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JOSE ADIL BLANCO DE LIMA DAS MENTALIDADES À MICRO-HISTÓRIA: A TRAJETÓRIA DE GINZBURG 2008

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JOSE ADIL BLANCO DE LIMA

DAS MENTALIDADES À MICRO-HISTÓRIA: A TRAJETÓRIA DE

GINZBURG

2008

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JOSE ADIL BLANCO DE LIMA

DAS MENTALIDADES À MICRO-HISTÓRIA: A TRAJETÓRIA DE

GINZBURG

Monografia apresentada como trabalho

de conclusão de curso do curso de

História do setor de Ciências Humanas,

Letras e Artes da UFPR.

Orientador: Dr. Renato Lopes Leite

2008

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SUMÁRIO

Introdução

01

A História das Mentalidades e a

Historiografia Francesa dos Annales

03

A Historiografia Italiana e a Relação

com os Annales

15

A Historiografia Italiana

15

Influência dos Annales na

Historiografia Italiana

20

Cultura popular e Feitiçaria : A

Trajetória de Ginzburg

24

Das Mentalidades à Micro-História

Cultural

31

Considerações Finais

39

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INTRODUÇÃO

Primeiramente, meus estudos se dirigiram ao retorno da temática da “cultura

popular” na historiografia contemporânea, fenômeno que ocorreu a partir da década de

1960. Digo “retorno” porque de fato o estudo das classes populares e de suas

manifestações socioculturais se iniciou muito antes da segunda metade do século XX.

Segundo o historiador inglês Eric Hobsbawm, a preocupação e o estudo da

vida de pessoas comuns só aparecem na historiografia a partir do momento em que as

massas populares se tornam um fator determinante em acontecimentos históricos. Ou

seja, somente a partir de movimentos de massas do século XVIII.1 Em direção

semelhante, Peter Burke afirma que o estudo do povo se iniciou de fato nos fins do

século XVIII e início do XIX quando as classes mais populares da sociedade e sua

cultura tornaram-se objeto de interesse para a elite intelectual da época. Pensadores

como Herder e Jacob Grimm buscaram elementos particulares populares mais

tradicionais que representassem as crenças e costumes do povo, como canções, livretos,

a religião não-oficial do povo, pequenos teatros, entre outros, em uma tentativa de

encontrar um espírito de nação. A ascensão do sentimento de nacionalismo fez com que

os intelectuais europeus da época procurassem se identificar e até mesmo imitar os

elementos populares que tanto estudavam. Todavia, no decorrer do século XIX com a

onda de “cientifização” das ciências humanas, a história se restringiu somente a estudos

de eventos políticos, deixando esta história da cultura popular de lado para

exclusividade de amantes de antiguidades, folcloristas ou antropólogos2.

A partir do início da década de 1960, entretanto, o interesse pela temática da

cultura popular volta a se tornar centro de atenção por parte de alguns historiadores

dispersos em diferentes instituições acadêmicas. Estes historiadores, que se

entusiasmaram com a atraente perspectiva de se ampliar os limites da disciplina

histórica ao explorar as experiências históricas daqueles tão freqüentemente ignorados

na historiografia, foram em grande maioria influenciados pela tradição marxista.

Aqueles que não se diziam marxistas eram no mínimo simpatizantes. De tal forma,

nota-se que os primeiros estudos preocupados com a chamada “história vista-de-baixo”

1 HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo : Companhia das Letras, 1998. pp. 217-218 2 BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. São Paulo : Companhia das Letras, 1999. p. 31.

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na historiografia do século XX estão restringidos a episódios em que as massas se

engajaram em atividades políticas.3

A lista de historiadores que se dedicaram aos estudos de cultura popular a

partir deste período é enorme. Poderíamos rapidamente citar Edward Thompson, Eric

Hobsbawm, Christopher Hill, Peter Burke, Stuart Clark (na Inglaterra), Robert

Mandrou, Michel Vovelle, Michel De Certeau, Genevieve Bolleme, Jacques Revel,

Roger Chartier, Emmanuel Le Roy Ladurie (na França), Carlo Ginzburg, Giovanni

Levi, Carlo Poni (na Itália), Natalie Zemon Davis e Robert Darton (nos EUA); só para

apontar os mais conhecidos. A lista poderia se estender muito mais.

Ciente da imensa amplitude que os estudos deste tipo atingiram nos últimos 50

anos, delimitei o meu estudo ao caso específico do historiador italiano Carlo Ginzburg.

Este presente estudo focaliza a transição de pensamento a respeito da cultura popular

que este historiador sofre em suas obras Os andarilhos do bem (1966) e O queijo e os

vermes (1976). Estas obras são fundamentais porque elas apontam como que a trajetória

de Ginzburg, nas palavras de Ronaldo Vainfas, “ilustra perfeitamente o percurso de

muitos historiadores que, abandonando o conceito de mentalidade, migraram para

outros campos”4. Ou seja, estas obras anunciam um importante marco historiográfico, o

declínio da história das mentalidades e a ascensão da Nova História Cultural, mais

especificamente da micro-história cultural. Procurei refletir sobre estes dez anos que

separam uma obra da outra, para melhor compreender esta transição. Para tanto, será

necessário uma reflexão sobre o que se entende por “história das mentalidades” e sua

prática pela historiografia francesa dos Annales. Também consideraremos o contexto

historiográfico italiano durante as décadas de 1950 e 1960, para compreender as

influências que sofreram Ginzburg em sua formação de historiador. Finalmente,

apontaremos elementos auto-biográficos que auxiliem o entendimento de suas obras.

3 SHARPE, Jim. In : BURKE, Peter. A escrita da história : novas perspectivas. São Paulo : UNESP, 1992. p. 44. 4 VAINFAS, Ronaldo. Micro-história : Os protagonistas anônimos da história. Rio de Janeiro : Campus, 2002. p. 60.

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A HISTÓRIA DAS MENTALIDADES E A HISTORIOGRAFIA FRANCESA

DOS ANNALES

A história das mentalidades sempre foi algo de difícil definição. Ela foi

trabalhada em diferentes épocas e por diferentes autores com diversas orientações

teórico-metodológicas. Ao se elaborar uma lista dos principais historiadores das

mentalidades de que se tem notícia, botaríamos em um mesmo saco historiadores das

primeiras décadas do século com outros dos fins da década de 1980. Misturaríamos

alguns marxistas com outros altamente conservadores ou anticomunistas. De fato, é em

grande parte por causa de sua ampla heterogeneidade que surge esta dificuldade de

conceituação.

A fins didáticos, Ronaldo Vainfas tentou delimita quatro variantes da história

das mentalidades. A primeira seria aquela dos fundadores dos Annales, que muito deve

aos estudos antropológicos de Lucien Lévy-Brhul e aos estudos sociológicos de Emilé

Durkheim (representados por Marc Bloch e Lucien Febvre). A segunda seria aquela que

é herdeira da tradição de Bloch e Febvre, reconhecendo que o estudo do mental só tem

sentido se vinculado com as totalidades explicativas (caso de historiadores como

Jacques Le Goff, Jean Delumeau, Georges Duby, Philippe Ariés e Emmanuel Le Roy

Ladurie). A terceira seria aquela que possui formação marxista, preocupada em

relacionar mentalidades com ideologia, assim como minorar a frialidade da longa

duração (exemplos de Michel Vovelle e Robert Mandrou). A quarta e última seria a

história das mentalidades que o autor brasileiro chama de “pouco problematizada”. Esta,

a mais citada pelos críticos da história das mentalidades, se caracteriza pelo estudo de

temas sensacionalistas e pela reconstituição ingênua de épocas e acontecimentos (aqui

se encaixam obras como História das nádegas de Jean-Luc Henning)5.

Vainfas não foi o único ao se dedicar a esta árdua tarefa que é delimitar a

história das mentalidades. Michel Vovelle já destacara em sua obra Ideologia e

Mentalidades (1985) que, a partir da década de 1970, toda uma geração de historiadores

franceses se preocupou em definir o que é mentalidade e história das mentalidades.

Entretanto, continua-se longe de um conceito universalmente aceito. O obstáculo na

5 VAINFAS. Ronaldo. Micro-história : Os protagonistas anônimos da História. RJ : Campus, 2002. pp. 20-49

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tarefa de conceituar este termo fica explícito na forte dificuldade em se traduzir o termo

para outras línguas diferentes da francesa6.

O que chamaremos aqui de história das mentalidades provém da tradição francesa dos Annales iniciada por Marc Bloch e Lucien Febvre, que se voltaram para o estudo do mental em Os reis taumaturgos (1924) e O problema da descrença no século XVI: A religião e Rabelais (1942), respectivamente. Como afirma Peter Burke, as características fundamentais da história das mentalidades são: a valorização das atitudes coletivas ao invés das atitudes individuais; por em evidência elementos inconscientes ou não-expressos; e a preocupação com a forma como as pessoas pensam e com aquilo que pensam7. Apesar de não ser exclusividade francesa (o escocês Johan Huizinga, provavelmente o precursor da história das mentalidades, em Declínio da Idade Média de 1919 já revelava preocupações com a história dos sentimentos, assim como com as atitudes coletivas medievais), o estudo do mental geralmente é associado aos franceses dos Annales. De tal forma, para melhor se compreender esta história do universo mental será fundamental inseri-la nesta tradição historiográfica francesa.

Não há a menor sombra de dúvidas de que da produção intelectual no campo historiográfico, no século XX, grande parcela das inovações notáveis e significativas proveio do movimento dos Annales, iniciado por Marc Bloch e Lucien Febvre. O movimento8 se inicia com a revista lançada pelos dois historiadores em 1929, originalmente com o nome Annales d’historie économique et sociale. Tal revista, que atualmente tem mais de 70 anos de idade e que ficou mundialmente conhecida, tinha como um de seus objetivos principais (e iniciais) combater a escola metódica historicista alemã, muito vinculada a figura do historiador Leopold Von Ranke, que possuía uma versão vulgarizada na França nas obras de Seignobos e Langlois, como a Introduction aux études historiques (1898).

O lançamento da revista dos Annales nos fins da década de 1920 pode ser entendida como uma “revolução francesa da historiografia”, como aponta Peter Burke. Para compreender e interpretar as ações dos historiadores “revolucionários” é preciso conhecer alguma coisa do “antigo regime” que pretendiam derrubar9. Entretanto, permanecer no contexto historiográfico francês do início do século XX pode se mostrar uma atitude apressada e perigosamente reducionista. É preciso refletir sobre a história da historiografia em uma duração mais longa.

Desde os tempos antigos, os gregos, pais da civilização ocidental, possuíam um pensamento fundamentalmente anti-histórico. Na poesia épica de Homero e na filosofia que surge no século V a.C, não encontramos menções a eventos particulares ou a personagens autênticos. A poesia acabava por produzir uma lembrança mítica e atemporal das ações humanas narradas. Os personagens e o seu agir são modelos de exemplo. Já a filosofia grega, por sua vez, procurava se direcionar em posição contrária ao mito, porém preservando seu caráter anti-histórico. Os filósofos deste período acreditavam poder conhecer somente aquilo que é permanente, tudo aquilo que realiza um movimento contínuo e regular. Seus olhos estavam voltados para aquilo que é

6 Na Europa, somente os alemães procuraram um termo congruente em sua língua, a passo que ingleses, seguindo-se aos italianos, se resignaram praticamente a utilizar a própria expressão francesa. 7 BURKE, Peter. O mundo como teatro : estudos de antropologia histórica. Lisboa : Edifel, 1992. p. 27. 8 Assim como Roger Chartier e Jacques Revel, Peter Burke em A escola dos Annales (1990) considera o grupo dos Annales como um movimento, e não uma “escola”. 9 BURKE, Peter. A escola dos Annales 1929-1989: A revolução francesa da historiografia. São Paulo : UNESP, 1990. p. 17.

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eterno. Embora estes pensadores gregos não abrissem mão de refletir sobre coisas humanas (como a ética, estética e política, por exemplo), sempre procuravam trabalhar na perspectiva de idéias atemporais e eternas. É aparentemente paradoxal imaginar que é neste contexto que Heródoto e a história darão os seus primeiros passos no pensamento humano ocidental. Para os filósofos, a história não passava de um mundo efêmero de ambições e paixões humanas, um conhecimento sem valor lógico que reside na doxa (campo da opinião). Aristóteles, discípulo de Platão, não se preocupou em conter seu desprezo pela história e pelo seu “contador”, Heródoto, em sua academia.

José Carlos Reis - baseando-se em diversos autores como Momigliano, Hartog, Collingwood, e Koselleck – afirma que a criação da história por Heródoto de Halicarnasso em um contexto intelectual tão desfavorável representa uma revolução cultural. Ao invés de evitar a mudança e o tempo, como faziam os filósofos, o historiador decide abordá-la como objeto principal de estudo. Há uma mudança substancial no pensamento epistemológico humano; o homem passa a ser considerado como um ser temporal, finito e instável, em outras palavras, um ser histórico. O que interessa ao historiador é, portanto, a diversidade e a alteridade da temporalidade. A história produz um conhecimento da mudança10. Em suma, a história se posiciona como um estudo do particular e singular, aquilo que não se repete ou se reproduz.

Esta forma de conhecimento pode ser escrita das mais variadas maneiras. Contudo, desde os tempos de Heródoto e Tucídides, uma das formas dominantes de se escrever a história tem sido a narrativa de grandes acontecimentos políticos e militares, que dava um destaque especial aos grandes feitos de grandes homens. Durante o século XVIII, mais precisamente com o fenômeno intelectual do Iluminismo, apareceram as primeiras contestações a essa forma de se narrar a história de que se tem notícia. Alguns intelectuais oriundos de diversos países europeus começaram a cogitar a possibilidade de se escrever uma história que não se limitasse somente a fenômenos como guerras e sucessões de governos políticos. Imaginavam uma história da sociedade e de sua cultura, que pudesse discorrer também sobre o comércio, a moral, e aos costumes sociais. Todavia, durante o século XIX, a influência da historiografia historicista vinculada ao nome de Ranke acabou por re-marginalizar esta história sócio-cultural que dava seus primeiros passos durante o século XVIII. Embora jamais tivesse proposto uma história que se limitasse ao político – muito pelo contrário, na realidade Ranke também escreveu sobre a religião, sociedades, arte, literatura e ciência – o movimento por ele liderado acabou por retornar as narrativas factuais dos séculos anteriores11. Os discípulos de Ranke, que se encontravam em uma fase em que os historiadores procuravam se profissionalizar e atingir o mesmo grau de seriedade das outras ciências, acabaram sendo mais intolerantes que seu mestre, eliminando a história não-política/militar do universo acadêmico. Como já afirmado, na França estes ideais profissionalizantes dos herdeiros do historicismo veio a se tornar a forma dominante de historiografia de que tanto repudiavam os fundadores dos Annales12.

10 REIS, José Carlos. Escola dos Annales: A inovação em história. São Paulo : Paz e Terra, 2000. pp.10-13 11Ver BURKE, Peter. Ranke, o reacionário. In : BURKE, Peter. O mundo como teatro : estudos de antropologia histórica. Lisboa : Edifel, 1992 12Deve-se levar em consideração a tendência , que comenta José Carlos Reis (REIS, 2004, 98), de se narrar uma história epopéia do nascimento dos Annales (especialmente os “herdeiros” da tradição dos Annales que se dedicaram a fazer a “história da história” do movimento francês), onde grandes “heróis” lutaram contra uma má história e maus historiadores sozinhos. Bloch e Febvre não foram os pioneiros nas árduas críticas a esta

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Esta escola metódica francesa do século XIX, que se baseava nas ciências positivas para fugir do subjetivismo, havia se engajado a favor da república moderada e anticlerical de seu tempo. Assim, a historiografia francesa foi posta a favor do aparelho estatal, tendo como uma de suas principais funções legitimar seus interesses através de uma pedagogia cívica. Seguindo esta linha, em seu manual de história, o historiador Ernest Lavisse afirmava que se um aluno não fosse capaz de carregar consigo as glórias nacionais de seus antepassados que combateram em guerras por causas nobres, o professor de história terá perdido o seu tempo.13

Esta forma de historiografia procurava exaltar a civilização ocidental do século XIX. A história era uma mera narrativa das grandes ações humanas que resultavam em uma civilização: capitalista em sua economia; liberal em sua estrutura constitucional; burguesa; de grande avanço nos conhecimentos científicos e tecnológicos; profundamente convencida da centralização mundial em torno da Europa; berço das revoluções científicas, artísticas, políticas e industriais; de maior economia mundial; e cujos soldados e sistema político havia conquistado e subjugado todo o resto do mundo.

Mas, a situação mundial logo se altera no pós 1914-1918. A Primeira Guerra Mundial acaba anunciando o término de uma Belle Époque para as nações européias, que se percebem agora em declínio e decadência. As seqüelas da Primeira Guerra Mundial ficam expostas na sociedade européia a partir da década de 1920. Cada vez mais os historiadores passaram a se dar conta de que a história política nacionalista, como vinha sendo praticada pela escola metódica dita “positivista”, acabou legitimando a barbárie das grandes nações na guerra. Também se deve ter em mente que durante a década de 1920 o mundo assiste a um declínio das democracias liberais e a uma grande crise econômica que atinge seu auge em 1929 em Wall Street. Jacques Le Goff já salientara em sua obra A Nova História (1978) que não foi por acaso que os Annales surgem em 1929, o ano da grande crise.

François Dosse salienta que

As quebras dramáticas da economia capitalista em escala mundial, alcançando de um só golpe a América e a Europa, questionam a idéia de progresso contínuo da humanidade em direção ao acúmulo de bens materiais.Essa crise esta relacionada às questões novas que valorizam os aspectos econômicos e sociais, por sua vez mergulhados na deflação, na recessão e no desemprego14.

historiografia dita “positivista”. Já no século XIX historiadores como Jules Michelet e Jacob Burckhardt constituíam vozes discordantes. O primeiro, não se limitando ao universo político, escreveu sobre a Renascença, sobre bruxaria, as massas e as mulheres, isto em 1865. Burkhardt, que interpretava a história em três forças principais (o Estado, a religião e a cultura), escreveu ainda em 1860 uma das pioneiras obras de história cultural ao estudar o renascimento italiano. De certa forma, o alemão Karl Marx também se distanciava do historicismo ao considerar o motor da história as lutas de classes decorrente das tensões que surgem no interior de estruturas socioeconômicas. 13 DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo : EDUSC, 2003. p. 64. 14 Ibid. p. 34.

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Bloch e Febvre, com a revista dos Annales, procuram, portanto, responder estas questões de uma época que se vê direcionando seu olhar para os aspectos econômicos e sociais.

Logo no início do século, as ciências sociais vinham tecendo duras críticas a histórica tradicional, argumentando que uma abordagem sucessiva e idiográfica era inadequada para o seu tempo. Baseando-se nestas críticas, os fundadores dos Annales propõem uma história sob forte influencia das ciências sociais, uma história interdisciplinar. Assim, eles estariam aproximando, de certa forma, o projeto inicial de Heródoto (de conhecer as mudanças humanas no tempo) com a busca do regular, do contínuo e do estável que realizavam alguns sociólogos como Durkheim15.

Nesta busca pela interdisciplinaridade, Bloch e Febvre propõem que os historiadores se aventurarem nos terrenos das ciências vizinhas, como a geografia, economia, antropologia, etnologia, psicologia, etc. Neste terreno em que os historiadores dos Annales vão aparecer pela primeira vez como historiadores do mental.

Apropriando-se de outras áreas do saber - no caso específico, especialmente da antropologia, sociologia e da psicologia – tentaram construir uma história que visasse a compreensão das formas de pensar do homem, que fosse diferente da história das idéias que era praticada até então. O termo “mentalidade” como foi utilizado pelos primeiros Annales, deve muito aos estudos etnográficos do antropólogo Lévy-Bruhl, que pretendia estudar as “mentalidades primitivas” dos povos ditos “atrasados”. Deve igualmente, também, a noção de “representações coletivas” do sociólogo francês Emilé Durkheim16.

Lucien Febvre foi fortemente inspirado pela psicologia, defendendo uma história dos sentimentos (amor, morte, piedade, etc), embora sempre salientasse a necessidade deste tipo de história se integrar ao estudo global de uma civilização. Mais sensível a uma preocupação psicológica, este autor procurava enfocar o confronto que existe entre o homem singular e o universo mental em que ele se encontra inserido. Aí que se encontra a crítica de Febvre a história tradicional das idéias. Para ele, a tarefa do historiador seria realizar uma articulação entre a obra e as condições sociais e mentais que lhe deram origem, coisa que o autor realiza competência com personagens como Lutero e Rabelais. Em poucas palavras, poderíamos dizer que a “psico-história” de Lucien Febvre tem como um de seus objetivos principais recuperar os quadros mentais do passado; rompendo com a concepção de pensamento humano atemporal e imutável, ele pretende erradicar a tendência natural e anacrônica de se transpor nossas categorias de pensamento, sentimento e linguagem para sociedades nas quais estas categorias não possuíam o mesmo significado. O livro de Rabelais de Febvre (1942) é sem dúvida o exemplo mais citado, onde o autor critica a tese de A. Lefranc de que Rabelais seria um pensador racionalista e ateu. Segundo Febvre, o universo mental do século XVI era incapaz de permitir o surgimento de um pensamento lógico, que é fruto do século XVII cartesiano17.

Já Marc Bloch dedicou-se mais à descrição das práticas coletivas e simbólicas das representações mentais não conscientes de diversos grupos sociais. Bloch foi mais influenciado pela sociologia durkheimiana e pela nascente antropologia histórica de colegas seus, como Louis Gernet e Marcel Granet, do que pela psicologia.

15 REIS, José Carlos. Escola dos Annales: A inovação em história. São Paulo : Paz e Terra, 2000. p. 16. 16 BURKE, Peter. O mundo como teatro : estudos de antropologia histórica. Lisboa : Edifel, 1992. p. 28. 17 DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo : EDUSC, 2003. pp. 126-129.

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Portanto, Bloch procura não limitar sua abordagem do mental somente ao domínio do pensamento consciente, refletindo sobre as correlações entre realidades sociais e atitudes religiosas, a fim de compreender quais seriam as implicações sociais na história da religião e quais seriam as implicações religiosas na história social. A abordagem sociológica e antropológica de Bloch abriu caminho para uma história das emoções, do corpo e de épocas de vida, anunciando futuros objetos que serão retomados pelas futuras gerações de historiadores dos Annales. Em Os reis taumaturgos, este autor estudava a crença – que se estende da idade média até meados do século XVIII, portanto, um fenômeno de longa duração - bastante difundida em regiões como a Inglaterra e França, de que os reis eram capazes de curar doentes de escrófula (doença de pele que provém de uma inflamação nos gânglios linfáticos) através de um toque real, acompanhado de um ritual especifico. A discussão fundamental de Bloch nesta obra é buscar entender como que, sabendo que os reis não tinham o poder de curar doentes com meros toques, em “ilusões coletivas” como esta. Para tanto, o autor se inspira largamente em Durkheim, tanto em seu método comparativo, como em sua noção de “representações coletivas”18. A história da mentalidades de Bloch será a base para os estudos do mental da terceira geração dos Annales que assumem a direção da revista a partir de 1969.

Durante os anos da década de 1950 o estudo das mentalidades acabou caindo para segundo plano na historiografia francesa. Marc Bloch, judeu que atuava na Resistência contra o cruel regime de Vichy dirigido pelo Marechal Petain, foi preso e, posteriormente, fuzilado em 1944 pelos nazistas alemães. Lucien Febvre, que após a morte de Bloch comandava sozinho a maior parte da produção historiográfica francesa, se aposentou em 1956 deixando o seu cargo de diretor da revista dos Annales aos seus principais discípulos: Fernand Braudel e Robert Mandrou. Porém, logo no início da década de 1960, ocorre uma ruptura entre os dois herdeiros de Febvre. Braudel defendeu uma inovação dos Annales, a passo que Mandrou preferia manter o “estilo tradicional” dos seus fundadores, onde a psicologia histórica e a história das mentalidades tivessem importante papel. No final das contas, Braudel teve maior repercussão nos meios intelectuais (além de extremamente culto, era muito conhecido pela sua experiência de viagens – Argélia e Brasil - e pela sua forma moderna e inovadora de dar aulas) e acabou tornando-se diretor da VI seção da Ecole pratique des Hautes Etudes. Ele foi autor da monumental tese de doutorado O mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II (1949), onde salientava as relações entre o homem, a geografia e as condições da vida material. Também, celebrizou-se com a publicação do artigo A longa duração, de 1958, texto onde expôs melhor a sua teoria sobre os três níveis de temporalidade da história: a curta duração (o tempo factual onde se encontra a política e as ações individuais), a média duração (o tempo social) e a longa duração (o tempo quase imóvel da relação entre o homem e a natureza).

Robert Mandrou procurou dar continuidade a tradição de Febvre se dedicando aos estudos do mental, apesar de seus estudos, assim como os primeiros de Philippe Ariès, ficarem marginalizados até os fins da década de 1960.

Esta segunda geração dos Annales é conhecida como a “Era Braudel”, e se

caracteriza pela ambição de produzir obras de história total, enfatizando os aspectos

sócio-econômicos e suas relações com o meio geográfico imersos em durações longas.

18 BURKE, Peter. A escola dos Annales: A revolução francesa da historiografia (1929-1989). São Paulo : Unesp, 1990. pp. 28-30.

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Destacam-se nesta época obras como Sevilha e o Atlântico (1955-1960) de Pierre

Chaunu19 e Portugal e o Atlântico (1960) de Frederico Mauro.

Mais ou menos entre as décadas de 1950 e 1970, uma das inovações mais

significativas dos Annales foi certamente a prática de uma história serial e quantitativa.

Já salientamos aqui que a história vinha gradativamente se aproximando de aspectos

econômicos e sociais desde a década de 1930. O campo econômico, sobretudo na

história dos preços, foi utilizado como base para a prática da história social,

especialmente para a história populacional ou demográfica. Ernest Labrousse foi, neste

sentido, um dos nomes mais importantes ao lado de Braudel. Labrousse teve imensa

influencia entre os jovens historiadores, orientando uma enormidade de teses de

doutorado. Com clara orientação econômica marxista, Labrousse facilitou a penetração

do marxismo na historiografia francesa dos Annales. Sua principal obra foi Esquisses du

mouvement des prix et des revenus em France au XVIII siècle, escrita ainda em 1933,

onde analisava movimentos econômicos de longa duração e ciclos de curta duração

(crises cíclicas e interciclos). Essa nova forma de tratar as fontes, para se escrever uma

história econômica ou social, de maneira serial e quantitativa foi vista como

revolucionária. Os historiadores agora buscavam em suas fontes algum nível de

homogeneidade para quantificar ou serializar as informações ali contidas, a fim de

identificar regularidades e estruturas imersas nas durações temporais. Labrousse, por

exemplo, analisou fontes administrativas e comerciais, observando as curvas

demográficas e curvas de preços para realizar um estudo de ciclos econômicos20.

Entre os anos de 1956 e 1969 o estudo das mentalidades não encontrou muito

terreno na escrita da história francesa. Somente a partir de 1969, quando Braudel se

aposenta e deixa a direção dos Annales sob cuidados de jovens historiadores como

Emmanuel Le Roy Ladurie e Jacques Le Goff, que novamente as portas para a

discussão de estudos sobre o mental se abrem. Durante a “Era Braudel”, os Annales

tiveram grande repercussão internacional em função das inovações historiográficas que

fizeram desde o surgimento da revista em 1929. Após 1969, portanto, os historiadores

ligados a este movimento escreviam em um momento de posição hegemônica. François

Dosse destaca que os membros desta revista, especialmente a partir de 1970, já tinham

19 Provavelmente uma das maiores teses de doutorado já realizadas. Formada por 12 volumes, esta tese possui inúmeras tabelas e gráficos, além de um capítulo dedicado a interpretação de estatísticas que tem mais de 3000 páginas de texto. 20 BARROS, José D’Assunção. O campo da história: Especialidades e abordagens. Petrópolis : Editora Vozes, 2004. pp. 146-152.

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se apoderado de todos os cargos estratégicos intelectuais, haviam monopolizado as

publicações históricas na França, e exerceram fortíssima influência no campo intelectual

internacional21.

Esta nova geração foi altamente marcada pelas diversas e importantes

mudanças que ocorreram durante a década de 1960. Em todo o mundo as novas

gerações viam suas esperanças e sonhos, suscitados por fatores como a vitória sobre o

nazifascismo na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e as expectativas que a

utilização da energia nuclear criara, não serem cumpridas. Isto fez com que vozes

discordantes surgissem para criticar a velha ordem estabelecida na sociedade.

Na França, esta mutação cultural coincidiu com a sucessão do paradigma

existencialista sartriano (“o intelectual engajado”) por aquilo que chamamos de

estruturalismo, que lançou novas alternativas teóricas fundamentadas principalmente na

lingüística saussuriana, na antropologia de Levi-Strauss e na psicanálise lacaniana.

Josep Fontana nos esclarece que no terreno da história, os jovens historiadores das

décadas de 1960 e 1970 passaram a criticar a ortodoxia da história econômica e social

cultivada por seus antecessores22.

Estes novos historiadores sofreram grande influência das obras de intelectuais

estruturalistas como Claude Levi-Strauss e Michel Foucault. O último em A

arqueologia do saber (1969) apresentava a sua crítica a história, que de fato vinha

teorizando desde A palavra e as coisas (1966), por esta tentar representar uma

totalidade. Criticando as continuidades (para ele a unidade temporal não era mais do que

um jogo artificial e ilusório), Foucault afirmava que a história deveria renunciar a

elaboração de grandes sínteses e interessar-se pela fragmentação dos saberes. O

pensamento foucaultiano induziu os historiadores a buscar uma dilatação do território

da história ao realizar uma multiplicação de objetos de estudo. Os herdeiros de Braudel

acabam abandonando de certa forma a ambição de uma história total e procuram traçar

pequenos fragmentos historiográficos23. François Dosse afirmara em sua tese de

doutorado que esta “história em migalhas” praticada pelos herdeiros de Braudel punha

em risco a capacidade de síntese da História. Contudo, talvez seja interessante salientar

que a expressão “história em migalhas” foi cunhada pela primeira vez, sem um caráter

21 DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo : EDUSC, 2003. p. 25. 22 FONTANA, Josep. A história dos homens. São Paulo : EDUSC, 2004. pp. 381-385. 23 VAINFAS. Ronaldo. Micro-história : Os protagonistas anônimos da História. RJ : Campus, 2002. p. 38.

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depreciativo, por Pierre Nora em entrevista a um jornal francês em 1974. Nora afirmava

que a desfragmentação da história em diversas migalhas não deveria ser entendida como

uma renúncia a ambição de história total, mas como uma forma de compor pedaços de

um todo.

Ao tentar responder aos desafios da antropologia estrutural lançada por Levi-

Strauss, os historiadores da terceira geração, conhecida também como a geração da

“Nova História”, acabaram abandonando os grandes espaços socioeconômicos à moda

de Braudel, partindo do social para o simbólico e cultural. A influência deste

antropólogo fez com que os historiadores dos Annales da década de 1970 se

preocupassem, no nível do mental, com a inconsciência das práticas sociais e com o

pensamento automático e coletivo (inconsciente coletivo). Boa parte da historiografia

francesa desta última geração tinha a firme convicção de que os sujeitos históricos não

eram conscientes e não tinham controle algum sobre os processos socioculturais de que

faziam parte, algo parecido com a ilustre frase de Marx (“os homens fazem a história,

mas desconhecem a história que fazem”). Alguns autores como François Dosse,

afirmam que a geração de Le Roy Ladurie acabou realizando uma história que toma

emprestada uma roupagem etnológica, de forma tal que os estudos historiográficos

tentassem freqüentemente realizar ensaios etnográficos das sociedades do passado 24.

De certa forma, esta última forma de história das mentalidades foi a mais

polêmica de toda a tradição dos Annales. Os historiadores da Nova História foram os

primeiros a se interessarem por determinados temas que até então eram não

convencionais, desbravando domínios da história que ainda não haviam sido

investigados (religiosidades, sexualidades, infância, morte, sentimentos coletivos, etc),

passando uma impressão de ampla dilatação do território do historiador.

Michel Vovelle salienta que, na França, a história das mentalidades retorna

durante a década de 1960 com Robert Mandrou, Georges Duby e Phillipe Ariès como

uma alternativa para os rumos que vinha tomando a história social dominante até

então25. Portanto, os historiadores praticantes desta história das mentalidades se

formaram sobre a influência da história quantitativa e da longa duração, típicas da

24 Sobre os Annales ver DOSSE, François. A História em Migalhas : dos Annales a Nova História. São Paulo : EDUSC, 2003; BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989) : A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo : UNESP, 1990; REIS, José Carlos. A escola dos Annales: A inovação em história São Paulo : Paz e Terra, 2000. p. 16; e REVEL, Jacques. A invenção da sociedade. Lisboa : Difel, 1989. 25 VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades. São Paulo : Editora Brasiliense,1987. p. 15.

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geração anterior. De fato, Braudel e Labrousse – os mestres desta nova geração - já

haviam afirmado que o estudo das mentalidades seria um estudo de “história das

resistências” (Labrousse), de uma história “encarcerada nas prisões de longa duração”

(Braudel)26. Em suma, toda esta geração nova de historiadores do pós-1969 tinha se

formado em disciplinas de história social a moda da “Era Braudel”, isto é, salientavam

aspectos socioeconômicos e praticavam a história demográfica. Sem renunciar aos

métodos aprendidos em sua formação, estes novos historiadores, influenciados por

Foucault e frente aos acontecimentos de sua época, direcionaram seus olhares para o

estudo dos comportamentos coletivos27.

Para se alcançar os comportamentos coletivos dos homens no passado, os

integrantes da Nova História recorreram a história serial e quantitativa da geração

anterior. Analisando diversas fontes demográficas (registros inquisitoriais, cartoriais,

testamentos, documentos iconográficos, etc) em um espaço de longa duração, estes

historiadores buscavam continuidades que representassem uma base comum presente

nos modos de pensar e sentir dos homens de determinada sociedade.

Devido a notável repercussão que os Annales obtiveram durante os anos 1970,

a história do mental produzida pelos integrantes da Nova História será a mais

referenciada e difundida. Sobretudo, esta última forma de história das mentalidades que

causará as dificuldades de conceituação a que nos referimos inicialmente

A Itália, país de origem de Carlo Ginzburg, foi um dos países que mais foi

influenciado pela historiografia francesa. Portanto, para se compreender como se deu na

obra de Ginzburg o abandono do termo “mentalidade” é necessário refletir a respeito da

forte influência francesa na historiografia italiana.

26 Ibid. pp. 117-118. 27 Ibid. p. 23.

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A HISTORIOGRAFIA ITALIANA E A RELAÇÃO COM OS ANNALES

A Historiografia Italiana:

A transição de uma história das mentalidades para uma micro-história cultural,

objetivo fundamental nesta pesquisa, não pode ser totalmente entendida se não houver

uma reflexão a respeito do contexto histórico e historiográfico italianos durante os anos

1950 e 1960.

O historiador mexicano Carlos Aguirre Rojas acredita que boa parte das

inovações no campo historiográfico italiano da segunda metade do século XX,

inovações estas ligadas basicamente ao projeto da chamada micro-história, é fruto de

um conjunto de, essencialmente, três fatores. Os dois primeiros ocorrem durante a

década de 1960, são eles: 1) a revolução cultural de 1968; e 2) a crise dos paradigmas

dominantes (estruturalismo, marxismo, funcionalismo, etc). O terceiro fator a que se

refere Rojas seria, por fim, 3) a conjuntura de longa duração da história italiana28.

De fato, os dois primeiros fatores foram marcantes nas formas de se pensar e

escrever a história no mundo todo, e já tecemos alguns comentários a respeito destes

fatores ao refletir sobre os Annales. Talvez seja mais importante para nossa

compreensão partimos, agora, de uma reflexão a respeito da historiografia italiana em

uma perspectiva de longa duração.

Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que a Itália é uma região com uma

tradição histórica enorme, que foi berço da grandeza do Império Romano na antiguidade

clássica e do Renascimento artístico e cultural dos séculos XIV e XVI. Entretanto, ao

mesmo tempo se trata de um país muito recente. A Itália como conhecemos atualmente

só surgiu durante o decorrer do século XIX, mais precisamente com os movimentos de

unificação – chamado de Risorgimento - que aconteceu entre 1815 e 1870. Portanto, não

é de se espantar que, na primeira metade do século XX a historiografia italiana girasse

fundamentalmente em torno das discussões políticas de seu processo de unificação.

Henrique Espada Lima nos esclarece que, neste contexto, havia basicamente

duas vertentes historiográficas nas produções acadêmicas italianas. A primeira delas

estaria mais vinculada aos estudos do filósofo Benedetto Croce (1866-1952), a passo

28 ROJAS, Carlos Aguirre. Convite a outra micro-história: a micro-história italiana. In: MALERBA, Jurandir; ROJAS, Carlos Aguirre. Historiografia contemporânea em perspectiva crítica. São Paulo : EDUSC, 2007, pp. 102-103.

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que a segunda se encontrava atrelada ao nome do marxista Antonio Gramsci (1891-

1937)29.

Croce foi um dos pensadores italianos mais influentes e inovadores da Itália

contemporânea. Pode-se afirmar sem hesitar que sua obra reinou hegemonicamente na

intelectualidade italiana do início do século XX. Durante as décadas de 80 e 90 do

século XIX, Benedetto Croce publicara uma série de ensaios sobre história local, além

de uma ambiciosa obra sobre a influência espanhola na vida italiana desde o

Renascimento30. O pensamento de Croce é muito influenciado pelo materialismo

dialético de Marx, e igualmente pela filosofia idealista de Hegel.

Assim como em Marx, para Croce o pensamento humano se desenvolve de

acordo com as necessidades da vida prática, e que este pensamento serve para o agir no

mundo. Porém, o autor italiano acreditava que Marx havia superenfatizado o papel da

economia sobre as ações humanas, praticando assim uma filosofia da história. Em

contrapartida, Croce afirmava que a arte é a raiz de toda forma de conhecimento

humano.

Há uma grande proximidade das reflexões de Croce com o pensamento de

Hegel. O italiano admirava muito a obra deste filósofo alemão, porém com algumas

ressalvas. Em 1907 publicou um estudo sobre o que estava vivo e o que estava morto na

filosofia hegeliana em Ciò Che è Vico e cio è morto nella filosofia di Hegel. Hegel

defendia o pensamento de que os aspectos positivos e negativos das idéias são as fontes

dos movimentos e mudanças históricas. Croce acreditava que Hegel havia perdido o

controle da situação ao tentar aplicar a dialética indiscriminadamente as coisas. Segundo

Croce, só se pode aplicar a dialética a conceitos universais contrários, tais como

“beleza” e “feiúra”. A fenômenos empíricos, como os fenômenos históricos, não há

conceitos contrários, somente conceitos distintos entre si. Portanto, em virtude da

história trabalhar com conceitos empíricos, deveria se considerar uma heresia por a

dialética ao serviço da história. Croce também criticava abertamente a visão de Hegel de

que a história só considera aquilo que revela a liberdade, pois para ele tudo é histórico.

Marnie Hughes Warrington aponta que buscando fundamentos no materialismo

histórico de Marx e no idealismo hegeliano, Croce ira fundamentar seu pensamento em

uma forma de “historicismo” bastante particular, tendo entre suas características: a

29 LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006. p. 32. 30 WARRINGTON, Marnie Hughes. 50 Grandes pensadores da história. São Paulo : Editora Contexto, 2002. pp. 69-70.

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imanência radical, o idealismo filosófico e a ênfase na historicidade do universo

humano31.

O pensador italiano dedicou boa parte de sua produção acadêmica às reflexões

historiográficas, principalmente em suas obras Teoria e História da Historiografia e

Filosofia, Poesia e História. Segundo Croce, os historiadores usavam um método

científico para tentar compreender fenômenos particulares e irrepetíveis. Todavia, para

o autor italiano, a história não poderia ser taxada de “ciência”. Para Croce, a ciência traz

aos homens o conhecimento do geral, daquilo que é passível de repetição. A história

como um conhecimento de mudança não poderia ser considerado científico. Croce

classifica, então, a história como uma forma de arte, pois para ele é no campo artístico

que se trabalha com a intuição do particular. Portanto, se a história diz respeito a

fenômenos particulares e concretos, logo o historiador deve ser considerado um artista e

não um cientista. Porém, Croce ressalta que a história é uma forma de arte bastante

exclusiva. Ao invés de representar o possível, a história representa o real. Então, o

historiador é um tipo de artista que não pode agir como um poeta. Ele deve se assegurar

da melhor maneira que lhe for cabível da veracidade de seus relatos e interpretações

sobre o passado32.

Durante as primeiras décadas do século XX, um grande grupo de historiadores

italianos se identificou com a interpretação de Croce da história, dando origem há uma

tradição historiográfica chamada de “história ético-política”. Essa história ético-política

fazia uma leitura idealista e historicista do processo histórico de unificação da Itália,

interpretando este como

um desenvolvimento progressivo do espírito, concebido como seu sujeito real (o que aproximava muito do pensamento de Hegel), tornado presente no Estado e em suas instituições – uma história voltada a iluminar, no curso dos acontecimentos políticos as realizações do valor ético fundamental da liberdade, encarnado na Itália pelo desenvolvimento do Estado Liberal, legado pela unificação do país – o Risorgimento – e derrubado pelo fascismo33.

Portanto, apesar de ser considerada como uma prática historiográfica

fundamentalmente conservadora, a história ético-política se manifesta claramente em

oposição ao Estado autoritário fascista, que emerge em 1922 e se estende até 1943. Com

a queda do regime fascista, este tipo de historiografia acabou se enfraquecendo. Havia

31 Ibid. pp. 69-70 32 Ibid p. 71. 33 LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006. p. 32.

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uma necessidade de se combater a interpretação de que o progresso do Estado italiano

iria desembocar no regime de Mussolini. Era crescente a necessidade de se superar o

período fascista e refundar a cultura italiana em novas bases. Carlos Aguirre Rojas

aponta que

como é bem sabido, na Itália, o fascismo será vencido por uma profunda e organizada resistência social popular, o que determinará o fato de que, ao sair da 2° Guerra Mundial, a tarefa imediata a cumprir pelos historiadores será a desse transito maciço e generalizado dos espaços da historiografia jurídica, política e da filosofia da história para os novos territórios da história econômica, social e cultural34. Aqueles que não se identificavam politicamente com o pensamento

conservador de Benedetto Croce acabavam traçando o caminho do marxismo. O mais

promissor destes pensadores foi, sem a menor sombra de dúvidas, Antonio Gramsci.

Enquanto esteve isolado nas prisões da Itália fascista, Gramsci redigiu 33 cadernos

escolares, mais precisamente entre os anos de 1929 e 1935. O conteúdo destes cadernos

era bastante amplo, abrangendo a filosofia de Benedetto Croce, a questão dos

intelectuais e da educação, Maquiavel e a política moderna, o passado e o presente, o

Risorgimento italiano, a literatura e a vida nacional35.

Gramsci criticara em seus cadernos do cárcere36a interpretação de Croce de

que o Risorgimento culminou na Itália com o compromisso entre a nobreza fundiária do

sul do país com a burguesia industrial do norte. Segundo o autor marxista, esta

interpretação é superficial por tornar as contradições da sociedade industrial ocultas. Ou

seja, a interpretação croceana exigia que não viesse à tona os contrastes que são

próprios de uma sociedade industrial. Segundo Gramsci, Croce era o típico intelectual

desligado do imediato e do concreto, por se preocupar fundamentalmente com uma

história que tenha a função de unificação cultural e de homogeneização da vida cultural

italiana37.

Gramsci procura buscar a função histórica das classes subalternas, algo que

completamente inovador na época e que em muito ira influenciar Ginzburg

posteriormente. Antonio Gramsci partia da afirmação de Croce de que todo homem, por

pensar e possuir uma linguagem, é filósofo, procurando compreender a vida cultural das

34 ROJAS, Carlos Aguirre. Convite a outra micro-história: a micro-história italiana. In: MALERBA, Jurandir; ROJAS, Carlos Aguirre. Historiografia contemporânea em perspectiva crítica. São Paulo : EDUSC, 2007, p 102. 35 GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci.Rio de Janeiro : Graal, 1991. p. 65. 36 Organizados em seis volumes e publicados postumamente pelo companheiro de Gramsci, Pamiro Togliatti. 37 GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci.Rio de Janeiro : Graal, 1991. p. 102-103.

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classes subalternas (trabalhadores, camponeses, etc). Segundo o autor marxista, as

classes sociais dominadas participavam de uma concepção de mundo que era produzida

nas classes dominantes e imposta a elas. Isto seria o que o autor chama de “hegemonia

cultural”. Para Gramsci, Croce e a história ético-política contribuíam para a

permanência desta hegemonia cultural, desta dominação cultural imposta as classes

subalternas38.

Muito inspirada nas reflexões gramscianas, grande parte da pesquisa história

italiana foi marcada pelo marxismo, no pós-segunda guerra. Voltaram-se, portanto, a

maior parte dos historiadores italianos ao estudo de movimentos operários e

camponeses, dedicando-se em ressaltar as expressões locais e regionais desses

movimentos. Assim se permitia pensar que as experiências das organizações locais de

resistência se configurassem como uma resposta prática ao regime fascista. Procuravam,

portanto, fazer com que o movimento operário fosse visto como força nacional

fundamental na República italiana. Neste momento, a revista Movimento operaio de

1949 foi um dos espaços mais importantes no qual a produção historiográfica encontrou

expressão. Henrique Espada Lima afirma que

A historiografia de inspiração marxista, invertendo presumivelmente o esquema “ético-político”, fazia uma leitura do Risorgimento como uma revolução burguesa manquée, e propunha uma releitura da história italiana após a unificação por meio da história do desenvolvimento das instituições operárias39. O interesse pelas classes subalternas, herança gramsciana, encontrou, contudo

uma série de críticas. Em 1950, Pasquale Villani tecia objeções sobre a historiografia

marxista italiana e seu interesse pela história local. Segundo ele, ao se reivindicar a

função histórica das classes dominadas, a história acaba se limitando a posicionar seu

foco as expressões políticas e sindicais, sem aprofundamentos no contexto

socioeconômico40. De fato, como em Croce, as análises históricas marxistas eram

essencialmente políticas e voltavam-se fundamentalmente para a história

contemporânea.

O ano de 1956 confirma o declínio desta vertente marxista da historiografia

italiana. As denúncias dos crimes de Stalin que aparecem no XX Congresso do PCUS,

juntamente com a violenta invasão soviética a Hungria abalam fortemente a

historiografia marxista, que já vinha sendo criticada desde o início da década de 1950.

38 GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci.Rio de Janeiro : Graal, 1991. p. 65-68. 39 LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana : escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006. p. 33. 40 Ibid. pp. 28-29

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Na Itália, onde a aproximação com o marxismo estava quase que necessariamente

ligada à aproximação dos partidos de esquerda, houve o desligamento de importantes

intelectuais dos partidos comunista e socialista. É claro que deve-se levar em

consideração que esta crise do marxismo não é somente italiana. Na Inglaterra, por

exemplo, Edward Thompson, Rodney Hilton e Christopher Hill deixaram o partido

comunista (Eric Hobsbawm permaneceu, mas mantendo um posicionamento bastante

crítico). Na França ocorreu o mesmo, Emmanuel Le Roy Ladurie, François Furet e

muitos outros também tomaram distanciamento dos partidos e do marxismo. Mas na

Itália, a crise foi mais forte principalmente em função da discussão metodológica sobre

o marxismo não ter avançado muito (ou quase nada) desde os escritos de Gramsci.

Espada Lima conclui

Esse panorama de incerteza teórica tornou-se um quadro de vazio teórico para a historiografia de tendência marxista na Itália, agravado não apenas por uma tradição especulativa em crise, mas por um diálogo quase inexistente com as ciências sociais até então. É a partir desse quadro que se pode compreender as transformações no campo historiográfico que começam a esboçar-se no princípio dos anos 196041.

Influência dos Annales na historiografia Italiana:

Mario Del Treppo estava coberto de razão quando, em um importante ensaio

sobre as relações historiográficas de seu país, afirmou que os historiadores que

quisessem compreender o desenvolvimento da historiografia italiana no século XX

deveriam se familiarizar co o “balanço das relações historiográficas com a coirmã

francesa”42.

Durante a década de 1970, a influência dos Annales foi objeto de quentes

discussões na Itália43. Esta influência de fato começou a se fortalecer durante a “Era

Braudel”. A tese sobre o Mediterrâneo foi um enorme sucesso, sendo rapidamente

traduzida para o italiano em 1953, somente quatro anos após a primeira publicação em

francês (na Inglaterra, por exemplo, O Mediterrâneo só fora traduzido durante a década

de 1970!).

Os estudos de Braudel trouxeram aos italianos uma nova forma de olhar o

Mediterrâneo, salientando as dimensões especiais, sua profundidade temporal, as

41 Ibid. p. 37. 42 Ibid. pp. 69-70. 43 Um bom exemplo destas discussões é o artigo O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico, escrito em conjunto por Carlo Ginzburg e Carlo Poni em 1979 (GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa : Difel, 1989)

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limitações do meio, as regulares repetições da vida material, os longos movimentos

econômicos, etc. Em suma, a tese de Braudel foi muito bem recebida pelos italianos por

trazer uma nova visão sobre o século XVI italiano, que a tradição historiográfica italiana

não havia considerado ainda (sobre o século XVI, os italianos discutiam somente a

decadência político e econômica, a dominação estrangeira e a incapacidade de uma

unificação do país. De fato graças a influência de Benedetto Croce, grande parte da

historiografia italiana se focava na história contemporânea). O Mediterrâneo abre,

portanto, um caminho para novos problemas e novas oportunidades historiográficas ao

retomar questões não resolvidas e propor novos enfoques. Além disto, deve-se levar em

consideração que a obra de Braudel foi a primeira a conseguir por em prática o projeto

de história total proposto pelos fundadores dos Annales, Bloch e Febvre, na década de

1930. Era uma obra de síntese muito ambiciosa, um livro de história comparada, total e

global que exigia uma grande expansão do universo de pesquisa do historiador (o autor

levou quase vinte anos para compor toda a sua tese). Os italianos vêem, então, uma

nova possibilidade de realizar a renovação historiográfica que buscavam no pós-guerra,

como já apontado anteriormente.

Na direção da VI seção da Ecole pratique des Hautes Etudes, um dos

principais centros de pesquisa em ciências sociais da Europa Ocidental criado por

Lucien Febvre em 1957, Braudel incentivava os jovens historiadores a realizarem trocas

historiográficas com outros países. Estimulavam-se os historiadores franceses a

freqüentarem arquivos em outros países, assim como também se incitava a vinda de

historiadores estrangeiros para a França.

Grande parte desta circulação ocorreu entre a França e Itália. Vários italianos

buscavam a França para estarem próximos das inovações vinculadas aos Annales

(poderíamos citar nomes como Ruggiero Romano e Alberto Caraccioclo), enquanto os

franceses sentiam-se fortemente atraídos pelas riquezas dos arquivos de fontes seriais

italianos. A Itália era como um “arquivo vivo”. A imensidade colossal de registros

notariais e cartoriais era extremamente atrativa para os historiadores franceses, que

usavam largamente fontes seriais durante a década de 1950.

Este “mercado historiográfico” – para citar a metáfora de Poni e Ginzburg - de

mão dupla entre França e Itália, feita sobre a influência da história econômica serial e

quantitativa, foi bastante desigual. Poucos italianos foram para a França e muitos

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franceses para a Itália44. Durante a década de 1950, portanto, a aproximação entre a

historiografia francesa dos Annales e a historiografia italiana foi marcada,

fundamentalmente, pelos estudos do “longo” século XVI italiano que esbanjavam

quantificação e análises econômicas.

Entretanto, durante a década de 1970 há uma mudança nesta aproximação. A

terceira geração dos Annales também exerceu considerável influência na historiografia

da Itália. A inovação de voltar a longa duração para as mentalidades e para os sistemas

de valores quase imóveis no tempo e nas sociedades foi muito bem recebida pelos

italianos. Estudos franceses de história rural e trabalhos monográficos de história

regional, como o Mointaillou (1975) de Emmanuel Le Roy Ladurie, inundaram as

universidades italianas. Vários franceses foram a Itália, inspirados nos resultados dos

trabalhos desta história das mentalidades francesa, com o intuito de traçar uma história

da Itália com perspectiva semelhante.

A geração de Le Goff, George Duby e Revel também influenciou os italianos a

realizarem novos diálogos com outros campos do saber, especialmente com a

antropologia. A Antropologia Estrutural de Levi-Strauss, como já mencionado, teve um

papel fundamental nos temas estudados pela Nova História, que vinha desenvolvendo

trabalhos a respeito do cotidiano, da vida privada, das mentalidades, etc. Estes trabalhos

não deixaram de repercutir nas reflexões historiográficas italianas. Na revista italiana

Quaderni Storici – umas das mais importantes revistas acadêmicas de história da Itália,

talvez correspondente em importância a revista dos Annales na França – Henrique

Espada Lima constatou uma série de artigos que demonstravam aproximações com a

antropologia à moda dos Annales, embora ainda houvesse muitas reservas em relação à

perspectiva estruturalista de Levi-Strauss45.

Entretanto, parece-nos um pouco precipitado concluir, como faz Ronaldo

Vainfas, que a historiografia italiana das décadas de 1970 e 1980 (sobretudo a

historiografia relacionada a micro-história) é “fruto” da história das mentalidades

francesa46. É certo que se havia um modelo para os italianos desta época, este modelo

era os Annales. Contudo, talvez seja mais adequado concluir que a historiografia

44 LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana : escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006. pp. 64-67. 45 LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana : escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006. pp. 70-77. 46 VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da história : micro-história. Rio de Janeiro : Campus, 2002.

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francesa foi bem recebida por ser compatível com os horizontes de pesquisa e reflexão

historiográficos italianos da época, do que imaginar que esta recepção francesa seja

somente uma mera sobreposição de uma historiografia sobre a outra. A penetração da

produção historiográfica francesa na Itália só teve sucesso por ser compatível com o

território historiográfico italiano. A revista Quaderni Storici, como aponta Espada

Lima, já vinha procurando refletir sobre a história local e sobre a interdisciplinaridade

da história com outras ciências sociais47. Ora, nada mais natural que estes historiadores

recebessem muito bem as monografias regionais e rurais da Nova História assim como

os textos das outras gerações, afinal, como aponta Revel, se há uma unidade em todo o

movimento dos Annales ela se dá pela tentativa de organizar as ciências sociais em

torno da história48. Aguirre Rosas confirma que

Após o brilho dos trabalhos de Benedetto Croce e Antonio Gramsci, entre outros, os historiadores da península se dedicaram a assimilar tudo e a aclimatar tudo em sua paisagem historiográfica, recuperando tanto a corrente dos Annales quanto a dos autores da Escola de Frankfurt, os resultados da historiografia socialista britânica e a antropologia anglo-saxônica, assim como suas próprias tradições italianas e as mais diversas corretes e autores da história da arte, da crítica literária ou da antropologia dos diferentes países da Europa.49

Resta-nos agora refletir sobre a trajetória de Ginzburg nestes quadros

historiográficos traçados.

47 LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana : escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006. pp. 83-84. 48 REVEL, Jacques. História e ciências sociais: os paradigmas dos Annales. In: REVEL, Jacques. A invenção da sociedade. Lisboa : Difel, 1989. 49 ROJAS, Carlos Aguirre. Convite a outra micro-história: a micro-história italiana. In: MALERBA, Jurandir; ROJAS, Carlos Aguirre. Historiografia contemporânea em perspectiva crítica. São Paulo : EDUSC, 2007, p. 103.

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CULTURA POPULAR E FEITIÇARIA: A TRAJETÓRIA DE GINZBURG

Em março de 1965 na cidade de Roma, alguns meses após ter apresentado e

discutido com sucesso sua tese de aperfeiçoamento em letras à Universidade de Pisa

sobre os benandanti50, Carlo Ginzburg da início ao prefácio de seu estudo publicado

pela editora Einauldi na forma de livro da seguinte forma:

Estudei neste livro as atitudes religiosas e, em sentido lato, a mentalidade de uma sociedade camponesa – a friulana – entre o final do século XVI e meados do XVII, de um ponto de vista extremamente circunscrito: a história de um núcleo de crenças populares que, pouco a pouco, em decorrência de pressões bastante precisas, foram assimiladas à feitiçaria51

Esta passagem retrata perfeitamente o objeto de pesquisa do historiador italiano em Os andarilhos do bem. Trata-se de uma obra que traz uma série de elementos inovadores para a época – como, por exemplo, o tema periférico da feitiçaria e das concepções e crenças de bruxos e feiticeiras – e que foi relativamente bem recebida pela crítica. A sua boa recepção explica o fato de que em sete anos já houvesse a necessidade de uma segunda edição. Nesta segunda publicação, encontra-se um pós-escrito redigido por Ginzburg onde o autor explicita seus descontentamentos com os rumos que tomaram seus estudos. Na cidade de Bolonha em outubro de 1972 Ginzburg escrevera:

Mas hoje o que me deixa mais descontente é o prefácio – ou melhor, o primeiro parágrafo do prefácio. Hoje não repetiria mais a ingênua contraposição entre “mentalidade coletiva” e “atitudes individuais” (...) Insistindo nos elementos comuns, homogêneos, da mentalidade de um certo período, somos inevitavelmente induzidos a negligenciar as divergências e os combates entre as mentalidades das várias classes, dos vários grupos sociais, mergulhando tudo numa “mentalidade coletiva” indiferenciada e interclassista.52

Em poucos anos mais tarde, em 1976, o historiador italiano ao publicar a sua obra que lhe daria mais prestígio, O queijo e os vermes, abandonara completamente o conceito de “mentalidade” substituindo este pelo conceito antropológico de “cultura popular”, que muito deve aos estudos sobre Rabelais do teórico cultural russo Mikhail Bakhtin. Ao estudar Menocchio, o original moleiro friulano, Ginzburg afirma:

A esta altura poder-se-ia perguntar se o que emerge dos discursos de Menocchio não é mais uma “mentalidade” do que uma “cultura”. Apesar das

50 Termo em italiano que designa um grupo de agricultores que saia quatro noites por ano (nas mudanças de estações) para lutar com bruxas nos campos e garantir a abundância das colheitas. Pode-se traduzir o termo em português como Andarilhos do bem. 51 GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem : feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo : Companhia das Letras, 1988. p. 7. 52 Ibid. p. 16.

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aparências, não se trata de uma distinção fútil. O que tem caracterizado os estudos de história das mentalidades é a insistência nos elementos inertes, obscuros, inconscientes de uma determinada visão de mundo. As sobrevivências, os arcaísmos, a afetividade, a irracionalidade delimitam o campo específico da história das mentalidades, distinguindo-a com muita clareza de disciplinas paralelas e hoje bem consolidadas, como a história das idéias ou a história da cultura (que, no entanto, para alguns estudiosos engloba as duas anteriores). Inscrever o caso de Menocchio no âmbito exclusivo da história das mentalidades significaria, portanto, colocar em segundo plano o fortíssimo componente racional (não necessariamente identificável à nossa nacionalidade) da sua visão de mundo53.

Em suma, a trajetória de estudos de Carlo Ginzburg entre as décadas de 1960 e 1970 representa satisfatoriamente um importante marco historiográfico. Em O queijo e os vermes, Ginzburg mais uma vez se mostrou um inovador dos estudos históricos. A sua forma de analisar e narrar a maneira de pensar de alguns indivíduos das classes subalternas da Itália na época moderna teve uma importância capital na historiografia contemporânea. A publicação desta obra em 1976 marca o início do declínio da História das Mentalidades e ascensão da Nova História Cultural.

Tendo em mente os apontamentos levantados sobre os panoramas

historiográficos franceses e italianos e dialogando estes com a trajetória intelectual e

pessoal de Ginzburg, poderemos ter fundamentos suficientes para compreender esta

transição.

Traçar a trajetória deste historiador italiano é, na realidade, mais complicado

do que parece. Ginzburg tornou-se, tanto nos meios acadêmicos como fora destes, um

sinônimo de micro-história para grande parte de seus leitores. Contudo, o termo “micro-

história” não nos parece suficiente para abranger o conjunto de discussões que

caracterizam e marcam o trabalho desse historiador. Ginzburg sempre se posicionou

como um historiador em uma incansável busca de novas formas de indagar e fazer

história. Ao longo de sua carreira acadêmica ele “desrespeitou” diversas fronteiras

tradicionais acadêmicas ao se recusar a absorver acriticamente métodos e problemas de

disciplinas vizinhas. Ginzburg trás a outras disciplinas questões próprias do ofício do

historiador. Henrique Espada Lima resume perfeitamente:

“Deslocamento” poderia ser chamado o seu método preferido – a transferência de questionamentos e ferramentas de um lugar para o outro: a filologia textual aplicada a textos não literários, problemas de história social aplicados à história da arte, interrogações próprias

53 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo : Companhia de Bolso, 2006. pp. 23-24.

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da análise iconológica recolocadas diante de mitos, morfologia empregada para a análise de materiais históricos.54

Portanto, seria ingenuidade pretender esgotar aqui a totalidade de aspectos que

representam as pesquisas de Ginzburg. De fato, lidaremos somente com algumas de

suas obras a respeito de feitiçaria e cultura popular55.

Carlo Ginzburg nasceu na cidade de Turim em 1939, numa família de judeus

assimilados intelectuais e antifascistas. Seu pai, Leone Ginzburg (1909-1944), era um

professor de literatura russa originário de Odessa (Rússia). Emigrara com sua família

para a Itália logo após a revolução bolchevique soviética de 1917. Na Itália, o pai de

Ginzburg tornou-se um militante com outros jovens que mais tarde se tornariam figuras

intelectuais e políticas muito importantes do antifascismo italiano, como Norberto

Bobbio, Guilio Einauldi, e Carlo Levi. Leone lecionou literatura na Universidade de

Turim por poucos anos, sendo afastado por se recusar a prestar o juramento de

fidelidade do partido fascista de Mussolini. Seu engajamento cultural era fortemente

marcado pelo liberalismo político e pela abertura do socialismo, a passo que seus

trabalhos de critica literária se desenvolviam sobre influências de Croce e de Franco

Venturini56. Ficou dois anos preso, de 1934 a 1936, em função de sua militância

política. Logo em 1938 casou-se com Natália Levi e teve com esta três filhos (Carlo,

Andrea e Alessandra). Em 1943, quando o rei destitui Mussolini do poder, Roma foi

ocupada pelos alemães. Os nazistas prenderam, torturaram e mataram Leone no início

de 1944.

Natália Ginzburg (1916-1991), Levi em solteira, era filha de professores

universitários e veio a se tornar uma romancista muito conhecida. Seus livros foram

publicados em vários países, inclusive no Brasil. A mãe de Ginzburg havia se envolvido

com a literatura desde a juventude, tendo publicado seus primeiros contos ainda com 17

anos de idade. Ela trabalhou com Guilio Einauldi (amigo de Leone) como editora e

tradutora. Suas convicções políticas a levaram a filiar-se no Partido Comunista Italiano

(PCI)57.

54 LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006. p. 281. 55 Os estudos sobre feitiçaria e cultura popular de Ginzburg estão, essencialmente, reunidos em três grandes obras: Os andarilhos do bem, O queijo e os vermes e História noturna. Entretanto, nos limitaremos somente as duas primeiras. 56 Historiador turinês que tem como obra mais importante o livro Il populismo russo. 57 GINZBURG, Carlo. História e Cultura: Conversa com Carlo Ginzburg. Estudos Históricos: Rio de Janeiro, vol. 3, n.6,1990, p. 254-263.

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Fica muito nítido que o ambiente familiar intelectual e engajado em que

crescera Ginzburg foi determinante na origem de seus interesses de estudo. Em primeiro

lugar, deve-se destacar a importância de seu interesse pela literatura. Como dito, seus

pais eram literatos. As suas leituras de adolescência – que passam por Kafka,

Dostoievski e Tolstoi – foram fundamentais. O historiador afirmara em entrevista a

revista Estudos Históricos:

Acredito que no fundo os livros de história talvez não tenham sido a coisa mais importante que li. Acho que Guerra e Paz de Tolstoi, por exemplo, me marcou muito mais profundamente do que qualquer livro de história, inclusive os de Marc Bloch. Assim também Dostoievski. Ou seja, os romances foram os livros que mais me tocaram.58

Aparentemente, em Guerra e Paz (1865) de Tolstoi, Ginzburg parece ter

encontrado uma influência para a sua futura concepção de história. Abordando de forma

bastante peculiar a invasão da Rússia durante as guerras napoleônicas do século XIX, o

escritor russo contrapunha a visão do historiador tradicional de sua época (histórias sob

o ponto de vista dos grandes homens e dos “heróis”) a visão do artista que estuda as

reações de um personagem em suas condições de vida. Na segunda parte de sua obra,

Tolstoi expõe suas próprias considerações sobre o que poderia ser a história. Nas

palavras do escritor russo:

Enquanto forem escritas as histórias de indivíduos, como as de César, Alexandre, Lutero ou Voltaire, e não a história de todos, sem exceção, de todos os homens que tomam parte de um acontecimento, será impossível não atribuir aos indivíduos uma força que obriga os outros a dirigirem sua atividade para um fim único.59

Tolstoi acreditava que os historiadores têm que lidar com lacunas entre um

evento real e as lembranças distorcidas e fragmentadas dos testemunhos deixados.

Segundo ele, a única forma de preencher estas lacunas estaria na tentativa de recuperar a

memória de cada homem envolvido em determinado evento. Em suma, de Tolstoi,

Ginzburg aprendera que na história não deveria haver heróis, deveriam existir homens.

Em entrevistas, o historiador italiano sempre procurou deixar explícito que de

fato o que levou ao estudo de história foram os interesses de literatura e crítica literária.

Ao que tudo indica os seminários que assistiu na Scuola Normale, em Pisa, do professor

Delio Cantimori, sobre Considerações sobre a história do mundo de Jacob Burckhardt,

58 GINZBURG, Carlo. História e Cultura: Conversa com Carlo Ginzburg. Estudos Históricos: Rio de Janeiro, vol. 3, n.6,1990, p. 261. 59 TOLSTOI, Leon. Apud In: LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006. p. 284.

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foram os primeiros passos de Ginzburg no campo da história. Cantimori tinha muito

apreço pela erudição e pela leitura lenta de textos históricos. Este professor gostava de

comparar a leitura do texto original com suas principais traduções, de forma que, não

raramente, os alunos levassem semanas para ler dez linhas de texto. Esta forma de se

estudar história causou um forte impacto em Carlo Ginzburg, que afirma “Aquilo me

marcou profundamente. Aquela maneira de ler o texto levantando uma multiplicidade

de problemas foi algo que me pareceu realmente magnífico. Um ano depois, decidi

estudar história”60.

O ambiente familiar engajado e o contexto intelectual italiano impregnado

pelo marxismo, sem dúvida também foi muito relevante para Ginzburg, que após o

contato com Cantimori, passou a se dedicar aos estudos de história. No prefácio de seu

livro Mitos, Emblemas e Sinais (1989) o autor aponta algumas de suas influências:

Por volta da metade dos anos 50, eu lia romances; nem me ocorria a idéia de me tornar historiador. Lia também Lukács, impacientando-me com o modo como falava de Dostoievski e Kafka (...) Uma continuidade igualmente forte liga-me, apesar de tudo, às primeiras escolhas intelectuais relativamente autônomas (isto é, não legitimadas imediatamente pelo ambiente familiar) feitas naquela época. Croce e Gramsci (Croce lido através de Gramsci), Spitzer, Aurbach, Contini. São os autores apresentados naqueles mesmos anos pela revista Officina, que lembro ter folheado, a certa altura, com intensa curiosidade. Nunca morri de amores por Pasolini (exceto por alguns filmes seus), um dos animadores de Officina; hoje, porém, vejo claramente que o entrelaçamento de populismo e crítica estilística, típico da cultura italiana do final dos anos 50, constitui o pano de fundo de minhas primeiras pesquisas.61 O encontro com as leituras de Gramsci, sobretudo os seus Cadernos do

Cárcere, foi, como aponta o próprio Ginzburg acima, muito marcante. Neste momento

que o autor italiano procurou se informar com artigos e professores universitários

vinculados ao PCI. Não tardou para Ginzburg se desapontar com os rumos

historiográficos marxistas italianos desta época. Como já apontado, os historiadores

comunistas da Itália desta época se interessavam pelo marxismo de uma perspectiva

quase que “escolástica”, interessados somente em uma limitante história do partido

operário. Entretanto, a influência esquerdista somada com a literatura russa – as

abordagens psicológicas extensas e complexas que Dostoievski faz de pessoas

aparentemente comuns em livros como Memórias do Subsolo, Crime e Castigo e Os

Irmãos Karamazovi; tal como as considerações de Tolstoi sobre uma história de todos

em Guerra e Paz – parece ter cimentado a escolha de Ginzburg de se dedicar a uma

60 GINZBURG, Carlo. História e Cultura: Conversa com Carlo Ginzburg. Estudos Históricos: Rio de Janeiro, vol. 3, n.6,1990, p. 256 61 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: Morfologia e história. São Paulo : Companhia das Letras, 2007. pp. 7-8.

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história da cultura “a partir de baixo”; a uma busca pelas vozes perdidas dos anônimos,

ou quase anônimos, da história.

O encontro com a literatura dos historiadores franceses dos Annales também

foi, no mínimo, fundamental para a trajetória do historiador em questão. Este encontro

ocorreu mediado pelo professor italiano de história Arsenio Frugoni, importante

medievalista que publicou em 1954 uma biografia sobre Arnaldo da Brescia62. A partir

da sugestão de Frugori, Ginzburg, em 1958, passou a estudar o periódico dos Annales.

Por meio da revista francesa, Ginzburg teve contato com o livro Os reis taumaturgos de

Marc Bloch. A leitura desta obra de Bloch - sobretudo a capacidade do autor de abordar

de um ponto de vista histórico novos problemas, ou de um novo ponto de vista,

problemas tradicionais - parece ter ajudado Ginzburg a encontrar a história com outros

termos. A recuperação de um objeto marginal da história, no caso o estudo da crença na

cura por meio do toque das mãos de doentes da escrófula pelos reis da França e

Inglaterra, ajudou muito Ginzburg a justificar a escolha de um tema até então pouco

freqüentado, como a feitiçaria popular, que o autor italiano passaria a estudar nos anos

seguintes63.

A idéia de trabalhar com feitiçaria a partir do ângulo das vítimas foi tida por

Ginzburg no final dos anos 1950. Trata-se de uma idéia resultado de diversas

inspirações, sendo as principais: o fascínio que o autor italiano tinha pelas histórias de

magia e terror que lhe eram contadas durante sua infância; a dura experiência de

perseguição e exílio experimentada por sua família durante a época fascista; a

marginalidade da condição de judeu; e o clima cultural italiano da década de 5064.

De fato, a influência esquerdista foi uma das primeiras a se manifestar no

primeiro estudo de cultura popular de Ginzburg, Feitiçaria e piedade popular (1961).

Neste artigo, que foi feito a partir da busca de processos e denúncias sobre casos de

feitiçaria no princípio do século XVI, Ginzburg defendia a hipótese de que a feitiçaria

poderia ser lida como uma forma de luta de classes. Assim afirmava o autor:

62 Trata-se de uma obra a respeito de um herético bresciano. Frugoni procurou produzir um diferente ponto de vista do herege de acordo com cada documento que dispunha. 63 Henrique Espada Lima também aponta, que pelo menos em parte, a admiração de Ginzburg a Marc Bloch deve muito ao fato do historiador francês ter sido um judeu erudito que lutou e morreu na Resistência francesa aos nazistas. Tal como seu pai, Bloch lutou contra ditaduras totalitárias e morreu perseguido. Ou seja, o fato de Ginzburg chamar Bloch de “pai espiritual” talvez seja conseqüência de uma transferência psicológica, que permitiu ao historiador italiano aproximar o historiador francês com a figura de seu pai morto ainda em sua infância. (LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006. p. 290.) 64 LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006. p. 290

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Dois camponeses malvistos, pois suspeitos de praticar sortilégios e encantamentos, temidos pelos patrões, constantemente despedidos, que se vingam (e não só contra os patrões, mas também contra quem toma o seu lugar) das injustiças de que são vítimas, recorrendo a poderes que acabam por se voltar contra eles: eis o quadro que vem se delineando por meio dos testemunhos que examinamos. Nesse caso, a feitiçaria pode realmente ser considerada, sem exagero, uma arma de defesa e ataque nas lutas sociais.65 Como aponta Henrique Espada Lima, as leituras que fundamentaram esta

hipótese de Ginzburg vieram de Antonio Gramsci e, principalmente, de Eric Hobsbawm

(talvez Gramsci lido através de Hobsbawm). Em 1959, com a publicação de Rebeldes

Primitivos, Hobsbawm havia chamado a atenção para as manifestações de lutas das

classes subalternas anteriores às formas de organizações conhecidas na sociedade

industrial contemporânea, utilizando categorias gramscianas como a de “hegemonia”66.

Interessante notar que este artigo retrata as duas principais propostas que

Ginzburg tinha a respeito da feitiçaria até este momento. Por um lado, ele a imaginava

como um rudimentar e tosco instrumento de conflito de classes (influência marxista), e

por outro, como uma relação de culturas distintas e opostas estabelecida entre feiticeiros

e inquisidores. A primeira proposta foi deixada de lado no estudo seguinte sobre os

benandanti. O primeiro estudo de Ginzburg sobre os chamados “andarilhos do bem”

tem seus primeiros resultados em 1964. No ano seguinte, o autor continuará suas

pesquisas em Londres, na Inglaterra, no Warbug Institute.

Este instituto também teve uma importância capital na trajetória de Ginzburg.

O Warbug Institute havia sido fundado em Hamburgo em 1920, a partir da biblioteca da

Ciência da Cultura montada pelo historiador da arte Aby Warbug (1866-1929). Em

1933, ele foi transferido para a Inglaterra por um dos seguidores de Warbug, que,

corretamente, receava a ascensão de Hitler na Alemanha. Nos anos em que Ginzburg

esteve lá, a partir de 1965, o instituto era coordenado por outro seguidor de Warbug,

E.H. Goombrich. Estes anos de estudos em Londres representaram para Ginzburg

encontros muito importantes. Em primeiro lugar, com a tradição de estudos que existia

neste instituto, que o próprio autor deixa explícito no artigo De A. Warbug a E.H

Gombrich publicado em Mitos, Emblemas e Sinais. Também deve-se destacar a

importância da própria biblioteca de Warbug, que permitiu a Ginzburg um acesso

enorme a um gigantesco acervo de imagens, manuscritos e livros, sejam eles antigos ou

65 GINZBURG. Carlo. Feitiçaria e piedade popular: Notas sobre um processo monedense de 1519. In : GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, Sinais: Morfologia e história. São Paulo : Companhia das Letras, 2007. p. 21. 66 LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006. p. 292.

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novos. O próprio autor italiano procura destacar a importância do contato com o

instituto:

No começo dos anos 60, descobri, graças a Cantimori, o Warbug Institute. A tentativa de acertar as contas com a tradição intelectual a ele ligada obrigou-me a refletir não só sobre o uso de testemunhos figurados como fontes históricas, mas também sobre a permanência de formas e fórmulas para além do contexto histórico em que nasceram.67

Em suma, o fato de Warbug ter explorado mais a fundo a história da cultura e

da civilização do Renascimento italaino por meio de testemunhos fragmentários foi

muito inspirador para Ginzburg. O lema mais querido de Warbug - “Deus está no

particular”- foi também fundamental para a o método investigativo que Ginzburg

passará a utilizar, assim como foi igualmente importante para o historiador italiano

desenvolver sua concepção de história em um paradigma indiciário.68

DAS MENTALIDADES À MICRO-HISTÓRIA CULTURAL

O historiador brasileiro Ronaldo Vainfas, em seu livro de historiografia

intitulado de Micro-História: Os protagonistas anônimos da história, procurou

examinar como a micro-história funcionou inserindo-a no campo da história cultural do

século XX. Segundo Vainfas, poderia se considerar a história das mentalidades francesa

da terceira geração dos Annales como “precursora” da chamada nova história cultural.

De tal forma, afirma o historiador brasileiro que os estudos de mentalidades devem ser

entendidos como o “berço” da micro-história italiana. Comenta o historiador brasileiro

que “o estudo das mentalidades...” – aqui, importante ressaltar, Vainfas se refere ao

estudo da terceira geração dos Annales -

...se expandiu, em maior ou menor grau, para outros países europeus, para não falar da América Latina e dos Estados Unidos, onde sofreu adaptações de acordo com as tradições culturais e historiográficas de cada lugar (...) A trajetória de Ginzburg ilustra perfeitamente o percurso de muitos historiadores, que, abandonando o conceito de mentalidade, migraram para outros campos. No seu primeiro livro, I benandanti (1966), entre nós conhecido como Os andarilhos do bem, Ginzburg trabalhara com a noção de mentalidades, sendo mesmo um dos pioneiros no estudo da feitiçaria. Mas já no pós-escrito de 1972, embora o autor não tenha efetuado modificações no corpo da obra, fez questão de marcar posição contra aquele conceito, arrependendo-se de ter insistido na “ingênua contraposição entre mentalidade coletiva e atitudes individuais”.69

67 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, Sinais: Morfologia e história. São Paulo : Companhia das Letras, 2007. pp. 9-10. 68 LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006. p. 296. 69 VAINFAS, Ronaldo. Micro-história : Os protagonistas anônimos da história. Rio de Janeiro : Campus, 2002. p. 60.

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Antes de discutir este abandono do conceito de mentalidade a que se refere

Vainfas, talvez seja interessante começar pelo seu acolhimento. Em 1966, finalmente

Ginzburg finaliza e publica sua pesquisa sobre os feiticeiros de Friuli, que leva o título I

benandanti: stregoneria e culti agrari tra Cinquecento e Seicento (Os andarilhos do

bem: feitiçaria e cultos agrários entre os séculos XVI e XVII). Ginzburg estudou um

processo inquisitorial, ocorrido entre 1575 e 1581, contra dois camponeses acusados

pelo padre, da região de Brazzano, (um povoado que fica nos arredores de Friuli) de

vagarem a noite na companhia de feiticeiros e duendes, afirmando que na realidade

participavam de combates noturnos contra bruxas e feiticeiras. Estes camponeses

acreditavam que seus espíritos saíam de seus corpos, geralmente na forma de algum

animal, durante as quatro noites de mudança de estação, e se dirigiam para campos

distantes onde travavam lutas contra bruxas e feiticeiras. Segundo estes camponeses,

que se auto-intitulavam de benandanti, o resultado destas batalhas espirituais refletiriam

na sorte das colheitas daquele ano. Facilmente se nota na leitura deste processo

inquisitorial que se trata de um culto agrário que acaba sendo mal interpretado e

distorcido pelos esquemas inquisitoriais.

Este livro foi construído, ao meu ver, com três objetivos principais. Seriam

eles: 1) a tentativa de recuperar algumas crenças populares a partir de uma perspectiva

histórica, destacando as diversas atitudes de homens que ficam relativamente apagadas

por trás de uma aparentemente uniformidade de crenças; 2) a demonstração das

alterações sofridas por essas crenças que ocorrem devido ao duro contato com os

inquisidores; e 3) a realização de comparações entre as crenças dos benandanti com

outras crenças semelhantes na Europa do período, destacando possíveis origens e

formas de difusão.

Não se trata de uma história das mentalidades muito comum. Apesar de se

dedicar primeiramente a mentalidade da sociedade camponesa friuliana entre o final do

século XVI e meados do século XVII; Ginzburg também procura trazer à tona o

contraste entre as crenças coletivas e as atitudes individuais, algo que nunca foi muito

considerado na história das mentalidades. Como apontado em capítulos anteriores, o

estudo das mentalidades parte do pressuposto de que há formas inconscientes de

pensamento que são compartilhadas por todos os integrantes da sociedade objeto de

estudo. É função disto que boa parte dos historiadores das mentalidades preferiu utilizar

fontes quantitativas. Serializando diversos documentos, milhares no caso de Vovelle,

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por exemplo, eles buscavam atingir semelhanças nas formas de agir e pensar de pessoas,

trabalhando, portanto, com uma escala de observação muito larga da sociedade.

Ginzburg não parece compartilhar deste pressuposto. Provavelmente

influenciado pelo contexto historiográfico das décadas de 1950 e 196070, Ginzburg

procurou trabalhar com estas mudanças de escalas, com a comparação entre uma

suposta “mentalidade coletiva” e as “atitudes e pensamentos individuais”. Entretanto, o

autor, em entrevista na França, também confirmara a influência dos Annales na

realização de sua empreitada, afirmando:

Quando eu li o artigo de Braudel sobre a longa duração eu pensei: “Sim! É justamente isto, é este o verdadeiro problema, eu quero seguir esse caminho de pesquisa”. Mas o que mais me apaixonava, sobretudo, era mostrar a intersecção entre a longa duração e a duração breve, a intersecção do movimento rápido e da mutação consciente com aquilo que é lento e inconsciente. Braudel não se interessava por essa intersecção: é justamente o livro de Marc Bloch, Les Rois Thaumaturges, que me impôs esta idéia.71

Para realizar esta intersecção entre psicologia individual e mentalidade

coletiva – que em muito deve aos diálogos com a tradição dos Annales, com a

antropologia e psicanálise, e com a intuição metodológica de Warbug - o historiador

italiano teve que utilizar fontes qualitativas. Somente com fontes qualitativas que

Ginzburg conseguiria atingir, não totalmente, mas pelo menos da melhor forma

possível, o pensamento dos camponeses julgados pela inquisição no século XVI.

Ao se aceitar o desafio de ter como objeto de estudo as camadas mais

populares camponesas dos primórdios da Europa moderna, o historiador encontra

diversos problemas de fontes. Embora muitos escritos tenham sido feitos sobre os

camponeses do início da época moderna, poucos são os registros que possam ser

considerados como testemunhos diretos dos próprios camponeses. As classes

subalternas deste período possuíam uma cultura quase que exclusivamente oral, a maior

parte dos camponeses eram analfabetos. Portanto, o historiador tem que se servir em seu

estudo, sobretudo, de fontes escritas, que dificilmente foram escritas pelos camponeses,

pois estes em sua grande maioria não sabiam ler e muito menos escrever. Camponeses e

artesãos eram documentados somente se cativassem o interesse das classes letradas, de

forma que torna-se praticamente impossível alcançar diretamente as classes populares,

70 A revista Quaderni Storici, de grande prestígio na Itália, por exemplo, tinha como uma de suas características fundamentais a contraposição de uma história regional com uma história mais geral. Ou seja, os historiadores italianos já estavam mais familiarizados com estes jogos de escalas de observações. 71 C. Ginzburg ET aloo, “dialogue avec Carlo Ginzburg”, 1980, cit.,p. 234. In: LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006. p. 301.

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os documentos de que se dispõe, por serem escritas por pessoas relacionadas à cultura

dominante, são fontes consideradas indiretas. Em suma, jamais se pode confiar

totalmente nos documentos que se dispõe por estes serem amplamente distorcidos por

intermediários. Porém, não significa que tais documentos sejam desprovidos de valor.

Como afirma Ginzburg: “As fontes não são nem janelas escancaradas, como acreditam

os positivistas, nem muros que obstruem a visão, como pensam os cépticos: no máximo

poderíamos compará-las a espelhos deformantes”72.

Na tentativa de compreender o que significava os rituais de bruxaria para os

seus protagonistas o autor encontrou sérias dificuldades. As documentações das quais

geralmente dispunha pareciam constituir uma verdadeira barreira que impedia a

compreensão da bruxaria popular. Contudo, tendo acesso a julgamentos e

interrogatórios realizados pela Igreja, devido à discrepância entre as perguntas dos

juízes e as respostas dos acusados, quase se pode alcançar as vozes dos condenados. As

confissões e os depoimentos daqueles que são julgados surgem como uma brecha na

barreira imposta pelas fontes escritas que transmitem informações indiretas a respeito

das classes populares e seus costumes e pensamentos.

Ora, Os andarilhos do bem realmente não é um livro de história das

mentalidades comum. Como afirma Henrique Espada Lima, a referência ao termo

“mentalidade”, que se encontra logo no primeiro parágrafo do prefácio de Os

andarilhos do bem, era de saída um tributo a Marc Bloch, um dos inspiradores

principais do estudo. Tal como no livro sobre os reis taumaturgos de Bloch, o trabalho

sobre os benandanti também lidava com um conjunto obscuro de crenças, que poderia

ser considerada ainda menos significativa na medida em que pertencia a um grupo

restrito de uma região periférica. Ou seja, assim como no caso da famosa obra do

historiador francês, Os andarilhos também focava em uma curiosidade bizarra, uma

anomalia que se aproximava mais de estudos folclóricos, porém com um tratamento

historiográfico bastante diferente73. Sem contar o método comparativo que Bloch utiliza

em seu estudo sobre o toque real, que muito deve aos estudos sociológicos de

Durkheim, que Ginzburg absorve para realizar a parte final de seu livro sobre os

benandanti.

72 GINZBURG. Carlo. Relações de Força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Pág. 44. 73 LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006. p. 297.

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Portanto, talvez seja um tanto que equivocada a afirmação de Ronaldo

Vainfas, de que o livro de Ginzburg retrata “perfeitamente” a trajetória de muitos

historiadores que foram inspirados pela história das mentalidades da terceira geração

dos Annales. Em primeiro lugar, parece-nos que a publicação do estudo sobre os

benandanti antecede em pelo menos dois anos a historiografia francesa das

mentalidades desta terceira geração, que tem como o seu marco de início a obra

Magistrados e feiticeiros na França do século XVII de Robert Mandrou (1968). Foi

somente no pós-escrito de 1972 que Ginzburg dá sinais de ter refletido sobre as obras

francesas de cultura popular e de mentalidades. Coincidentemente, foi o momento em

que o autor italiano começa a refutar a noção vaga e lacunar de “mentalidade coletiva”.

Parece-nos que este contato com a historiografia francesa revelou muitas

insuficiências no termo que Ginzburg tanto admirava em Marc Bloch, especialmente

quando aplicados a temática da cultura popular. Até a década de 1970, o historiador

italiano acreditava que as relações entre cultura popular e cultura erudita eram sempre

estabelecidas em termos de oposição e/ou luta. Esta noção acaba por se alterar quando

Ginzburg entra em contato com obras de franceses como Robert Mandrou e Geneviève

Bollème. Mandrou e Bollème se encaixam nos dois principais modelos descritivos e

interpretativos de cultura popular a que se refere Roger Chartier:

O primeiro, no intuito de abolir toda forma de etnocentrismo cultural, concebe a cultura popular como um sistema simbólico coerente e autônomo, que funciona como uma lógica absolutamente alheia e irredutível à da cultura letrada. O segundo, preocupado em lembrar a existência das relações de dominação que organizam o mundo social, percebe a cultura popular em suas dependências e carência sem relação à cultura dos dominantes.74 Como afirma Chartier, temos de um lado uma persistência a uma concepção

aristocrática de cultura que sempre considera as idéias e crenças originais como produto

das classes eruditas, que ao serem difundidas para as classes subalternas tornam-se

deformadas e deterioradas. Robert Mandrou é um dos autores que poderia ser encaixado

neste modelo. Influenciado por motivos de ordem metodológica, este autor francês

afirma que, não havendo uma cultura produzida pelas classes populares, ou melhor, não

se tendo acesso à produção da verdadeira cultura popular, deve-se entender a cultura

popular como a cultura imposta, ou destinada às classes populares75. Ou seja, não se

pode atingir a cultura dos camponeses do século XVI, pois se trata de uma cultura quase

74 CHARTIER, Roger. Cultura Popular: revisando um conceito historiográfico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 16, 1995, p. 179. 75 Em O Mundo Como Teatro Peter Burke demonstra os perigos do “salto” dos valores expressos na literatura para a mentalidade dos leitores, que Mandrou realiza ao analisar cerca de 450 livros de Biliotheque Bleue não levando em conta a cultura oral assim como a reação do leitor ao texto que lê.

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que exclusivamente oral. Mandrou sugere que se atinja a cultura que se tem acesso, uma

cultura destinada ou imposta as classes populares, por meio das fontes indiretas que se

dispõe. De outro lado tem-se uma concepção que constitui uma cultura popular como

um mundo à parte, completamente independente a cultura erudita e completamente

original. Este modelo pode ser representado pela pesquisadora Geneviève Bollème. A

autora francesa via na literatura de cordel a expressão espontânea e criativa de uma

cultura popular original e independente da cultura erudita.

Ginzburg parece sentir um certo desconforto com as conclusões dos

historiadores franceses em questão. Sua fontes qualitativas da documentação sobre os

benandanti abriam algumas brechas tanto no ponto de vista de Mandrou como no de

Bollème. Este impasse do historiador italiano começa a desaparecer quando ele tem

contato em 1970 com a obra do crítico literário russo Mikhail Bakhtin, A cultura

popular na idade média e no renascimento.

O livro de Bakhtin propunha uma original interpretação da cultura popular na

transição do medievo para o mundo moderno por meio da obra do escritor francês

François Rabelais. Bakhtin acreditava que elementos como o “realismo grotesco”,

figuras pitorescas e engraçadas, a inversão e o “baixo corporal”, que vigoravam em

obras de Rabelais como Gargantua e Pantagruel, remetiam à cultura carnavalesca das

classes subalternas76. Ou seja, apesar de se tratar de um escrito de um homem letrado e

proveniente de uma cultura erudita, diversas dimensões e características populares

transbordavam em suas obras. A grande originalidade de Bakhtin estava em afirmar que

as origens da riqueza cultural do renascimento não provinham de um retorno a temas

clássicos, mas sim da penetração da criatividade e inversão de valores da cultura

popular. Conclui então Henrique Espada Lima

O encontro com o trabalho de Bakhtin havia fornecido a Ginzburg uma chave de leitura fundamental para o mundo dos conflitos culturais na Idade Média e no Renascimento, assim como abria a possibilidade de análise da cultura popular a partir de seu próprio protagonismo.77 Enfim, ao estudar Rabelais, Bakhtin sugere a existência de uma mútua

influência entre as culturas pertencentes às classes populares e as dominantes, uma

circularidade entre os dois níveis culturais. Portanto, ao procurar compreender a

presença de termos chulos, grosseiros e obscenos na obra de Rabelais que freqüentava a

76 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Brasília : Editora UnB, 1993. pp. 1-50. 77 LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006, p. 311.

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corte, encontrou na convivência deste autor com o mundo da praça pública a explicação

para a presença de aspectos populares em sua obra. A dinâmica cultural levou Rabelais

a assimilar aspectos da cultura popular. Os estudos de Bakhtin auxiliam Ginzburg a

aprofundar uma reflexão sobre o movimento recíproco e contínuo que influencia os

diferentes níveis culturais.

Ginzburg irá finalizar sua contraposição, tanto das posições de Mandrou e

Bollème, quando encontra dois processos inquisitoriais contra um moleiro chamado

Domenico Scandella, no mesmo arquivo em que encontrara referências aos benandanti.

Este moleiro, mais conhecido pela alcunha de Menocchio, foi acusado de heresia em

duas ocasiões (1583 e 1599) e morto pela inquisição, ao que tudo indica em 1601. O

autor italiano busca realizar uma reconstrução da fisionomia de vida obscurecida de um

indivíduo aparentemente comum, e ao mesmo tempo extraordinário, para desembocar

em uma hipótese geral sobre a cultura popular, ou, mais precisamente, sobre a cultura

camponesa italiana dos anos iniciais da Europa pré-industrial.

O eixo central da investigação de Ginzburg está na excepcionalidade do

processo da figura de Menocchio. Este moleiro friulano, apesar de ser um membro do

povo, um representante das classes populares, não era uma figura média ou

representativa de qualquer coletivo. Nos interrogatórios sucessivos realizados pela

inquisição, Menocchio abandonou qualquer reserva e expôs diversos aspectos de suas

crenças e de suas convicções religiosas com segurança e, até mesmo, certa

agressividade. O moleiro afirma:

Na minha opinião, falar latim é uma traição aos pobres. Nas discussões os homens pobres não sabem o que se esta dizendo e são enganados. Se quiserem dizer quatro palavras, têm que ter um advogado. E me parece que na nossa lei o papa, os cardeais, os padres são tão grandes e ricos, que tudo pertence à Igreja e aos padres. Eles arruínam os pobres. Se têm dois campos arrendados, esses são da Igreja, de tal bispo ou de tal cardeal.78

Em suma, o cerne das críticas de Menocchio se dirigia para a negação da

hierarquia eclesiástica da época, discutindo e criticando a diferença entre ricos e pobres

(sendo a Igreja a maior representante desta desigualdade) e o uso do latim nos tribunais

(cuja função seria a de enganar os pobres). E conclui:

segundo meu pensamento e crença tudo era um caos, isto é, terra, ar, água e fogo juntos, e de todo aquele volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos.79

78 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo : Companhia de Bolso, 2006. p. 41. 79 Ibid. p. 37.

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A convicção, independência de julgamento e a posição autônoma em matéria

de fé de Menocchio tornavam o moleiro um perigo aos olhos dos inquisidores.

Ginzburg, quando tem contato com as idéias deste excepcional personagem friulano,

começou a se interrogar como era possível um moleiro desta época expor pensamentos

deste tipo. “De onde seriam as origens do pensamento de Menocchio?” Foi a pergunta

que fundamentou a pesquisa em O queijo e os vermes. Os inquisidores responsáveis

pelo caso de Menocchio logo tentaram adaptar as crenças específicas deste moleiro com

as heresias tradicionais mais difundidas da época (especialmente o catarismo, o

anabatismo e o luteranismo), de forma semelhante como haviam feito com os

benandanti em outra oportunidade. Tendo acesso ao universo literário que envolvia o

moleiro friulano (livros como a bíblia em linguagem vulgar, evangelhos apócrifos

reunidos, o Decameron de Bocaccio, alguns contos de aventura cavaleiresca, alguns

textos de caráter religioso e herético e, talvez, o Alcorão), Ginzburg pode comparar o

conteúdo destes livros com a leitura que Menocchio fez dos mesmos. Domenico

Scandella não realizou uma leitura passiva dos livros com que teve contato. O esforço

empregado por Ginzburg para confrontar as passagens dos livros, uma por uma, com as

conclusões que chegava o moleiro italiano deixou explícitas as deformações e lacunas

nos pensamentos deste interessante personagem. Há a presença de um filtro na leitura de

Menocchio que fez com que ele enfatizasse certas passagens enquanto deixasse de lado

outras, que exagerasse o significado de certas palavras, que isolasse informações de

contexto e que o levassem a interpretar metáforas ao pé da letra. Portanto, conclui o

historiador italiano que as origens do pensamento deste personagem não vem somente

das heresias mais corriqueiras de sua época, mas também da cultura popular. Para

Ginzburg, este filtro que distorce as suas leituras é a cultura oral camponesa que

Menocchio compartilha com sua comunidade. As idéias confusas e diversas, que se

assemelham em parte às heresias anabatistas e os ideais luteranos, que tanto

confundiram os inquisidores foram produtos do choque entra a cultura transmitida pela

página impressa com a cultura oral80. O moleiro mescla aspectos da sua vida cotidiana

com a sua religião proposta, uma mistura entre parte de uma tradição religiosa semi-

pagã que sobrevivia entre os camponeses e a religião Católica Apostólica Romana. Esta

mistura que possibilitou a Menocchio fundamentar a maior parte de suas críticas à

Igreja e aos padres. O fato de a Igreja Católica ter chegado a ser, em seu ápice, uma das

80 Ibid. p. 95.

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maiores proprietárias de terras cultiváveis do medievo, fez com que Menocchio pusesse

em dúvida uma série de dogmas católicos por acreditar que os papas e cardeais se

aproveitam e arruínam os pobres para conseguir suas riquezas81.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ginzburg, portanto, confirmou empiricamente a hipótese de circularidade

cultural proposta por Bakhtin. Ele mostrou, com o caso de Menocchio, que não

necessariamente há uma imposição cultural vinda de cima (como afirmava Mandrou), e

nem que se trata de uma reflexão completamente original (como afirmava Bollème).

Henrique Espada Lima chega a conclusão de que

O caso de Menocchio parecia demonstrar, para Ginzburg, a fecundidade da proposta de Bakhtin para a compreensão das relações existentes entre cultura popular e cultura erudita na Idade Média e no Renascimento. As convicções sustentadas pelo moleiro friulano em frente dos juízes da Inquisição combinavam não apenas os elementos populares que constituíam sua grade de leitura, mas um “conjunto de idéias muito claras e conseqüentes, que vão do radicalismo religioso ao naturalismo tendencialmente cientifico, às aspirações utópicas de renovação social”, e que sugeriam um quadro mais complexo de relações culturais. De mesmo modo que o critico russo encontrava nas trocas constantes e recíprocas entre a alta cultura e a baixa cultura a chave para a compreensão dos textos de Rabelais, Ginzburg reencontrava nas crenças pelo moleiro friulano a mesma dinâmica cultural que seria comprovada pelas “impressionantes convergências” que – apesar das diferenças de linguagem e dos diversos pontos de partida – se estabeleciam entre as posições de Menocchio (e, portanto, a cultura camponesa que ele de certo modo representava) e aquela de “grupos intelectuais dos mais refinados e conhecedores de seu tempo”.82

Enfim, o lema de Aby Warbug que voltava sua atenção para o “particular”

juntamente com as propostas de Bakhtin não somente mostrou a Ginzburg as

insuficiências homogeneizantes da aplicação do termo “mentalidade” nos estudos de

cultura popular, como também o auxiliou a desenvolver sua própria abordagem

histórica, que mais tarde foi cimentada no artigo publicado em 1986 Sinais: Raízes de

um paradigma indiciário83.

Ginzburg anuncia, assim, o desmoronamento da historia das mentalidades.

Baseado no método desenvolvido na história da arte pelo crítico italiano Giovanni

Morelli, Ginzburg pretendia mostrar a importância do “detalhe revelador”. Ginzburg

discorre de tal forma sobre este método:

81 Ibid. pp. 50-52. 82 LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006. p. 323. 83 GINZBURG, Carlo. Sinais : Raízes de um paradigma indiciário. In : GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais : Morfologia e história. São Paulo : Companhia das Letras, 2007.

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Vejamos rapidamente em que consistia esse método. Os museus, dizia Morelli, estão cheios de quadros atribuídos de maneira incorreta. Mas devolver cada quadro ao seu verdadeiro autor é difícil: muitíssimas vezes encontramo-nos frente a obras não-assinadas, talvez repintadas ou num mau estado de conservação. Nessas condições, é impensável poder distinguir os originais das cópias. Para tanto, porém (dizia Morelli), é preciso não se basear, como normalmente se faz, em características mais vistosas, portanto mais facilmente imitáveis, dos quadros (...)Pelo contrário, é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés.84

Ginzburg parece bastante seguro de Sigmund Freud também havia lido Morelli

quando sugeriu a possibilidade de uma análise psicanalítica baseado na centralidade dos

resíduos e dados marginais para a revelação de realidades psíquicas até então ocultas. E

propõe então o autor italiano que, tal como Freud, o historiador também deve ler pistas

triviais e vestígios marginais, porque muitas vezes estas carregam as soluções para suas

intrigas investigativas. Esta abordagem atenta ao “detalhe revelador” de uma escala

microscópica (como no caso de Menocchio) permite ao historiador encontrar

contradições nas “prisões de longa duração” que a história das mentalidades não

consegue visualizar, especialmente nos estudos de cultura popular.

84 GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais : Morfologia e história. São Paulo : Companhia das Letras, 2007. p. 144. Grifo meu.