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Secas e epidemias: o contexto da mortalidade em Natal e Fortaleza (1870-1878) DAYANE JULIA CARVALHO DIAS 1 Introdução A população brasileira do passado, como outras populações tradicionais, apresentava altas taxas de natalidade e de mortalidade. Em 1840, tanto as taxas de mortalidade como a natalidade apresentavam-se elevadas e em ritmo estável; a partir de 1872, iniciou-se, embora lento, um leve declínio da taxa de mortalidade (NADALIN, 2004). Neste período anterior ao início do processo de Transição Demográfica 2 , denominado de pré-transicional, predominavam os óbitos causados por doenças infectocontagiosas 3 (NOTESTEIN, 1945; OMRAN, 1971). Para além das características mais gerais da transição demográfica e epidemiológica, é válido afirmar que cada província brasileira apresentava particularidades sejam elas sociais, econômicas, políticas e/ou ambientais que explicavam determinadas dinâmicas populacionais. No caso das províncias do norte (hoje, denominado Nordeste) as secas eram agravantes da situação, ao aumentar os riscos de disseminação das doenças epidêmicas, afetando o crescimento populacional e ocasionando alta mortalidade entre a população. Diante disto, este artigo tem por objetivo analisar e comparar as características da mortalidade da população na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (Natal) e na 1 UNICAMP, Doutoranda em Demografia, apoio Capes. 2 O processo de transição demográfica inicia-se com o período pré-transição, com a incidência de altas taxas de mortalidade e natalidade; seguido pela primeira fase, quando ocorre com o início do declínio da mortalidade mas com a natalidade ainda alta, o que acarreta o grande crescimento vegetativo da população; na segunda fase, além da queda da mortalidade também ocorre a queda da natalidade, consequentemente há baixo crescimento populacional; por fim, a terceira fase é aquela em que os níveis de natalidade e de mortalidade tendem a ser estabilizar e o crescimento populacional apresenta-se lento, nulo ou até negativo, a depender do ritmo da transição (NOTESTEIN, 1945; BRITO et al, 2007). 3 Etapa que antecede a chamada Teoria da Transição Epidemiológica, caracterizado pela mudança de um perfil de alta mortalidade por doenças infecciosas para um outro perfil de predominância de óbitos por doenças cardiovasculares, neoplasias, causas externas e outras doenças crônico-degenerativas (OMRAN, 1971).

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Page 1: DAYANE JULIA CARVALHO DIAS1...4 A proposta inicial do artigo era realizar uma análise dos registros óbitos até o ano de 1880. Mas devido a enorme quantidade dos óbitos em 1877

Secas e epidemias: o contexto da mortalidade em Natal e Fortaleza (1870-1878)

DAYANE JULIA CARVALHO DIAS1

Introdução

A população brasileira do passado, como outras populações tradicionais,

apresentava altas taxas de natalidade e de mortalidade. Em 1840, tanto as taxas de

mortalidade como a natalidade apresentavam-se elevadas e em ritmo estável; a partir de

1872, iniciou-se, embora lento, um leve declínio da taxa de mortalidade (NADALIN,

2004). Neste período anterior ao início do processo de Transição Demográfica2,

denominado de pré-transicional, predominavam os óbitos causados por doenças

infectocontagiosas3 (NOTESTEIN, 1945; OMRAN, 1971). Para além das características

mais gerais da transição demográfica e epidemiológica, é válido afirmar que cada

província brasileira apresentava particularidades – sejam elas sociais, econômicas,

políticas e/ou ambientais – que explicavam determinadas dinâmicas populacionais. No

caso das províncias do norte (hoje, denominado Nordeste) as secas eram agravantes da

situação, ao aumentar os riscos de disseminação das doenças epidêmicas, afetando o

crescimento populacional e ocasionando alta mortalidade entre a população.

Diante disto, este artigo tem por objetivo analisar e comparar as características da

mortalidade da população na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (Natal) e na

1 UNICAMP, Doutoranda em Demografia, apoio Capes. 2 O processo de transição demográfica inicia-se com o período pré-transição, com a incidência de altas

taxas de mortalidade e natalidade; seguido pela primeira fase, quando ocorre com o início do declínio da

mortalidade mas com a natalidade ainda alta, o que acarreta o grande crescimento vegetativo da população;

na segunda fase, além da queda da mortalidade também ocorre a queda da natalidade, consequentemente

há baixo crescimento populacional; por fim, a terceira fase é aquela em que os níveis de natalidade e de

mortalidade tendem a ser estabilizar e o crescimento populacional apresenta-se lento, nulo ou até negativo,

a depender do ritmo da transição (NOTESTEIN, 1945; BRITO et al, 2007). 3 Etapa que antecede a chamada Teoria da Transição Epidemiológica, caracterizado pela mudança de um

perfil de alta mortalidade por doenças infecciosas para um outro perfil de predominância de óbitos por

doenças cardiovasculares, neoplasias, causas externas e outras doenças crônico-degenerativas (OMRAN,

1971).

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freguesia de São José (Fortaleza), entre 1870 a junho de 18784 e sua relação com os anos

de secas. No período em destaque ocorreu a chamada Grande Seca, entre 1877 e 1789,

que será o foco de nossa análise.

As fontes são os registros paroquiais de óbitos e, a partir deles, propõe-se realizar

um exercício metodológico para avaliar as possibilidades do estudo da mortalidade e das

condições da saúde pública de Fortaleza e Natal. Os óbitos serão analisados por: ano,

idade, sexo e causa.

Durante o século XIX, o Ceará foi assolado por secas nos anos de 1804, 1809,

1816-7, 1824-5, 1830, 1844-5 (VIEIRA JUNIOR, 2002) 1877-9 e 1889. Para o Rio

Grande do Norte há menções da existência de secas nos anos de 1824, 1845 e 1877-9

(POMBO, 1922, LYRA, 2008). A mais destruidora foi a de 1877-79 em todas as

Províncias do Norte (POMBO, 1922), embora no Ceará o fenômeno tenha ocorrido de

forma mais intensa (NOZOE, BASSANEZI e SAMARA, 2003). Nesse sentido, as

doenças infectocontagiosas e as secas definiam a dinâmica populacional do Ceará e do

Rio Grande do Norte. Nadalin (2004) definiu essa dinâmica como regime demográfico

das secas do sertão nordestino, articulado às economias de subsistência e à criação de

gado, caracterizado pela intensa mobilidade gerada pelas fomes em épocas de secas.

A hipótese proposta por Sergio Nadalin ancora-se no pressuposto de que cada

sociedade, dependendo de suas características, pode apresentar regimes demográficos

distintos5. Para discutir a ideia de coexistência de vários regimes demográficos no

passado brasileiro, Nadalin (2004) parte da proposição inicial, lançada por Maria Luíza

Marcílio que, ao estudar a população brasileira no século XIX, admitia a existência de

quatro diferentes sistemas demográficos: 1) Sistema demográfico das economias de

subsistência; 2) Das economias das plantations; 3) Das populações escravas; e 4) Das

4 A proposta inicial do artigo era realizar uma análise dos registros óbitos até o ano de 1880. Mas devido a

enorme quantidade dos óbitos em 1877 e 1878 (período da grande seca) não foi possível a finalização da

catalogação de todos os registros até a data deste evento. A catalogação continuará até 1890. 5 Por sistema ou regime demográfico, entende-se: ‘um conjunto de relações e de mecanismos que estão na

base da organização social, quer da reprodução biológica de uma população, quer da reprodução do

conjunto de relações mediante as quais se regula a apropriação social (e a distribuição) dos meios de vida

dessa população’ (ROWLAND, 1997, p. 14 APUD CUNHA, 2014).

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áreas urbanas. Vinte anos depois da proposição inicial de Marcílio, Nadalin amplia a

proposta e considera uma maior diversidade de realidades regionais dos regimes

demográficos: 1)Regime demográfico paulista; 2) das plantations; 3) da escravidão; 4) da

“elite”; 5) das sociedades campeiras; 6) das economias de subsistência; 7) das drogas do

sertão; 8) das secas do sertão; 9) das economias urbanas.

O autor fazia a proposta tendo em conta a ideia de que esses diversos regimes

demográficos teriam vigorado no Brasil, desde o período colonial até, certamente, a

metade do século XIX. Mas as secas continuaram acontecendo, assim como a

disseminação de doenças epidêmicas, deste modo, tem-se como hipótese que a dinâmica

populacional não tenha variado de forma significativa na segunda metade do século XIX.

Portanto, assume-se que o regime demográfico das secas continuou ocorrendo nas

Províncias do Norte depois de 1850.

1. Doenças epidêmicas e medidas sanitaristas

O impacto causado pelas doenças epidêmicas gerou uma abertura e incentivo para

a implantação de políticas destinadas à melhoria da Saúde Pública no Brasil. Nesse

sentido, não somente em Natal e Fortaleza, mas em todo o Brasil, partir da segunda

metade do século XIX, foram implantadas medidas de intervenção da manutenção da

salubridade pública e limpeza, devido ao aparecimento das epidemias de cólera, febre

amarela e varíola (WITTER, 2007; CHALHOUB, 1996; COSTA, 1979). A disseminação

das doenças epidêmicas entre as províncias exigiu do Estado um posicionamento de

combate as epidemias com a criação de políticas que incialmente começaram no Rio de

Janeiro (sede do Governo Central) e depois estendeu-se para o restante do País. Neste

período, foram criadas faculdades de medicina e órgãos responsáveis por cuidar dos

aspectos de saúde pública da Corte e demais províncias brasileiras (ARAUJO, 2015)

No caso de Fortaleza e Natal, as secas foram agravantes da situação (BARBOSA,

2009; NOZOE, BASSANEZI e SAMARA, 2003; POMBO, 1922). Em Fortaleza, a

varíola se manifestou de forma mais intensa em 1878, em decorrência também da grande

seca que atingiu a região. A febre amarela apareceu em 1851 e a cólera em 1862

(BARBOSA, 2009). Em Natal, não se tem registro de um surto de varíola, mas ela é

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existente na região desde os tempos coloniais. A febre amarela atingiu o Rio Grande do

Norte em 1850, Natal foi uma das áreas mais atingidas (CASCUDO, 1984). A cólera-

morbo apareceu na província em 1856 (CASCUDO, 1984, p. 278; CASCUDO, 1999, p.

206; POMBO, 1922, p. 344).

Desde a seca de 1844-5 as políticas públicas pensadas para enfrentar os períodos

de estiagens eram idealizadas não somente em nível provincial, mas atendia as

recomendações diretamente da Corte. As medidas eram de caráter preventivo, com a

construção de açudes, avaliação das condições das lagoas, riachos e córregos, assim como

a qualidade do abastecimento de água. Mas também emergencial em momentos de surtos

epidêmicos, com a criação das “Comissões Sanitárias”, para o fornecimento de remédios

e gêneros alimentícios, e o envio de médicos para as localidades atingidas por alguma

doença (BARBOSA, 2009; CARDOSO, 2014).

Entre 1850 e 1860 em virtude do crescimento econômico possibilitado pela

exportação do algodão no Ceará e no Rio Grande do Norte e, sobretudo, devido ao

impacto causado pelas doenças e secas, intervenções sanitaristas foram iniciadas. Natal,

embora menos desenvolvida economicamente, também foi influenciada por este cenário

de criação de medidas sanitaristas para manter a salubridade e higienização do espaço

público. Foram construídos o cemitério público do Alecrim e o Hospital da Caridade em

1856. Além da construção de obras, também eram realizadas a limpeza das ruas e fontes

de água nas duas capitais. Em Fortaleza iniciou-se o processo de remodelação e

aformoseamento da cidade com intervenções e reformas sanitárias. Durante esse período,

Fortaleza havia se tornado o principal centro político, social, comercial e financeiro do

Ceará (PONTE, 1999, p. 75). Em Fortaleza, foram construídos a Santa Casa de

Misericórdia (1861) e o Lazareto da Lagoa Funda (1857). Este último mais afastado da

área urbana para o tratamento de vítimas de doenças infectocontagiosas. (PONTE, 1999,

p. 77). Em 1866 o cemitério São Casimiro, então localizado na área urbana central de

Fortaleza foi transferido para longe da capital, com um novo nome: o cemitério São João

Batista (PONTE, 1999, p. 80). Tal cemitério é o local de sepultamento que aparece nos

registros paroquiais de óbitos aqui discutidos.

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Neste período, a prática de isolamento de doentes e de criação ou transferências

de edifícios públicos para áreas distantes do núcleo urbano foi comum no Brasil e no

mundo. Parte do aparato médico sanitarista à época acreditava que as doenças

infectocontagiosas teriam origem nos miasmas6. Desta forma, os matadouros, mercados,

hospitais, lazaretos e cemitérios foram construídos ou transferidos para locais afastados

do núcleo urbano (JORGE, 2007).

2. A grande seca de 1877-1879 e a migração

Durante a segunda metade do século XIX, as províncias do Norte – Ceará, Rio

Grande do Norte, Piauí, Paraíba, Pernambuco e Bahia – foram atingidas pela grande seca

de 1877 a 1879. Embora, seja a província do Ceará a que mais sofreu com o impacto da

seca7. Segundo o relatório do presidente de província Silva Prado (1889) nas províncias

da Bahia, Rio Grande do Norte e Piauí ‘o flagelo não chegou a produzir o terror que

ocasionaram na do Ceará as consideráveis perdas de gado e deperecimento da lavoura,

obrigando a população a abandonar os seus lares e sahir pelo littoral’ (RELATÓRIO,

1889 a, p. 93 APUD NOZOE, BASSANEZI e SAMARA, 2003).

Em consequência desta seca, o Ceará presenciou um significativo crescimento das

emigrações. A Amazônia e a províncias do Sul foram os principais destinos dos cearenses.

Amazônia por ter sido um local atrativo devido as oportunidades de trabalho geradas pela

produção da borracha (CARDOSO, 2014; TEOPHILO, 1922). Calcula-se que, entre 1869

e 1900, 300.902 pessoas deixaram o Ceará. Destes, 255.526 (85%) foram para a

Amazônia e 45.376 para o Sul do Brasil (GIRÃO, 1947, p. 393, APUD NOZOE,

BASSANEZI e SAMARA, 2003). As secas paralisavam a economia rural, dificultando o

abastecimento das cidades e do campo, o que provocava fome e desemprego entre a

6 A teoria biológica miasmática, formulada por Thomas Sydenham e Giovanni Maria durante o século

XVII, afirma que o contágio das doenças acontecia por meio da inalação de miasmas, caracterizada por

odores fétidos provenientes de matéria orgânica em putrefação nos solos e lençóis freáticos contaminados. 7 No Ceará o impacto da seca foi tão forte que a província recebeu recursos de províncias vizinhas que

também estavam passando pelo mesmo fenômeno. Como é o caso da província de Pernambuco que

‘remeteu em 6 de abril de 1877 uma quantia de 464$000 para as vítimas da seca pela comissão acadêmica

do Recife’ (TEOPHILO, 1922, p. 84).

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população, aumentando os riscos de epidemias e a frequência de mortes. Diante desse

contexto econômico-demográfico, muitas pessoas migraram para outras regiões do

Brasil, em busca de oportunidades de trabalho e possibilidades de acesso ou posse da terra

(NOZOE, BASSANEZI e SAMARA, 2003).

As emigrações também aconteceram a nível interno. As cidades de Fortaleza,

Maranguape, Baturité, Aracaty e as vilas de Pacatuba e Mecejana, e a povoação de

Arronches foram os locais mais procurados pelos retirantes (TEOPHILO, 1922, p. 111).

Acrescenta-se a Vila do Crato que tinha maior resistência a seca devido ao grande número

de nascentes de água. Por sua vez, nas regiões do Sertão, onde a economia era,

principalmente, baseada na pecuária e na agricultura, o impacto da seca foi maior,

causando morte, fome e deslocamento (VIEIRA JUNIOR, 2002). Para os retirantes, as

migrações eram uma estratégia de sobrevivência em decorrência da falta de água e de

alimentos (VIEIRA JUNIOR, 2002).

Fortaleza foi a cidade que mais recebeu retirantes vindos do interior da província.

Cerca de 100 mil retirantes, com uma população a época em torno de 30 mil habitantes

(PONTE, 1999, p. 84). Foi construído no imaginário popular que na Capital da província

havia dinheiro e trabalho para os retirantes com recursos vindos da Corte do Rio de

Janeiro. Desta forma, Fortaleza foi retratada como uma espécie de Terra Prometida,

conforme relatado: ‘Animados com esta esperança, diariamente partiam, de todos os

pontos, inúmeras caravanas em procura da Terra Prometida’ (TEOPHILO, 1922, p. 97).

No entanto, quando os retirantes chegavam à capital famintos e doentes eram recebidos

em abarracamentos nos subúrbios da cidade, locais com higiene precário e em troca de

auxílio eram resignados ao trabalho duro. Para piorar a situação, epidemias de febre

amarela e varíola surgiram no mesmo período.

As comissões de socorros públicos além da distribuição de alimentos remédios,

encaminhavam os retirantes para o trabalho (CARDOSO, 2014). Um exemplo disto, foi

a criação do projeto Pompeu Sinimbú, proposto pelo senador Tomás Pompeu de Souza

Brasil e implantado em 1878 consistia em conceber auxílio do governo ao retirante, desde

que ele pudesse se dispor ao trabalho para realizar obras públicas. Era uma forma de

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promover o progresso material da província por meio da construção e reforma de pontes,

estradas, prédios públicos, praças, escolas, cemitérios, igrejas e contornar o problema das

estiagens com a construção de açudes (SOUZA, 2015). O mesmo projeto também foi

implantado no Rio Grande do Norte. A Colônia Agrícola de Sinimbú foi fundada em 1878

a cerca de 27 km da capital da província, na vila de Ceará-Mirim. Recebeu cerca de 6.600

retirantes da seca de 1877, em busca de moradia e cuidados médicos, por meio do trabalho

(POMBO, 1922; BRITO, 2015). A criação do projeto foi uma forma de tirar proveito dos

socorros públicos que o governo por lei era obrigado a prestar à população, além de aliviar

as tensões ocasionadas pela presença em larga escala de retirantes nas capitais (SOUZA,

2015; BRITO, 2015).

Embora com menos intensidade do que em Fortaleza a província do Rio Grande

do Norte também sofreu com a seca. A província do Rio Grande do Norte alcançou um

estado de verdadeira penúria (LYRA, 2008, p. 304). Nos interiores, quase todos os lugares

foram alvos: ‘as populações abandonam os sítios do interior procurando as cidades e

villas’ (POMBO, 1922, p. 352).

Diante do exposto, é nítido que ambas as capitais não estavam preparadas

financeiramente e estruturalmente para uma seca dessa magnitude. O enorme contingente

populacional, a proliferação das doenças epidêmicas, os problemas urbanos e sanitários,

e a falta de alimentos e água levaram ao aumento da mortalidade a níveis drásticos. Desta

forma, no próximo item, a partir dos registros de óbitos será analisado o tamanho do

impacto causado pela seca e pelas doenças na mortalidade da população. Será analisado

o quantitativo de óbitos por sexo e idade de 1870 a 1878 e as principais causas de óbitos

que permitirá traçar um perfil das doenças que mais atingiram a população vítima da

grande seca.

3. Registros paroquiais de óbitos: uma análise do padrão etário e por sexo da

mortalidade

O Império português instituiu os assentos eclesiásticos de batismos, matrimônios

e óbitos entre as suas colônias a partir do Concílio de Trento (1545-1563) como meio de

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controle, conhecimento da população e expansão do poder do reino de Portugal. Para a

adaptação das normas eclesiásticas à realidade colonial brasileira foi promulgada as

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia em 1707. A partir dela, ficou definido

as normas para a elaboração dos assentos eclesiásticos. Aos registros de óbitos foi

determinado que seguissem a seguinte estrutura:

Aos tantos dias de tal mez, e de tal anno falleceo da vida presente N. Sacerdote Diacono,

ou Subdiacono; ou N. marido, ou mulher de N. ou viuvo, ou viúva de N., ou filho, ou

filha de N., do lugar de N., freguez desta, ou de tal Igreja, ou forasteiro, de idade de tantos

annos, (se commodamente se puder saber) com todos, ou tal Sacramento, ou sem elles: foi sepultado nesta, ou em tal Igreja: fez testamento, em que deixou se dissessem tantas

Missas por sua alma, e que se fizessem tantos Officios; ou morreo ab intestado, ou era

notoriamente pobre, e por tanto lhe fez o enterro sem lhe levar esmola (CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA, 1707, p. 292).

Mas geralmente essas recomendações não eram seguidas à risca pelos padres, que

na maioria dos casos, apresentavam características próprias de redação, o que poderia

impactar na qualidade dos dados. A variação da qualidade das informações está

diretamente relacionada ao padre responsável pela escrita dos documentos paroquiais

(SCOTT e SCOTT, 2013). No que se refere aos registros de Natal e Fortaleza, houve

diferença na cobertura da declaração de idade entre os dados de Natal e Fortaleza. A

maioria dos registros de Natal não apresentaram informações da idade do falecido,

enquanto Fortaleza não houve esse problema. Na demografia, as variáveis de sexo e idade

são de extrema importância, pois a partir delas é possível realizar estimativas e calcular

indicadores demográficos que identifiquem padrões de mortalidade.

No período de 1870 e 1878, Natal apresentou um total de 1776 óbitos registrados

nos documentos eclesiásticos. Enquanto Fortaleza, de 1870 a junho de 1878 apresentou

um total de 12579 óbitos. Em ambas as capitais, a mortalidade aumentou no período da

grande seca a partir de 1877 (Tabela 1).

Tabela 1 – óbitos por ano, Natal e Fortaleza, 1870-06/1878

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Fonte de dados: registros paroquiais de óbitos da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (Natal),

disponível na Cúria Metropolitana de Natal; e registros paroquiais de óbitos da freguesia de São José

(Fortaleza), disponível online > https://www.familysearch.org<.

Esses dados quando analisados por idade e sexo permite identificar segmentos da

população que mais sofriam os impactos causados pelas condições sanitários, doenças

infectocontagiosas e a seca, característicos do contexto de mortalidade no período. Porém,

havia diferença da qualidade dos dados entre as duas capitais, conforme já afirmado. A

maioria dos registros de óbitos de Natal não apresentou informações de idade (Gráfico

1). Desta forma, a estrutura etária dos óbitos desta cidade não foi analisada para cada ano,

como foi realizado com Fortaleza.

A estrutura etária dos óbitos de 1870 e 1872 em Fortaleza seguiu certo padrão. O

número de óbitos não ultrapassou de 400 para os dois anos. Destaca-se a predominância

da mortalidade das crianças com menos de 1 ano e uma diferença do número de óbitos de

mulheres em relação ao de homens no grupo etário de 30 a 34 anos, provavelmente em

decorrência de problemas no parto ou problemas nos dados (Gráfico 2).

Gráfico 1 – óbitos por idade e sexo, Natal, 1870-1878

Ano Absoluto % Absoluto %

1870 112 6,31 399 3,17

1871 76 4,28 348 2,77

1872 102 5,74 721 5,73

1873 43 2,42 674 5,36

1874 128 7,21 616 4,90

1875 132 7,43 788 6,26

1876 139 7,83 644 5,12

1877 189 10,64 2169 17,24

1878 855 48,14 6220 49,45

Total 1.776 12.579

Natal Fortaleza

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Fonte de dados: registros paroquiais de óbitos da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (Natal),

disponível na Cúria Metropolitana de Natal.

Gráfico 2 – óbitos por idade e sexo, Fortaleza, 1870 e 1871

Fonte de dados: registros paroquiais de óbitos da freguesia de São José (Fortaleza), disponível online >

https://www.familysearch.org<.

600 500 400 300 200 100 0 100 200 300 400 500 600

< 0101 - 0405 - 0910 - 1415 - 1920 - 2425 - 2930 - 3435 - 3940 - 4445 - 4950 - 5455 - 5960 - 6465 - 6970 - 74

75 ou maisNão infor.

Óbitos em números absolutos

Gru

po

etá

rio

Homens Mulheres

150 100 50 0 50 100 150

< 0101 - 0405 - 0910 - 1415 - 1920 - 2425 - 2930 - 3435 - 3940 - 4445 - 4950 - 5455 - 5960 - 6465 - 6970 - 74

75 ou maisNão infor.

Óbitos em números absolutos

Gru

po

etá

rio

Homens Mulheres

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A partir de 1872 houve um crescimento do número de óbitos e manteve-se um

padrão da quantidade de óbitos por ano até 1876, o volume não ultrapassou de 800. O

grupo de idade mais afetado com alta mortalidade continuou sendo o de crianças com

menos de 1 ano de idade, seguido pelo grupo etário de 0 a 4 (Gráfico 3 e 4). Esse alto

número de óbitos em crianças com menos de 1 ano e de 0 a 4 pode ser indicador de alta

mortalidade infantil e na infância. Estimativas que poderiam ser calculadas se tivéssemos

os dados dos nascidos vivos com menos de 1 ano. Mas de todo modo, são evidências

sobre as condições de vida da época, pois as crianças são as mais afetadas pelo péssimo

estado sanitário do ambiente e do pouco acesso a serviços de saúde e alimentação

adequada. Essas condições se tornam ainda mais precárias em épocas de secas, atingindo

outros grupos etários populacionais, tal como aconteceu em virtude da grande seca de

1877-1878, conforme discutido no próximo tópico.

Gráfico 3 – óbitos por idade e sexo, Fortaleza, 1872 e 1873

Fonte de dados: registros paroquiais de óbitos da freguesia de São José (Fortaleza), disponível online >

https://www.familysearch.org<.

250 200 150 100 50 0 50 100 150 200 250

< 0101 - 0405 - 0910 - 1415 - 1920 - 2425 - 2930 - 3435 - 3940 - 4445 - 4950 - 5455 - 5960 - 6465 - 6970 - 74

75 ou maisNão infor.

Óbitos em números absolutos

Gru

po

etá

rio

Homens Mulheres

Page 12: DAYANE JULIA CARVALHO DIAS1...4 A proposta inicial do artigo era realizar uma análise dos registros óbitos até o ano de 1880. Mas devido a enorme quantidade dos óbitos em 1877

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Gráfico 4 – óbitos por idade e sexo, Fortaleza, 1874-1876

Fonte de dados: registros paroquiais de óbitos da freguesia de São José (Fortaleza), disponível online >

https://www.familysearch.org<.

4. A seca de 1877 e o impacto na mortalidade e no decréscimo populacional

Segundo o Recenseamento Geral do Império de 1872, Fortaleza tinha uma

população de 21.372 habitantes. No Recenseamento de 1890 a população era de 23.465

indivíduos. No período decorrido de 18 anos, entre um censo e outro, a população

praticamente não obteve crescimento. A explicação para essa cifra de população de 1890

tem origens na seca de 1877-79. Theophilo (1922) relatou:

350 300 250 200 150 100 50 0 50 100 150 200 250 300 350

< 0101 - 0405 - 0910 - 1415 - 1920 - 2425 - 2930 - 3435 - 3940 - 4445 - 4950 - 5455 - 5960 - 6465 - 6970 - 74

75 ou maisNão infor.

Óbitos em números absolutos

Gru

po

etá

rio

Homens Mulheres

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Segundo o recenciamento procedido em 30 de setembro (1878), havia uma população de

114.404 pessoas; e quarenta dias depois, em outubro, o arrolamento apresentava a cifra

de 108.656, havendo um decrescimento de 5.784! (THEOPHILO, 1922, P. 229).

É preciso considerar o quantitativo de retirantes na cidade que aumentou o número

de população, segundo Theophilo (1922) a população de indigentes era de

aproximadamente 60.000. Mas o número de pessoas que saíram da província em direção

a região Sul e Norte foi alarmante. Segundo o mesmo autor: ‘pelo porto da Fortaleza,

sahiram durante o ano de 1878, 26.875 indigentes, sendo para o sul e 15.300 para o norte’

(THEOPHILO, 1922, p. 256). Desta forma, tais relatos são indícios de que a população

de Fortaleza não apresentou crescimento vegetativo entre 1872 e 1890 devido aos efeitos

da seca que ocasionou grande mortalidade como também impulsionou a emigração para

outras regiões do País.

Nesse sentido, é consenso na historiografia clássica do Ceará que a seca de 1877-

79 foi uma das mais desastrosas e ocasionou grande mortalidade. Porém, esse impacto

nunca foi analisado a partir da estrutura de idade e sexo. Pode-se perceber que o padrão

de mortalidade mudou em relação aos anos anteriores. O número de óbitos aumentou

drasticamente a partir de 1877 (2169 óbitos) e o grupo etário mais afetado passou a ser o

de 01 a 04 anos (Gráfico 5). Em 1878 apesar da análise corresponder há apenas 6 meses8,

o número de óbitos praticamente triplicou em relação ao registrado em 1877, chegando a

um volume de 6220 óbitos na freguesia de São José de Fortaleza (Gráfico 6). Este

aumento no número de óbitos na capital do Ceará ocorreu devido a dois fatores: a

emigração massiva de retirantes refugiados da seca; e a disseminação da febre amarela9.

Gráfico 5 – óbitos por idade e sexo, Fortaleza, 1877

8 A catalogação irá continuar até 1890 e será possível analisar de modo mais completo o comportamento

da mortalidade em período de crise, assim como também a mortalidade normal. 9 Além da febre amarela, no período há a disseminação da varíola que de acordo com Theophilo (1922)

aparece a partir de setembro de 1878.

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Fonte de dados: registros paroquiais de óbitos da freguesia de São José (Fortaleza), disponível online >

https://www.familysearch.org<.

Gráfico 6 – óbitos por idade e sexo, Fortaleza, 01 a 06/1878

Fonte de dados: registros paroquiais de óbitos da freguesia de São José (Fortaleza), disponível online >

https://www.familysearch.org<.

500 300 100 100 300 500

< 0101 - 0405 - 0910 - 1415 - 1920 - 2425 - 2930 - 3435 - 3940 - 4445 - 4950 - 5455 - 5960 - 6465 - 6970 - 74

75 ou maisNão infor.

Óbitos em números absolutos

Gru

po

etá

rio

Homens 1877 Mulheres 1877

1.200 800 400 0 400 800 1.200

< 0101 - 0405 - 0910 - 1415 - 1920 - 2425 - 2930 - 3435 - 3940 - 4445 - 4950 - 5455 - 5960 - 6465 - 6970 - 74

75 ou maisNão infor.

Óbitos em números absolutos

Gru

po

etá

rio

Homens 1878 Mulheres 1878

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A análise da mortalidade por causas é um ótimo indicador para a compreensão das

condições de vida da população e a identificação de padrões de causas de óbitos. Essas

informações também variavam na qualidade e quantidade entre os dados de Natal e

Fortaleza. Nos anos de seca, 1877 e 1878, não houve declaração de causa de óbitos para

Natal, com exceção de apenas uma causa, a Fome. Já para Fortaleza, quase todos os

registros apresentaram a causa do óbito (Tabela 2).

Tabela 2 – As seis principais causas de óbitos, Fortaleza, 1877-1878

Fonte de dados: registros paroquiais de óbitos da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (Natal),

disponível na Cúria Metropolitana de Natal; e registros paroquiais de óbitos da freguesia de São José

(Fortaleza), disponível online > https://www.familysearch.org<.

A Febre Amarela aparece como principal causa de óbito em 1877 e fica em

segundo no ano seguinte, sendo considerada como epidêmica pela grande quantidade de

óbitos. A Febre causa principal causa em 1878 abre margem para interpretações. O

aumento da temperatura é consequência da resposta do organismo a invasores,

normalmente vírus e bactérias, desta forma, trata-se de sinal de doença infecciosa. Além

disso, o termo Febre apresenta indícios de que possa ser abreviação de Febre Amarela.

Uma hipótese é que seja uma característica específica de escrita do padre, o qual

pretendeu economizar na escrita devido a grande quantidade de óbitos para serem

registrados por dia (Tabela 2).

A segunda maior causa de óbito em 1877 e a quarta em 1878 foi o Espasmo.

Atinge, primordialmente, crianças com menos de 1 ano de idade. Segundo o dicionário

colonial de Raphael Bluteau (1728) é o ‘mesmo que convulsão ou retração. Uma

Ordem DoençaNúmero

de óbitosDoença

Número de

óbitos

1 Febre amarela 900 Febre 3.572

2 Espasmo 360 Febre amarela 1.558

3 Diarrhea 175 Diarrhea 269

4 Hidropisia 101 Espasmo 190

5 Dentição 49 Beriberi 86

6 Fome 37 Hidropisia 79

1877 1878

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16

convulsão involuntária dos nervos’. De acordo com a descrição não é possível identificar

a doença que causou a morte, apenas o sintoma. O espasmo foi a causa de óbito

predominante entre 1870 a 1876. A terceira maior causa em 1877 e 1878 foi a Diarrhea.

Bluteau (1728) define como ‘doença, fluxo de ventre em que sai dele evacuação frequente

de matéria clara, água, mucosa, glutinosa, com espuma, biliosa, ou denegridados

intestinos, talvez com puxos’. A diarreia é um sintoma marcado por complicações

geralmente provocadas por intoxicação alimentar, causada pela ingestão de alimentos

contaminados; consumo de água contaminada; ou ainda, sinal de gastroenterite, infecção

intestinal (Tabela 2). A Hidropisia (também chamada de anasarca) é definida por Bluteau

(1728) como: ‘inchação, ou tumor preternatural do ventre, ou das pernas, ou do corpo

todo, causada de huma agoa intercutânea, quando não há boa fanguificação do fígado’.

Atualmente a doença se define como acumulação de líquido aquoso nas cavidades

naturais do corpo ou no tecido celular causada por distúrbios na circulação do sangue. A

definição de Dentição não consta nos dicionários coloniais. O Beribéri é uma doença

causada pela deficiência da vitamina B1 no organismo. E por fim, a Fome decorrente da

falta de alimentos (Tabela 2).

As causas de óbitos apresentadas condizem com o contexto de mortalidade

fortemente influenciado pela seca e pelas doenças epidêmicas, como a febre amarela e

mais tarde, a varíola. Outras causas se destacaram resultado do estado sanitário precário,

da ingestão de alimentos e água contaminadas, como é o caso da diarreia; pela falta de

alimentação adequada com a carência de certos nutrientes, o beribéri; e ainda a total falta

de alimentos que levou as pessoas a falecerem de fome.

Considerações finais

Pode-se concluir que este exercício teórico e metodológico de análise das fontes

dos registros paroquiais de óbitos possibilitou a ampliação do conhecimento sobre o

contexto de mortalidade nas capitais provinciais, Natal e Fortaleza. Foi possível uma

análise da estrutura de óbitos por idade e sexo, assim como também das principais causas

de óbitos em anos de seca. Posteriormente, pretende-se realizar o cruzamento com dados

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de população dos recenseamentos de 1872 e 1890 e assim produzir estimativas de

mortalidade (Taxas específicas de mortalidade) e também a aplicação de métodos para a

correção do grau de cobertura dos óbitos. Como também a aplicação de métodos que

permitem calcular a intensidade das crises de mortalidade, assim como outras opções

metodológicos para o tratamento dos dados, levando em consideração que se trata de

dados defeituosos.

Desta forma, o presente artigo foi uma exploração do potencial e das limitações

deste tipo de fonte. Ficou evidente que os dados de Natal são mais defeituosos. De toda

forma, até o período analisado foi possível chegar a algumas conclusões sobre o contexto

de mortalidade vivenciado pelas duas sociedades. Primeiro, casa com o conceito de

período pré-transicional que vigorava a alta mortalidade com causas de óbitos

predominantemente por doenças infectocontagiosas. Acrescenta-se os terríveis efeitos da

seca ao considerar o grande número de emigrantes na capital que não estava preparada

estruturalmente, economicamente e sanitariamente para uma seca desta magnitude. Em

consequência disso, com muitos retirantes e a disseminação da febre amarela a

mortalidade aumentou de forma considerável.

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