que tinha um bocado de moça, tinha a casa do véio Germano, que tinha um bocado de moça e rapaz e então a gente se combinava e se reunia em uma casa. Vinha da Canavieira, vinha do Almeida. O Almeida fica há quatro léguas do Juá.

- Onde o povo pegava o licuri?

Pegava em cima da serra da Borracha, e ainda hoje pega, só não pega muito porque não é todo ano que eles botam licuri, por causa da chuva. Se pega na serra da Borracha. Quebrava, fazia os rosários e eu comprava ao povo, que eu já encomendava. Eu comprava a quinhentos réis, aí tocava para Santa Maria da Boa Vista, tinha uns jumentinhos, e lá eu vendia a dez tões ou até a mil e quinhentos. Mil e quinhentos era dez tões e quinhentos réis. Lá eu comprava banana, a quarenta mil réis, o cento, do lado de cá eu vendia de dez tões a mil e quinhentos. Foi quando a safra do licuri acabou, aí eu acabei com a venda porque eu não ia lá só comprar a banana.Como eu tinha saltado uma página da minha vida eu vou dizer. Em 62, quando eu saí de vaqueiro da fazenda São Gonçalo, eu comprei uma roça na serra do Canabrabo, lá no Caldeirão da Serra. Então, lá eu plantei mandioca dez anos, isso quando eu

morava no Cipó, e quando eu vim morar aí, onde hoje é meu sítio, eu ainda plantei, uns três anos, mandioca lá na serra, mas ficava muito longe e a despesa aumentou muito, aí eu desisti, mas eu ainda cheguei a fazer mil, mil e tantos pratos de farinha. Fretava caminhão na Serra do Canabrabo e vinha trazer no

Barro Vermelho, pra vender e tirar de um ano pra outro, aí eu não comprava farinha. Quando eu me mudei praí ficou mais longe, ficou difícil. Foi quando minha mulher apresentou doente, em 81. Aí eu liguei pro primo dela que mora em São Paulo, ainda... Nessa época ele era deputado federal, era Osmar Ribeiro. Ele mandou que eu mandasse ela pra lá, e eu mandei. Lá ela entrou em tratamento. Passou três meses lá, depois os médicos

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Com José de Mariá

deram alta a ela. Eu morava lá no sítio, mas meus filhos moravam em uma casinha de aluguel lá no Horto, aqui em Juazeiro. Ela veio bem melhor, mas como o mal repetia, o mal tornou a voltar, e ela não queria tá lá. Foi o que fez eu vim aqui pra Juazeiro. Em 83, tive que mandar ela novamente pra São Paulo. Passou seis meses lá, fazendo tratamento. Os médicos deram alta a ela. Fizeram o que foi possível. Aí eu fui buscar - a primeira vez que eu fui em São Paulo. Mas aí os médicos falaram pra Osmar e Osmar disse pra mim: se ela tivesse repouso ainda duraria dois anos. Aí eu vim me embora da fazenda aqui pra Juazeiro pra dá assistência a ela. Vim praqui, lutei, lutei, fiz o possível, mas no dia primeiro de setembro de 85, ela faleceu. Eu ainda fiquei por aqui uns tempos, mais minhas filhas, mas depois voltei lá pra fazenda, novamente. Aí me desaprumei daí pra cá, e posso dizer que até hoje eu ainda venho desmantelado. Nunca mais eu pude me aprumar. Por último, agora, adoeci, estou nesse estado que você tá vendo.

- Tinha muita gente que tirava licuri para o senhor?

- Era um bando de gente. Eu comprava 100, 150, eu cheguei a comprar duzentos rosários de licuri, comprado nas mãos de 20, de 30, de 50 rosários. A safra era de março para abril, até o mês de maio.

- O ciclo de trabalho de vocês, lá na caatinga... De novembro a março, o senhor disse que era nas roças, plantando. De maio a julho?

- Colhendo, panhando feijão-de-corda, batendo feijão de arranca, vigiando a jandaia no milho, quebrando o milho,

vezes que a gente ia até agosto. Quando botava o legume em casa a gente ia se virar com outras coisas: dá dia de serviço, se virar daqui para li, onde achava.

- E tinha futuro, dia de serviço? Tinha muito dia sendo oferecido para o senhor trabalhar?

- Não tinha muito e nem era futuro. Trabalhava obrigado, porque não é interessante, hoje em dia, como eu vejo o mundo todo diferente... Naquele tempo não tinha vagabundo, como existe hoje. Caçava o que fazer, fosse o que fosse. Cada um ia procurar um meio do que sobrevivesse.

- O senhor disse uma coisa: o trabalho de campo foi o trabalho mais duro que enfrentei.

- Foi, e foi o que mais eu gostei.

- Como é isso?

- Pelo seguinte: pra começar, você pode analisar que não é brincadeira... eu comparo muito bem com o soldado pegar as armas pra ir pra guerra. Ele sabe que vai, mas não sabe se volta. Então o senhor sela um cavalo, até esbrabejado, um animal bruto, pra ir pro mato, lugar de caatinga, correr atrás de um boi brabo, pra pegar. Você também não sabe se volta. Aventura aquilo e é obrigado a fazer porque você é vaqueiro, tem que fazer as ordens do patrão, mas você é obrigado a fazer, mas eu comparo essas duas artes: é idêntico. Você sabe se vai, mas não sabe se volta. Então você selava o cavalo, ia pro campo, tomar café de manhãzinha cedo, em casa, o

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Com José de Mariá

campo longe de casa, você não vinha pra casa meio dia pra almoçar, tá entendendo? Você passava o dia, meio dia você tirava a sela do cavalo no beiço de uma lagoa, bebia água quente, tirava a sela do cavalo aquele momento, e o cavalo enxugava o suó, você tornava a selar, entrar no campo. Quando Deus ajudava que você achava e pegava, tudo bem, e quando você não achava, passava o dia todo. Quer dizer, você com fome, com sede, montado em uma sela quente, sujeito a uma homorróia... Por isso eu digo que não era mole o serviço de campo. E você correr atrás de um boi brabo, valente, ele virar... vamos dizer assim: um boi de dez, doze, catorze arroba, ele virar, entrando debaixo do cavalo, você descer agarrado com ele, bater com ele no chão e piá!... Será que é mole? Eu acho que não, e graças a Deus, tudo isso eu fiz. Se hoje eu tô com os nervos das pernas arrombados desse jeito eu penso que foi isso que eu plantei naquela época, e agora tô colhendo.

- O senhor já bebeu água em lagoa?

- Muitas vezes... e quente! A gente chegava meio dia na beira da lagoa, tirava a sela do cavalo, dava água, piava prali, e aí, a gente, morto de sede, tinha que beber aquela água véia barrenta, cheia daqueles bichim, aqueles cabeça de prego, mas não tinha outro apelo.

- Mas aconteceu do senhor beber água em uma lagoa e depois ver um bicho morto do outro lado?

- Não. Nunca aconteceu não. Isso não. Agora, andando no mato, e sabendo onde tem um caldeirão, que é um buraco

numa pedra, d’eu chegar morto de sede, olhar, ver a água, aí a obrigação era beber a água. Quando acabava de beber, que tava por ali, fumando, que olhava, na outra ponta do caldeirão tinha uma ossada de uma cabra véia ou de outro bicho que morreu lá, ninguém sabe nem de quê. Já aconteceu isso.

- Mas o senhor disse assim: que pegava o gado e ia pro campo porque o patrão mandava. Por outro lado, o senhor disse que dia de domingo pegava o cavalo e ia correr com jegue.

- Porque gostava do esporte.

- Era trabalho duro ou era esporte?

- Não, era um serviço duro, mas um duro que você dá valor, que você apreceia sua profissão.

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Com José de Mariá

Mariazinha - Maria Pereira dos Santos – esposa (Agosto/2005).

- Onde é que tá o valor desse trabalho?

- Aí danousse, aí você quer me encabular. Será... Eu vou fazer outra também? Será que o senhor, com esse trabalho seu, criando, fazendo seu livro, não acha que tem valor, não honra sua profissão?

- Mas eu não estou caindo de cavalo.

- Mas o senhor não honra sua profissão? Então era a mesma que a gente selar o cavalo e pegar o boi do patrão e chegar com ele na frente, na fazenda, com ele no cambão. Então aquilo é uma honra que a gente tinha. Por isso que se dá valor.

- Lembre a corrida mais braba, atrás de boi, que o senhor enfrentou e descreva o que foi que o senhor sentiu.

- Eu passei por muitas destas. É umas perguntas boas. Eu fui pra o campo, um dia, com uns vaqueiros, pra um pasto. Caminhamos o dia todo... eu peguei um boi. Foi quando eu era vaqueiro no São Gonçalo. Foi outros vaqueiros pra outro pasto. Pegaram um boi, correram com outro, botaram no mato. Chegamo de noite em casa, aí o rapaz falou – mora em Curaçá, hoje também, todo arrombado -: - “Corremos com o boi do catombo” – ele tinha um catombo -, “corremos com o boi do catombo e botemos no mato”-. Eu disse: - “Amanhã nós vamos pegar ele” -. No outro dia cedo, selamos os cavalos, quebramos o jejum e saímos pro campo. Olha gado praqui, olha gado praculá, o gado todo brabo, currido (gado que já está afugentado pelos campos dos vaqueiros), pra se olhar o gado tinha que se dá uma carreira na caatinga... Numa daquelas carreiras eu avistei o boi correndo na frente. Aí eu passei dos vaqueiros que ia, abeirei assim, e botei o cavalo no boi. Como o cavalo não era prático no campo, que o cavalo prático ajuda muito o vaqueiro, me atravessou num pé de pereiro. Menino!, o pé de pereiro, linheiro5 assim... nós

5 Pereiro com galhas grandes, adequadas para fazer caibro.

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Com José de Mariá

ia pra passar de um lado, no pé do pereiro o cavalo negou o corpo de banda e passou do outro que não deu tempo eu me abaixar, nem pra diante e nem pra trás. Aí soltei as rédeas do cavalo, levei o pereiro nos peito e ele foi me matar naquele canto lá. Quando eu caí lá, chega senti gosto de sangue na boca. Aí vinha um vaqueiro perto de mim e eu gritei: - “Bota o cavalo no boi!” - Ele perguntou: - “Não teve nada, não!”- Eu disse: - “Não” -. Aí ele passou. Aí eu tomei fôlego ali, tornei, montei o cavalo, puxei e alcancei ele. O boi já corria longe. Aí ele tirou o cavalo pra eu passar. Eu passei. Nessa carreira, perdi uma espora de perneira, feitio de Febrônio, aqui da Pedreira, ainda hoje me alembro. Passamos no meio de uma lagoa, a lagoa tava seca, entramo numa ponta e saímo na outra. O boi de carreira grossa na minha frente e o cavalo bateu a carreira. Saindo da ponta da lagoa, o cavalo tropicou nuns gaio de caatingueira, andou caindo, quando se aprumou, eu me abaixava por baixo, ainda via as canelas do boi. Aí aprumei, o cavalo tomou fôlego ali, logo, logo o cavalo bateu em cima do boi. Bateu em cima do boi, o boi virou. Entrou debaixo do cavalo, eu desci agarrado nele, bati com ele no chão. Aí gritei o outro pra me ajudar. Eu, além de cansado, também da pancada... aí o outro chegou. Eu mandei amarrar os pé do boi, eu tava sentado em cima. Aí botemo uma corda e amarremo num pé de imbura. Tiramo as peias, deixamo lá amarrado. Aí fomo pro beiço da lagoa e fomos tirar a sela dos cavalo. E começou a chegar vaqueiro, começou a chegar vaqueiro – dos que andavam com a gente, tinham perdido a carreira. À tarde nós fomos tirar o boi. Arriamo (encaretar, enchucalhar e encambuar) o boi e fomos tirar. Aí o bicho deu pra brigar, que era uma coisa danada. Quebrando pau na ponta e escarrerando a gente, e chegou um vaqueiro dos

nossos, aí jogou o cavalo pra cima, mas eu tinha uma ordem da fazenda que não era pra furar boi com faca, só furar de guiada (ferrão). Aí eu mandei um vaqueiro na fazenda, buscar uma guiada. Aí esse outro, quando chegou, jogou o cavalo pra cima.

- Ele não estava peado?

- Não. Tava encaretado, encambuado e enchucalhado, mas aí ele num saía da cava. Saía até ali e voltava. Ele (o outro vaqueiro), o cavalo pra cima, puxou a faca da perneira e eu gritei: - “Não fure o boi!” - Mas ele jogou o cavalo pra cima e puxou a faca da perneira, só que o boi, quando chegou perto, tirou um salto e foi se amuar praculá. A sela do dito, do cavalo do cara, virou pra debaixo da barriga, o caba caiu no chão. Aí eu vi negócio feio, mas só que o boi correu e foi pra debaixo dos pau, aí deu tempo ele consertar a sela e puxar o cavalo e montar praculá. Aí o outro rapaz chegou com a vara de ferrão, eu tomei o ferrão, joguei o cavalo pra cima, aí dei duas furadinhas, tantim assim. O boi só tinha cara feia! Era covarde! Tocamo pra fazenda sem furar e sem dá prejuízo.

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Zé de Mariá.

- Depois de uma corrida dessa, o que é que fica pra trás?

- Pau quebrado e a recordação.

- Como assim, essa recordação?

- Mas é claro! que foi tão bonito que ainda hoje eu lembro tudo que ocorreu que tô lhe contando: é recordação.

- Nessas horas... o pessoal tem uma coisa de alma dos vaqueiros. O senhor tem devoção com as almas dos vaqueiros?

- Não. Você diz assim: pra gente se apegar?

- Sim. Existem as almas dos vaqueiros?

- Eu acho que existe, agora pra proteger o vaqueiro eu acho que não. Eu gosto de me apegar com Deus e Nossa Senhora.

- Agora, quando o senhor começava uma corrida tinha medo?

- Agora é bem feito que você grave essa palavra que eu vou dizer. Lá tem o velho que dizia: “Quem tem cu tem medo”. Tá entendendo? A gente sente aquele nervoso pra começar a corrida, aí depois se acaba. Eu montei muito animal brabo: burro, cavalo, besta e tudo, eu montei, e tinha só nervoso pra montar, depois de montado sumia.

- Quando o vaqueiro bota o boi no mato, o que é que acontece?

- (riso) Aí Juvino perguntava: - “Mas Manuel, como é que você bota um boi no mato, amontado num cavalo desse?” - Ele dizia: - “Seu Juvino, casa de boi é no mato, e se bota boi no mato é montado à cavalo, que ninguém vai correr atrás de boi de a pés?”

- E se um vaqueiro dé três carreiras perdidas?

- Aí é muito chato. Bota a culpa no animal. O animal tropeçou, o animal caiu... Só bota a culpa no animal.

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- Já aconteceu do senhor estar correndo atrás de um boi e ele passar debaixo de uma moita braba e o senhor parar?

- Já, já.

- Qual é o pau mais perigoso que tem no mato, para o vaqueiro?

- Vije, meu filho! Aí você... Eu lhe conto: o mais maneiro foi esse pereiro e me pegou, me jogou no mato, naquele mundo... Avalie você entrar debaixo de uma mata de imbuzeiro ramalhudo, baixo, ou onde tem um bocado de imburana, tudo cheio de gondon, de gáio torto... É perigoso. Eu vou lhe contar outra história de campo. Você quer e eu lhe conto. Lá onde eu era vaqueiro, na fazenda São Gonçalo, ela (a proprietária) pediu uma vaca das mais velhas pra

fazer uma matutagem – se chamava matutagem, matar uma rês pra o consumo da fazenda. Bem, lá tinha uma vaca preta, do lombo sabiá, penteada, com as pontas assim (voltadas para trás), gado caatingueiro, braba. Ninguém via o bezerro dessa vaca, não bebia na fonte no verão, bebia no riacho, cavando naqueles buraco que jegue cavava e bebia, aí eu chamei outro vaqueiro: - “Pedo, vamo pegar Lobisomem pra fazer a matança?” – Ele disse: - “Vamo” -. Nesse dia eu andava montado num burro, mas o burro tinha vergonha. Pedo amontado num cavalo e eu nesse burro. Andamo, andamo na caatinga, no pasto dos gado, olha gado praqui, praculá, mas nada dessa vaca. Deu meio dia, eu disse: - “Vamo bater a sela dos animais na lagoa do Capim – lagoa grande e o gado bebia lá” -. Quando nós chegamos do lado da lagoa, a quemquém (ave) gritou no beiço da lago.Aí o gado levantou de lá. Cá, eu avistei a vaca que nóis procurava. Aí eu gritei: - “Pedo, ói a vaca!” -. Aí botei o burro daqui pra lá. Era um magote de gado, mas ele (o burro) vendo a rês que eu ia pegar, podia tá no meio de cem cabeças de gado, ele só enrabava naquela rês. E aí nós aprumamo no centro da caatinga. Tinha um pé de faxeiro (espécie de mandacaru) de um lado e tinha um pé de imbiraçu do outro, e o negócio era apertado. Ela ia tão arrochada que entrou entre um e outro. Da cabeça da pá pro quadril, rapou dos dois lado. Eu desviei o burro. Quando já ia fazendo a mão pra pegar no sedém dela, ela pisou num pesinho de caatingueira assim, ela botou a mão, escorregou, caiu por riba da cabeça. O burro riscou aqui, virou a cara pra trás e se encostou assim, dando o reio (relho é uma corda de couro que é transportada na garupa da sela da montaria). No lugar que ela caiu, onde eu ia passar tinha um pé de faveleira grande, e tinha um galho

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Com José de Mariá

deitado assim, aonde eu ia passar debaixo, que ali não dava pra passar e do jeito que eu vinha não dava mais pra tirar o animal. Só que Deus ajudou que a vaca caiu antes da faveleira.

- O senhor disse que o burro deu o relho. O que é isso?

- O reio que você carrega na garupa da sela pra você piar os pés (do boi). O animal vira. Eu trabalhei no burro e no cavalo dessa mesma maneira. Eu trabalhei num cavalo da mesma fazenda... Você saltava numa rês, aqui, por acaso, e saísse se batendo pra derrubar e fosse derrubar na igreja dos crentes (uns 200 metros de distância), ele tava lá mais você. Cavalo foi um dos bichos mais entendido que eu já vi. Você vê que vaqueiro vai pra Festa dos Vaqueiros em Curaçá, mas quando ele vai montado em burro não tem influência. Eu mesmo nunca fui.

- Como é que o senhor chama esse pessoal, como eu, que bota os couros e vai pra Festa dos Vaqueiros?

- Aí é embrulho de couro (riso). Vai enfeitar a festa, agora dê um cavalo e mande pegar um boi num centro de caatinga!?

- Como é que uma pessoa aprende a ser vaqueiro?

- Rapaz, é trabalhando. Além do dom... E é tudo finalmente!, qualquer profissão. Se você nasce com o dom daquela profissão, mas você não se aperfeiçoa... Você só se aperfeiçoa melhor fazendo, não é justo? Então, é trabalhando, é vendo aqueles mais práticos como é que faz, como é que

amonta, como é que amarra, como é que peia, como é que põe a careta, como é que põe o chocalho no laço da careta, como é que põe a careta, pra, se você botar o bicho no mato, ele não morrer de sede ou de fome, é tudo isso.

- Mas é possível, um boi depois de encaretado você ainda botar no mato? Aí é um vaqueiro muito ruim.

- Não. Acontece que você vai tangendo um boi arriado em uma estrada, lhe dá uma dor de barriga danada e você não alcança onde prender o boi, você tem que desmontar, então o boi vai viajando. Pega uma vareda ou larga a estrada que você vai, quando você vai acompanhar o boi, cadê o boi? Então isso acontece.

- O senhor falou dessa vaca e disse que ninguém via o bezerro dela. O gado esconde os bezerros?

- Ela escondia no mato. Era catingueira, ela escondia, ela não tinha chocalho e o morcego matava o bezerro de bicheira, que lá o morcego era demais. Lá o que matava o bezerro era o morcego. O morcego mordia, formava a bicheira, na caatinga ninguém achava... Nunca viveu uma cria dela.

- Como é essa história da vaca esconder o bezerro?

- É muito simples. Raramente a vaca dá cria presa. Hoje é diferente, o pessoal faz aquelas soltas e prende a vaca fulana, a vaca sicrana, mas no tempo das caatingas, Morro Branco, São Gonçalo, daquelas caatingas, não. A vaca pare lá, caça uma moita de pau, dá de mamá, deita o bezerrinho, deita ali,

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Com José de Mariá

ela sai por ali comendo, vai pra bebida... Às vês você acha a vaca, depois de achar ela, ela dá dificuldade, não lhe mostra o bezerro, tudo isso acontece.

- Por que o bezerro não acompanha a vaca?

- Por inocência. Depois que ele já tá maior ele não larga o pé da vaca.

- Em quanto tempo um bezerro fica duro?

- Aí depende. O bezerro pé duro é mais ligeiro. Tem esse bezerro mestiço, que é mais mole. Esse demora mais, oito dias, dez dias. O outro não. O pé duro com quatro cinco dias já tá acompanhando a mãe pra todo canto.

- O senhor falou que quando jovem era caroá, agricultura, licuri... Como foi que o senhor virou vaqueiro?

- Eu virei vaqueiro por influência. Por ver os outros ser vaqueiro, fui ver o que os outros faziam. Eu não tinha profissão, por causa dessas festas de vaqueiro, eu não achava bem eu vim à paisano, só me achava se viesse encourado com eles, e ajudando os vaqueiros campiar, pegar gado, tanger boiada do Morro Branco pra Paulo Afonso... Eu me tornei vaqueiro sendo assim, trabalhando dessa maneira.

- Era o sonho de todo rapaz?

- Não. Nem só pela vocação, como pela coragem. Se não tiver coragem não é vaqueiro, não dá pra ser vaqueiro. Como é que eu compro um boi, mando o senhor ir ferrar, na fazenda de seu fulano, o boi tá preso lá no curral, valente, cavando como uma coisa danada, como é que você faz pra laçar aquele boi pra ferrar? Se você é meu empregado, eu mandei você ferrar, você tem que ferrar. Como é que você faz, se não tiver coragem, destreza, prática pra se defender? Então tem que ter coragem.

- Como é a briga do vaqueiro com o boi, quando o boi briga?

- Se você já arriou o boi, já vai tocando o boi e o boi dá pra valente, você tem que se valer de quê? De um pedaço de pau pra você dá na ponta dele, ou na venta, ou jogar umas pedras ou pegar na guiada. Só não pode é deixar. De todo jeito se ele não sair, você tem que saltar nele, laçar ele e amarra e providenciar um transporte. Só não pode é deixar o animal aleio.

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Com José de Mariá

- Mas quando você tá correndo e o animal vira, o boi cansa e vira?

- Cansou, virou, porque cansado não sai pra lugar nenhum, porque cansado todo boi briga. Você tem que descer agarrado com ele, bater com ele no chão, piar ou amarrar e deixar o boi descansar. Tem que pegar no chifre e enfrentar. Se não tiver coragem, pega?

- Já aconteceu de alguma vaqueiro se amolecer e subir em um pau?

- (riso, riso) Eu sei é milhares. Eu já vi muitos e lhe digo aonde e digo os vaqueiros.

- E a turma, quando vê uma cena dessa?

- Fica fazendo crítica uns dos outros: “Cadê você, rapaz, porque não foi ajudar o outro a pegar o boi?” Eu já fui tirar um boiada de Juvino Ribeiro do Poço de Fora e tinha um barrueiro de dezoito arrobas, raposo e tinha uma mancha bem assim no vazio. Prenderam com um gado, enganado lá em uma roça e quando foram tirar, o boi não saiu. Dionísio foi comprar uma boiada de Juvino, Juvino foi vender o gado a ele, ele disse: - “O boi... Comprava o boi dentro da roça, mas só comprava nessas condições: se o boi saísse de dentro da roça, um quilômetro, se morresse era dele Dionísio, e se não saísse era dele, Juvino” -. Aí nós fomos pelejar com esse boi, de de manhã até meio dia. Os paus dentro da roça tavam de galha baixa de tanta gente pendurado pra olhar, e vaqueiro tinha por desgrama em cima dos paus. E o boi ficava de

debaixo de pé de imbuzeiro pra debaixo de pé de imbuzeiro, pra debaixo de pé de imburana, pra debaixo de pé de caatingueira, mas não saia pra porteira e nem entrava no curral, e eu e Tote de Zé gordo foi que enfrentamos. E Flávio Cardoso, montado em uma burra russa não queria que furasse o boi. Nós peleja de um lado, peleja de outro e nada. Já perto de meio dia eu disse: - “Tote, ou vamos pegar esse boi ou então vamos deixar aí, que ninguém vai ficar aqui o dia todo pelejando com um boi, alisando que nem alisa moça” -. Ele disse: - “Você garante, Zé?”- Eu disse: - “Só se for agora” -. Só tinha uma vara de ferrão. Aí ele jogou o cavalo pra cima, o boi veio, ele pegou ele numa beira de cerca, eu tava aqui, o boi veio me jogou a cabeça, deu uma pancada com a ponta aqui em minha perna, chega ficou o nozão assim. Eu só fiz tirar a faca da perneira, enfiei que esse dedo aqui dobrou! Foi pra um pé de imbuzeiro, no canto da cerca. Josa, que mora no Poço de Fora, veio por fora com uma corda pendurada numa vara, botou e o boi nunca saiu do lugar. Passei pro pé de imbuzeiro, botemo cambão, soltemo na roça com outro gado, no outro dia nós juntemos o gado, e ele no meio, nós botemo pra fora... Você ainda olhou pra mim, que nem ao menos tava lá? Bem assim foi o boi. Ficou manso, agora a careta é feia! Se o caba não tiver coragem, aí diz que o boi tá lá valente, brigando que só o diabo, foi obrigado a deixar. Deixou por covardia dele, que não teve coragem de enfrentar.

- Aí o senhor estava no mato, correndo atrás da rês. Quando derrubava a rês, sentia o quê?

- Eu sentia uma grande alegria, e principalmente se fosse um já corrido, que outro tivesse corrido e tivesse botado no mato.

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Com José de Mariá

- Por que o vaqueiro não carrega água no campo?

- Às vezes carrega numa borracha de couro. Carrega dois, três litros d`água, não empata carreira não.

- Qual é o tempo de entrar em uma vaqueirice?

- Entrar, não tem dada marcada. Depende de eu tá desocupado e o senhor, como meu patrão ter necessidade, agora pra sair da fazenda é que o mês preferido é agosto, tá entendendo.

- Se eu entrei em uma fazenda em dezembro, e a parição vem em abril, eu já tenho direito à sorte?

- É claro! É claro que você já vai ter direito, que você já vai beneficiar aquela vaca, aquela cabra, você vai botar chocalho nas cabras que tão prenha, você já vai dá remédio à vaca que adoeceu, você já tem direito ao quarteado da barriga do bicho.

- Se o vaqueiro entrar em uma fazenda em outubro e em fevereiro ele se estranhar com o patrão?

- Aí é problema dele. Se o patrão botar pra fora, pode até pagar o mês dele, mas se ele entregar a fazenda, problema dele.

- Se o patrão botar pra fora tem que pagar em cabrito?

- Não. Não é obrigado, pode pagar em dinheiro e pode pagar em criatório. Avaliar o trabalho dele e...

- O senhor foi vaqueiro de criação. Qual era a sorte?

- De quatro um.

- O senhor tirou quantos animais?

- Quando nóis era dois vaqueiro, eu peguei uma parição, deu quatrocentos e tantos cabritos, deu quarenta e poucos cabritos pra cada um.

- Nessa hora da sorte, como é que fica a questão de macho e fêmea?

- É simples. Você pega os machos, separa. De cada quatro um é seu e três é da fazenda. Pega quatro fêmea, um é seu e três é da fazenda. Se no fim dé três fêmeas e um macho, aí você prefere: você quer uma fêmea ou um macho? Se não, vai pra caderneta, três quarteado de fêmea e um quarteado de macho. Aí você vai esperar por outra safra pra encher aqueles quarteados.

- Qual é a hora certa de assinar?

- Se a parição é em março, abril, o cabrito endureceu, no mês de maio assina. Do mês de maio pra junho, quando o tempo tá estiado que é bom mode a mosca na orelha do cabrito. Agora tem outra, que a gente tá usando hoje, que nessa época não se usava, é ter o cuidado pra quando o cabrito nascer, você tá com a cabra presa, é você pegar a tesoura, cortar o

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Com José de Mariá

imbigo do cabrito e queimar com iodo. Isso é hoje, naquele tempo não tinha. Naquele tempo o sol e a lua curava tudo.

Zé de Mariá (Agosto/2005)

- Qual foi a maior sorte que o senhor já teve, em número?

- Em número, foi quando eu assinei os meus. De sorte nunca teve vantagem. Eu ainda cheguei ao ponto de todas essas economias e trabalhar com cuidado, inteirar o dia com a noite, essa coisa assim, ainda cheguei a ter um numerozinho de criação, de assinar 60, 70 cabritos da minha propriedade.

Como vaqueiro o maior número foi do Morro Branco que tirei quarenta de sorte, mas também só peguei uma parição.

- Quantas cabras vocês cuidavam lá no Morro Branco?

- Dava mil e tantas cabras, quer dizer fêmeas, cabras, marrãs...

- Como é que a cria vira enjeitada?

- A cabra, às vez, pare de dois, não dá leite pra criar os dois, você tem que tirar um. Outra vez a cabra... acontece até morrer de parto, depois que bota o cabrito e o que ocorre mais é a cabra parir de dois e não dá leite para os dois.

- Era comum eu andar no mato, na época de parição e achar cabrito com fome.

- Rapaz... é, mas aí, se pegar é erro, a não ser que ele já teja se batendo nos paus assim passado. É um erro porque às vez a cabra deixa o cabrito no mato e vai beber e depois ela volta pra pegar o filho. Se você anda no mato e pega o cabrito deitado, sozinho... muitas vezes você tirou o cabrito da cabra.

- Se um cara tivesse vinte cabras e aparecesse com 20 enjeitados?

- Aí não tem como. É botar o ouvido na escuta que ele tá...

- Entre cabra e ovelha, qual é o que dá mais vantagem pra ser vaqueiro?

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Com José de Mariá

- Ói, todos dois tem vantagem. Bom é de tudo você criar um pouco, que quando um não chega a tempo o outro chega. A ovelha, num local bom, não vindo ladrão, é muito bom que ela é muito rendedera. A cabra, pelo seguinte: que quando chove, principalmente na caatinga, com quinze dias você tem o leite. Em acudir a necessidade mais rápido é a cabra.

- E a sorte de gado, qual é?

- É a mesma, de quatro um.

- Ovelha tem pasto?

- Tem. Olhe, hoje em dia, com os anos, conforme eu já conversei, com pouca chuva, ela hoje já tá se mudando, procurando suas melhora, que nem nóis lá. A ovelha ficava só no pé da serra. Com esses anos de seca a ovelha deu pra subir pra riba da serra, porque lá teve muita roça que hoje é tudo capoeira e dentro dessas de capoeira nasceu muito capim búfalo. Então a ovelha sente aquele verde lá e sobem pra cima da serra, e lá os ladrão sobem de carro e carregam, mas quando não precisa, não tinha esse capim lá em cima a ovelha ficava no pasto. No tempo do verde as ovelhas faziam aqueles... Na boca do noite você ia e pegava as ovelha todas no amaiador.

- Mas quando eu era menino, lá no Gato, tinham que ir buscar as ovelhas até em Patamuté.

- Porque aí se esbandaiava, se espalhava mesmo, e agora é que tão se espalhando. Hoje em dia as ovelhas não fazem mais

nem... Agora a origem, hoje em dia, eu não sei explicar isso. Eu não sei porque. Arriba por falta de comida, arriba por falta de água, vai procurando, sente... Elas saem procurando no faro. Também era poucas estrada que tinha naquele tempo. Rodagem... A ovelha gosta muito de estrada de rodagem, parece que quer olhar onde é o fim e aí se dana. Só voltam se forem buscar.

- E cabra, volta?

- A cabra também não volta, mas a cabra até é difícil sair do pasto.

- Qual é o ambiente preferido das ovelhas?

- A ovelha gosta mais do carrasco, que é o lugar que não tem caatinga fechada. Quando a ovelha engorda mais? É no tempo de chuva que tem mata-pasto. A ovelha engorda mais no mata-pasto do que no capim.

- As ovelhas de vocês, lá do Salgado, elas desciam para a Melancia (poente)?

- Não. Se aparecesse uma ovelha ou um carneiro aqui pra Melancia, pros Olhos d`Água, pra cá, foi o quê? Os vaqueiros que foram pra lá campiar e trouxeram aquela ovelha no meio. Ovelha não desce, só anda pro nascente, o faro dela só dá pro nascente.

- Quer dizer que se chover na Melancia e no Salgado tiver na seca elas não vem?

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Com José de Mariá

- É muito difícil.

- Os carneiros contribuem para juntar o rebanho?

- Rapaz, dizem que existia isso, mas eu não alcancei não. Tem um carneiro reprodutor no meio de minhas ovelhas, se não tiver alguma ovelha ciando e chegar um magote das suas, e uma ciando, ele larga meu rebanho e acompanha aquele.

- As ovelhas têm organização familiar?

- Rapaz, aí eu não sei, não. A ovelha se separa muito. Tem aquele magote, a ovelha de chocalho, que elas conhecem o chocalho, elas se alotam muito, mas esbandalha também muito.

- Qual é a importância do chocalho na criação?

- É grande a importância. Lhe digo qual é a importância principal, parece até uma graça: é se o chocalho tiver badalo (riso). Ói, eu lhe conto a importância de um chocalho. Eu tangi muito bode, que Gervásio ali na Melancia criava muito bode, Biano comprava boiada de cem bode a Gervásio, na Melancia, e eu fui tangedor do véio Biano. Fui tangedor dele muito tempo, desde rapazinho novo, mais um velho que tinha lá, chamava Chico de Biano. Aí eu tocando uma boiada de cem bode, aqui pro Juazeiro. Nós chegamos da Rocinha pra cá... pra lá da rocinha, quebrou uma cabra. No tempo do cair da folha de imbu tanto quebra as criação como o gado. Boi também quebra na boiada. Então, quebrou uma cabra. Sobe a pá, ela fica manquejando, não caminha pra lugar nenhum. A pá sobe que passa do espinhaço. Meio dia Chico matou a cabra, desfatou, tirou o fígado, cozinhou ali pra nóis... e eu arrodiando a boiada na caatinga, a pé! traquete6 nas costas! Aí, danou a passar carro daqui pra lá, ainda tinha motorista vagabundo que ainda buzinava o carro pra vê a bagaceira pra dentro da caatinga. Ele retalhando a carne e eu sozinho para atalhar a criação. Lá vai, lá vai, lá vai, lá vai, quando terminou, fomos botar a criação pra fora, pra estrada. Faltou nove cabeças. Aí eu fiquei arrudiando a criação em um limpo e ele entrava e dava uma volta e ficamo lá até uma hora dessa assim (seis horas da tarde), nada. Toquei a criação de rebolo, vim prender no Juá. De madrugadinha eu levantei, tomei um café, bebi, chamei ele, aí fui no chiqueiro, tirei o chocalhim

6 Traquete: agasalho dos apetrechos de dormir, roupa e alimentos transportados nas costas e arrumados de forma cilíndrica, que é transportado nas costas, sustentado pelos dois ombros. Faz parte também a cabaça com água e tudo o mais que os tangedores transportam nas viagens.

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Com José de Mariá

da boiada, saí, disse a ele: - “Quando o dia amanhecer, segure a porteira que eu vou viajando, vê se eu acho a criação” -. Peguei o chocalho botei no bolso. Aí, lá me vou, lá me vou, lá me vou, quando cheguei no ponto mais ou menos, comecei a balançar o chocalho e escutar: nada. Aí viajei, viajei, viajei, balancei, subi no alto, que a gente chama Alto da Boa Vista, balancei o chocalho escutei, vi. Uma criação berrou no centro da caatinga, longe. Aí marquei daqui pra lá, balançando o chocalho, escutando, a criação berrando, quando fui me aproximando assim, já vinha a criação de lá pra cá, o magotim, as nove cabeças. Aí, eu fui falando, falando, arrudiei ali, balançando sempre o chocalho, toquei a criação. Quando eu vinha chegado no Juá topei com ele que já ia saindo com a criação. Nessa época eu era rapazinho novo, tinha uns dezesseis anos, por aí assim.

- Vocês vinham até Juazeiro tocando essa criação, de depois do Juá (48 km da sede do município) até aqui, quantos dias?

- Três dias. A gente dava de comer, dava água, no ponto de dormir, dormia, no outro dia levantava cedo tocava. Por isso eu digo a utilidade de um chocalho. Minha inteligência de ter lembrado disso e o dom do chocalho.

- Qual era a técnica que o senhor usava para botar um chocalho num animal, numa cabra?

- Olhava e via o tipo da criação, mais graúda, mais bonita que tivesse no lote, a gente olhava e botava o chocalho. Num era qualquer coisinha véia não. O tom do chocáio ajudava. Podia botar em qualquer uma.

- As cabras preferem que tipo de ambiente?

- É no lugar que tem mais rama que ela gosta, que tem muitas árvore no mato que elas não come capim, mas no lugar que tem mais a folha que ela come é a que mais ela gosta.

- Qual é a rama que elas mais gostam?

- Tem várias ramas na caatinga que a criação gosta. Gosta muito da folha do imbuzeiro, da folha da imburana, do carquejo. Criação de bode, pouco come é só capim, a ovelha gosta mais, criação de bode não. Lá na serra tem muitas outras folhas, pau que elas gostam muito. Você conhece aquela samambaia7 que nasce nos pau, uma miudinha? Lá em cima da serra tem muito, cai muito. Nos anos de seca você mata uma criação que pasteja em cima da serra, o debúi8 todo é verde, tudo daquela samambaia. Na Canavieira teve uma seca braba, Floro saía era com um magote de gado, torando tudo quanto era caatingueira. Na caatingueira lá a samambaia era de lascar os galhos.

- O gado tem preferência por que tipo de ambiente?

- O gado prefere o ambiente que tá melhor. Se no tabuleiro tem pasto ele prefere o tabuleiro, se a caatinga tá melhor, ele vai pra caatinga.

7 Nesse caso, trata-se de um vegetal parasita que tem o formato de caroá, só que pequeno.8 Debulho: no caso é o conteúdo encontrado no fato de uma criação.

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Com José de Mariá

- Qual a direção que o gado arriba?

- Pra qualquer um que tenha chovido, em qualquer direção.

- E se depois chover no pasto dele?

- Ele volta. Roncou o trovão, volta. Ele gosta do pasto dele, é aclimatado, eu digo consciente. A única coisa que você me perguntou consciente, sabe por quê? Teve um ano de seca, lá pra nós, um verão puxado, que deu umas chuvas no Estreito de Zé Januário, que ficava muito embaixo da Lagoa de Zé Alves pra baixo, e eu tinha um magotinho de gado, trinta e tantas cabeças de gado, quase quarenta, então meu gado arribou daí, e eu perdi notícia. Ainda fui muito longe. Fui no Almeida, Canabravinha... Tive notícia que tinha morrido uma vaca dentro de uma barroca no tanque da Redenção, e justamente a vaca era das minha. Aí foi onde eu fui pegar a pista do gado, mas não tive notícia, não tive pista de jeito nenhum. Dessa vez, eu fui pegar um toreco meu na Canavieira. Pois bem, eu parei porque andei demais, estrupiei uma burra caçando esse gado e nem notíça. Passou, passou, passou, uma pessoa aí debaixo que apareceu no Juá e deu notícia de um gado aleio que tinha lá. Aí o véio Ferreira sabia que eu tava procurando esse gado, ele disse: - “É o gado de Zé de Mariá” -. Aí eu fiquei, parei! Se preparava pra chover, como de fato choveu. Trovejou muito, choveu, fez água. Quando é um dia de noite, eu já tava dormindo, meti os pé, me acordei, aí - eu tinha um cocho grande no terreiro, onde eu botava sal pra criação-, quando eu me acordei tinha duas vacas. Era uma lisa grande, que eu chamava Morro Branco, que tinha sido de sorte lá do Morro Branco, e tinha uma

pintada de preto que eu chamava Biaúna – tavam lambendo sal no cocho. Aí eu chamei Mariá. Eu digo: - “Mariá, meu gado chegou” -. O gado tava todim. Aí eu fui lá no Juá, o véi Ferreira disse: - “Ói, seu gado chegou, num foi Zé?” - Eu disse: - “Chegou, graças a Deus” -. Ele disse: - “Passou todinho aqui onte de tarde, o cordão, tudo atrás um do outro” -. Isso aconteceu comigo.

- O touro arrebanho o gado?

- Rebanha não.

- O touro sai do rebanho dele?

- Sai. Eu campiei pegando toro de um rebanho, pegando no rebanho de outro gado. As vacas não se misturam muito não.

- As cabras, no amalhador, lá no mato, elas se misturam, um magote com outro magote?

- Se mistura, mas ao amanhecer do dia aparta. Cada uma procura suas companheira, seu magote. Cada uma procura seu norte.

- Na caatinga têm os vários rebanhos, dos vários sítios, esses rebanhos se misturam?

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Com José de Mariá

- Às vez, mas raramente ficam junto. Ficam mais junto os que pertencem a um chiqueiro.

- Quem protege mais as crias, as ovelhas ou as cabras?

- Rapaz, é ambas parte.

- E qual é o que morre mais, cabrito ou borrego?

- O cabrito é mais morredor.

- Um cabrito leva quantos dias para endurecer?

- Aí depende. Uns oito dias o cabrito já tá duro, já acompanha a mãe.

- E o borrego?

- O borrego é de um dia pra outro. De um dia pro outro ele corre e acompanha a ovelha. Raramente a ovelha deixa o borrego no mato. A cabra deixa, quatro, cinco dias e até mais, mas a ovelha não.

- Quem é que resiste mais à seca, a cabra ou o jumento?

- Êta porra! Agora você me lascou (pausa). Rapaz, eu vou lhe dizer, não sei se é certo, não, mas essa análise aí precisa ser profunda, agora eu acho que é o jumento. Qual é a origem de ser um jumento? Porque o jumento é o seguinte: ele rói a caatingueira, ele rói a faveleira, ele aprende cavar a raiz da favela, ele come a frade...

- Como um jegue consegue comer a frade?

- Come, come todinha, só deixa o espim. Ele começa pela carapuça dela, pela coroa dela. Ele começa ali, às vez dá com a mão ali e fofa, outra vez pega com os dente a cora dela, aquela carapuça que ela tem, e por ali ele entra e come até a raiz, só deixa o espim. Se eu morasse lá, essa pergunta eu ia lhe provar com a casca de um jegue, que ele deixa é muito. Na seca mesmo, no pé da serra, onde tem muita frade, você vê... os caba pega até viado, onde ele deixa o resto das frade e o viado aprende a comer, e os caba vão esperar e pegam. Eu mesmo nunca peguei não. E a cabra, é bem verdade que ela come em pé, ela se põe em pé, ela pega, mas na seca não tem quase nada do que ela pegar. É tão provável que a criação de cabra ela morre muito nas primeiras águas, nas primeiras ramas, que ela fica em pé nos pau e ela se engancha e morre, morre muito. A ovelha, não. A ovelha é só com a boca no chão. Agora o jegue resiste mais, o bicho é nó cego. Uma samambaia mais baixa ele come.

- O amalhador das ovelhas é diferente do das cabras?

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Com José de Mariá

- Não. É quase nada, chega ao ponto de achar elas é ali junta, uma numa ponta e outra na outra. Ói, topou um limpo, cavou com a mão, fofou aquela terrinha, ali amalha, tanto a ovelha como a cabra.

- Aí eu pergunto: o senhor tem um chiqueiro, eu chego com uma cabra minha e boto dentro. O que acontece?

- As minhas só faltam matar a sua de tanto espancar, que estranha. Se não apartar, se não for botando para acostumar... Enquanto não acostumar só falta furar o fato.

- Ovelha estranha outra ovelha?

- Estranha, mas não é muito.

- Quem é que gosta mais dos lambedouros lá do mato?

- Todos três gostam muito, até o jegue.

- E porque a criação gosta de ficar nas margens dos riachos e vem a chuva e carrega tudo?

- Só fica mais na margem do riacho quando tem o juá. O juá, a quixabeira que tenha quixaba ou algum pé de pau que faça sombra que ela vai pra se anteparar da chuva. O juá dá de março pra abril e a quixabeira é no verão.

- Teve um tempo aí que morreu muita criação levada pelo riacho, lá em Curaçá.

- Foi. Tem poucos tempo. Às vez também é nas roças. O pessoal deixa presa na roça, às vez até noite que não está esperando chover e madrugada a chuva chega, aí a criação tá na roça, um riacho grande varzêa e leva tudo.

- Quem é que pega mais doença, é cabra ou ovelha?

- Rapaz, eu acho que aí é idêntico, tá um sistema só. A cabra apresenta mais o tumor, a ovelha é muito raro. Mas como agora, aí mesmo em seu Curaçá, a ovelha tá morrendo muito, que nem tava aquele Carlos de Raimundão, que a ovelha dele tava morrendo muita, um bando deles por lá falando que tava morrendo muita ovelha gorda, bonita, e Carlos me disse que tinha levado num veterinário, mandou matar uma doente pra ele examinar e foi achado doença nos rins, cheio de língua assim, se acabando.

- Quem é que morre mais nas lagoas, atolados?

- Aí morre idêntico. Depende da fraqueza. Se tiverem fraco, entrando num atoleiro, ás vez pra vê um cerquim de água lá, morre tudo. A ovelha enfraquece mais rápido. Enfraquece mais ligeiro, engorda mais ligeiro.

- O gado também forma família?

- Forma. Eu mesmo tenho duas vaca lá, de uma bezerra que Eugênio me deu – o que eu tive acabei na doença de minha esposa, eu fiquei sem gado. Eugênio me deu uma bezerra, aí eu fui zelar da vaca dele, dessa bezerra eu cheguei a 12 cabeças de gado dessa rês, fora as rês que já foram vendidas

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Com José de Mariá

e foram matadas. Eu imagino assim, mais de vinte cabeças de uma bezerra. Era tudo junto em um lote. Na boca da noite, eu montado num jegue, onde eu achasse elas eu tangia tudim, não saiam da estrada. Chegava, entrava dentro do curral, eu fechava a porteira.

- O senhor tem um bode, e esse bode está doente de uma doença que não tem cura, e a doença dele passa para os outros. O que o senhor faz desse bode?

- Ou isola no cercado, só ele, ou então mata e toca fogo.

- O senhor já matou um assim?

- Não, porque nunca me atacou essa doença contagiosa.

- Então vamos para outro exemplo: o bode tá lá, tem cura, mas o remédio pra ele vai custar R$ 100,00, ele tá lá agoniado de dor. O que é que o senhor faz?

- Eu compro o remédio e aplico.

- Mas o preço do bode é só R$ 50,00.

- Mas ele pode me dá lucro. As crias que ele vai produzir vai me dá lucro muito mais.

Jaldes e Mariazinha (Agosto/2005).

- Mas o bode é capado.

- Aí o negócio pega. Não!, procura outros meios, procura outro remédio mais barato.

- Mas o remédio para curar aquela doença é só aquele de R$ 100,00.

- Rapaz, quando Deus fecha uma porta abre dez, se o remédio é aquele, mas tem outros. Dá uma beberagem, dá uma quina-quina, dá um bocado de beberagem, num dá uma só, pra evitar, que o preço do remédio não compensa o bode... e eu vou fazer o quê?

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Com José de Mariá

- Então vamos para outro exemplo: o senhor tem dez cabras, aí chega a seca. O senhor começa a comprar ração, e o preço da ração é muito acima do preço das cabras, o que o senhor faz?

- Rapaz, eu tenho que apelar pra ração e num deixar minhas cabras morrer, porque eu reparo para o futuro que elas podem me dar pra frente, e eu recuperar aquele prejuízo. Aí, uns anos desses atrás nós não fizemos empréstimo no Banco pra escapar os bichos? Só que nesse empréstimo eu fiz o seguinte: eu fiz duas rocinhas lá e comprei mais outras marrãs de cabra. Comprei ração a ele, mas nesse intervalo comprei umas marrãs de cabra.

- Cada criador tem sua cacimba. Vamos supor que alguém chegue lá e diga assim: vou abrir um poço artesiano para vocês - tem cinco sítios pertos um do outro. Vou abrir um poço e vou botar um bebedouro só, pra todo mundo. O povo aceita?

- Rapaz, não é em toda localidade que aceita não, porque a origem de nosso meio ser ruim, isso eu tenho dito em várias reuniões, é por falta da união. Seria muito bom que todos aceitassem, facilitava o trabalho. Mas você disse assim: - Eu vou abrir um poço, fazer um bebedor pra todos se servir daquela água aqui nesse lugar, então, mas vai depender do óleo. O óleo vocês vão ter que comprar. Aí um já chia praqui, outro chia prali. Compra essa semana, vai esperar pelo outro, aí continua a desunião.

- Esse poço vai funcionar com energia solar, não precisa do óleo, a água tá aqui liberada. Fizeram o estudo e o poço dá certo aqui. Sua fazenda fica a um quilômetro, o senhor vai botar seus animais pra beber água aqui?

- Se não tiver outro mais perto é o jeito. Por obrigação é o jeito, mas se tiver outra água mais perto eu vou ter necessidade de vim aqui?

- Mas tem a do senhor lá, a cacimba.

- Então eu tiro lá, deixo a daqui pra quem não tem. Se eu tenho.

- Mas a daqui não precisa nem fazer força, a água está aí à disposição.

- Isso aí é pra preguiçoso, não quer botar força, não quer labutar.

- Qual é a vantagem do animal beber em sua cacimba?

- Sendo meu? Ave Maria! A vantagem é grande... Porque eu tô olhando pro meu animal, olhando se ele tem uma bicheira, olhando se ele tem uma estrepada, eu tô olhando se ele tá a falta de um benefício, se ele tá com piolho, se é preciso eu dá remédio... e ele bebendo lá distante de mim... Isso é invento que Juvino me ensinou. Juvino me ensinou pra num dá água na fazenda dele de noite, porque de noite você dava água a um bicho, não sabia se ele vinha doente. Não sabia se ele vinha com uma bicheira, não sabia se ele vinha com uma

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Com José de Mariá

estrepada, não sabia se ele vinha com um engasgo na boca... você não sabia... Deixasse pra você dá água de manhã que você via o bicho. Então por isso, que eu trabalhei lá em meu sítio, com dificuldade e abri uma cacimba num riacho que nunca ninguém nunca tinha feito água lá. Tá lá com cinqüenta palmo pra todo mundo vê e tem muita água. Salomão, da Moça Branca, passou lá, uma ocasião, eu tava lá trabalhando, dando tiro, quebrando pedra, com dificuldade... Eu quebrava pedra lá embaixo. Dava tiro (com banana de dinamite), quebrava pedra lá embaixo e enchia um balde de zinco que eu tinha, lá embaixo, dobrei a corda do carretel, lá de baixo eu sentava o braço, puxava e essa mulher, quando chegava lá em cima puxava e despejava prali. Eu fui nessa vida até quando Deus me ajudou que eu tirei água. Por quê? Porque a cacimba que nós se servia era mais de um quilômetro, onde nóis dava água aos bichos. E era umas quatro pessoas que dava água aos bichos lá. Quando você chegava com os seus, seu fulano já tava com os dele, aí eu ia recantear os meus, esperar seu fulano secar o bebedor, soltar os bichos dele pra eu poder botar os meus. Quando eu acabava já chegava aquele outro.

- Por que não misturavam os bichos e não ficavam trabalhando juntos?

- Porque não prestava que era pra soltar os rebanhos. Você soltar seu rebanho, eu soltar o meu, o outro solta os dele, porque se você soltasse o seu junto com os meu, os meu junto com os seu, aí saía tudo esbandalhado. Apartava a cria, o cabrito, o borrego, essa coisa assim. É muita coisa. Então eu dou valor, principalmente fonte de seu dono. Você pode

dar a Pedro, a Paulo, a Martin, mas é sua, você dá água a hora que você quer, fecha sua porteira a hora que quer, deixa aberta a hora que quer, não tem reclamação. Por isso eu dou valor e você olha seus bichos.

- Sinais e ferro. Que sinal o senhor bota na orelha direita da criação?

- O mourão da fazenda. O mourão da fazenda é o seguinte: se meu mourão, já de herança, de meus pais, era forquia e dente por baixo, na oreia direita, na outra oreia a gente botava as diferenças da família. O mourão diz que é da fazenda. Se você chegar no distrito de Barro Vermelho e perguntar como era o mourão da fazenda Cipó, que era muitos morador lá na fazenda, mas a família todinha tinha aquele mourão, porque aonde você visse, por fora, aquele mourão - forquia e dente por baixo na oreia direita – todo mundo ia dizer: “É da fazenda Cipó”. Esse objeto, essa reis, essa coisa assim, é da fazenda Cipó. Na orelha esquerda vai a diferença da família, aí pode tronchar, pode fazer buraco, moça por baixo, moça por cima, pode fazer dente, mas o mourão num arreda.

- Eu sou vaqueiro e encontro com o senhor, como o senhor pede notícia de um animal?

- Aí eu lhe pergunto se você viu um boi preto, lombo sabiá, meio espaço, com o sinal: furquia e dente por baixo na oreia direita, na outra, taco por baixo, uma moça por cima e um brinco. Aí eu dei o sinal completo.

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Com José de Mariá

- E em que lugar ferra a vaca? Tem um ferro que vai na anca e tem outro que vai na pá.

- Aquele da pá não é muito pra documento da fazenda. Tem muita gente que não faz. Faz assim esse pessoal que negocia nas fazenda, que nem Dionísio. Ele mandava ferrar na pá, mas era a iniciais dele, era DP. Na anca já vinha os ferro velho das pessoas que foi dono daquele boi.

- Vamos supor que eu vá lá morar no Cipó, não sou daquela família, aí eu posso usar esse mourão?

- Não. Só a família. Se você fosse morar porque casou com uma moça do lugar, essa coisa assim, você podia usar o mourão. Se você é de fora e comprou uma terra, aí você vai levar seu mourão. Se você não tiver mourão, faz um.

- Qual é o nome do povo que vive na caatinga?

- Caatingueiro.

- O que é um caatingueiro?

- Um caatingueiro, hem! É uma pessoa que mora numa fazenda. Mora na cidade, mora na cidade. Mora na fazenda, mora na fazenda. Quem mora na fazenda pode ser um caatingueiro. Por quê? Tem outra classe?

- Vamos supor: eu sou professor, aí me arranjam uma sala de aula lá no Salgado. Eu vou ser um caatingueiro?

- Se o senhor vai ser um caatgueiro? Um professor que veio da cidade pra ensinar os caatingueiros.

- Qual vai ser a minha diferença com relação a vocês que são caatingueiros, se eu tô bebendo da água que vocês tão bebendo...

- Não, não influi isso aí, não. Destaca demais, o caatingueiro não sabe nem conversar, que nem eu. Só sei labutar com bicho. Pra conversar com professor!, não se acanha, eu nunca nasci pra mim acanhar com nada. Você que é educado e tem saber, pode muito bem me estimular... mas é destacado, rapaz. É o pé-duro com o de raça, até a pele é mais acentada.

- Vamos pegar outro exemplo: o cara mora em São Paulo, e lá se aposenta, vem pra caatinga, faz uma casinha, compra umas cabrinhas e fica lá vivendo da a aposentadoria, ele é caatingueiro?

- Se ele foi daqui pra São Paulo e adquiriu com o que sobreviver na caatinga é caatingueiro. Se ele foi da cidade, foi pra São Paulo, adquiriu, voltou, veio morar na cidade, não é caatingueiro, principalmente se não tiver fazenda. Se ele tiver ainda tem uma parte, mas se ele não tiver fazenda não é caatingueiro.

- E pra ser caatingueiro é preciso o quê?

- Ói, é preciso morar na fazenda, é preciso criar galinha na fazenda, ter um criatório, ser analfabeto, tudo isso é preciso. Pra ser caatingueiro legítimo tem que ser assim, no meu modo de pensar, agora se tem outro modo me explique.

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Com José de Mariá

- E aquele cara que tem uma caminhonete e vive de transportar os alunos?

- Bom, aí é proprietário.

- E se eu for botar um comércio lá?

- Aí é outra coisa, aí você é comerciante.

- E a seca?

- Olhe, a seca, que chega a meu conhecimento, não se trata, digamos assim, de seca pra gente, porque pra gente vem muito é trabalho, agora existe a seca pra os bichos, que eu penso assim. É falta de pasto, primeiro, falta de água nas fazendas, e vem a falta de pasto. Isso é que eu acho que é a seca.

- Como a seca bate na alma do caatingueiro.

- Nós já falou há pouca hora nesse assunto. Sabe quando? Quando não existe essas coisas: quando não existe o pasto, quando não existe a água e quando o caba não tem dinheiro pra comprar ração pros bichos e nem pra fazer a água. Aí é quando ele sente a seca. Aí a seca é maior, é a seca grande.

- Quando o senhor vê os bichos magros, cortando mandacaru...

- Aí faz dó, é o que eu tenho muito em meu sítio.

CONTINUAÇÃO DA ENTREVISTA – dia 02.08.05

- Gado chora?

- Chora! Chora. A gente não vê... Não é que você veja as lágrimas descer do gado, mas o gado faz um labacel, uma urradeira diferente, aquele tom que você... é de num agüentar. Abasta você matar uma rês e chegar um magote de gado e sentir o cheiro de sangue... faz uma choradeira de cortar coração. E no mato, assim no cumbuco de pouco tempo que o gado morre, chegando um magote de gado faz a mesma coisa, agora já tando velho, a ossada velha, aí não. Aí eles vão tratar de roer os ossos. É por isso que a gente usa, quando morre uma rês, queimar, porque não sabe do que morreu, que com certeza, nada morre de doença boa, a não ser um plástico ou a fava da caatingueira. Do contrário, aí vem o cabrunco (carnbúnculo)... O cabrunco tem não sei

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Com José de Mariá

quanto... quatorze tipo, não é? Uns passa dias duente, outros cai na hora e morre, e se a rês comer aquele osso daquela rês é vítima também. O carbúnculo e essa raiva – disse que a raiva é um, o cabrunco é outro - morre também. É por isso que a gente queima pra limpar o pasto. A fava da caatingueira, é o seguinte... isso eu já questionei mais uns veterinários, mas vale os veterinários. A fava da caatingueira serve de alimento pra o gado, só que ela é idêntico a uma comida, que nós tamos numa mesa aqui, cinco, seis, oito, dez pessoas, todos comem não sentem nada, só a uma pessoa ofende. É o caso da baje da caatingueira. Matou aquela rês, se você não achou em tempo pra dá remédio, aí ela chega a matar, mas do contrário, se não fizer mal, você pode dá pra encher a barriga: é alimento. Se toda rês que comesse a baje da caatingueira ofendesse, matasse, não existia mais gado em nossa região - não posso falar das outras -, só que não é. Ela não é veneno ofende a uma rês. Ela embucha. O animal vai comendo, não tem outra coisa. Quando ele tá comendo a baje da caatingueira é porque não tem outra coisa, não acha mais nada pra comer, então a baje da caatingueira se junta e faz aqueles bolo assim, que a rês não pode obrar. O remédio é a babosa. Existe vários remédios, mas eu, pra mim mesmo, não tem como a babosa cozinhada. Você pega umas quatro, cinco folhas de babosa, corta miúdo, bota pra cozinhar. Quando ela tá vermelha aí você tira. Deixa mornar um pouco, antes de ficar bem fria, aí você pega um litro, enche e dá. Um litro, dois litros, dependendo do tamanho da rês. Aí agora, você pode botar a rês pra correr dentro do curral pra sacudir, daí apouco você vê esguinchando na cerca. Os remédios todos é de planta, a gente é que não sabe fabricar todos.

- Quais são os remédios que o senhor conhece, do mato?

- Êta, porra! Você veio foi no espírito de me apertar? Apois ói... Tem muitas folhas... que naquele dia você falou de folhas, eu lembrei de um bocado de folha das plantas. Como você me pergunta sobre o remédio do mato, eu sei que você nasceu no Gato. Se não nasceu no Gato, nasceu na cama, por ali assim, mas tem a batata-de-teiú que é um santo remédio pra essas coisas, pra febre, pra muitas coisas, até pra essa própria parte que você perguntou. Arranca a batata-de-teiú, corta ela no meio, abre as bandas e das bandas você tira um quarto, e aí ou pisa, ou rela ou cozinha e dá pra rês ou pra criação. Serve pra febre, serve pra fava, serve até pra o sangue, pra afinar. Tem a batata-de-purga. Esta também é um santo remédio pro sangue, principalmente pra verme, porque a batata-de-teiú também purga muito. Tem a quina-quina... A quina-quina tem na serra da Borracha. É própria pra febre. Pode até servir pra outras coisas, mas eu não digo, que não sei. Tem o caroço de araticum verdadeiro. É bom pra mordida de cobra e é bom também pra outras doenças que eu não sei. Pisa, bota água, côa e dá pra beber. Pra mordida de cobra dá em leite.

- E se uma cascavel me picar?

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Com José de Mariá

- Se não chegou sua hora você não morre, não. É o caroço de araticum e a semente de imburana de cheiro. Em primeiro lugar pra picada de cobra a semente de imburana de cheiro. Pisa ela bem pisadinha, bota num bocado de leite e dá para a pessoa ou ao bicho pra beber. Mãe já levantou uma cachorra minha, cachorra boa de caça, que já tava mole, estirada, e ela levantou com imburana de cheiro.

- O pessoal tem uma reclamação com o angico.- Olhe, o angico é idêntico à favela. O angico, quando ele tá

maduro, a folha madura, o bicho pode comer, não tem problema, é alimento. Pra o bicho comer ele no pé, mesmo verde, pegar o galho e comer, não tem problema: é alimento. Agora, se o vento lascar um galho de angico, principalmente quando o sol tiver quente, e ele murchar e o bicho comer, é veneno. A baje do angico... nada que os bicho, que as ave come, os pássaros... você pode comer também que é alimento. A baje do angico é de comer de papagaio e não mata. Eu já matei duas vacas minha queimando xiquexique no verão, pro gado comer, e teve um bagaço seco assim, a gente tava com muito cuidado, mas uma hora facilita, e o fogo foi, foi, foi e queimou um pé de angico e o angico caiu. Com o calor do fogo e do sol, esquentou, duas rês comeram. Só tiraram a cabeça de riba do angico. Quando eu tirei o couro e parti, dentro só tinha a folha do angico. Eu sei que ele é veneno assim. É idêntico à faveleira. A faveleira, ela verde, você cortou, ela murchou um pouquinho – ali no Juá é o que tem muito, e tem terrenos que é pior que outros – ali cortar um pé de faveleira e deixar lá no chão e a criação comer, você já sabe: tantas coma como morre. E ela madura,

que madurece a folha que cai no chão é alimento da criação. A folha verde os animais não comem, ela madura é um refrigério bom.

- Vamos falar da reza.

- Primeiro eu lhe pergunto, como eu acho que o direito existe, de você me perguntar, que é o meu entrevistador, mas eu também quando não sei das coisas meu direito também é perguntar. Você acredita nesse negócio de cura de pasto, de cura de rasto dos objetos?

- Cura de rastro, eu acredito. Eu já vi curando. Lá em casa o pessoal fazia isso. Jumento, papai soltava para curar no rastro.

- Apois é idêntico à cura de pasto. A cura do pasto, daqui a três quilômetros, ou mais longe, se não tiver água corrente, eu mando você soltar os bichos com bicheira e amanhã eu mando você atrás pra vê se tem bicho nas bicheiras. Até eu exagerei, porque estou velho – dizem que quando a gente fica velho o pulso também enfraquece -, mas quando eu era mais novo... Digo por experiência, que eu fiz e não foi pra um bicho só mais dois. É a mesma cura do rasto. Depende de quê? Só depende das reza de cura de pasto ou de rasto se você tiver fé. Se você não tiver fé não tem nada feito.

- Qual é a reza para fazer a cura no pasto?

- Não posso lhe ensinar não, senão fica fraco.

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Com José de Mariá

- E alguém não lhe ensinou?

- Enfraqueceu a velha que me ensinou. Eu acho que é ilusão que fica fraco. Quem sabe, sabe.

- E no rastro?- No rastro, você pega uma pedra, se benze em primeiro lugar

– isso você sabe, mas sua obrigação é entrevistar -, aí você pega uma pedra, se benze com aquela pedra, bate nesse rasto, salta aquele, bate naquele outro, três vez, revira a pedra e passa pra frente e vai embora. A pedra fica em cima do rasto da rês.

- O senhor já viu alguma vaca morrer de bicheira?

- Rapaz, eu não vi morta de bicheira, agora porque, sempre nos pasto anda vaqueiro, e o comum do vaqueiro é beneficiar um ao outro. Não interessa que o senhor seja vaqueiro de um intrigado meu, num interessa que esse menino seja vaqueiro de outra pessoa independente. O importante é que nós três somos vaqueiros, nós andamos no mato, eu vejo uma rês da sua entrega, da sua pertenção à falta de benefício, uma bicheira, eu tenho que fazer o benefício. Ou prender, ou curar ou mandar lhe avisar: em ponto fulano vi uma vaca assim, assim. É a obrigação do vaqueiro, que foi assim que aprendi. Por isso lhe digo que ainda não vi uma rês morrer de bicheira. Por sinal eu peguei uma lá em minha fazenda - os donos são vivos e se duvidar vá perguntar -, aquela, se eu não pego, o resultado dela era morrer, porque tava fora do pasto, muito, e o vaqueiro nunca ia procurar essa vaca, porque ela pariu e panhou a bicheira e aí se desnorteou, mas a cabeça

dos ossos das alcatras, encostado ao paridor dela, já você via a cabeça de osso do lado de fora, só que essa vaca escapou, com muito trabalho, e durante o tempo que eu fui vaqueiro, criei e campiei, foi a bicheira maior que eu já vi em uma vaca.

- O senhor falou que os vaqueiros, no mato curam, protegem os animais de qualquer um, sem interessar a quem pertençam. O senhor, quando andava no campo, quantos quilômetros capeava afastado da casa?

- Olha, aí em meu sítio era poucos. Era seis, sete quilômetros, mais ou menos, mas quando eu fui vaqueiro no Morro Branco, era no mínimo dezoito quilômetros, porque do Cabeçudo pro Morro Branco são quatro léguas, mas só que ia mais uma légua pra lá, mas três léguas pra campiar e dentro dessa área, vamos dizer assim, umas três léguas em quadro, não tinha fazenda, era só caatinga, aí ficava difícil.

- E como é a solidão de morar em um lugar desse?

- Virge Maria! Não se compara. É triste, porque você não morre de sede se você achar um imbuzeiro com folha pra você morder, ou então, você anda com facão na cintura, rachar uma frade pra você morder um pedaço pra não morrer de sede, porque a fome você suporta muito tempo, mas a sede, você passar um dia todinho, no mato, de sol quente, sem ter uma gota d`água...

- E a borracha?

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Com José de Mariá

- Nem todo tempo, nem todo dia a gente carregava borracha9. Nessa época nem borracha eu tinha. Borracha não era cara mas era difícil.

- Quer dizer que o senhor, lá no Morro Branco, tinha pouco visita de vaqueiros.

- Não. Tinha muitas. Muitos vaqueiros iam lá. Iam juntar criação, pegar a criação nos amaiador ... Eu vou dá a conta. Tinha eu, que era vaqueiro no Morro Branco, Edim de Zé de Pepedo, que era vaqueiro no Santo Antônio; Paxão, era vaqueiro dos Nunes do Santantão; Agripino era vaqueiro de Pedrinho Nunes; Mané Véio, era vaqueiro de Pedro Rodrigues; Manim de Zé dos Santos, que morreu... Menino!, esse povo já morreu quase tudo. Virge Nossa Senhora! Manim de Zé dos Santos, morreu aqui um tempo desse, era lá da fazenda do Meio; Adeltrudes, que era presidente do Sindicato (dos Trabalhadores Rurais) daqui, hoje mora em Salvador, ele não era vaqueiro, juntava o que era dele; então se reunia o finado Caboco, que morava no Recanto, também criava muito bode... Então a gente ia, se combinava, se juntava tudo, e ia dá três, quatro dia de campo lá na caatinga. Lá tinha caiçara grande, de quando vim de lá pra cá, vim com uma vaquejada de quatrocentas, quinhentas cabeças de criação de todo mundo, criação de bode. Aí vim pro chiqueiro do mais próximo, apartava as dele, tocava as outras, a derradeira era no Morro Branco. As fazendas eram tudo perto umas das outras.

- O senhor falou que era três léguas de quadro.

9 Recipiente confeccionado com couro de modo apropriado para carregar água e adaptado para transporte no trabalho de campo.

- Mas eu vou chegar lá. Aí é no pasto. Aqui é fazenda, é as fazenda e praculá o pasto dessa criação.

- Na última entrevista a gente chegou que o bode não sai do pasto, e aí esse bode que ia pra lá pra essas lonjuras?

- Era o pasto, a criação fez pasto lá.

- Fugiam do chiqueiro e faziam pasto lá?

- A gente soltava, como não tinha fazenda, tudo era caatinga, a criação fez pasto lá. Agora, lá tinha os lugá, as lagoa, tinha nome, tinha o Lambedô da Cachorra, tinha o Caldeirão das Pedra Preta, que era onde tinha uma caiçara grande. Lá nóis tinha duas caiçara grande. Madrugada, principalmente nas primeiras águas, que o bode tá bodejando, a gente já sabia onde era o amaiador, aí madrugada a gente ia à pé. Cercar aquele amaiador e trazer aquela criação de rebolo pra prender na caiçara.

- Essa criação era mais ou menos mansa.

- Traquejo de três, quatro mês, não tinha criação mansa, não. Era criação traqujeira. Quando a gente falava, atendia, tinha mais um cachorro que ajudava a gente. A gente pegava 50, 60 marrãos de orelha inteira.

- Como é que dividia esses marrãos?

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Com José de Mariá

- Nóis ia prestar a atenção que eles encostava na mãe, e olhava o dono da mãe.

- O senhor falou que Edeltrudes não era vaqueiro porque ele trabalhava com o que era dele. Quer dizer que o sujeito só era considerado vaqueiro quando ele trabalhava para outro?

- Só se chamava vaqueiro quando era seu vaqueiro. Quando você campeava... mesmo que você fosse vaqueiro, pegasse, essa coisa assim, mas a gente não considerava. Era o dono, não considerava vaqueiro. Podia ser vaqueiro e podia ser meu patrão, hoje ou amanhã.

- Mas o senhor não tinha sua propriedade, não tinha seu criatório? Quando o senhor veio para a sua propriedade cuidar de seus rebanhos deixou de ser vaqueiro?

- Não, não foi por isso... Aliás, foi por isso. Eu lhe dou um exemplo: em 62, eu fui ser vaqueiro de madrinha Cota, no São Gonçalo, deixei meu sogro olhando o que era meu. Lá, eu tirei dois bezerro de sorte e ficou uns quarteado. Cá eu dei dois bezerros de sorte a meu sogro e paguei três quarteado, então eu achei por bem que se havera de deixar o que era meu no poder dos outro e eu ir ser vaqueiro dos outro, eu achei por bem voltar e tomar conta do que era meu.

- Aí quando o senhor passou a tomar conta de seus bichos não era mais vaqueiro?

- Não. Só é vaqueiro quando trabalha pros outros. Eu fiquei ainda sendo vaqueiro porque além de eu olhar o que era meu, eu ainda pegava boi de Juvino. Pra ganhar dinheiro pegava boi e tocava boiada pra Paulo-Afonso. Nunca fui a Paulo-Afonso, não, mas fui até perto, às vezes. Então, eu ainda ocupava o cargo de vaqueiro.

- Essas boiadas, os senhores tocavam a cavalo ou a pé?

- Eu nunca toquei de a pés, sempre tocava montado. Trabalhava sempre na cabeceira da boiada, porque a boiada se espantava, corria, tinha que ter dois, três vaqueiros, mas a maior parte era de a pés. O próprio passador, que a gente chamava, que vinha tomar conta de combôio, de oito em oito dia, no Morro Branco, pra ir levar a Dionísio Pereira, lá em Paulo-Afonso, quando não era montado num jeguim era de a pé. Passador é o encarregado da boiada.

- Naquele momento que o gado estava preso, que vinha o comprador... como é que se chamava esse momento aí?

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Com José de Mariá

- Chamava-se marchante, que vinha comprar a boiada. Rol de porteira. Dionísio Pereira10 escrevia para o município avisando - seu pai deve lembrar disso. Juvino Ribeiro comprava garrote... do bezerro, garrote, novilhete, boi de ano, ele comprava no município de Curaçá todinho, ainda passava pra Uauá, ainda passava pra o município de Juazeiro. Então, quando entrava o mês de setembro, vamos dizer assim, o primeiro Rol de Porteira era no dia 15 de setembro. Hoje, ele (Juvino) escrevia, mais Chico Ribeiro... Se trancava lá num quarto pra escrever carta -, porque tudo ele tinha anotado e sabia o bezerro que ele comprou, se tava na era de ano ou na era de dois anos. Ele comprava o gado e deixava na fazenda das pessoas. Na época que ele queria o gado ele escrevia uma carta pra você, pra tal dia tá na fazenda Morro Branco levando o boi que ele tinha comprado. Vamo dizer: ele dizia: tal dia, 15 de setembro é o Rol de Porteira na fazenda Morro Branco. Tinha dia que ele despachava cem bôio, ainda ficava bôio no pastorador.

Eu comentei esse caso, agora, há poucos dias, na Canabravinha, mais outros velhos que até ainda levaram boi pra lá, eu digo: “Eu conto esta história, hoje, pra os novo, eles vão dizer que é mentira”, porque o homem despachar, de oito em oito dias, dois três meses, despachar cem bois, pra o que se vê hoje. Quem cria um boinho, chama o marchante pra matar lá no curral, tem grande diferença. Ele comprava em sua mão o garrote, deixava, comprava na minha, deixava e assim fazia no município todo.

10 Dionísio Pereira, proveniente de Paulo-Afonso, vinha comprar gado em Curaçá. Juvino comprava gado em Curaçá e nos municípios vizinhos para vender a Dionísio.

- A negociação era no magote ou era um a um?

- Não. Era no lote, o curral cheio. Aí eles entravam, pesavam o boi no olho, um pelo outro, só pela prática, num era na balança. Aí iam se bater... O preço da arroba era “x”, agora só que iam se bater na arrobação. Juvino queria uma arrobação, Dionísio queria outra. Tinha vezes de se bater e entraem à noite, pra poder fechaem o negóço. Agora, nem Juvino deixava de vender a Dionísio e nem Dionísio deixava de comprar a boiada de Juvino, porque era um negóço grande, vamos dizer, três mês, de oito em oito dia ele tirar cem boi.

- Na hora que o gado sentia que ia sair do pasto, acontecia o quê?

- Não. O gado não daria mais muito trabalho porque o gado já vinha no pastorador, já vinha domado. No dia que o gado saía do Morro Branco, muito gado não era nem de lá do Morro Branco, já tinha saído do pasto deles, não daria muito trabalho, não.

- Quando o gado vai saindo do pasto, dá trabalho? Ele olha para trás?

- O gado quer sair do magote. Quer sair pra um lado, quer sair pra outro, que tá vendo que tá saindo do pasto e ele não quer. Aí tem que levar na marra.

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Com José de Mariá

- Que eu conversei com uma pessoa que fez isso também e a pessoa dizia – no caso era gado de um pasto só -, que sentia que o gado começava a olhar pra trás e a berrar.

- Isso eu nunca percebi, não. Eu acho que nem acontecia. Teimava. Um gado quando tá brabo, correndo, não vai berrar. Ele não vai alembrar do pasto, ele quer sair na tora.

- Vamos falar das retiradas. O que era retirada de gado?

- Retirada de gado, é no mês de agosto, setembro, quando acontece seu gado num tá todo na fazenda. Tem gado espalhado, bebendo na fonte de seu fulano, seu ciclano, vamo dizê: o gado de lá do Juá... tem gado bebendo na Canabravinha, tem gado bebendo na Canavieira, tem um bôio bebendo na Canabrava... Então o vaqueiro tem por obrigação ir buscar pra não tá dando trabalho a outro, e trazer pra fazenda. Isso é a retirada. Então aí se junta um bocado de vaqueiro. Um avisa ao outro e então vamos a uma retirada na fazenda Canavieira. Chega lá, fala com os vaqueiro de lá que quer campo e tudo, aí vamos campiar, esperar na fonte, bater a porteira da fonte (fechar), pra tirar o que é da gente pra levar pra fazenda da gente. A isso é que dá o nome de retirada. Numa retirada que nem do Pião, de Pedro Marim, ou na Canabraba, ou aí na Jaramatáia, Ermilo de Jorgino, juntava até vinte, vinte e tantos vaqueiros. Capa de touro tinha muito. Gió, fazia na Canabraba, os menino de Pedro Marim, faziam no Pião, Emílio de Jorgino fazia na Jaramatáia. Como essa capa de touro? Eles prendendo o gado, apartando e apartando aqueles touros no curral. Com uma semana, três, quatro dias, eles ficavam apartando.

Marcava: sábado é a capa dos touros de Gió, da Canabrava. Aí todo vaqueiro ia. O que soubesse, o de mais longe, o de mais perto, esse pessoal todo ia, praquê? Pra botar touro pra fora, de um em um, pra derrubar no fim da maiada, capar e ferrar.

- Por que não capava no curral, os touros não já estavam presos?

- Porque queriam treinar cavalo e fazer folia. É, capa de touro era assim. Isso era a vantagem do vaqueiro. Treinar cavalo... Naquele tempo você montava num cavalinho, você dizia: - Não vale nada – Se você não se segurasse na sela ele lhe tirava, porque treinava cavalo. Hoje... é devagar... é devagar pra não quebrar uma perna, ajeita, aqueta, aqueta. Naquele tempo não tinha isso, não. Era uma festa. Todo vaqueiro levava um alforje cheio: rapadura, fritada. A fazenda mandava aprontar a comida, cachaça nem se falava, era a granel. As mulheres só cozinhando panela, só no serviço brabo.

- Em alguns lugares juntava água de minadouros no mato.

- Rapaz, lá pra nossa região, de agosto para setembro, só na Canabravinha. É um olho d`água que lá corre. Até na Canabraba mesmo tinha, mas Gió cercou essa água. Batia a porteira e só dava água aos bichos dele, de manhã, porque de noite vinha bicho doente, vinha bicho com bicheira, vinha bicho de todo jeito e eles não davam fé. Na Canabravinha, não, era extenso e os dono nunca se interessaram, nunca criaram...

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Com José de Mariá

- Vamos voltar para as folhas.

- A folha do pereiro, quem sempre mais come é o animal (burro, jumento, cavalo). Quando ele tá comendo a folha do pereiro, dificilmente cria piolho, madura, porque verde nada come muito, por sinal até no campo mesmo, se você andar procurando um magote de animal, no carrasco (tabuleiro), principalmente, se não tiver bagaço seco, capim seco, você procure onde tem pereiro. A folha da aroeira, quando tá caindo, quando ela começa a amadurecer e começa a cair é um grande alimento, a da aroeira, da imburana, do imbuzeiro, do imbiraçu... O imbiraçú, a imburana e o imbuzeiro, quando a chuva é pouca, que ainda não tem pasto, não tem capim, que ele sempre brolha primeiro e engrossa a folha primeiro, a gente derrubava a folha pra dá de comer à criação, da imburana, da aroeira e do imbiraçu. Todas essas folha são medicinal, porque você rapa a imburana pra dá à criação, pra dá a gado quebrado, aroeira do mesmo jeito, o imbiraçu do mesmo jeito, a rapa da quixabeira, da baraúna... já a baraúna é mais nojenta, a folha e a baje. A baje da braúna é que é danado pra dá reira na criação, só a baje, a folha também nada come. Agora, só lá tem uma planta, que é uma árvore, que nada come a folha, eu não vi ainda: é a caatingueira de porco. Eu não sei se os bichos comem a flor dela, mas a folha não come, que quando cai no chão o vento carrega e o bicho não acha, mas da outra o bicho come a folha, come a flor da caatingueira mesmo.

- Quando o senhor diz que um animal enfezou?

- Isso aí é um negócio sério, é preciso dá uma estudada, viu! Porque ele primeiro não caminha, não sai do lugar, e aí você vai jogar pedra pra sair, pra ver se desamoa ele de lá. Aonde bate aquela pedra fica aquela roncha. Já vi muito, já fiz muito... fazer o boi botar pelas ventas as toras de sangue, das pedra que bate na cabeça. É uma malvadeza, é uma injustiça. Já fiz porque já me vi obrigado. Ou eu fazia com ele ou ele fazia comigo.

- Por que não laçava e amarrava?

- Não tinha como, não tinha lugar, não tinha lugar de prender, ficava jogando pedra. O negócio é difícil, aí tinha que jogar pedra até ele sentir que tá doendo e depois falar com ele pra ele sentir e sair, mas tinha que dá um maltrato, e era grosso. A vara de ferrão, a furada de ferrão... eu vi muitas assim: o bicho nas mãos do cavalo e ele (o vaqueiro) assim tirando a vara, sustentado, tirando e botando em outro lugar. Eu nunca fiz isso, porque ali é ignorância de ambas as partes. Se eu dé uma furada boa, como eu dei numa vaca, no Cabeçudo - o cara que eu pedi a guiada, era Selvino do Cabeçudo -, essa vaca remetida, remetia demais. Ele me perguntou: - “Tira a bainha do ferrão todo ou a metade?” Eu digo: - “Tira toda, a medida quem faz é ela” -. Ela tava acostumada a vim de olho cego, de olho fechado! E eu batendo de pau e ela batendo em meu cavalo, aí quando essa bicha vei, quando eu peguei o ferrão todim, ela se acocorou nas mãos do cavalo, mas o que acontece? Ela entrou no curral de bunda, afastando de bunda, mas não entrou de frente, no curral, mas prendemo. Então é melhor você bater de guiada do que de faca, facão, pedra e essa coisa. Então a carne daquele bicho fica toda manchada e

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Com José de Mariá

o bicho fica enfezado, danado, que chega o sangue engrossa, fica todo preto. Aí é onde eles chamam o boi enfezado. Tanto o boi, como o bode como qualquer criação.

-

Zé de Mariá (Agosto/2005)

- Pode acontecer de, nessa luta, o boi morrer por causa do enfezamento?

- Rapaz, eu não sei.

- Por exemplo: o senhor dava uma carreira em um boi, derrubava. Já tocava para o curral na hora?

- Não. Era muito difícil pegar o boi na caatinga, pegar um boi, amarrar e piar, a gente tinha que dá um tempo. Tirar a bride do cavalo, bater a cela, tirar o gibão, botar praculá. Se tinha água ia beber, fazer o cigarro, fumar... dá um tempo pro

bicho abrandar mais a natureza. Ou abrandar ou se enfezar mais, que ele podia querer pegar, andar, remeter e não podia, mas a gente sempre, por lei, por obrigação dá esse espaço.

- E o que é afrontado?

- O cavalo é o que mais afronta. Aí é você trabalhar no cavalo poltrão. Você pega gordo, hoje – isso eu tinha cuidado, porque meu cavalo só era um e eu tinha que zelar. Quem tinha muitos, afrontava um hoje e amanhã ia no outro. Mas eu só pegava meu cavalo gordo e só selava ele de quinze dias em diante. Nesses quinze dias dá banho cedo, amarrar, dá uma sangria, pra tirar um pouco de sangue, e amarrar uns quinze dias. Piava só depois de meio dia. Botar ele pra desbastar a barriga, pra ele ficar bem celeiro. Agora, você pegou o animal hoje, amanhã dá um banho, e amanhã ou depois você joga a sela e vai correr nele, aí você vai vê bater o vazio. Aí não teime não que você mata. Chega o momento dele afrontar de um jeito de se escarrapachar no chão.

- Nessas carreiras no gado, já aconteceu estrepada em vaqueiro?

- Você tá vendo um defeito aqui? (mostra o lábio, com o dedo) Aqui foi uma lasca de pereiro que entrou aqui. Eu tinha dente, ficou enfiado aqui na gengiba. Furou e ficou enfiado, e o cara que andava mais eu também ainda é vivo, mora na Ipúia, era compade Luiz. Nós ia pegando um bôio dele, e eu já ia baixado no sedem do boi, ele entrou numa moita de pereiro, aí me soltou esse gaio de pereiro, mais adiante tinha um clarozinho assim, aí quando eu saí fora, peguei e arrastei,

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Com José de Mariá

bati com ele no chão, ele (o companheiro) vinha atrás de mim, aí pulou, pulei praculá, me esgotando em sangue e dor. Êta que já foi dor! Meu cavalo nunca estrepei, graças a Deus. Pancada, já levei muita, mas isso era comum... corpo duro!

- Seu Zé, como é o dia do vaqueiro. O vaqueiro que eu estou dizendo aqui é o homem do campo? Por exemplo, amanhece o dia... Como é que começa o dia dele?

- Rapaz, a primeira coisa, se for tempo de verde, é ele ir pro curral desleitar as vacas e soltar o gado, ao amanhecer do dia. Terminado, deixa os bezerros no curral, panha o cabresto e vai pegar o cavalo. Dá banho, chegar, amarrar, aí ele vai tomar café, pra poder soltar os bezerros, ou pro pasto ou pro mato. Aí sela o cavalo e vai pro campo. Isso começa quatro horas da manhã, três e meia pra quatro hora, dependendo do tanto de vaca que você tem pra desleitar. Você tem que ir pro mato cedo, você tem que soltar as vacas cedo. Cinco e meia, seis horas você tá soltando as vacas. Aí você vai pro mato. Se o que você vai procurar, encontrou logo cedo, até antes de meio dia, você pode vim pra casa cedo, e se não encontrar, você só volta de noite.

- Chegou em casa meio dia, o que é que vai fazer?

- Aí não volta mais pro campo porque não dá tempo. Vai ficar na fazenda, prender os bezerros e prender as vacas quando chegam do mato no curral.

- Planta roça?

- Meu filho, quem canta não assobêia. Se o serviço dele é esse, é esse que ele tá fazendo.

- Ele chegou em casa meio dia, trouxe o bicho que ele tinha ido atrás, agora ele pode armar a rede e deitar?

- Só se for muito preguiçoso. Não falta serviço, eu duvido faltar. Vai pegar os outros animais, que às vezes não deu tempo pegar de manhã pra dá água, vai piar, vai dá ração...

- Mas é época de verde.

- Mas mesmo assim. Tem animal de peia.

- Aí, os animais de peia, deu água ali, três horas acabou. Agora pode se deitar.

- Não. Três horas é que ele não pode se deitar. Ele vai dá cuidado nas vacas pra não panhar os bezerros. Vai assuntar se a vaca berra, vê de que lado o bezerro berra... Não pode... ô, agora vai descasar! - Esse investigador parece que é meio preguiçoso! - Tem um pau de porteira que é preciso consertar, tem uma grade de cerca que é preciso consertar... tava faltando tempo, aproveitou a oportunidade que chegou cedo do mato... e falta serviço, por Nossa Senhora, em uma fazenda?

- As mulheres ficam lá só deitadas na rede.

- Agora é! (riso) Isso é invento. Eu vou já largar uma coisa aqui (riso).

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Com José de Mariá

É verdade... Morreu o contentamento,Levando prazer e alegria.Deixando dentro das pernas,Quem tanto me divertia.

Era o cara que ficava só deitado dentro da rede mais a mulher, então inventaram essa poesia.

A mulher... Quando o cara levanta pra ir pro curral desleitar as vacas, ela levanta pra esquentar a coalhada. Aí começa a luta dela, pra desocupar as vasilhas pra coar o leite que vem do curral. Então, enquanto ele chega, e ela ferventa a coalhada e escorre, ela vai lavar aquela louça – prato, pote, panela -, ele chega com o leite, ela vai coar o leite e botar lá em seus lugares, aí bota coalhada na mesa pra ele. Aí continua a luta dela na cozinha: vai botar almoço no fogo, vai lavar as panelas, vai lutar pra quando o marido chegar do campo, se vim meio dia, o almoço tá pronto. Se ele chegar: botar o almoço pra ele, pega os pratos da mesa, vai lavar prato, vai providenciar a janta, que aquela comida não deu. Então o trabalho dentro de casa não falta hora nenhuma. Aí tudo é serviço que a mulher faz pra ajudar o marido.

- E o vaqueiro que não tem mulher?

- Aí ele já sai baixo. Ele come o pão que o diabo amassou. Não dá conta. Se ele for cuidar de casa, do alimento dele, a obrigação de fora ele corre em falta. Se ele for cuidar da

obrigação dele de fora, ele se arromba de fome, porque não faz. Não adianta, porque de tudo isso eu tenho experiência.

- Vamos falar do trabalho durante o período de seca.

- A primeira coisa: levantou, tomou o café, vai pra cacimba, encher o bebedor. Se secar e ainda tiver bicho ele ainda vai dá água. Pois bem, aí agora ele vai, conforme seja a seca, se teja mesmo braba, ele vai ficar na fonte até meio dia, quando chega em casa, a mulher já cozinhou o feijão, aí pega um jegue e bota uma cangalha e os ganchos e se pica pro mato atrás de mandacaru pra dá as (reses) que já tem precisão – o vaqueiro ou o dono, o que seja. Aí quando ele chega com o mandacaru, vai cortar no curral, o gado tá na porteira. Conforme a hora, vai até oito, dez horas da noite, que é quando ele vem pra casa. Naquele dia ele não tem mais coragem de tomar banho.

- E quando o gado começa a cair?

- Aí é que aperta mais. É por isso que eu digo: que o maior cuidado era não deixar cair de fome... é você dá de comer com antecedência, antes do bicho enfraquecer e cair.

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Com José de Mariá

Zé de Mariá (Agosto/2005)

- O senhor disse que sorte não dá resultado...

- Não, não dá muita coisa, mas sempre dá. A sorte que eu fiz no São Gonçalo, que foi a derradeira fazenda... a sorte que eu

fiz lá, eu dei a meu sogro, cá. Foi aí onde eu disse que não daria resultado eu ser vaqueiro lá, e deixar o meu na mão dos outros.

- Mas se o senhor deixasse as quarenta cabeças e continuasse como vaqueiro ganhando mais sorte, não era negócio?

- Era... Mas só que quando eu tirei sorte dos quarenta cabritos, que foi no Morro Branco, eu saí da vaqueirice dos cabritos e fui ser vaqueiro do gado.

- Mas era uma vantagem também.

- Pra mim não foi, porque em 60... Em 59 teve a seca e não teve produção em 60, foi muito pouca. Não deu resultado por isso, como em 60 choveu muito, teve muito verde, em 61 foi quando teve a produção, foi quando eu não era mais vaqueiro. Aí onde eu disse: eu por falta de sorte, ou por isso e aquilo, não deu sorte pra mim por causa disso. Porque os anos que ocorria bom eu não era vaqueiro.

- Mas alguns vaqueiros se davam bem.

- Alguns vaqueiros se davam bem.

- Para o vaqueiro, o que é melhor, trabalhar por sorte ou por salário?

- Olha, quando eu comecei a trabalhar campo, principalmente quando eu era solteiro, e trabalhava até a custa da fazenda, eu interessava a sorte, porque eu tinha ido pra ganhar aquilo que

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Com José de Mariá

eu não tinha, então se eu não tinha e tinha ido trabalhar pra ganhar, então eu interessava a sorte, porque daquela sorte ali eu ia fazer minha semente, e se fosse pra ganhar o salário ficava só naquilo mesmo: recebendo o dinheirim por uma mão e gastando pela outra.

- Vamos supor que o senhor, hoje, tivesse trinta anos e Marcelino fosse fazendeiro, o senhor ia preferir trabalhar por salário ou por sorte?

- Se eu tivesse família e ele não me sustentasse minha despesa no primeiro ano, eu interessava trabalhar ganhando salário, porque se eu fosse trabalhar a ele, eu já tendo família, um ano enquanto eu não fizesse sorte, aí ficava difícil pra eu passar.

- A vantagem é a sorte ou o salário?

- Eu acho que hoje em dia, principalmente, era a sorte, porque você ia ganhar aquele salário, se você trabalhasse um ano, quando você saísse fora você não tinha mais nada. Se você fosse fazer sorte depois de um ano você tinha seu sinal, tinha um criatoriozinho, você ia trabalhar com o que era seu. Aí já não ia depender de salário.

- Agora o senhor disse uma coisa que eu fiquei impressionado: que tem muita terra, herdada da mãe do senhor, que era de seu avô, mas que o senhor só declarou vinte e cinco hectares. Por que só vinte e cinco hectares?

- Ô perguntinha boa da porra! Porque os vinte e cinco hectares era a terra que eu podia cercar e que eu podia me autorizar.

Se eu declarasse cem ou duzentos hectares, eu não poderia pagar o imposto da terra nua e não adiantava. Isso eu digo de exemplo. Foi Ferreira do Juá, Luizinho da Cacimba, o véio Germano - teve outra pessoa que me foge da memória -, que a primeira declaração foi IBRA... Então como esse pessoal exageraram em terra nua, e quando veio o imposto, nunca puderam pagar, que o governo não é besta, não queria perder o imposto, mudou o nome de IBRA para INCRA, pra as pessoas fazem novas declaração. Diminuir as terras nuas e botar as terras que eles ocupavam pra poder pagar o imposto.

- Então, um pessoa pode chegar lá, vê onde o senhor tem terra, os vinte e cinco hectares, e se apropriar da parte que o senhor não declarou.

- De minha parte eu não empato, porque o governo quer imposto. Ele tá apossando as terras nuas e botando gente pra morar. Um exemplo eu lhe dou numa fazenda que tem lá perto: o Bangüê. Qual foi o resultado? Roberto meteu o trator nas terras dos outros - eu digo porque eu morava lá perto, posso dizer -, nunca pagou imposto, e hoje tá lá, com não sei quantas pessoas que nunca pensaram em ser dono de terra e tão arranchado no Bangüê.

- Mas o senhor acha que com vinte e cinco hectares de terra o senhor tem condições de sobreviver como caatingueiro?

- Lá eu tenho.

- Se todo mundo cercar, o senhor pode criar quantos animais em vinte e cinco hectares?

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Com José de Mariá

- Olha, nós não vamos nem atrás disso, porque lá é terra nua. Ninguém tem cem hectares de terra cercada. Todo mundo cria, mas cria em absoluto. Eu já combati isso mais um agrônomo que deu um curso lá na Formosa, ele, com Didi da Laminha, falou sobre isso. O cara... vamos dizer assim, tem mil cabras, na produção ele pegava trezentos, quatrocentos cabritos, que o outro era todo perdido, por quê? A cabra dava cria lá pro mato, morria de bicheira, o carcará matava, a raposa pegava, o gato pegava... Se ele vendesse a maior parte, ficasse com menos, fizesse uma solta pra criar preso, não dava resultado? Mas lá não existe isso.

- Não são vocês que estão lá, que estão criando?

- Mas não tem como. Não tem condições. Você vai vender, o criatório tá pouco, se você for vender o pouco criatório pra salvar as terras, vai viver de quê? A terra seca, lá, não dá pra você sobreviver, não chove o bastante. Se você for tomar empréstimo nos Bancos pra fazer solta pra criar aquele criatoriozinho, não dá pra pagar o Banco e o Banco não perdoa. Qual é o resultado? É o Banco tomar sua propriedade, como existe muitos, inclusive essa do Bangüê, que acabei de falar, no Almeida, teve uma que o Banco também tomou tudo. Por isso eu lhe digo: lá a terra é seca, não tem água, essa coisa assim, ninguém se interessa.

- Mas está tendo muita gente aí, gente nova, que vem de fora, que ganha dinheiro em outras coisas na cidade... Eu pergunto ao senhor, esse pessoal comprando terra lá e cercando, o que é que vai acontecer com os caatingueiros?

- É, não é boas coisas. Primeiro vem a questão por causa das terras que eles vão cercar sem ser deles. Ainda tem um negócio: você não cercou sua terra toda, você só declarou aqueles hectares, mas você tem escritura daquelas posse de terra, daquela demarcação, então você ainda continua sendo dono. Mesmo que você não tenha cercado tudo, mas você continua sendo dono daquela terra que você tem documento. Agora, daqueles que não têm documento, a turma pega e cerca e você se estribucha mas não tem direito. A terra tá desocupada, a terra tá nua.

- Vamos supor: um cerca aqui, outro cerca ali e assim por diante. Como vai ficar o caatingueiro?

- Aí é aperriado. O que cria não tem onde ele se alimentar. Só se for em terra nua, sem ser assim é ele se acabar. Tenho exemplo, perto. Tinha uma fazenda Lajedo, um sergipano veio e comprou. Então Santo Antônio, Morro Branco, Caraíba dos Gomes, Serrania, Olho d`Água, uma parte ainda do Poço de Dentro... Esse cara tomou, cercou o pasto todinho que o bicho deles ficou um tantinho assim. Onde eu conheci, lá na Serrania, o filho de Isaía Barbosa, criava muito bode e o povo diz que hoje tá em nada. O pessoal da Caraíba dos Gomes criava muito também, hoje não tem mais nada.

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Com José de Mariá

Quando Juvino era vivo, eles passaram variante, Juvino proibiu. Depois Juvino morreu, aí, os outros tudo era fraco, não tinha nem vez e nem voz, esse cara veio e cercou tudo, tudo. Tem é fazendas dentro... Essas fazendas que eu disse tão tudo do lado de fora, mas a cerca dele tomou o pasto, ficou tanto assim da fazenda pra cerca.

- O que o senhor acha dessa modernidade aí no mato, fazendo os cursos com ensinamentos modernos, silagem, fenação, inseminação artificial, fazer transferência de embrião, enfim, essas coisas, o que o senhor acha?

- Não é fácil não. Primeiro, porque ele acha que aquela luta, aquele trabalho num dá pra ele sobreviver, aí não quer se dá ao trabalho de fazer como a lei marca. Eu mesmo cansei de comprar bode, marrão, bodeco pra reprodutor pra tirar o que tava no chiqueiro, com três anos ou quatro. Esse aí é um bom sinal, mas os de hoje já num queem saber disso. Queem saber se o número rende, saia alejado, saia cego... Então pra ele fazer esse trabalho aí, que você citou, precisa muita responsabilidade, precisa muito cuidado e eles não querem se dar a esse trabalho porque acham que não dá pra você... Se for se envolver com aquilo, se o negócio for pouco não dá pra sobreviver... como? Agora nós precisamos que Deus nos dê uns anos de vida pra nóis vê essa mudança, se dá certo ou se não. Em mudar o reprodutor, tudo bem, eu concordo, desenvolve o criatório, tanto a cabra como a ovelha, o touro bom na fazenda, mas de um cento se tira um que faz isso.

- Antigamente, chamava reprodutor mesmo, é? Quando eu era menino não chamavam de reprodutor.

- Eu acho que você é muito é sabido. Ele quer que eu explique.

- Então explique.

- Era o pai-de-chiqueiro (riso). Agora eu quero saber qual é a verdade. Em cima disso, onde é que está a verdade, é o pai-de-chiqueiro ou é o reprodutor? Me ensine um pouquinho, eu quero que você me responda.

- Aí, eu não sei. Na verdade quem está perguntando sou eu, como eu sei que o senhor sabe... Como o senhor, no seu chiqueiro, escolhia o animal que ia ser o pai-de-chiqueiro?

- Rapaz, era também pelo tipo, também pela saída dele, pela boniteza, mas depois eu tirei, eu deixei... Depois dos cursos que eu assisti eu deixei de escolher no meu chiqueiro, eu vinha escolher no seu, pra você me vender...

- Mesmo que eu fosse seu vizinho?

- Mesmo que fosse, mas o sangue da criação não era o mesmo. O importante é mudar o sangue.

- Mas, no mato, não tava tudo misturado?

- Não, mas tinha muito cuidado, às vez, podia prender, soltar, mas não era tanto. Prender o reprodutor, e botar no seu lote, se você quisesse um rebanho bonito.

- Mas o senhor não fazia isso.

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Com José de Mariá

- Não. Não fazia não, mas como o pasto da gente... Você não me pega em mentira, não, caba!, tá entendendo? Agora, marrã, você tinha que prender, nem que fosse três, quatro dias, pra não pegar cria. Você vicia a marrã de cabra querendo se misturar, quando você tinha que prender ela pra não panhar cria. A marrã de oito meses, um ano, não pode panhar cria, pega porque a gente não tem o cuidado. Raramente, você pode prestar a atenção, você vê a marrã de cabra dá cria e escapar, se não morrer o cabrito e a marrã, que ela não tem condições, ainda. Então é três, quatro dias, que você vê ela naquele cio, aquela coisa, então você pega ela e aparta, que ela não transa e acaba aquele negócio. Depois você solta.

- O vaqueiro e os animais...

- Você quer até interpretar Nosso Senhor com Zé Buchudo...

- O vaqueiro tava no maior aperreio com o gado dele, o gado com uma fome desgraçada, ele sapecando mandacaru, aí chegava três cabeças de gado que ele não sabia de quem era, morrendo de fome. Deixava com fome?

- Não. Eu mesmo cansei de dá de comer, mas dava de comer assim: se fosse uma rês estranha, que eu não conhecesse o dono, nem fosse dali de perto, eu dava de comer e procurava saber de quem era pra avisar seu dono, pra me procurar. Se fosse de perto, eu tangia ele lá pro comedor de seu dono, porque o negócio aqui já não era fácil, já não era mole, pra eu dá de comer a uma rês de um vizinho bem ali e, às vezes, que

nem tava na necessidade, só porque tava em meu comedor... aí eu não dava. Se eu não conhecesse, ou fosse de mais longe, mesmo que eu não conhecesse, eu daria comida e avisava seu dono pra ir procurar. O meu regime era esse. Eu prendi um magote de doze marrão de cabra, lá em meu chiqueiro. Passei onze dias tirando feixe de rama e botando dentro do curral – não tava prendendo gado, botei no lugar mais seguro, botava no cercado de arame, eles saíam. Eu botava rama e essa Mariazinha (esposa) botava água, e eu não reconheci. Quando era de manhãzinha ia passando um magotim, marcando pra lá, eu tomei a frente, não conheci, eu prendi. Como era um dia de domingo, eu tirei o sinal dos marrão, vim no sítio de Tizinho, dei o sinal, ninguém conheceu. Gió, vindo pra Curaçá, aí Tinzim mostrou, ele disse: - “Ôxe! Eu sei de quem é” -. Era de Zé Mandacaru (48 quilômetros de distância). Era marrão de cabra, tá ouvindo?

- O senhor fazia isso pelo dono ou pelos animais?

- Então, eu pra beneficiar, fazia isso. Num queria saber se era de Pedro, Paulo, Francisco ou de Martins, eu queria saber que eu fazia o benefício.

- O senhor fazia pelo dono ou pelos animais?

- Eu fazia pelos animais e pela minha invocação, que eu imaginava que eu criava também e podia amanhã ou depois, o meu também sair no chiqueiro ou na fazenda daquela pessoa, e ele ia beneficiar também. Esse cara mesmo da vaca, que eu contei, ele também me procurou quanto era a despesa.

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Com José de Mariá

Eu passei uns três ou quatro dias com ela lá. Eu também não cobrei nada.

- E os outros vaqueiros cobravam?

- Cobram e cobrava muito.Ele mandou dizer a um lá do Santo Antônio, filho de Zezito Preto, que o que visse dele por lá podia deixar - o dono da vaca -, que ele pegou uns garrote dele e trouxe pra Barro Vermelho e quando chegou cobrou mais que o preço dos garrotes. Isso tem uns quatro anos.

- No passado, também o pessoal cobrava?

- Cobrava... cobrava. Cobrava assim, como eu tô dizendo, não cobrava fazenda com fazenda, mas de mais fora um pouco...

- O senhor tinha cobertura no chiqueiro das cabras?

- Tinha, mas eu fazia de palha de licuri.

- Mas muita gente não tinha. Vinha a chuva à noite, a criação se molhando... Por que as pessoas não tomavam providência para fazer cobertura?

- Por você falar isso, uma dia nós tava numa reunião e Salvador falou sobre o pai dele. Disse que tinha parido uma ovelha e tinha chovido muito e a ovelha amanheceu no canto com o borreguinho debaixo da barriga, tremendo, e ele brigando com o pai: “Pra que não pegava aquela ovelha e não botava num reservado pra bichinha não panhar chuava?” No mato, o pessoal criavam, antigamente era como Deus criava

batata na beira do rio. Eles não tinham muito cuidado também não. Eu não sei como rendia tanto naquele tempo, quem tinha, porque o cuidado era tão péssimo, tão mincho e o valor também era pouco e o criatório rendia. Principalmente o bicho que você prendia pra pegar a produção, porque no mato o bicho se antepara debaixo de um pé de pau. Ele se molha, mas não é tanto. Você não vê uma cabra, uma ovelha passar uma chuva deitada, não! Sempre fica em pé, principalmente se tiver a cria pequena, que a cria fica sempre debaixo da barriga. Ela quer anteparar o filho, só que a casa é pouco. Muitas vezes o bicho resfria, que enfraquece que chega a morrer. Se você não tiver cuidado de dá um café quente de manhã, uma coisa assim ele chega a morrer.

- O senhor conhece algum curral coberto?

- Não. Você quer comparar couro de gado com couro de ovelha, com couro de bode? Aí você me fez uma pergunta doida da porra. O couro de gado é muito grosso e além disso – o que eu penso, posso até tá errado – o gado não segura molhação no lombo, que o pelo é curtinho, sacudiu a água caiu, e a ovelha com aquela lã molhada? Eu acho que deve ser por aí, se não for é bem parecido.

- Conversando... e também eu me lembro, nos anos verdes rendia os animais. Eu ainda me lembro de muito animal no mato. O sujeito ficava com um chiqueiro de mil ovelhas, vinha uma seca, morria quase tudo, ficavam duzentas. Por que o senhor acha que o pessoal, quando tinha muita ovelha, não vendia pra pegar o dinheiro?

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Com José de Mariá

- Rapaz, sei lá. Aquele tempo, além de ser muito atrasado, existia aquele carrancismo de só vender carneiro, de não querer vender ovelha. Só vender carneiro para Itabaiana e o preço era muito mincho, eles não queriam desbastar as fêmeas do pasto. O povo só queria vender carneiro, agora eu não sei explicar porque não queriam vender ovelha.

- E faziam o quê com as fêmeas velhas?

- Devia vender alguma ou então morrer de velha.

- Vamos falar do senhor. Com quantos anos o senhor vendia uma cabra ou uma ovelha?

- É muito simples, o máximo que ela poderia durar comigo era nove, dez anos de nascimento.

- E aquela cabra que tinha dado dez crias, e que dela surgiram quarenta?

- Porque ela tinha me dado quarenta cria, eu ia deixar ela morrer no pasto? Não, que o que ela tinha que me dar já tinha me dado, que existe um dizer dos mais velhos – que mesmo que eles num fizesse -, mais besta era quem deixasse a besta morrer na porta. Isso eu aprendi também com Juvino. Juvino não era dessa gente, não, de ficar... porque tinha estima deixar ficar velho demais na fazenda. Não, com ele chegou a idade, o que tinha de dá já deu. A cabra ficando velha ela enfraquece, a cria fica pequena e vai indo até começar a cair

os dentes. Com 14 anos a tendência dela é enfraquecer e morrer porque não pega mais comida.

Zé de Mariá (Agosto/2005)

- A carne de uma cabra assim era muito dura.

- Uma cara nos aconselhou, em um curso que eu fui fazer na fazenda Formosa, que um bode, entrou na era de ano, pode

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Com José de Mariá

vender, não deixe bode véio como Miru véio que deixa passar quatro, cinco anos.

- Qual é o serviço de contrato de vaqueiro, qual é a obrigação de vaqueiro quando ele vai trabalhar em uma fazenda?

- Bom, aí vai depender das ordens do patrão. Eu acho que o vaqueiro não tem serviço determinado pra ele chegar e fazer na fazenda. Ele tem que receber as ordens do patrão. Se vai campear, se vai tomar conta daquele criatório... Agora ele vai fazer o que tiver dentro da obrigação dele: é cuidar da cerca do chiqueiro ou do curral pra não deixar cair, fincar um pau no meio do curral pra passar uma rês, ajudar a puxar entulho da cacimba, dá água ao criatório, arranjar comida no mato no tempo de seca, consertar cerca do cercado onde ele prende os animais, curar bicheira, cortar rama de juazeiro, cortar e sapecar mandacaru, campiar, juntar os animais. O que não é da minha obrigação o patrão tem o direito de pagar por fora da sorte.

- Os patrões moravam nas fazendas?

- Hoje em dia é meio difícil. Naqueles tempo tinha o vaqueiro, mas os dono moravam tudo nas fazendas.

- Como era a peleja do vaqueiro quando o dono morava na fazenda?

- Às vez o fazendeiro infernizava a vida do vaqueiro. O vaqueiro sempre é empregado e o patrão... Um exemplo: Mané de Pio era vaqueiro de Juvino Ribeiro. Foi pro mato –

tava numa pega de boi - tava montado num cavalo bom, correu com um boi, botou no mato. Chegou na fazenda, disse a Juvino que tinha corrido com o boi e tinha botado no mato. Juvino, que gostava de dar esporro... : - “Mas seu Manoel, como é que se bota um boi no mato amontado num cavalo desse!” - Aí ele disse: – “Seu Juvino, casa de boi é no mato e se bota boi no mato é montado de cavalo, que ninguém vai botar boi à pé!” - A coincidência dele ter respondido mal porque Juvino provocou. De vez em quando sempre tem, não tenha dúvida.

- Quais são as fases do gado.

- Bezerro, garrote, novilhote, boi de ano. Um boi de ano tem quatro anos, um boi de dois anos tem cinco anos. Boi de era é boi de dois anos. Chama de era porque já é a era de se vender. Pras fêmeas é bezerra, garrota, novilhota, novilha de ano, aí ela vai produzir a partir de novilha de ano e passa a ser vaca. Raramente a novilha de ano dá cria. A novilha de ano só dá cria se ela panhou cria em novilhota, aí não é bom. Agora ela panha cria em novilha de ano e vai dá cria na era de dois anos.

- E com os cabritos e borregos, como é?

- Êta, cacêta, agora eu me lasquei! Aí só tem três fases: é borrego, marrão e carneiro de ano. Cabrito, marrão e bode de ano.

- Pra dá pele, um animal tinha que ter quantos palmos no lombo?

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Com José de Mariá

- Olha, a medição do pé do cabo pro pé das pontas são quatro palmos. Um palmo tem 22 centímetros.

- Hoje ainda tem essa exigência?

- Tem não. Hoje, qualquer marrãozinho tá dando pele porque hoje não espicha mais. É tirar o couro e salgou jogou pra lá...

- Isso é bom?

- Sei não. Eu não gostei, não. Aí é bom pro preguiçoso, não vai tirar vara pra espichar, o sal é mais rápido. Ultimamente, pra mim, não foi muito bom não. Bom porque muitas peles que apresenta bixiga, como a agente chama, isso aí vai de rolo. Não tem mais aquela exploração que tinha. Uma pele não passava e hoje com sal tudo tá passando. Eu não sei porque eu não apreciei muito, não.

- O pessoal está usando cortar a parte da cabeça, não tá?

- Esse aí foi o pior... foi cortar a cabeça, tirar as orelha, tirar o sinal, porque aí o malandro se faz. No Patamuté, um ano desse, proibiram. A pessoa tinha que levar a pele, porque lá levavam a carne com a pele sem a cabeça. Depois, devido aos roubos, eles proibiram. Queriam que levassem a carne e a pele com as orelhas, aí a carne no açougue diminuiu.

- Quais são os bichos que mais matam cabritos?

- É a raposa. A raposa ataca até um mês a dois meses. Algumas cabras enfrentam a raposa, mas se a cabra tem dois cabritos e a raposa tira um fora, ela não consegue defender os dois. Ela defende um, mas o outro a raposa come. O carcará também é danado. O primeiro pedaço que ele come é a língua do cabrito, aí mata. O carcará ataca mais é quando o cabrito é novinho. O urubu é danado pra matar quando o animal está atolado. Urubu ataca cabrito no mato. Lá mesmo no Morro Branco, tanto eu corria do cercado pro chiqueiro como eu corria do chiqueiro pro cercado, porque o urubu matava. Juvino me pagava cinco mil réis pra eu matar o urubu e mostrar a cabeça. Matei muito urubu pra defender os cabritos. Qualquer facilidade que a gente tinha o urubu matava o cabrito. A raposa... a raposa ataca borrego também, mas não é muito, não sei por quê. Urubu ataca borrego também, quando ele é novinho, novinho. É difícil a ovelha defender o borrego. O gato pega ambas parte, borrego e cabrito, mas é mais danado pelo borrego já grande, já marrão, de três meses a quatro meses ele ainda pega, o gato marisco. É difícil o gato pegar o borrego molezim, mas com dez, quinze dias de nascido o gato pega. O cachorro também ataca, mas só que o cachorro raramente pega esses bichinho novo assim, ele pega já cabra, já ovelha.

- Bicheira mata muito?

- Mata, se você não tomar cuidado. Tem tempos que a bicheira mata mais que esses outros bichos. No tempo que a malva fulora muito é o tempo que tem mais bicheira. O tempo da flor da malva é o tempo de mais bicheira e é tempo de mais mosca. A mosca pôs a vareja no imbigo do cabrito, você não

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Com José de Mariá

deu fé, logo de imediato... Por isso a gente deu pra usar, depois desses cursos que a gente teve... aprender a cortar o imbigo e queimar logo com iodo, pra mosca não pôr bicho, porque ali, mesmo que você pegue e cure o imbigo é danado pra encarangar, e depois que encarangar, para escampar é o maior trabalho... a criolina ou benzocreol encaranga.

- Quais são as doenças que mais atacam cabritos e borregos?

- Rapaz, novinho assim, tirando da bicheira, é mais difícil. O que mais mata, principalmente em nossa região é o verme e o piolho. A reira só ataca proveniente do verme. Esse negócio de reira tá acabando o criatório. Pode verificar que ela tá atacando através de um tipo de verme. É muitos verme. É muitos tipo. Ele dá a reira, ele incha a papada... Agora tem outra moléstia lá que é o mal da venta. Essa disse que não tem remédio, que não escapa de jeito nenhum. Cria uma ferida e vai tomando até que chega a matar o bicho. É raro. Não é como o verme. Agora também tem o piolho. O piolho é o cão pra matar. É o butox, que até também usa para combater a mosca do gado. Tem um pó azul, que a gente compra nas casas veterinárias, que você pega a criação e sameia aquele pozinho do pé do pescoço até o pé do rabo, bem no espinhaço. Tinha tempos lá, que cada fio de cabelo da criação ter dez, doze piolhos, aí mata e mata ligeiro. O bichinho já não tem muito sangue, o piolho chupa o sangue e o bicho enfraquece.

Festa dos Vaqueiros (1999) com sobrinha Carla no cabeçote.

- O senhor falou que os animais de raça são mais moles, que não conseguem resistir na caatinga como os pé-duros. Qual é a vantagem desses bichos raçados?

- A vantagem é só o mimo. Tem aquela boniteza, tem mais valor... Vamo dizer assim, que nem Tizinho... Ele tinha vinte cabra raçada... mas raçada, raçada demais do bicho comer caminhando e o bicho arrastar as orelhar chega saía ferida. Então um marrão daquele tinha muito valor, mais valor do que dois ou três animais dos meus. Então ele tinha condições de criar menos e mais valorizada do que eu criar muito pé-duro e o valor era menos. O que eu dava de comer a cinco, seis criação das minha, pra sobreviver ele dava a uma dele e criava forte e tinha mais valor.

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Com José de Mariá

- O senhor acha que ele tinha resultado melhor do que o senhor?

- Eu acho que tinha porque a despesa era menos. Com um saco de milho ele daria de comer dez cabras muitos dias, e se meu número fosse maior o saco de milho só daria uma semana.

- O senhor andando no mato, etecétera, etecétera, em algum momento parava para olhar alguma coisa bonita no mato?

- Não... Não. Principalmente que a gente nascido e criado lá, acostumava com tudo, não admirava nada. A única coisa que a pessoa admirava, tempo de chuva, tempo de muita chuva, era ver água no riacho. Era correr muita água no riacho, aqueles rebolos de pau, aquela coisa assim, a gente ia pra beira do riacho pra olhar, mas não tinha nada de admiração, não. Tudo era comum, tudo era natural. Não tinha previsão da gente se admirar de nada, não. Caatinga é caatinga. Se era verde era verde, se era seca era seca. Aquilo tudo a gente era aclimatado naquilo, não tinha admiração.

- O que era a coisa que chamava a atenção de vocês, lá, no tempo do senhor rapaz, acontecimentos...?

- (pausa) Sei, não. Procurei, procurei, procurei e não encontrei não.

- Qual era a vantagem desse povo que ia para São Paulo e voltava dois ou três anos depois?

- Nenhuma. Se ele fazia um pé-de-vida lá, arrumasse qualquer dinheiro e chegasse aí e aplicasse, fosse trabalhar com o que é dele e tudo mais, ainda tinha o fácil, mas se ele ia lá, e comprava só um uniformezinho, um paletozinho lascado atrás, e quando chegava passava dois, três mês, precisava de vender pra voltar, pra mim não tinha futuro. Sou mais eu com minha calcinha de pano de saco. Não adianta eu lhe falar essa história, porque não existe mais saco, você não entende. Era um pano que mamãe comprava, saco, e lavava e fazia roupa pra nóis andar lá pelos matos. Era comum as pessoas usarem - fazia calça e camisa. O sogro de Miru cansou de ir pra Barro Vermelhor fazer feira vestido numa camisona de saco.

- Quantas calças dessas o senhor tinha?

- Quando uma tava rasgando mamãe fazia outra. De cada vez era uma ou duas pra gente andar lá no mato. Quando era pra sair nóis tinha outra calça, uma calça de sair. Naquele tempo tinha aquele mescla preto, tinha azul, tinha o caque... Eu gostaria muito de uma roupa de caque, mas naquele tempo nego suava pra comprar uma roupa daquela, daquele pano, pra mandar fazer era caro, não era a facilidade que hoje tá, que hoje nós temo. Hoje existe é falta de dinheiro, mas as coisa tá aí, mais fácil.

- Vamos ver uma coisa aqui: xiquexique, macambira, seca. Vinha a seca, dava para o gado mandacaru, mas dava também macambira.

- Dava xiquexique, mandacaru e macambira.

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Com José de Mariá

- Como era o procedimento com a macambira?

- A macambira é dificultoso. Quando eu fui vaqueiro no São Gonçalo, eu tirei muito pra dá a gado, pra dá a meu burro da sela... A gente queimava muita macambira no mato e o gado aprendia a comer, mas acontecia engasgar muito com aquela garra, com aquele espim. Era preciso a gente tá dando cuidado, desengasgando. Aquilo apregava no céu da boca, na língua, aqueles espim danado e o bicho não podia tirar. Já pra nós dá pro gado do curral e pra nossos animais, nós arrancava, levava o enxadete, arrancava um bocado, arrumava em cima de uns garranchos, botava outros garranchos por cima e aí a gente tocava fogo. Enchia os caixão e botava no jumento e trazia aquelas batata redonda, aí a gente chegava em casa, botava em cima de um cesto e picava o facão pra riba, ia cortar. Lá no mato a gente queimava a moita pro gado do mato, mas só que queimando aquela moita, não queimava bem queimado. Aquela folha do olho acontecia ficar, e era a primeira que o gado pegava. Queimava a moita e o gado que se virasse pra lá.

- E o xiquexique.

- Da mesma forma. Queimava as moitas e o gado comia nas moitas.

- Como era a caatinga no tempo do senhor rapaz, em termos de vegetação?

- Era mais. Era mais. Hoje tá muita acabada. Olha, tem trechos, lá, de terra, que você, vamos dizê assim, daqui a 600

metros, você conta a árvore viva que tem. A outra morreu toda, principalmente a jureminha, a jurema preta, a candeia, o angico... O angico... a gente lá tem um serrote que a gente chama serrote dos Morro, se você andar lá e olhar o angico morto que tem, você diz que foi até uma doença, mas não é. É a seca. Lá só vem resistindo mais essas árvores grande: o imbuzeiro, por causa da batata, a imburana, o imbiraçu, essas árvore assim, mas essa caatinga pequena, no lugar que era caatinga tá tabuleiro, tá carrasco. Por isso eu digo: hoje tem muita diferença. O carquejo...

- Quantos pés de xiquexique o senhor já plantou?

- Não.

- E mandacaru?

- Se você for no meu sítio, você conta, talvez, de cento e cinqüenta a duzentos pés de mandacaru. Causa admiração. Minha menina mesmo, cansa de ir com a caminhoneta pra trazer aí pra fazenda dela. Eu carreguei cargas de mandacaru novo de cima da serra da Borracha pra plantar aí. Muita gente planta o galho, mas eu não gosto de plantar o galho. Pega, mas é difícil desarnar, agora o mandacaruzinho novo você pode plantar que ele pega ligeiro e progride ligeiro.

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Com José de Mariá

- Quando vocês queimavam as moitas de xiquexique e de macambira não ocorria que vocês estavam acabando também?

- Ninguém olhava pra isso, que tinha muito. Além de ter muito a gente queria salvar o criatório. Você não já ouviu dizer que quando Deus toma a dentadura enlarguesce a guela? Então nós queria salvar o criatório. Se caso aquela ração se acabasse, Deus mostraria outro recurso. Ninguém ficaria em abandono, e logo lá, Ave Maria!, a macambira era demais. A gente nem pensava... Logo era a mando dos patrão, donos das terra...

- O senhor não falou de seu pai.

- Eu sou filho de mãe sem pai. Minha mãe era solteira, não fui criado com meu pai. Meu pai faleceu há muitos anos. Eu não tive quase contato com ele, então por isso eu pouco falo. Não tenho história nenhuma a contar dele.

- O senhor falou que trabalha desde novinho. Era muito comum pessoas novas trabalharem como o senhor trabalhou?

- Não. Só que o pessoal, naquele tempo, trabalhava mais do que hoje. Procurava trabalhar, fosse de que jeito fosse, fosse no que fosse. Procuraria mais trabalhar naquele tempo do que hoje. Hoje, a mocidade, principalmente, não queem mais trabalhar, não quer mais ser cativo como a gente foi, porque eu comecei a trabalhar ainda muito novo e via as condições

de minha mãe e eu tinha que... Meu instinto era trabalhar pra ajudar ela. Nós era oito irmãos, cinco mulher e três homes.

Eu tenho um valor comigo,De dá valor ao nome que a parteira me deu.Isso eu honro com respeito.Quando eu nasci o povo perguntaram a ela:O que é? Homem ou mulé?Ela disse: - É home!E é nessa que eu estou,Até o fim do bagaço.

- Caças. O senhor falou que havia muitas caças.

- Você ainda pode ver um seriema cantando encostado à Moça Branca, que Salomão é fogo! Não deixa caçar. Mas nos outros lugares é difícil. Seriema, canganbá, tamanduá... essas coisa tá em extinção.

_________________________

CONTINUAÇÃO: 03-08-05

Zé de Mariá, olhando para a relação de perguntas esboçadas no caderno:

- Endoidou! Endoidou agora! Eu lhe garanto que se você não se aborrecer comigo, que eu com você... pra mim tá sendo uma instrução, tá sendo ótimo.

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Com José de Mariá

- A gente parou, conversando sem gravar, nos sinais dos tempos, os sinais que diziam quando ia chover, quando ia fazer seca... Como o senhor sabia quando o ano seria bom de chuva?

- Sem ser tempos das chuvas, tinha uma barra que apresentava na frente da lua, na lua cheia do mês de outubro. Se vinhesse uma barra na frente da lua, quando a lua nascesse no dia de lua cheia, a gente considerava um ano bom. O ano que vinha ia ser bom. Era uma previsão que a gente já tinha. As outras previsões era o inverno que fosse apagar a cinza da fogueira de São João. Se a lua nascesse limpa, sem a barra e se não

chovesse na fogueira, aí a gente já contava por certo que o ano ia ser ruim, de pouca chuva, de pouca safra.

- As chuvas começavam em que mês, normalmente?

- Começavam no mês de novembro, ia até março, até abril. Abril ainda tinha trovoadas cheias.

- Quando as chuvas começaram a escassear?

- Olha, eu tenho lembrança, que até 60 foi aquele chuveirão, mas de 60 pra cá o negócio foi diminuindo. Eu não tenho a lembrança de quando diminuiu, vez de ficar três, quatro chuvas por ano. Pra trás ninguém tinha soma das chuvas. Era imendada umas nas outras. Tinha ano ruim, chuva ruim, rareava, uns anos melhor, outros ruim.

- Acontecia de uma pessoa xingar a chuva ou o vento?

- Em nossa região não tinha esse povo não. Que eu conhecesse não.

- E se acontecesse de alguém xingar a chuva ou o vento?

- Eu achava que era ignorânça demais. Era da chuva que a gente sobrevivia. Eu vi dizer que xingavam muito chuva era em São Paulo, mas aqui em nossa região... Não resta dúvida que não tivesse algum desajuizado que falasse essa besteira, mas talvez aquilo não nascesse nem do coração, era só na boca mesmo.

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Com José de Mariá

- Por que desajuizado?

- Porque não respeitava o superior: Deus.

- A caatinga tem um cheiro diferente no tempo de verde?

- Tem. É o cheiro das flores. Não é que o mato, essa coisa, cheira, não. Cheira as flores das árvores. Por acaso, a flor do pereiro mesmo é uma flor cheirosa, de longe você sente. A flor da imbura-de-cheiro é uma flor cheirosa, e as outras flores, que não dá pra você sentir o cheiro, é porque o cheiro é muito lento, é preciso você pegar a flor pra cheirar.

- Existe alguma flor bonita?

- Rapaz.... tem muitas flores bonitas, inclusive, a barrigudeira. A da barrigudeira não é flor que cheire, mas ela é branca, e é grande, de longe você avista aonde tem um pé de barrigudeira pelas flores. Você não conhece ela de longe, pelas folhas, porque os pau tá tudo enfolhado, mas pela flor você destaca dois três quilômetros ou até mais, no tempo que ela tá enflorada, porque a flor é grande, branca e é bonita.

- Alguma vez o senhor estava caminhando no mato, montado, e parou pra olhar uma flor?

- Parava. Parava sim.

- Quando o senhor diz que uma coisa é bonita?

- Quando o cavalo é gordo. Aí eu vou lhe contar a história do cego: Tinha uns home assim, e um cego no meio, aí os home dizia assim: - Ô cavalo bonito! - Aí cego disse: - ... e gordo -. Aí disseram: - Mas você não disse que é cego? Como é que sabe que o cavalo é gordo? – O cego respondeu: - Porque eu nunca vi um cavalo magro bonito.

- Mas assim: o senhor andou muito no mato e tal... Já topou com uma vista bonita?

- Andando no mato, não. Andando no mato tudo é caatinga. A vista bonita é só quando tá verde mesmo, do contrário, não tem vista bonita no mato não, arriscado é você furar a vista.

- Mas não tem nada assim que o vaqueiro pare, olhe e diga: ô coisa bonita, aquela serra... Desponta na lombada de um alto e aparece aquela baixada que o senhor vê longe...

- Aí a pessoa pode dizer: - Ô baixio bom de fazer uma roça! - Pode ser só isso mesmo.

- Como eram as rezas, as novenas?

- Tem a reza primeira, do dia 20 de janeiro, que eu não tô lembrado do santo, depois vem a do dia 19 de março, que é de São José, aí vem a reza do dia 13 de junho, é de Santo Antônio, aí passa pro dia 23 de junho, São João, aí passa pro dia 29 de junho, que é São Pedro e aí passa pra reza do dia 15 de agosto, que é a do Mundo Novo. Por reza eu acho que é só, que eu conheci.

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Com José de Mariá

- Como aconteciam as rezas?

- Na sua casa, ou na minha casa, eu festejava São José, no dia primeiro de março ao dia 19. Durante esses dias, freqüentava gente na minha casa pra novena, mas a maior parte do povo se juntaria pra rezar no dia 19 de março. Era o dia final da novena, e assim por diante continuava as outras.

- Tinha festa depois da reza?

- Não. A festa era só a novena. Novena, fogueira, fogos, a procissão com o santo e terminou, guardou. A procissão faziam em redor da casa, com o santo. Era só isso. Terminava, cada um tomava o rumo de suas casas.

- Arranjavam uma namoradinha lá?

- Não resta dúvida, na beira do fogueira, por ali...

- Como é o cheiro da caatinga, no tempo da seca?

- Êta! Aí não cheira, não. Pega fogo, pega o calor. Tem lugares que recende aquele bafo quente como calor de fogo mesmo. Aí não cheira.

- Aí a alegria é grande.

- Nessa época! Aí é as duas coisa. É alegria e tristeza. Tristeza porque tá na seca, mas se você tá na seca e tem fé em Deus, previne vim as chuvas e ter o verde, mas dentro daquela época não tem muita alegria, não, porque o negócio é sério. Você imagina onde vai tirar um feixe de rama pra dá a uma cabra, a um enjeitado, uma coisa assim, você vai imaginar aonde vai tirar uma carga de mandacaru pra dá a uma vaca, essa coisa. Então não tem muita alegria nessa época não. Alegria, somente quando chove, depois de uns oito dias, quinze dias. Depois a alegria que tinha saído daquele corpo torna a voltar, porque tendo fé em Deus, ali só se espera o bom, mas na seca mesmo você tá em duas expectativas. Você tá esperando o bom, mas não sabe se alcança, tá lutando, e aí não sabe o prejuízo que tem. Às vez você perde até um objeto de muita estima, aí a tristeza multiplica. Ajunta essas coisas.

- Que objeto de estima seria esse?

- Bom, será uma vaca leiteira, será uma cabra bonita, um cavalo de sela, um cavalo bom, bonito, são essas coisas, ou a própria mulher ou um filho. Não tem tempo demarcado pra morrer uma pessoa, mas se você tiver naquele período daquela tristeza, vindo uma dessa multiplica.

- Alguma vez, aconteceu do senhor, andando no mato, parar para ficar olhando, contemplando as coisas que apareciam diante das vistas?

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Com José de Mariá

- Não. Isso aí... Acostumava parar para escutar chucalho de uma rês, de uma cabra... mas num lugar que você é acostumado campiar, você passar, você não tinha... Você já tava aclimatado. Você chegar na sua casa, você só vai chegar... se tiver fechado você só vai olhar o lugar da fechadura. Você já sabe tudo do movimento de sua casa. É idêntica a andar no mato. No lugar que a gente é aclimatado, sabe tudo.

- Quando os senhor parava para escutar o chocalho, tinham cem chocalhos tocando no mato, e no meio desses cem chocalhos, o senhor era capaz de reconhecer cada um, de que animal era?

- Hoje eu não lhe garanto isso não, mas já destaquei até pra mais. É muito difícil até o tom de chocalho que encontre um com o outro. Tem uma diferençazinha de um pra o outro, seja ela qual for. Pra você que tinha seu criatório, quando você fosse comprar o chocalho, já compraria com aquele tom diferente. Eu campiei muito. Quando eu procurava égua, eu procurava à noite, noite de lua clara, porque a vaca de noite tá deitada, e a égua tá comendo. A égua de dia tá em pé, nas lagoas, debaixo dos paus.

- Aí no mato, a gente anda e vê aquele bocado de casa, e a gente vê que onde está a casa é limpo, o pessoal arranca as árvores e faz a casa, porquê?

- Eu acho que aí é falta de mentalidade da pessoa. Ou não quer se dá ao trabalho ou é preguiçoso, que eu acho que todas as casas tem que ter suas plantas.

- O senhor já viu alguma casa com um pé de craibeira plantado na porta?

- Pode ter, mas é muito raro. Eu sei na minha casa que tem um pé de quixabieira que foi nascido e eu zelei.

- E o barulho do mato no tempo de verde?

- O barulho do mato é só o vento mesmo. Até dizem, que a gente escuta, mas eu não sei destacar o que é, que a serra da Borracha tem um tempo que zoa. Amanhece o dia, aquela zoada na serra. É outro sinal também... para o ano o ano vai ser bom, a serra da Borracha tá zoando.

- A gente já falou de curação de bicheira de vaca, de égua... e de cabra e ovelha, a reza no rastro serve?

- Serve.

- E por que as cabras e as ovelhas a gente prende no chiqueiro para curar?

- Aí, meu fio, aí é ou num tê fé ou num confiar em Deus.

- E o senhor, prendia para curar?

- Tudo eu fazia de tudo.

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Com José de Mariá

- Então tinha pouca fé em Deus!

- Não! Quem sabe nessa hora... Eu vou dizer que toda hora a fé é viva? Mas também curava cabra e ovelha no rasto, agora, se eu visse no mato uma criação com uma bicheira, e eu não pudesse pegar pra prender, porque a limpeza vale muito, pra cicatrizar aquela bicheira mais rápido. Mas se eu visse no mato curava no pasto e dava resultado. Qualquer animal sara. De bicheira eu só nunca curei raposa. É bom que isso saia mesmo pra tudo vê (gozação). Só nunca curei raposa porque o morcego nunca mordeu raposa.

- O morcego é um inimigo?

- Inimigo terrível. É horrível. Ele pega no brinco a orelha e no espinhaço. O cabrito, o borrego, o bezerro que ele morder no pé do casco, o bicho tando molezinho, é difícil escapar. Isso eu digo porque tenho experiência.

- O senhor, respondendo sobre a questão das ações do governo para criar novas formas de criação aí no mato, falou assim: - Eu sonho em ver essa mudança dar certo...

- Sim, você falou nessa mudança dos aprendiz, hoje em dia, na caatinga. Eu digo: Espero em Deus que isso dê certo, mas a gente ainda quer vê ainda.

- Mas o que o senhor acha?

- Num sei, não. Num sei. Por sinal num vi ainda nada disso, dessas mudança, como é, como não é... Eu gostaria de ver para crer, que aí a gente poderia tira uma análise pra saber se podia dá certo, se não pode. Tem muitos que entram sem nada num negócio desse, através de Banco. Tem muitos que eu não boto fé. Se ele pegar o dinheiro do banco e não souber aplicar e for se bacanear...

- Se eu for o gerente do banco e disser: - Seu Zé, eu vou financiar o senhor, mas o senhor tem que fazer quatro vacinações por ano, tem que varrer os chiqueiros três vezes por semana, tem que fazer inseminação artificial, tem que lavar os peitos das cabras para tirar o leite... - e por aí eu for -. Tem que aceitar as instruções dos técnicos, etc. O senhor aceita o financiamento?

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Com José de Mariá

- Vai depender das condições do seu empréstimo. O senhor vai me financiar, mas por que o senhor pede primeiro minha documentação?

- Vamos fazer assim: o governo vai dar o dinheiro a fundo perdido, mas vai exigir que faça tudo isso.

- Meu irmão, vou lhe dizer: esmola grande o cego desconfia! (risada) Olhe, essa exigência que você falou, a maior parte a gente já fez, não todas. Não sou homem de mentir. De lavar peito de vaca pra poder tirar o leite, isso eu nunca fiz. Lavar o peito da cabra pra poder tirar o leite, isso eu nunca fiz, porquê? Porque se esse leite, a gente consome ele, a maior parte, principalmente o da cabra, é fervido, se vai pro fogo ferver, qual é o micróbio que o fogo não mata? Então não é obrigado fazer essas coisas. Isso aí é muita catada, é muita exigência. Se você quer me dá esse dinheiro por outros benefícios eu aceito, mas através dessa civilização, eu acho que aí é puxar demais. Se você me dá o dinheiro pra eu fazer um cercado de palma, pra eu plantar palma, se me dá pra eu vacinar minha criação, se você me dá pra eu limpar o chiqueiro, se me dá pra fazer casa no chiqueiro, tudo bem, eu aceito, agora esse negócio de civilismo não dá comigo, não.

- Por quê?

- Porque não dá. Porque aí é passar do limite. Aí você passa de meus limites.

- Por que o senhor não ficou, na fazenda Morro Branco, com a sorte que o senhor ganhou e continuou trabalhando de vaqueiro, com a sorte lá.

- Não. O dono da fazenda não aceitava você criar na fazenda dele. Você tinha que tirar seu criatório, principalmente se eu ficasse lá. Não resta dúvida que como eles gostavam muito de mim, ele com a família, eu até tinha ficado olhando. Mas eu saí porque eu ia me casar.

- Mas se o senhor continuasse vaqueiro lá, o dono aceitaria que o seu criatório ficasse lá?

- Continuava olhando o que era dele e o que era meu.

- Os outros proprietários aceitavam que seus vaqueiros fizessem isso?

- Enquanto eles tivessem na fazenda. Saindo da fazenda, saía com o criatório.

- Como convivia o vaqueiro com o dono da fazenda, normalmente?

- Rapaz, a relação do vaqueiro com o patrão e do patrão com o vaqueiro, era muito simples, pelo menos a minha, que quando eu cheguei na fazenda, eu pedi a meu patrão que me desse minhas ordens. Suas ordens é a seguinte: você vai ser vaqueiro da criação, vai botar no chiqueiro, vai entregar a produção, vai se unir com os outros vaqueiros vizinhos pra campiar, e essa coisa assim. Pronto. Dali pra frente eu não

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Com José de Mariá

esperei mais. Eu já sabia qual era a minha obrigação, não esperei mais que ele me desse outra ordem. Amanhecia o dia, eu já sabia qual era minha obrigação, não esperava mais, a não ser que ele me chamasse assim pra fazer outra coisa independente da vaqueirice: uma viagem, pegar uma rês fora, que ele comprava, mas o contrário, não.

- O vaqueiro comia na casa do patrão?

- Por coincidência, se ele não tivesse família, como eu que era solteiro nessa época. Comia na mesa com ele. Não tinha problema.

- Abatia do ordenado?

- Não.

- E um trabalhador por dia. Por exemplo: o senhor é dono da fazenda e me chamava para ser trabalhador durante um mês. A comida era por conta de quem?

- Dependia do contrato. Você vai me trabalhar uma semana, aqui. Você vem a sua custa ou a custa da casa? Se vier a custa da casa eu daria a despesa, se vier a sua custa você arca com a despesa.

- Esse trabalhador que aceitasse trabalhar à custa da casa comia aonde?

- Comia em minha casa com minha família.

- Se um vaqueiro tratasse mal outro vaqueiro, mesmo que não fosse da fazenda, o que acontecia?

- Aí o patrão tinha que chamar ele... Não era muito assim pra ter uma... Existia mais união do que desunião, naquela época. Não sei nem responder isso, porque não ocorria! Mas, se por acaso, existisse isso, tinha aquele bate-boca pra lá, o outro vinha pracá pra sua fazenda, não tinha nadas a ver. Com o tempo, amanhã ou depois, até em uma novena, em uma festa, tornavam fazer as paz através de uma dose de cachaça.

- Mas se um vaqueiro xingasse outro de corno, por exemplo?

- Rapaz, aí você tá aprofundando demais coisa que nem existia. Se chegassem a brigar mesmo, aí era outro negócio.

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Com José de Mariá

Da esq. para a dir.: Carlos de Fia, Luís de Jacinto, Zelito (ao fundo), Zé de Mariá e Zé Preto. (Foto: Totó – Maria de Lourdes Moreira – 1980)

- E se um vaqueiro xingasse o patrão?

- Aí não daria certo. O patrão botava pra fora.

- E se o patrão xingasse o vaqueiro?

- Se ele fosse errado se conformava com o nome do patrão.

- O senhor era vaqueiro de uma fazenda, qual era a diferença de tratamento que o senhor dava para o vaqueiro de outra fazenda e para o dono dela?

- Tratar com humildade, todos dois, o que fosse possível. Se desgostasse, quem taria perdendo? Quem taria perdendo era eu, porque o outro vaqueiro não ia me beneficiar. Por acaso andasse no mato, visse um bicho meu a falta de benefício... eu tinha desgostado ele, jamais ele ia me beneficiar.

- Ele deixaria o bicho morrer lá?

- É claro! Eu vou dá asa a cobra, eu vou alimentar cobra pra depois ele me morder? Mas o mais é que eu tinha que tratar com mais humildade pra não perder a amizade e a camaradagem e principalmente o benefício.

- Se eu fosse no mato, e visse um bicho doente, o que eu deveria fazer?

- Se por um acaso, você não pudesse prender ou amarrar, sua obrigação era chegar em sua casa e mandar me avisar: em ponto fulano eu vi um bicho assim, assim...

- O bicho era do cara com quem eu tinha me desentendido... Aí eu fazia o quê?

- Você mandava avisar ao patrão. Você se desentendeu mais o vaqueiro, mandava dizer para o patrão.

- E se eu tivesse me desentendido com o patrão?

- Mandava dizer ao vaqueiro. Você não tava com o diabo pra ter brigado com os dois!

- Por que uns eram fazendeiros e outros eram vaqueiros?

- (riso) Sabe por que eu fui ser vaqueiro no Morro Branco? É porque eu não tinha gado e eu queria adquirir a semente e não podia comprar. Por isso eu fui ser vaqueiro de quem tinha. Era por isso.

- Mas, por que havia uns ricos e outros pobres?

- Aí você vai mais longe. Você tem que pegar uma escada bem alta pra ir no Céu perguntar a Deus, que foi ele quem deixou o tempo, que eu alcancei desse jeito e nunca achei que me destacasse.

- Se um vaqueiro brigasse e fosse preso, ou fosse ameaçado de morte, como se posicionava o patrão dele?

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Com José de Mariá

- O patrão tinha o direito de punir por ele. Mesmo que o vaqueiro tivesse errado, mas ele era seu vaqueiro. Você tinha estima por ele, trabalhava e dava gosto na fazenda, porque passou do limite, você não era obrigado a castigar. Você chamar ele, tinha que punir na justiça, na lei, mesmo que não desse direito, mas que defendesse e depois, chamar ele, dá conselho a ele, pra ele não fazer mais aquilo que tinha sido errado. O patrão tinha que tá ao lado do vaqueiro. É idêntico você tá ao lado de seu filho. Mesmo sendo errado, mas é seu filho. Terá momentos que você não pode dá uma certa ousadia na vista dele, mas tem que chamar ele à responsabilidade. Você não faça mais isso que você tá errado, mas só que na justiça, você não vai deixar a justiça pegar e prender e maltratar. Isso a gente não se sente bem. É o mesmo caso do patrão com o vaqueiro. Só depende do vaqueiro vindo trabalhando, dando gosto ao patrão.

- E se o patrão entrasse em uma enrascada de briga, como é que ficava o vaqueiro?

- O vaqueiro não entrava também não? Entrava. Entrava pra punir pelo patrão, que naquela época que acontecesse isso, ele podia imaginar o patrão dele tava servindo de pai dele. Tava dando o ganho, tava dando o alimento, tava fazendo tudo por ele, então tava no lugar de pai. O vaqueiro entrava... Eu vi caso de o caba meter o facão na cabeça de outro pra despencar a orêia com o ombro, por causa da briga do cara com o patrão e o vaqueiro chegar, entrar e fazer essa perversidade, e o patrão assumir tudo o que o vaqueiro tinha feito.

- De vez em quando tinha umas furadinhas...

- Umas furadinhas... tinha. Você tá puxando coisa que eu não podia conversar, mas o bicho é nó cego. Lá mesmo tinha um rapaz que gostava de beber umas cachaça e gostava de fazer briga, bagunça, essas coisas assim, e outro cara, pobre, mas violento. Aí sentou a faca no outro, quase as tripas saíram de arrasto. E aí, como o rapaz era desmantelado também, o pai teve que tratar foi da furada do filho. Não castigou o cara que deu a furada.

- Mas em um caso desse, de vez em quando tinha vingança.

- Tinha.

- Como eram as festas?

- Eu não freqüentava, eu não sei dizer.

- Mas de vez em quando tinha uns tapinhas nas festas?

- Tinha uns tapinhas, umas coisas, mas tudo era cachaça, lá mesmo se acabava.

- O que era um rico, quando o senhor dizia que uma pessoa era rica?

- Eu conheci poucas pessoas. O rico era aquele que se destacava, era um político. Era rico porque sabia ler e escrever, era rico porque tinha dinheiro, era rico porque tinha

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muito criatório, tinha sua boa fazenda... Era as três finalidades que o rico tinha. Você num encontrava um rico montado num jegue, era num burro, burro bom de sela, e o pobre era montado num jegue. O rico andava à paisano. Quando você avistava numa estrada dizia lá vem um homem e um vaqueiro. A roupa do rico era... sempre usava linho, roupa mole. A roupa do pobre, quando acontecia era uma roupa de mescla azul ou escuro, a não ser outra fazendinha mais fraca ainda. O rico sempre usava paletó, paletozim lascado atrás.

- O senhor falou que algumas pessoas usavam roupa de pano de saco ou essas roupas mais simples. Como uma pessoa que usava uma roupinha bem simples, se sentia, quando ia à festa de Barro Vermelho, diante do pessoal bem vestido?

- A roupinha de saco, ele usava pro trabalho dele. Ele tinha sempre sua roupinha mais bonita, melhor, pra ele se representar numa ocasião dessa. Não era três, quatro muda de roupa, mas sempre tinha. A pessoa se sentia normal. Se o senhor com o seu paletozinho lascado atrás, porque podia, eu ia com minha camisinha de ana-ruga - que tinha uma fazenda que chamava-se ana-ruga. Eu me sentia do mesmo jeito, só que eu ia procurar minha classe, meu tipo que tivesse

os meus vestes. Eu não ia lá pro meio desse pessoal, que ali não me cabia.

- Em Barro Vermelho tinha festa e lá tinha um clube e no clube iam as pessoas de mais destaque. As pessoas como o senhor freqüentavam esse clube?

- Não.

- E se fosse, entravam?

- Não sei. Não tenho esse teste, porque eu, de mim, já me corrigia e via que ali o ambiente não era pra mim, era um ambiente pro pessoal que tinha oposição. Se tivesse outro forrozinho ali na ponta da rua tocado por Dedê, então aí eu ia.

- E no mato, como é que cortava cabelo?

- Tinha cabelereiro no mato.

- E o material que os senhores usavam como guiada, chapéu, sapato, roupa, panela, etc., como é que se virava?

- Aí era o ferreiro em Barro Vermelho. Tanto fazia espora, como bico de ferrão, essas coisas. As selas vinham de Santa Rosa, agora a perneira, o gibão, alforje, guarda peito, isso meu sogro mesmo fazia, e eu ainda aprendi um bando de coisa. Tinha gente que também fazia sela em Curaçá. Panela, tinha as loiceira. As costureira eram menos, mas sempre tinha também.

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Com José de Mariá

- Como se sentia uma família quando um parente dela fazia uma coisa errada?

- A gente tinha que se reunir, chamar no eixo que tava errado. A gente não aceitaria aquela proposta, aquele negócio. Qualquer pessoa que tivesse mais autoridade, mais compreensão, que entendesse mais, aí era o primeiro a se juntar pra dá em cima dele. Então esclarecia aquele cara que tivesse fazendo coisa errada.

- Se um membro da família roubasse um bode?

- Aí era um caso triste, porque se a família aconselhasse pra ele não fazer mais a que ele ficasse no local, os vizinhos dava em cima, que não aceitavam ele ali. Aí a gente tinha que fazer o quê? Ajeitar o dinheiro pra ele se retirar daquele local.

- E se um rapaz de uma família matasse outro?

- Como era difícil, naquele tempo! Era uma novidade! Mas aconteceu. Aí a família do outro ficava traquejando pra pegar, pra prender, pra matar. Ele tinha que se retirar escondido, fugido pra bem longe.

- Como era o comportamento dos jovens diante dos pais e dos mais velhos?

- Era muito diferente. Como eu tô conversando com o senhor, e um filho meu chegasse para tomar conversa... abastava eu

olhar pra ele assim pra ele se retirar, porque hoje não tão nem aí. Se o pai desse uma ordem a um filho... ai dele se não obedecesse. Se não obedecesse era peia. Podia ter a idade que tivesse. O filho compreendia que não podia dar no pai. O pai é que podia dá no filho.

- Uma mulher era comadre do senhor, e o senhor era solteiro, podia namorar com ela?

- Naquela época não podia, não, era compadre.

- Como era a quaresma?

- Você jejunhava na Quarta-Feira de Cinza, que é o início da quaresma. Então, se você jejunhasse na Quarta-Feira de Cinza, não jejunhasse na Semana Santa, dizia os mais velho que tava feito o jejum, mas se não jejunhasse, você tinha que jejunhar todas as sextas-Feira e quarta, quinta e Sexta-Feira da Semana Santa. O jejum era num comer nada da manhã a até meio dia, e meio dia comer como jegue. Meio dia aí, a mesona composta de um tudo. Aí você tirava o atraso. Aí eu não aceitaria nem isso como jejum.

- E esse um tudo na mesa, era o quê?

- Agora, deu! Era o peixe, feito de muito tipo, e era o feijão, o arroz, o macarrão, a verdura, a melancia... na quarta, na quinta e na sexta-feira. Sábado de aleluia, botava a farinha numa cuia e assava um bom pedaço de bode pra comer.

- Qual era a comida normal de uma família.

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Com José de Mariá

- Era o feijão, o arroz, a carne e a farinha. O arroz nem era muito normal, não, mas o feijão, a carne e a farinha, isso era todo dia.

- Tinha muito rezador por lá?

- Era pouco. Eu conheci uma velha, Pedrina... Essa rezava. Rezava da doença que você pensasse e surtia efeito. Ela rezava até distante. Você tava doente lá no seu lugar, e diziam qual era a doença, você fosse lá, ela rezasse, ela precisava rezar duas vezes, não carecia você ir lá que de lá ela rezava. Tinha um velho, chamado Zezim Barriga Preta. Esse rezava pra muitas coisas, principalmente mordida de cobra. Se ele soubesse onde a pessoa tava mordido de cobra, ele de cá rezava e aquela pessoa escapava. De rezador famoso eu só conheci esses dois.

- Feiticeiros.

- Não conheci.

- Quando sumia um bicho, qual era o recurso que vocês usavam?

- Esperava a notiça. Se o ladrão não pegasse ou ele não tivesse morrido, saía notiça. Era mais fácil a gente sair naquelas feiras de Barro Vermelho, Poço de Fora... procurando aqueles vaqueiros daquelas fazendas, tirando inscrição. Se fosse vivo aparecia. Não tinha negócio de ir puntá feiticeiro pra descobrir essas coisas, não.

- Caipora.

- Essa eu nunca vi, não, mas tinha. Essa eu sei que tinha porque eu vi dois exemplo. Um, porque pegou um cachorro meu aqui nos pés meu, de noite, e deu-lhe uma pisa do cachorro mijar. Naquela noite, a gente não sabia o que ela queria, não fizemos nada. Naquela noite ninguém pegou nada. Cachorro vinha correndo com tatu, passava aqui nos pés da gente, o cachorro começava latir, acoado sem ter boca de buraco, sem ter nada.

- Como era amansar bezerros?

- Amansar o bezerro. Era pegar o bezerro com a vaca, trazer pro curral e amansar o bezerro, pra ele adomar, que ele não conhecia benefício nenhum. Você tinha que amarrar, ir alisando, pra ele ir adomando. Dependendo da natureza do bezerro... Tinha uns mais danado de passar oito dias, dez e até mais amarrado e tinha outros que a gente amarrava três, quatro dias e já tava domado. Isso vai de natureza.

- O senhor falou da capação, mas não ficou bem claro como era isso. O senhor disse que o fazendeiro juntava os touros no curral e marcava o dia da capação. Os vaqueiros que sabiam dessa história vinha, por farra. Os touros tão presos, aí soltavam os touros. Qual era a distância que vocês davam para o touro correr?

- Bom, da saída do curral uma distância assim de cem a duzentos metros. Era a distância de derrubar o touro pra

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capar. Saiu da porteira do curral já saía no pega, não pega. Derrubava o touro, capava de faca e serrava a ponta e soltava. O mês de capar era agosto, setembro. Abria o saco, tirava a fava, cortava, batia e dizia: boi! Soltava, o bicho saía. Tinha capação de cacete também, mas essa não era de cacete.

- Quantos vaqueiros corriam, de cada vez, na hora que soltavam o touro na porteira do curral?

Zé de Mariá.

- Olha, na hora da capação, o comum é dois vaqueiros, que é pra botar o touro na tesoura. É a mesma corrida dessas corridas que fazem de prado. Só correm dois. É um pra derrubar e outro pra saltar enquanto o outro salta, pra aí segurar e capar.

- Derrubava o touro, e agora o que fazia?

- Saltava dos cavalo no chão, pra segurar o touro no chão ainda, pra ali fazer a capação. Capa, serra as pontas dos chifres, quando o touro tinha um grande sedém, cortavam para fazer corda de rede, pra fazer arriador. Mas nem todo touro tinha aquele sedém. O vaqueiro voltava com o sedém na mão pra porteira do curral. Como tinha muitos vaqueiros, tirava os cavalos pra outros dois vaqueiros fazer o mesmo processos.

- Na hora que capava, lavavam a faca?

- Quando acontecia, passava a faca no mesmo boi. Não tinha negóço de lavar a faca. Passava no mesmo boi e botava na bainha. Era capado só touro de ano. Não se capava novilhote.

- As mulheres assistiam essa história toda?

- Não. Algumas ficavam em casa, da janela, do alpendre... Ficava de cá assistindo, porque era perigoso.

- E os meninos, como é que ficavam nessa história?

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- Menino era pra ficar dentro de casa. Não podia ficar na cerca porque era perigoso saltar da cerca no chão e ser uma hora da gente vim correndo com a rês.

- Na hora que tava capando, o boi berrava?

- Só berra, na capação, bode, mas touro e carneiro não berra, só se mexia, escoiceava, mas aí gente prendia o cabo dele por dentro das pernas e segura.

- Quando o serviço de capação estava pronto, porque vocês batiam nas ancas dele e gritavam: boi!?

- Porque eu tinha corrido com um touro, depois de capado e serrado é boi.

- E o que o senhor sentia nessa hora?

- Se fosse meu, eu dizia: - Hoje eu tenho um bóio. Se fosse dos outros, eu tava satisfeito que eu tinha feito o trabalho do outro.

- Na hora que você estava cortando o saco do bicho, que ele se estribuchava, você não sentia pena dele não.

- Não. Sentia, não. Aquilo era uma obrigação que eu tinha que fazer, e tinha que fazer daquele jeito. Entonce, tinha que ter natureza igualmente o médico quando vai operar uma pessoa. Ele num pode ter pena. Se tem encobre, porque ele vai fazer aquele trabalho.

- O senhor diz que era obrigação, mas como era obrigação se saíam de casa para ir lá, sem ganhar dinheiro?

- Era uma diversão, bem verdade, mas eu ia pra fazer aquele trabalho, bem verdade. Era obrigação, porque se você ia me ajudar a fazer com os meu, na minha fazenda, eu tinha por obrigação ir fazer pra você, o serviço.

- O senhor disse que, quando já estava em seu sítio, fazia pega de boi para ganhar dinheiro. Quanto custava uma pega?

- Aí não tinha base, não. Dependia do local, dependia do bôio. Eu nem só pegava o bóio pra ganhar como tinha comissão de bôio também. Comissão era o senhor comprar um garrote, deixar em meu poder, quando entrava na era de dois anos, o dono queria vender, mandava eu pegar e levar na fazenda. Aí eu ganhava a pega e a comissão dos tempo. A pega era dez mil réis, com a comissão pagava quinze mil réis, mais ou menos. Inteirava pra feira (da semana), não dava muita coisa não, mas inteirava.

- O senhor falou do ciclo do gado: bezerro, garrote, novilhote, touro, boi de ano. E o bode, como é?

- Cabrito, marrão, bodeco, aí você capa e é bode de ano.

- Em que condições se vendia uma vaca?

- Ou você vendia nova, por necessidade, ou não vendia. Só vendia depois de véia. Sem ser por necessidade só vendia

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uma vaca nova se tivesse um peito perdido, ou uma coisa assim, se ela fosse desconveniente. A vaca tem a bezerra, tem a garrota, tem a novilhota e tem a novilha de ano, quando ela pare já é vaca. Enquanto não parir é novilha.

Festa dos Vaqueiros (1999) com sobrinha Carla no cabeçote.

- As cabras os senhores iam buscar lá no pasto de fora, podiam chegar na fazenda e soltar misturadas com as outras, já de imediato?

- Podia, mas elas voltavam. Voltavam e acontecia ainda levar algumas dessas que estavam aí. Depois nós ia buscar de novo. Ficava cinco, seis meses nessa pisada. Só quando chovia, que tinha pasto é que a criação ficava, do contrário ela ia por falta de comida.

- Como é que o caatingueiro se orienta no mato, para não se perder?

- É difícil dele se orientar pra num se perder. Você concorda comigo que tem a perdição e tem a ariação? Me perder, é o caso de você tá num lugar, tá perdido porque não sabe onde tá, mas sabe tomar o rumo, mais ou menos, pelo sol, ou por isso ou por aquilo, mas você sabe aprumar o rumo da casa ou de outro lugar. Aí você tá perdido porque não sabe o lugar

que ta, sabe se orientar. Agora, ariado, aí vamos respeitar! Eu já me ariei, quando eu era vaqueiro lá no Morro Branco, amontado numa burra, encourado, um tempo escuro de chuva pra todo canto, relâmpago, truvão... e eu achei um magote de cabra... Eu vinha do Cabeçudo pra o Morro Branco. Agora você veja se eu tinha lógica, naquele tempo. Aí, correndo com um magote de cabra pra rebater a criação pra cá pro Morro Branco, mas quando eu dei fé, já tinha chuvido muito, eu já tinha arrudiado a criação, já ia no atoleiro da burra aonde eu tinha passado. Aí pronto! Eu abaixado dentro da caatinga, lá vai, lá vai, já ia no rasto da burra, onde eu tinha começado a carreira. Aí, rapaz, aí acabei se engrossando. Abandonei a criação pra lá, parei a burra, desmontei, fiz um cigarro, fumei, fechava a vista, baixava a cabeça, levantava... do mesmo jeito. Isso já era de tarde, umas três horas pra quatro horas, mais ou menos. Eu pensei na vida... o que fazia! Dormir no mato, com os couros molhados, já tinha chuvido e ia chover muito mais, aí eu me agoniei. Subi num pé de pau, um pé de imburuçu, salvo engano, pra vê se avistava alguma coisa. Quando eu subi, eu vi um serrote na minha frente, assim. O serrote chama-se serrote da Extrema. Mas o serrote me parecia o serrote das Pedra Preta, que é outro serrote que já tinha ficado pra trás. “Ôxe!, Mas como é que pode, nessa carreira eu ter eu ido ficar perto do serrote das Pedras Preta? Não é possível”. Nunca pensei que tivesse perto daquele serrote. Desci, fiz outro cigarro, fumei, virei maria-escombona, que diz que era bom... Que nada, quanto mais fazia pior ficava, e vendo escurecer e vendo a chuva chegar. Eu digo: - “Não tem jeito. Vou sofrer e vou agoniar o pessoal lá da fazenda, amanhã tá um pega de gente aqui” -. Ai me vei na idéia... O sol... era de tarde, mas parecia umas

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nove horas do dia. Tudo mudou. Tudo era diferente. Aí, eu tinha que botar na cabeça que era de tarde aquela hora que eu comecei aquela carreira. Aí eu digo: - “Bom, quando eu venho do Morro Branco à tarde, eu trago o sol do lado esquerdo” -, e isso eu fiz. Me montei, virei a burra pro lado do sol, eu caminhando pro lado do poente, mas, pelo sol, parecia que eu ia pro nascente, mas eu digo: - “Eu sei que era de tarde, e quando venho de tarde do Cabeçudo pro Morro Branco eu trago o sol do lado esquerdo” -. Aí botei o sol do lado direito, marquei, viajei, viajei, viajei, não viajei meio quilômetro, saí no vaquejador que vem da Conceição pro Lajedo. O variante que vem do Cabeçudo pro Morro Branco trevessava esse vaquejador num lugar que tinha uns lambedor que a gente chamava de lambedor da Cachorra. Foi justamente aonde eu fui sair. Quando eu fui sair na variante da Conceição e nesse Lambedor, aquilo me clariou a vista, pronto: acertei tudinho e botei a burra, panhei a estrada e fui embora. Mas foi ariação.

- O senhor conhece alguma história de um vaqueiro que se perdeu e que não se achou mais?

- Eu conheço a de um rapazinho. Era filho de Zé Laurenço. Morava na Baixa Verde. Veio pro mato mais ele botar umas ovelhas. Ele achou um magote de ovelha, mandou o menino voltar com o magote de ovelha e o menino se perdeu. Quando ele chegou, de noite, procurou o filho, e ele não tinha chegado. Ainda voltou, chamou gente, de noite foram gritar no pasto, nada. Desapareceu, desapareceu. Caçaram até que se desenganaram. Com muito tempo, dizem que acharam uma ossada, mais ou menos que julgam que era do rapazim,

na serra da Natividade. Quer dizer que ele travessou por aí, foram achar essa ossada na serra da Natividade. É uma coisa que se faz suposição, não é muito certeza, não, mas pelo tipo da ossada, pelo tempo que se perdeu e pela mediação que ele rompeu, a gente supõe que foi esse rapaz que se perdeu.

- Quando acontece uma coisa dessa como é que fica o povo do mato?

- Ave Maria! Tudo doido, tudo preocupado. Vaqueiro adulto eu nunca soube de ter acontecido uma coisa dessa, não.

- Quando o senhor está campeando, baixa a cabeça aqui, corre ali, muda de direção, etc., em todo momento o senhor sabe o rumo dos lugares?

- Tando perdido sabe.

- Como é que se aprende isso?

- É andando.

- Em que horário a criação de bode e de ovelha levanta do amalhador?

- A partir de cinco horas.

- Para pegar a criação no amalhador , como é que tem que fazer?

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Com José de Mariá

- Você tem que chegar lá de três e meia pra quatro hora, pra arrudiar, cercar o amaiador, antes da criação se levantar. Depois que ela se levanta tem uma influência por ali.

- Cerca e já mexe com ela?

- Deixa clarear mais. Depende como é que tá a noite. Se é de lua clara dá pra tanger. Se é de escuro você arrudeia e espera clarear pra poder tanger.

- O que é uma era?

- De 60 a 69 é uma era.

- Por que foi que houve essa mudança do tempo?

- Rapaz, essa aí eu não sei.

- Mas quando o senhor está matutando, imaginando, como o senhor avalia?

- A mudança do tempo, né? Rapaz, essa aí não dá pra responder. Essa pergunta sua fica no ar. Se eu for dizer que é pela rebeldia do povo e Deus deu o castigo, como Pai, pode ser certo, pode ser errado, eu não sei, porque o povo tá muito rebelde, ou é fim mesmo das eras, que dizem que no fim das eras iam se ver o que nós vemos hoje: pai contra filho, filho contra pai, nação contra nação. Quer dizer: o povo diziam isso e é o que a gente tá vendo. Entonce eu não sei se isso é castigo do Pai pros filhos, ou se é mesmo se ele deixou

demarcado pra gente passar por essa. Uma das duas coisas eu garanto que é.

- O que o caatingueiro precisa para viver, hoje, lá na caatinga?

- Ele precisa de muitas coisas, de muitas coisas, porque tem aquele dizer: nem só do pão vive o homem. Então, hoje em dia, nem só dos meus esforços dá pra mim viver. Então eu preciso que você me ajude também, com o que for possível. Com um auxílio de alimento, com o remédio, com o médico, com o transporte... Então, hoje tudo isso depende pra o caatingueiro sobreviver.

- Antes precisava?

- Precisava, só que não existia e muitos morria à míngua à falta de socorro, porque o transporte era difícil, as condições do pobre era mincha, menos que hoje. Ele não tinha condições de tirar sua mulher ou seu filho, ou si próprio pra vim pro médico. Ficava lá com beberagem, chegando o ponto de morrer à mingua.

- O povo pensava assim?

- Se pensava eu não sei, mas tinha que suportar porque não tinha outro apelo. Nem transporte tinha.

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- Quando acontecia de morrer uma pessoa ela achava que estava abandonada?

- Não. Não ia achar que tava abandonada porque a família tava toda ali em cima, com remédio, com beberagem. Só que aquilo não resolvia o problema.

- O senhor está dizendo que o caatingueiro não consegue satisfazer suas necessidades com o trabalho na caatinga, e o que fazer para que o caatingueiro viva na caatinga em condições de sobreviver sem precisar de ajuda?

- Rapaz, não tem como. Não tem como. Ele tem que ter uma ajuda. Nem que seja um transporte perto, pra dá socorro na hora da necessidade.

- Vamos supor que tenha o transporte, que tenha a escola, que tenha o remédio. O caatingueiro, lá na caatinga, consegue sobreviver do trabalho dele, decentemente sem bolsa-escola, sem esses auxílios que o governo está dando?

- É difícil, hoje.

- Não sobrevivia no passado?

- Mas o tempo passado era um e o de hoje é outro.

- Qual a diferença?

- Muitas coisas. Pra gente, hoje, sobreviver sem bolsa-escola, sem aposentadoria, sem ter criatório, aí fica difícil, porque até dia de serviço tá difícil hoje. A pessoa, hoje, pra sobreviver sem ajuda de uma pessoa, de um conhecido... é muito difícil sobreviver lá. De quê Nossa Senhora! Xiquexique não tem mais, a chuva é como eu já expliquei: não dá pra plantar pra ter. De quê vai sobreviver? É o caso de muitos que... por falta do trabalho... Não vou nem condenar

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tanto umas certas coisas porque aí ele se obriga a roubar. Se eu tenho dez cabras e ele nenhuma ele vai roubar as minha, com certeza. E aí eu não posso nem castigar porque ele rouba pela necessidade. O que rouba pela necessidade não é nem pra se condenar, agora o que rouba por sacanagem, é proprietário, encosta o carro na beira da porteira, enche e carrega, aí é safado. Que hoje em dia é difícil. É, pra o pobre sobreviver com honestidade é difícil.

- O caatingueiro de hoje é diferente do caatingueiro do tempo que o senhor era rapaz?

- Numas parte, noutras não. Em umas parte hoje em dia é diferente. Naquele tempo que eu era rapaz, os ganho era pouco mas até dava pra eu sobreviver, mas minha mãe não era aposentada, eu tinha que ajudar minha mãe também, e hoje, a maior parte dos velhos de 60, 65 anos é tudo aposentado, então eles já vão ajudar os filhos, nem só no comestível, como até nas roupas, no sapato, nas escola, nos transporte. Hoje em dia os pais ajudam os filhos mesmo até sendo adulto, porque não tem outro ganho pra ele, aí os pais ajudam, e naquele tempo não tinha ajuda.

- Se a caatinga não dá sustento ao povo que vive lá, por que o povo está lá?

- Até por proibição do governo, porque se você tem e abandona sua terra, o governo bota outra pessoa lá.

- Mas se o que vai botar lá também não vai conseguir sobreviver?

- Mas ele não tá por isso. O tempo que ele tá lá ele tá cobrando o imposto. Ele quer é o imposto deles. Aí agora pra pessoa sobreviver... Se eu já saí porque não dá pra mim sobreviver, se você tiver mentalidade você quer ir pra lá?

- Aí eu pergunto: o que diabo esse povo tá fazendo na caatinga, se lá na caatinga não tá fazendo bem?

- Por quê? Porque tá aventurando. Se não fosse nós caatingueiro lá, o comércio aqui também tinha andamento? De onde vem as coisa pro comércio, o dinheiro pro comércio, a carne pro comércio? Vem de lá da caatinga. Agora a gente acaba com tudo lá e vem morar aqui, vamos dizer assim: em morar da aposentadoria, e abandona lá. Num vem mais o boi, num vem mais o bode, nem nada. Como abastece aqui? Esperar que venha de Minas, que venha de outros estados? É por isso que ainda tem gente teimando e vivendo lá. Não é porque possa não. É tentando a viver sua vida.

- E vale a pena?

- É a mesma coisa. Vale a pena. Se ele acabar com tudo lá e vem praqui aventurar a vida e lá ele já tem aquele pezim, e já sabe como é o manejo, vai levando a vida. Agora não vi ainda um velho, dos do meu tempo - eu já digo assim, eu avalio os mais velho que têm – se ele teve condições na vida, ele morrer rico. Só morre pobre porque ele acabou os esforços trabalhando, hoje ele não pode mais. Não se acha mais gente de responsabilidade pra trabalhar.

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Com José de Mariá

- E onde é que está a gente que tinha responsabilidade?

- Ah!, meu filho, aí você vai afundar o mundo. Não existe mais essa raça.

- O senhor contava sua criação?

- Contava. De vez em quando eu contava pra vê se tava faltando alguma.

- Os outros também contavam?

- Não. Só eu e Tinzim tinha essa obrigação.

- Falando da fava, o senhor falou que teimou com um veterinário, mas o que vale é o ponto de vista do veterinário, por quê?

- Porque o que eu sei nem tudo foi meu dom e minha cabeça. Eu aprendi com eles. Nós tivemos vários cursos lá, por sinal eu tenho meu diploma aí. Aí eu aprendi muito do que não sabia e foi com eles. Eu aprendi a capação de faca, pra o bicho não morrer esgotado, tanto o touro, como o burro, como o jumento, como o cavalo. Eu aprendi outro modelo de capação. Eu aprendi a mochar o touro, ou o bode, ou o carneiro. Eu aprendi tirar sangue do animal e aprendi a vacinar. Eu aprendi a escolher o marrão pra reprodutor. Aprendi o regime de dá a vacina ao rebanho, as datas, e as vacinas, de cada vez um tipo de vacina. Teve mais umas coisas que eu não lembro agora.

- Na fazenda do senhor, o senhor mochou quantos bois?

- Em minha fazenda só mochei poucos bodes. A vantagem de mochar é a pancada do bicho na cabra prenha. O reprodutor mocho é porque ninguém quer se dá ao trabalho, mas o mocho é melhor, porque se a cabra tá prenha e o bode ou a cabra dá uma chifrada nela na barriga é sujeito até matar o cabrito.

- Qual a diferença da capação que vocês faziam pra capação que os veterinários ensinaram?

- É grande, porque a capação que a gente fazia era assim: pegava na ponta do saco, cortar, botar uma fava pra fora, puxar ela cortar e jogar fora. Pegar outra, fazer o mesmo processo. Depois cortava a ponta do sedém, batia nos quartos e dizia: boi! No veterinário era diferente: derrubava, dava a anestesia, cortava aquele pedacinho, tirava uma fava, puxava, já estava com agulha e com uma linha “zero”, amarrava no pé da veia, dava aquele nó, cortava a fava, jogava fora, não pingava uma gota de

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Com José de Mariá

sangue. Queimava com iodo ali por fora mode a mosca e pronto.

- Os veterinários e os agrônomos conhecem o trabalho da caatinga, sabem orientar direito o trabalho na caatinga?

- Não é todos os serviços que eles conhecem não. Eles aprendem pelos estudos aqui, e os estudos mostram umas coisas e outras não. Eu conversei com um e ele não acredita em curação de pasto e nem de rasto. Ele disse que a bicheira tem a data da mosca pô o bicho, tem a data do bicho madurecer e cair da bicheira e aí a bicheira sara. Aí eu não concordei com ele, aí nós começamo até a ingrossar ali na teima, que ele quis dizer quem era eu pra teimar com ele, que tinha estudado. Então eu parei por ali, porque eu não acreditava. Eu concordo com ele uma parte. Em ele dizer que a bicheira madurece, os bicho ficam maduro e que eles caem, não sei o quê, mas só que o feitio da bicheira a mosca põe outros bicho. Então o que é que acontece, aqueles mais velho vai caindo, mas vai virando outros. Eu disconcordei dele nisso. E ele acha que não, que essa coisa de rasto de pasto não existe, não acredita nisto.

- Eles sabem dessas coisas que o senhor contou?

- Não tem! Não tem! O próprio dono, o próprio dono, pra eu dizer de uma vez só, o próprio dono não conhece. Só conhece o vaqueiro, porque o vaqueiro tá andando no mato. Só o vaqueiro sabe, que é por isso que eu acho que o vaqueiro é muito barato em nossa região. O vaqueiro devia ter mais um

valor, ser mais cuidado, porque se o fazendeiro é fazendeiro e tem o criatório porque de quatro ele tem três e o pobre só tem um, mas ele devia ser mais cuidado, porque ele só tem por causa do vaqueiro.

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07.08.2005

- Estrepadas, remédios, curas...

- Estrepada no campo... O cavalo levando uma estrepada, a gente se valia da rapa do imbuzeiro ou então do bago do pião, pra estancar o sangue. Pra estancar o sangue, a baba do pião e pra cicatrizar o lugar da estrepada, de um corte de machado, dum facão, é a rapa do imbuzeiro. A rapa do imbuzeiro é tão rápido pra cicatrizar, que chega até a cicatrizar por fora antes de sarar por dentro. O bago do pião, segundo eu aprendi até com os veterinário, evita até a dá o teto.

- Existia boi ideado?

- Não alcancei, não. Ouvi falar que antigamente tinha esse boi ideado, mas eu não alcancei e comigo, graças a Deus, nunca apareceu esse boi ideado. Se tinha eu quebrei a mandinga e num vi. Disse que o boi ideado era aquele boi que o vaqueiro corria quatro, cinco carreiras e todas botava no mato. Aí o povo dizia que era o boi que era ideado. Eu em minha mente... ou era o vaqueiro mole ou era o cavalo que não dava no boi.

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- O que representava o gado para o caatingueiro?

- Rapaz, o gado representava pro vaqueiro várias coisas. Representava o futuro, representava o trabalho pro vaqueiro e representava uma alegria, que o vaqueiro tinha a trabalhar

com o gado, quando ele tinha gosto de trabalhar com gado e representava o futuro de mais adiante o vaqueiro trabalhar com mais vontade, pra botar o rebanho pra aumentar. Era o que representava o vaqueiro.

- Eu ouvi muitas pessoas dizendo que o gado era abençoado, essas coisas assim. O senhor ouviu falar?

- Ouvi falar. Não sei, não. Isso eu acho que é que o povo botam isso na cabeça.

Todo criatório é abençoado. Se algum fosse excomungado nada iria pra frente.

- O que o vaqueiro leva no alforje?

- Ele deve levar, se o campo for longe, ele deve levar carne de bode pra cozinhar, leva fritada já pronta pra comer, leva uma rapadura, leva o café e um doce pra fazer, leva a colé e a tigela pra tomar, leva borracha com água, em companhia do alforje, e leva o milho na garupa do animal, pro animal.

- Como ele cozinha se não leva panela?

- Mas encosta numa casa e pede às pessoas da casa. Ou pede a panela, como aconteceu muito comigo quando nós ia com boiada pra Rio Branco – que nós ia um magote de vaqueiro -, então, de noite, pra nóis num incomodar a casa, nós pedia uma panela e ia acender um fogo no monturo e nós mesmo cozinhava a nossa comida.

- Mas ai era uma viagem pra fora, pra longe, mas no pasto mesmo, na área mesma de campo normal?

- Quando saía pra não voltar no mesmo dia, levava comida pronta, levava a fritada.

- O senhor estava no campo, não achava o bicho e escurecia. Encontrava-se longe de casa. O que o senhor fazia?

- Se você tivesse água e comida, dormia no mato, mesmo, pra meia noite, madrugada escutar o chucaio, às vez até do animal, da rês que você procurava, mas se você num tinha essas coisas, você tinha que procurar uma casa pra ir dormir, pra procurar meios de beber água.

- Era qualquer casa? E o pessoal recebia?

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- Qualquer casa. Recebia muito bem, e sendo da classe vaqueira recebia muito bem. Parece que recebia o vaqueiro melhor do que se fosse o fazendeiro. Chegava, dava boa noite, pedia rancho, as pessoas mandava que podia desmontar. Ainda davam roça pra botar os animais, se era tempo de botar animal na roça.

- O que é empereirar?

- É o animal que comia a folha do pereiro rasteiro. Vi muito, até de volta de festa de vaqueiro de Curaçá. Aonde a gente batia a sela dos animais, a gente tinha que procurar aqueles lugá que não tinha aquele pererinho rasteiro, que o grande o animal pode comer de encher a barriga, mas aquele rasteirim, se o animal comer e se você dé água a ele, não viajava dois quilômetros. Aí você via ele se endurecer todo, assim, ficar só tremendo e não sair do lugar. Aí você tinha que tirar a sela, dá rapadura e dá um tempo pro animal se recuperar. O tempo demorava umas três horas, quatro horas, até meio dia.

- O senhor ia ser vaqueiro em uma fazenda. Levava só o animal e o corpo. Como o senhor ia fazer para se virar todo o tempo até o momento da partilha chegar?

- Aí, o patrão era quem dava a despesa. Enquanto eu não tivesse do que eu me manter, o patrão era quem dava a despesa, nem que na partilha ele descontasse a despesa, mas ele tinha que suprir enquanto eu não tivesse. Aí ele anotava: a primeira feira de fulano custou tanto, segunda feira... até a finalidade d`eu fazer a sorte. Então aí, ele fazia a conta...

“Você deve tanto. Quantos quarateados você tirou? quantas sortes você tem?” - aí eu tô contando uma históra que aconteceu comigo, no São Gonçalo – “Quantas comissão de bôio, quantas pega de bóio”... descontava toda minha despesa e, às vez, ainda sobrava um pouco pra mim, vezes de até livrar a sorte, pagar a despesa com esse ganho fora da vaqueirice.

- Eu, entrevistando por aí, muitas vezes ouço a seguinte expressão: caatinga é caatinga. O que as pessoas querem dizer com isso?

- Caatinga, é caatinga fechada. Aonde eu campiei, quando fui vaqueiro no Morro Branco, tinha um serrote, um capão, que dava-se o nome de Cala Boca. Você já entrava nele deitado no cabeçote da sela. Se achasse o bicho e desse pra você pegar lá, você ia deitado no cabeçote da sela até vencer a batalha. Chamava-se o Cala Boca, porque você ali não tinha licença de ficar sentado na sela hora nenhuma, porque a caatinga era trançada por cima. Todo pau que você pensasse, ali tinha. Aí chama-se caatinga. É caatinga, carrasco e tabuleiro. O carrasco é aquele terreno esbranquicento e tem árvore e muito empastador. O Tabuleiro é massapê. Os pau grande que tem é alguma caatingueira e algum pé de baraúna.

- O senhor falou que houve a mudança do clima. Houve outra mudança além dessa do clima?

- As mudança que existia era da chuva pro verão. Daquele tempo pra cá só o que mudou é falta de chuva.

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Com José de Mariá

- Como é que os caatingueiros se localizam no mato, sem ser pelo sol? Por exemplo: o senhor vai ali, amarrou uma cabra. Como é que diz para outra pessoa o local onde a cabra está amarrada para o outro achar?

- No centro da caatinga não pode amarrar que ele não acha.Você tem que ajeitar ela e amarrar na vareda, que todas aquelas varedas têm nome. Eu chego e digo pro cara: - “Oi, tu vai procurar uma cabra tua que eu deixei amarrada na beira da Vareda do Grigório. Lá perto da Lagoa da Água Branca tem um pé de caatingueira, antes de chegar na lagoa, às esquerda, vá procurando que eu deixei sua cabra amarrada lá” -. Todas as varedas tem um nome: a Lagoa da Água Amarela, a vareda das Pedra Preta, a vareda do serrote do Tirano...

- Como é que vocês dão nome aos lugares?

- É por causo da habitação mesmo, e muitos, quando a gente se entendeu, já achou aquele nome. Muitos a gente bota pela aparência, essa coisa assim, e muitos a gente já achou aquele apelido. - “Aonde você amarrou meu bode”? – “Eu amarrei lá encostado aos Caldeirão da Pedra Preta. Dos Caldeirão pra cá, numa vareda que vai daqui pra lá” -. E isso não foi nome que eu botei, foi nome que eu já achei. Ai a gente ensinava pra outra pessoa e assim... Lá perto de mim tem um serrote que tem o nome de serrote do Carquejo. Quando eu me entendi, já achei o nome, porque tinha muito carquejo, por isso chama serrote do Carquejo

- E se o senhor chegar em um lugar que não tenha sido ainda ocupado?

- Tem que ter uma pessoa. Se não tiver ninguém não tem nada naquele lugar.Tem que ter.

- Seria possível se viver na caatinga sem que houvesse dificuldade?

- Não. Não. Morou na caatinga, morou na fazenda tem que ter dificuldade. Até pra você arrumar um remédio, pra arrumar o alimento, pra arrumar o transporte... tudo tem que ter a dificuldade, a não ser que você tenha alguma coisa disso na fazenda, mas eu sei que de tudo você não tem, tem que ter dificuldade.

- Tem um outro jeito de criar os animais na caatinga, além desse que vocês conhecem e fazem?

- Não tem. A não ser preso, mas do contrário é a mesma dificuldade.

- E preso é possível?

- Dependendo do tanto de criatório. Se você solto, cria quinhentas cabras, mil cabras, preso... Lá em minha região não conheço quem possa criar preso, porque não tem solta pra essa finalidade.

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Com José de Mariá

João de Inocência e Zé de Mariá (montado)

- Quantos hectares são necessários para uma pessoa criar quinhentas cabras presas?

- Aí eu não sei. Você quer saber o que bicho come, crie ele preso. Às vez você faz um cercado, vamos dizer assim, de duzentos hectares de terra e pensa que ali dá pra criar cem

cabeças de cabra, só que às vez você tem mais cinqüentas ovelhas, tem mais animal de sela, e aí quando você pensa que não, não tem mais pasto.

- Para o senhor, o que é a caatinga?

- Não entendi bem.

- O senhor está em Goiás, não é caatinga, está em São Paulo, não é caatinga...

- É um lugar imatado, sem habitação, um lugar onde só tem bicho do mato, é criação, é gado, a caça do mato.

- Como o senhor se sente quando anda na caatinga?

- Rapaz, eu me sinto bem. Só que ali na caatinga, eu me sinto bem mas tô prevendo uma coisa, porque só que Deus defende, porque andando na caatinga... É um lugar sem socorro. Se acontecer alguma coisa longe de casa, dé uma carreira, o cavalo cair por cima do pescoço, uma coisa assim, pra mim transportar das caatingas pra casa, além de meus couros que tão nas costas, uma sela, uma coisa, aí é dificuldade. Outra: assim como o cavalo pode morrer, eu também posso morrer: aí a dificuldade pra minha família mim encontrar. A gente pode andar alegre e satisfeito na caatinga e tudo, mas pode se pegar com Deus pra se defender de uma hora dessa, que será uma hora de grande aflição. E tudo isso pode acontecer.

- Quais são os sofrimentos provocados pela vida na caatinga?

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Com José de Mariá

- Você andar num centro de caatinga, sozinho e Deus, só vê o sol se olhar pra cima, andar numa sela quente, se achar um bicho num centro de caatinga, correr pra pegar, sê obrigado a pegar... será que não é um sofrimento? Eu acho que são esses os sofrimentos... até com sede... fome, ninguém fala! porque isso é comum o vaqueiro passar fome.

- E a alegria?

- A alegria só é na hora que o senhor chega na malhada de sua casa e trás o objeto na frente, em paz, sem arranhão, sem pancada, mas enquanto o senhor não descobre a malhada de sua casa, não vem com essas alegria, não.

- Por que o senhor nunca quis sair daí?

- Porque vinha dando pra mim sobreviver. Tinha saúde, gostava do trabalho, gostava da fazenda e gostava de ter meu criatorozinho, gostava de tá sentado na calçada na boca da noite, de tardezinha, botar sal nos chochos na malhada, vê os bichos chegar pra lamber o sal e eu tá sentado na calçada, ali, fumando um cigarro... Pra mim era o mesmo esporte que você têm hoje, morando na cidade com boemia. A minha boemia eu fazia na calçada de minha casa, quando via meus bichos chegar pra lamber o sal. Isso pra mim era um gosto. Se eu imaginasse que tivesse que acabar com eles, viesse pra cidade e abandonasse ou vendesse meu sítio, eu achava que pra mim, naquela época, que eu podia trabalhar, tinha o maior desgosto. Achava até que não dava pra viver em outro lugar. Eu nunca tive vocação de ser empregado de ninguém, porque nunca gostei de ser mandado. Não sei por quê fui

castigado, que nem nunca quis ser mandado, nem nunca tive condições de mandar. Então, é a origem.

- Andava-se muito no mato. Andando no mato encontrava-se com outras pessoas?

- Às vez. Às vez encontrava com os próprios vaqueiro mesmo. A gente se encontrava.

- E quando se encontrava?

- Faria grande prazer, que aí perguntava um ao outro: - “Que viu por aí pra mim? – “Não! Num vi nada, não”. – o outro dizia: - “Eu vi bicho fulano” -. Era assim.

- Ainda tem muita gente andando no mato?

- Muito pouco. Além de que o pessoal se desalojaram, com esses anos ruim, vieram embora pra cidade, o criatóro também diminuiu muito, muito. Então o pessoal que anda hoje é pouco. A gente juntava assim, vamos dizer, quatro, cinco vaqueiros, e ir campiar, vencer campo, como eu mesmo campiei por muito longe, até encostado a Uauá (em linha reta, mais de 50 km), campiando assim: pegando todo bicho da nossa região, de Barro Vermelho, Santo Antônio, Piões, praqui pro Jiló, por aí. Todo bicho alêio que a gente pegava lá, juntava tudo e trazia. Tanto fazia gado, como criação, como jegue. O que a gente achava lá, que fosse de cá, a gente trazia tudo. A gente ia duas, três vezes. Se eu trazia, vamos dizê, um boi seu, eu vinha lhe entregar onde você morava, aí você me pagava aquele trabalho. Eu já

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Com José de Mariá

cheguei a comprar até animal com esse dinheiro que eu ganhava. A gente ganhava muito com isso. Hoje, devido o criatóro ter diminuído, e o povo ter cercado muito as terras, aí acabou-se isso. O criatóro se acabou, diminuiu, e os vaqueiro num fazem mais esse campo. Os bichos deixaram de desaparecer, porque além de terem ficado pouco, as cercas tomaram a frente. A cerca da fazenda Lajedo toma da Serrania pra Conceição, aí a frente desse pasto que vai daqui pra lá, ela tomou todo. O que tiver tá daí pra cá.

- O que levava, o senhor, ao ir à Festa dos Vaqueiros em Curaçá?

- Rapaz, isso aí eu comparo muito bem como o padre celebrar a missa. É quase uma obrigação que ele tem de celebrar a missa na igreja. Então eu tinha aquela obrigação, que era de ano em ano, eu ir comemorar meu dia. Pra mim era um grande prazer, era uma grande alegria. Era quando eu ia rever meus amigos, meus colegas, deles que a gente só se via de ano em ano, aqueles do lado de Riacho Seco, do lado do São Bento, Riacho Fundo, Mundo Novo... A gente se via de ano em ano. Então era a fase da gente se reunir da gente se encontrar, tomar cerveja fria. Pra mim, o prazer era esse.

- Qual é a conversa que rola quando os vaqueiros estão juntos assim?

- A conversa só rola notiça de bicho. Aí você procura ao vaqueiro de Patamuté: - “Tem visto nada pra mim, lá, não?” – :“Tenho não” -. Quando chega aculá, outro pergunta: -“Zé de Mariá, você não sabe me dizer de quem é esse sinal assim, assim, assim?” Se eu sei eu digo, se não sei digo que não sei. Aí você vai procurar a Carlos de Raimundão, ou a Alírio de Zé Patamuté, que destacam mais sinal do que eu. As conversas que rolam só são essas. Aí para e diz: - “Vamos tomar uma!” – Cerrava o bagaço.

- No desfile, o que o senhor sentia?

- Sentia e ajudava a fazer o desfile bem organizado, pra fazer nossa festa bonita, dá valor a nossa festa. Eu não sentia emoção, sentia só isso mesmo, pra fazer uma festa bonita.

- Uma propriedade, pra ser chamada de fazenda, precisa ter o quê?

- Precisa ter água, em primeiro lugar. Se não tiver água não é nem um amansador de gado. Uma aguada suficiente que passe o ano. Depois da aguada você pode ter um bom cercado de palma, um bom cercado pra prender um bicho, uma casinha bem ajeitada, de adobe, de telha. Hoje em dia você já precisa de uma cisterna, de uma barragem, além de uma cacimba, de um curral, de um chiqueiro... Essa coisa assim pra poder ser uma fazenda.

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Com José de Mariá

- E a casa, é para ser como?

- A casa de adobe, que casa de taipa não tem valor, como antigamente faziam muito.

- E o chão da casa?

- O que é que tem? Na fazenda encimento casa quem pode, quem quer casa bonita, mas o comum é o chão mesmo.

- Precisa ter banheiro?

- Às vezes. Algumas, e o mais o banheiro é o mato mesmo. O banheiro é necessário.

- Por que o povo não faz banheiro?

- Aí eu não sei porque o povo não faz. Tem o mato disponível, saiu da casa é só entrar no mato.

- O senhor tem casa na rua. Ela tem piso... toda ajeitadinha. Se o senhor tivesse o dinheiro que desse para fazer uma casa na rua e outra no mato. A casa do mato seria igual a casa da rua?

- É nada! Não é preciso a casa do mato ser igual a casa da rua. Não é obrigado, porque lá tem muitas dificuldade. Você podendo fazer, você pode fazer, mas só que você não vai deixar de investir numa casa da rua, que tem mais valor, pra investir numa casa nos mato, que quando você tenha

necessidade de vender não acha o valor igual ao que você gastou, e na rua ela vai se valorizando.

- O senhor não mora não é lá?

- Mas porque mora... Mas tendo minha casinha lá, que dê pra eu morar, carece luxo?

Zé de Mariá (Agosto/2005)

- Mas o senhor não precisa de conforto?

- Mas tem o mesmo conforto. Tendo saúde, tendo onde armar uma rede, tendo uma caminha, vivendo com sua barriguinha cheia, quer mais conforto do que esse?

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Com José de Mariá

- Suponhamos que uma pessoa que tenha uma propriedade na caatinga e tenha cabra, tenha ovelha e não tem gado, ele é fazendeiro?

- Não. Ele mora no sítio. Pra ser fazenda tem que ter gado. Se não tiver, ele tem um sítio.

- Por que é o gado quem dá o título de fazenda?

- Porque é o objeto de mais valor.

- O senhor que andou muito, mais ou menos, quantas cabeças de criação tinha em cada sítio, um pelo outro?

- É muito difícil você encontrar essa igualdade. Um pelo outro baixa demais. Vamos botar duzentas cabeças.

- O que uma fazenda, hoje, precisa? As necessidades são as mesmas?

- Hoje tem que ter as mesmas coisas.

- Qual a diferença que existe entre trabalhar com gado e trabalhar com criação?

- A diferença é muita. Você sozinho labuta com duzentas, trezentas cabeças de criação. Ajunta no mato, bota no chiqueiro, você vacina, você assina e você sozinho não labuta com cinqüenta cabeças de gado, principalmente no período da seca.

- No final da tarde, tinha gente gritando no mato?

- Tinha. Mesmo que fosse nesse trio (rumo) aqui e outras pessoas gritasse naqueles outros trio, que era o pasto daquele outro. Ele ia naquele trio, eu ia nesse aqui, outro já gritava praculá, porque lá a gente gritava a criação à tarde, pra botar no chiqueiro.

- O vaqueiro vai existir sempre?

- Vai. Sabe por quê? O senhor tem sua fazenda lá, mas tem seu bom emprego, não pode dá assistência lá. Não quer se desfazer, então você tem que pôr o vaqueiro. Mesmo que eu tivesse lá, com essa idade que eu tenho, e com essa fraqueza nas pernas que eu tô, não posso mais campear, não posso mais... então tenho que ter um vaqueiro, e isso continua lá pelos mato. Continua tendo vaqueiro por causa disso, que chega um tempo que você não pode mais campiar. Ou paga por sorte, ou paga por mês...

- A vida na caatinga vai mudar?

- Não. Vai ser sempre desse jeito.

- Mas os técnicos não estão falando que vai mudar, que vai ser de outro jeito?

- Vamos aguardar, pra nós vê! Vai mudar como? Só muda quando Deus quer mudar, que dé chuva, que toda árvore que tá morrendo reverdece, brota da raiz, cresce, cria-se outra caatinga... Esse eu acredito. Agora, eles vão modificar essas

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Com José de Mariá

caatinga? Eles vão plantar jurema que morreu naquele pé-de-serra? A candeia, o angico?... Deixe isso acontecer, pra nóis vê!?

- Mas o rapaz da fazenda Lajedo cercou tudo e está lá, não está?

- Tá, mas já tá doido procurando quem compre e não acha quem. Adianta abraçar o mundo com as pernas? Tem aquele dizer: quem muito se abaixa, a bunda aparece. Esses cara enche os olho, cerca as terra dos outro, depois num pode nem conservar, que fez aquele primeiro empréstimo, talvez o Banco nem queira dá outro, e aí, quando você vê, aquela propriedade se acaba, como eu tenho visto. Eu conheço muitos aí. Deixe eles renovar a caatinga, o pasto pra eu ver!

- Desde quando a vida na caatinga é desse jeito?

- Rapaz... tem muito tempo, porque desde quando eu me entendi que já achei a caatinga assim desse jeito: um tempo bom e um tempo ruim. Mais ruim do que bom. Passei uns tempos bom, mas também outros ruim. A caatinga quando tá verde tá boa, pra toda finalidade, quando tá seca tá ruim.

- Quando começou a existir vaqueiro?

- Rapaz.... de quando eu me entendi pra cá já existia vaqueiro. Antes deu nascer eu não sei contar, mas já existia vaqueiro. Quando eu nasci, tomei entendimento, já existia gente rico e o rico não ia campiar. De um cento tirava um pra ir fazer farra, não era campiar. Quem se arrombava, quem se lascava

era o vaqueiro. Então, quando eu me entendi eu já achei isso, isso vem do princípio.

- ... do princípio de quê?

Zé de Mariá (Agosto/2005)

- Do mundo, do tempo, que o pessoal tinha muito criatório. Se tinha muito criatório, tinha vaqueiro.

- Houve algum tempo que não existia vaqueiro?

- Não sei. Isso aí eu não sei, não. Eu imagino que todo tempo teve, porque, uma hipótese, que nem o senhor mesmo, hoje mora aqui na cidade, tem sua profissão, mas se tem sua

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Com José de Mariá

fazenda lá, você deve ter um vaqueiro, deve ter uma pessoa lá. Por isso eu digo, no início já existia. Quando eu me entendi eu já achei... Contava nos dedo as pessoa que era rico, lá na minha região. Esse pessoal todo tinha vaqueiro.

- Quando o senhor fala que é desde o princípio, é desde o princípio do mundo?

- Rapaz, aí eu não sei lhe informar não. Aí você tem que procurar a um mais velho. Eu só conto de 60 anos meu pra cá, pra lá eu não sei contar que era muito criança, e quando eu tomei entendimento já achei, com certeza é porque tinha.

- Vinha a seca. O camarada tinha mil cabeças de ovelha, na seca morriam setecentas e o camarada só ficava com 300. Ele se revoltava?

- Não resta dúvida que alguns ficavam, mas tinha outros que se conformava. Eu conheci fazendeiro de ter mais de cem cabeças de gado e vim seca – que toda vida teve. Teve a seca de quinze, essa todo mundo falava – de ficaem com dez novilhas. O outro gado morrer todim, e com os anos, cinco, seis anos, ele já ter recuperado aquele gado, daquelas novilhas que ficou. Quer dizer, se ele se precipita, podia dizer assim: - “Ah! O tanto de gado que eu já tive, vou pegar e vender essas, pra não acabar”. Mas ele, não. Guentou a mão firme e se recuperou.

- Pelo que o senhor falou, parece –se eu tiver errado o senhor fala -, que a caatinga decide como você deve agir dentro dela.

- A caatinga é viva. A caatinga véve. Morre e véve. Só que hoje, você não vê mais nascer aquelas árves... Você não conhece... Andando naquela região você não vê mais pé de angico novo, um pé de imbuzeiro novo, um pé de imburana novo... Essas árvore mais velha, mais alta, você num vê um pé de aroeira novo, é difícil. Você só vê aquele pau velho, criado. Se aquele morrer, aquele chão já fica desocupado.

- Eu quero dizer assim: eu fui para Goiás e aprendi a técnica de criar lá em Goiás. Venho aqui, trago dinheiro, monto uma fazenda, aí modernizo tudo. Terei sucesso?

- Rapaz, num sei não. Num sei se tem muito futuro, não. Aí você tá comparando Nosso Senhor com Zé Buchudo. O clima, lá, é diferente do daqui. Lá nunca falta verdura, não falta gado gordo. A vaca não perde porque você tem seu vaqueiro pra olhar todo dia, aquele gado. Esse clima de lá é um e o nosso é outro. Nós aqui cria com o sol e com a chuva, e as chuvas tá sendo muito pouca. Então você pode empregar esse dinheiro aqui, numa fazenda. Pode fazer uma fazenda, pode assituar com gado, criação e tudo, mas com o correr do tempo, com dois ou três anos que você fizer isso, ao invés de você aumentar pra frente, você tá voltando. Foi uma topada que você levou.

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Com José de Mariá

Zé de Mariá e Esmeraldo Lopes (Agosto/2005)

- Para terminar... a gente falou de tudo, mas não falou de sua família.Quantos são os seus filhos?

- Do casal, tenho seis. Minha mulher teve eles lá no mato, não tinha esse negócio de trazer pra médico. Então eu ajudava. Era parteira quem pegava, mas eu ficava por ali para o que ela precisasse eu ajudar. Nunca deixei minha mulher sozinha. Um homem e cinco mulher. Mora duas filhas em Sobradinho, mora duas aqui em Juazeiro e mora dois em São Paulo, um homem e uma mulher. Um que nasceu particular mora lá na fazenda. Eles foram criado lá no mato, e a educação que eu dei a eles foi muito pouca. Eu tive de trazer uma mulher lá do Barro Vermelho, pago por meu punho, pra

minha casa, pra ela desarnar meus filho. Nessa época, nem só os meus como os da vizinhança foram pra lá pra minha casa. Ela morava em minha casa pra desarnar os meninos na escola, que todos aprenderam um pouco. Hoje já tem uns formados, mas já depois que vieram praqui pra Juazeiro, mas foi por conta própria.

- O senhor quer deixar alguma mensagem final, no encerramento desta entrevista? Alguma coisa que o senhor não disse e queira dizer.

- Bom, eu nada tenho a lhe dizer. Tenho mais que lhe agradecer, pela entrevista que você me fez, que há muito tempo eu tinha essa ansiedade, de escrever a minha vida, e nunca me dediquei a fazer, mas que eu tinha vontade, e que Deus lhe mandou praqui... além de nós nos conhecer, você gravar minha vida desde o meu nascimento. Lhe agradeço muito, e Deus que ilumine seus passos.

- Tem muita coisa de sua vida que o senhor não falou, aliás não falou quase nada..

- Se eu não falei é porque não podia falar, mas eu acho que eu contei minha vida quase toda.

- Daqui a cem anos, eu estarei morto, o senhor estará morto, mas pode acontecer de alguém estar lendo o que o senhor está falando hoje. O que o senhor teria a dizer para esse alguém, se houver, sobre a caatinga?

- O que eu tenho a dizer a essas pessoas, é que leia com atenção, que nessa mensagem que eu estou deixando pra eles

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Com José de Mariá

lerem daqui a cem anos não existe mentira e nem gaboliça. O que eu estou deixando é uma pura verdade procure alguém, que talvez prove o que eu tô dizendo.

- Mas daqui a cem anos não tem mais ninguém pra saber contar essa história.

- Mas o que tá nascendo hoje em dia... Quem sabe, pode até modificar, ou até o tempo não existir mais, o povo desse século não existir mais, quem sabe se num acha ainda um livro véio, ainda com as fôia amarela, contando a históra que nós tamo escrevendo hoje?

FIM

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