das modalidades artísticas mais complexas, apesar de o ......302 monteiro, r. h. e r oc h a, c. (o...

11
301 MONTEIRO, R. H. e ROCHA, C. (Orgs.). Anais do V Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual Goiânia-GO: UFG, FAV, 2012 ISSN 2316-6479 REFLEXÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO RETRATO wDéborah Rodrigues Borges [email protected] PPG em Arte e Cultura Visual – UFG Resumo Este trabalho propõe uma discussão sobre a produção de sentidos no retrato, gênero de imagem que se manifesta sobre diferentes suportes e cuja produção atende a interesses diversos, seja no campo artístico ou familiar. As reflexões partem de retratos que, contrariando as definições mais tradicionais do gênero, não são elaborados para registrar a fisionomia dos sujeitos, mas expressam características de suas personalidades por meio do uso de atributos relacionados às pessoas retratadas. Assim, mais do que um suporte para o registro mimético das feições de uma pessoa ou grupo, o retrato pode ser entendido como uma construção simbólica dos sujeitos. Palavras-chave: retrato; sentidos; atributos; personalidade. Abstract This paper proposes a discussion on the meanings production in portraits, gender of image that is expressed on different media and whose production serves to various interests, whether in art or family. The reflections are of portraits that, contrary to the more traditional definitions of the gender, are not designed to record the face of the subjects, but express characteristics of their personalities through the use of attributes related to the portrayed people. Thus, more than a support for the mimetic registration of the features of a person or group, the portrait can be understood as a symbolic construction of the subject. Keywords: portrait; meanings; attributes; personality. Talvez um dos gêneros pictóricos mais antigos, o retrato é, também, uma das modalidades artísticas mais complexas, apesar de o senso comum, e mesmo certas correntes teóricas, atribuírem-lhe uma função de mero registro objetivo das feições de uma pessoa. Uma análise um pouco mais detida dos usos, funções e valores simbólicos do retrato tanto no meio artístico quanto no contexto popular é suficiente para, no mínimo, levantar suspeitas sobre essa pretensa objetividade do retrato, essa expectativa de um compromisso com o caráter documental desse tipo de imagem. Lemos (1983), ao analisar especificamente retratos fotográficos produzidos no século XIX, já constata que o retrato não é apenas “a representação tangível, em duas ou três dimensões, da fisionomia de uma pessoa” (p. 49). Segundo o autor, desde a Grécia Antiga observa-se a preocupação em fabricar retratos, naquela época especialmente na forma de bustos, de personagens que gozassem de prestígio e relevância social. Entretanto,

Upload: others

Post on 18-Nov-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: das modalidades artísticas mais complexas, apesar de o ......302 Monteiro, r. H. e r oc H a, c. (o rgs.). a nais do V Seminário n acional de Pesquisa em a rte e c ultura Visual Goiânia-G

301

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479REFLEXÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO RETRATO

wDéborah rodrigues [email protected]

PPG em Arte e Cultura Visual – UFG

Resumoeste trabalho propõe uma discussão sobre a produção de sentidos no retrato, gênero de imagem que se manifesta sobre diferentes suportes e cuja produção atende a interesses diversos, seja no campo artístico ou familiar. As reflexões partem de retratos que, contrariando as definições mais tradicionais do gênero, não são elaborados para registrar a fisionomia dos sujeitos, mas expressam características de suas personalidades por meio do uso de atributos relacionados às pessoas retratadas. assim, mais do que um suporte para o registro mimético das feições de uma pessoa ou grupo, o retrato pode ser entendido como uma construção simbólica dos sujeitos.Palavras-chave: retrato; sentidos; atributos; personalidade.

Abstractthis paper proposes a discussion on the meanings production in portraits, gender of image that is expressed on different media and whose production serves to various interests, whether in art or family. The reflections are of portraits that, contrary to the more traditional definitions of the gender, are not designed to record the face of the subjects, but express characteristics of their personalities through the use of attributes related to the portrayed people. thus, more than a support for the mimetic registration of the features of a person or group, the portrait can be understood as a symbolic construction of the subject.Keywords: portrait; meanings; attributes; personality.

talvez um dos gêneros pictóricos mais antigos, o retrato é, também, uma das modalidades artísticas mais complexas, apesar de o senso comum, e mesmo certas correntes teóricas, atribuírem-lhe uma função de mero registro objetivo das feições de uma pessoa. Uma análise um pouco mais detida dos usos, funções e valores simbólicos do retrato tanto no meio artístico quanto no contexto popular é suficiente para, no mínimo, levantar suspeitas sobre essa pretensa objetividade do retrato, essa expectativa de um compromisso com o caráter documental desse tipo de imagem.

Lemos (1983), ao analisar especificamente retratos fotográficos produzidos no século XiX, já constata que o retrato não é apenas “a representação tangível, em duas ou três dimensões, da fisionomia de uma pessoa” (p. 49). Segundo o autor, desde a Grécia antiga observa-se a preocupação em fabricar retratos, naquela época especialmente na forma de bustos, de personagens que gozassem de prestígio e relevância social. entretanto,

Page 2: das modalidades artísticas mais complexas, apesar de o ......302 Monteiro, r. H. e r oc H a, c. (o rgs.). a nais do V Seminário n acional de Pesquisa em a rte e c ultura Visual Goiânia-G

302

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479Lemos destaca que, em muitas situações, “o veraz registro fisionômico era

dispensável, sendo o retratado reconhecível, ou identificável, pela simbologia contida na organização da pintura, no significado dos vestuários ou objetos ali desenhados” (1983, p. 49).

o uso de atributos nas representações de determinados personagens, como os santos, por exemplo, é o que permite ao espectador interpretar certos sentidos que se buscou transmitir em algumas imagens. reconhece-se que uma pintura representa um determinado santo não pelos seus traços fisionômicos, que se perderam ao longo da História, mas pela presença de algum atributo incorporado à cena retratada, algo que diga respeito a alguma passagem da vida do santo.

nas representações laicas, certos símbolos também acabaram tendo seus significados consolidados pelo uso e associação a determinadas características e valores. Assim, como expõe Lemos, “um livro dá status intelectual ao retratado, enquanto a pena de escrever e o tinteiro já o fazem um escritor. a coruja simboliza o pensamento, as cogitações filosóficas, a sapiência. O cão, a fidelidade” (1983, p. 51). os atributos, portanto, são meios que o produtor de imagens – sejam obras de arte ou retratos de uso familiar – utiliza para comunicar certas mensagens simbólicas que se deseja associar ao retratado.

embora Lemos (1983) faça uma distinção entre os atributos e as vestimentas do modelo, delimitando a cada grupo um valor distinto na construção de sentidos no retrato, ao menos em algumas situações essa diferenciação não parece ser tão evidente. Lavelle (2003), ao considerar o contexto de emergência da percepção do valor da privacidade e da intimidade no século XiX europeu, pondera que “é na aparência do sujeito – em suas vestes, gestos e no próprio corpo – que este eu interior se expressa socialmente. É o corpo que demarca a fronteira entre o íntimo e a aparência, entre personalidade e comportamento” (p. 38).

apesar de Lavelle enfatizar a importância do corpo como elemento de demarcação da individualidade, a qual paradoxalmente se reafirma em contraste com um grupo social tido como exterior ao sujeito, há que se considerar que um corpo destituído de qualquer vestimenta ou adereço dificilmente seria capaz de efetuar a construção de uma “personalidade”. em suma: o indivíduo, enquanto categoria social forjada a partir do século XIX, é reconhecido em sua especificidade graças ao conjunto de seus comportamentos – dimensão um tanto intangível – e dos atributos (incluindo as vestimentas) que ostenta.

em determinadas imagens, o tipo de vestimentas, calçados e acessórios utilizados pelo retratado forma um conjunto tão, ou até mesmo, mais

Page 3: das modalidades artísticas mais complexas, apesar de o ......302 Monteiro, r. H. e r oc H a, c. (o rgs.). a nais do V Seminário n acional de Pesquisa em a rte e c ultura Visual Goiânia-G

303

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479importante, para a construção de uma “identidade” do retratado do que seus

próprios traços fisionômicos. Em outras palavras: em muitas situações, os atributos que envolvem e cercam o retratado dizem ao espectador, muito mais do que as feições do modelo, aquilo que se pretendeu comunicar sobre a pessoa do retratado.

Arman. Retrato-robô de Iris. 1960..

alguns artistas, como arman Pierre Fernandez, acabaram levando essa idéia ao extremo em algumas de suas obras. Ao retratar Iris Clert e Yves Klein, em 1960, o artista simplesmente abdicou do registro fisionômico de ambos, embora as duas obras se intitulem retratos. Goldberg (2010) destaca no Retrato-robô de Iris a renúncia completa à semelhança física, na qual a própria face desaparece, substituída por sinais característicos da personagem. ao reunir

Page 4: das modalidades artísticas mais complexas, apesar de o ......302 Monteiro, r. H. e r oc H a, c. (o rgs.). a nais do V Seminário n acional de Pesquisa em a rte e c ultura Visual Goiânia-G

304

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479uma variedade de tecidos, frascos de perfume e esmalte de unhas e um sapato

de salto alto, arman elabora um retrato sem rosto, mas no qual reconhecemos uma pessoa ao mesmo tempo extravagante e sofisticada. Vale lembrar que Iris foi uma figura fundamental na trajetória de Arman, pois foi em sua galeria que o artista realizou algumas de suas mais importantes exposições, e foi também ela quem, a partir de um erro de impressão em material que divulgava uma exposição de Arman, acabou decretando a retirada do d que, originalmente, havia em seu nome (armand).

Já em relação ao Primeiro retrato-robô de Yves Klein, Goldberg (2010) ressalta que o grande amigo de Arman, notório inventor do Azul Klein, teve direito a tratamento especial: seu retrato tem pelo menos o dobro das dimensões do de Iris Clert. No retrato de Klein, Arman não chegou a abdicar completamente do traço fisionômico, uma vez que na parte superior da obra insere um fragmento de papel estampado com o rosto do artista, enquanto mais abaixo vemos outros objetos também associados à sua personalidade: papéis pintados em azul Klein, o quimono usado para a prática de artes marciais (paixão de ambos), o livro preferido de Klein, La Terre et lês rêvieres Du repôs, de Gaston Bachelard...

embora lançando mão de procedimentos compositivos e formais presentes em várias de suas obras, como as acumulações e os trabalhos denominados poubelles, em que se apropria de resíduos descartados, arman não faz, nesses retratos, uma crítica à sociedade de consumo. ao utilizar objetos de produção serial que acabaram perdendo seu valor de uso, e atribuir-lhes um valor estético, Arman, em outras obras, provoca uma reflexão sobre os perigos e danos ocasionados por uma sociedade cada vez mais guiada pela lógica do consumo desenfreado. Entretanto, nos retratos de Iris Clert e Yves Klein, embora Arman se aproprie de objetos que, muito provavelmente, também tiveram uma produção serial – os tecidos e o sapato de Iris, o quimono e o livro de Klein – trata-se, aqui, de um agrupamento de vários fragmentos materiais que, para o artista, remetem às personalidades de seus dois amigos. Há uma relação afetiva entre arman e seus retratados, e esse é um aspecto que não deve ser ignorado, pois é só por esse motivo que o artista consegue selecionar, entre os objetos pessoais de Iris e Yves, aqueles capazes de definir, ou ao menos, informar, alguns traços das personalidades de ambos. arman, nessas obras, se afasta radicalmente da definição tradicional de retrato, associado ao registro fisionômico, e se aproxima de uma conceituação que não abandona por completo a preocupação em representar uma personalidade.

Page 5: das modalidades artísticas mais complexas, apesar de o ......302 Monteiro, r. H. e r oc H a, c. (o rgs.). a nais do V Seminário n acional de Pesquisa em a rte e c ultura Visual Goiânia-G

305

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479

Arman. Primeiro retrato-robô de Yves Klein. 1960.

Poder-se-ia argumentar que uma certa “liberdade” artística daria a Arman uma licença para corromper tão profundamente os cânones consolidados do retrato, em especial por abdicar, em grande medida, do registro das feições de seus retratados. E não haveria mal algum nisso. Afinal, não é mesmo a Arte um sistema peculiar o bastante para, inclusive, reinventar-se constantemente? entretanto, o tema que aqui nos ocupa – o retrato que não representa as feições humanas – toca, também, a esfera da imagística popular. Martins (2008, p. 49) observa que, “em circunstâncias sociais radicalmente diversas, o retrato é concebido e esperado do mesmo modo, como imagem icônica, como imagem do invisível, como expressão visual de virtudes humanas e interiores, e não como mera aparência externa e mera forma”

Page 6: das modalidades artísticas mais complexas, apesar de o ......302 Monteiro, r. H. e r oc H a, c. (o rgs.). a nais do V Seminário n acional de Pesquisa em a rte e c ultura Visual Goiânia-G

306

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479embora o senso comum tenha um discurso de valorização do retrato

fotográfico pela sua propriedade de registro fiel das características da pessoa, os estudos sobre os usos e funções desse tipo de imagem atestam que a construção visual do que as mentalidades coletivas entendem como sendo os aspectos definidores de uma identidade é bastante complexa. Apesar de haver uma expectativa de que o retrato fotográfico se pareça com seu referente, esta imagem é forjada no interior de um sistema cultural em que as escolhas de vestuário, adereços, poses e cenários acabam dando ao retratado e ao fotógrafo ampla liberdade para inventar essa personalidade. Ou seja: o retrato fotográfico, já no século XiX, servirá ao desejo de registrar uma imagem idealizada do indivíduo, e será um instrumento que se prestará a usos familiares diversos neste sentido.

Dentro deste universo do retrato que não retrata (ou retrata de maneira diversa da convencional), encontram-se exemplos vindos de uma produção popular – e, aqui, essa definição de popular é dada em contraste à produção artística, tendo em vista que cada uma delas apresenta propostas, usos e funções um tanto distintas. Vejamos o exemplo da próxima imagem: trata-se do retrato de uma menina, feito em algum estúdio fotográfico no século XIX. A criança foi cuidadosamente vestida e penteada para a realização da foto e, de acordo com o costume e a necessidade técnica da época, posou para que a câmera pudesse captar sua imagem. este seria apenas mais um retrato oitocentista anônimo, como tantos outros que sobreviveram até os nossos dias, não fosse pela presença de um objeto pouco usual sobre a mesa em que a retratada se apóia. Sobre o móvel, a família fez retratar um vestido infantil – note-se que consideravelmente menor do que o da menina retratada.

De fato, não temos nesta imagem apenas uma retratada, mas sim, duas: a menina maior, cujas feições ficaram registradas na superfície fotossensível, e sua irmã menor, falecida, representada pelo pequeno vestido sobre a mesa. neste caso, à semelhança dos retratos de arman, a família elaborou um modo de registrar a imagem da criança sem recorrer a seus traços fisionômicos. A necessidade de manter algum registro material dessa coesão familiar – os laços afetivos entre as duas irmãs – levou a família a buscar uma solução para o fato de que já não era possível ter a presença material da menina menor para se fazer o retrato. reconhece-se, assim, que essa criança possuía um valor como indivíduo1, membro familiar, cuja perda

1 Gélis (1999) observa que as mudanças de atitude que irão conferir um status privilegiado à criança ocorreram ao longo de um período extenso, sendo difícil delimitar datas exatas para todo o processo. Entretanto, no século XIX já se encontra bastante consolidada a idéia de que a criança era um membro familiar importante, merecedor de cuidados e afetos.

Page 7: das modalidades artísticas mais complexas, apesar de o ......302 Monteiro, r. H. e r oc H a, c. (o rgs.). a nais do V Seminário n acional de Pesquisa em a rte e c ultura Visual Goiânia-G

307

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479foi sentida, sendo essa fotografia um dos mecanismos utilizados pela família

para expressar essa perda.

Retrato. Autor Anônimo. Século XIX. Fonte: www.thanatos.net, acesso em 20 de junho de 2007

Se para o retrato individual verificamos estratégias – artísticas ou familiares – para representar uma pessoa sem registrar seus traços fisionômicos, no caso do retrato de grupo iniciativas semelhantes também são encontradas. christian Boltanski, artista notório, entre outros aspectos, por suas obras preocupadas com as questões relacionadas às memórias individuais e coletivas (muitas vezes inventadas), em várias ocasiões recorre aos retratos para tratar dessas temáticas.

Segundo Braga (2011), Boltanski realiza um procedimento de elaboração da obra de arte semelhante ao de arman, uma vez que “destitui o objeto de seu ‘cáulculo sintagmático’, retirando o seu caráter técnico para acentuar o caráter poético”. Frequentemente, Boltanski trabalha com objetos descartados, com destaque para o uso de retratos fotográficos, por meio dos quais recompõe memórias – se verdadeiras ou inventadas, pouco importa, uma vez que em ambos os casos, essas memórias alheias encontram seu eco nas próprias memórias do espectador.

Page 8: das modalidades artísticas mais complexas, apesar de o ......302 Monteiro, r. H. e r oc H a, c. (o rgs.). a nais do V Seminário n acional de Pesquisa em a rte e c ultura Visual Goiânia-G

308

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479

Christian Boltanski. Personnes. Monumenta, Grand Palais, Paris, 2010.

Christian Boltanski. Personnes. Monumenta, Grand Palais, Paris, 2010.

Page 9: das modalidades artísticas mais complexas, apesar de o ......302 Monteiro, r. H. e r oc H a, c. (o rgs.). a nais do V Seminário n acional de Pesquisa em a rte e c ultura Visual Goiânia-G

309

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479na obra Personnes, concebida para a exposição Monumenta 2010 no Grand

Palais, em Paris, Boltanski trata de uma memória que flutua entre o individual e o coletivo, entre o verídico e o ficcional. A obra2, gigantesca, é composta por um grande muro construído com latas de bolachas em metal enferrujado, alinhadas como tijolos, formando uma visão semelhante a um arquivo, inserindo a noção de uma memória que nos escapa, por ser anônima (quantas histórias perdidas pelos arquivos!), mas que nos esforçamos para adivinhar.

atrás deste muro, a instalação é formada por uma gigantesca montanha de roupas no eixo da nave central do Grand Palais. Uma grua equipada com uma espécie de pinça mecânica desce até esta montanha, agarra peças de roupas a intervalos regulares, volta a subir e, após uma pausa, deixa cair novamente as roupas no monte. O restante do espaço é ocupado por 69 retângulos, de 3 x 5 metros, delimitados simetricamente no chão, sobre os quais encontra-se um grande número de roupas – de mulheres, homens e crianças – cuidadosamente dispostas com as aberturas viradas para baixo. Cada retângulo é iluminado por uma luz em néon, suspensa por um fio de metal. Para completar, enquanto o visitante caminha por esse cenário, ouve o som de 69 diferentes batimentos cardíacos emitidos por alto-falantes colocados nas extremidades dos cabos elétricos que iluminam cada retângulo.

ao se propor a recuperar a memória do holocausto, Boltanski não recorre aos registros históricos de personagens reais, identificáveis em documentos remanescentes do período. Mas as roupas “deitadas” de bruços em cada um dos retângulos, em organização militarmente simétrica, tornam-se talvez até mais pungentes do que os eventuais registros verídicos. não conseguimos alcançar e nem assimilar tamanho horror, pois os seres históricos envolvidos neste episódio nos escapam materialmente. Por outro lado, não conseguimos nos livrar da memória desta barbárie, pois apesar de as feições que, àquela época, certamente registraram todo o sofrimento dos campos de concentração, não estarem presentes na obra de Boltanski em retratos convencionais, as roupas dispostas por toda parte remetem de forma inquietante aos prisioneiros subjugados, submetidos a torturas, humilhações, sofrimentos e degradações. e, de fato, desaparecidos os mortos, não restam seus pertences? a origem destas roupas utilizadas por Boltanski pouco importa; afinal, é praticamente impossível ao espectador não pensar em todo esse aglomerado como pessoas.

2 Descrição da obra Personnes baseada em Guerra (2011).

Page 10: das modalidades artísticas mais complexas, apesar de o ......302 Monteiro, r. H. e r oc H a, c. (o rgs.). a nais do V Seminário n acional de Pesquisa em a rte e c ultura Visual Goiânia-G

310

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479Considerações Finais

Didi-Huberman (2006, p. 12) ressalta que “diante de uma imagem, temos humildemente que reconhecer o seguinte: que provavelmente ela nos sobreviverá, que diante dela somos o elemento frágil, o elemento passageiro, que diante de nós ela é o elemento do futuro, o elemento da duração”3. Podemos ampliar essa idéia, apropriando-nos dela para pensar a relação entre os objetos e a construção de uma identidade – pessoal ou coletiva – no retrato.

apesar das duras críticas feitas à sociedade de consumo, pela aquisição desenfreada de bens, de coisas, de objetos produzidos serialmente, os usos desses objetos pelas pessoas em relações cotidianas de convivência promove novos significados a todos esses elementos. Em nossas relações afetivas, as construções mentais que fazemos sobre as personalidades de quem nos cerca passam, também, pelo reconhecimento de alguma roupa que a pessoa goste de usar (ou com a qual gostamos de vê-la vestida), ou de algum acessório que, apesar de produzido e vendido em série, aquela pessoa em especial usava. Todos esses objetos pessoais podem se converter em atributos identificadores, para nós, dessas personalidades. e, uma vez que os objetos – assim como as imagens de que falava Didi-Huberman – podem facilmente sobreviver aos seus donos, é compreensível que depositemos neles certos afetos, como extensão dos afetos que nutrimos por seus proprietários.

Neste sentido, Diniz (2001, p. 115) bem expressa esse mecanismo que nos permite elaborar construções visuais a partir de atributos (objetos, vestimentas e acessórios) individuais ao afirmar que “toda representação visual é uma projeção imaginária do sujeito sobre um objeto, mesmo aquela que se pretende fundamentada no registro do dado. nada escapa, portanto, ao processo de elaboração simbólica e de atribuição de significados”.

Trata-se exatamente disso: cada um de nós atribui significados aos elementos materiais que nos cercam – pessoas, roupas, cenários –, não de forma fixa, mas cambiante; não de maneira aleatória, mas de acordo com as experiências cotidianas que temos com esses elementos. Por esse motivo, nas obras analisadas, o retrato é, muito mais do que o registro fisionômico, a representação de características que pretendem aglutinar histórias de vida, comportamentos, projeções mentais, numa tentativa, ora artística, ora familiar, de sintetizar num espaço delimitado as qualidades essenciais de uma matéria tão intangível quanto qualquer afeto.

3 tradução da autora.

Page 11: das modalidades artísticas mais complexas, apesar de o ......302 Monteiro, r. H. e r oc H a, c. (o rgs.). a nais do V Seminário n acional de Pesquisa em a rte e c ultura Visual Goiânia-G

311

Mo

nte

iro

, r. H

. e r

oc

Ha

, c. (

org

s.).

ana

is d

o V

Sem

inár

io n

acio

nal d

e P

esqu

isa

em a

rte e

cul

tura

Vis

ual

Goi

ânia

-Go

: U

FG, F

aV, 2

012

iSS

n 2

316-

6479Referências Bibliográficas

BraGa, isabel Florêncio. Boltanski e o museu imaginário: nos limites da representação. in: Studium 22. Disponível em

http://www.studium.iar.unicamp.br/22/03.html, acesso em 28 de julho de 2011.

DiDi- HUBerMan, Georges. Ante el tiempo. Buenos aires: adriana Hidalgo editora, 2006.

DiniZ, ariosvaldo da Silva. A iconografia do medo – imagem, imaginário e memória da cólera no século XiX. in: Imagem e memória – ensaios em Antropologia Visual. rio de Janeiro: Garamond, 2001.

GÉLIS, Jacques. Formas de Privatização: a individualização da criança. in: História da Vida Privada, São Paulo: companhia das Letras, 1999, vol. 3.

GoLDBerG, itzhak. Poubelles, Portraits-robots et Accumulations: le bazar d’arman. In: Arman au Centre Pompidou. Paris: Beaux Arts Editions, 2010.

GUerra, Sílvia. Christian Boltanski – Monumenta 10 – Personnes. Disponível em http://www.artecapital.net/criticas.php?critica=265, acesso em 28 de julho de 2011.

LaVeLLe, Patrícia. o espelho distorcido: imagens do indivíduo no Brasil oitocentista. Belo Horizonte, editora da UFMG, 2003.

LeMoS, carlos a. c. Retratos quase inocentes. São Paulo: nobel, 1983.

MartinS, José de Souza. Sociologia da fotografia e da imagem. São Paulo: Contexto, 2008.

Minicurrículo

Déborah rodrigues Borges é graduada em comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal de Goiás. Possui mestrado em cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás. atualmente, é aluna do Doutorado em arte e cultura Visual da Universidade Federal de Goiás. É professora das disciplinas de Fotografia e Fotojornalismo do curso de Comunicação Social – Jornalismo da Pontifícia Universidade católica de Goiás.